O Pacto Da Água - Abraham Verghese
O Pacto Da Água - Abraham Verghese
O Pacto Da Água - Abraham Verghese
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Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
Mapa
1. Sempre
2. Ter e manter
3. Coisas nunca mencionadas
4. A iniciação de uma dona de casa
5. A vida doméstica
6. Casais
7. Quem é mãe sabe
8. Até que a morte nos separe
9. Fiel nas pequenas coisas
10. Peixe embaixo da mesa
11. Castas
12. Dois grandes
13. Da magnificência
14. A arte do ofício
15. Um ótimo partido
16. O ofício da arte
17. Raças à parte
18. Templos de pedra
19. Pulsátil
20. Em casas de vidro
21. Prevenido
22. Natureza-morta com mangas
23. O que Deus sabia antes de nascermos
24. Outro caminho
25. Um estranho na casa
26. Muros invisíveis
27. Subir é bom
28. A grande mentira
29. Milagres matinais
30. Dinossauros e montanhas
31. A ferida maior
32. O guerreiro ferido
33. Mãos escrevendo
34. De mãos dadas
35. A cura do que te aflige
36. Não há o que aprender na sepultura
37. Um sinal auspicioso
38. Correio
39. Geografia e destino marital
40. Rótulos que diminuem
41. A vantagem da desvantagem
42. Todos se dão bem
43. Para vossa própria casa
44. Em uma terra de abundância
45. O noivado
46. A noite do casamento
47. Tema a árvore
48. Deuses da chuva
49. A vista
50. Riscos nas montanhas
51. Uma disposição para a dor
52. Como era antes
53. Mulher de pedra
54. Um anjo pré-natal
55. O rebento é uma menina
56. Desaparecida
57. Invictus
58. Acenda o castiçal
59. Doces opressores e gratos oprimidos
60. A revelação do hospital
61. O chamado
62. Hoje à noite
63. Os encarnados e os desencarnados
64. Articulação ginglimoartroidal
65. Se Deus falasse
66. A linha divisória
67. Melhor fora do que dentro
68. O cão do paraíso
69. Ver o que você imagina
70. Mergulhe
71. Os mortos hão de se erguer intocados
72. A doença de Von Recklinghausen
73. Três regras para uma possível noiva
74. Uma mente analisada
75. Estados de consciência
76. Despertares
77. Estradas revolucionárias
78. Saca só
79. O plano de Deus
80. Não piscar
81. O passado encontra o futuro
82. A obra de arte
83. Amar os doentes
84. O mundo conhecido
Agradecimentos
Notas
Sobre o autor
Créditos
Para Mariam Verghese, in memoriam
Um rio saía do Éden para regar o jardim.
Gênesis 2,10
Ela tem doze anos e vai casar na manhã seguinte. Mãe e filha estão
deitadas na esteira, os rostos úmidos colados um ao outro.
“O dia mais triste na vida de uma menina é o dia do seu casamento”,
diz a mãe. “Então, se Deus quiser, melhora.”
Pouco depois a menina ouve os soluços da mãe se transformarem
numa respiração ritmada, e em seguida num ronco mais suave — um
som que, na cabeça da menina, parece impor certa ordem aos ruídos
esparsos da noite, das paredes de madeira que exalam o calor do dia ao
cachorro escavando a terra no quintal.
Do lado de fora, um cuco-falcão-indiano canta: Kezhekketha?
Kezhekketha? Para onde o leste? Para onde o leste? A menina o imagina
lá no alto, observando a clareira em meio à qual o telhado de sapê
protege a casa. Ele vê a lagoa à frente, o riacho e o arrozal um pouco
atrás. Às vezes canta por horas a fio, privando todos do sono… Mas
agora se cala de repente, como se uma cobra tivesse lhe dado um bote.
No silêncio que se segue, o riacho não canta nenhuma canção de
ninar, apenas grunhe sobre as pedras polidas.
Ela desperta antes do amanhecer, a mãe ainda dorme. Pela janela, a
água no arrozal cintila como prata batida. Na varanda da frente, a bela
charu kasera de seu pai jaz esquecida e vazia. A menina levanta o apoio
para escrita escarranchado entre os braços de madeira da chaise longue
e senta. Na treliça de ratã sente a forma fantasmagórica do pai.
Nas areias da laguna crescem, inclinados, quatro coqueiros que
roçam a água como se em busca de um vislumbre do próprio reflexo
antes de apontar para o céu. Adeus, lagoa. Adeus, riacho.
“Molay?”, disse, no dia anterior, o único irmão de seu pai, para sua
surpresa. Ultimamente ele não a chamava mais pelo afetuoso molay —
filha. “Encontramos um bom par para você!” Seu tom era melífluo,
como se ela tivesse quatro, não doze anos. “Seu noivo valoriza que você
vem de uma boa família, que é filha de clérigo.” Ela sabia que havia
muito o tio tentava casá-la, mas sentia que ele se apressava. O que
dizer? Esses assuntos eram resolvidos pelos adultos. A impotência no
rosto de sua mãe a constrangia. Não queria sentir dó de sua mãe, mas
respeito. Mais tarde, quando ficaram sozinhas, a mãe falou: “Molay,
esta casa já não é nossa. Seu tio…”. Ela se explicava, sem a filha sequer
ter protestado. A frase ficou no ar, e seus olhos pairaram pelo cômodo,
nervosos. Os lagartos nas paredes poderiam delatá-la. “Quão diferente
pode ser a vida por lá? Festejos no Natal, jejum na Quaresma… No
domingo, igreja. A mesma Eucaristia, os mesmos coqueiros e pés de
café. É um bom casamento… Ele tem posses.”
Por que um homem de posses casaria com uma menina sem
recursos, sem dote? Que segredo estão escondendo? Do que esse
homem carece? Juventude, para começo de conversa — ele tem
quarenta anos. E já é pai de uma criança. Poucos dias antes, depois da
visita do casamenteiro, ela entreouviu o tio repreendendo sua mãe: “E
daí que a tia dele se afogou? É diferente de um histórico familiar de
loucura. Quem já ouviu falar de uma família com histórico de
afogamentos? Os outros sempre ficam com inveja de um bom partido,
então logo exageram”.
Sentada, ela desliza as mãos pelos lustrosos braços da cadeira e pensa
por um instante nos antebraços do pai; como a maioria dos homens
malaialas, ele era um urso amoroso, com pelos nos braços, no peito e
até nas costas, por isso nunca era possível tocar sua pele, apenas uma
pelagem macia. Em seu colo, naquela mesma cadeira, ela aprendeu as
primeiras letras. Quando se saía bem na escola, ele dizia: “Você tem
uma cabeça boa. Mas ser curiosa é ainda mais importante. Para você,
ginásio. E faculdade também! Por que não? Não vou deixar que case
cedo, como sua mãe”.
O bispo o designara para uma igreja cheia de problemas perto de
Mundakayam, sem achen fixo por culpa de inescrupulosos
comerciantes maometanos. Não era lugar onde uma família pudesse
viver, com a névoa matinal mordiscando os joelhos ao meio-dia e
subindo até o queixo ao anoitecer. A umidade dificultava a respiração e
provocava reumatismo e febre. Menos de um ano depois ele voltou
com calafrios de bater os dentes, o corpo febril, a urina escurecida.
Antes que conseguissem ajuda, seu peito parou de bater. Quando sua
mãe aproximou um espelho dos lábios do marido, o vidro não
embaçou. A respiração do pai já era apenas ar.
Aquele foi o dia mais triste de sua vida. Como o casamento poderia
ser pior?
Seu marido não está no cais, onde um barco balança sobre as águas,
tensionando impacientemente as amarras.
“Desde que seu marido era menino”, diz sua agora cunhada, “ele
sempre preferiu ser transportado pelos próprios pés. Eu, não! Por que
andar, quando podemos flutuar?” A risada de Thankamma é
contagiosa. Mas agora, na beira da água, mãe e filha devem se separar.
Agarram-se uma à outra — quando voltarão a se ver? A noiva tem um
novo nome, um novo lar — nunca visto — ao qual pertence. Deve
renunciar ao antigo.
Os olhos de Thankamma também estão úmidos. “Não se preocupe”,
diz à mãe desolada. “Cuidarei dela como se fosse minha filha. Vou
passar duas ou três semanas em Parambil. A essa altura ela já conhecerá
sua casa melhor do que conhece os Salmos. Não precisa agradecer.
Meus filhos estão crescidos, e ficarei até meu marido sentir falta de
mim!”
As pernas da jovem noiva bambeiam quando ela se afasta da mãe.
No momento de subir no barco, a garota talvez caísse se Thankamma
não a acomodasse em seu quadril, como quem suspende um bebê. Por
instinto, enrola as pernas ao redor da cintura robusta da cunhada,
afundando o rosto naquele ombro carnudo. Empoleirada, lança um
olhar para a figura entristecida que lhe acena do cais, eclipsada pelo
imenso crucifixo de pedra que se ergue ao fundo.
parambil, 1900
parambil, 1900
parambil, 1900
Agora somos só JoJo e eu. Ele é minha sombra. Sem ele, acho que
sentiria ainda mais sua falta. JoJo só me dá trabalho na hora do
banho.
parambil, 1903
Nos três anos desde sua chegada, ela transformou o corredor coberto
do lado de fora da cozinha em seu espaço pessoal; pôs ali uma cama de
corda em que ela e Jojo cochilam depois do almoço e na qual ela
ensina as primeiras letras ao menino de cinco anos. É o ponto
estratégico de onde ela pode observar as panelas no forno e o arroz
secando nas esteiras do muttam. Enquanto JoJo dorme, senta-se na
cama, relendo o único material impresso da casa: uma velha edição do
Manorama. Não consegue se desfazer daquele jornal. Se o fizer, não
haverá mais nada, nenhuma palavra na qual seus olhos possam
repousar. Cansada de se martirizar por não ter trazido uma Bíblia,
dirige sua irritação à mãe de Jojo. Como pode uma morada cristã sem
o Livro Sagrado?
JoJo está acordando quando Shamuel volta com as compras, as
mercadorias balançando sobre sua cabeça. Ele se acocora diante dela e
retira os itens do saco, que logo dobra e guarda. Shamuel enxuga o
rosto com o thorthu e repara no jornal. “O que diz?”, pergunta,
apontando com o queixo enquanto estica o thortu e o dobra sobre o
ombro.
“Você acha que algo novo se meteu aqui dentro desde a última vez
que o li para você, Shamuel?”
“Aah, aah”, ele responde. As sobrancelhas grisalhas emolduram
olhos que, como os de uma criança, não conseguem ocultar a
decepção.
Minha querida filha, meu tesouro, como me aqueceu o coração ler sua
carta. Você não sabe quantas vezes eu a beijei. Seu primo Biji vai
casar. Vou à igreja todos os dias. Visito a sepultura de seu pai e rezo
por você. Minhas lembranças mais preciosas são dele e depois de você.
O que estou dizendo é: por favor, valorize cada dia de seu casamento.
Ser esposa, cuidar do marido, ter filhos: há algo mais valioso? Reze por
mim.
Nos dias seguintes, ela revisita a carta muitas vezes, beijando-a como
a um objeto sagrado. Não importa quanto a leia, sua preocupação não
diminui. Ela resiste à realidade da vida: uma mulher casada abre mão
do lar da infância para sempre, e o destino de uma viúva é permanecer
junto ao lar do esposo falecido.
Parambil segue seu ritmo: bocas por alimentar, mangas por colher,
arroz para debulhar, Páscoa, Onam, Natal… um ciclo que a jovem
esposa conhece bem e através do qual mede seus dias. Para um
observador, não há nada de novo. Mas, depois de uma noite como
aquela, toda distância entre marido e mulher desaparece.
“Senhor, obrigada…”, ela diz nas orações. “Não mencionarei nada
específico. Afinal, o que o Senhor não sabe de minha vida terrena? Mas
tenho uma pergunta. Quando meu marido abandonou o altar quatro
anos atrás, ouvi Vossa voz me falar: ‘Estou com vocês todos os dias’. O
Senhor falou também a ele? Disse: ‘Volte. Ela é a mulher certa para
você’?”
Faz uma pausa. “Porque eu sou, Senhor. Sou a mulher certa.”
7. Quem é mãe sabe
parambil, 1908
Certa manhã, em seu décimo nono ano na terra, ela acorda inquieta,
incapaz de se levantar, como que esmagada por um manto de
melancolia. JoJo tenta animá-la, tecendo uma bola com frondes de
palmeira. “Por cima, por baixo, por cima, por baixo, e então por baixo e
por cima, por baixo e por cima, certo?”, ele diz, esquecendo quem lhe
ensinou. Ele está com dez anos e já é mais alto que sua Ammachi, que
logo terá o dobro de sua idade; contudo, sempre que estão sozinhos, o
menino se comporta como se fosse muito mais novo. Preocupado, ele a
ajuda a andar até a cozinha, mas o simples gesto de soprar as brasas a
deixa sem fôlego.
Depois do almoço, ela volta para o quarto e só acorda quando a mão
fria do marido acaricia sua testa. Espanta-se ao ver que o sol já está se
pondo. Não preparou nada para o jantar e agora se desfaz em lágrimas.
Com um olhar, ele dispensa JoJo.
Por que as lágrimas?, o marido pergunta com um movimento das
sobrancelhas.
Ela balança a cabeça. Ele insiste.
“Me perdoe. Não sei o que deu em mim.” O semblante dele sinaliza
que ele sabe que aconteceu algo.
Desde que o casamento foi consumado, ela passou a trocar
confidências livremente com o marido, exceto no que diz respeito à sua
mãe. Sente vergonha, pois ele sabe como tinha uma vida pobre antes
do matrimônio. Aos dezesseis anos, encheu-se de coragem e implorou a
Shamuel que a acompanhasse numa viagem para ver a mãe; fê-lo pedir
permissão ao thamb’ran, que concordou. Ela recorrera a Shamuel por
não querer pôr o marido numa situação em que ele lhe diria não.
Escreveu para a mãe, anunciando a data da viagem. Decidira que, caso
a encontrasse numa situação miserável, ela a levaria a Parambil. Tudo
que podia fazer era torcer pela compreensão do marido, que não tinha
obrigação de cuidar da sogra. Dois dias antes da partida, chegou uma
carta da mãe proibindo-a, com veemência, de visitá-la, afirmando que a
visita só tornaria tudo mais difícil. E acrescentou que o cunhado
prometera que todos logo visitariam Parambil. Obviamente, isso nunca
aconteceu.
“Tenho pena de minha mãe”, diz, por fim, chorando, aliviada por
confessar o que havia tempos ocultava dele. “Sei, no fundo do coração,
que ela está sendo maltratada. Passa fome. Depois que meu pai
morreu, meu tio deixou de ser bondoso conosco. Suas cartas falam de
tudo, menos dela. Posso sentir seu sofrimento.”
A mão de machado do marido permanece em sua testa, mas seu
rosto não deixa transparecer nada.
No dia seguinte, ele e Shamuel saem de casa antes que ela acorde.
Não há sinal deles ao longo do dia, e ao anoitecer ainda não
retornaram. A jovem esposa quase enlouquece de preocupação.
No outro dia, à tarde, uma carroça surge pela trilha do atracadouro,
roçando os pés de mandioca. Shamuel está sentado à frente, ao lado do
condutor. Uma figura familiar espreita por sobre seu ombro.
Ela se esquecera da testa alta da mãe e de seu nariz estreito, traços
agora acentuados pela magreza; o cabelo está branco, as faces
afundadas pela falta dos molares. É como se tivessem passado
cinquenta anos, não oito. Ao apear, a mãe se agarra aos minguados
pertences: uma Bíblia, uma taça de prata, uma trouxa de roupa. Mãe e
filha se abraçam, os papéis invertidos: é a mais velha que retorna à
segurança dos braços da jovem, chorando em seu colo, não mais
escondida na miséria dos anos que as separaram.
“Molay”, a mãe diz, quando consegue falar, “Deus abençoe seu
marido. Assim que o vi, pensei que tivesse acontecido alguma coisa
com você. Logo de cara ele entendeu tudo. ‘Vamos’, ele disse. Molay,
fiquei tão constrangida, seu tio não foi gentil — não ofereceu nem
água. Daí ela surge atrás dele para dizer que devo dinheiro por… Por
respirar, suponho. Seu marido ergueu o dedo.” E ela ergue um dedo,
como se testando o vento. “‘Nenhuma palavra a mais’, ele disse. ‘A mãe
de minha esposa não pode viver nessas condições.’ Sacudi a poeira dos
pés e não olhei para trás.”
Shamuel sorri, mas repreende a jovem patroa. “Por que não falou
antes para o thamb’ran? Sua mãe vivia como as mulheres que pedem
esmola em frente à igreja! Tinha só um cantinho minúsculo na varanda
para o colchonete.”
A mãe baixa a cabeça, envergonhada. Diz: “Seu marido pôs a gente
no barco. Falou que voltaria por outro caminho”.
No quarto que as duas logo irão compartilhar, ela observa a mãe
admirando o almirah de teca onde pode guardar as roupas, a
escrivaninha e a penteadeira com espelho. A recém-chegada vê o
próprio reflexo e, embaraçada, esconde as mechas de cabelo branco
atrás da orelha. Na cozinha a filha lhe serve um chá; a seguir, mói
coco, vai buscar ovos na despensa, requenta peixe e curry de galinha,
pica feijões para um thoren e diz a Shamuel que não saia sem comer.
“Ah, meu bebê”, declara a mãe ao ser servida, chorando. “Quando foi a
última vez que vi carne, peixe e ovos na mesma folha?”
Mais tarde, a mãe, sentada na cama de corda, observa a filha numa
correria sem fim: “Pare! Nada de halwa, nem laddu, nada. Não quero
mais nada! Sente aqui e me deixe ver você, te abraçar, minha joia”. A
partir das impressões da mãe, nota o quanto ela própria mudou: já não
é a noiva criança que a mãe viu pela última vez; agora é a senhora de
Parambil, com seu filho JoJo. A mãe corre os dedos pelo espesso cabelo
da filha, aquela massa de fios que tanto quis pentear e trançar, depois
inspeciona seu rosto à luz de uma lâmpada. “Minha filhinha agora é
uma mulher…”, diz, e então, abruptamente, recua e ergue as
sobrancelhas ao notar certa palidez que, partindo ao longo do dorso do
nariz da jovem, abre-se sobre suas faces, qual asas de morcego. Com os
olhos arregalados, declara: “Jesus Cristo, molay! Você está grávida!”.
De imediato a jovem conclui que ela deve estar certa. Talvez por isso
seu coração tenha pedido colo de mãe, pois espera o primeiro bebê.
parambil, 1908
parambil, 1908
glasgow, 1919
Ele fatia pão para comerem com chá quando ouve os passos da mãe
na escada, cedo demais. Um terrível pressentimento o assalta. “Me
mandaram embora, Digs. Deram um pé na bunda de sua mãe.
Encontraram um motivo.” Se ela pensa que seus companheiros de
trabalho farão greve para apoiá-la, engana-se. E, como já não está
empregada, o fundo dos grevistas não vai pagá-la.
Só lhes resta voltar para a casa da avó, uma hipocondríaca flatulenta
que faz o sinal da cruz quando ouve os sinos da igreja e se refere a
Digby como “o bastardo”. Ele e a mãe dormem na sala — ficam sem
geleia, às vezes sem pão. Sua mãe está debaixo das cobertas quando
Digby sai para a escola e assim ele a encontra quando volta. Seus olhos
apáticos lembram o hadoque no gelo no mercado de peixes de Briggait.
“Nada de bom jamais saiu do Gaiety”, a avó diz à filha, satisfeita.
É assim que o mundo de um menino desmorona. Ao retornar da
escola, o monstro de quatro olhos na torre monitora todos os seus
movimentos. Nenhuma canção se repete em sua cabeça. Ele e a mãe
são intrusos numa casa que cheira a fumos de caixão de uma “velha
farisaica melindrosa”, como a mãe dizia.
O médico que foi ao pequeno apartamento ver sua mãe diz que ela
está “catatônica”. Quando ela finalmente recobra as forças, Digby a
acompanha às fábricas, às agências de contabilidade e farmácias.
Trabalho, qualquer trabalho, seria terapêutico. Mas era como se ela
andasse com um cartaz no pescoço escrito: agitadora ruiva feniana.
