O Pacto Da Água - Abraham Verghese

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DADOS DE ODINRIGHT

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Mapa
1. Sempre
2. Ter e manter
3. Coisas nunca mencionadas
4. A iniciação de uma dona de casa
5. A vida doméstica
6. Casais
7. Quem é mãe sabe
8. Até que a morte nos separe
9. Fiel nas pequenas coisas
10. Peixe embaixo da mesa
11. Castas
12. Dois grandes
13. Da magnificência
14. A arte do ofício
15. Um ótimo partido
16. O ofício da arte
17. Raças à parte
18. Templos de pedra
19. Pulsátil
20. Em casas de vidro
21. Prevenido
22. Natureza-morta com mangas
23. O que Deus sabia antes de nascermos
24. Outro caminho
25. Um estranho na casa
26. Muros invisíveis
27. Subir é bom
28. A grande mentira
29. Milagres matinais
30. Dinossauros e montanhas
31. A ferida maior
32. O guerreiro ferido
33. Mãos escrevendo
34. De mãos dadas
35. A cura do que te aflige
36. Não há o que aprender na sepultura
37. Um sinal auspicioso
38. Correio
39. Geografia e destino marital
40. Rótulos que diminuem
41. A vantagem da desvantagem
42. Todos se dão bem
43. Para vossa própria casa
44. Em uma terra de abundância
45. O noivado
46. A noite do casamento
47. Tema a árvore
48. Deuses da chuva
49. A vista
50. Riscos nas montanhas
51. Uma disposição para a dor
52. Como era antes
53. Mulher de pedra
54. Um anjo pré-natal
55. O rebento é uma menina
56. Desaparecida
57. Invictus
58. Acenda o castiçal
59. Doces opressores e gratos oprimidos
60. A revelação do hospital
61. O chamado
62. Hoje à noite
63. Os encarnados e os desencarnados
64. Articulação ginglimoartroidal
65. Se Deus falasse
66. A linha divisória
67. Melhor fora do que dentro
68. O cão do paraíso
69. Ver o que você imagina
70. Mergulhe
71. Os mortos hão de se erguer intocados
72. A doença de Von Recklinghausen
73. Três regras para uma possível noiva
74. Uma mente analisada
75. Estados de consciência
76. Despertares
77. Estradas revolucionárias
78. Saca só
79. O plano de Deus
80. Não piscar
81. O passado encontra o futuro
82. A obra de arte
83. Amar os doentes
84. O mundo conhecido

Agradecimentos
Notas
Sobre o autor
Créditos
Para Mariam Verghese, in memoriam
Um rio saía do Éden para regar o jardim.
Gênesis 2,10

A perfeição das pedras não vem dos golpes do martelo, mas da


dança e do canto da água.
Rabindranath Tagore
parte um
1. Sempre

travancore, sul da índia, 1900

Ela tem doze anos e vai casar na manhã seguinte. Mãe e filha estão
deitadas na esteira, os rostos úmidos colados um ao outro.
“O dia mais triste na vida de uma menina é o dia do seu casamento”,
diz a mãe. “Então, se Deus quiser, melhora.”
Pouco depois a menina ouve os soluços da mãe se transformarem
numa respiração ritmada, e em seguida num ronco mais suave — um
som que, na cabeça da menina, parece impor certa ordem aos ruídos
esparsos da noite, das paredes de madeira que exalam o calor do dia ao
cachorro escavando a terra no quintal.
Do lado de fora, um cuco-falcão-indiano canta: Kezhekketha?
Kezhekketha? Para onde o leste? Para onde o leste? A menina o imagina
lá no alto, observando a clareira em meio à qual o telhado de sapê
protege a casa. Ele vê a lagoa à frente, o riacho e o arrozal um pouco
atrás. Às vezes canta por horas a fio, privando todos do sono… Mas
agora se cala de repente, como se uma cobra tivesse lhe dado um bote.
No silêncio que se segue, o riacho não canta nenhuma canção de
ninar, apenas grunhe sobre as pedras polidas.
Ela desperta antes do amanhecer, a mãe ainda dorme. Pela janela, a
água no arrozal cintila como prata batida. Na varanda da frente, a bela
charu kasera de seu pai jaz esquecida e vazia. A menina levanta o apoio
para escrita escarranchado entre os braços de madeira da chaise longue
e senta. Na treliça de ratã sente a forma fantasmagórica do pai.
Nas areias da laguna crescem, inclinados, quatro coqueiros que
roçam a água como se em busca de um vislumbre do próprio reflexo
antes de apontar para o céu. Adeus, lagoa. Adeus, riacho.
“Molay?”, disse, no dia anterior, o único irmão de seu pai, para sua
surpresa. Ultimamente ele não a chamava mais pelo afetuoso molay —
filha. “En­contramos um bom par para você!” Seu tom era melífluo,
como se ela tivesse quatro, não doze anos. “Seu noivo valoriza que você
vem de uma boa família, que é filha de clérigo.” Ela sabia que havia
muito o tio tentava casá-la, mas sentia que ele se apressava. O que
dizer? Esses assuntos eram resol­­vi­dos pelos adultos. A impotência no
rosto de sua mãe a constrangia. Não queria sentir dó de sua mãe, mas
respeito. Mais tarde, quando ficaram sozinhas, a mãe falou: “Molay,
esta casa já não é nossa. Seu tio…”. Ela se explicava, sem a filha sequer
ter protestado. A frase ficou no ar, e seus olhos pairaram pelo cômodo,
nervosos. Os lagartos nas paredes poderiam delatá-la. “Quão di­ferente
pode ser a vida por lá? Festejos no Natal, jejum na Quaresma… No
domingo, igreja. A mesma Eucaristia, os mesmos coqueiros e pés de
café. É um bom casamento… Ele tem posses.”
Por que um homem de posses casaria com uma menina sem
recursos, sem dote? Que segredo estão escondendo? Do que esse
homem carece? Juventude, para começo de conversa — ele tem
quarenta anos. E já é pai de uma criança. Poucos dias antes, depois da
visita do casamenteiro, ela entreouviu o tio repreendendo sua mãe: “E
daí que a tia dele se afogou? É diferente de um histórico familiar de
loucura. Quem já ouviu falar de uma família com histórico de
afogamentos? Os outros sempre ficam com inveja de um bom partido,
então logo exageram”.
Sentada, ela desliza as mãos pelos lustrosos braços da cadeira e pensa
por um instante nos antebraços do pai; como a maioria dos homens
malaialas, ele era um urso amoroso, com pelos nos braços, no peito e
até nas costas, por isso nunca era possível tocar sua pele, apenas uma
pelagem macia. Em seu colo, naquela mesma cadeira, ela aprendeu as
primeiras letras. Quando se saía bem na escola, ele dizia: “Você tem
uma cabeça boa. Mas ser curiosa é ainda mais importante. Para você,
ginásio. E faculdade também! Por que não? Não vou deixar que case
cedo, como sua mãe”.
O bispo o designara para uma igreja cheia de problemas perto de
Mundakayam, sem achen fixo por culpa de inescrupulosos
comerciantes maometanos. Não era lugar onde uma família pudesse
viver, com a névoa matinal mordiscando os joelhos ao meio-dia e
subindo até o queixo ao anoitecer. A umidade dificultava a respiração e
provocava reumatismo e febre. Menos de um ano depois ele voltou
com calafrios de bater os dentes, o corpo febril, a urina escurecida.
Antes que conseguissem ajuda, seu peito parou de bater. Quando sua
mãe aproximou um espelho dos lábios do marido, o vidro não
embaçou. A respiração do pai já era apenas ar.
Aquele foi o dia mais triste de sua vida. Como o casamento poderia
ser pior?

Pela última vez ela se levanta do assento de treliça. A cadeira de ratã


e a cama de teca do pai são relíquias sagradas: retêm a essência dele. Se
ao menos pudesse levá-las para o novo lar.
A casa se agita.
Ela enxuga os olhos, apruma os ombros, ergue o queixo — armando-
se para o que quer que esse dia lhe traga, para a tristeza da partida, a
despedida do lar que já não é lar. No mundo de Deus, o caos e a dor
são mistérios insondáveis, no entanto a Bíblia mostra que há um
desígnio para tudo. Como seu pai diria: “Fé é saber que existe uma
ordem, embora não seja visível”.
“Vou ficar bem, Appa”, ela diz, imaginando a preocupação do pai.
Se estivesse vivo, ela não estaria prestes a casar.
Ela fantasia sua resposta: As preocupações de um pai findam com um
bom marido. Rezo para que ele o seja. Mas só sei que o mesmo Deus que
te guarda aqui estará contigo lá, molay. É o que Ele nos promete nos
Evangelhos. “Eis que eu estou com vocês todos os dias, até o fim do
mundo.”
2. Ter e manter

travancore, sul da índia, 1900

O trajeto até a igreja do noivo leva quase meio dia. O barqueiro os


conduz por um labirinto de canais desconhecidos, margeados por
hibiscos de um vermelho flamejante, as casas tão próximas da água que
a menina poderia roçar numa velha agachada que peneira arroz. Ela
ouve um menino lendo em voz alta o jornal Manorama para um
ancião cego, que esfrega a cabeça como se as notícias lhe doessem. As
moradias se sucedem, cada qual um pequeno universo, algumas com
crianças de sua idade observando a passagem do barco. “Aonde vão?”,
pergunta um intrometido descamisado de dentes pretos, o indicador
escurecido no ar, coberto de carvão em pó. O dedo é sua escova de
dentes. O barqueiro o olha de relance.
Dos canais eles passam a um carpete de lótus e lírios de tamanha
densidade que seria possível caminhar sobre as flores. As pétalas se
abrem como se enviassem bons votos. Por impulso, ela colhe uma flor,
agarrando o caule que se ancora debaixo d’água. A flor se liberta
respingando, uma joia rosa: que milagre uma coisa tão bonita emergir
de água assim barrenta. O tio crava os olhos na irmã, que não diz nada,
mas teme que a filha manche a blusa branca e o mundu, além do
kavani com enfeites de um dourado fosco. Um aroma frutado toma
conta da embarcação. Ela conta vinte e quatro pétalas. Cruzando o
carpete de lótus, alcançam um lago com água plácida e suave, tão largo
que não se vê a margem oposta. Pergunta-se se o mar seria assim.
Quase esqueceu que vai casar. No cais movimentado, embarcam numa
canoa gigante cujos remos são manejados por homens esbeltos e
musculosos, popa e proa arqueando como vagens secas de feijão. Duas
dúzias de passageiros se acomodam, sombrinhas a protegê-los do sol.
Ela logo entende que está indo para um lugar distante, não será fácil
visitar sua casa.
De repente, o lago se estreita e desemboca num rio extenso. A
embarcação ganha velocidade na corrente. Por fim, ao longe, no alto
de um morro, um enorme crucifixo de pedra guarda uma pequena
igreja e projeta sua sombra sobre a água. Trata-se de uma das sete
igrejas e meia fundadas por são Tomé. Como toda criança que
frequentava uma escola religiosa, ela sabe seus nomes de cor:
Kodungallur, Paravur, Niranam, Palayoor, Nilackal, Kokkamangalam,
Kollam e a pequena meia igreja em Thiruvithamcode. Ver uma delas
pela primeira vez a deixa sem fôlego.

O casamenteiro, oriundo de Ranni, caminha no pátio de um lado a


outro. As marcas de suor nas axilas de sua juba chegam até o peito. “O
noivo já deveria estar aqui”, ele diz. As mechas de cabelo penteadas
para trás cederam sobre suas orelhas, lembrando asas de papagaio.
Nervoso, ao engolir saliva, uma protuberância se mexe para cima e para
baixo em seu pescoço. O solo de sua vila é famoso pelo cultivo do
melhor arroz e daquele tipo de bócio.
A família do noivo consiste apenas da irmã, Thankamma. A mulher
sorridente e robusta agarra as mãos da futura cunhada, apertando-as
com carinho. “Ele está vindo”, ela diz. O achen veste a estola
cerimonial sobre o manto e dá o laço na cinta bordada. Faz um gesto
com as palmas para cima, perguntando em silêncio: “E então?”.
Ninguém responde.
A noiva se arrepia, apesar do calor. Não está acostumada a usar
chatta ou mundu. A partir desse dia, nunca mais vestirá saias longas e
blusas coloridas, mas, como a mãe e a tia, o uniforme de toda mulher
cristã casada de São Tomé, que só permite o branco. O mundu é igual
ao dos homens, mas de arranjo mais elaborado, a ponta livre dobrando-
se três vezes, com pregas compondo uma cauda em forma de leque que
disfarça o formato das ancas. A blusa frouxa de mangas curtas e gola em
V, a chatta branca, também busca ocultar a silhueta.
A luz se reflete nas janelas altas e projeta sombras oblíquas. O
incenso lhe faz cócegas na garganta. Como em sua igreja, não há
bancos, apenas um carpete de fibra de coco sobre um piso de cimentão
vermelho, e somente na parte frontal. Seu tio tosse. O som ecoa no
espaço vazio.
Ela esperava que sua prima — e melhor amiga — viesse ao
casamento. A garota casara no ano anterior, também aos doze anos,
com um noivo da mesma idade e de boa família. Durante a celebração
o menino-noivo parecia entediado, mais interessado em tirar meleca do
nariz do que na cerimônia; o achen interrompeu a kurbana para
sussurrar: “Pare de cavar, não tem ouro aí!”. A prima escreveu que, na
casa nova, ela dormia e brincava com as outras garotas da família e
estava feliz por não ter de lidar com o marido irritante. Ao ler a carta,
sua mãe, que sabia das coisas, disse: “Bem, um dia tudo isso vai mudar”.
A noiva se pergunta se tudo já teria mudado, e o que isso implicava.

Há certa inquietação no ar. Sua mãe a empurra para a frente e se


afasta.
O noivo assoma ao seu lado, e de imediato o achen dá início à
cerimônia — por acaso ele vai tirar o pai da forca? Ela olha para a
frente.
Nas lentes sujas dos óculos do achen, ela vislumbra um reflexo: ao
lado de uma grande figura cuja silhueta é desenhada pela luz
penetrante da en­trada, uma outra, pequena — ela própria.
Como será ter quarenta anos? Ele é mais velho do que a sogra. Um
pensamento lhe ocorre: se é viúvo, por que não casou com a mãe dela?
Mas sabe bem a razão: a sorte de uma viúva é só um pouco melhor que
a de um leproso.
De repente o achen interrompe sua cantoria, pois o futuro marido se
voltou para estudar a noiva, dando as costas — algo impensável — ao
sacerdote. O noivo analisa o rosto dela, arfando como um homem que
tivesse corrido longas distâncias. Ela não se atreve a olhar para cima e
encará-lo, mas captura seu cheiro terroso. Incapaz de controlar os
tremores, fecha os olhos.
“Mas ela é só uma menina!”, ouve o noivo exclamar.
Quando abre os olhos, vê seu tio-avô esticando a mão para impedir a
fuga do noivo, mas a mão é empurrada para longe, como se fosse uma
formiga em um colchão.

Thankamma corre atrás do irmão fugitivo, enquanto sua barriga, ver‐­


dadeiro avental de gordura, balança de um lado para outro, a despeito
da pressão que ela faz com as mãos. Ela o alcança perto de uma pedra
de des­can­so — uma laje horizontal à altura dos ombros, sustentada por
dois pilares de pedra que se afundam na terra, onde o viajante pode
apoiar o fardo que carrega sobre a cabeça e recuperar o fôlego.
Thankamma empurra o peitoral maciço do irmão, tentando detê-lo,
enquanto caminha de costas diante dele. “Monay”, ela diz, ofegante,
pois o irmão é muito mais novo; é mais filho do que irmão. “Monay.” O
que acabou de acontecer é sério, mas cômico pelo modo como o
homem empurra a irmã, parecendo arar a terra usando a mulher de
arado. Ela não consegue segurar o riso.
“Olhe para mim!”, ela ordena, ainda sorrindo. Quantas vezes a irmã
viu aquela expressão contrariada em seu rosto, desde bebê? Ele tinha
apenas quatro anos quando a mãe deles morreu e Thankamma assumiu
o papel materno. Cantar, ninando-o, ajudava a desfranzir aquela testa.
Depois, na época em que o irmão mais velho dos dois roubou a casa e a
propriedade que lhe pertenciam por direito, só Thankamma o
defendeu.
Ele diminui o passo. Ela o conhece bem, esse acumulador de
palavras. Se Deus por um milagre destravasse sua mandíbula, o que
diria seu irmão? Chechi, quando me pus ao lado daquela criança
trêmula, pensei: “Esta é a pessoa com quem devo me casar?”. Você não
viu o queixo da menina tremendo? Já tenho uma criança em casa com
quem me preocupar. Não preciso de outra.
“Monay, eu entendo”, ela diz, como se ele tivesse falado alguma
coisa. “Sei o que parece. Mas não se esqueça, sua mãe e sua avó
casaram aos nove anos. Eram crianças e continuaram sendo criadas
desse modo em outra casa, até deixarem de ser. Isso não produz o
melhor casamento, o mais compatível? Desconsidere essa parte e por
um momento pense apenas naquela pobre menina. Largada no altar?
Ayo, que vergonha! Quem casará com ela depois disso?”
Ele não se detém. “Ela é uma boa menina”, continua Thankamma.
“De uma família tão boa! Seu pequeno JoJo precisa de cuidados. Ela
será para ele o que fui para você. Permita que ela cresça em sua casa.
Ela precisa de Parambil tanto quanto Parambil precisa dela.”
A irmã tropeça, ele a segura, e ela ri. “Mesmo os elefantes têm
dificuldade em andar de costas!” Só ela poderia entrever um sorriso na
vaga assimetria que surge no rosto dele. “Eu escolhi essa menina para
você, monay. Não dê tanto crédito àquele casamenteiro. Eu me reuni
com a mãe e eu vi a garota, ainda que ela não saiba que a vi. Não
escolhi bem na primeira vez? Sua esposa abençoada, que Deus a tenha,
aprova. Então, confie em sua chechi de novo.”

O casamenteiro conversa com o achen, que murmura: “O que está


havendo?”.
Javé, meu rochedo, minha fortaleza, meu libertador. O pai ensinou a
jovem noiva a dizer aquilo quando sentisse medo. Meu rochedo, minha
fortaleza. Uma energia misteriosa que emana do altar agora se assenta
sobre ela, como uma sobrepeliz, infundindo-lhe profunda paz. Aquela
igreja é consagrada por um dos doze; ele pisou onde ela agora pisa, o
único apóstolo que tocou as feridas de Cristo. Ela sente uma
compreensão inimaginável, uma voz que fala sem som ou movimento e
diz: Estou com vocês todos os dias.
Então, os pés descalços do noivo reaparecem a seu lado. Como são
belos os pés daqueles que anunciam boas notícias! Mas esses são
grosseiros, calejados, insensíveis aos espinhos; pés capazes de chutar
um toco de árvore apodrecido, acostumados a encontrar fissuras por
onde escalar uma palmeira. Aqueles pés se mexem, sabendo-se
julgados. Ela não se controla: espia o noivo. O nariz é afiado como um
machado, os lábios são grossos, o queixo empinado. Cabelo da cor do
azeviche, sem fios grisalhos, o que a surpreende. Ele é muito mais
escuro do que ela, mas bonito. Ela fica admirada com a intensidade do
olhar dele, que mira o sacerdote: é o olhar de um mangusto à espera do
bote da cobra, pronto para se esquivar, girar e agarrá-la pelo pescoço.
A cerimônia deve ter sido breve, pois ela já vê a mãe ajudando o
noivo a tirar o véu de sua cabeça. Ele recua e descansa as mãos nos
ombros dela, pondo-lhe o pequeno minnu de ouro em volta do
pescoço. Seus dedos roçando-lhe a pele parecem quentes como brasa.
O noivo faz uma rubrica tosca no registro da igreja e lhe entrega a
caneta. Ela anota seu nome, o dia, mês e ano, 1900. Quando ergue os
olhos, ele já está batendo em retirada. O sacerdote o observa e
pergunta: “O que foi? Ele deixou arroz no fogo?”.