Foi assim que o açougueiro a descreveu. Ela faz faxina quando pode;
inválida, é contratada para cuidar de inválidos.
Os invernos são tão frios que Digby não tira o gorro em casa, mas
precisa tirar a luva para fazer as lições. A avó atormenta a mãe.
“Levante. Não temos carvão e a comida é pouca. Se tiver que mendigar
ou abrir as pernas, faça isso. Foi assim que se meteu nessa confusão.”
madras, 1933
madras, 1933
madras, 1933
madras, 1934
madras, 1934
Antes do Natal, quando Digby está quase indo para casa, Honorine
chega à enfermaria acompanhada de um homem branco alto e
robusto. “Digby, este é Franz Mylin. O dr. Arnold internou a esposa do
sr. Mylin há dois dias e ela não está bem.”
Mylin tem a altura de um jogador de rúgbi, com tronco e pescoço
largos. É ruivo e, no momento, seu rosto, contorcendo-se de raiva,
também está vermelho. Sobem as escadas enquanto Honorine informa
o essencial ao jovem médico, pesando as palavras para poupar o
marido: os Mylins acabaram de voltar da Inglaterra, de vapor, e, nos
últimos três dias da viagem, Lena Mylin desenvolveu dor abdominal e
começou a ter crises de vômito que só pioravam. Ao desembarcar,
vieram diretamente para o Longmere. O diagnóstico de Arnold era
dispepsia. “Isso foi há trinta e seis horas”, Honorine diz.
Mylin estoura: “Ele mal tocou nela quando chegamos. E não
apareceu mais! Minha esposa está abandonada na cama, piorando a
cada hora que passa”.
A enfermaria dos britânicos está vazia, exceto pela figura de Lena
Mylin, que lembra um pássaro imóvel na cama, a respiração acelerada.
Mechas de um cabelo preto cacheado grudam-se à sua testa. Ela
observa, apreensiva, a aproximação de Digby. “Por favor”, diz Franz,
“não se sente na cama. A dor piora ao menor movimento.”
Só essa afirmação indica peritonite advinda de uma catástrofe
abdominal, o que o exame de Digby confirma: o lado direito do ventre
de Lena está rígido. O jovem médico nota a língua seca, os lábios
quebradiços, um toque de icterícia nos olhos e a pele pegajosa. Quando
lhe pede que respire fundo enquanto ele apalpa gentilmente a região à
direita, abaixo das costelas, a mulher pisca e para de respirar. Os dedos
de Digby encontram a vesícula. Ele não mede palavras. “Tenho certeza
de que há uma pedra obstruindo a vesícula, que agora está dilatada,
com pus.” Evita a palavra “gangrenosa”, para não alarmá-los ainda
mais. “Ela precisa ser operada com urgência.”
“O canalha disse que era enjoo!”, Franz diz. “Onde ele está? Aquele
criminoso!”
Na sala de cirurgia, tão logo Digby abre o abdome, ele encontra o
que temia: uma vesícula dilatada e irritadiça, com nacos escurecidos de
gangrena. Aí está sua dispepsia, Claude. Digby faz um pequeno orifício
na bolsa inflamada. Uma gosma de pus amarela, bile verde e pequenos
pigmentos de pedra derramam-se nas faixas de gaze e no aparato de
sucção. Retira o máximo que pode do órgão, deixando apenas a parte
colada ao fígado. Evita o ducto cístico por onde a vesícula se esvazia.
Dissecar aquela região com uma inflamação tão intensa é arriscado
demais. Os tecidos de Lena sangram com vigor. Antes de fechar a
barriga, ele deixa um dreno de borracha perto do leito do fígado.
Depois da cirurgia, a paciente está pálida e com pressão arterial baixa.
Digby corre para o “banco de sangue” — basicamente, um armário
refrigerado —, onde, pela tipagem sanguínea, determina que o dela é
do grupo B, o mais raro. O banco de sangue é uma inovação de sua
lavra, uma das áreas em que o Longmere sobressai em relação aos
outros hospitais da cidade. Após um quartilho de sangue, a pressão de
Lena sobe, e a cor retorna a seu rosto.
“De quem era esse sangue?”, Franz pergunta.
“Meu”, Digby diz. Seu grupo sanguíneo faz dele um doador
universal. Por sorte, tinha duas bolsas do próprio sangue armazenado
para uma ocasião como aquela. “Vou dar a ela uma segunda bolsa.”
Digby fica de vigília, junto com Franz. Ao amanhecer, o estado de
Lena apresenta clara melhora. Ele descobre que os Mylins têm uma
fazenda do outro lado da costa, perto de Cochim. O rosto de Franz
relaxa quando descreve seu lar de tantos anos nos Gates Ocidentais,
onde cultivam chá e especiarias. “Você precisa nos visitar, dr. Kilgour.”
Ao meio-dia, Digby retorna e encontra Claude Arnold ao pé da
cama, examinando a ficha de Lena, enquanto Franz espera, de braços
cruzados e enraivecido, segurando-se para não falar nada. Lena evita
olhar para Claude.
“Bem”, diz Claude, registrando a presença de Digby. “Ao que
parece, o dr. Kilgour salvou o dia.” Sem mais delongas, passa depressa
por Digby e se retira, antes que possam reagir. Digby tenta acalmar
Franz, praticamente apoplético.
Mais tarde, quando Digby surge na enfermaria, Claude aparece em
seguida. Talvez estivesse esperando atrás de um pilar. Se Digby achava
que seu chefe fosse se dobrar, demonstrando gratidão, ele rapidamente
se desilude.
“Você deveria ter se limitado a botar um dreno. Retirar pedacinhos
de vesícula? Não é muito ortodoxo.” Claude está de costas para a
entrada da enfermaria e não vê Franz Mylin a suas costas. “Chamo isso
de comportamento irresponsável e temerário, Digby.”
Antes que Digby possa formular uma resposta, Claude se dirige para
a saída. Com uma imprecação, Franz arremete e acerta um belo tapa
no ombro dele. Sua arrogância é substituída por surpresa e medo.
Digby salta para se colocar entre os dois quando Franz desfere um soco,
mas o golpe acaba por acertar o peito de Claude, que foge. Franz ruge
para o cirurgião-chefe do Longmere: “Volte aqui, seu covarde de
merda! Quem é irresponsável? Como cirurgião, você não vale a metade
do que vale Kilgour!”. As palavras ecoam na enfermaria vazia. Durante
o tempo em que Lena permanece internada, Claude mantém
distância.
Lena acaba se revelando a parte mais sociável e comunicativa do
casal. Sabe o nome de cada estagiário, e eles se desdobram por ela. O
dreno é retirado em três dias; dez dias depois da cirurgia, ela recebe
alta. No momento da despedida, Franz agarra os ombros de Digby; o
grandalhão está comovido demais para falar.
Lena toma a mão do jovem médico. “Digby”, diz, surpreendendo-o
por usar seu primeiro nome. “Como posso recompensar? Você salvou
minha vida. Ficaremos ofendidos se não for nos visitar. Você precisa de
um descanso. Promete que irá?” A resposta atabalhoada de Digby não a
convence. “Digby, você tem parentes na Índia?”
“Não, não tenho.”
“Ah, tem, sim. Temos o mesmo sangue agora.”
16. O ofício da arte
1935, madras
madras, 1935
madras, 1935
madras, 1935
madras, 1935
madras, 1935
Por que vou deixá-lo? Há uma razão, mas o sono a envolve antes que
ela possa se lembrar. Ela vira de lado. Sentindo frio conforme o suor
evapora, puxa o sári esmeralda da mesa — dane-se a natureza-morta —
e se cobre.
Quando Digby acorda, seu coração bate forte; abrir os olhos exige
grande esforço. O cômodo está claro, envolto por uma névoa etérea
dançante. Pigmentos ardem sobre seu corpo nu, com uma violência
perturbadora.
Ele sente cheiro de fumaça. Vira a cabeça e o mistério se resolve:
eles devem ter derrubado a vela durante o sono. Ele a procura às
apalpadelas, mas então nota, como se à distância, uma ilusão de ótica:
a mão dele está azul, e a pele pende como mel escorrendo. Na
verdade, tudo está azul: o chão, a lona onde eles dormem, o cavalete, a
tela. Ele quer rir da estranha cena. Rir, incrédulo. A parafina derretida
encontrou uma pilha de trapos encharcados de aguarrás, e as chamas
azuis escalam as paredes.
Vira-se e se depara com uma visão ainda mais estranha: o sári de seda
que havia posto como pano de fundo da pintura está no chão, só que
vivo, retorcendo-se. É coral, cor de gengibre e verde-azeitona, e,
debaixo dele, como Digby por fim compreende, está Celeste, lutando
para se libertar. Ele salta para o sári, puxando-o mesmo quando a seda
que derrete no fogo queima sua pele. Se conseguir pelo menos arrancar
o tecido e restaurar a bela peça no lugar junto ao pote de barro, perto
das frutas, suas dobras derramando-se no chão, se puder recompor a
cena tal como era, como deve ser — Natureza-morta com mangas —,
então tudo ficará bem. Tem certeza.
parte três
23. O que Deus sabia antes de nascermos
parambil, 1913
Ela ainda não batizou Bebê Mol. Em suas conversas com Deus,
evita o tópico, mas pressente a desaprovação divina. Certa noite aborda
o tema. “Como o Senhor pode esperar que eu passe pela sepultura de
um filho e depois entre na igreja para batizar outro?” Além disso, tem
suas dúvidas sobre um ritual que supostamente confere a graça divina,
que ela entende como amor inerente, benevolência e perdão. “Graça
nenhuma salvou JoJo.” Deus não diz nada.
Certa noite ela acorda e vê o marido de novo ao pé de sua esteira,
silencioso, evitando acordar sua mãe ou a neném. Há quanto tempo
está ali? Ele estende a mão, e dessa vez ela se levanta, sentindo aquela
acuidade familiar dos sentidos quando ele a puxa delicadamente para
erguê-la. Só agora percebe como sentiu falta daquela proximidade. O
serviço dos dois é terno e urgente.
Quando Bebê Mol faz cinco anos, eles quase a perdem para uma
coqueluche que se segue à catapora. Tão logo ela se recupera, Grande
Ammachi organiza o batizado, temendo pela alma da filha. Convida
Dolly Kochamma para ser a madrinha. Dolly assente com a cabeça, seu
rosto iluminando-se de alegria pela honra, mas nada diz. No jantar, ao
contar ao marido, Grande Ammachi diz: “Você e Dolly são parecidos.
Regrados nas palavras, jamais tagarelam ou falam mal dos outros”. Ele
responde com um grunhido, e ela diz: “Já a concunhada de Dolly,
claro, vai resmungar por não ter sido escolhida”. Nos anos desde a
chegada não anunciada de sua família a Parambil, a pudicícia de
Decência Kochamma mais do que justificou seu apelido; a gula,
contudo, não é um pecado que essa mulher reconheça, pois agora já
dobrou de tamanho, o rosto se fundindo ao pescoço, o corpo, um barril
informe. O grande crucifixo que antes apontava acusadoramente a
todos seus interlocutores hoje se ergue no peito expandido, voltando-se
para os céus. Dolly Kochamma, apesar das provações com a
concunhada, com quem compartilha a casa, preserva uma figura jovial,
a face ainda livre de rugas de preocupação, a postura amigável intacta,
e tudo isso deve parecer uma espécie de violação aos olhos de
Decência Kochamma. Grande Ammachi acrescenta: “Tenho certeza de
que Decência Kochamma pensa que ela é a mais santa das duas”. O
marido murmura uma coisa que ela só entende quando ele já deixou a
mesa: “Só se você medir santidade em toneladas”. Ele fez uma piada!
No batismo, Bebê Mol se delicia com a água que vertem sobre sua
cabeça, coisa que JoJo jamais toleraria. Grande Ammachi ouve o achen
entoar o nome batismal que ela escolheu, e Dolly Kochamma o repete
com diligência. Mas aquele nome soa dissonante ao ouvido de Grande
Ammachi, e em sua língua parece duro como arroz cru.
Quando voltam da igreja, o marido está à espera delas. Lança a filha
ao ar, e a menina solta um grito rouco de alegria. “Então, como você se
chama?”, pergunta.
“Bebê Mol!”, diz a pequena. Ele olha confuso para a esposa.
“É verdade. Deixei o outro nome no registro de batismo e lá ele
ficará.”
Passados cinco anos, ela vive com a dor da morte de JoJo como
alguém que vive com uma visão pardacenta devido à catarata, ou com
a dor de um quadril com artrite. Mas a recém-batizada Bebê Mol é a
salvação deles; mesmo o pai da menina, que há muito renunciou a
Deus, deve ver o divino em seu pronto sorriso, sua natureza generosa. É
a preferida de todos. Quando bebê, ficava igualmente alegre enquanto
a ninavam no colo ou na pequena rede. Crescida, contenta-se em
sentar por horas a fio no banco da varanda de que tomou posse faz
tempo. Dali ela revela a estranha habilidade de anunciar a chegada de
visitantes antes de eles se mostrarem. “Lá vem Shamuel”, ela diz, e eles
não veem ninguém, mas três minutos depois Shamuel aparece. A mãe
se admira de que a menina raramente chore. Ela só chorou naquele dia
terrível quando gritou até ficar azul, o dia em que Grande Ammachi
desejou que… É melhor nem lembrar o que desejou. Ela entende que
uma perda violenta gera mais violência.
Na monção daquele ano, todos têm febre. As brasas no forno
permanecem apagadas durante um dia inteiro, não há quem cuide
delas. Sua mãe é a última a se recuperar: está sempre cansada, dorme
cedo e só levanta com o sol já bem alto. Erguer-se da esteira exige um
grande esforço, e seu cabelo está descuidado, pois os braços se cansam
ao penteá-lo. Quando ela enfim aparece na cozinha, está apática, fraca
demais para ajudar. O mais alarmante é que até sua tagarelice está
desaparecendo. Chamam o vaidyan, que lhe toma o pulso e examina
sua língua, prescrevendo os tônicos e óleos de massagem de sempre,
mas eles não ajudam em nada. Ela piora. A filha, atarantada, cuida da
mãe e da casa ao mesmo tempo.
As bênçãos chegam das mais variadas formas e tamanhos, porém a
que surge perto da época do festival de Onam é a do tipo trôpega. Bebê
Mol anuncia sua chegada — “uma velha se aproxima”; minutos depois
surge Odat Kochamma, de pernas tortas, bamboleante, como se tivesse
ouvido uma convocação silenciosa, solicitando ajuda. Mesmo quando
essa mulher de nariz adunco e cabelo grisalho fica de pés juntos, Bebê
Mol ainda é capaz de passar por entre suas pernas. É uma prima
distante do “Grande Appachen”, como Bebê Mol chama o pai (um
nome que, aos poucos, todos passam a usar quando se referem a ele).
Mais tarde, Grande Ammachi descobre que Odat Kochamma zanza
entre os lares de seus inúmeros filhos, permanecendo em cada um
deles por alguns meses. Mas é em Parambil que ela ficará.
“Onde você guarda as cebolas?”, pergunta Odat Kochamma ao entrar
na cozinha, falando pelo canto da boca para que o tabaco que masca
não escape. “E me dê a faca. Sempre rezei para que as cebolas se
cortassem sozinhas e pulassem na panela, mas quer saber?” — cerra os
olhos, mirando mãe e filha com um olhar da mais absoluta seriedade
— “Até hoje isso nunca me aconteceu.” Sua expressão grave se
desarma, o rosto se parte numa miríade de rugas, e ao sorriso cativante
segue-se uma risada tão inesperada que todas as nuvens negras são
banidas da cozinha. Bebê Mol se encanta e bate palma, rindo.
“Mas meu bom Deus”, diz Odat Kochamma, reparando que o arroz
cozinhou e agora transborda; ergue as mãos para os céus, ou tenta fazê-
lo, pois suas costas recurvadas só permitem que as mãos subam à altura
do rosto. “Ninguém está de olho na panela?” A bronca é compensada
por uma piscadela e o tom de voz. “Quem comanda esta cozinha… o
gato?” Puxa o thorthu do ombro e com ele tira a panela do fogo, depois
enfia a cabeça pela porta dos fundos e cospe um jato de sumo de
tabaco. Vira-se a tempo de ver o gato se esgueirando para perto do peixe
frito. Surpreendido, o animal congela. O lábio superior de Odat
Kochamma se projeta, e dentes de madeira esculpidos de modo rústico
emergem como presas sujas de lama — é sua dentadura. Aquilo é
demais para o gato, que põe o rabo entre as pernas e foge. A dentadura
recua, e a risada da velha ressoa. “Por sinal”, diz, sussurrando
teatralmente e olhando ao redor para garantir que nenhum estranho
ouça, “estes dentes não são meus. Aquele appooppan os esqueceu
numa janela agorinha.”
“Que velho?”, pergunta Grande Ammachi.
“Rá! O pai de minha pobre nora! Quem mais? Estava dando o fora
daquela casa, pois ela me chamou de cabra velha, quando vi os dentes
e pensei, Aah, se sou uma cabra velha, então preciso disso tanto quanto
ele, não? Se ele deixou aqui, é porque não precisa, illay?” Ela faz cara
de inocente, mas seus olhos estão cheios de malícia. Grande Ammachi
tem um ataque de riso. Todas as suas preocupações desaparecem por
um momento.
Odat Kochamma é o tônico de que Parambil necessita. Ela não
descansa. Em uma semana, Grande Ammachi já se acostumou a ser
criticada, a ouvir que precisa se sentar e descansar, ou a gargalhar a
ponto de quase fazer xixi. A única coisa de que não gosta é que Odat
Kochamma sempre veste o mesmo mundu salpicado de cúrcuma depois
do banho, embora ela negue com veemência. “Mas eu troquei de
roupa ontem mesmo!” No meio da noite, Grande Ammachi finalmente
compreende e fica furiosa consigo própria: Odat Kochamma só tem
uma muda de roupa. No dia seguinte ela lhe dá dois conjuntos novos
em folha, dizendo: “Não nos encontramos no último Onam, então
esses aqui ficaram esperando por você”.
Odat Kochamma finge indignação e franze o cenho, sentindo a
textura do tecido branco como nunca mais será. Mas seus olhos a
traem. “Oho! O que é isso? Você está planejando me casar com
alguém, a essa altura? Aah, aah. Se eu soubesse, não teria vindo. Pode
mandar meu pretendente embora! Não quero vê-lo. Há algo errado
com ele, e você está escondendo de mim. Ele é cego? Tem surtos? Já
cansei dos homens. Essa panela tem mais inteligência do que qualquer
homem!” Enquanto diz essas coisas, não para de empurrar as roupas de
volta para Grande Ammachi, porém nunca chega a soltá-las.
Bebê Mol corre para o pai sempre que o vê. Ele é mais paciente com
ela do que era com JoJo, que vivia admirado com o tamanho e o
silêncio do pai. Bebê Mol não é assim. Mostra a seu Grande Appachen
seus laços e bonecas. Numa tarde chuvosa, quando ele se vê
aprisionado pelo aguaceiro, ela interrompe o caminhar ansioso do pai
na varanda e o puxa para o que veio a se tornar o banco dela. “Sente
aqui!” Ele se agacha, obediente. “Por que a chuva cai para o chão e não
para o céu? Por que…” Ele escuta, estonteado, o dilúvio de perguntas.
Bebê Mol não espera pelas respostas. Sobe no banco para coroar o pai
com um chapéu que, auxiliada por Odat Kochamma, ela mesma teceu
com frondes verdes de coqueiro. Satisfeita com o adorno, a menina
bate palmas. Depois envolve o pescoço do pai com seus bracinhos
roliços e pressiona as bochechas contra as dele. “Agora você pode ir”,
ela diz. “Você não vai se molhar com esse chapéu.” Ele balança a
cabeça, agradecido. Grande Ammachi morde os lábios para não rir ao
ver o marido gigante, bronzeado por décadas de sol, coroado por um
chapéu comicamente pequeno e torto. Quando ele sai das vistas da
filha, ela o vê retirar o chapéu e examiná-lo.
“Nunca imaginei que fosse viver para ver isso”, diz Grande Ammachi
para Odat Kochamma.
“Aah. Por que não? Uma filha tem passe livre para o coração do pai.”
Um pouco do crédito é meu também, ela pensa. Ajudei Bebê Mol a
amolecê-lo um pouco. Ajudei-o a se livrar do fardo de seus segredos.
cochim, 1922
Passa sua primeira noite sozinho na única das seis ruínas de edifícios
de tijolos vermelhos que ainda preserva duas paredes intactas e algum
telhado de palha. Ao cair da tarde, vê uma pedra se mover — era uma
cobra que tomava sol por ali. Deitado de costas, ouvindo o bochicho
dos ratos, olha para as estrelas e se pergunta se não estaria louco. A
palavra “lazareto” se referia a estações de quarentena onde pacientes
infecciosos podiam ser isolados, mas com o tempo passou a significar
hospital de leprosos. Este lazareto está escondido no trecho de terra
firme mais distante dos remansos. Erguido por portugueses, foi
reconstruído e abandonado por holandeses e mais uma vez
reconstruído por uma missão protestante escocesa. O estigma dos
desafortunados que um dia se abrigaram no local é tão forte que, desde
a retirada da última missão, décadas atrás, nenhum ocupante tomou
posse da terra.
Na manhã seguinte, munido de um bastão, Rune explora a
propriedade. Traça o perímetro, analisa cada prédio arruinado, examina
o poço e o portão principal, intacto mas enferrujado. Saindo, encontra
uma estrada de cascalho bem preservada que passa em frente ao
lazareto; seguindo à direita, ela leva às cabanas e casas de uma pequena
vila margeada pelo canal que ele navegou na véspera, quando
encontraram o homem trepado na palmeira. À esquerda, a estrada
continua reta por uma vasta planície empoeirada, até erguer-se numa
leve ladeira, depois da qual passa a correr em zigue-zague, como uma
cicatriz sinuosa, no sopé daquelas montanhas fantasmáticas, distintas,
titânicas, envoltas em névoas: os Gates Ocidentais.
Seu ânimo desaba quando volta e digere a tarefa que tem pela frente.
“A realidade é sempre uma confusão, Rune”, ele diz, em voz alta.
“Quando você abre uma barriga, nunca é como nos livros de
medicina.”
Perto do portão principal, um lampejo branco chama sua atenção.
Ocultos na relva crescida, encontram-se os ossos descoloridos de um
esqueleto humano, decerto espalhados por animais. O crânio e a pélvis
estão relativamente intactos, suturados ao chão por trepadeiras. A julgar
pela pélvis, trata-se de uma mulher, e uma leprosa, levando em conta
as erosões nas maçãs do rosto. Rune tem uma visão daquela mulher
chegando àquele lugar, fraca, talvez febril, desejando alívio e só
encontrando escombros. Ela se deita sem cuidados, sem comida e sem
água. Morre. Aqueles ossos ao sol o deixam terrivelmente triste. “Isso é
um sinal, não é, Senhor?”
Naquela noite ele sonha com a irmã Birgitta no orfanato de Malmö,
onde cresceu. Sentia pena dela, que dedicava a vida a um lugar que ele
só pensava em abandonar. Agora entende. No sonho, a irmã Birgitta
está costurando, sentada perto da lâmpada, que se torna cada vez mais
brilhante, cegando-lhe os olhos.
Ele acorda e encontra dois rostos aterrorizados, a poucos centímetros
do seu, suas feições exageradas pela chama da vela que um deles
segura. Rune grita, eles recuam, também gritando. As duas figuras
assustadas retiram-se para um canto. Ele acende a lanterna. “Não quis
assustar vocês”, diz, em malaiala, agravando o choque dos visitantes.
“Pensamos que você estivesse morto”, declara um homem com um
buraco no lugar do nariz. Chama-se Sankar, e a mulher, Bhava. Estão
voltando de um festival num templo. Pedem esmola nesses eventos. “É
uma longa caminhada”, Sankar diz, “mas aqui tem paredes e um teto
sob o qual podemos dormir.”
“Só duas paredes e quase nada de telhado”, Rune diz.
“Melhor do que ao relento, daí os cães selvagens vêm atrás de nós”,
fala Bhava, que produz um som sibilante ao respirar. Rune adivinha
que sua laringe está tomada de lesões. “As pessoas não deixam a gente
nem encostar na parede de um estábulo.”
“Você não tem lepra”, Sankar observa. “Por que está aqui?”
“O poço está entupido”, Rune diz. “Primeiro temos que consertar
isso. Depois restauramos o restante, aos pouquinhos.” E gesticula para a
terra descuidada, os escombros do que antes eram edifícios.
“Você e quem mais?”, Sankar pergunta.
Rune aponta para o céu repleto de estrelas.
parambil, 1923
Nas dores do parto, ela anuncia aos gritos seu ressentimento contra
os homens, que são poupados do que fizeram acontecer, assim como se
ressente do infante mal-agradecido que carregou dentro de si e agora
quer parti-la ao meio. Mas então, quando aquela boca minúscula se
lança a seu mamilo, Grande Ammachi sente um jato tanto de colostro
quanto de perdão, este último trazendo uma espécie de amnésia. De
que outro jeito ela consentiria em dormir de novo com o homem que
lhe causou tamanha dor?
Depois da primeira respiração, o bebezinho olha à volta para o
mundo de Parambil com uma expressão séria e alerta, franzindo a testa,
concentrado. Ela já se decidira (com a bênção do marido) a lhe dar o
nome de seu pai, Philip. No entanto, a expressão erudita do recém-
nascido a leva a adotar Philipose no registro batismal. Poderia ter
escolhido “Peelipose”, “Pothen”, “Poonan” — variantes locais de
“Philip.” Mas gosta de “Philipose” pelo eco da antiga Galileia, a última
sílaba, reconfortante, que soa como água fluindo. A mãe reza para que
o filho conheça o prazer de ser levado por uma corrente, capaz de
nadar de volta à margem.
Seu nome de batismo será usado na escola e em tudo que seja
oficial. Ela torce para que antes disso não seja substituído por algum
diminutivo. Muitas crianças ganham apelido muito cedo e não
conseguem se desgrudar: “Regi”, “Biju”, “Sajan”, “Renju”, “Tara” ou
“Libni”; ao apelido acrescentam um complemento: “mon” (garotinho)
ou “mol” (garotinha); “bebê” (sem gênero) ou “kutty” (criança). Bebê
Mol tem dois complementos no lugar do nome cristão, que resta
abandonado na certidão de nascimento. Na meia-idade, Philipose será
interpelado por pessoas mais jovens com um sufixo respeitoso:
Philipose Achayen ou Philipochayen (para a mulher, pode ser
Kochamma, Chechi ou Chedethi). Quando for pai, será Appachen, ou
Appa para os filhos, tal como logo mais chamará sua mãe de Ammachi
ou Amma. Alguma confusão é inevitável. Ela ouviu falar de um
homem conhecido na família como Bebê Kutty e entre os amigos
adultos como Bebê Goodyear, embora tenha deixado essa empresa
depois do casamento e agora trabalhe para o Departamento de
Finanças de Jaipur. Os parentes de sua mulher o conheciam como
Bebê Jaipur. Um tio imponente da esposa chegou a Jaipur depois de
uma longa viagem, foi procurá-lo nesse departamento e ficou furioso
quando a equipe lhe disse que nenhum Bebê Jaipur trabalhava ali.
Acionaram a polícia, que o levou preso. Quando George Cherien
Kurian (também conhecido como Bebê Jaipur) soube disso, foi pagar a
fiança, mas não conseguiu localizar o tio, pois só o conhecia como
Bebê Thadiyan (Bebê Gordo) e não pelo nome sob o qual fora
registrado: Joseph Chirayaparamb George.
Poucas semanas depois do nascimento de Philipose, o marido cai de
cama por cinco dias com uma dor de cabeça paralisante, acompanhada
de vômitos alarmantes. Ela fica louca de preocupação, cuidando do
recém-nascido enquanto esfrega óleo na testa do doente, além de
consolar Bebê Mol, triste com o estado do pai. Shamuel acampa do
lado de fora do quarto do thamb’ran, recusando-se a ir para casa. Os
comprimidos e emplastros do vaidyan não adiantam nada. Ela quer
levar o marido a Cochim, para o doutor sa’ippu Rune, mas ele se
recusa a viajar de barco. Então, tal como surgiu, a dor de cabeça
diminui misteriosamente, só que, ao fim de tudo, ele termina com parte
da face esquerda caída. Não consegue fechar o olho esquerdo, saliva
escorre pelo canto da boca. Isso a incomoda mais do que a ele. Em
pouco tempo ele vai para o campo. Shamuel relata que o thamb’ran
está trabalhando duro como sempre, embora agora esteja surdo do
ouvido esquerdo.
O rosto do marido se ilumina sempre que vê o filho recém-nascido,
mas o sorriso é desigual; Grande Ammachi aprende a mirar o lado
direito de seu rosto em busca de sua verdadeira expressão. Há algo novo
nos olhos dele; primeiro, ela pensa que é tristeza. O marido estaria
relembrando o destino do primeiro filho? Não, não é tristeza, mas
ansiedade; uma ansiedade que não se liga a nada que ela possa
determinar, e isso a perturba. Bebê Mol também está preocupada e
agora abandona o banco para seguir o pai quando ele perambula pela
casa, ou empoleira-se na cama dele, calada, permanecendo ali até que
a mãe a ponha para dormir.
Seu marido ficaria muito contente por não ter precisado receber ou
conversar com toda a gente que foi chorá-lo, parentes e artesãos cuja
vida e destino ele alterou tão profundamente. Os naires do tharavad
nos confins de Parambil vêm prestar homenagens. Todos os pulayar
comparecem, de todas as casas, detendo-se silenciosos no muttam, o
rosto carregado de tristeza. Shamuel sobressai, chorando, despedaçado
— Shamuel, que ela conduziu ao quarto, apesar dos protestos dele,
para que se despedisse do thamb’ran que idolatrava. O marido ficaria
impaciente com o funeral, desejaria tomar logo seu lugar na terra que
tanto amava e deitar-se ao lado da primeira esposa e do primogênito.
Poucas semanas depois do enterro, com a vida em Parambil lutando
para encontrar o novo normal, Grande Ammachi ouve sons de
escavações e arranhões no pátio, quando estava prestes a dormir. O
barulho cessa. Na noite seguinte, ele volta. Ela sai e senta na varanda,
voltada para a fonte do ruído. “Escute”, ela diz, “você tem que me
perdoar. Eu me martirizo por não ter ido até você assim que botei as
crianças para dormir. Caí no sono. Sinto muito pela discussão no
jantar. Exagerei. Sim, também queria que tivesse sido diferente. Mas foi
só uma noite ruim entre tantas perfeitas, não? Eu esperava ter muitas
outras noites perfeitas, porém cada uma delas foi uma bênção. E ouça:
eu te perdoo. Depois de uma vida inteira de doçura, você tinha todo
direito a um chilique. Então fique em paz!”
Ela espera. Sabe que ele a ouviu, pois, como sempre foi seu hábito, o
esposo expressa amor por ela à sua maneira: pelo silêncio.
26. Muros invisíveis
parambil, 1926
Quando seu filho tem quase três anos, ela o leva de barco à igreja de
Parumala, onde está a tumba de Mar Gregorios, o único santo dos
cristãos de São Tomé. Philipose se delicia com sua primeira viagem de
barco, mas a mãe não tira os olhos dele. Nem seu marido nem JoJo
jamais aceitaram subir num barco, já o menino não pode ver água sem
querer desafiá-la. Seus amigos pulam no lago como peixes, e ele não
consegue entender por que não pode fazer o mesmo; Philipose adquire
uma obstinação de formiga-de-fogo, ferozmente determinado a superar
o interdito. Suas muitas tentativas de “nadar” deixam a mãe
aterrorizada; os fracassos são um espetáculo patético.
A tumba do santo fica de um lado da nave da igreja. Acima dela há a
foto em tamanho real de um retrato de Mar Gregorios; essa imagem
(ou então o retrato largamente difundido do artista Raja Ravi Varma)
pode ser vista em calendários e pôsteres emoldurados em qualquer
residência dos cristãos de São Tomé. A barba do santo contorna lábios
delicados, e suas tranças laterais emolduram um rosto bonito e
bondoso, com olhos joviais. Ele advogou sozinho para que os pulayar
fossem convertidos e acolhidos nas igrejas, o que não viu acontecer em
vida. Grande Ammachi acha que também não verá.
O garotinho se encanta com a igreja, e ainda mais com a tumba e as
centenas de velas diante dela. Ele puxa o mundu da mãe. “Ammachi,
peça pra ele me ajudar a nadar.” Ela não o escuta; de pé, com a cabeça
coberta, contempla em transe o rosto do santo.
Mar Gregorios olha diretamente para ela, sorrindo. Sério? Você veio
até aqui para pedir que eu ponha um feitiço no menino?
Ela fica chocada. Ouviu a voz do santo, mas, quando olha ao redor,
percebe que ninguém mais ouviu.
Mar Gregorios lê seus pensamentos. Ela não consegue encará-lo.
“Sim”, ela diz. “É verdade. Você ouviu o que meu filho disse. Ele está
tão determinado. O que devo fazer? O menino perdeu o pai. Estou
desesperada!”
Uma das lendas conta que Mar Gregorios queria cruzar o rio que flui
em frente àquela igreja para visitar um paroquiano na outra margem.
Contudo, perto do atracadouro, três mulheres banhavam-se
alegremente no raso, suas roupas molhadas colando-se à pele, os gritos
e gargalhadas flutuando no ar como faixas festivas. Por pudor, ele
voltou atrás. Meia hora depois, elas continuavam lá. O santo desistiu,
murmurando consigo mesmo: “Fiquem na água, então. Vou amanhã”.
Naquela noite o diácono reportou que três mulheres pareciam
impossibilitadas de sair do rio. Mar Gregorios sentiu remorso pelas
palavras que disse tão sem pensar. Ajoelhou-se, rezou e disse ao
diácono: “Diga a elas que já podem sair”. E elas saíram.
Grande Ammachi está ali para pedir descaradamente pelo inverso:
que o santo impeça seu único filho de entrar no rio. “Sou uma viúva
com duas crianças para criar. Além disso, tenho que me preocupar com
esse garoto, que, tal como o pai, corre riscos perto da água. Nasceram
com essa Condição. Já perdi um filho para a água. Mas este está
determinado a nadar. Por favor, eu imploro. E se quatro palavras suas
— ‘Não entre na água’ — lhe permitirem viver uma longa vida em
honra de Deus?”
Ela não obtém resposta.
Philipose se assusta ao ver a mãe, seu rosto iluminado de modo
fantasmagórico pelas velas diante da tumba, conversando com a
fotografia do santo.
Na volta para casa, ela diz a Philipose: “Mar Gregorios te vigia todos
os dias, monay. Você me ouviu fazer uma promessa diante da tumba
dele, não foi? Prometi que jamais deixaria você entrar na água sem
companhia. Se desobedecer, alguma coisa ruim acontecerá comigo”.
Essa parte é verdade: ela morreria se alguma coisa acontecesse com ele.
“Você vai me ajudar a cumprir minha promessa? Nunca irá sozinho?”
“Mesmo depois de eu aprender a nadar?”
“Mesmo depois. Sempre. Uma promessa não pode ser quebrada.”
O menino se abala com a ideia de que alguma coisa pode acontecer
à mãe. “Eu prometo, Ammachi”, diz, sincero. Com frequência ela o
lembrará daquela promessa.
parambil, 1932
Mais tarde ela encontra Philipose sentado com sua bola à sombra do
coqueiro mais antigo, cutucando com um graveto um formigueiro
abandonado. Está desolado. Senta-se com ele, bagunça seu cabelo.
“Talvez eu devesse tentar subir”, ele diz, baixinho, apontando para a
copa da árvore, “em vez de…”
Que fascinação é essa dos homens de subir ou descer, virar pássaro ou
peixe? Por que não ficar com os pés no chão? O filho a encara com tanta
intensidade que ela estremece. Ele acha que tenho todas as respostas.
Que posso protegê-lo das decepções da vida. “Subir é bom”, ela declara.
Depois de uma pausa, o menino fala. “Sabia que meu pai subiu
nessa árvore uma semana antes de morrer? Shamuel diz que nesse dia
ele tirou coco pra todo mundo!” A animação em sua voz começa a
voltar, como um arbusto ressecado se desfraldando depois da chuva.
Graças a Deus ele não herdou o silêncio do pai.
“Aah. Bem… Ele quase caiu…”
“Ainda assim, ele conseguiu subir até o céu”, o menino diz,
levantando e pondo um pé no calço talhado daquele lado do tronco,
olhando para cima e visualizando a façanha, observando onde a árvore
termina e onde começa o firmamento.
“Aah, isso é verdade…”, ela concorda.
Mas não é. Shamuel, é óbvio, não contou o que aconteceu. O
marido deixou de escalar os coqueiros no último ano de vida. Mas, uma
semana antes de morrer, algum impulso o impeliu para o alto. A árvore
lhe era tão familiar quanto o corpo das duas mulheres que lhe deram
filhos. Décadas atrás ele talhara aqueles calços que serviam de apoio.
Não foi a árvore, mas a falta de força que o traiu. Empacou ao cumprir
um quarto do caminho. Shamuel foi atrás, uma volta de corda presa
entre os pés, subindo até alcançá-lo. Shamuel tocou o pé do thamb’ran
e conseguiu fazê-lo deslizar para o próximo calço. “Aah, aah, aí. É bem
fácil, não é? Agora o outro… e deslize as mãos.” Grande Ammachi só
conseguiu respirar quando o esposo voltou à terra, o único lugar ao
qual aqueles pés pertenciam agora. “Tirei uns cocos pra você”, o
marido lhe disse, apontando vagamente atrás de si, mas não havia coco
nenhum. “Aah. Fico muito contente”, ela respondeu. Caminharam de
volta para casa de mãos dadas, sem ligar para quem os observava.
Philipose a tira do devaneio. “Acho que não quero subir nessa árvore.
Ainda é um pouco alta para mim, não é?” Ela detecta uma rara nota de
precaução na voz dele.
“Por ora, é.”
“Ammachi, se ele tinha forças para subir nessa árvore… por que
morreu?”
Essa pergunta a pega de surpresa. A seus pés, formigas-de-fogo
carregam uma folha, absortas no trabalho. Se ela soltasse uma pedrinha
em cima da folha, elas considerariam uma calamidade natural? As
formigas conversam com Deus, ou respondem a perguntas impossíveis
dos filhos?
“A Bíblia diz que vivemos sessenta anos mais dez, se tivermos sorte.
Ou seja, setenta. Seu pai estava bem perto disso. Sessenta e cinco. Sou
muito mais nova do que ele. Eu tinha trinta e seis anos quando ele
morreu.” Ela vê a preocupação no rosto dele e sabe que o menino está
fazendo as contas. “Tenho quarenta e cinco agora, monay.”
Seu filho põe o braço magrelo ao redor dela e a abraça. Ficam
daquele jeito por muito tempo.
Abruptamente, vira-se para ela e diz: “Eu nunca vou conseguir nadar
por algum motivo, não é? Meu pai também não conseguia pela mesma
razão”. A expressão em seu rosto já não é a de um garoto de nove anos.
Ao admitir a derrota, parece mais velho, mais sábio. “Que motivo é
esse, Ammachi?”
Ela suspira. Não sabe qual é o motivo. Talvez ele o descubra. Como
seria maravilhoso se sua teimosa determinação se transformasse numa
busca pela cura da Condição! Ele poderia ser o salvador das gerações
futuras. Poderia poupar os filhos dele de igual sofrimento. Por ora,
Grande Ammachi pode apenas nomear o problema, descrever o estrago
que aquilo causou na família desde tempos imemoriais. Talvez ainda
não lhe mostre a genealogia — a Árvore da Água — para não assustá-lo
com visões de uma morte prematura. Ela respira fundo e diz: “Vou
contar o que sei”.
28. A grande mentira
parambil, 1933
Certa tarde, quando o caminhante está voltando para casa, uma voz
em pânico lhe grita às costas: “Saia da frente!”. Uma bicicleta passa por
ele com grande estrépito, quicando no barro ressecado dos sulcos
talhados pelas rodas das carroças. O ciclista de cabelo branco salta
momentos antes de o veículo se esborrachar contra o aterro. Philipose o
ajuda a se levantar. Os óculos do menino estão tortos, a lama sujou seu
mundu, mas pelo menos a caneta ainda está no bolso da camisa. O
bigode grisalho e cerrado do ciclista alcança seu lábio inferior. “Sem
freio!”, ele declara. Um hálito de álcool acompanha o pronunciamento.