Seu marido não está no cais, onde um barco balança sobre as águas,
tensionando impacientemente as amarras.
“Desde que seu marido era menino”, diz sua agora cunhada, “ele
sempre preferiu ser transportado pelos próprios pés. Eu, não! Por que
andar, quan­do podemos flutuar?” A risada de Thankamma é
contagiosa. Mas agora, na beira da água, mãe e filha devem se separar.
Agarram-se uma à outra — quando voltarão a se ver? A noiva tem um
novo nome, um novo lar — nunca visto — ao qual pertence. Deve
renunciar ao antigo.
Os olhos de Thankamma também estão úmidos. “Não se preocupe”,
diz à mãe desolada. “Cuidarei dela como se fosse minha filha. Vou
passar duas ou três semanas em Parambil. A essa altura ela já conhecerá
sua casa melhor do que conhece os Salmos. Não precisa agradecer.
Meus filhos estão crescidos, e ficarei até meu marido sentir falta de
mim!”
As pernas da jovem noiva bambeiam quando ela se afasta da mãe.
No momento de subir no barco, a garota talvez caísse se Thankamma
não a acomodasse em seu quadril, como quem suspende um bebê. Por
instinto, enrola as pernas ao redor da cintura robusta da cunhada,
afundando o rosto naquele ombro carnudo. Empoleirada, lança um
olhar para a figura entristecida que lhe acena do cais, eclipsada pelo
imenso crucifixo de pedra que se ergue ao fundo.

O lar da jovem noiva e do noivo viúvo fica em Travancore, no


extremo sul da Índia, entre o mar Arábico e os Gates Ocidentais —
aquela longa cordilheira que corre paralelamente à costa oeste. A terra
é moldada pela água, e um idioma comum une o povo dali: o malaiala.
No ponto em que se depara com a praia branca, o mar lança
continente adentro dedos que se entrelaçam aos rios que serpenteiam
pelas encostas verdejantes dos Gates. É um mundo de fantasia infantil,
repleto de riachos e canais, uma treliça de lagos e lagunas, labirinto de
remansos e piscinas naturais de flores de lótus verde-musgo; trata-se de
um vasto sistema circulatório, pois, como o pai dela dizia, toda água se
conecta. Aquela água deu origem a um povo — os malaialas — tão
móvel quanto o meio líquido que o cerca. Seus gestos são fluidos e seus
cabelos flutuam. Estão sempre prontos para jorrar risadas ao navegar
para a casa de um parente, pulsando e remando como glóbulos de
sangue em um sistema vascular, impelidos pelo grande coração das
monções.
Nessa terra, coqueiros e palmeiras são tão numerosos que à noite suas
silhuetas folhosas ainda balançam e cintilam sob as pálpebras fechadas.
Sonhos auspiciosos precisam ter água e frondes verdes, caso contrário
são um pesadelo. Quando os malaialas dizem “terra”, incluem também
a água, pois faz tão pouco sentido separar uma da outra quanto apartar
o nariz da boca. Em esquifes, canoas, barcaças e balsas, os malaialas e
suas mercadorias flutuam por Travancore, Cochim e Malabar, com
uma presteza que aqueles que moram em territórios sem costa não
podem imaginar. Na falta de estradas decentes, serviço regular de
ônibus e pontes, a água é a via.
No tempo de nossa jovem esposa, as famílias nobres de Travancore e
Cochim, cujas dinastias remontam à Idade Média, estão sob domínio
britânico, na condição de “estados principescos”. Há mais de
quinhentos deles — meta­de do território indiano —, minúsculos e
irrelevantes a maior parte. Os marajás dos maiores, os “salute states” —
Hiderabade, Maiçor e Travancore — têm direito a uma salva de
disparos de canhão, entre nove e vinte e um disparos (não raro o
mesmo número de Rolls-Royces estacionados na garagem real) —, que
reflete sua importância aos olhos britânicos. Em troca do direito de
conservar palácios, carros e status, além da permissão de governar de
maneira semiautônoma, os marajás pagam um dízimo à Coroa a partir
dos impostos que recolhem dos súditos.
Nossa noiva, em sua vila no estado principesco de Travancore, nunca
havia visto um soldado ou funcionário público britânico, ao contrário
daqueles que vivem nas “presidências” de Madras e Bombaim —
territórios administrados diretamente pela Coroa britânica, repletos de
ingleses. Com o tempo, as regiões com falantes do malaiala —
Travancore, Cochim e Malabar — vão se unificar para criar o estado de
Kerala, área costeira na ponta da Índia em formato de peixe: a cabeça
aponta para o Ceilão (atual Sri Lanka), a cauda para Goa, e os olhos
fitam melancólicos Dubai, Abu Dhabi, Kuwait e Riade, do outro lado
do oceano.

Ao se enfiar uma pá em qualquer parte do solo de Kerala, logo jorra


uma água ferruginosa, qual sangue sob o bisturi, um elixir rico em
laterito que alimenta toda criatura viva. Podem-se descartar os rumores
de que fetos abortados mas viáveis largados por lá crescem e se tornam
humanos ferais, mas não se discute que as especiarias florescem aqui
com uma abundância sem paralelo em outros locais do mundo. Por
séculos antes de Cristo, marinheiros do Oriente Médio estufaram as
velas triangulares dos dhows com os ventos do oeste para desembarcar
na “Costa das Especiarias”, onde compravam pimenta, cravo e canela.
Quando os ventos comerciais se invertiam, esses mercadores
retornavam à Palestina, vendendo as especiarias para compradores de
Gênova e Veneza por pequenas fortunas.
Como a sífilis ou a peste, a febre das especiarias tomou conta da
Europa, valendo-se, aliás, dos mesmos meios: marinheiros e navios.
Mas foi uma infecção salutar: as especiarias prolongavam a vida da
comida e de quem as consumisse. Havia outros benefícios. Em
Birmingham, um padre que mascava canela para camuflar o bafo de
vinho descobriu-se irresistível às paroquianas e redigiu sob pseudônimo
o panfleto popular Novos molhos doces e picantes: uma salgalhada feliz
de combinações inéditas e prazerosas para o homem e sua esposa.
Farmacêuticos celebraram a cura milagrosa da hidropisia, da gota e do
lumbago por meio de poções de cúrcuma, garcínia e pimenta. Um
médico de Marselha descobriu que esfregar gengibre em um pênis
pequeno e flácido revertia ambos os estados, angariando à parceira
“tamanho prazer que ela protesta se o companheiro sai de cima dela”.
Curiosamente, nunca ocorreu aos cozinheiros ocidentais secar e moer
pimenta-preta, sementes de funcho, cardamomo, cravo e canela,
lançando a mistura apimentada no óleo junto com sementes de
mostarda, alho e cebolas, fazendo assim a masala, base de todo curry.
Sem dúvida, quando as especiarias alcançaram na Europa o preço de
pedras preciosas, os marinheiros árabes que as compravam da Índia
cuidaram de ocultar sua fonte por séculos a fio. Ao longo do século xv,
os portugueses (e, mais tarde, holandeses, franceses e ingleses)
lançaram expedições em busca dos territórios onde essas especiarias
inestimáveis cresciam; esses viajantes eram como jovens despudorados
farejando uma mulher promíscua. Onde ela estava? Ao leste, sempre
em algum lugar ao leste.
Vasco da Gama, porém, partiu de Portugal rumo ao oeste, não ao
leste. Desceu pela costa ocidental africana, circundou a ponta da África
e subiu pelo outro lado. Em algum ponto do oceano Índico, Gama
capturou e torturou um capitão árabe que o levou à Costa das
Especiarias — hoje, Kerala —, desembarcando perto da cidade de
Calicute; aquela sua viagem marítima foi a mais longa realizada até
então.
O samorim de Calicute não ficou nem um pouco impressionado
com o navegador — nem com seu monarca, que enviou fios de coral e
peças de latão como tributos, enquanto seus presentes eram rubis,
esmeraldas e seda. Achou graça da ambição declarada de Gama: levar o
amor de Cristo aos pagãos. Por acaso aquele idiota não sabia que mil e
quatrocentos anos antes de pisar na Índia, mesmo antes de são Pedro
chegar a Roma, outro dos doze discípulos — são Tomé — já havia
desembarcado naquela costa em um dhow de comerciantes árabes?
Reza a lenda que são Tomé chegou em 52 d.C., aportando perto da
atual cidade de Cochim, e se deparou com um garoto que retornava do
templo. “Vosso Deus ouve vossas preces?”, ele perguntou. O garoto
respondeu que Ele decerto o ouvia. São Tomé lançou água para o ar e
as gotículas perma­neceram suspensas. “Seu Deus pode fazer isso?” Por
meio de tais demons­trações, fossem elas magia ou milagres, ele
converteu algumas famílias brâ­manes ao cristianismo; mais tarde,
acabou martirizado em Madras. Aqueles primeiros convertidos — os
cristãos de São Tomé — permaneceram fiéis à fé e só se casavam com
membros da comunidade. Ao longo do tempo, os adeptos cresceram,
enlaçados por costumes e igrejas.
Quase dois mil anos depois, dois descendentes daqueles indianos
convertidos, uma noiva de doze anos e um viúvo de meia-idade,
casaram-se.

“O que aconteceu aconteceu”, dirá nossa jovem esposa quando se


tornar avó, e a neta — que herdou seu nome — implorar por uma
história sobre os antepassados. A menininha ouviu rumores de que sua
genealogia familiar está repleta de segredos e que escravizadores,
assassinos e um bispo expulso da igreja estão entre seus ancestrais.
“Criança, o passado é o passado; além disso, ele é diferente a cada vez
que o evoco. Falarei do futuro, do futuro que você construirá.” Mas a
criança insiste.
Por onde começar? Por Tomé, “o Incrédulo”, que insistiu em ver as
chagas de Cristo com os próprios olhos para crer? Por outros mártires
da fé? O que a criança deseja é a história da família, da casa do viúvo ao
qual se uniu a avó, uma morada rodeada de terra em um estado repleto
de águas — um lar cheio de mistérios. Mas tais memórias são
costuradas com teias de aranha; o tempo abocanha nacos do tecido, e a
avó precisa tapar esses buracos com mitos e fábulas.
Ela tem algumas certezas: um relato que impressiona quem o ouve
conta como o mundo funciona de verdade; assim, inevitavelmente,
trata-se de uma história de famílias, com suas vitórias e feridas, e dos
mortos, incluindo os fantasmas que por aqui se demoram; a narrativa
deve oferecer instruções a respeito de como viver no reino de Deus,
onde a alegria nunca poupa ninguém da tristeza. Uma boa história faz
mais do que se propõe Deus, com sua infinita misericórdia: ela
reconcilia parentes e os liberta de segredos cujos laços são mais fortes
que o sangue. Contudo, quando revelados, como também quando
ocultos, segredos podem destroçar uma família.
3. Coisas nunca mencionadas

parambil, 1900

A jovem esposa sonha que brinca na laguna: apoia o peso do corpo


no bote estreito dos primos, quer virá-lo de propósito, e as risadas
ecoam pelas margens.
Acorda confusa.
A seu lado, ronca um morro que se infla e se esvazia. Thankamma.
Sim. É sua primeira noite em Parambil. Esse nome corre estranho por
sua língua, como a pontinha de um dente lascado. Do cômodo
vizinho, o quarto do esposo, ela não escuta nada. O corpo de
Thankamma esconde um menininho — ela vê apenas o cabelo
despenteado e brilhante, e, com a palma virada para o teto, a mão que
descansa pouco acima da cabeça.
Ela escuta. Sente falta de algo. A ausência é inquietante. E então
entende: não se ouve a água. Sente falta daquela voz calma e
murmurante, por isso a reproduziu no sonho.
Ontem o vallum, piroga reforçada por traves, deixou-a, a ela e a
Than­kamma, em um pequeno atracadouro. Elas cruzaram um grande
campo salpicado de coqueiros sobranceiros e carregados. Quatro vacas
pastavam, cada uma amarrada a uma longa corda. Thankamma e ela
caminharam por fileiras de bananeiras, as folhas molengas roçando
umas nas outras. Cachos de bananas-vermelhas pendiam. A magnólia
da chempaka perfumava o ar. Três rochas bem polidas e desgastadas
serviam de ponte num riacho de águas rasas, que mais adiante se
ampliava num lago com margens repletas de arbustos de pandano e
coqueiros-anões chenthengu, abarrotados de cocos alaranjados. Pedras
onde se lava roupa inclinavam-se na beira do lago; Thankamma lhe
disse para se banhar naquele ponto. O murmúrio da correnteza era um
bom sinal. Ao desembarcar, a noiva procurara a casa com os olhos, mas
ela não ficava à margem do rio, então decerto ficaria ali, junto ao
riacho… porém não viu nada. “Todo esse território, mais de duzentos
hectares”, declarou Thankamma cheia de orgulho, apontando à
esquerda e à direita, “é Parambil. Terra agreste na maior parte,
montanhosa, sem clareiras. Só parte do trecho que limpamos é
cultivada. Antes de seu esposo domar a terra, molay, era tudo selva.”
Duzentos hectares. O lar que ela conhecera até ontem mal se
assentava sobre dois.
As duas seguiram por uma trilha flanqueada de plantações de
mandioca. Por fim, no topo de uma elevação, ela vislumbrou a silhueta
da casa contra a luz. Foi ali que avistou pela primeira vez aquele que
seria seu lar pelo resto da vida. O telhado, com aquela leve inclinação
no meio, arqueava-se nas pontas; os beirais rebaixados bloqueavam o
sol, cobrindo a varanda de sombra… Mas ela só conseguia pensar: Por
que lá em cima? Por que não à beira do riacho? Ou do rio, que traz
visitantes, novidades e tantas coisas boas?
Agora, deitada de costas, examina seu quarto: as paredes enceradas e
polidas são de teca, não de jaqueira selvagem, com aberturas no topo
que permitem a saída do ar morno; o teto falso também é de teca,
proteção contra o calor; finas barras de madeira na janela dão livre
passagem à brisa; e uma porta com duas folhas — horizontais, claro —
leva à varanda, a metade superior aberta para acolher a brisa, a inferior
fechada, impedindo a entrada de galinhas e de criaturas sem perna —
tudo muito parecido, porém maior, com a casa que ela deixou para trás.
Todo thachan, ou carpinteiro, segue as mesmas antigas regras Vastu,
das quais nem os hindus nem os cristãos se afastam. Para um bom
thachan, a casa é o noivo e o terreno é a noiva, e ele deve casá-los com
o mesmo cuidado com que o astrólogo emparelha horóscopos. Quando
a tragédia ou uma assombração paira sobre a morada, diz-se que sua
localização não foi escolhida auspiciosamente. Então ela se pergunta
de novo: Por que aqui, longe das águas?

Um farfalhar de folhas, um tremor pressentido no chão deixam seu


co­ração de sobreaviso. Alguma coisa perto da porta bloqueia a luz das
estrelas. É um fantasma da casa que vem se apresentar? Em seguida,
um arbusto folhoso parece crescer para dentro do quarto entrando pela
parte de cima da porta. Uma cobra enorme se move pelo arbusto. A
menina não consegue se mexer, nem gritar, embora saiba que algo
terrível está prestes a acontecer nessa casa misteriosa, cercada de terra
por todos os lados… Mas poderia a morte ter cheiro de jasmim?
Um ramo de jasmim sustentado pela tromba de um elefante paira
sobre ela. As florzinhas balançam sobre os demais hóspedes
adormecidos e se detêm sobre o rosto da jovem esposa, que sente um
hálito quente, úmido e antigo. Pequenas partículas de terra caem em
seu pescoço.
Seu medo se apazigua. Hesitante, ela estica a mão para colher a
oferenda. Fica surpresa com as narinas do animal, tão humanas,
margeadas por uma pele mais pálida e sardenta, delicadas como um
lábio, no entanto tão ágeis e habilidosas quanto dois dedos; a tromba
cheira seu peito, faz-lhe cócegas no cotovelo e então traça um caminho
até seu rosto. Ela reprime uma risadinha. Expirações quentes a
envolvem, como bênçãos. O aroma parece saído do Velho Testamento.
Em silêncio, a tromba se retira.
A jovem esposa se vira e nota uma testemunha embasbacada. JoJo,
de dois anos, está sentado, observando tudo por cima da barriga de
Thankamma, os olhos esbugalhados. Ela sorri, erguendo-se, e num
impulso o chama e o puxa para seu quadril; os dois saem do quarto,
seguindo a aparição.
Ela pressente espíritos por toda parte em Parambil, como em
qualquer casa. Um deles caminha pelo muttam, o pátio. A escuridão
cintila com almas invisíveis, numerosas como vaga-lumes.
Numa clareira perto de uma palmeira alterosa, pairando sobre uma
pilha de bagaços de coco, o brilho de um olho oscila como uma
lâmpada no vento. Ela aperta os olhos para se acostumar à obscuridade,
e então distingue uma testa gigantesca, depois orelhas que abanam
languidamente… uma escultura talhada na pedra da noite. O elefante
é real, não é um fantasma.
JoJo circunda o pescoço dela com um braço, os dedos distraídos lhe
manuseando o lóbulo da orelha, assentado confortavelmente naquele
quadril como se não conhecesse outro. A menina quer rir; ontem
mesmo era ela que se agarrava a Thankamma. Os dois ficam ali,
parados, dois meio-órfãos. Os espíritos recebem ordens do animal
dadivoso e se retiram para as sombras que, aos poucos, rendem-se à
aurora.
Em sua breve vida ela viu elefantes de templos sendo adorados e
mimados com oferendas; viu elefantes que, transportando madeira,
cruzavam em peso os vilarejos a caminho da floresta. Mas essa criatura
que tapa as estrelas é certamente o maior do mundo. Observar seu
mascar preguiçoso e a dança graciosa da tromba flexível levando folhas
a uma boca sorridente a tranquiliza.
Na lateral a sota-vento do elefante, pouco depois do dique de terra
lamacenta que cria um fosso ao redor de cada coqueiro, impedindo
água e estrume de escoar, um homem dorme numa cama de corda.
Os cotovelos e os joelhos de seu esposo sobressaem da combalida
estrutura de madeira. Na posição de seu poderoso braço esquerdo,
dobrado para servir de travesseiro à bochecha, os dedos cerrados, ela vê
ecos daquela visita que lhe ofertou os jasmins.
4. A iniciação de uma dona de casa