O homem se levanta, ergue a bicicleta e apruma o guidão, depois dá
um tapinha na caneta presa ao bolso de Philipose e pergunta, mas em
inglês: “Que modelo é esse? Sheaffer? Parker?”.
Philipose responde em malaiala: “Nada tão chique assim. Mas o que
importa é a tinta, e essa eu batizei de Rio de Cobre Parambil. Feita à
mão por mim mesmo a partir de um filtrado de solo de laterito, cobre e
ureia”. Sem revelar a fonte da ureia, esboça um desenho no caderno
como demonstração. As sobrancelhas do ancião, que fazem frente ao
bigode, se alçam. “Humm!”, ele exclama, agitando a trinca peluda.
Quase um quilômetro mais tarde, Philipose revê o ancião, agora sem
camisa, parado no topo de uma escada íngreme que leva a um
barracão. Ele discursa em inglês numa voz poderosa, como se falasse a
uma multidão, embora não haja ninguém por ali além de Philipose.
“Canhão à direita deles, canhão ao fundo…” é tudo que o garoto
consegue compreender. Contudo, para seus ouvidos, aquele inglês soa
melodioso e convincente, bem diferente do inglês do mestre Kuruvilla,
que ecoa parecido com o malaiala do próprio mestre Kuruvilla, com
palavras pisando no rabo umas das outras —
“Ocachorroestásempreseguindoomestre” ou
“AderrotadeNapoleãoemWaterloo” —, sempre intercaladas por um
“nayinte mone” (filho da puta) e outras expressões em malaiala que
sugerem que seus pupilos têm casca de coco no lugar do cérebro.
Philipose julga autêntico o inglês daquele homem, o idioma do
progresso, da educação superior, ainda que seja a língua dos
colonizadores.
“Menino da Tinta!”, ele grita em inglês, enquanto volta a amarrar o
mundu logo abaixo dos mamilos. “Bom samaritano! Identifique-se, meu
bom camarada.”
“É comigo que o Saar está falando?”, pergunta Philipose, em
malaiala.
“em inglês!”, o outro ruge. “Conversaremos apenas em inglês. Qual
é sua graça?”
“MechamoPhilipose, Saar”, responde o garoto, torcendo para que
aquilo corresponda à sua graça.
“Senhor! Não Saar.”
Philipose repete. O bigode se agita. “Muito bem, suba. Vamos
começar.”
parambil, 1936
O Santa Brígida sofre nos últimos dias de verão, a água no poço paira
a poucos centímetros do leito lodoso. Rune dirige pela estrada que leva
à propriedade de Chandy nas montanhas, deixando um rastro de
poeira. Nos catorze anos desde que chegou, tornou-se parte da família.
No verão, ele muitas vezes os visita nos fins de semana. No espaço de
três anos, Chandy e Leelamma tiveram um filho, e depois uma filha. O
menino nasceu temperamental, e, hoje, aos doze anos, segue o mesmo.
A menininha, Elsie, é o oposto, e adotou o barbudo “tio Rune” de
imediato. Há cinco meses a vida deles mudou drasticamente:
Leelamma contraiu febre tifoide. A febre parecia recuar quando ela
sentiu uma dor abdominal severa e Chandy a enviou para Cochim. Os
cirurgiões descobriram que uma úlcera de intestino havia se rompido;
ela morreu na mesa de cirurgia. Para as crianças foi como se a foice que
ceifara a vida da amada avó no mês anterior, ao passar rasante agora, no
movimento de retorno, colhesse também a mãe. Rune jurou fazer a
viagem de três horas todo fim de semana no verão para ficar de olho na
família, que mal se aguentava de pé.
No que diz respeito a ele, os anos lhe foram gentis. Ele construiu um
pequeno bangalô perto do portão principal, com entrada
independente, separado do leprosário para que seus amigos de fora
fiquem à vontade para visitá-lo. O Santa Brígida agora tem um carro
oficial, presente da Missão Sueca, um reforço para o caquético veículo
de Rune. Graças ao galinheiro, ao pequeno laticínio, à horta e ao
pomar — tudo administrado pelos habitantes —, a comunidade é
autossuficiente, com certo excedente para vender ou doar. Só que nem
um mendigo ousaria encostar os lábios em comida oriunda de um
leprosário. A exceção é o vinho de ameixa. No primeiro dia da
Quaresma, Chandy, sozinho na propriedade, viu-se de novo sob risco
de convulsão. Para reduzir a tentação, Leelamma havia removido todo
álcool do bangalô, mas algumas garrafas empoeiradas do vinho de
ameixa escaparam de seu radar. Um copo curou o tremor de Chandy,
que decidiu que aquele vinho, dada sua origem santificada, podia ser
consumido durante a Quaresma. Passou a comprar caixas, e a bebida
também agradou a população da fazenda, sobretudo as damas, pois era
leve, deliciosa e — assim jurava Chandy — “medicinal”. Nessa visita
Rune leva quatro caixas.
As crianças dormem quando ele chega ao bangalô de Thetannat.
Chandy está de guarda e conta que Lena Mylin lhe deixou uma
mensagem; ela e Franz querem vê-lo na noite seguinte, é urgente. Os
fazendeiros da região com suas famílias — os amigos de Chandy — são,
por tabela, também amigos de Rune.
Antes de se retirar, o médico fuma um último cachimbo na varanda,
apreciando os sons da noite. O véu enevoado sobre ele se abre para
revelar as estrelas, o céu tão baixo que ele sente que, se estender a mão,
tocará a bainha do manto de Deus. Está em paz. Tem quase certeza de
que as dores no peito que o incomodam são angina, mas ele a aceita
com equanimidade. Está vivendo sua fé, seu amálgama de cristianismo
e filosofia hindu. A medicina é seu sacerdócio, ele se dedica à cura do
corpo e da alma de seu rebanho. Enquanto puder, é isso que fará.
Toda manhã e toda noite Rune trabalha para soltar o pulso direito de
Digby, sessões de tortura que deixam o convalescente suando. O sueco
parece apreciar a presença de um hóspede com quem conversar, ainda
que as conversas sejam um tanto unilaterais. Certa noite, Rune chega
ao bangalô com o rosto pálido, a mão direita sobre o peito. Escora-se no
umbral, quando então Digby se levanta-se para ajudá-lo, mas o
cirurgião o afasta com um gesto. “Só preciso recuperar o fôlego…
Estou com esse… incômodo no peito às vezes. Quando está quente e
ando da clínica para casa. Passa logo.” E passou.
Dez dias depois da chegada de Digby, Rune diz: “Hoje você não
janta, Digby. Amanhã vamos operar sua mão direita. Dessa vez vou te
sedar por completo”.
Quando o éter faz efeito, Rune higieniza a mão direita de Digby,
fazendo o mesmo com a pele acima do peito esquerdo. Usando pinça e
bisturi, remove laboriosamente os pequenos enxertos que Digby havia
feito na mão direita, bem como o tecido cicatrizado que o circunda.
“Não se sinta mal, meu amigo”, Rune murmura. “Seus enxertos foram
úteis. Sem eles, os tendões teriam ficado duros feito cimento. Agora
estão sendo estrangulados por ervas daninhas.” Leva uma hora para que
o dorso da mão, do pulso até o nó dos dedos, fique exposto, cru,
sangrando, com os tendões à vista, mas movendo-se livremente. O
pulso arqueado cede e fica reto quando Rune o pressiona para baixo.
O cirurgião posiciona a mão de Digby, de palma para baixo, no lado
esquerdo do peito. Em seguida, traça o contorno da mão no peito com
uma caneta cirúrgica, a ponta mergulhando entre os dedos esticados.
Pondo a mão de lado, protegida por toalhas esterilizadas, Rune faz
uma incisão vertical bem à esquerda do esterno de Digby,
correspondendo ao pulso do traçado da mão. A partir dessa incisão cria
um túnel por debaixo da pele, inserindo e abrindo as lâminas de uma
tesoura, até criar um bolsão largo o suficiente para acolher a mão de
Digby. Depois, com a marca da mão desenhada como guia, faz cinco
incisões perfurantes no peito, correspondendo à base de cada dedo. Em
seguida insere a mão descarnada de Digby dentro do bolsão de pele
que acabou de criar, puxando cada dedo por sua respectiva incisão.
Quando termina, os dedos de Digby estão dentro de um saco de pele,
sua mão como uma luva sem dedos. Meu jovem Bonaparte, Rune
pensa. Ele o imobiliza com uma argamassa do ombro até o cotovelo, e
ao redor do tronco, para coibir qualquer movimento.
Ele vive com Rune há mais de um mês. Aquele homem com mais
do dobro de sua idade o preocupa. Mais de uma vez ele o viu empacar
numa caminhada, esperando passar aquele “incômodo” no peito. Certa
noite em que estão na sala, Digby aborda o assunto, mas o Rune sai
pela tangente. O jovem médico se cala, observando-o limpar o
cachimbo, enchê-lo de tabaco e, finalmente, correr os dois fósforos ao
redor do fornilho. A facilidade daqueles movimentos coordenados,
complexos e em grande parte automáticos sempre estará além de suas
capacidades. Nuvens de um aroma adocicado invadem o ar.
O cirurgião estuda seu interlocutor, um homem que logo
completará trinta anos, nascido pouco antes da Primeira Guerra
Mundial. Rune já tinha trinta e tantos quando desembarcou na Índia.
Sente-se um tanto paternal em relação ao jovem escocês que se
ocultava sob um muro de silêncio quando os dois se conheceram. É
possível testemunhar um espírito se curando, ele pensa, tal como
vemos uma ferida se curar.
“E aí, Digby? Você gosta do Santa Brígida?”
“Gosto.” Quando chegou, Digby não pensava no lugar como um
destino final, mas depois de suportar cirurgias e tantas dores, aquele
leprosário começou a lhe parecer um lar. Ele é um pária numa
comunidade de párias. “Sinto que estou em casa, Rune.”
“Veja só! Você é sueco e nunca disse?”
A risada do outro soa mais humana: “Sou de Glasgow. Do lado
errado dos trilhos”.
“Já fui a Glasgow. Tem um lado certo?”
Digby enche de novo as taças dos dois, usando ambas as mãos. “Você
me entende. Toda mão que vejo aqui tem parentesco com a minha. O
‘rebanho’, como você diz, eles são… meus irmãos e irmãs.” E se cala,
envergonhado.
“São meus também.” Rune vira o copo e declara: “Mãos são uma
manifestação do divino. Mas você precisa usá-las. Não podem ficar
paradas, como as de um funcionário público incumbido da escritura de
terrenos. Nossas mãos têm trinta e quatro músculos individuais, mas os
movimentos nunca são isolados. É sempre uma ação coletiva. A mão
sabe antes da mente. Precisamos libertar suas mãos, começando com
movimentos naturais, cotidianos — sobretudo a direita. O que você
gosta de fazer com as mãos?”
“Operar.” Digby não consegue evitar o ressentimento.
“Sim. E o que mais? Bordado?”
“Bem… em outra vida, gostava de desenhar, pintar.”
“Excelente! Essas paredes e portas precisam de retoques.”
“Digo aquarelas, pinturas a carvão.”
“Ah, maravilha! Mãos à obra! A melhor reabilitação é fazer alguma
coisa que o cérebro e as mãos estejam acostumados. E tenho a
professora certa para você.”
33. Mãos escrevendo
A resposta chega em dez dias. A missão vai enviar duas freiras para
comandar o Santa Brígida; esperam recrutar um médico no futuro.
Digby sorri com amargura e amassa a carta. “Fizeram algumas
investigações, não?”
Por ora, a licença médica de Digby continua indefinida. O que o
Serviço Médico Indiano fará quando esse período terminar? Vai forçá-lo
a algum tipo de trabalho obrigatório? Dispensá-lo, sem indenização?
Não há lar para ele neste mundo? Nem mesmo num leprosário?
34. De mãos dadas
Ainda lhe resta uma última despedida. Chandy e seu filho saíram;
apenas Elsie e a criada estão em casa. Ele senta em frente à menina na
varanda, surpreso por não saber o que dizer, como se ele é que tivesse
nove anos, e ela vinte e oito. Ela espera; há uma maturidade em seus
olhos, certa sabedoria e serenidade que muito lhe ultrapassam a idade.
“Vim me despedir. Eu… Você sabe que as cirurgias de Rune
reconstruíram minhas mãos. Mas foi você quem deu vida de novo a
esta daqui.” Ele estende a mão direita. O gesto da menina, inspirado,
de parear sua mão à de Digby, a palma dela sobre a nova pele da mão
dele, reativou os dedos paralisados, destruiu barreiras de ferrugem e
falta de uso para reconectar o cérebro à mão. Ele quer que ela saiba
que, ao ver o belo rosto da mãe na folha, ele apagou a grotesca máscara
da morte talhada em sua memória, uma imagem que bloqueava toda
lembrança que tinha dela. Agora, porém, descobre-se embaraçado
demais para essa confissão. Talvez consiga quando Elsie for mais velha,
se seus caminhos se cruzarem de novo. Ele então entrega um presente
para sua terapeuta.
Elsie desembrulha o pacote. Seus olhos se arregalam de alegria tão
logo reconhece a cópia de Rune de A anatomia de Gray. Digby
acredita que ela tenha o dom de Henry Vandyke Carter: desenhar o
objeto tal como ele é, deixando que ele fale por si mesmo.
Os lábios de Elsie soletram em silêncio a dedicatória na qual Digby
muito labutou. A primeira linha é do grande escocês Robert Burns; as
seguintes são de um escocês que não deixará nenhuma marca na
história.
allsuch, 1937
parambil, 1938-41
cochim, 1943
madras, 1943
madras, 1943
Mas Philipose não está preparado. Não está preparado para o alívio
que o assalta, alívio misturado à humilhação. Seu corpo sabia que a
faculdade seria uma luta, mas ao mesmo tempo sua alma sofre por
Parambil. Aquela ideia romântica de estudar literatura inglesa foi
cruelmente destruída por textos insípidos e aulas ainda mais insípidas
— a julgar pelas anotações que ele copia dos colegas. Secretamente,
desejara que um milagre o libertasse, mas não estava pronto para uma
saída assim degradante.
Nem está pronto para a fila que serpenteia diante da Clínica de
Ouvido, Nariz e Garganta no Hospital Geral, em frente à Estação
Central. Cada paciente bafora na nuca do seguinte, até chegar ao
banquinho de exame ao lado do dr. Seshaya. Nenhum paciente
permanece sentado por mais de um minuto. O dr. Seshaya tem a
papada e o hálito de um buldogue — além dos grunhidos. Ele vira
Philipose de lado no banquinho giratório, prende sua orelha em um
grampo, depois baixa o espelho frontal que traz preso à testa para
espreitar e cutucar o canal auditivo do rapaz, girando-o em seguida
para aplicar o mesmo tratamento direto e ríspido ao outro ouvido.
O médico encosta o punho ao pé do ouvido de Philipose e pede:
“Diga-me o que você ouve”. Ouvir o quê? “Deixa pra lá.” Ele repete o
teste no outro ouvido. O médico abre o punho e devolve o relógio ao
pulso. Agora pressiona um diapasão aqui e ali, e diz, com enfado,
“Diga-me quando o som para” e “Você escuta do mesmo jeito dos dois
lados?”, sempre ignorando as respostas. Terminado o exame, ele faz
umas anotações. “Seus tímpanos estão ok. O ouvido médio também.
Mostre esta nota ao meu assistente. Ele vai levá-lo a Gurumurthy para
testes audiológicos formais.”
“Então estou bem, senhor?”
“Não”, Seshaya responde, sem olhá-lo. “Eu disse que não há
problema no tímpano nem nos ossículos — os ossos dos ouvidos.
Coisas que dá pra consertar. O problema é no nervo que leva o som
para o cérebro. Você tem surdez neural. É algo muito comum e
hereditário. Apesar de você ser jovem, acontece.”
“Senhor, há algum tratamento para…”
“Próximo!”
O paciente seguinte é uma mulher com um inchaço vermelho, em
formato de cogumelo, explodindo da narina; ela expulsa Philipose do
banco com um “chega pra lá” de quadril, e o assistente logo o tira de lá.
parambil, 1943
Numa manhã de sol, nem um mês depois que Philipose partiu, ela
lê o Manorama.
Naquela noite, depois que Bebê Mol e Odat Kochamma vão dormir,
ela entra no quarto dele com dois copos de água jeera quente. Eles
sentam na cama, como era costume dos dois. Philipose conta que foi
dispensado. Fala do encontro com o professor na estação, um aviso;
depois, quando não ouve seu nome em sala. Ela sangra por ele, queria
tê-lo poupado daquela tristeza. “Ammachi”, ele diz. “Sinto muito te
desapontar.”
“Monay, você nunca vai me desapontar. Estou tão feliz por você
estar em casa. Deus te ouviu. Seu destino não era aquele.”
Hesitante mas empolgado, ele mostra o conteúdo dos dois baús
cheios de livros. Depois, o rádio, à espera num canto. Philipose quer
logo justificar suas compras. “Ondas de rádio estão por toda parte,
Ammachi, e agora temos a máquina para captar essas ondas, para trazer
o mundo até a gente. Só precisamos de eletricidade.”
“Tudo bem, monay. Você gastou o dinheiro com sabedoria.”
Ficam em silêncio à luz do abajur. Ela segura a mão do filho, tão
diferente da mão do marido, seus dedos alongados, mais como os dela.
É como se ele nunca tivesse partido.
“Ammachi, tem outra coisa.”
Meu Deus, e agora? Mas a expressão dele é de uma empolgação ma‐
ravilhada, como no dia em que chegou em casa com Moby Dick,
gritando “Ammachio!”.
O rapaz fala da jovem que viajou com ele no mesmo cubículo.
“A filha de Chandy?”, ela pergunta. “Meu Deus! Lembro dela
menina, desenhando com Bebê Mol. Que coincidência. Como ela
está?”
“Ammachi, ela está linda!”, ele responde. Conta cada detalhe do
encontro como se recitasse uma história mítica, desde o embarque até
o momento em que ele descobriu aquele desenho. Mostra o retrato à
mãe. A imagem lhe parte o coração: seu filho voltando para casa, cheio
de preocupação, cercado pela bagagem.
“Ammachi, vou casar com ela”, ele sussurra. “Se Deus quiser. Sim,
eu sei. Agora que não terei uma graduação, minhas perspectivas não são
as melhores. Sem falar de minha audição — e da Condição.” O jovem
não dá trela para os protestos da mãe. “Mas serei alguém na vida. Só
rezo para que ela não esteja casada quando eu estiver pronto.”
“Você não disse nada disso para ela, disse? Sobre casamento?”, ela se
preocupa.
“Não.”
parambil, 1943
parambil, 1944
parambil, 1945
parambil, 1945
Ela cairá até o anoitecer, querida! É isso que ele deveria dizer. Mas
hesita, o galo canta outra vez. “Essa árvore?”, ele pergunta. A nota falsa
em sua voz lhe dá náuseas.
Ela desvia o olhar, o sorriso desmorona como o da criança a quem se
oferece um doce apenas para tirá-lo em seguida. Em um planeta
dividido entre os que mantêm a palavra e os que apenas lançam
palavras ao vento, ela entregou seu corpo a alguém do segundo grupo.
“Tudo bem, Philipose…”
“Não, não, por favor, me deixe explicar. Vou cortar a árvore.
Prometo. Mas você me dá um tempinho?”
“Claro”, ela diz, mas ele já sente a fissura, a fenda que se instaura. Se
ele pudesse voltar atrás… Ou se ela tivesse feito outro pedido.
“Obrigado, querida. É que…”
Seu conto “O homem plavu” teve um efeito peculiar em alguns
leitores. Há quem faça uma peregrinação para ver esta plavu,
acreditando que a história é real e que se trata da mesma árvore que ele
descreveu, e nada que Philipose diga os faz mudar de opinião. Outros
lhe escrevem, aos cuidados do jornal, pedindo que suas cartas sejam
depositadas na árvore, enfiadas nos sulcos de seu tronco — suas
palavras dirigem-se às almas dos falecidos que eles estão tentando
rastrear. Tudo isso levou o editor a querer publicar uma foto de
Philipose na frente da árvore.