parambil, 1900

Na cozinha, o chão de terra batida refresca a sola dos pés. Das


paredes escurecidas pela fumaça depreendem-se aromas de dar água na
boca; na sombra desse santuário, ela logo se sente em casa.
Thankamma, curvando-se, infla as bochechas e sopra por um largo
tubo de metal para reavivar as brasas no aduppu. Das seis bocas de
tijolo do forno, quatro estão com panelas. Ela admira a velocidade com
que a cunhada se move apesar do peso, as mãos riscando o ar de tão
rápidas, ora alimentando com casca de coco seca a chama da panela
que frita cebolas, ora amainando brasas para que o arroz cozinhe em
fogo brando. Para a noiva, Thankamma serve café com leite e açúcar
mascavo. “Fiz puttu”, diz, retirando da fôrma de madeira um cilindro
esponjoso de arroz cozido no vapor, logo depositado no prato de folha
de bananeira. Para JoJo, ela esmaga o arroz com banana e mel. Já
esquentou a fritada de carne — erechi olarthiyathu — e o curry de
peixe picante — meen vevichathu — da noite anterior. “O peixe não
fica mais saboroso no dia seguinte? É a mágica dessa panela de barro!
Cuide dela e só use essa maravilha para fazer meen vevichathu,
entendeu? A cada ano seu curry vai ficar melhor. Se minha casa
pegasse fogo e eu tivesse de escolher entre meu marido e a panela de
barro… Bem, tudo que posso dizer é que a vida dele foi boa. Os curries
que farei na panela me consolarão na viuvez!”
A risada de Thankamma ressoa. A noiva senta de pernas cruzadas,
admirada, contemplando o primeiro café da manhã em Parambil: é
suntuoso, e mais nutritivo do que tudo que ela e a mãe comiam ao
longo de uma semana inteira.
“Seu marido comeu de pé, como sempre. Já se mandou para o
campo.”
Thankamma insiste que uma noiva não deve fazer nada além de se
permitir ser mimada. Ela tenta, mas vai contra sua natureza.
Observando os dedos da cunhada, procura memorizar os ingredientes
que eles acrescentam aos curries, porém é difícil quando há mais de
dois pratos sendo preparados ao mesmo tempo. Aquelas mãos parecem
ter vida própria, pois a dona não lhes dá atenção alguma, tagarelando
sem parar. JoJo puxa a jovem esposa: orgulha-se de ser o guia dela,
levando-a para conhecer todos os cômodos, esquecendo que fez o
mesmo duas horas antes. A casa tem formato de L. Uma das ex­tre‐­
midades é a residência original, antiga, disposta sobre uma base elevada
e construída ao redor de uma casa-forte, ou ara, onde a riqueza da
família — di­nheiro, joias e arroz — é armazenada. O ara é flanqueado
por um quarto desabitado e uma grande despensa, ao lado da qual fica
a cozinha. Uma varanda estreita conecta tudo. Abaixo do ara há um
porão. O novo anexo da residência foi construído sobre um terreno
menos elevado, com um terraço largo e convidativo em seus três lados.
No interior, há uma sala de estar pouco usada e dois grandes quartos
adjacentes — o do marido e aquele onde ela, JoJo e Thankamma
dormem. Há, por fim, outro aposento, que serve de depósito.
Os cômodos velhos e os mais recentes circundam um muttam cuja
superfície é coberta de pedrinhas amarelas, douradas e brancas,
extraídas do leito do rio. Toda manhã uma pulayi, Sara, varre as folhas
secas, nivelando as pe­dri­­nhas e deixando no chão um desenho de
leque. É no muttam que se estendem esteiras para secar arroz cozido no
vapor, é lá que roupas pendem dos varais e Jojo brinca de bola.
Depois do almoço, a jovem esposa, JoJo e Thankamma tiram uma
bela soneca. O marido não, ele passa a maior parte do tempo no
campo, trabalhan­do na terra. Quando ela o avista nas plantações, ele
está sempre acompanhado de alguns pulayar, destacando-se deles pela
altura e porque, comparada à deles, sua pele parece clara. À noite,
Thankamma encerra os afazeres, e os três se sentam na brisa à entrada
da cozinha. A mulher conta inúmeras histórias, mimando a jovem
esposa e JoJo com guloseimas da despensa. Mais tarde ocorre à jovem
que as histórias de Thankamma são de certo modo educativas. Procura
rememorá-las à noite, ao se deitar, mas é nesse momento que a saudade
de casa lhe fere as entranhas, e todos os seus pensamentos se voltam
para o antigo lar. A afeição de Thankamma lhe lembra a mãe e acentua
sua tristeza. Só se permite chorar quando tem certeza de que todos
dormem.

Na segunda manhã na casa, quando ouvem o grito da vendedora de


peixe ao longe, Thankamma pede à noiva que vá chamá-la. Cinco
minutos depois a mulher está na porta da cozinha, cheirando a rio.
Thankamma a ajuda a apear a cesta pesada que leva sobre a cabeça.
“Aah, essa é a noiva!”, diz a vendedora, espanando escamas dos
antebraços e se acocorando. “Hoje trouxe mathi especial só para ela.” E
retira o pano que cobre a cesta como se ocultasse joias preciosas.
Thankamma cheira e aperta uma sardinha, e a devolve ao cesto com
as outras. “Só para a noiva, é? Então fique com ele, se é tão especial. O
que tem debaixo desse pano? Ah! Vejam só. Para quem é esse outro
mathi? Há outro casamento e não estou sabendo? Me dê aqui. E não
reclame!”
No dia seguinte, a noiva vê o pulayan Shamuel cruzando o muttam;
o corpo dele se curva sob o peso de uma pilha de cocos numa grande
cesta. Thankamma o descrevera como o capataz de Parambil, sombra
constante do noivo; Sara, que varre o muttam, é sua mulher. Segundo a
cunhada, a família de Shamuel trabalha para eles há gerações; é
provável que seus ancestrais tenham sido servos da família nos tempos
antigos, até a abolição da prática. Os pulayar são a casta mais inferior
em Travancore e raramente possuem propriedades, já que até suas
cabanas pertencem ao proprietário das terras; só de avistar um deles um
brâmane já fica poluído e deve tomar um banho ritualístico.
Sob o peso da cesta, o pescoço e os músculos do braço de Shamuel
são como cabos tensos num tronco pequeno e compacto. Seu peito nu
se agita, as costelas parecem mais fora do que dentro da pele; seu corpo
não tem pelos, com exceção da barbicha nas faces, do bigode e do
cabelo aparado, grisalho nas laterais. Parece ter a idade do noivo da
menina, embora Thankamma diga que ele é mais jovem.
Quando Shamuel a vê, um grande sorriso transforma seu semblante;
as maçãs do rosto brilham como montículos polidos de ébano, os
dentes brancos e alinhados sublinham seus belos traços. Há algo de
infantil na empolgação com que saúda a jovem esposa. “Aah!”, ele diz
— mas primeiro há uma questão prática a tratar: “Molay, pode pedir a
chechi Thankamma para vir até aqui? Esta cesta é um pouquinho
pesada para você me ajudar”.
Quando Thankamma chega e o ajuda a depositar a cesta no chão,
ele retira o thorthu que estava enrolado no topo da sua cabeça, sacode-o
e enxuga o rosto, sem que o sorriso ou os olhos deixem a jovem esposa.
“Tem mais a caminho. Passamos a manhã inteira escalando, o
thamb’ran e eu.” Ele aponta e ela vê o esposo ao longe, de braços
cruzados, trepado num coqueiro torto, em uma parte do tronco quase
horizontal. Suas pernas balançam livremente, e ele parece perdido em
pensamentos. A visão causa arrepios na menina, que tem medo de
altura. Não consegue imaginar um fazendeiro arriscando a vida assim
quando há os pulayar para fazer aquele tipo de trabalho.
“Como deixa o thamb’ran subir ali logo depois do casamento?”,
Than­kamma finge indignação. “Diga a verdade — se ele sobe, metade
do seu trabalho está feita.”
“Aah, pois tente impedir. Ele é como o pequeno thamb’ran aqui”,
diz, afagando a barriga de JoJo. “Mais feliz no céu do que na terra.”
JoJo fica contente por ser chamado de senhorzinho.
O peito nu de Shamuel está salpicado de cascas. Ainda sorrindo para
a esposa do thamb’ran, dobra meticulosamente seu thorthu xadrez azul
e o dispõe no ombro esquerdo. Tímida, ela abaixa os olhos ao notar o
dedão do pé direito dele: deformado, plano como uma moeda e sem
unha.
Thankamma diz: “Aah, Shamuel, por favor, abra três cocos pra
gente. Depois, limpe-se e venha comer algo. Sua nova patroa vai servir
você”.
Shamuel tem um prato de barro só seu que fica pendurado num
prego sob o beiral nos fundos da cozinha — e é lá onde ele come, nos
degraus. Os pulayar nunca entram na casa principal. Sara cozinha para
ele na casa deles, mas uma refeição ali poupa seu estoque de arroz.
Enxágua o prato, enche-o de água e bebe, depois se agacha no degrau.
A noiva lhe serve kanji — sopa de arroz — com um pedaço de peixe e
limão em conserva.
“Está gostando daqui?”, Shamuel pergunta, uma bela bolota de arroz
estufando-lhe a bochecha. Tímida, ela para diante dele e faz que sim
com a cabeça. O dedo traça distraidamente a letra ആ, a primeira de
“ãna”, ou “elefante”, uma letra que lhe parece semelhante ao animal.
“Eu era mais novo do que você quando cheguei a Parambil. Era um
menininho, sabe?”, diz. “Antes mesmo de existir uma casa por aqui.
Tive medo de ser pisoteado. Uma casa protege você. O segredo é o
telhado, sabe? Por que acha que sempre construímos eles assim?”
Aos olhos dela, o telhado era igual a qualquer outro. Apenas a
empena frontal — o rosto da casa, com padrão vazado talhado na
madeira — é única em cada residência. De resto, como em toda casa,
os beirais de palha se prolongam e se dobram, como se o telhado
pretendesse engolir a habitação. Shamuel lhe aponta. “Quando as vigas
se projetam dessa forma, os elefantes ficam sem superfície plana e não
podem encostar nelas nem empurrar elas.” Assim como JoJo, sente
orgulho ao instruí-la. Ela o olha com simpatia.
“O elefante veio me cumprimentar na primeira noite”, conta a
jovem esposa, numa voz miúda.
“Veio? Damodaran!”, Shamuel diz, rindo e balançando a cabeça.
“Aquele camarada faz o que quer. Eu estava quase dormindo quando
senti o chão tremendo. Sabia que era ele. Saí, e lá estava Unni
montado nele, lamentando-se porque Damo escolheu voltar da
madeireira depois de ter escurecido. Aah, mas Unni até que não
reclamou. Sempre que Damo está aqui ele ganha uma noite livre e vai
para casa encontrar a esposa. E o thamb’ran dorme ao lado de Damo.
Eles conversam.”
Cuidar de um elefante, ela ouviu dizer, é caro. Não só pelo salário
de Unni, que deve ser o cornaca, mas também pelo custo da
alimentação do animal.
“Damodaran é nosso?”
“Nosso? O sol é nosso, por acaso?” Shamuel, como um professor,
espera que ela negue com a cabeça. “Aah, aah, tal como o sol,
Damodaran é seu próprio chefe. Brinco com Unni dizendo que Damo
é o verdadeiro cornaca, ainda que deixe que Unni monte ele e pense
que o conduz. Ninguém te contou de Damo? Aah, então Shamuel
conta. Certa vez, muito antes de existir esta casa, quando o thamb’ran e
meu pai dormiam ao relento, eles ouviram urros terríveis. Trombetas.
O chão tremia! O som das árvores se partindo parecia um trovão. Meu
pai achou que fosse o fim do mundo. Ao amanhecer, encontraram
Damodaran logo ali, deitado de lado, sem um olho, sangrando e com
uma presa cravada entre as costelas. O elefante macho adulto que o
atacou devia estar no período de must. O thamb’ran amarrou uma
corda à presa e, tomando a devida distância, puxou. Você viu a presa?
Está no quarto dele. Damodaran berrou de dor. Bolhas e sangue
verteram da ferida. Tham­­b­’ran, corajoso que só ele, subiu em Damo e
cobriu a ferida com folhas e lama. Ele derramava água devagarinho na
boca de Damodaran e, dia e noite, sentava para conversar com ele.
Segundo meu pai, disse mais coisas a Damo do que a todas as pessoas
que já cruzaram a vida dele. Passados três dias, Damodaran levantou.
Uma semana depois, foi embora.
“Alguns dias depois, o thamb’ran e meu pai cortaram uma grande
árvore de teca e estavam tentando arrastar ela até a clareira. De
repente, Damodaran surgiu da floresta e empurrou o tronco para eles.
Elefantes gostam de trabalhar. Damodaran aprendeu direitinho. Agora
trabalha nas florestas de teca com os madeireiros, mas só quando tem
vontade. Às vezes passa por aqui. Acho que veio conhecer a nova esposa
do thamb’ran.”

Sob a orientação da cunhada, aos poucos ela vai se adaptando à nova


vida em Parambil. Com o passar dos dias, sente cada vez mais longe o
lar que deixou para trás, o que só aumenta a saudade, pois ela não quer
esquecê-lo. Depois do café da manhã, Thankamma diz: “Hoje pensei
que podíamos fazer halwa de jaca juntas. Pois JoJo e eu estamos com
vontade de comer!”. JoJo bate palma. “Molay, a doçura da vida só é
garantida em duas coisas: no amor e no açúcar. Se faltar o primeiro,
sirva-se do segundo!” Ela já ferveu pedaços da fruta e agora os esmaga
com açúcar mascavo derretido. “Um segredo: ao amassar a jaca, feche
os olhos e pense em alguma coisa que você quer do seu marido.”
Thankamma cerra bem os olhos, sorrindo do esforço e exibindo o vão
entre os dentes da frente. “Então uma pitada de cardamomo, sal e uma
colherinha de chá de ghee. Pronto! Agora precisa esfriar. Prove. Não é
maravilhoso?” Ela abaixa a voz: “Falo sério, molay. Essa é a chave para
um casamento feliz. Faça um pedido, depois alimente seu esposo com
essa halwa. Seu desejo será satisfeito!”.
O orgulho que sente ao entrar no ritmo da casa e preparar alguns
pratos sob o olhar vigilante de Thankamma é solapado pela consciência
de que a outra logo terá de partir. Quando a cunhada celebra seu curry
de galinha, enche-se de alegria, porém no momento seguinte agarra-se
a ela e afunda o rosto naquele ombro roliço para esconder as lágrimas.
Fique, por favor! Nunca vá embora! Mas ela já a ama demais para dizê-
lo. Thankamma tem sua casa, um marido à espera. A menina
murmura: “Nunca esquecerei sua bondade. Como poderei te
agradecer?”. “Aah, quando tiver uma nora, trate-a como uma joia. É
assim que você pode me agradecer.”

Na véspera da partida, Thankamma sai da cozinha e olha para o sol,


que está exatamente acima da sua cabeça. “Molay, corte uma folha de
bananeira para enrolar o almoço de seu marido. Deixe que ele prove
seu thoran de feijão e também o mathi que fritamos. Ponha bastante
arroz. Com certeza ele está zanzando por aí com Shamuel, sempre
cuidando da propriedade. Vê aquela palmeira? Depois ele ficará por
ali.” A noiva, obediente, despeja a comida sobre a folha de bananeira e
amarra tudo com um barbante; na sequência, pega um pequeno
recipiente de latão com água jeera — água fervida com sementes de
cominho — e sai. Naquela manhã descobre que não existe papel nem
caneta em Parambil. Sua esperança de anotar algumas das receitas de
Thankamma cai por terra. E se ela se esquecer delas?
A trilha é ladeada por uma grama alta que bate em seu ombro;
Thankamma conta que certa vez a vegetação cresceu tanto que nem
Deus nem a luz conseguiam penetrá-la; além disso, estava povoada de
escorpiões, cobras, ratos gigantes e centopeias que picam. “Que hindu
ou cristão seria louco o sufi­ciente para tentar se estabelecer aqui?”,
Thankamma pergunta. “Seu marido veio para cá depois que nosso
irmão mais velho lhe roubou a casa da família, fazendo com que ele
rubricasse um papel.” O pai de Shamuel, o pulayan Yohannan, veio
junto, considerando um dever servir ao herdeiro por direito; mais tarde
trouxe a esposa e o filho. Os dois homens construíram um abrigo
rústico. “Consegue imaginar meu irmão dormindo sob o mesmo teto
que seus pulayar? Comendo com eles? Todas as barreiras de casta
desaparecem quando se entra no inferno. Só os santos mantiveram
vivos aqueles dois. Na primeira semana um tigre levou a única cabra
deles. Tinham febre quase todo dia. Mas cavaram, drenaram o brejo e
nunca pararam de roçar a terra. Molay, estou te contando isso não só
porque sinto orgulho do meu irmão caçula, mas para que você saiba
que ele não é igual aos outros. Yohannan era um pai para ele. E, da
mesma forma, Shamuel estará ao lado de seu esposo e família pela vida
inteira.” Thankamma contou que o irmão atraiu um habilidoso
thachan hindu e um ferreiro, oferecendo-lhes terrenos desmatados e
garantindo que as cabanas dos pulayar ficariam na parte baixa do rio,
de tal forma que os artesãos não poderiam reclamar de poluição ritual.
O ceramista, o ourives e o pedreiro vieram mais tarde. Assim que a casa
foi construída, seu marido deu lotes de alguns hectares para vários
parentes. Depois de cultivar o solo e vender a colheita, esses familiares
poderiam comprar mais terra dele se quisessem. “Entende o que digo,
molay? Seu marido deu a terra! Eles podem deixar essa terra para os
filhos. Ele queria que a região prosperasse. E ainda não se deu por
vencido. Quem sabe na próxima visita não encontro uma estrada bem-
feita, armazéns, uma escola?”
“Uma igreja?”, a menina sugeriu, mas Thankamma não respondeu.

A jovem esposa encontra o marido mirando a copa de uma árvore


com o peito nu salpicado de lascas de madeira, um vettukathi afiado
pendendo da cintura e a podadeira apontando para trás. Ele se
surpreende ao vê-la. Pega a comida. “Essa Thankamma!” O sorriso está
na voz, não no rosto. Senta-se, descansando as costas numa árvore, mas
antes estende o thortu para que a jovem esposa também se acomode.
Devora o almoço, e ela não diz uma pala­vra. Fica admirada ao se dar
conta de que a timidez dele ombreia-se com a sua.
Quando termina de comer, ele se levanta e diz: “Volto com você”.
Ela escuta gritos e risadas. Ao longe, à esquerda, um tronco se
estende sobre um riacho que ela não tinha visto antes. Na outra
margem, numa clarei­ra, há uma grande pedra de descanso. Essas
estruturas assomam como monumentos primitivos ao longo das trilhas
conhecidas, facilitando a vida dos viajantes. A menina vê um jovem
empurrar e balançar a viga horizontal da pedra de descanso, estimulado
por dois amigos. Os três têm marcas de pasta de sândalo na testa.
Aquele que empurra é forte e tem a cabeça raspada, exceto pelo tufo
trançado na parte frontal. A viga cai do suporte e desaba no chão,
erguendo uma nuvem de poeira vermelha. O rosto do desgraçado se
enche de orgulho e excitação.
Ela imagina Shamuel voltando do moinho, equilibrando um saco
pesado de arroz na cabeça, antevendo a pedra de descanso onde, ao
flexionar um pou­co os joelhos, poderá pousar seu fardo. Agora será
forçado a seguir caminho ou então largar o saco e esperar que alguém
apareça para ajudá-lo a reposicioná-lo sobre a cabeça. Numa terra onde
quase tudo é transportado dessa maneira, na qual com frequência as
estradas se inundam ou são esburacadas demais para carroças, e onde
apenas as trilhas são confiáveis, uma estação de repouso como aquela é
uma bênção.
Os jovens avistam o casal e se calam. Parecem bem nutridos, gente
que nunca precisou carregar peso ou se valer de uma pedra de
descanso. Pelas roupas e pelo aspecto, ela desconfia que sejam naires.
Uma grande família naire vive ao longo do extremo oeste de Parambil.
Os naires são uma casta de guerreiros, empregados por gerações de
marajás de Travancore na proteção contra invasores. Um amigo naire
de seu pai tinha a aparência típica, com um grande bigode
complementando o físico forte. Sob a lei britânica, o marajá passou a
contar com a segurança estrangeira e não necessitava mais do exército
naire. O amigo do pai ficou contrariado. “Como ele pode crer que
governa Travancore? Ele não passa de um mero títere que dá nossos
impostos de mãos beijadas para a Coroa britânica. Os ingleses
‘protegem’ ele do quê? O inimigo já não cruzou nossos muros?”

Seu marido dá um nó simples no mundu, expondo os joelhos ao


caminhar até o tronco que serve de ponte no riacho. Cruza-o com
extrema cautela. Os jovens acham graça, mas vão se acautelando à
medida que aquele elefante mais velho se aproxima. O estômago da
noiva se contrai. Para seu espanto, o esposo os ignora e se agacha para
pegar a pedra. “Então você é forte o bastante para derrubar a pedra.
Quero ver se é forte o bastante para acomodar ela de volta.”
“Por que você mesmo não faz isso?”, pergunta o garoto, rindo, mas
com a voz meio trêmula.
Seu marido agarra uma extremidade da viga caída, ergue-a à altura
da cintura e a põe de pé. Em seguida, deixa que ela se escore em seu
ombro, onde ela oscila como uma gangorra. Então ele primeiro
manobra uma extremidade e depois a outra, e repõe a viga no topo dos
pilares verticais. Suas coxas trêmulas são como troncos de árvore, os
músculos de seu pescoço, cordas grossas. Apoia-se na viga restaurada
para recuperar o fôlego. Em seguida, com um empurrão repentino,
derruba-a do suporte. A viga tomba no chão e rola na direção dos
jovens, que são obrigados a saltar para trás. Erguendo as sobrancelhas,
ele desafia o jovem rival. Sua vez.
Um estranho silêncio paira sobre a clareira, como água suspensa no
ar. Por fim, o marido lhe diz: “Eles não são homens, só estão vestidos de
homem. Quando o pai desse garoto e eu pusemos aí essa pedra, ele
nem tinha nascido. Agora, na velhice, o naire Kuttappan precisa
remediar o estrago de suas crias, mas ele ainda é capaz de erguer essa
pedra como se fosse um palito de dente”. Dá as costas aos garotos e vai
embora.
O tufo de cabelo trançado cai para a frente quando o jovem se curva
e tenta erguer a pedra, as veias na testa pulando como cobras. Quando
a põe de pé, entre mil caretas, os músculos falham e os amigos o
acodem para que não termine esmagado. Ao tentar recliná-la com
cuidado sobre o ombro, a pedra balança, claudicante. Os três
conseguem repor a viga em seu lugar original, mas parecem exauridos
e machucados, e o ombro do mais alto sangra. O marido da menina
não vê nada daquilo, e, no momento em que alcança a esposa, seu
rosto, inchado de raiva, a enche de medo. Com um rápido inclinar de
cabeça, ele agradece o almoço e lhe diz que precisa retomar o trabalho.
Ela corre para casa.

Thankamma vê a expressão em seu rosto e lhe pede que se sente.


“Aqueles garotos tiveram sorte, pois ele se controlou”, ela diz, depois de
ouvir o que aconteceu. Suas palavras não são muito reconfortantes, e o
copo d’água nas mãos da noiva treme. “Molay, não se preocupe. Ele
nunca ficará com raiva sem razão. Sobretudo com você. Ele jamais te
trataria mal.” Thankamma a abraça. “Sei que tudo isso é novo e
assustador. Quando casei, meu marido e eu tínhamos dez anos. Ele era
uma peste. A gente se ignorava. Éramos apenas crianças numa grande
casa com muitas outras crianças. Todos os meninos eram malvados.
Uma vez vi meu marido-menino sentado num tronco olhando o rio.
Eu me aproximei em silêncio e o empurrei na água.” Sua risada é
contagiosa, a noiva sorri. “Ele tem prazer em lembrar desse dia até
hoje! Sim, a gente não se gostava. Mas, veja, as coisas mudam. Não se
preocupe.” Than­kamma a encara e acrescenta, com franqueza: “O que
estou tentando dizer é que meu irmão é como um coco. A parte mais
dura é a externa. Você é a esposa dele, e ele se importa com você, tal
como Thankamma se importa. En­tende?” Ela tenta compreender.
Thankamma, que nunca fica sem palavras, dessa vez parece sem jeito
dizendo aquelas coisas. “Não há nada que você precise fazer. Não se
preocupe. Tudo tem seu tempo.”
5. A vida doméstica

parambil, 1900

Com a partida de Thankamma, o silêncio paira sobre a casa, um


sentimento de estar debaixo d’água, onde a luz mal consegue penetrar.
JoJo, inquieto, não perde de vista a madrasta; mesmo dormindo, seus
dedinhos se entrelaçam aos cabelos dela. Na primeira noite sozinhos,
ela fica acordada, não por causa do ronco do marido no quarto ao lado,
mas porque nunca dormiu sem um adulto por perto. O ronco, embora
distante, é reconfortante e de vez em quando é pontuado por uma
tosse, depois por um resmungo, como se alguém provocasse um tigre
sonolento. Ele fala dormindo, diz mais do que tem dito desde que ela
chegou. Vendo-o tão brincalhão com Damodaran, que par­tiu tão
misteriosamente quanto chegou, ela entende que há nele alguma coisa
infantil. Ainda assim, só ousa lhe dirigir a palavra para informar que o
jantar está pronto.
Várias vezes durante o dia Shamuel vem perguntar se ela precisa de
alguma coisa; quando diz que não, ele fica desapontado. Ela se comove
com essa preocupação.
“Shamuel, preciso de umas coisas.”
“Ooh-aah, pode dizer!”
“Papel, envelope e uma caneta para escrever à minha mãe.”
O sorriso prestativo no rosto dele desaparece. “Aah.” Ele claramente
não tem experiência com aqueles artigos. Ainda assim, surpreende-a
quando retorna do mercado e com orgulho retira todos os itens do saco
que traz sobre a cabeça: envelopes, papel e caneta.

Minha querida Ammachi,


Que esta carta a encontre com boa saúde. Thankamma esteve aqui
por todo esse tempo. Eu tenho me saído bem. Cozinho vários pratos.

Pouco depois da morte do marido, a mãe perdeu o domínio sobre a


cozinha; a menina lamentava que ela não lhe tivesse ensinado a
cozinhar antes do casamento.

Agora somos só JoJo e eu. Ele é minha sombra. Sem ele, acho que
sentiria ainda mais sua falta. JoJo só me dá trabalho na hora do
banho.

Na primeira tentativa, JoJo lutou. Quando ela derramou água sobre a


ca­beça do menino, ele ficou pálido, as pálpebras tremelicaram como
asas de mariposa, os olhos reviravam. Ela se assustou, pensou em
convulsão. Nunca mais lhe derramou água desse modo, recorrendo a
um pano molhado para o cabelo e o rosto. Ainda assim, é uma luta
diária. Agora ela entende que há uma guerra entre os homens de
Parambil e as águas de Travancore, mas não compartilha isso com sua
pobre mãe. Será que ela já sabe?

Como posso ser uma dona de casa melhor?


Sente vontade de apagar aquela frase, pois a mãe já não é a dona da
casa. Suas provações na família começaram tão logo ela se tornou
viúva; o cunhado e a cunhada mudaram de atitude. Agora a mãe da
menina provavelmen­te dor­me na varanda, tratada como empregada.
Enquanto isso, em Parambil, sua filha não carece de nada; os grãos
ameaçam transbordar do ara, não falta moeda no cofre.

Ao rezar à noite, digo a mim mesma: “Minha Ammachi também está


rezando neste exato momento”. Assim me sinto próxima de você. Sinto
tanta saudade, mas só choro à noite, quando JoJo não pode ver.
Queria ter trazido minha Bíblia. Não tem nenhuma aqui. Sei que
Parambil fica bem longe, mas, por favor, Ammachi, venha me visitar.
Venha passar algumas noites. Meu marido não gosta de viajar de
barco. Se você não puder vir, talvez eu tente ir. Terei de levar JoJo…

Ela pensa na mãe lendo aquelas palavras, molhando a página com


lágrimas, depois a imagina dobrando o papel sob o travesseiro e
guardando a carta preciosa junto com as poucas posses dentro do saco
de dormir. Em seus pensamentos, ela logo vê certa mão — a da tia —
fuçando o saco de dormir, enquanto a mãe toma banho. É o que a
impede de perguntar se a mãe anda comendo melhor agora que há
uma boca a menos. Parte dela quer que aqueles olhos bisbilhoteiros
leiam aquelas palavras e reconheçam a injustiça dentro de suas almas.
Mas isso só tornaria as coisas ainda mais difíceis para sua mãe.
A resposta chega depois de três semanas pelo achen que realizou o
casamento e que viaja ao escritório da diocese em Kottayam a cada
quinze dias; ali ele envia e recolhe as cartas. Um garoto entrega a ela a
missiva, em casa. Na carta, a mãe cobre-a de amor e beijos e se diz
orgulhosa ao imaginar a filha assumindo o papel de dona de casa graças
ao treinamento de Thankamma. Ao despedir-se, ela dissuade a filha
fortemente de qualquer visita, sem dar explicações, o que é nada
característico dela. Também não responde ao pedido apaixonado da
visita a Parambil. A carta só a deixa mais preocupada em relação ao
bem-estar de sua Ammachi.

As homilias de Thankamma disparam em sua mente, como tranças


que se desfazem. A camada inferior de um cacho de banana sempre tem
um número par, a de cima é ímpar. Se alguém tentasse surrupiar uma
banana, Than­kamma saberia; para manter o padrão, teriam de remover
uma banana de cada camada, e o furto ia se tornar óbvio. Mas, de todo
modo, quem roubaria? Seja atenta — essa era a lição da cunhada.
Naquela manhã, contudo, ela não consegue. Ignora o cacarejo urgente
de uma galinha e suas excursões insistentes à cozinha, enxotando-a.
“Ela vai botar um ovo, Ammachi!”, JoJo diz.
JoJo acabou de chamá-la de “Ammachi”? Mãezinha? Seu peito se
enche de orgulho. Abraça-o. “O que eu faria sem você, homenzinho?”
Ela captura a galinha e a deposita sobre um saco na despensa,
cobrindo-a com uma cesta de vime. A ave se agita no escuro,
indignada. “Me perdoe. Assim que você terminar, eu te liberto,
prometo.”
As visitas são poucas. Ela se sente muito sozinha. Sonha com a mãe
chegando de barco, de surpresa; evoca essa imagem com tanta
frequência que se vê lançando olhares para o rio várias vezes por dia.
As únicas visitas de fato foram de Georgie e Dolly. Vieram ver Than‐­
kamma, e apenas uma vez. Georgie é filho do irmão de seu marido, o
que lhe roubou a herança. A casa deles fica perto de Parambil, ao sul,
num terreno de oito mil metros quadrados, presente de seu esposo ao
sobrinho, pois no fim das contas o irmão mais velho morreu na
indigência, deixando apenas dívidas para Georgie e seu irmão gêmeo.
Ela gostou de Dolly Kochamma logo de cara. (Como Dolly é pelo
menos cinco anos mais velha, kochamma é como a jovem esposa se
dirige a ela, um tratamento carinhoso que significa algo como
“mãezinha”.) Dolly é bonita, com olhos grandes e escuros, uma
mulher silenciosa que não se sente nada pressionada a falar e tem uma
paciência de santa. Georgie é gregário e animado, e a jovem esposa se
surpreende ao vê-lo juntar-se de modo alegre às mulheres na cozinha,
movimento que seu marido jamais faria. Ela se pergunta por que ele
teria socorrido generosamente o sobrinho, tendo tão pouco em comum
com ele. Shamuel diz que Georgie não é um grande fazendeiro, não é
como o thamb’ran, mas é que para ele ninguém estará à altura do
patrão. Talvez Georgie não se sinta digno do tio.

JoJo só perde de vista sua “Ammachi” quando ela vai se banhar no


riacho ou mergulhar perto do cais, atividade que ela adora. Ele espera
ansiosamente pelo seu retorno. Para JoJo, qualquer tipo de banho
continua a ser uma batalha diária. A jovem esposa ama seu cantinho no
rio, no ponto em que a ribeira se alarga, formando uma piscina de água
tão lenta e límpida que ela pode ver os peixinhos, mas também funda o
suficiente para que seus dedos mal toquem a terra. Nas margens, as
pedras onde se lava roupa jazem à sombra de um rambutão, cujos
frutos vermelhos e peludos pendem como enfeites.

É época de manga em Parambil. O pulayan Shamuel e seus


ajudantes trazem cestos e mais cestos que se amontoam no átrio do
lado de fora da cozinha. Mesmo depois que sacos inteiros são enviados
para as cabanas dos pu­layar, para os artesãos e os parentes, ainda
sobram as mangas. A variedade doce e carnuda que chega em tons de
amarelo, laranja e rosa enche a cozinha de um aroma frutado. O
queixo de JoJo se lambuza no sumo que escorre. A jovem esposa extrai
o máximo de polpa para geleias e xaropes. Com o restante, prepara
thera. Primeiro, ela cozinha a polpa com açúcar e farinha de arroz
torrada, depois espalha essa pasta numa esteira larga como uma porta e
a estende ao sol. JoJo se encarrega de espantar os pássaros e insetos.
Assim que a primeira leva da massa seca, ela vai acrescentando outras
camadas, sempre esperando a secagem da anterior; repete o processo
até que a pasta alcance dois centímetros de espessura e possa ser
cortada em tiras. Alegra-se ao ver o esposo levar um naco de thera para
mascar no trabalho depois do café da ma­nhã e do almoço.
Como mimo para JoJo, ela talha uma manga verde à semelhança de
uma flor de lótus — truque ensinado por sua mãe — e salpica-a com
sal e pimenta-vermelha. JoJo devora cada bocado salgado e picante,
depois zanza pela casa puxando ar pelos lábios franzidos, a boca
pegando fogo, mas sempre implorando por mais.
O ara, aquele cômodo central, sem janelas, da parte velha da casa,
funciona como uma fortaleza. Sua porta de uma única folha, três vezes
mais grossa do que uma porta comum, é trancada por um cadeado
enorme de cuja chave a menina é a guardiã. A soleira é tão alta (para
conter o arroz no interior) que, embora não passe de um degrau alto
para o marido, a jovem esposa é obrigada a escalá-la. No cômodo, seus
pés afundam nos grãos que lhe batem nos joelhos. Abre o ara no
mínimo uma vez por semana para retirar dinheiro e, com menos
frequência, para pegar arroz ou armazená-lo.
Debaixo do ara, e acessível por uma escadinha que parte do quarto
adjacente sem uso, há um porão escuro e mofado onde ela guarda
conservas em grandes jarros de porcelana. Raios de luz, delgados como
lâminas, penetram pela grade de ventilação talhada na madeira. Toda
casa tem seus fantasmas, internos e externos, e os de Parambil ainda lhe
são novos. Ela decide conversar com aquele do porão, pois tem fortes
suspeitas de que seja viciado em doces. Pressente o fantasma no
cantinho, por trás das teias de aranha, um espírito gentil e triste, talvez
amedrontado, mais receoso que ela. “Pode se servir do que quiser. Não
me incomodo, mas depois aperte bem a tampa”, ela diz, pondo-se
corajosamente de pé à frente dele. Queria acrescentar: “Por favor, não
tente me atazanar”, porém logo ouve a voz indignada de JoJo:
“Ammachi, cadê você? Quando brincamos de esconde-esconde, você
precisa se esconder num lugar em que eu consiga te ver, senão não é
justo!”. Ela não consegue segurar o riso. Uma súbita leveza no ar
abafado do porão lhe diz que o fantasma também ri. Ao sair do porão,
ela se pergunta se o espírito seria a falecida mãe de JoJo.

Assim que chega a monção e as nuvens se abrem, a jovem esposa fica


extasiada. Na casa do pai, ela e a prima passavam óleo no cabelo e
corriam para a chuva com sabão e esfoliante de fibra de coco,
deliciando-se na cachoeira divina. Sonhavam com a monção como
sonhavam com o Natal, época em que corpo e alma eram purificados.
A poeira e os casulos de insetos colados aos talos das plantas eram
varridos pela água, deixando um brilho cintilante nas folhas. Sem a
monção, essa terra, cuja bandeira é verde e cuja moeda é a água,
cessaria de existir. Quando as pessoas reclamam das inundações, dos
surtos de gota e do reumatismo, fazem-no com um sorriso no rosto.
A chuva nunca incomoda. A sombrinha da jovem esposa se
transforma numa auréola que sempre a segue, seus pés descalços
pisoteando poças alegremente. Shamuel faz um chapéu de casca de
palmeira que permite que a água deslize por sua cabeça. Para seu
espanto, porém, ela descobre que a chu­va confina o marido, mas não
tem coragem de investigar o motivo. Aos poucos se acostuma a vê-lo
sentado na varanda por horas a fio, quando não o dia inteiro, como
uma criança de castigo, subjugado, resmungando com as nuvens, como
se isso pudesse convencê-las a mudar de rumo. Como companhia, ele
tem JoJo, pois o garoto é como ele. Certa vez, um temporal inesperado
pegou de surpresa o esposo, que estava sem guarda-chuva, perto de
casa; as gotas pareciam confundi-lo, suas pernas bambeando na corrida
em busca de abrigo, como se fossem pedras, e não água, que caíam
sobre sua cabeça. Outra noite ela o vê ao pé do poço, ensaboando e
enxaguando o corpo por partes. Ele não a vê nem a escuta; ela tem
vontade de correr, mas fica mesmerizada pela visão daquele corpo. É
tomada por emoções: a culpa de espioná-lo; uma vontade terrível de
rir; embaraço, como se fosse ela quem esti­ves­se nua; e o fascínio pela
imagem do esposo revelada por inteiro. Ele nunca lhe pareceu mais
forte e amedrontador, ainda que esse banho fragmentado lhe
emprestasse um toque infantil. Há uma facilidade e uma elegância
experientes em sua mesquinha relação com a água, mas lhe falta prazer
nos movimentos.

Toda manhã, quando ela reaviva as cinzas do forno, a cozinha lhe dá


as boas-vindas como uma irmã sem segredos, e isso a deixa feliz. Ela
agora crê que tudo tenha a ver com a presença benevolente da mãe de
JoJo. O porão pode ser o reduto preferido do fantasma, o lugar onde o
que é amorfo mais se aproxima de adquirir forma física, mas seu
espírito também paira por aqui, atraído pelo crepitar do fogo no
braseiro ou pela voz de seu filho conversando com a nova Ammachi.
De que outra forma os pratos que a jovem esposa prepara sairiam tão
saborosos, visto que as receitas de Thankamma estão fatalmente
embaralhadas em sua cabeça? Ela não pode dar todo o crédito às
experientes panelas de barro. Não, está sendo recompensada por cuidar
tão amorosamente de JoJo. Seja como for, sente-se integrada ao ritmo
da casa e confiante de que a administra bem.
6. Casais

parambil, 1903

Nos três anos desde sua chegada, ela transformou o corredor coberto
do lado de fora da cozinha em seu espaço pessoal; pôs ali uma cama de
corda em que ela e Jojo cochilam depois do almoço e na qual ela
ensina as primeiras letras ao menino de cinco anos. É o ponto
estratégico de onde ela pode observar as panelas no forno e o arroz
secando nas esteiras do muttam. Enquanto JoJo dorme, senta-se na
cama, relendo o único material impresso da casa: uma velha edição do
Manorama. Não consegue se desfazer daquele jornal. Se o fizer, não
haverá mais nada, nenhuma palavra na qual seus olhos possam
repousar. Cansada de se martirizar por não ter trazido uma Bíblia,
dirige sua irritação à mãe de Jojo. Como pode uma morada cristã sem
o Livro Sagrado?
JoJo está acordando quando Shamuel volta com as compras, as
mercadorias balançando sobre sua cabeça. Ele se acocora diante dela e
retira os itens do saco, que logo dobra e guarda. Shamuel enxuga o
rosto com o thorthu e repara no jornal. “O que diz?”, pergunta,
apontando com o queixo enquanto estica o thortu e o dobra sobre o
ombro.
“Você acha que algo novo se meteu aqui dentro desde a última vez
que o li para você, Shamuel?”
“Aah, aah”, ele responde. As sobrancelhas grisalhas emolduram
olhos que, como os de uma criança, não conseguem ocultar a
decepção.