“O fotógrafo logo virá. Enquanto isso, também vou pedir a bênção de
Shamuel. Ele me contou muitas vezes a história de seu pai e do meu
plantando essa árvore quando limparam a área. Essa foi a primeira
árvore daqui. Quando eu era menino, Shamuel me mostrou como
plantar uma plavu. Cavamos um buraco, colocamos uma chakka
gigante dentro, intacta. Das cem sementes no interior daquela pele de
crocodilo, vinte brotos nasceram. Cada um poderia ter sido uma árvore.
Mas os enlaçamos todos juntos e os forçamos a serem uma única plavu
majestosa.” Ele sabe que falou demais.
Da cozinha, ele escuta o alarido das panelas. Um corvo rouco grita
para outro: Olhem nosso amigo idiota, abrindo a boca quando deveria
mantê-la fechada.
“Não se preocupe. Não fale com Shamuel. Você não precisa…”
“Elsie, não! Será feito. Considere seu pedido já devidamente
satisfeito. Peça-me algo que eu possa fazer agora mesmo, peça…”
“Está tudo bem”, ela diz, mais doce do que ele merece, ajustando os
ombros na camisola, cobrindo os seios. “Não preciso de mais nada.” Ela
se levanta, alta e orgulhosa, abotoando a camisola até que o triângulo
negro de seu corpo de mulher e a cintilância de suas coxas fiquem
apenas na lembrança.
Ela hesita à porta. Filtrada pelas folhas da plavu, a luz que entra pela
janela ilumina aquelas íris de um cinza-azulado que brilha como
grafite.
“Philipose? Por favor… Mantenha sua palavra em relação à minha
arte.”
Ele a ouve ao longe, primeiro conversando com Bebê Mol, depois
com Grande Ammachi e Lizzi, as vozes claras, felizes, a dela mais
grave, fácil de discernir.
No fim das contas, não muito, pois Bebê Mol anuncia que um carro
se aproxima. Meia hora depois, o automóvel e o motorista estacionam.
Elsie, que deve ter enviado uma carta, entrega uma pilha de telas para
o motorista e volta ao quarto para buscar mais. Philipose a segue,
furioso, sem acreditar, o sangue pulsando-lhe nos ouvidos. Ela está
fixando uma presilha nas tranças enquanto olha pela janela na direção
da plavu…
Ele percebe. “Olha”, ele diz. “Tudo isso é por causa dessa porcaria
de árvore, não é? Vou cortar, já disse. Mas, caso você tenha se
esquecido, proibi você de sair.” Ela se vira para ele, calma, mas não
parece surpresa nem abalada por suas palavras. Ele espera. Ela se
mantém em silêncio, juntando pincéis e pentes. Sua reação o
desmonta. Ele, imóvel, sente-se mais tolo a cada segundo.
“Então fique nesse quarto até mudar de ideia”, ele declara, numa voz
muito alta, e se retira, batendo a metade inferior da porta holandesa,
mas como o ferrolho fica na parte de dentro, ele precisa esticar o braço
por cima da porta para fechá-lo. Aquilo tudo só o faz parecer mais
estúpido: o carcereiro que deixa as chaves dentro da cela. Ele fica ali
parado, respirando pesadamente, e, quando se vira, dá de cara com a
mãe, que correu tão logo ouviu portas batendo e o filho falando alto.
Tenta contorná-la, mas ela não cede até que Philipose se explique. Ele
balbucia incoerências sobre a árvore…
“Que bobagem! Corte essa árvore idiota. É horrenda”, ela diz.
Empurra-o para o lado e abre a porta. Antes de entrar, volta-se para ele,
agora num tom de voz mais baixo. “E você não percebe que ela está
grávida? Que estupidez a sua não ir com ela!”
Ele observa impotente a esposa partindo.
Uma semana e um dia depois, ele viaja para a casa Thetanatt pela
primeira vez desde o noivado. Dá graças a Deus quando os criados lhe
dizem que Chandy e seu filho não estão em casa. Na sala de estar
espaçosa, ele senta num pequeno sofá, de frente para aquele canapé
branco, longo demais, com mais pernas do que uma centopeia. Uma
das fotos emolduradas no alto da parede é um memento mori: a família
em volta de um caixão aberto. Elsie, com seis ou sete anos, olhos
vidrados, ao lado do irmão — como ele não havia reparado nessa foto
antes? Aquilo agrava seu remorso.
Quando Elsie aparece, sua beleza lhe tira o fôlego. Ela senta de
frente pra ele. À diferença dele, que andou insone e atormentado
durante a breve separação, ela parece descansada, como se a distância
lhe tivesse feito bem. A gravidez lhe traz certa plenitude ao rosto, um
castanho profundo às maçãs e à ponta do nariz. Ela veste o mesmo sári
coral e azul do noivado — é um bom sinal? Encara-o sem raiva,
indiferente, tal como olharia para uma lagartixa na parede,
perguntando-se qual será seu próximo movimento.
“Elsie, me desculpe.” Ela não diz nada. Ele fica mortificado ao
lembrar que no noivado, naquela varanda, ele prometeu compreendê-
la e apoiar seu desejo de ser artista. E ele apoiou. Ele apoia. E, no
entanto, ali está ele.
Ele tenta de novo. “E vamos ter um bebê! Se eu soubesse!” Ela não
responde. Ele suspira. “Elsie, eu me comportei mal. Como um boi
chutando a carroça.” Suas palavras parecem entristecê-la, suavizando,
talvez, sua expressão. “Elsie, você está bem?”
Ela encolhe os ombros e pressiona os lábios. Ele quer saltar do sofá e
abraçá-la.
Ela olha para a cintura. Nada transparece. “Meu estômago se
revira… Não suporto o cheiro de tinta. Estou trabalhando com carvão.
Mas foi bom ficar com meu pai no bangalô. Ver velhos amigos.”
“Elsie, você precisa ver o ateliê. O ashari terminou os armários de
teca, lindos, para seus materiais. Botei todos no lugar. Está tão bonito.”
Ele não diz que, nesse processo, viu como ela era prolífica. E que se
sentiu uma farsa. Seus poucos centímetros de divagações são
publicados em um jornal regional num idioma regional, ainda que a
circulação seja grande. “Elsie, por favor, entenda, depois de Madras…
coisas que me tiram da rotina me deixam inquieto, ansioso,
especialmente o fato de conhecer um monte de gente nova; sempre me
preocupo se vou conseguir ouvir o que dizem. Quando você me falou
do convite de seu pai, naquele momento meu coração acelerou. Mas a
pior coisa é que eu estava com vergonha demais para contar a verdade,
então…”
“Tudo bem, Philipose”, ela diz. Olha-o com pena e talvez um pouco
de afeição. Ele se expôs diante dela. A agitação dele, sua confusão é o
que de mais real ela tem dele. Ele imaginara que, quando se explicasse,
ela talvez voltasse com ele para Parambil. Mas agora vê que, se ele a
ama, precisa aceitar qualquer decisão. Ainda assim, se ela ao menos o
deixasse se sentar a seu lado, segurar sua mão…
A criada traz uma limonada e Elsie oferece um dos copos ao marido,
sentando-se ao lado dele. Ele suspira, seu alívio é tão evidente que deve
comovê-la. Sempre que se sentavam assim, tão perto, havia uma
atração magnética que os fazia se tocar, era inevitável. Talvez ela a
sinta, pois se recosta nele e sorri. Ele busca a mão dela, e os dedos dos
dois se entrelaçam. Philipose não se contém e solta um gemido com o
fim das agonias do último mês.
“Elsie, me perdoe”, pede. “Eu te amo tanto. O que posso fazer?”
Ela o olha com afeição, mas ainda hesitante, ainda com certa
distância. “Philipose…Você pode me amar só um pouco menos.”
48. Deuses da chuva
parambil, 1946-9
Três horas depois, Bebê Ninan ainda pertence a este mundo, a ponta
de seus dedos menos azuis, sua respiração regular mas rápida, pulsando
contra o corpo da mãe, que tenta lhe oferecer o peito, em vão: sua
auréola é grande demais para o pequeno rosto, assim como o mamilo
para a abertura da boca. Grande Ammachi a ajuda a derramar o
primeiro leite, grosso e dourado, em um copo. “É sua essência
concentrada. Muito boa para ele.” Elsie mergulha o dedo no leite e
leva-o à boca de Ninan; uma gota escorrega para dentro.
Grande Ammachi se oferece para segurar o bebê e liberar Elsie.
“Não!”, ela diz, abrupta. “Não. Ele viveu todos esses meses ouvindo os
batimentos de meu coração. Vai continuar aqui, ouvindo.” Segurá-lo
não exige esforço, é como acalentar uma manga ao peito. Ainda assim,
um delicado sling de musselina segura o bebê junto ao corpo de Elsie.
Grande Ammachi cobre a cabeça do bebê com a mesma musselina.
Naquela noite, eles três guardam vigília. Elsie recostada na cabeceira
da cama, Grande Ammachi ao lado e Philipose numa esteira no chão.
Elsie não tira os olhos do filho. “Meu corpo mantém o bebê quente,
como quando estava dentro de mim. A temperatura dele é a minha. Ele
ouve minha voz, os batimentos de meu coração, minha respiração,
como fez todo esse tempo. Não me ocorre melhor estratégia. É sua
melhor chance de sobreviver.” O lampião a óleo ilumina aquela vida
nascente.
Elsie evita visitantes pelos dois meses seguintes. Caminha pela
varanda, e Philipose a segue como uma sombra. Não sente vontade de
ler ou de que leiam para ela, nem de desenhar: dedica cada tico de sua
concentração àquela frágil obra-prima. Se um recém-nascido em geral
empurra o pai para as margens da órbita da casa, esse puxa Philipose
para o centro da família.
Certa noite, quando mãe e avó estão alimentando o bebê pelo
laborioso método da ponta do dedo, Ninan abre os olhos, as pálpebras
separando-se o suficiente para que ele veja o entorno e para que elas o
vejam desperto pela primeira vez. Grande Ammachi acha os olhos do
neto muito claros e luminosos.
Seis semanas depois, quando ele deita na cama e apaga a luz, Elsie
diz: “O motorista de meu pai trouxe uma carta hoje. Você tinha saído
com o Senhor Melhorias. O Retrato de Lizzi ganhou medalha de ouro
na exposição em Madras. E o retrato de Decência Kochamma ganhou
uma menção honrosa”.
Ele salta da cama. “Quê? E você só me conta agora? Vou acordar a
Ammachi…” Elsie põe um dedo sobre os lábios dele e insiste que tudo
pode esperar até o amanhecer.
A notícia sai no India Express no dia seguinte. O repórter pergunta
por que levou tanto tempo para que as habilidades da artista fossem
reconhecidas. Ao usar um nome que não revelava seu gênero, Elsie
ganhou a medalha de ouro. No entanto, quando assinou Elsiamma,
alguns daqueles trabalhos foram rejeitados no ano anterior pelos
mesmos juízes (A fonte do repórter é o amigo de Chandy, apoiador
fervoroso de Elsie: o chefe da corretagem de chá em Madras, aquele
homem que inscreveu seus trabalhos.) Três dos quadros de Elsie foram
vendidos na abertura. O Retrato de Lizzi alcançou o melhor preço no
leilão. No dia seguinte, os jornais malaialas citaram a reportagem do
Express.
Nos primeiros dias de junho daquele ano, 1949, a casa está irritadiça.
Nervos à flor da pele são um sintoma pré-monção que aflige toda a
costa ocidental da Índia. Colunistas escrevem artigos rabugentos que
reelaboram artigos rabugentos anteriores sobre essa irritabilidade, cuja
única cura é a chuva. A monção sempre chega no dia primeiro de
junho, e já estamos no quinto. Os agricultores pedem que o governo
faça alguma coisa. Multidões se organizam para rezar. Em Mavelikara
uma mulher corta a cabeça do marido com quem viveu por vinte e
cinco anos. Ela disse que o bom humor e a loquacidade dele a
exasperaram.
Nesse período, com pouco trabalho para os pulayar, Philipose
encarrega Shamuel de cortar a árvore. O ancião ouve as instruções e se
retira, confuso.
Philipose vê Shamuel retornar com uma equipe de pulayar, Joppan,
inclusive, que ele raramente encontra. Sempre vê a mulher dele,
Ammini, trabalhando com Sara, tecendo painéis de palha, mas quase
não o vê. Ouviu dizer que o amigo reformou sua casa, trocou as paredes
de palha por madeira e botou um piso de cimento que se estende até o
terraço. O ramo das barcaças está a todo vapor de novo. Agora é
Ammini quem varre o muttam, e é paga para isso.
parambil, 1949
parambil, 1950
Bebê Mol adivinha que a mãe está de volta, sem Elsie. Levanta do
banco e vai para a esteira. A mãe ouve seu choro. Bebê Mol chora
muito raramente.
Grande Ammachi acende o lampião. Philipose cambaleia para fora
do quarto escuro, cerrando os olhos como uma civeta. Agora usa apenas
uma muleta. O tornozelo direito está curado, mas o calcanhar esquerdo
que se despedaçou continua doendo. De início ninguém entendeu a
gravidade da lesão dele, resultado do momento em que saltou da plavu
depois de recuperar o corpo de Ninan; só compreenderam no dia
seguinte, quando seus tornozelos pareciam os de Damo, inclusive da
mesma cor, mas entortados. A dor emocional insuportável de perder
Ninan foi reforçada pela dor física.
Ele se larga no banco de Bebê Mol. Grande Ammachi senta ao lado
dele, esperando alguma pergunta sobre Elsie. Mas não: com o
pensamento longe, ele tateia a borda de seu mundu, como um macaco
procurando carrapatos, até que encontra a caixinha de madeira. Ela
nota que suas unhas precisam ser cortadas quando ele abre a tampa,
revelando a pastilha de ópio. Toda casa tem uma caixinha como
aquela, a panaceia dos velhos para dores nas costas, insônia e artrite.
Grande Ammachi usava para a cefaleia do marido. Agora lamenta ter
dado a caixinha para o filho, que virou um comedor de ópio.
Ele está concentrado, tentando pescar com um palito de bambu
uma espiral de ópio, que enrola entre os dedos até moldar uma
reluzente pérola negra. Quando Grande Ammachi era menina, a avó
também comia ópio e essa pérola parecia-lhe bonita. Certa vez a anciã
a convenceu a lamber seus dedos, o sabor amargo nojento a fez
vomitar. Sente-se tentada a dar um tapa na mão de Philipose, seu filho
antes tão bonito, no entanto o ópio já está em sua boca. Ele diz:
“Ammachi, pode me trazer um pouco de iogurte com mel?”. Ela se
levanta antes de lhe dar uma resposta horrível. Ele que pegue o iogurte.
Querida Elsie,
Rezo para que esta carta chegue até você. Bebê Mol está morrendo.
Chame de inanição ou coração partido, no fundo dá no mesmo. De
uma mãe para outra, imploro que venha visitá-la. Tudo que ela diz é:
“Onde está Elsie?”. Se você vier, ela vai comer. Então talvez sobreviva.
Sua Ammachi que te ama
parambil, 1950
parambil, 1951
Na manhã seguinte, Elsie não está nem na cozinha nem em sua área
de trabalho. Quando Philipose vai ao quarto onde dormem as três
mulheres, Bebê Mol o intercepta, pedindo silêncio. “Você não pode
entrar.”
“Como assim? São quase dez da manhã. Ela não está bem?”
Sua mãe passa por ali e diz “Shh!” Todas enlouqueceram? Quando
Elsie marreta uma pedra por horas seguidas, todo mundo acha normal,
e agora ele está sendo barulhento? Ele esboça um protesto, mas Grande
Ammachi põe um dedo sobre seus lábios. “Fale baixo”, diz, sorrindo.
“Ela precisa dormir por duas pessoas. Era assim quando eu estava com
você na barriga.”
Ele olha para a mãe, sem entender nada.
“Chaa! Homens! Sempre os últimos a perceber”, ela diz, beliscando
a bochecha do filho antes de seguir para a cozinha com uma alegria
que há séculos não demonstra. Seus joelhos enfraquecem. Desde
aquela noite em que os dois tiveram intimidades, ele torceu para que
Elsie viesse a seu encontro quando Bebê Mol e Grande Ammachi
dormissem, os lábios delas curvando-se naquele sorriso de desejo de
uma dançarina de templo. Mas ela não veio. E, no entanto, Deus — o
Deus delas, não seu — decretou que uma vez era suficiente. Um bebê!
Uma segunda chance! Começarão tudo de novo. Por que ela não lhe
contou? Ele se retira para seu quarto e espera a esposa acordar.
Adormece e é acordado pelo som do cinzel na pedra. Parado no
umbral do ateliê, vê os pelos claros nos antebraços da esposa delineados
em poeira, reluzindo como fios de prata; há uma pátina de pó em sua
testa. Ela faz uma espécie de dança vagarosa ao redor da pedra,
mudando o peso de um quadril para o outro. Observando-a, ele pensa:
O Deus que nos desapontou está tentando nos compensar, está fazendo
concessões depois de mijar em nossa cabeça. Ele sente certa leveza. O
peso da frustração se dissipa e…
Um novo pensamento lhe ocorre, uma ideia tão excitante, tão
perturbadora, tão cheia de alegria e redenção… Não, ele não vai se
permitir dizê-la em voz alta. Ainda não.
Aparece para jantar, surpreendendo a todos. Elsie se levanta para
trazer-lhe um prato, mas ele diz que não precisa: “Comi mais cedo”.
Não comeu. Grande Ammachi suspira e vai à cozinha buscar-lhe
iogurte e mel — é disso que ele tem subsistido. Quando se vê a sós com
Elsie, ele declara: “Estou sabendo de tudo!”.
Ela tenta sorrir. Então, sem sobreaviso, seu rosto desaba, e precisa
lutar contra as lágrimas. Claro, ele entende: a bênção de uma nova
criança é também uma lembrança da perda que sofreram.
Dois dias mais tarde, Bebê Mol anuncia, como um ritual: “Bebê
Deus está vindo”. Elsie, tendo acabado de tomar banho, trança o
cabelo de Bebê Mol. Grande Ammachi espera que ela termine,
segurando um copo de leite quente para Elsie.
Dez minutos depois, o primeiro professor de Philipose, o kaniyan,
trota pela estrada, suando da caminhada, o sanji cruzando-lhe o peito.
“Quem chamou esse sujeito?”, pergunta Grande Ammachi, cuspindo
um jato de sumo de tabaco na direção dele, revelando sem querer o
mau hábito que finge não ter.
“Fui eu”, Philipose responde.
Os ombros lustrosos do kaniyan são miniaturas de sua cabeça careca,
uma trindade que revela uma vida inteira esquivando-se do trabalho
manual. Alguém disse de brincadeira para Bebê Mol que o quisto era
um deus bebê vivendo na cabeça do kaniyan.
“Aparecendo numa quarta-feira?”, resmunga Grande Ammachi. “Ele
deve saber que isso não traz boa sorte. Mesmo um filhote de leopardo
não sai do ventre da mãe numa quarta.” E se retira para a cozinha. O
kaniyan a segue, a mão descansando na guarnição da porta,
recuperando o fôlego enquanto pede “algo” para matar sua sede,
torcendo para que seja soro de leite coalhado ou chá. Com um olhar
desconfiado, ela lhe dá água.
Agachado no muttam diante do banco de Bebê Mol, o kaniyan puxa
pergaminhos do sanji. Grande Ammachi volta. O kaniyan traça um
triângulo na areia com uma vareta, depois o divide em colunas e
fileiras, murmurando: “Om hari sri ganapathaye namah”.
Grande Ammachi torce o crucifixo no colar e olha para Philipose;
ele a ignora e põe uma moeda em um dos quadrados. Ele não entende
por que a mãe está inquieta; não foi esse homem que ela contratou
para ensinar-lhe as primeiras letras? Ela age como se os conhecimentos
védicos que lhe permitem prever o futuro fossem uma bobagem sem
sentido, mas acabou de falar que é de mau agouro visitar alguém numa
quarta-feira. Shamuel, que está de saída, um saco dobrado sobre a
cabeça, acocora-se para assistir.
O kaniyan cantarola o nome dos pais, recita seus astros e a data de
nascimento de memória e então pergunta indiretamente a respeito da
última menstruação de Elsie. Ela é pega de surpresa. Sem se
incomodar com a ausência de resposta, ele murmura frases em
sânscrito, contando com os dedos e lançando um olhar para o
estômago de Elsie; seu dedo paira sobre os mapas astrológicos, depois o
homem escrevinha com um estilete de metal numa pequena tira de
folha de papiro. Deixa a folha se dobrar, formando um cilindro
apertado, amarra-a com um fio vermelho e recita um slokum antes de
entregar a folha para Philipose, que só falta rasgá-la de tanta
impaciência. Nela se lê:
“Eu sabia! O que foi que eu disse? Que seu Senhor seja louvado”, diz
Philipose, numa voz que ele mesmo sabe que ressoa alta demais.
“Nosso Ninan renascido!”
Cinco pares de olhos o fitam, pasmos. Elsie fica boquiaberta.
Grande Ammachi diz: “Deivame!”. Deus Pai!, e se benze. Shamuel dá
um tapinha na cabeça para conferir que o saco continua ali e se retira.
Bebê Mol olha fixamente o Bebê Deus. “Venha”, diz Grande Ammachi
para Elsie. “Deixemos de lado essa tolice.”
Vale para qualquer um que você abordar numa estrada: assim que
entendem que não é dinheiro — ou o último restinho de tabaco — que
você busca, mas uma história, as pessoas te contam alegremente a
lenda da vida delas. Quem não quer falar do karma ruim, da traição
que se interpôs entre eles e a grandeza, que os impediu de serem
famosos como Gandhi ou Sarojini Naidu? Ou ricos como Tatas ou
Birlas? Todo malaiala tem uma lenda pessoal, e, garanto, é tudo
ficção. Da mesma forma, um malaiala tem também mais duas
histórias, tão infalíveis quanto seu umbigo: uma delas é sobre
fantasmas, e a outra, uma receita de como curar verrugas. Querido
leitor, sou um coletor de histórias sobre como curar verrugas. Tenho
centenas. Se você quer levar uns sustos coletando histórias acerca de
fantasmas, a escolha é sua. Então, seja lá o que pense de minha
coleção de histórias a respeito de como curar verrugas, reserve sua
opinião para você, por gentileza.
Por que histórias sobre como curar verrugas, você me pergunta? Por
acaso estou coberto de verrugas? Não. Mas tive uma neste dedo
quando garoto. Naturalmente, achava que fosse consequência de um
pecado que cometi. Em vez de contar para minha mãe, fui a um
amigo de infância, um camarada mais velho e confiante, meu herói.
Ele compartilhou comigo seu método de cura secreto: urina fresca de
bode, que ainda não tenha molhado o chão; aplicar pouco antes do
nascer do sol. Irmão, por favor, tente encontrar mijo de bode em algum
lugar que não no chão. Irmã, pode ser que seu bode mije o tempo todo
e olhe para você de modo insolente enquanto molha sua perna, mas
tente recolher um pouco de urina num coco vazio no escuro, sem levar
uma cabeçada ou um coice em locais que não podemos mencionar.
Mas, enfim, eu consegui. É uma história à parte, mas consegui… E a
verruga caiu! Quando contei ao meu amigo, ele rolou no chão de tanto
rir. Era tudo invenção dele! Mas eu ri por último, não? A cura
funcionou.
De geração em geração, famílias transmitem histórias sobre como
curar verrugas, como quem passa receitas secretas. “Corte uma cabeça
de enguia e enterre. Quando ela apodrecer, a verruga também
apodrecerá.” “Vá a um velório e esfregue discretamente a verruga no
cadáver.” “Caminhe por três minutos à sombra de alguém cujo rosto
esteja coberto de cicatrizes de varíola.”
Foi por isso que fui ver o doutor X. (Não é seu nome, significa
apenas que não direi quem é.) Verrugas são sua especialidade. Seu
nome estava na placa, seguido pelas letras: “DM(h) (USA), MRVR”.
Era de esperar que uma placa desse tipo se encontrasse em um prédio
pukka com telhado forrado, não em uma cabana perto de uma oficina
mecânica, tendo à frente uma vala de água fedorenta. Um homem sem
camisa, com um mundu sujo, sorria do lado de fora. Perguntei: Onde
está o dr. X.? Ele respondeu: Sou eu. Perguntei sobre aquelas siglas
depois de seu nome. Ele explicou que DM(h) era doutor em medicina
homeopática. Eu disse: Aah, então você fez faculdade de homeopatia?
(Cá entre nós, eu tinha minhas dúvidas.) Ele declarou: Ah, sim! Aqui
mesmo em casa estudei a Pharmacopeia Britânica, de 1930. Decorei
tudo. Pergunte qualquer coisa! Eu queria dizer: Você deve saber que
lançaram uma nova edição, não? Em vez disso, perguntei: O que tem
a ver a Pharmacopeia com a homeopatia? Ele respondeu: Se há
diluição, por que não? A diluição é essencial! Aah, eu disse. E quanto
ao USA, depois do DM(h)? (Ele não parecia ter viajado para muito
além da supracitada valeta fedorenta.) Ah, isso, ele contou, significa
Unani, Siddha e Ayurveda. Três sistemas de medicina pelos quais
tenho grande interesse. Pode-se dizer que são minhas especialidades.
A cara de pau desse camarada! Senhor, eu disse — ele me
interrompeu. Chame-me de doutor, por favor. Aah, doutor, então, você
não acha que as pessoas podem confundir aquelas letras com o país?
Não prossiga, ele disse, esticando um braço, como um policial faria.
Deixe-me lembrá-lo que Unani, Siddha e Ayurveda são práticas
ancestrais que existiam já muito antes da América. Desafio Churchill
ou qualquer outro que diga o contrário. Aah, eu respondi, que seja,
mas e quanto a esse MRVR? Ele explicou: É do latim, Medicus
Regius Vel Regis, ou médico da realeza. Eu disse: Calma lá! Você
tratou alguém no Palácio de Buckingham? Não, ele falou. Prescrevi,
com sucesso, um purgativo para um homem severamente constipado
que era primo em sexto grau do último marajá de Travancore — todos
os outros tratamentos falharam. Em vez de diluição, no caso dele optei
pela concentração. Usei cáscara, senna, óleo mineral, leite de
magnésia e meu ingrediente secreto. Perguntei: Funciona? (Eu tinha
certo interesse pessoal, pois quem de nós não sofre de prisão de ventre?)
Aah! Meu amigo, ele respondeu, rindo de maneira desagradável e
baixando a voz. Se funciona, você pergunta? Digamos assim: se você
por acaso estiver lendo um livro ao tomar esse remédio, ele arrancará
as páginas da lombada! Enfim, meu paciente ficou muito agradecido.
Portanto, consultei o dicionário de malaiala-latim e acrescentei
MRVR ao meu nome.
Aah, eu disse. Chega. Não vim aqui falar de sua placa. Sou um
coletor de histórias sobre como curar verrugas, das quais existe uma
legião. Sim, sim, ele assentiu, de pleno acordo, e, além do mais,
acrescentou, o ingrediente comum a todas as curas é a convicção.
Quando um método de cura funciona, é porque o paciente de fato tem
fé. Quando os métodos são bem elaborados, é mais fácil de acreditar.
Assim é a natureza humana. Muito bem, eu disse, pois finalmente
concordei com ele em alguma coisa. Então, eu falei, diga-me, o que
você faz para os pacientes com verrugas? Mostrou-me sua mão. O que
significa isso?, perguntei. Bote dinheiro aí, por favor. Se o paciente
puser dinheiro na minha mão, significa que tem fé. Logo, meu método
de cura certamente funcionará.
Peguei minha bicicleta, pronto para partir. Não tenho verrugas, eu
disse. Estou perguntando como jornalista. Ele respondeu: Você está
terrivelmente enganado — diagnostiquei verrugas tão logo o vi. Onde?
Mostre-me! Aah, mas suas verrugas estão todas dentro de você, como
bem sabe. A mão dele continuava estendida.
Querido leitor, não seja muito severo comigo, mas nesse momento
entendi tudo e me emocionei. Pus dinheiro na mão do médico. Doutor,
eu falei, estou desesperado. E tenho fé.
54. Um anjo pré-natal
parambil, 1951
parambil, 1951
parambil, 1951
parambil, 1959
parambil, 1960
parambil, 1964
parambil, 1967
Ela para à porta do ara, e então espreita o velho quarto onde deu à
luz e no qual sua mãe viveu os últimos dias, e onde Mariamma nasceu
— há anos é o quarto de Anna Chedethi. Seu olhar passa
amorosamente pelo alto velakku que ela acendeu depois do nascimento
de Mariamma, agora acomodado em seu cantinho. O porão está
silencioso há muitos anos, o espírito encontrou a paz.
Ela senta por um momento no banco de sua amada Bebê Mol, ainda
segurando as duas xícaras, olhando as vigas, depois o muttam,
apreciando tudo pela última vez, seus olhos agora enevoados. Então se
levanta e vai até o quarto de Philipose. O rádio está desligado, o filho
está sentado à escrivaninha. Ele se vira e sorri, depondo a caneta. Ela
senta na cama, e ele se junta a ela, que lhe entrega a xícara. Ela não
ousa falar enquanto ele a olha. Ama tanto seu filho, amou-o mesmo na
época em que era quase impossível amá-lo, quando era prisioneiro do
ópio. Ela amara Elsie também, como a uma filha. Como sofreu esse
casal. Suspira. Se já não disse o que preciso dizer, não valia a pena dizê-
lo. Ela sorri, conjurando o marido e seus silêncios. Estou ficando cada
vez mais como você, meu velho. Deixando que os intervalos entre as
palavras falem por mim. Te vejo logo mais.
“O que foi, Ammachi?”, pergunta Philipose, apertando a mão livre
da mãe.
“Nada, monay”, ela responde, bebericando o chá. Mas não é nada.
Agora pensa em Elsie, no desenho que ela lhe deixou: a bebê e a velha
senhora — ela. Afogar-se por acidente é terrível, mas se afogar de
propósito é um pecado mortal. O desenho foi o meio que Elsie
encontrou para confiar Mariamma a seus cuidados. Ela nunca o
mostrou ao filho. Nunca compartilhou suas apreensões. Ele o
encontrará em seus pertences e tirará as próprias conclusões.
Ao contrário de Bebê Mol, que vê as coisas à frente, ela por vezes só
vê as coisas quando olha para trás… Mas, na maior parte, o passado não
é confiável. Ela pensa no dia em que Elsie entrou em trabalho de
parto, muito mais cedo do que se esperava, quando duas vidas ficaram
por um fio. Naquele momento, Deus, em sua misericórdia infinita,
deu-lhe as duas coisas que ela pediu em suas preces: a vida de Elsie e a
vida de Mariamma. Poderia muito bem ter havido dois funerais no
mesmo dia. Depois, Elsie se afogou.
“Me perdoa”, ela diz.
“Pelo quê?”
“Por tudo. Às vezes podemos ferir sem querer.”
Philipose a olha preocupado, esperando que ela se explique. Como
ela se cala, ele diz: “Ammachi. Fiz você passar por tanta coisa. E,
mesmo assim, você me perdoou há muito tempo. Por que eu não faria
o mesmo? Então, seja lá o que for, eu te perdoo”.
Ela se levanta, acaricia seu rosto, beija sua testa, deixando que os
lábios se demorem ali por um bom tempo. No umbral da porta, vira-se,
sorri, lança ao filho seu amor silencioso e segue para o banho.
Gosta do luxo de ter um banheiro dentro de casa, mas, se não
estivesse escuro lá fora, iria ao lugar onde costuma se banhar no riacho
ou nadaria no rio uma última vez para se despedir. Sentirá falta desses
rituais, além da monção e de como, tal qual faz com o solo, ela nutre o
corpo e a alma. Grande Ammachi se despe, derrama água sobre a
cabeça, suspirando e se deliciando ao senti-la escorrer pelo corpo. Uma
água tão preciosa, Senhor, tão preciosa, água de nosso próprio poço; esta
água que é nosso pacto com o Senhor, com este solo, com a vida que o
Senhor nos concedeu. Nascemos e somos batizados nesta água, crescemos
cheios de orgulho, pecamos, somos despedaçados, sofremos, mas com a
água somos purificados de nossas transgressões, somos perdoados, e
renascemos, dia após dia, até o fim dos nossos dias.
madras, 1968
madras, 1969
Acho ótimo que Podi mande lembranças por você, mas pergunte por
que ela não me escreve diretamente. Diga que não enviarei nenhuma
outra carta até que ela não me escreva. Por favor, diga à Anna
Chedethi que todas as noites tomo um chocolate quente. Não me
surpreende o que você me contou sobre Lênin. Ele me escreveu dizendo
que preferiria dissecar cadáveres a ficar sentado ao lado de colegas que
parecem cadáveres.
Appa, depois de um ano estudando o corpo, minha aprovação no
exame dependerá de seis dissertações. Se eu fracassar, junto-me ao
grupo B e presto de novo o exame em seis meses. Imagine só, centenas
de páginas que memorizei, os diagramas todos, tudo isso para terminar
em seis questões do tipo: “Descreva e ilustre a estrutura de X”. X será o
nome de uma articulação, um nervo, uma artéria, um órgão, um osso,
um tópico de embriologia. É injusto! Seis dissertações para julgar tudo
que aprendi em mais de treze mil horas. (Anita fez as contas.)
Já te falei de Gárgulamurthy e Cowper, não? Eles gostam das
minhas dissecações e me convidaram para o Concurso de Anatomia.
Pouca gente tem coragem de se inscrever. A competição ocorre num dia
sem aula. Temos que escrever um ensaio de nível avançado e depois
devemos fazer uma dissecação em até quatro horas.
madras, 1971
mahabalipuram, 1971
madras, 1971
madras, 1973
madras, 1974
Os muros estão quase prontos. Dei uma olhada e me sinto num sonho
diante de um belo prédio moderno aqui, em nossa Parambil. Quem
dera Grande Ammachi pudesse ver. Tem o dedo dela nisso. Talvez veja,
sim. Com certeza sabia que estávamos perto disso. Anna Chedethi
envia lembranças. Temos muito orgulho de você.
Seu Appa que te ama
cochim, 1974
Logo o trem cruzará um rio sobre uma longa ponte de treliça — ele
ainda lembra dela, depois de tantos anos, e estremece ao recordá-la,
pois à época levou um grande susto: quando o trem chegou à ponte, o
ruído rítmico das rodas nos trilhos transformou-se de súbito num
zumbido agudo, e quando ele olhou para fora, o trem parecia navegar
sobre as águas, sem nada que o sustentasse. Na ocasião seu jovem eu
quase desmaiou. Agora seria melhor estar dormindo quando chegassem
à ponte.
Ele sobe para o leito — o mais alto — e se estira. Naquele espaço
confinado, a visão do teto a centímetros do nariz evoca um caixão.
Fecha os olhos e conjura o rosto de Mariamma. Ela compensou suas
ambições frustradas, sua solidão, as imperfeições de seu antigo eu. Não
temos filhos para realizar nossos sonhos. Os filhos nos permitem deixar
para trás os sonhos que nunca realizaríamos.
Ele está quase dormindo quando um baque agudo vindo de outro
vagão o desperta, seguido por um tremor que atravessa sua cabine. Seu
corpo salta do beliche. Isso é estranho! A cabine gira ao redor. Philipose
vê uma criança suspensa no ar e um adulto que passa voando. O
compartimento explode com gritos e rangidos de metal. Ele é lançado
contra o teto, só que o teto agora é o piso.
As luzes se apagam. Ele tomba na escuridão, afundando sempre
mais, sente o estômago na boca, como na viagem com o barqueiro e o
bebê agonizante, mil anos atrás.
Ouve-se um baque estrondoso, e no impacto o compartimento se
abre. A água inunda a cabine. Por reflexo, ele respira fundo, insuflando
o peito instantes antes de ser engolfado pela água fria. Desliza para fora
do vagão partido. É tudo tão familiar. Olhos abertos!, Shamuel lhe
ordena.
Philipose nota uma mancha vagamente escura, igual a uma baleia,
logo abaixo dele — é seu vagão que afunda. O ar em seu peito o leva
para cima. Alcança a superfície e puxa uma nova lufada de ar; sentindo
o mundo rodopiar, agarra-se a um objeto duro que boia perto dele, mas
uma ponta aguda corta sua mão. Agarra-se desesperadamente a outro,
que flutua. Olhos abertos, a tontura cessa.
O silêncio é mortal. Ele lança um olhar sobre a superfície da água,
iluminada por uma luz fantasmagórica, pontilhada por bagagens,
roupas, chinelos e cabeças. A ponta de um vagão irrompe, embicando
acusadoramente na direção do céu, e afunda.
Dos dois lados, as paredes escarpadas de uma ravina se estreitam,
emoldurando uma faixa de estrelas. Ele vê o resquício partido da ponte
de treliça. A água está fria. Philipose não sente dor, mas sua perna
direita não responde. Uma luz atrás dele! Vira-se devagar, mas é apenas
a lua crescente, indiferente a tudo. Agora ouve um coro que se ergue,
os gritos dos sobreviventes. Uma mulher berra “Shiva! Shiva!”, outra
grita “Deus! Meu Deus!”, mas o deus dos desastres não se comove, e as
vozes se afogam no silêncio.
Uma figura imóvel flutua perto dele, o rosto submerso na água, um
emaranhado de pano e cabelos longos, o corpo torto numa posição
impossível que faz Philipose recuar.
O objeto ao qual ele conseguiu agarrar-se é um assento encharcado.
Mal chega a boiar. Ele nada com o braço livre, surpreendendo-se
quando consegue avançar. Não há corrente, apenas morte e escombros
flutuando na calmaria. Ele move a perna direita e agora sente um
choque de dor.
“Appa! Ap…!”
O grito da criança vem de algum lugar atrás dele. Uma garotinha ou
um menino? Ou uma alucinação?
Com um gesto se vira com a boia volumosa. Na superfície espelhada
Philipose avista uma cabeleira partindo-se sobre dois grandes olhos
apavorados, grandes como duas luas, olhos que perdem o foco, o
pequeno nariz e os lábios gorgolejando debaixo d’água, erguendo-se
brevemente para tentar gritar, enquanto pequenas mãos desesperadas
escalam uma escada invisível. É a luta da criança para respirar que o
galvaniza. É o bebê do barqueiro de novo. A cabecinha afunda e
desaparece. Ele ouve um urro no fundo da garganta ao patinar naquela
direção, mas, ah, ele se move muito devagar, a dor na perna o atrasa.
Appa! É o grito da criança, de todas elas. No momento menos
oportuno, vem-lhe um entendimento: o rosto que tanto desejava ver, o
da Mulher de Pedra, não foi feito para que ele o visse. Que importa?
Morremos mesmo quando estamos vivendo, somos velhos mesmo
quando jovens e nos agarramos à vida mesmo quando aceitamos deixá-
la.
No entanto, aquela criança afogada para a qual se dirige dá a chance
a ele, um homem comum, de fazer algo de relevante. Ame os doentes,
cada um deles, como se fossem gente sua. Ele escreveu aquelas palavras
de Paracelso para a filha. Aqui, um pouco além de seu alcance, há uma
criança, não a sua, mas ele deve amar todas como se assim fosse. Talvez
essa criança já não possa ser salva, como ele mesmo, porém não
importa e ao mesmo tempo importa terrivelmente. Philipose nada e se
debate de modo furioso, o homem de uma perna e de um braço só, o
homem que não sabe nadar, buscando a criança fora de seu alcance.
Sua mão roça pequenos dedos, mas eles já lhe escapam, afundando.
Philipose respira fundo, tragando nos pulmões os céus, as estrelas e
as estrelas além dessas, e Senhor, Senhor, meu Senhor, onde está Você?
Respiro para que me dê fôlego, o hálito de Deus… Pela primeira vez na
vida, livre de indecisões, livre de dúvidas, está absolutamente certo do
que deve fazer.