Na semana seguinte, quando Shamuel volta do armazém e esvazia o


saco, ele lista os itens como de costume: “Fósforos. Óleo de coco, dois.
Melão-de-são-caetano, três. Alho, quatro. Malayala Manorama…”.
Mostra o jornal como se fosse um legume e mal consegue esconder o
deleite tão logo ela o agarra, eufórica. “Virá toda semana”, ele diz, feliz
por tê-la agradado. Ela sabe que só seu marido poderia ter pensado
nisso.
Mais tarde, avista o esposo não muito longe de casa, porém a três
metros de altura, sentado numa bifurcação da plavu, ou jaqueira, as
costas contra o tronco, as pernas esticadas ao longo do galho e um
palito de dente no canto da boca. Ela fica tentada a brandir o jornal
para lhe agradecer. Ainda se admira de sua preferência por esses
poleiros em vez de apoiar as pernas nos braços da charu kasera; a
cadeira do marido foi feita sob medida, e no entanto jaz desocupada na
varanda. Ela o observa lá em cima; seu perfil é bonito, pensa. Um
pulayan grita alguma coisa e, sem que ela o veja, diz algo que faz o
marido remover o palito da boca e sorrir, revelando dentes fortes e
uniformes. Você deveria sorrir mais, ela pensa. Ele boceja e se alonga,
acomodando-se, e nisso o estômago dela congela. Uma queda, mesmo
de altura tão modesta, seria devastadora. Sempre que o avista no alto de
uma árvore — ele, uma protuberância excêntrica maculando a lisura
do tronco —, ela mal consegue olhar. Shamuel diz que é daquela
perspectiva que ele estuda o terreno, planeja a direção dos diques de
irrigação ou os novos campos de arroz.

À noite, depois que serve o jantar, ela lê o Manorama para o marido.


Ele nunca o abre. O jornal ilumina os dias da jovem esposa, mas não
ameniza a profunda solidão que ela tem vergonha de confessar.
Thankamma, que prometera retornar, escreve que o marido adoeceu e
está acamado, e ela precisa adiar a visita indefinidamente. Quanto à sua
mãe, três monções se passaram e as duas ainda não se reencontraram! A
mãe lhe diz para não visitá-la. Mesmo se quisesse, uma moça não faz
esse tipo de viagem sozinha. JoJo, que se apega a ela como um
bracelete, não se aproxima do cais por nada no mundo, o que dirá subir
num barco. Ela suspeita que o marido seja igual.
À noite, depois das preces de praxe, conversa com o Senhor. “Estou
tão feliz pelo jornal. Vê-se que meu marido se importa com aquilo de
que preciso. Devo mencionar a outra questão? Não quero reclamar,
mas, se esta é uma casa cristã, por que não vamos à igreja? Sei que já
disse isso antes, mas se pelo menos minha mãe viesse aqui e
pudéssemos conversar, eu não ia incomodar o Senhor.”
Talvez em resposta a suas preces incessantes, por fim lhe chega uma
carta da mãe depois de longos meses de silêncio. Shamuel passa na
igreja a caminho do moinho e volta animado, segurando a
correspondência com as duas mãos, pois sabe o quão preciosa é; sua
empolgação quase se iguala à da jovem esposa.

Minha querida filha, meu tesouro, como me aqueceu o coração ler sua
carta. Você não sabe quantas vezes eu a beijei. Seu primo Biji vai
casar. Vou à igreja todos os dias. Visito a sepultura de seu pai e rezo
por você. Minhas lembranças mais preciosas são dele e depois de você.
O que estou dizendo é: por favor, valorize cada dia de seu casamento.
Ser esposa, cuidar do marido, ter filhos: há algo mais valioso? Reze por
mim.

Nos dias seguintes, ela revisita a carta muitas vezes, beijando-a como
a um objeto sagrado. Não importa quanto a leia, sua preocupação não
diminui. Ela resiste à realidade da vida: uma mulher casada abre mão
do lar da infância para sempre, e o destino de uma viúva é permanecer
junto ao lar do esposo falecido.

O calendário na parede — extraído do jornal — parece uma tabela


matemática ou um quadro astronômico. Mostra as fases da lua e as
horas do dia desfavoráveis às viagens. Agora diz ser o começo do
Anpathu noyambu, o jejum de cinquenta dias que equivale à Quaresma
no rito ocidental, que culmina com a Páscoa. Na Sexta-Feira Santa ela
se abstém de carne, peixe e leite; no primeiro dia não come sequer um
grão.
Quando o marido senta para jantar naquela noite, ela dispõe sobre a
mesa a folha de bananeira recém-cortada e a água jeera. Alisa a folha e
repassa na mente as palavras que ensaiou. No momento em que abre a
boca para falar, o esposo esmaga o pecíolo da folha da bananeira com o
punho — crac-crac! —, assustando-a. Ele derrama a água jeera na
superfície verde espelhada, sacudindo o excesso na direção do muttam.
A oportunidade se foi. Em silêncio, ela serve o arroz, o picles, o iogurte.
Depois, aproxima-se com a carne; quer ver se ele a dispensará no
primeiro dia de jejum. Mas não, ele mal pode esperar por sua porção.
O que a fez pensar que esse ano seria diferente dos anteriores?
Nos dias que se seguem, nem carne nem peixe lhe passam pelos
lábios; ela sente falta de um jejum coletivo, mas a solidão só fortalece
sua deter­minação.
“Você deveria comer mais”, Shamuel comenta, no meio da Quares‐­­
ma. “Es­t á muito magra.” Que ousadia ele falar daquele jeito. “É o que
diz o thamb’ran. Ele está preocupado.” Ela se sente como as pessoas em
greve de fome retratadas no jornal, acampadas do lado de fora do
ministério: apequenando-se para ser vista.
“Se o thamb’ran pensa assim, ele deveria me dizer.”
Naquela noite, ela adia as preces e se demora com outras coisas. Por
fim, quando fica sonolenta, cobre a cabeça e se levanta, voltada para o
crucifixo na parede leste do quarto, seguindo a tradição, pois o Messias
iria se aproximar de Jerusalém pelo leste. Nenhuma prece, nenhuma
palavra lhe saem da boca. Deus não sente sua decepção? Por fim, diz:
“Senhor, não continuarei pedindo. O Senhor vê os obstáculos em meu
caminho. Se me quer na Igreja, precisa me ajudar. É tudo que direi.
Amém”.

Thankamma dissera que o segredo para conseguir o que se quer do


marido era fazer um pedido ao preparar halwa de jaca. Mas não é a
halwa que lhe abre a porta, mas o erechim olarthiyathu. Ela o prepara
pela manhã. Primeiro, torra e tritura no almofariz coentro, semente de
funcho, pimenta, cravo, cardamomo, canela e anis-estrelado; em
seguida, esfrega essa mistura seca nos cubos de carne de carneiro, que
ficam marinando. De tarde, refoga cebola com lascas frescas de coco,
sementes de mostarda, gengibre, alho, pimenta-verde, cúrcuma, folhas
de caril e um pouco mais da mistura seca, e então acrescenta a carne.
Reduz o fogo a brasas e destapa a panela para engrossar o molho escuro
e espesso, no qual embebe cada cubo de carne. Naquela noite, quando
pede que JoJo diga ao pai “choru vilambi” — o arroz está servido —,
finaliza o preparo fritando a carne em óleo de coco, com folhas de caril
frescas e coco picado. Ela chega com o prato escaldante, a gordura
ainda fervilhando na superfície escurecida da carne. Mal termina de
servir a iguaria na folha de bananeira do esposo, ele já lança um naco
de carne à boca. Não consegue resistir.
Enquanto o marido come, ela espera de pé, ao lado dele, porém
mais próxima do que de costume. Nas últimas noites leu o jornal para
ele e agora precisa esperar a nova edição. De súbito, Deus lhe dá
coragem para falar.
“A carne está boa?”, ela pergunta, sabendo que nunca esteve mais sa‐­
borosa.
As palavras saem de sua boca igual à água que flui do bico alongado
de uma kindi, e a jovem esposa as vê alcançando os ouvidos do marido.
É como se outra pessoa tivesse falado, não ela.
Acha que ele se irritou com sua ousadia, mas a grande cabeça do
esposo se move em sinal de aprovação. O prazer que ela sente lhe dá
vontade de bater palmas, de dançar. Dessa vez, pela primeira vez desde
que casaram, ao terminar ele permanece sentado, não se levanta para
enxaguar as mãos com a água do kindi.
Será que pode ouvir o batimento cardíaco dela?
JoJo, que os espreita por detrás de um pilar, está pasmo de vê-la se
dirigindo ao pai. Sussurra um tanto alto: “Ammachi, não conte!
Amanhã prometo que tomo banho!”.
Ela tapa a própria boca, mas não antes de uma risadinha lhe escapar.
Há uma pausa terrível, depois uma estranha explosão: seu marido dá
uma gargalhada. JoJo dá as caras, intrigado. Quando percebe que estão
rindo dele, corre e dá um tapa na coxa da madrasta, chorando furioso e
fugindo antes que ela consiga agarrá-lo. Isso só renova a risada do
marido, que se recosta no apoio da cadeira. O riso o transforma,
revelando uma faceta que ela não conhecia.
Ele enxuga os olhos com a mão esquerda, ainda sorrindo.
E então ela se põe a falar. Conta que, naquela tarde, quando chegou
a hora de JoJo tomar banho, ela o procurou por toda parte, até
encontrá-lo no alto da jaqueira, agarrado à árvore. O marido continua a
sorrir. Ela prossegue: está ensinando JoJo a ler e fazer contas, mas para
tanto precisa suborná-lo com uma guloseima, como manga salpicada
de pimenta. Quanto a ela, gosta mesmo é da variedade de banana-de-
são-tomé que Shamuel trouxe hoje… Nesse momento, percebe-se
tagarela e se cala. Os grilos preenchem o silêncio, e logo um sapo se
une ao coro.
Então o marido lhe faz uma pergunta que poderia ter feito há muito:
“Sughamano?” Está satisfeita com tudo? Ele a encara. É a primeira vez
que a estuda tão minuciosamente desde o dia em que se postou ao lado
dela na igreja, quase três anos atrás.
Ela tenta corresponder àquele olhar; nos olhos dele há uma força tão
poderosa quanto a do altar onde os dois se casaram. Relembra um verso
da cerimônia: Como Cristo é o chefe da Igreja, o marido é o chefe da
casa.
Subitamente, compreende por que o esposo manteve distância desde
que casaram, falando pouco, mas lhe assegurando suas necessidades e
conforto à distância; não é indiferença, mas o oposto. Ele reconhece
que pode amedrontá-la com facilidade.
Ela baixa os olhos. Sua capacidade de falar voou para longe. Mas
uma pergunta lhe foi feita, e ele espera uma resposta.
Sente as pernas fraquejarem. Experimenta um estranho impulso de
se aproximar dele, roçar os dedos naquele antebraço endurecido. É um
desejo de afeição, de toque humano. No antigo lar tinha beijos e
abraços diários, o corpo da mãe a aquecia à noite. Aqui, não fosse JoJo,
ela definharia.
Ouve a cadeira dele se arrastando para trás; o esposo desistiu de uma
resposta. Ela diz, baixinho: “Sinto falta de minha mãe”.
Ele ergue as sobrancelhas, talvez incerto do que ouviu.
“E seria bom ir à missa”, complementa, numa voz alta, pouco
natural.
O marido pondera. Depois enxágua as mãos com o kindi, desce para
o muttam e some. O coração dela se contrai. Tola, tola de pedir tanto!

Naquela noite, depois de JoJo pegar no sono, ela vai limpar a


cozinha e cobrir as brasas com casca de coco, o que faz com que
sobrevivam até a manhã seguinte. Em seguida retorna ao quarto onde
dorme com o menino, seu coração pesado.
Surpreende-se ao ver um baú de metal no chão. A pilha de roupas
brancas lá dentro devia ser da mãe de Jojo. Tudo que ela trouxe consigo
para Parambil foi a chatta e o mundu do casamento e três conjuntos
extras, todos do mesmo branco brilhoso, o traje tradicional da mulher
cristã da Igreja de São Tomé. Deixou para trás os sáris e as saias
coloridas da infância. Suas chattas estão apertadas nos ombros e
destacam vagamente os seios nascentes, quando sua função é sugerir
que não há nada ali. Por isso vinha vestindo uma chatta grande e gasta
esquecida por Thankamma. As do baú lhe caem perfeitamente. Ela se
analisa no espelho. Seu corpo está mudando; está mais alta e ganhou
peso. Um ano atrás, sangrou pela primeira vez. Ficou assustada,
embora a mãe a tivesse alertado a respeito. Preparou chá de gengibre
para as cólicas e fez panos absorventes, recorrendo à lembrança de vê-
los pendurados no varal. Quando os estendia para secar, camuflava-os
com toalhas e tecidos. Por quatro dias se sentiu pouco à vontade, com a
cabeça longe, mas foi levando. Não tinha ninguém com quem se
lamentar — ou celebrar, se fosse o caso.
No fundo do baú, encontra uma Bíblia. Você tinha uma Bíblia todo
esse tempo e nunca me contou? Fica tão feliz que a raiva logo
desaparece, porém decide falar disso na próxima visita ao porão.

No domingo, surpreende-se ao encontrar o marido de juba e mundu


brancos — as roupas do casamento. Está acostumada a vê-lo de peito
nu, o mundu apenas com um nó, e um thorthu sobre o ombro,
indistinguível dos pulayar que trabalham para ele. Somente a altura e a
largura o diferenciam, sinais de que cresceu numa casa onde não
faltava comida. Ele diz a Shamuel: “Peça para Sara ficar com JoJo até
voltarmos da igreja”.
Ela corre para se vestir. “Senhor, agradecerei de modo apropriado
quando estiver em Vossa casa.”
Partem por terra, na direção oposta à do cais. Ela leva a Bíblia,
apressando-se para acompanhá-lo, um passo dele são dois seus. Está tão
animada que os pés mal tocam o chão. Pouco depois alcançam o riacho
que tem como ponte um tronco escorregadio, cheio de musgo. “Você
primeiro”, ele diz, e ela sobe. O esposo a segue, os pés plantados com
bastante cuidado, a mandíbula tesa. Tendo cruzado, ele apoia a mão na
pedra de descanso, recompondo-se antes de continuar. A caminhada
até a igreja é mais longa do que o traslado de barco; por fim, cruzam o
rio em uma ponte larga, por onde passam carroças.
A visão das pessoas fluindo para dentro da igreja a comove, embora
não conheça ninguém. “Espero aqui”, ele diz, apontando uma grande
peepal com raízes aéreas que pendem sobre o cemitério local. Ela está
empolgada demais para fazer outra coisa que não entrar, cobrindo a
cabeça com o kavani. Esquecera o que é ver tantas pessoas na missa,
sentir seus corpos ao redor, ser parte do tecido e não um fio solto.
Os homens sentam-se à esquerda, as mulheres à direita, uma linha
imaginária os separa. A jovem esposa saboreia as frases da Eucaristia.
Quando o achen ergue o véu, com mãos trêmulas, ela sente a presença
de Deus e do Espírito Santo a inundando, onda após onda, erguendo-a
do chão. Chora de felicidade. “Estou aqui, Senhor! Estou aqui!”, grita
em silêncio.

Terminada a missa, ela sai e vê o marido deixando o cemitério com


uma expressão inquieta. A conversa animada e os risos no cais e nas
barcas alcançam os ouvidos de ambos. Os dois voltam em silêncio.
“Ela morreu há cinco anos”, ele diz de repente, a voz carregada de
emoção.
A mãe de JoJo. É estranho ouvi-lo falar dela com tanto sentimento.
Está sentindo inveja? Esperando que um dia o esposo fale dela com a
mesma paixão? Mantém-se calada por medo de que qualquer coisa que
diga interrompa o fluxo das palavras.
“Como perdoar um deus”, ele prossegue, “que tira do filho a mãe?”
As pausas entre as frases parecem largas como um rio. Dessa vez,
quando chegam ao tronco que serve de ponte, ele atravessa primeiro e
espera do outro lado, estudando a jovem esposa vestida com as roupas
da falecida, como se a visse pela primeira vez.
“Queria que ela nos visse”, o marido diz, parado. “Queria que visse
como você cuida de JoJo. Como ele te ama. Isso a deixaria feliz. Queria
que ela pudesse ver.”
Ela fica tonta com o elogio, agarrando-se à Bíblia que pertenceu à
mulher que o marido acabou de invocar. Está de pé bem perto dele e
se estica para ver seu rosto, sentindo que pode cair para trás.
“Eu sei que ela pode nos ver”, ela diz, com convicção. Poderia dizer
por quê, mas ele não precisa de explicações, apenas da verdade. “Ela
sempre nos observa. Segura minha mão quando quero botar mais sal.
Me avisa quando o arroz está pronto.”
As sobrancelhas dele se erguem, depois seu rosto relaxa. Ele suspira.
“JoJo não tem nenhuma lembrança da mãe.”
“Tudo bem”, ela diz. “Com a bênção dela, sou a mãe dele agora. Ele
não precisa lembrar ou sofrer.”
Continuam parados. Ele a olha com intensidade. Ela não pisca. Vê
algo cedendo dentro dele, como se a porta para o ara, para a fortaleza
de seu corpo, tivesse se aberto. A expressão dele passa ao
contentamento. O sorriso parece sinalizar o fim de um longo tormento.
Quando ele volta a caminhar, é num passo mais lento, esposo e esposa
no mesmo ritmo.

No domingo seguinte ele sugere que ela vá à igreja sozinha, de barco


— já que ele não vai acompanhá-la, ela não precisa fazer aquela longa
caminhada. Seguem juntos até o embarcadouro, onde algumas
mulheres e outros casais esperam. Enquanto o barqueiro empurra o
barco para longe da margem, ela se vira para olhar o marido parado
perto de um grupo de palmeiras-bambu, seus troncos delgados e
pálidos contrastando com o tronco dele, escuro e forte. Ele está
enraizado à terra, mais firme do que qualquer árvore. Nem Damodaran
poderia arrancá-lo.
Seus olhos se encontram. À medida que o barco se afasta, ela registra
a expressão dele: tristeza e inveja. Sofre por ele, um homem que não
viaja pe­la água, que talvez nunca tenha ouvido o som da água se
partindo ante a proa nem sentido o prazer de ser levado pela corrente,
ou os respingos quando a vara do barqueiro retira qualquer coisa do
canal. Ele jamais conhecerá a sensação estimulante de mergulhar de
cabeça num rio, o estrondo do mergulho seguido de um silêncio
envolvente. Toda água se conecta, não existem limites no mundo
aquático. O esposo está preso aos limites de seu mundo.

Em seu aniversário de dezesseis anos, ela ouve uma comoção do lado


de fora da cozinha e vozes animadas de crianças. Os patos reunidos
perto dos de­graus dos fundos grasnam e se esforçam para voar,
esquecidos das asas po­dadas. Ela sabe quem está chegando antes
mesmo de ouvir o tilintar da pe­­sada corrente e virar-se para ver o olho
antigo que, de alguma forma, perscruta pela janela da cozinha. Ri.
“Damo! Como você sabe?” É uma sensação nova: contemplar aquele
olho sem a distração do corpo imenso. Admirada, ela observa os cílios
emaranhados, a delicada íris cor de canela. Logo está contemplando a
alma de Damo… e ele, a dela. Ela sente seu amor, sua preocupação,
tal como quando ele a saudou na primeira noite como esposa.
“Espere um momentinho, tenho um presente para você.” Ela está
em um estágio delicado do processo de feitura do meen vevichathu.
Dispõe os filés de cavala no molho rubro que ferve no pote de barro. A
cor vibrante vem da malagueta em pó, e a consistência pegajosa é a
mistura de chalota, gengibre e pimenta cozida em fogo brando. Mas a
chave para seu sabor emblemático é o kokum, ou o tamarindo do
Malabar. É preciso provar várias vezes, equilibrando o toque azedo ao
salgado, tomando o cuidado de adicionar água de tamarindo se o curry
não estiver azedo o suficiente ou remover pedaços de kokum se estiver
azedo demais.
O gigante impaciente bate o pé e faz cair poeira das vigas.
“Pare! Se meu curry ficar ruim, contarei ao thamb’ran de quem é a
culpa.”
Ela sai da cozinha levando um balde com uma mistura apressada de
arroz e ghee. O sorrisinho de Damo lembra o de JoJo quando ele está
aprontando. César, o vira-lata — “César” e “Jimmy” são os únicos
nomes de cachorro em Travancore, não importa o gênero do cão —
dança excitado, mas toma o cui­dado de se manter longe dos pés do
gigante. Damodaran fisga o rebordo do balde e o pesca da mão dela,
entornando o conteúdo na boca como se o recipiente fosse um dedal.
Lambe as bordas, depois depõe o balde e o vasculha com a tromba em
busca de alguma porção que lhe tenha escapado.
Unni, empoleirado no pescoço de Damo e com os pés descalços
pousados atrás das orelhas do gigante, parece um gato preso numa
árvore. É difícil distinguir o cenho do conarca em sua face escura e
marcada, mas as sobrancelhas estão franzidas.
“Veja!”, diz Unni, apontando a bagunça no muttam. “Tentei
conduzir nosso colosso para o lugar dele, ali perto da árvore, mas, não,
ele tinha de vir à cozinha primeiro.”
Ela estende a mão para a tromba de Damo. “Ele veio para meu
aniversário. Ninguém aqui sabe, mas de alguma forma ele sabe. Deus o
abençoe por ter vindo, meu Damo.” De súbito, sente-se tomada de
timidez — não se dirige ao marido com um tom tão amoroso. Damo
enrola a tromba, cumprimentando-a.

Quando encerra os afazeres na cozinha, ela vai ao encontro de


Damo em seu cantinho habitual, ao lado da palmeira mais antiga.
Unni prendeu uma das pernas traseiras de Damo ao tronco, porém isso
funciona mais como lembrete do que contenção. O animal pode
quebrar a corrente com a mesma facilidade com que uma criança
quebra um galho seco, e é o que muitas vezes ele faz. Como sempre,
com a notícia de que Damo está em casa, todas as crianças das
redondezas vêm correndo. As mais novas vestem apenas o brilhante
aranjanam ao redor da cintura, nem um pouco conscientes da própria
nudez, embora temerosas em relação a Damo, escondendo-se atrás das
crianças mais velhas. A jovem esposa avista JoJo com um braço sobre o
ombro do filho do ferreiro, de também seis anos, mas JoJo é uma
cabeça mais alto. Ela se põe de lado, observando tudo, tão intrigada
com as crianças quanto com o elefante.
Damo enfia a tromba no balde d’água e lança um jato sobre seus
espectadores. Os menores se espalham, gritando alegremente. Quando
se reagrupam, ele faz de novo.
O elefante é exigente. Ao contrário das vacas ou cabras, não come se
seus excrementos estiverem largados pelo chão. Quando quer que ele
fique comportado em seu lugar, Unni precisa deitar fora com a pá tudo
que é expelido do traseiro de Damo. É uma tarefa interminável para o
conarca, e algo fascinante para o jovem público.
“O que é isso?”, pergunta a filha do ferreiro, de sete anos, apontando
o bastão grosso e torto pendendo atrás da pança de Damo, sua ponta
larga verde-musgo. “É outra tromba?”
“Não, sua boba”, responde o irmão, com autoridade, embora seja
mais novo. “É o pinto.”
Os meninos riem. Os mais novos, que não entendem nada,
gargalham.
“Ha!”, diz a filha do ferreiro, ressabiada. “Na minha opinião, a
tromba dele é que parece um pinto, mais do que aquela coisa
engraçada ali.”
Faz-se certo silêncio enquanto as crianças consideram a questão. O
irmão se vira para examinar o neto de dois anos do ourives, um
meninote barrigudo de cócoras que olha tudo espantado, com um dedo
enfiado no nariz; todos agora estudam o pênis intumescido e não
circuncidado do garoto, que termina num beicinho enrugado, e o
comparam à tromba de Damodaran.
“É, acho que é verdade”, afirma o filho do ferreiro.
A tromba balouçante de Damo parece ter vida própria, com
movimentos decididamente humanos. Enquanto seu pé dianteiro
esmaga um galho de coqueiro, sua tromba pinça e debulha as folhas
com golpes graciosos. Damo bate o molho de folhas contra a árvore
para espantar insetos, depois as dobra e põe na boca. Enquanto mastiga,
a tromba se move para baixo de novo e, como um menininho
incansável e brincalhão, o animal rouba a toalha do ombro de Unni e a
balança no ar igual a uma bandeira antes de o conarca re­cuperá-la.
“Se pelo menos meu pinto pudesse fazer tudo isso”, ela ouve o filho
do ferreiro dizer, “eu colheria mangas e até cocos.” A jovem esposa
observa JoJo, que escuta tudo com atenção, uma das mãos examinando
discretamente o que há entre as próprias pernas. Ela sai de mansinho, a
mão cobrindo a boca, até alcançar uma distância segura e cair na
gargalhada.
Naquela noite ela serve o meen vevichathu ao esposo. Com um gesto
de cabeça, ele aprova o sabor. Logo serão cinco anos de casada, mas ela
ainda tem dúvidas quanto a seus dotes culinários.
“Enquanto eu preparava a comida, Damo se aproximou e pôs o olho
na janela da cozinha.”
Ele ri e balança a cabeça. “Temos arroz com ghee para que eu leve
para ele agora?” Sua expressão é como a de JoJo quando pede mais
manga.
“Mas ele comeu um balde mais cedo.”
“Comeu? Nesse caso…”
“Tudo bem, posso fazer mais.”
O marido fica contente. Depois limpa a garganta e diz: “Damo
nunca foi à cozinha. Isso quer dizer que ele gosta de você”, e volta-se
para ela com um olhar tímido, mas provocador. Ela larga o jornal e vai
à cozinha preparar o arroz.
Sim, sei que Damo gosta de mim. Ele veio me cumprimentar por meu
aniversário. Sei o que ele pensa. São os seus pensamentos que
desconheço.

Quando ela volta com a mistura de arroz e ghee, o marido ignora o


alimento. Com um gesto das sobrancelhas, ele a convida a se sentar e
põe diante dela um pequeno saquinho de pano, com um laço. Ela abre
e vê duas argolas de ouro, grandes e pesadas, ornamentadas com
esmero na face exterior, porém ocas por dentro, para que não pesem
em suas orelhas. Uma rosca em filigrana oculta as tarraxas. Ela
contempla os brincos sem acreditar. É mesmo para ela aqueles
kunukku? Então é por isso que o ourives passava por essas bandas no
último mês. A vida toda ela admirou os kunukku, essas joias que não se
prendem no lóbulo da orelha, mas no alto, na parte que dobra e se
afina como o lábio de uma ostra. Será preciso furar a cartilagem, depois
alargar o buraco com folhas de areca até que fique grande o suficiente
para acomodar os fechos. Muitas mulheres usam apenas as tarraxas; em
ocasiões especiais, prendem as argolas, estas se projetam da orelha.
Ao contrário de muitas noivas cujo dote inclui joias, tudo que ela
tem é o anel de casamento, o pequeno minnu de ouro que o marido
prendeu em seu pescoço na cerimônia e dois pininhos de ouro que lhe
deram quando furou as orelhas, aos cinco anos.
Mal pode acreditar que o marido se lembrou de seu aniversário, algo
até então inédito. Agora é ela quem fica sem palavras. Ele nunca pega o
jornal, mas, como fazendeiro, está sempre ciente das datas e estações.
Ao longe, ela ouve o som de galhos e folhas sendo batidos contra uma
árvore, o som de Damo se alimentando. Não é a primeira vez que a
jovem esposa se pergunta se os dois gigantes não estão mancomunados.
Quando ela finalmente consegue olhá-lo nos olhos, ele está sorrindo.
E sai sem dizer nada, levando o balde; dormirá na cama de corda ao
lado de Damo, enquanto Unni vai visitar a esposa.

Sempre que Damo está em Parambil, a terra vibra com seus


movimentos. Os sons que faz quando se alimenta — arrancando
galhos, esmagando folhas — a acalmam. Mas passados alguns dias
Damo volta para a madeireira; como o thamb’ran, ele se sente mais
feliz no trabalho. Na ausência do elefante, a calmaria de Parambil
parece exagerada.
Naquela noite, quando ela está prestes a adormecer, o marido
aparece. Ela se senta, alarmada, perguntando-se se teria acontecido
alguma coisa. A silhueta dele ocupa todo o umbral da porta,
bloqueando a luz. Sua expressão é calma e reconfortante. Tudo está
bem. Ele segura o pequeno lampião a óleo em uma das mãos e lhe
estende a outra.
Ela se liberta delicadamente de JoJo, que dorme, aceita a mão que
lhe foi estendida, e o esposo a puxa da cama, pondo-a de pé sem
esforço. Os dedos dela continuam aninhados na palma do marido
quando os dois se retiram. Essa sensação é nova, andar de mãos dadas.
Mas para onde vão? Passam ao quarto dele.
Subitamente seus batimentos cardíacos ressoam tão alto que ela tem
certeza de que despertará JoJo. O sangue corre rápido, como se o corpo
soubesse o que está prestes a acontecer, ainda que a mente esteja cinco
passos atrás. Naquele momento ela ainda não tem como saber que as
noites em que ele se achega em silêncio e a conduz para seu quarto lhe
serão preciosas; não sabe que, em vez dos lábios estremecidos, do
tremor corporal, das entranhas congelando-se e das pernas ameaçando
vacilar, sentirá um ímpeto de excitação e orgulho, um anseio ao vê-lo
parado à porta, a mão estendida, desejando-a.
Agora, porém, ela está em pânico. Tem dezesseis anos e alguma
noção do que deve acontecer, ainda que esse conhecimento seja
involuntário, fruto da observação das outras criaturas de Deus na
natureza… Mas a jovem esposa não está preparada. Como exatamente
se dão as coisas? Se ela fosse capaz de fazer aquela pergunta, a quem
perguntaria? Mesmo à sua mãe uma pergunta como aquela soaria
esquisita.
Com muita delicadeza, ele a convida a se estender a seu lado na
cama alta de teca; não lhe escapa que ela está apavorada, tremendo,
quase às lágrimas, e que seus dentes batem. Em vez de reconfortá-la
com palavras, ele a puxa para perto de si e passa um braço sob a cabeça
dela, envolvendo-a, abraçando-a. Nada mais. Os dois ficam assim por
muito tempo.
Por fim, sua respiração começa a ficar mais lenta. O calor do corpo
dele acalma seus tremores. É isso que diz a Bíblia? Jacó deitou-se com
Léa. Davi deitou-se com Batseba. A noite é silenciosa. De início, a
jovem esposa escuta apenas o zumbido das estrelas. Um pombo canta
no telhado. Ela ouve o chamado de três notas do bulbul. Um leve
arrastado no muttam deve ser César per­seguindo o próprio rabo. Há
também um tambor longínquo repetitivo que ela não consegue
localizar. Até que entende: é o coração dele, alto, e quase em sincronia
com o seu.
Aquelas batidas abafadas, graves, a reconfortam, lhe dizem que está
nos braços do homem com quem é casada há quase cinco anos. Ela
pensa nos mo­dos silenciosos com os quais ele sempre cuidou das
necessidades dela, desde o jornal à primeira ida à igreja, e agora o
hábito de levá-la até o embarcadouro todo domingo. O marido expressa
sua afeição indiretamente por meio desses gestos de carinho e na
maneira como a olha com orgulho quando ela conversa com JoJo ou lê
o jornal. Naquela noite, contudo, durante o jantar, ele comunicou seus
sentimentos de forma direta, ainda que sem palavras, pelos brincos
preciosos, que são o símbolo de uma mulher madura, uma esposa
sábia. Tudo isso poderia ter acontecido em qualquer momento desses
últimos anos, mas ele esperou.
Passado um tempo, ele levanta a cabeça para olhar seu rosto, depois
ergue as sobrancelhas e inclina a cabeça, pensativo. Ela entende que é
uma pergunta: está pronta? Bem, ela não sabe. Mas sabe que pode
confiar nele; tem fé que, se ele a levou até ali, é porque compreende
que ela está pronta. Dessa vez ela não vira o rosto; sustenta o olhar do
marido e espreita dentro de suas retinas, vendo sua alma pela primeira
vez nesses anos em que tem sido sua esposa. Ela consente.
Senhor, estou pronta.
Ele se põe sobre a esposa e a guia para recebê-lo. À primeira dor
aguda ela morde o lábio, abafando o grito que lhe escapa. O marido
para e recua, preocupado, mas ela o puxa para si, escondendo o rosto
no vale entre seu peito e seu ombro, para que ele não testemunhe seu
choque, sua incredulidade ante o que se passa. Até aquele momento
em que ele segurou sua mão e a conduziu para o leito, nunca haviam
se tocado, nem mesmo por acidente. Todavia nem dar as mãos nem
ficar deitada na cama em seus braços a prepara­ram para aquilo. Sente-
se estúpida e envergonhada por não saber, por nunca ter imaginado
que aquilo que deveria “acontecer a seu tempo”, como Than­kamma
lhe disse certa vez, era aquela violação de seu corpo, em que o recebia
por inteiro dentro de suas entranhas. Sente-se traída por todas as
mulheres que lhe ocultaram essa prática, que poderiam tê-la preparado
melhor. A extrema gentileza dele, a consideração por ela, agora se
confundem estranhamente com aquela primeira dor lancinante e o
desconforto que se segue. As estocadas repetitivas se intensificam, o
ritmo acelera. Quando vai terminar tudo isso? O que se deve fazer?
Bem no instante em que acha que o esposo vai despedaçá-la, bem no
instante em que deseja gritar para que ele pare, o corpo dele se
enrijece, as costas se arqueiam e seu semblante se torna irreconhecível,
doído — como se fosse ela quem, de forma inesperada, o despedaçasse
— ela, participante ingênua e espectadora horrorizada. Ele tenta abafar
um gemido agônico, mas não consegue — e então cessa, trêmulo. Ele
se deita sobre ela, acabado, um peso morto, a pele molhada de suor.
Os pensamentos da jovem esposa estão em torvelinho, mas ela se
alegra ao perceber que sobreviveu à provação. Sente uma vontade
irresistível de rir por estar presa daquela forma, sob o súbito
esgotamento do marido. Não apenas suportou a provação, como foi seu
corpo que deixou o marido sem forças, praticamente enraizado nela.
Com atraso, enquanto se recompõe lentamente, compreende que
chegou à feminilidade plena quase por acidente. Os segundos passam,
e o peso dele a esmaga a ponto de ser quase impossível respirar; ainda
assim, de modo paradoxal, não quer que ele se mexa, não quer que
aquele sentimento de poder, de orgulho, de domínio sobre ele passe.
Nos anos seguintes, nas raras ocasiões em que ele surge, de mão
estendida, e a esposa não tem vontade, ela nunca o recusa, pois em seu
abraço carinhoso e no ato desenxabido que se segue ele expressa o que
não sabe dizer e aquilo que ela precisa ouvir — e que começa a sentir
pela primeira vez, deitada debaixo dele: ela é essencial para o mundo
dele, assim como ele é todo o mundo dela. Por ora a jovem esposa não
pode imaginar que o prazer estampado no rosto do marido é uma
sensação que ela também experimentará de tempos em tempos, e que
ela discretamente encontrará formas de guiá-lo para obter o próprio
prazer. Por ora, ela o tem tão dentro de si que experimenta a sensação
de que ele a partiu em duas; no entanto, pela primeira vez desde o
casamento, ela se entende inteira, completa.
Aos poucos sente um desaperto, como se o marido se soltasse de suas
entranhas, até que ele rola para o lado, deixando apenas uma coxa,
pesada como uma laje, sobre a dela. Essa retirada a deixa latejando por
dentro, além de exposta, com um vão entre as pernas num lugar antes
fechado para o mundo. Sente-se insegura em relação à parte mais
íntima de si, que agora lhe parece eternamente alterada. Um líquido
escorre por sua coxa. Ela quer tomar banho, mas, apesar da dor violenta
e pulsante, reluta em se levantar, desfrutando da sensação do marido
adormecido, inconsciente, ao lado, a cabeça aninhando-se nela, uma
das mãos colada a seu peito, muito como faz o filho dele.
Nos dias que se seguem ela se sente à vontade para contar muitas
coisas a ele, não só os eventos domésticos, mas seus pensamentos,
sentimentos, e mesmo suas lembranças, sem esperar respostas. Para ele,
ouvir é conversar; há certa eloquência nessa atenção; é uma coisa rara,
que o marido oferece com generosidade. Só ele, dentre todas as pessoas
que ela conhece, usa dois ouvidos e uma boca nessa exata proporção. A
jovem esposa agora o ama de um jeito de que antes não se imaginava
capaz. O amor, ela pensa, não é posse, mas a percepção de que, onde
seu corpo termina, agora recomeça — no de­le, no qual ela expande seu
alcance, sua confiança e força. Como com todas as coisas raríssimas e
preciosas, o amor traz uma nova ansiedade: o medo de perdê-lo, o
medo de que o coração do esposo deixe de bater. Isso seria o fim dela.