71. Os mortos hão de se erguer intocados
madras, 1974
Ela tem em mãos uma carta fechada do pai. Suas lágrimas borram o
endereço escrito naquela caligrafia impossível que o carteiro sempre
consegue decifrar.
Nessa carta o pai está vivo.
Naquela manhã, no necrotério, não estava.
Do lado de fora daquele lugar, uma multidão raivosa de parentes
clamava por notícias. Em seus rostos contorcidos, incrédulos,
Mariamma viu-se a si própria. A mesma garra os reunira ali, como a um
punhado de folhas secas; a mesma foice lhes cortou à altura dos
joelhos, arrebatando os entes queridos. Repelindo os demais enlutados,
um guarda permitiu que Mariamma, de jaleco branco, se espremesse
pelas grades de metal. “Por que ela pode ver o corpo e nós não?”
O corpo. Aquela palavra era um golpe de cacetete.
Uma a esperaria no necrotério, mas, como não a viu, Mariamma
caminhou pela sala cavernosa, sem que ninguém a impedisse em meio
à confusão de corpos estirados pelo chão e sobre macas de metal.
Então viu uma determinada mão, tão familiar quanto a sua, pendendo
sob um lençol de plástico. Aproximou-se, segurou a mão fria e
descobriu o rosto dele. O pai parecia em paz, como se repousasse.
Tomada de emoção, quis um cobertor para ele, não aquele lençol de
borracha, e também um travesseiro, para que a cabeça do pai não
descansasse no metal frio e duro. Não estava morto. Era um engano.
Não, só precisava dormir, era isso; depois do descanso, ia se sentar e
sairia com ela daquele necrotério barulhento… Suas pernas ficaram
bambas, a sala escureceu e os sons emudeceram. Num reflexo,
agachou-se ao lado da maca, a cabeça entre os joelhos, ainda
agarrando-se à mão dele, chorando incontrolavelmente. O mundo
havia acabado.
Aos poucos, os sons da sala retornam. Ninguém lhe deu a menor
atenção. O caos era grande, todos choravam, alguém gritava tentando
restaurar a ordem. Depois de um bom tempo ela se pôs de pé. Entre
lágrimas perguntou ao pai o que o fez embarcar naquele trem. Por que
aquele trem? Ele sabia que logo mais ela iria para casa, então por que
vir?
Uma Ramasamy, de avental, encontra-a conversando com o pai.
Uma e todos os demais patologistas da equipe estavam ocupados
ajudando o médico legista assoberbado a lidar com a enxurrada de
corpos. Uma a abraçou, chorou com ela. Quando Mariamma
perguntou, Uma disse que o lençol de borracha ocultava um joelho
espedaçado e uma laceração profunda no tronco à esquerda.
Mariamma não queria ver aquilo.
Tinha consciência de que Uma precisava trabalhar e não podia ficar
com ela o dia todo. “Nunca imaginei que falaria disso aqui ou nessa
situação, mas tem que ser agora. É importante, é sobre meu pai, sobre
minha família. Tem alguns minutos, por favor?”
Uma a ouviu, o rosto imóvel, atenciosa, as sobrancelhas erguendo-se
de surpresa.
“Farei isso”, a professora disse. “Pessoalmente. É preciso assinar
alguns papéis.”
Ela lê uma, duas vezes. O pai diz que está de partida para encontrá-
la. Mas não diz por quê. “A viagem de descoberta não tem a ver com
novas paisagens, e sim com novos olhos”?
As palavras não fazem sentido. Mariamma aperta a carta contra os
lábios, tentando entender. Captura o aroma da tinta caseira do pai: a
fragrância inequívoca do lar, do solo de laterito vermelho que ele tanto
amava.
madras, 1974
parambil, 1976
Depois dos anos em Madras, com tantas distrações, suas noites e fins
de semana talvez fossem tediosos, caso Mariamma não tivesse um
projeto que a mantivesse ocupada: anda estudando cada nó e galho da
Árvore da Água. Em especial, está interessada nas mulheres que
casaram e foram embora, e cujos destinos nunca foram registrados.
Seus parentes — mesmo a doce Dolly Kochamma — relutam em falar
da Condição ou em admitir que ela exista. Nesse ponto, um grande
avanço vem de uma fonte inesperada.
Toda tarde Cherian envia um chá “especial”, com biscoitos, para a
“doutora madame”. Mas recusa pagamentos. Certa manhã, Mariamma
o observa montar o toldo de palha com estacas, destravar a cancela de
madeira e arrumar sistematicamente sua barraca para o dia de trabalho.
Ela se aproxima para agradecer. Cherian insiste que aceite um
cafezinho. O arco do líquido fervilhante voa entre seus dois
receptáculos de mistura antes de verter-se com um floreio no copo que
Cherian lhe entrega. O “obrigado” de Mariamma o deixa tímido. Ela
beberica o café, e ficam os dois ali, meio sem jeito, olhando fixamente
para o Triplo Yem, como se o edifício tivesse acabado de pousar ali, e os
marcianos estivessem prestes a desembarcar. Grande Ammachi certa
vez disse: “Você pode abrir o coração a pessoas silenciosas. Elas abrem
espaço para nossos pensamentos”. Mas, Ammachi, quando elas não
dizem nem uma palavra, como começar?
Ela está de saída quando Cherian lhe diz: “Minha irmã se afogou”. A
médica para e olha para ele. Ouviu bem ou foi uma alucinação?
“E o irmão do meu avô também. Afogado. As duas filhas do meu
irmão odeiam água.” O que o levou a lhe dizer aquelas coisas? Todos
sabem que a família de Parambil sofre da Condição? “Minha pobre
irmã precisou trabalhar nos arrozais inundados, não teve escolha.
Quando um dique estourou, ela caiu e se afogou em água rasa.”
“Cherian, você com certeza sabe que nossa família sofre da
mesma… condição. Acha que somos parentes?”
“Não. Minha família não é daqui. Eu tinha uma caminhonete até
sofrer um acidente. Transportava gente e cargas por toda Kerala. Nessa
época ouvi falar de outras famílias como as nossas. Todas cristãs. Com
certeza há outras.”
O dia inteiro ela reflete sobre a informação extraordinária de
Cherian. O homem está errado: eles têm, sim, um parentesco. A
comunidade dos cristãos de São Tomé hoje é bastante grande, mas seus
membros compartilham os mesmos ancestrais nas famílias originais que
o apóstolo converteu. A imagem de uma roda de bicicleta lhe vem à
mente. Se ela tivesse de alocar cada família com a Condição ao longo
de um único raio da roda, então a família de Cherian é um raio e o clã
Parambil é outro. As outras famílias afetadas têm os seus. Traçando os
raios de volta ao centro chega-se ao ancestral com o gene alterado que
deu início a tudo. Mariamma fica empolgada. Sua tarefa é encontrar
muitos outros raios, mais famílias com a Condição, e ela conhece um
homem que pode ajudá-la.
parambil, 1976
Querida Uma,
Desde que o editor de meu pai escreveu um artigo sobre a Condição
e como ela levou o Homem Comum à morte, meus parentes
mostraram-se subitamente dispostos a conversar. Recortei o artigo e ele
está em anexo. Sei que você não sabe ler malaiala, mas pode ver as
fotografias. O artigo tem um quê de romance policial, meu pai é uma
das vítimas. E a detetive que caça o assassino é a própria filha! “O
Homem Comum resolve o mistério de sua própria morte devido à
Condição” é o título. Estou feliz que ele tenha adotado “Condição”.
Não só “uma variante da doença de Von Recklinghausen” soa um
tanto pesado, como é bem possível que a Condição não tenha nada a
ver com essa enfermidade. Além disso, o editor transmitiu meu pedido
aos leitores que me escrevam caso tenham familiares com aversão à
água. Por sinal, acho que essa é a melhor pergunta para uma triagem.
Acredite, em Kerala, se você não gosta de água, as pessoas percebem.
Recebi notícias de três famílias. E mais: meus parentes me deram
informações a respeito das noivas que se mudaram — o elemento
faltante na Árvore da Água.
É impressionante como as mulheres com a Condição são sempre
lembradas como “excêntricas”. A excentricidade aparece tanto quanto
a aversão à água. A nós, mulheres, ensinam “adakkavum” e
“othukkavum”, ou modéstia e invisibilidade, desde cedo. Mas essas
garotas eram tudo menos modestas e recolhidas. Uma delas era tão
desbocada que afastava possíveis noivos. (Num homem, essas
características seriam lidas como sinal de autoconfiança.) Quando
essa moça desbocada finalmente casou, ela construiu uma casa em
cima de uma árvore. Morria de medo de enchentes, mas não de altura.
Sempre que o rio subia, ela se transferia para a casa da árvore. Uma
outra era fascinada por cobras desde criança, não tinha medo de
nenhuma delas. Na vila do marido, era ela que chamavam caso
encontrassem uma serpente atrás dos potes na cozinha. Ela as
agarrava pelo rabo, depois as balançava com o braço estirado.
Aparentemente, as cobras não conseguem se dobrar e morder —
precisam de uma superfície para tomar impulso. Mas quem quer se
arriscar? Pois bem: descobri que essas duas mulheres morreram com
sintomas como os de meu avô paterno: tontura, dor de cabeça e
debilitação facial. Uma terceira moça estava determinada a virar
pastora, o que é heresia. Chegou a se vestir como tal para fazer um
sermão na igreja. Recriminada, passou a se prostrar do lado de fora
das igrejas fazendo sermões, até que a expulsaram. A família a
internou à força num convento, mas ela fugiu e sumiu. Acabou
reaparecendo num seminário, de cabelo curto, fingindo ser homem.
Depois disso a trancafiaram num asilo, onde morreu.
Mas devo dizer: no quesito excentricidade, meu avô, meu pai,
Ninan, Jojo e meu primo Lênin seriam todos considerados excêntricos,
cada um à sua maneira. Tinham uma relação peculiar com a
gravidade e o espaço. Quando não era a paixão por subir em árvores,
era uma compulsão por andar sempre em linha reta, ou caminhar por
distâncias que outros consideravam inimagináveis. Essas
“excentricidades” não se explicariam por um tumor no nervo acústico,
certo? Então eis minha hipótese: e se esses neuromas acústicos tiverem
uma contraparte na mente, alguma aberração ocasionada pela
Condição e que se revela como “excentricidade”? E se houver um
“tumor do pensamento” (é o que andei pensando), algo que não
podemos ver a olho nu ou com as ferramentas habituais?
Bem, talvez eu tenha uma ferramenta para estudar os pensamentos
de meu pai. Ele tinha o hábito obsessivo de manter diários (mais
excentricidade! Escrevia muito por dia). Todos aqueles pensamentos
estão preservados em quase duzentos cadernos de notas. Este é meu
próximo projeto: analisar sistematicamente os diários em busca desse
“tumor do pensamento”.
parambil, 1977
O sorriso dele está torto por causa da paralisia facial. Mas o calor, a
afeição e a preocupação por ela — tudo é real, tudo aquilo é Lênin.
Mariamma já não quer continuar no papel de médica, no entanto
ainda não terminaram. Ela se recompõe e se pergunta por que ele não
quer saber como resolveram sua dor de cabeça.
“Lênin?” Ele parece tão vulnerável, sua testa dividida ao meio por
uma caneta e uma ferida suturada na cabeça. “Você tem um tumor,
um neuroma acústico. Ele vinha elevando a pressão…”
“Sinto muito por seu pai, Mariamma”, ele a interrompe. “Li no
jornal. A Condição. Estou tão orgulhoso de você. E o meu tumor?”
Dói ver a esperança se extinguindo nos olhos dele quando ela diz
que o tumor continua onde estava. Com uma caneta cirúrgica,
desenha num pedaço de papel o que está acontecendo. “… e quando
enfiamos a agulha, o líquido jorrou. Você acordou. Mas com isso só
conseguimos um pouco de tempo.”
Uma luz brincalhona surge nos olhos dele, ele ri. Ao rir, a
imobilidade da metade paralisada de seu rosto se acentua. Ela tem que
fixar os olhos no lado direito da face.
“Mariammaye”, ele diz, afetuosamente, “minha médica. Lembra que
quando a gente era criança você disse que tinha um parafuso solto na
minha cabeça? E que um dia ia consertar?”
“O que eu disse é que, um dia, partiria sua cabeça e arrancaria o
demônio de dentro dela.”
“E foi o que você fez!”
Digby os traz de volta à realidade. “Lênin, o tumor ainda está lá. Nós
só aliviamos temporariamente a pressão.” Olha para Mariamma,
buscando apoio. “A pressão voltará a subir.”
Lênin diz: “Tenho uma agulha no cérebro? Mas não sinto nada”.
“É um paradoxo, não é? Se você cutuca o cérebro diretamente, o
paciente não sente nada. Contudo, se pisa num prego, o cérebro indica
o ponto exato. A não ser que você seja um de nossos pacientes aqui, do
Santa Brígida, que não sentem nada e terminam mal”, Digby diz.
“Lênin, você precisa extrair urgentemente esse tumor”, diz
Mariamma. “Mas não dá para fazer esse procedimento aqui”. Põe a
mão no peito dele. “Precisamos te levar para Vellore. Eles têm
experiência com esse tipo de operação.” Lênin recua, Mariamma
percebe. O fugitivo calculando rotas de fuga.
“Por que não aqui? Confio em você…”
“Quem me dera. Mas não tenho essa habilidade. Ainda.”
“Em Vellore eles logo vão descobrir minha identidade.”
“Mas, sem o tumor, você viverá. Uma vida plena!” Ela prende a
respiração.
Lênin não diz nada, acabrunha-se ainda mais. Mariamma desconfia
que ele esteja se preparando para a morte.
Digby diz, docemente: “Lênin? O que você acha?”.
Ele não encara Digby. E, subitamente, parece exausto. “Eu acho…
Acho que estou tão faminto que não consigo pensar direito.”
“Ó céus!”, Digby exclama. “Que médicos somos! Você deve estar
morrendo de fome. E essa jovem também precisa de uma xícara de
chá.”
De repente Mariamma se sente pesada, como se o teto lhe caísse
sobre os ombros. Precisa de ar fresco.
Cromwell está agachado do lado de fora da sala de operação. Ao vê-
la, sorri… e então o sorriso se esvai, ele se se levanta num instante e
corre para ela. E agora?, ela pensa. Por que o chão está se inclinando
desse jeito estranho?
Agora Mariamma está reclinada numa poltrona, as pernas sobre uma
otomana. Um xale de seda serve de cobertor. Há chá, biscoitos e água a
seu lado. Mal se recorda que foi carregada por Cromwell. Uma vez na
horizontal, voltou a si. “Descanse”, diz Digby. Ela disse que fecharia os
olhos por cinco minutos e deve ter adormecido. Não sabe por quanto
tempo.
Mariamma come e bebe avidamente. Seu refúgio é um escritório
frio, acarpetado, pé-direito baixo, coalhado de livros. Um lugar íntimo e
acolhedor. Cortinas pesadas ladeiam janelas francesas que dão para um
gramado pequeno e retangular, cercado por roseirais; o jardim é
circundado por uma cerca de estacas com uma portinhola ao centro.
Ela imagina aquele gramado como o pequeno paraíso de Digby, um
lugar para sentar ao sol e ler. Observa tudo, fascinada pelas margens
perfeitamente demarcadas do gramado, os roseirais belamente podados.
É como um cartão-postal dos pequenos jardins em frente aos sobrados
geminados na Inglaterra, os cercadinhos minúsculos demais para as
ambições horticulturais dos proprietários, mas ainda assim acolhedores
e confortáveis.
Nas estantes, entre os livros, repousam algumas fotografias.
Mariamma é atraída por uma moldura prateada, com uma fotografia
em preto e branco de um pequeno garoto branco com meias até os
joelhos, bermuda, gravata e um suéter com gola em V. No cenho e nos
olhos, reconhece traços inequívocos do Digby adulto. O sorriso tímido,
com que olha para a câmera, não esconde a ansiedade. Seu primeiro
dia de aula, talvez? Uma mulher linda de saia se agacha ao lado dele,
com a mão em seu ombro. Deve ser sua mãe. Seu rosto é jovial mas
exausto, e o cabelo negro já exibe uma mecha branca. Porém, naquele
instante, ao clique do obturador, ela envergou seu melhor sorriso,
valeu-se da experiência de atriz veterana na hora de estrear, e o
resultado é simplesmente atordoante. É bonita como uma estrela de
cinema, abençoada com um carisma de igual envergadura.
Uma fotografia sem moldura em outro nicho mostra um homem
branco enorme e barbado entre um grupo de leprosos, seus braços nos
ombros deles, como um técnico com a equipe. É o mesmo rosto que
ela viu no retrato a óleo pendurado logo à entrada do Santa Brígida.
Deve ser Rune Orqvist. Ela muitas vezes viu aquele nome na folha de
guarda da antiga cópia de A anatomia de Gray de sua mãe. O livro era
de Rune, ainda que a dedicatória fosse de Digby. Deve ter sido o
presente perfeito para uma jovem artista. Ela estava tão preocupada
com Lênin que ela e Digby ainda não falaram dessa conexão. Lênin!
Ela bebe o chá em só gole, sem tempo a perder.
Mariamma lava o rosto no banheiro, ainda admirada com as
conexões em seu mundo, invisíveis ou esquecidas, mas ainda assim
presentes, como um rio conectando as pessoas que habitam as margens
em seu curso, que talvez nem saibam dessas ligações. A casa Thetanatt
ficava por ali — já não existe, o tio a vendeu havia muitos anos. Rune
era padrinho de Elsie. Quando menino, Philipose também esteve ali.
Ao sair da saleta, vê Digby se aproximar pelo corredor: sim, o toque
de ansiedade do estudante na fotografia, a franqueza e mesmo o sorriso
persistem no semblante do velho. A preocupação dele por ela é
comovente.
“O chá e os biscoitos foram mágicos”, ela diz. “Agora estou bem.”
Ele parece aliviado. “Digby, a foto no escritório — aquele é Rune, não
é? Como na entrada?” Digby confirma. “O nome dele está na cópia de
A anatomia de Gray de minha mãe. E você escreveu a dedicatória.
Guardo esse livro comigo há muitos anos. É meu amuleto!”
Digby parece tocado, quase comovido. Tenta dizer alguma coisa mas
desiste. Então oferece o braço a ela, um gesto tão distante do mundo da
jovem que ela sente vontade de rir. No entanto, passa seu braço por
dentro do dele. Parece-lhe a coisa mais natural do mundo.
Os dois vão ao encontro de Lênin em silêncio, passando por um
claustro fresco e sombreado, os arcos de tijolos conferindo uma
atmosfera de monastério medieval. As pedras do piso são rasuradas pelo
musgo que se espreme entre os vãos. À sombra do claustro, uma leprosa
de branco se recosta contra uma pilastra. Está tão quieta que, por um
momento, Mariamma a toma por uma estátua… até que o pallu de seu
sári, puxado por sobre a cabeça, balança na brisa. A mulher se vira em
direção ao som dos passos de Digby e Mariamma, à maneira dos cegos.
Mariamma estremece, não devido aos traços grotescos da mulher, mas
porque o objeto que acreditava sem vida se mexeu.
Quando esse pesadelo acabar, ela escreverá para Uma sobre o
leprosário e seus pacientes, que contraste em comparação aos restos
humanos preservados em formol sobre os quais ela se debruça. Sente-se
tentada a falar a Digby sobre Uma e seu interesse pela doença à qual
ele dedicou a vida, sua prisão perpétua. Aquele trabalho fortuito a levou
a descobrir a causa da Condição e a levou a Lênin. Mas há assuntos
urgentes a tratar.
“Digby, acho que a Condição produz mais que neuromas acústicos.
Minha teoria é que ela afeta a personalidade, torna as pessoas
excêntricas. É responsável pela… inconsequência de Lênin, o caminho
estúpido que ele tomou. E sua intransigência agora.”
“Bem, seria um bom argumento para apresentar a um juiz, caso ele
se entregue”, Digby diz. “Talvez diminua seu tempo na prisão.”
“Ouvi falar de uma mulher naxalita que foi condenada à prisão
perpétua”, Mariamma diz. “Saiu depois de sete anos.”
Ela se admira com o caminho pelo qual sua mente está tentando
conduzi-la. Antes, pensava que jamais voltaria a ver Lênin; agora,
planeja um futuro com ele. Você está botando o carro na frente dos bois.