Parambil segue seu ritmo: bocas por alimentar, mangas por colher,
arroz para debulhar, Páscoa, Onam, Natal… um ciclo que a jovem
esposa conhece bem e através do qual mede seus dias. Para um
observador, não há nada de novo. Mas, depois de uma noite como
aquela, toda distância entre marido e mulher desaparece.
“Senhor, obrigada…”, ela diz nas orações. “Não mencionarei nada
específico. Afinal, o que o Senhor não sabe de minha vida terrena? Mas
tenho uma pergunta. Quando meu marido abandonou o altar quatro
anos atrás, ouvi Vossa voz me falar: ‘Estou com vocês todos os dias’. O
Senhor falou também a ele? Disse: ‘Volte. Ela é a mulher certa para
você’?”
Faz uma pausa. “Porque eu sou, Senhor. Sou a mulher certa.”
7. Quem é mãe sabe

parambil, 1908

Certa manhã, em seu décimo nono ano na terra, ela acorda inquieta,
incapaz de se levantar, como que esmagada por um manto de
melancolia. JoJo tenta animá-la, tecendo uma bola com frondes de
palmeira. “Por cima, por baixo, por cima, por baixo, e então por baixo e
por cima, por baixo e por cima, certo?”, ele diz, esquecendo quem lhe
ensinou. Ele está com dez anos e já é mais alto que sua Ammachi, que
logo terá o dobro de sua idade; contudo, sempre que estão sozinhos, o
menino se comporta como se fosse muito mais novo. Preocupado, ele a
ajuda a andar até a cozinha, mas o simples gesto de soprar as brasas a
deixa sem fôlego.
Depois do almoço, ela volta para o quarto e só acorda quando a mão
fria do marido acaricia sua testa. Espanta-se ao ver que o sol já está se
pondo. Não preparou nada para o jantar e agora se desfaz em lágrimas.
Com um olhar, ele dispensa JoJo.
Por que as lágrimas?, o marido pergunta com um movimento das
sobrancelhas.
Ela balança a cabeça. Ele insiste.
“Me perdoe. Não sei o que deu em mim.” O semblante dele sinaliza
que ele sabe que aconteceu algo.
Desde que o casamento foi consumado, ela passou a trocar
confidências livremente com o marido, exceto no que diz respeito à sua
mãe. Sente vergonha, pois ele sabe como tinha uma vida pobre antes
do matrimônio. Aos dezesseis anos, encheu-se de coragem e implorou a
Shamuel que a acompanhasse numa viagem para ver a mãe; fê-lo pedir
permissão ao thamb’ran, que concordou. Ela recorrera a Shamuel por
não querer pôr o marido numa situação em que ele lhe diria não.
Escreveu para a mãe, anunciando a data da viagem. Decidira que, caso
a encontrasse numa situação miserável, ela a levaria a Parambil. Tudo
que podia fazer era torcer pela compreensão do marido, que não tinha
obrigação de cuidar da sogra. Dois dias antes da partida, chegou uma
carta da mãe proibindo-a, com veemência, de visitá-la, afirmando que a
visita só tornaria tudo mais difícil. E acrescentou que o cunhado
prometera que todos logo visitariam Parambil. Obviamente, isso nunca
aconteceu.
“Tenho pena de minha mãe”, diz, por fim, chorando, aliviada por
confessar o que havia tempos ocultava dele. “Sei, no fundo do coração,
que ela está sendo maltratada. Passa fome. Depois que meu pai
morreu, meu tio deixou de ser bondoso conosco. Suas cartas falam de
tudo, menos dela. Posso sentir seu sofrimento.”
A mão de machado do marido permanece em sua testa, mas seu
rosto não deixa transparecer nada.

No dia seguinte, ele e Shamuel saem de casa antes que ela acorde.
Não há sinal deles ao longo do dia, e ao anoitecer ainda não
retornaram. A jovem esposa quase enlouquece de preocupação.
No outro dia, à tarde, uma carroça surge pela trilha do atracadouro,
roçando os pés de mandioca. Shamuel está sentado à frente, ao lado do
condutor. Uma figura familiar espreita por sobre seu ombro.
Ela se esquecera da testa alta da mãe e de seu nariz estreito, traços
agora acentuados pela magreza; o cabelo está branco, as faces
afundadas pela falta dos molares. É como se tivessem passado
cinquenta anos, não oito. Ao apear, a mãe se agarra aos minguados
pertences: uma Bíblia, uma taça de prata, uma trouxa de roupa. Mãe e
filha se abraçam, os papéis invertidos: é a mais velha que retorna à
segurança dos braços da jovem, chorando em seu colo, não mais
escondida na miséria dos anos que as separaram.
“Molay”, a mãe diz, quando consegue falar, “Deus abençoe seu
marido. Assim que o vi, pensei que tivesse acontecido alguma coisa
com você. Logo de cara ele entendeu tudo. ‘Vamos’, ele disse. Molay,
fiquei tão constrangida, seu tio não foi gentil — não ofereceu nem
água. Daí ela surge atrás dele para dizer que devo dinheiro por… Por
respirar, suponho. Seu marido ergueu o dedo.” E ela ergue um dedo,
como se testando o vento. “‘Nenhuma palavra a mais’, ele disse. ‘A mãe
de minha esposa não pode viver nessas condições.’ Sacudi a poeira dos
pés e não olhei para trás.”
Shamuel sorri, mas repreende a jovem patroa. “Por que não falou
antes para o thamb’ran? Sua mãe vivia como as mulheres que pedem
esmola em fren­te à igreja! Tinha só um cantinho minúsculo na varanda
para o colchonete.”
A mãe baixa a cabeça, envergonhada. Diz: “Seu marido pôs a gente
no barco. Falou que voltaria por outro caminho”.
No quarto que as duas logo irão compartilhar, ela observa a mãe
admirando o almirah de teca onde pode guardar as roupas, a
escrivaninha e a penteadeira com espelho. A recém-chegada vê o
próprio reflexo e, embaraçada, esconde as mechas de cabelo branco
atrás da orelha. Na cozinha a filha lhe serve um chá; a seguir, mói
coco, vai buscar ovos na despensa, requenta peixe e curry de galinha,
pica feijões para um thoren e diz a Shamuel que não saia sem comer.
“Ah, meu bebê”, declara a mãe ao ser servida, chorando. “Quando foi a
última vez que vi carne, peixe e ovos na mesma folha?”
Mais tarde, a mãe, sentada na cama de corda, observa a filha numa
correria sem fim: “Pare! Nada de halwa, nem laddu, nada. Não quero
mais nada! Sente aqui e me deixe ver você, te abraçar, minha joia”. A
partir das impressões da mãe, nota o quanto ela própria mudou: já não
é a noiva criança que a mãe viu pela última vez; agora é a senhora de
Parambil, com seu filho JoJo. A mãe corre os dedos pelo espesso cabelo
da filha, aquela massa de fios que tanto quis pentear e trançar, depois
inspeciona seu rosto à luz de uma lâmpada. “Minha filhinha agora é
uma mulher…”, diz, e então, abruptamente, recua e ergue as
sobrancelhas ao notar certa palidez que, partindo ao longo do dorso do
nariz da jovem, abre-se sobre suas faces, qual asas de morcego. Com os
olhos arregalados, declara: “Jesus Cristo, molay! Você está grávida!”.
De imediato a jovem conclui que ela deve estar certa. Talvez por isso
seu coração tenha pedido colo de mãe, pois espera o primeiro bebê.

À meia-noite ela perambula pela varanda, regozijando-se com o


reencontro tão sonhado, mas também rezando, preocupada. Por volta
de uma da manhã, vê o lume distante de uma tocha feita de frondes
secas de palmeira.
Corre para saudar o marido como se não o visse há anos. Não se
contendo, joga-se em seus braços como uma criança, enrodilhando as
pernas no corpo que parece uma fornalha sobreaquecida depois da
marcha de dois dias. Ele deita fora a tocha, que se apaga na terra, e a
abraça. Ela afunda o rosto em seu ombro, tomada de alívio, e suplica,
muda: Nunca envelheça, nunca morra, sabendo que é pedir demais.
Minha rocha, minha fortaleza, meu salvador.
O marido se lava no poço, depois janta com as pálpebras pesadas.
Descreve seu percurso, enquanto ela traça o caminho sinuoso na palma
da própria mão. Ele caminhou por dezoito horas, ao longo de oitenta
quilômetros.
Ele então vai para a cama, tão exausto que mal consegue levar o
lampião. Ela o segue. Raramente entra naquele quarto sem ser
conduzida por ele, mas agora se deita a seu lado. Pega a mão dele,
deposita-a em sua barriga e sorri. Ele não entende. Então, bem
devagar, seus traços cansados revelam que compreende, e ele sorri. Ela
ouve uma exclamação sussurrada. O marido a abraça, mas logo se
contém, temendo-se bruto demais. Se Deus permitisse a ela escolher
um só momento para durar o resto da vida, seria aquele.
Aos poucos ela ouve a respiração do marido se aprofundar e ficar
ritmada. Seu semblante adormecido ainda é alegre, a mão permanece
sobre a barriga dela, acariciando o bebê. Naquele recanto sagrado entre
seu peito e seu braço, ela se sente em paz. “Perdoa-me, Senhor.”
Achava que suas orações não tinham sido consideradas, mas o tempo
de Deus não é o tempo dela. O calendário d’Ele não é igual ao que
está pendurado na cozinha. Debaixo do céu há momento para tudo, e
tempo certo para cada coisa.
Não faz sentido se recriminar por não ter resgatado a mãe antes. O
que passou passou, pensa. O passado é imprevisível, e só o futuro é
certo; ela precisa ter fé de que a ordem se revelará.
A garota que tremia no altar, que agora descansa ao lado do marido e
leva no ventre uma criança, ainda não pode antever o dia em que ela
própria será a matriarca respeitada da família de Parambil. Não sabe
que a seu tem­po fará jus ao epíteto que JoJo lhe atribuiu, a primeira
palavra que o garotinho aprendeu e logo lhe ofereceu não para zombar
de seu tamanho diminuto, mas como saudação: “Grande”. JoJo a
chamou de “Grande Ammachi”. Ela não sabe que logo será Grande
Ammachi para todos.
8. Até que a morte nos separe

parambil, 1908

Com o nascimento da filha, a vida que a jovem esposa levava é


varrida do mapa. Seu corpo está sob o jugo de uma tirana amada, que a
desperta bruscamente do sono, exige ser atendida e, com força bruta,
suga leite de seus seios — tão inchados que ela mal os reconhece.
Tampouco consegue lembrar das noites em que eram apenas ela e
JoJo na cama, juntinhos, os dedos dele enredados em seu cabelo para
garantir que ela não o abandonasse ao pesadelo que sempre o
perseguia, em que se via à deriva num rio. Houve mesmo um tempo
em que ela, com três panelas no fogo, tinha um ouvido na galinha
prestes a pôr um ovo e o outro monitorando a possibilidade de chuva,
atenta ao arroz que secava ao sol? E tudo isso enquanto se fingia de
tigre para JoJo? Agora ela mal sai do velho quarto perto do ara,
destinado ao trabalho de parto. Sua conexão com Parambil lhe parece
duplamente consolidada com uma filha que chamará essa terra de lar,
pelo menos até que se case.
Dolly Kochamma, sem que lhe pedissem, transferiu-se para lá nos
últimos dias de gestação a fim de ajudar com as tarefas domésticas e
JoJo. Tranquila e silenciosa, ela nunca fala dos desafios que o casal
enfrenta. No pequeno terreno, o gregário Georgie poderia
perfeitamente cultivar coco, mandioca e banana, e até obter certo
lucro, no entanto tudo vai mal. Segundo Shamuel, isso resulta de mau
planejamento, além do fraco de Georgie por estratagemas não muito
promissores, como cultivar soja em vez de arroz — por dar menos
trabalho — e descobrir depois que a plantação cresceu mal e há pouco
mercado. Georgie deve saber que é uma decepção para o tio, então se
mantém distante; Dolly, porém, toda manhã, quando o bebê adormece
depois da mamada das dez, passa óleo no cabelo da nova mamãe e
massageia seu corpo com óleo de coco apimentado. Sempre que
Grande Ammachi lhe agradece profusamente, Dolly diz: “Seu marido
nos resgatou quando não tínhamos nada e eu estava grávida de meu
primeiro filho. A mãe de JoJo fez isso por mim. Agora, você me faz um
favor ao me dar chance de ser útil”. Dolly a encoraja a ir ao riacho para
um bom banho. “Não se preocupe. Bebê Mol” — por ora a bebê tem
apenas esse nome, “Bebê Menina” — “não vai parar de respirar em sua
ausência.”
Enquanto isso sua mãe assumiu a cozinha. A mulher de cabelos
grisalhos e faces chupadas que desceu tão hesitante da carroça tem
uma década inteira de pensamentos acumulados para compartilhar,
ainda que sem a mesma energia de antes.
JoJo não entende por que Grande Ammachi passa tanto tempo com
a neném ou por que precisa fazer silêncio quando ela dorme. Certa
manhã o ciúme o leva a subir na plavu e gritar por socorro como se
tivesse empacado. Ignorado, desce furioso, enrola os pertences num
thorthu e anuncia sua mudança permanente para a casa de Dolly. Os
tios o recebem; os filhos estendem um colchonete para ele no mesmo
cômodo. É assim que JoJo passa a primeira noite longe de Parambil,
rezando para que a casa desabe sem ele.
Quando no dia seguinte chega a notícia de que Grande Ammachi
sente saudade, JoJo volta correndo, mas diminui o passo à entrada,
fingindo que retorna a contragosto. A mãe o cobre de beijos até que ele
se vê forçado a abandonar aquela fachada. “Você é meu homenzinho!
Como vou descer até o porão e buscar picles sem a sua companhia?
Aquele fantasma só me recebe bem se você for junto.” O homenzinho
convida os novos amigos, e logo o muttam se enche dos sons de
crianças rindo e brincando. Essa cacofonia a faz pensar na própria
infância, cercada da presença constante de primos e vizinhos.
Felizmente Bebê Mol é capaz de dormir em qualquer circunstância.
Aqui e ali, enquanto cuida da filha, ouve uma das crianças chorando.
Em outros tempos correria para investigar, mas agora diz a si mesma:
“Uma criança chorando é uma criança respirando”.
Passado um mês, volta a seu quarto de sempre, preferindo a
familiaridade da esteira de bambu estendida no chão à cama elevada do
cômodo perto do ara, onde se deu o parto. Bebê Mol fica ao lado da
jovem mãe, sobre uma toalha dobrada, enquanto sua avó e JoJo
dormem nas próprias esteiras, do outro lado. Pela manhã, enrolam as
esteiras ao redor de cada travesseiro, e os colchonetes são guardados
numa prateleira alta.

Toda noite, depois do banho, o marido aparece no umbral da porta.


Sua sogra, se está por lá, finge alguma tarefa na cozinha e some.
Daquele homem-montanha só escapam palavras se ele estiver a sós
com a mulher. Seu bíceps se retesa quando leva ao peito nu o
embrulho de panos e carne que é sua pequena infante, a nova mamãe
maravilhada à visão de Bebê Mol engolida por aquelas mãos enormes e
calejadas. “Você tem comido bem?”, ela pergunta. “Sim, ‘Grande
Ammachi’”, ele responde, provocando-a. “Mas o erechi olarthiyathu de
sua mãe não é tão bom quanto o seu.” Ele mal percebe que lhe faz um
elogio que ela muito aprecia.
Ela se lembra de Thankamma dizendo que o irmão era como um
coco: fibroso e impenetrável por fora, mas com camadas preciosas no
interior; sua água acalma bebês com cólica, enquanto a polpa branca
macia é ingrediente essencial em qualquer prato do Malabar; essa
mesma polpa, quando ressecada e espremida — copra — vira óleo de
coco, e os restos da copra servem de forragem para alimentar os
animais; a concha dura, por sua vez, vira thavi, uma cumbuca perfeita;
e a capa exterior espessa, se ressecada e desfiada, é útil para tecer
cordas. Sem coco, a vida em Travancore cessaria, tal como Parambil
pararia sem seu marido. Contudo, quando o marido diz que o erechi
olarthiyathu de sua mãe não é “tão bom quanto o seu”, o que ele quer
dizer é que sente saudade.
À noite, depois de pôr a neném para dormir, sua blusa úmida
cheirando a leite, ela se pergunta se de vez em quando o marido não
virá procurá-la. Vendo-a dormindo, será que a toca de leve e tenta
acordá-la? Ou a presença de sua mãe e das duas crianças adormecidas o
impede de cruzar a porta? A verdade é que ela não está pronta para ele.
A provação do parto ainda está fresca na memória. Ela sofreu uma
ruptura que só agora começa a doer menos, mas o corpo ainda lhe
oferece novos e estranhos embaraços que, felizmente, parecem
diminuir com os dias. A nova mamãe precisa de mais tempo para se
sentir plenamente restabelecida. Todo mês lhe chega alguma história
de um parto que deu errado, uma mulher que sangrou até morrer, ou
um bebê atravessado, evento fatal para mãe e criança. “Obrigada,
Senhor, por ter passado ilesa por tudo.” Ela não compartilha com o
Senhor que sente falta da proximidade do esposo, da excitação de subir
na cama dele, de sentir seu coração batendo forte e ouvir o dele
fazendo o mesmo. “Bem, não se pode ter tudo”, diz, mas só para si
mesma. Não é necessário contar certas coisas a Deus.