“Digby, e se Lênin não quiser se entregar ou ir para Vellore…”
“Convença seu amigo.” Digby solta seu braço. “Vou deixar vocês a
sós.”
Lênin está no quarto, sentado e aparentemente adormecido. A jovem
senta na cadeira ao lado do leito. Ele abre os olhos.
“Mariamma?” Sorri, pega um biscoito e o parte no meio. “Se
mordemos ao mesmo tempo, teremos superpoderes. Como Mandrake,
o mágico, lembra? Uma mordida, e, em algum lugar da galáxia, se
estivermos sincronizados…?” Ele faz o sinal da cruz sobre ela com a
metade do biscoito, como um padre, mas ela lhe agarra a mão.
Ela ri, apesar de tudo. “Era o Fantasma, macku. Não o Mandrake.”
Mariamma o trouxe do mundo dos mortos para chamá-lo de idiota.
“Lênin, não temos muito tempo. Você vai perder a consciência de
novo. Por favor, deixe a gente te levar para Vellore.”
O sorriso, agora de um só lado da face de Lênin, desaparece. Ela vira
o rosto e diz: “Que desperdício, ma. Esses últimos cinco anos. Parecem
quarenta. Nada mudou para os adivasis, os pulayar. E você e eu? Fui
tão estúpido, tão cego”.
Ela está tomada de tristeza por ele — pelos dois. Um feixe estreito de
luz filtra-se entre folhas, toca a cama. O Deus que nunca interfere nos
afogamentos e nos desastres de trem gosta de espreitar o experimento
humano nesses momentos de ajuste de contas e resolve banhar a cena
com um pouco de iluminação celestial. Mariamma se impacienta,
esperando a resposta de Lênin.
“Mariamma, quando tudo acabar, quando a vida estiver quase no
fim, do que você quer se lembrar?”
Ela pensa na única noite dos dois juntos, em Mahabalipuram.
Reencontrou-o numa época em que já o perdera para uma causa
fadada ao fracasso. E agora de novo. Encontra-o apenas para perdê-lo.
Ela não responde, apenas segura a mão dele.
“Do que você quer se lembrar, Lênin?”, ela pergunta, baixinho.
Ele não hesita. “Disto. Aqui. Agora. O sol em seu rosto. Seus olhos
mais azuis do que cinza hoje. Quero me lembrar desse quarto, do
farelo de biscoito em sua boca. Por que esperar que o mundo me
mostre algo melhor?” É como se ele se despedisse.
Uma nuvem negra passa pelo rosto de Lênin — uma intrusa. Sua
respiração se acelera e gotas de suor cintilam na sobrancelha.
“Lênin, te imploro. Vamos para Vellore. Tiramos o tumor, e depois a
gente vê. Entregue-se e aceite a sentença. Mas viva! Viva por mim. Não
me peça para assistir você morrer.”
“Mariamma, é inútil. Vou morrer de qualquer jeito. A polícia vai me
matar, com ou sem tumor.” As palavras dele se atropelam, seus olhos
vagam pelo quarto e é um esforço focá-los em Mariamma. Ela observa
o véu se sobrepondo. A voz dele é tênue. “Fico feliz por você ter
enfiado aquela agulha no meu cérebro. Pude ver você mais uma vez, te
tocar, te ouvir. Mariamma, você sabe, não? Sabe o que sinto por
você…?”
O corpo de Lênin se enrijece, os olhos reviram.
Ela grita e Digby chega a tempo de vê-lo convulsionar,
chacoalhando a cama numa agitação violenta. Aos poucos a convulsão
passa.
Digby pergunta: “Ele disse o que quer fazer?”.
Ela ignora a pergunta, pois não vai mentir. “Vamos levar Lênin para
Vellore.”
Em uma época de mentiras, dizer a verdade é um ato revolucionário.
No entanto, essa é a verdade dela, seu ato revolucionário por Lênin e
por ela. Vida longa à revolução.
vellore, 1977
parambil, 1977
Mariamma fez sete anos hoje e queria bolo. Ninguém jamais fez um
bolo em Parambil. Ela teve essa ideia lendo Alice no País das
Maravilhas. Ela e Ammachi mexeram a massa numa tigela com
tampa e colocaram carvão quente em cima e em baixo. Jurei a ela que
eu tinha a poção BEBA-ME, se, como em Alice, esse fosse um bolo do
tipo COMA-ME, que a faria ficar subitamente gigante. Delicioso!
Baunilha e canela. Depois lhe dei um presente de aniversário: sua
primeira caneta-tinteiro, uma Parker 51, azul com tampa dourada.
Um lindo instrumento. É o que eu tinha prometido tão logo ela virasse
uma mocinha. Ela ficou animada: “Isso quer dizer que sou finalmente
uma mocinha?”. Confirmei. E ela é!
Depois da morte de Ninan, minha Elsie foi embora. Ficou longe por
pouco mais de um ano. Quando voltou, ela já estava grávida.
Que eu escreva “já estava grávida” é prova de que meus olhos estão
abertos. Talvez Grande Ammachi tenha sabido desde sempre. Talvez
tenha sido isso que ela quis dizer quando me disse, no dia em que
Mariamma nasceu, que “Deus enviou-nos um milagre na forma desta
criança, que chegou completamente formada e única”. Não era Ninan
renascido, mas algo infinitamente mais precioso: minha Mariamma!
Mas eu era um imbecil nas garras do ópio, incapaz de receber ou
reconhecer o presente inestimável daquela criança que hoje é uma
“mocinha”.
Livre do ópio, minha cura só começou de fato quando me dediquei a
amar a nenenzinha com todo o meu coração. Sou seu pai — sim, sou
— por escolha. Se ela fosse de meu próprio sangue, então seria uma
criança diferente, não seria minha Mariamma, e só de pensar nisso
estremeço. Recuso-me a imaginá-lo. Jamais aceitaria perder minha
Mariamma. Meu Deus amado não me devolveu meu filho. Não, ele
me deu algo muito melhor. Ele me deu minha Mariamma. E ela me
deu vida.
Quando Lena viu Digby, abriu os braços. Ele a abraçou e não soltou
mais. Havia duas mulheres em sua vida que o viram em seu pior
momento: Lena e Honorine. Ambas, cada uma a seu modo, salvaram-
no.
Elsie esperava ao lado, educadamente, observando. O branco não é
apenas a cor do verão, ele pensou. É também a cor do luto.
“Digs, lembra de Elsie?”, Lena perguntou. Os olhos de Elsie o
hipnotizaram mais uma vez. Ele acolheu a mão longa e esbelta que lhe
era estendida em suas próprias, relembrando a garotinha que enfiou
um lápis de carvão entre seus dedos e amarrou a mão à dele com uma
fita de cabelo. Os dois passearam sem esforço sobre o papel, rompendo
os grilhões que o prendiam! Agora ele sentiu o tempo se dissolvendo, os
anos transcorridos se esfumaçavam. Ela o alcançou, por assim dizer. É
uma mulher feita. Ele precisa falar, precisa soltar sua mão, mas não
consegue fazer nada. Sua mudez comunicava sua dívida, e agora sua
angústia por ela.
Os olhos vazios e sem fundo dela encontraram foco, devolvendo-a ao
presente, os cantos da boca tentando compor um sorriso. Digby teve
uma premonição de perigo, como se ela corresse o risco de cair de um
precipício à beira do mundo.
Foram sentar. Houve um silêncio constrangedor. Franz disse: “Bem,
saúde, Digby. Um brinde a velhas e novas amizades…”.
“Amizades renovadas”, Lena disse.
Um casal veio cumprimentar os Mylins e eles se levantaram. Elsie
lançou um olhar às mãos de Digby. Ele estendeu a mão direita,
flexionou os dedos, e ela sorriu, envergonhada, flagrada no ato de
observá-lo. Estudou a mão de Digby com cuidado, reconciliando-a à
sua lembrança, depois balançou a cabeça em aprovação e olhou com
firmeza para ele. Digby não podia desviar o olhar, não precisava.
Embora dezessete anos mais velho do que Elsie, naquele momento ele
sentia que os dois eram iguais. Ele era um especialista em perdas
trágicas e violentas, e agora ela se juntara às suas fileiras. O médico
conhecia uma verdade simples: não havia nada que ninguém pudesse
dizer para curar aquela dor. Era preciso, simplesmente, viver. Nesses
momentos os melhores amigos eram aqueles que não tinham nenhum
plano além de se fazerem presentes, oferecendo-se a si mesmos, como
Franz e Lena fizeram por ele. Digby agora fazia o mesmo, em silêncio.
Passado um momento, ele falou. “Alguns anos atrás vi suas pinturas
numa exposição em Madras. Deveria ter escrito para dizer como eram
esplêndidas.” Aconteceu de ele visitar Madras na época da exposição.
As obras de Elsie tinham sido vendidas, mas no dia da visita ele
descobriu que um dos compradores desistira, então Digby comprou o
quadro. Era o retrato de uma mulher gorda de seus cinquenta ou
sessenta anos, sentada numa poltrona, com ares de imperatriz; trajava
as vestes tradicionais dos cristãos malaialas, chatta e mundu brancos, e
tinha um grande crucifixo de ouro descansando sobre seu delicado
kavani. O cabelo preso de uma forma tão severa que parecia lhe erguer
a ponta do nariz. O espectador via algo dissonante ou pretensioso em
sua pose, uma falsidade em seu sorriso e nos olhos. O poder da pintura
vinha da incapacidade da modelo de perceber que o retrato a revelava.
“Acabei de rever meu quadro em sua sala de estar”, Elsie disse,
sorrindo. Ele esperou, mas aquilo foi tudo.
“Como é rever uma obra sua tanto tempo depois?”
Um traço passageiro de prazer cruzou-lhe o rosto, uma emoção que
ela não sentia havia um bom tempo. Elsie ponderou a questão. “Foi
como… me deparar comigo mesma numa floresta.” Ele riu, um som
vazio. “Faz sentido?” Digby fez que sim com a cabeça. Os dois falavam
baixo. “Depois que superei a surpresa, fiquei contente. Geralmente
quero consertar certas coisas. Mas fiquei satisfeita… Também sabia que
a artista já não era a mesma pessoa. Se eu pintasse aquele quadro de
novo, talvez saísse bem diferente.”
Ela olhou para as próprias mãos, que continuavam no colo.
Digby disse: “Uma obra de arte nunca fica pronta. Ela é
abandonada, só isso”. Ela o encara, surpresa. “Foi o que disse Leonardo
da Vinci”, ele acrescentou. “Ou talvez Michelangelo. Ou talvez eu
tenha inventado.”
Foi um prazer ouvir a risada dela, como uma criança solene caindo
numa armadilha. Digby riu também. Quando se vive sozinho, a risada
mais alta passa despercebida e, portanto, não é melhor do que o
silêncio.
Elsie, ele pensava, não tinha mácula no exterior. Perfeita. Suas
cicatrizes, suas queimaduras e suas contraturas estavam todas no
interior, invisíveis… a não ser que olhássemos para seus olhos: então
era como mirar dentro de um lago calmo onde aos poucos
discerníamos o carro afundado, com os ocupantes presos. Você não está
sozinha, ele quis dizer. Elsie devolveu-lhe o olhar e não virou o rosto.
82. A obra de arte
No dia seguinte, Elsie não saiu do ateliê. Ele não a solicitou. Nada
havia mudado. E tudo havia mudado. Os dois estavam sozinhos.
Ele esperou até quando pôde para chamá-la para o jantar. Ao se
aproximar do barracão, não ouviu o som das marteladas. Em pânico,
galgou os últimos metros correndo. Encontrou-a do lado de fora,
sentada no banco, olhando o céu que ficava rosa.
Sentou ao lado dela, sem fôlego, mas disfarçando. Elsie sorriu, mas
parecia triste. Que estupidez a minha. Por acaso uma escultura apagaria
a memória dela? Ela recostou a cabeça no ombro dele.
Depois de um jantar silencioso em que os dois apenas remexeram a
comida no prato, ele disse: “Antes de você dormir, quero te mostrar um
dos meus quadros favoritos”.
Do segundo andar passaram a uma água-furtada, depois subiram
uma escada até a cobertura, onde havia duas cadeiras reclináveis.
Digby lhe ofereceu um xale contra a brisa fria. O cozinheiro deixara
uma garrafa de chá quente, misturado com cardamomo e uísque.
Gradualmente, à medida que seus olhos se ajustavam, o manto escuro
da noite revelou as joias bordadas em seu tecido. Depois, passado mais
um tempo, estrelas menorzinhas apareciam, como crianças tímidas
espreitando por trás do vestido da mãe. Sobre os dois, Órion
empunhava seu arco. Ficaram em silêncio por um bom tempo. Ele a
viu traçar um desenho no céu com um dedo, como se a pluma
esvoaçante da Via Láctea fluísse da ponta de seu dedo. Ela parecia em
êxtase, olhando para o alto, muda.
Ele lhe entregou um copo e serviu o chá.
“Quando eu era menino em Glasgow”, ele disse, “subia no telhado
se o céu estivesse claro — o que não acontecia com muita frequência.
E eu conseguia ver a Estrela Polar. Isso me consolava. Meu ponto fixo.
Depois que minha mãe morreu, não consegui mais acreditar em Deus.
Mas as estrelas? Elas seguem ali. No mesmo lugar. Tornaram
irrelevante a ideia de Deus. Subo aqui no verão, quando as noites são
claras. Olho para cima por horas a fio. Às vezes me pergunto se essa
nossa vida não é um sonho. Talvez eu nem esteja neste mundo.”
“Se você não está aqui, então estou em seu sonho”, Elsie disse. E
acrescentou, baixinho: “Obrigada, Digby. Por tudo”.
Mas ele não estava preparado para perdê-la. Não depois daquela
noite. Não quando a carta chegou, encaminhada da casa Thetanatt
para a casa dos Mylins e de lá para Digby, que sentiu um arrepio ao ver
o envelope. Ele fora agraciado com o período mais abençoado de sua
vida. Nunca diga que um homem é feliz antes de sua morte.
Quando Elsie terminou a carta, estava com o cenho franzido. “É
Bebê Mol. Está doente. Pode morrer.”
“De quê?”
“De coração partido, pelo que parece. Além dos problemas
pulmonares. Ela viu meu filho morrer, e depois eu parti… A carta é de
minha sogra. Ammachi diz que ela se recusa a comer. E pergunta por
mim.”
Elsie não falou mais nada, e Digby não perguntou. Mas foi como se
um tonel de tinta nanquim tivesse sido vertido dentro do reservatório
de águas claras onde nadavam. Escureceu o espírito de Elsie. A névoa
tomava o céu toda noite, e agora fazia frio, ventos ameaçadores
chacoalhavam as janelas à noite. A cobertura estava fora de cogitação.
Quando os dois começaram a compartilhar a cama, muitas noites ele
percebia o corpo dela tremendo em silêncio ao lado do seu, e ele a
abraçava, procurando confortá-la. Certa ocasião, passado o choro, ela
disse: “Foi só por estar aqui, Digby, que senti minha raiva diminuir um
pouco. Meu ódio, até. Mas ele não se foi. A tristeza nunca passará. Sei
que ele amava nosso filho. E que sente tanta dor quanto eu. E uma
culpa maior, se é que é possível. Sei que não faz sentido culpá-lo, e ele
também não deve me culpar. Sei de tudo isso, porém saber dessas
coisas não resolve nada”. Mais tarde, Digby se perguntou se ela tentava
prepará-lo para sua partida. Não havia nada que pudesse fazer.
No dia em que a carta chegou, os dois sentaram perto da lareira e ele
compreendeu que ela havia tomado uma decisão. “Não posso deixar
Bebê Mol morrer por minha causa. Não, se pretendo continuar
vivendo.” Ele não disse nada, esperou. “Digs, não falamos a respeito do
futuro. Apenas vivemos um dia de cada vez. Aqui pude respirar, viver e
querer viver, sentir amor, quando já não achava ser possível. Sei que
não posso ficar em Parambil. São memórias demais, e muita raiva e
culpa. Tenho medo de voltar. Mesmo antes de Ninan morrer, mesmo
quando as intenções de Philipose eram as melhores, por alguma razão,
sempre que ele tentava fazer algo bom para mim, o resultado era o
oposto.” Ela suspira. “O que estou tentando dizer é que vou apenas
fazer uma visita. Se você me aceitar, voltarei. Não existe outro lugar,
outra pessoa com quem gostaria de estar.”
Digby desejara aquelas palavras ardentemente. E agora se esforçava
para acreditar nelas, pois ele era um especialista em decepções. A única
proteção possível contra elas era antecipá-las. Tentar segurar as pessoas
amadas era uma receita para a frustração. Nutrir qualquer tipo de raiva
por elas era igualmente inútil.
Ele não procurou embelezar seus pensamentos, falou com ela com a
mesma honestidade de sempre: “Não tenho voz em sua escolha, Elsie.
Se seus sentimentos mudarem quando estiver por lá, se resolver ficar,
aceitarei. Terei que aceitar. Então os sentimentos que expresso agora
não pretendem confinar você. Eu… Bem, eu te amo. É isso. E digo
não para impor um fardo, mas para que você saiba. Sim, quero que
volte. Quero ver Roma e Florença com você. Quero passar o resto da
vida a seu lado”.
Ela cobriu o rosto com as mãos. O brilho do fogo brincou com o
dorso de seus dedos, reluzindo em seu cabelo. Ele agiu mal em dizer
aquelas coisas? Quando ela tirou as mãos do rosto, ele viu que era
justamente o oposto.
“Digs, preciso partir amanhã, antes que eu mude de ideia. E, assim
que Bebê Mol melhorar, eu volto… Se você tem certeza.”
“Se você voltar, talvez eu acredite que Deus existe.”
“Não existe, Digs. Existem as estrelas. A Via Láctea. Deus, não. Mas
voltarei. Nisso você pode acreditar.”
Querido Digs,
Sinto muito não ter escrito. Ficará claro para você quando eu o
encontrar. Se eu o encontrar. Escrevo às pressas. Não pude escrever
antes, pois, como você sabe, as inundações nos ilharam. Digby, a
razão pela qual permaneci aqui mesmo depois da monção é também o
motivo pelo qual devo partir agora. Acabei de ter uma filha, Digby.
Quero mais do que tudo alimentar, segurar, criar e amar essa criança.
Mas, por ela, preciso partir agora. Contarei tudo pessoalmente. Ela
corre risco, se eu ficar. Estará mais segura com a avó, e com aqueles
aqui que a amarão, embora eu a ame mais do que todos eles seriam
capazes. No entanto, minha permanência a expõe a um perigo.
Oito de março era o dia seguinte. Ele partiu em menos de uma hora,
dirigindo sozinho, contra as extenuantes objeções de Cromwell, a
quem Digby relatara tudo.
Uma criança. Sua criança. Na primeira vez que fizeram amor
estavam envolvidos demais para pensar numa gravidez. Depois disso,
procuraram ser cuidadosos. Mas também foram embalados por certa
complacência, como se, na bolha mágica dos Gwendolyn Gardens,
nada que se opusesse à vontade deles jamais fosse acontecer.
Mas por que Elsie não voltou tão logo as estradas foram liberadas?
Um atraso de dois, até três meses, era compreensível, mas por que oito?
Ela esteve em cativeiro? Por que não traria o bebê? Por que uma fuga
tão perigosa? Os porquês não paravam de cruzar sua mente. Em algum
momento terão de retornar para buscar a filha. Por favor, confie em
mim. Ele tinha que confiar.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Nesta edição, foram utilizadas as traduções de Lawrence Flores Pereira para Hamlet (São
Paulo: Penguin-Companhia, 2015) e Paulo Henriques Britto para Grandes esperanças (São
Paulo: Penguin-Companhia, 2012).
Título original
The Covenant of Water
Capa
Victor Burton
Imagem de capa
Sem título, de Amadeo Luciano Lorenzato, c. 1980. Óleo sobre placa, 59 × 52 cm.
Coleção particular. Reprodução de Mario Grisolli. Agradecimentos: Thiago Gomide.
Mapa
© Martin Lubikowski, ml Design, Londres
Preparação
Gabriele Fernandes
Maria Emilia Bender
Revisão
Huendel Viana
Ingrid Romão
Versão digital
Rafael Alt
isbn 978-85-3593-762-6