O ritmo de Parambil pode ser de constância em certas casas, mas de


frequentes mudanças em outras. JoJo anuncia, animado, que Ranjan, o
gêmeo de Georgie, chegou na casa do irmão durante a noite junto com
a esposa, os três filhos e todos os pertences. Grande Ammachi mal pode
imaginar o sofrimento de Dolly com tanta gente abarrotando seu
pequeno lar. Ranjan, como Georgie, não herdou nada do pai.
Encontrou um emprego decente como assistente administrativo numa
fazenda de chá em Coorg. O salário era bom, mas a vida nas
montanhas de Pollibetta era solitária. Alguma coisa decerto aconteceu
para a esposa de Ranjan jogá-lo numa carroça junto com a família e
viajar montanha abaixo, despencando sobre a cabeça de Georgie e
Dolly. Mulher robusta de queixo quadrado, com a mania de cerrar os
olhos antes de falar, a esposa é uma figura imponente, ainda mais
porque traz no peito um enorme crucifixo de madeira que ficaria
melhor numa parede. Anda sempre com uma Bíblia bem apertada na
mão, como se temendo que alguém lhe arranque. Os filhos de Dolly a
chamam secretamente de “Decência Kochamma”, pois, de acordo com
JoJo, tudo lhe parece indecente. Quando não reclama de um pecado
que as crianças cometeram, reclama de outro que estão prestes a
cometer.
Poucos dias depois, Grande Ammachi vê os gêmeos indo falar com o
tio, de mãos dadas, qual melhores amigos. São idênticos, ainda que
Ranjan pareça mais embrutecido. Compartilha a mesma agitação
infantil do irmão, mas dentro dele é como se houvesse um curioso
mecanismo que se agita e afeta sua postura ao produzir uma dança
incansável de lábios, sobrancelhas, olhos e membros. Apesar das
circunstâncias, os dois têm a mesma expressão de otimismo — um
traço admirável. Antes de entrar na casa, tentam adotar um ar solene,
mas, ao sair, estão em êxtase, empurrando-se como meninos na saída
da escola. Mais tarde ela fica sabendo que o marido cedeu a Rajan, por
es­critura, um terreninho inclinado e ainda por desmatar, adjacente ao
de Georgie. O esposo muito provavelmente decidiu isso tão logo soube
do retorno do sobrinho; assim, agora também auxiliou Ranjan. Ela
admira sua ge­ne­rosi­dade, porém ele tem dificuldade de acrescentar a
essa virtude um pouco de afeição, ou um conselho sábio que ajudasse
os sobrinhos a serem mais bem-sucedidos. Agir desse modo não é de
sua índole.
JoJo informa que os gêmeos decidiram derrubar a casinha de
Georgie e Dolly para construir uma nova residência conjunta com
madeira e acessórios de cobre da melhor qualidade — o tipo de casa
que a tão sofrida Dolly Kocha­m­ma merece, mas isso só será possível
porque Ranjan e Decência Kochamma vão contribuir com suas
economias. A nova fundação vai se assentar predominantemente sobre
o terreno de Georgie, que tem o poço e uma drenagem melhor; a
maior parte do terreno de Ranjan será dedicada a uma nova estrada de
acesso e ao cultivo de kappa e banana-da-terra. Uma cozinha
compartilhada ficará entre as duas alas da casa. Grande Ammachi não
consegue deixar de se preocupar com Dolly Kochamma.
Jojo está grande demais para passar o dia em casa. Como evita a
água, não pode acompanhar as outras crianças no mergulho ou no
nado; por outro lado, reina nas alturas. Domina as árvores e supera
todos em ousadia e inconsequência. Humilha macacos no modo como
trepa num galho alto, salta para o galho vizinho ou, balançando-se num
cipó, dá um mortal para trás, caindo de pé sobre as folhas secas no
chão. Essa manobra faz dele um herói para as crianças mais novas.
Numa terça-feira, depois que a chuva de dois dias as obrigou a um
confinamento, as crianças mais velhas correm para nadar no rio. Como
público restam apenas as criancinhas quando JoJo escala uma árvore,
agarra-se a um cipó e salta. Mas dessa vez suas mãos escorregam do
cipó umedecido, atrapalhando o mortal. Ele aterriza de pé, porém
muito inclinado, então o impulso o força para a frente, até cair de cara
num fosso raso de drenagem cheio de água da chuva. As crianças
aplaudem o mergulho e o toque cômico de JoJo, que opta por não se
levantar, continuando largado na poça como um peixe capturado. Os
pequenos gargalham, apertando o estômago. Esse JoJo! Ele faz cada
coisa! Mas o garoto se demora, eles se entediam, e, aos poucos, retiram-
se.
“JoJo está escondido na água, não quer brincar”, um deles diz à
Grande Ammachi.
Meio adormecida pela amamentação, ela apenas sorri.
Segundos depois, arranca a bebê do peito. Os braços da filha voam
para os lados, como se querendo aparar uma queda. Ela a põe na cama.
“Que água?”, grita. “Me mostre! Onde?” A criança se assusta, mas
aponta na direção do dique de irrigação, e ela corre.
Logo ela avista os ombros e a nuca de JoJo na superfície da água, o
cabelo molhado cintilando, aquele cabelo tão difícil de lavar. Salta no
fosso turvo, machucando a coluna devido à inesperada profundidade da
poça — tão rasa que mal lhe chega aos joelhos —, e vira JoJo para
cima. Aperta o estômago dele, sai lama de sua boca. Ela implora,
chorando: “Respire, JoJo!”. Depois grita: “ayo, jojo, pelo amor de
deus! respire!”. O som corta os ares, alcança quase dois quilômetros.
Chegam-lhe aos ouvidos os pisões esmagando as folhas úmidas. Seu
marido se lança de joelhos, aperta a caixa torácica do filho, pressiona-
lhe a barriga. Shamuel acorre sem fôlego e se ajoelha do outro lado do
casal, enfiando os dedos na boca de JoJo para tirar mais e mais lama,
mas ele não respira. Georgie suspende JoJo pelos tornozelos enquanto
Ranjan sobe e desce os braços do menino, a água escorre, mas ele não
respira. Ranjan aperta os lábios de JoJo contra os seus e sopra ar para
dentro dos pulmões, enquanto o menino pende de cabeça para baixo,
os braços ao longo das orelhas como um peixe içado… Mas ele não
respira. Deitam-no e se revezam na respiração boca a boca, batendo-lhe
nas costas, pressionando sua barriga. Ela os cerca enlouquecida,
arrancando os cabelos, incrédula, chorando e gritando: “Não parem!
Não parem!”, porém JoJo, teimoso na vida, é ainda mais teimoso na
morte e não respira para ela nem para o pai, nem para Shamuel ou
todos os demais que tentam de tudo; nada de respirar para aquietar
aqueles corações partidos. Os esforços para salvá-lo parecem violar seu
corpo amolecido. Por fim, o marido os afasta e toma o filho nos braços,
arfando, o corpo trêmulo.
Ela registra um choro agudo ao longe que esvazia um par de
pequenos pulmões, depois uma puxada de ar e outro grito. Esqueceu-se
completamente de Bebê Mol! Chorar significa que você está vivo.
Recua, temendo deixar JoJo, então corre até o quarto. Num gesto
rápido levanta sua chatta e entrega um mamilo à bebê, alarmando-a
com a brusquidão e renovando-lhe o choro. Analisa o rosto da filha, as
gengivas nuas, a careta feia de insatisfação; ressente-se daquele desejo
cego por seu peito. Por fim, a neném se acopla.
Com a filha no peito, ela cambaleia para JoJo, sua sombra e
companheiro fiel por oito de seus dez anos, seu homenzinho, estirado
no banco da varanda ao lado do pai, a barriga grotescamente
distendida. O marido despedaçado se vira e apoia o braço erguido
contra uma pilastra, como se quisesse derrubá-la, mas esse apoio é tudo
o que o mantém de pé. A expressão no rosto de JoJo é de perplexidade.
Ela se acocora ao lado do filho, põe a mão em sua testa fria e chora. Os
olhos de Bebê Mol reviram-se de medo, e ela morde com mais força o
mamilo. Senhor, pensa Grande Ammachi, estou disposta a trocar esta
nova filha se você me devolver meu JoJo. Esse pensamento a envergonha,
e ela retoma um pouco da sanidade. Aproxima-se do marido, ainda
acorrentado ao pilar, tão silencioso na dor quanto na alegria.
9. Fiel nas pequenas coisas

parambil, 1908

“Afogar-se em terra”: é assim que ela pensa no que aconteceu. Nos


dias seguintes, tem um pesadelo recorrente: leva os filhos, a mãe e o
marido sobre a cabeça, curvada sob o peso daqueles corpos, sabendo
que se parar vai se afundar na terra e ficar com a boca entupida de
lama. Quando alcança a pedra de descanso, a laje horizontal está no
chão, inutilizada. Olha de um lado, olha de outro, buscando ajuda,
mas está sozinha.
De um jeito ou de outro ela segue em frente, para que Parambil
também o faça. Se seu pai estivesse vivo, ele iria encorajá-la a ser “fiel
nas pequenas coisas”. Nada o abalava, nem mesmo o sofrimento. Ela,
porém, resiste a esse versículo. Está furiosa com Deus. “Como posso ser
fiel nas pequenas coisas se o Senhor não é fiel nas grandes?”
Surpreende-se ao se perceber com raiva do marido enlutado. É um
sentimento que cresce aos poucos dentro dela. De início, como um
vespeiro, não passa de um salpico de lama numa viga de madeira. Mas
aquilo vai crescendo, surgem portinholas, e logo um zumbido renitente
pode ser ouvido no interior da pequena morada. Ela reza para a fúria se
extinguir. Reza, embora Deus lhe tenha falhado, mas o que mais
podem fazer os seres humanos nessas circunstâncias? “Nunca vi seus
lábios tocarem bebida alcoólica. Não pode ser acusado de morosidade
ou mesquinhez. Nunca me bateu, e jamais o faria. Senhor, ele não
merece minha ira. Também perdeu o filho. Por que sinto isso?”
Confiando a neném à mãe, ela vai ao quarto do esposo, que acabou
de tomar banho. Nesse horário, que antecede o jantar, ele muitas vezes
se reclina, o braço na testa, como se o ato de banhar-se o exaurisse. A
esposa reconhece esses gestos, porém nunca sabe seu real significado.
Para sua surpresa, ele não está deitado, mas sentado na cama, os
ombros arqueados, a cabeça erguida, como se a esperasse, preparando-
se para o que viria.
“Preciso saber”, ela diz, curta e grossa, parada na frente dele, seus
rostos emparelhados. Ele inclina o ouvido direito. De uns tempos para
cá, ela já sabe: o marido escuta mal, coisa que seu silêncio torna menos
óbvio. Ela repete o que disse, ele observa seus lábios para conferir se há
algo mais.
Qualquer outro homem teria dito: Saber o quê? Mas não ele. Ela não
espera. “Preciso saber” — torce as mãos, exasperada — “dessa
Condição.”
Ela acabou de batizá-la. É um primeiro passo, sem dúvida. Nomeou
essa coisa que ela pressente desde que o casamento foi proposto: os
rumores sobre afogamentos que atravessavam a história da família, a
casa construída longe da água, a raiva da chuva, a forma estranha como
ele se banha — as mesmas coisas que afligiam o filho deles. A
Condição. Não se pode perguntar como caçar uma cobra sem
mencioná-la.
Ele não finge ignorância, mas não se mexe. Mesmo sentado, ainda é
mais alto do que ela. Mas agora a diferença de idade lhe parece ínfima.
“Por nossa filha”, ela diz. “Para que eu possa proteger a menina. E
pelos outros filhos que teremos, se Deus quiser. Preciso saber o que
você sabe. Por que JoJo tinha tanto medo de água? Por que você, meu
marido, jamais anda de barco? Bebê Mol também sofre da mesma
Condição?”
Ele se levanta, assomando sobre a esposa, cujo coração dispara. O
marido nunca chegou nem perto de ameaçá-la. Ela se retesa,
aprumando-se. Ele dá um passo e se estica para alcançar um pacote
enfiado num ressalto quase à altura do teto. Está enrolado num pano e
amarrado com um fio. Segura-o do lado de fora do quarto e espana a
poeira.
“Era dela”, ele responde, como se bastasse. O esposo senta a seu lado
e desenlaça o pano de cânhamo rústico que parece prestes a se
desintegrar. O tecido que compõe a segunda camada é de um belo
kavani. Ela capta o aroma de uma era distante, e de outra mulher, o
mesmo que por vezes paira no porão, e que também impregnava as
roupas que ele lhe deu quando a levou pela primeira vez à igreja. A
mãe de JoJo. No topo da pilha há uma bolsinha de algodão
transparente como gaze que guarda um anel de casamento e o minnu
— o pequeno pingente de ouro no formato de folha de manjericão-
santo com contas de ouro traçando um crucifixo. No dia do casamento,
ele prendeu essa joia ao redor do pescoço da esposa falecida, tal como o
fez ao casar com a mulher atual.
Ele põe de lado a bolsinha e lhe entrega uma pequena folha
quadrada: o registro de batismo de JoJo. Diante do documento, ela se
sente inundada de remorso, como se naquele momento desse a notícia
da morte do filho à mãe de JoJo. Esforça-se para não chorar. Não tem
coragem de olhar para o marido. Sua raiva desapareceu.
Agora a mãozorra dele retira um maço de papéis amassados nas
margens. As traças andaram se banqueteando, outros insetos deixaram
perfurações em formato de lua crescente. Ele desdobra o pergaminho
com cuidado. É um mapa ou quadro ampliado, feito de folhas coladas
nas laterais, mas a cola de pasta de arroz, iguaria das traças, já foi
carcomida em grande parte. O marido abre o mapa, que ocupa seu
colo e o colo da esposa. As anotações estão desbotadas. Em poucos
anos aqueles papéis serão poeira.
Vê-se uma árvore. O tronco escuro e grosso é torto, e nos galhos há
poucas folhas, nas quais constam nomes, datas e anotações. Ela se
lembra de uma genealogia parecida traçada por seu pai. Ele explicava,
com ela sentada em seu colo: “Mateus nos deu a genealogia de Jesus,
desde Abraão. Catorze gerações até Davi, depois catorze de Davi ao
Cativeiro da Babilônia, e outras catorze do exílio ao nascimento de
Jesus”. O pai estava convencido de que Mateus omitira duas gerações.
“Ele era coletor de impostos. Gostava da simetria das catorze gerações
repetidas três vezes, mas é um fato impreciso!”
A árvore no colo dela carece de simetria e é específica. Ela logo
entende que se trata de um catálogo da moléstia que tem despedaçado
a família Parambil, mas, ao contrário do Evangelho de Mateus, esse é
um documento secreto, oculto nas vigas, que deve ser visto apenas por
membros da família, e quando necessário. Foi preciso que o filho
morresse para que ela conquistasse o direito àquela revelação? Ela teve
uma filha com o marido! Estão ligados por sangue, e ainda assim ele
omitiu tudo aquilo.
Ela aproxima o lampião. A anotação mais recente, com o registro do
nascimento de JoJo, certamente pertence à falecida — por que ela teve
permissão para ver isso? A mãe de JoJo já sabia da Condição e fez
perguntas? Outras mãos, algumas velhas e trêmulas, como evidenciam
as falhas nos volteios, espirais e verticais do idioma malaiala,
registraram laboriosamente outras entradas. Escritos da mãe de seu
marido ou da avó, talvez? E de alguém antes disso, e de antes. Há
também fragmentos menores de um papel grosseiro e antiquíssimo no
mapa dobrado.
Ele espreita por cima do ombro dela, as mãos cerradas.
Usando como âncora o nome de JoJo impresso em um dos galhos,
ela vê que a linhagem Parambil recua sete gerações (sem contar os
pedacinhos de papel) no passado e avança mais duas no futuro. Aquelas
são águas desconhecidas. O passado é turvo como aquela tinta que se
apaga, fantasmagórica, a folha que se dissolve. A família ancestral
ostenta traficantes de escravizados, dois assassinos, o sacerdote apóstata
Pathrose — é o que se vê ali. Perto de um nome, ela lê: “Igualzinho ao
tio, porém mais novo” — esforça-se para decifrar a letra miúda — “e
assim nunca casou”. Uma anotação ao lado de certo “Pap­pachen” três
gerações antes da de seu marido diz: “Seu pai, Zacarias, também surdo
e manco quando os olhos se fecharam aos quarenta anos”. Uma nota
solta revelava: “Meninos padecem com mais frequência. Especial
atenção às crianças exuberantes, em tudo destemidas, exceto diante da
água. Quando forem levadas ao rio, todas vocês, mães, saberão”.
Estão descrevendo JoJo. Que mãe escreveu aquele alerta?
Ela volta à árvore, notando um símbolo que se repete em alguns dos
galhos.
“O que são os rabiscos debaixo desse crucifixo estranho?”, ela
pergunta.
“Não são palavras?”, ele responde, baixinho.
A esposa se volta para ele, abismada. Por todos esses anos ela leu o
jornal para ele à mesa de jantar, mas jamais o viu lendo sozinho. Supôs
que fosse falta de interesse. Mas não: ele não sabe ler! Como nunca
percebeu? A inocência daquela pergunta a faz pensar em quando
conheceu JoJo. Precisa segurar as lágrimas.
Ela balança a cabeça. “Não, não são palavras.” Ele diz: “Nesse caso,
parece água. Com uma cruz”.
O marido é iletrado, mas viu o que estava lá, tal como veria o bolor
num tronco de árvore. “Verdade”, ela assente, baixinho. “Uma cruz
sobre a água. Sinal de que morreram por afogamento.”
Ele pergunta: “Shanthama está aí? A irmã mais velha de meu pai?”.
Ela encontra o nome e aponta: eis a cruz sobre a água. “Ela se afogou
antes de eu nascer.”
Que mãe tomada pela dor pensou nesse símbolo? Sob a chama
dançante do lampião, o crucifixo sobre a água também parece uma
árvore desfolhada na cabeceira de um monte de lama fresca: uma
sepultura.
“Há morte por causa de água em todas as gerações”, ela declara,
traçando uma linha com o dedo. Algumas das cruzes têm anotações.
Lê em voz alta: “No lago… no riacho… no rio Pamba…”.
O marido aponta com o queixo na direção da tristeza dos dois.
“Dique de irrigação.” É tarefa dela escrever aquelas palavras.
Até que ponto o casamenteiro sabia da Condição? E quanto à mãe e
ao tio? Sabiam e lhe ocultaram tudo? Ou não? Seu marido, claro, sim.
Ela não quer odiar o homem que ama, no entanto tem que desabafar.
“Queria que você tivesse me contado o que sabia”, ela diz.
“Poderíamos ter protegido JoJo, proibido que se balançasse naqueles
cipós, subisse em árvores para…”
“Não!”, exclama o marido, tão veemente que ela quase derruba os
papéis. Ela já viu aquela raiva dirigida a outras pessoas, jamais a ela.
“Não! Foi o que minha mãe fez comigo. Me mantinha na propriedade
feito um prisioneiro, quando tudo que eu queria era correr, pular e
escalar. E depois de sua morte, Thankamma e meus irmãos fizeram o
mesmo. Quando olho para isso, só vejo rabiscos”, diz, cutucando as
folhas com o dedo. “Sabe por quê? Ela nunca me deixou frequentar a
escola, pois fica do outro lado do rio. Não queria me ver nem perto
dela. Só sei que há sempre um jeito de se chegar a algum local, só que
pelo caminho mais longo. Meus irmãos e irmãs não têm problemas
com água. Foram para a escola. Uma vez, fugi. Meus irmãos e
Thankamma me prenderam. Por amor, diziam! Mas era por medo! Por
ignorância!” Seu tom se abranda. “Minha mãe e Thankamma queriam
meu bem. Queriam me proteger, como você gostaria de ter protegido
JoJo. Como não podemos nadar, fazemos muitas outras coisas.
Caminhamos. Escalamos. Você acha que não choro por meu único
filho? Porém não mudaria nada do que fiz. Os poucos anos que teve na
terra, JoJo não viveu numa coleira, mas como um tigre. Escalava.
Corria. Dava um jeito de compensar a única coisa que não podia fazer.”
Sua voz vacila. Ele se recompõe e continua. “Não escondi nada. Achei
que você soubesse. Seu tio certamente sabia. Sinto muito se você
ignorava. Era só perguntar. Mas não ando por aí com um sino, feito um
leproso, anunciando isso aos quatro ventos. É parte de mim, assim
como acontece com a mulher do ourives, cujo rosto é marcado pela
varíola, ou com o filho do ceramista, que é manco. Eu sou assim. É
esse quem sou.”
Ela se esqueceu de respirar. O esposo disse mais palavras repletas de
significado em uma só noite do que nos oito anos de casamento. A
multidão que há dentro dele — criança, pai, marido — revolta-se e
chora em uníssono.
Então a expressão dele amolece. “Você poderia ter casado melhor.”
Ela lhe toma a mão, mas ele se afasta e deixa o quarto.
Sua mente está um torvelinho. Até aqui, nada sugere que Bebê Mol
tenha medo de água. Ainda assim, mesmo não padecendo da
Condição, a neném será considerada maculada, capaz de transmitir
essa semente ruim.
Com a mão trêmula, registra o ano da morte da mãe de JoJo e
desenha um novo galho projetando-se do nome do marido. Ali escreve
seu nome e a data do casamento, depois puxa um galho da união dos
dois, onde registra: “Bebê Mol”; ela batizará a filha antes dos seis meses,
e então anotará seu nome de verdade e a data de nascimento. Quantos
ramos seguirão Bebê Mol, quando ela se casar? “Agora estou dentro,
Senhor”, diz. “A Condição é minha tanto quanto é dele. Como posso
culpá-lo?”
Sob o nome de JoJo escreve o ano de sua morte e desenha as três
linhas onduladas, fáceis de traçar com os dedos trêmulos. Como era
cruel, como era perfidamente injusto que JoJo morresse do único
elemento que ele tanto se esforçava para evitar. Sobre as linhas
ondulantes ela desenha a cruz, que parece uma árvore no morro do
Calvário, os três pontos partindo-se em sub-ramos, reminiscentes da
cruz de são Tomé, mas ainda lembrando galhos de árvore que foram
podados, deixando os tocos pontudos voltados para o céu. Agora ela se
lamenta com a mãe de JoJo. Sei que ele era seu, mas era meu também, e
o tive por mais tempo. Eu o amava tanto. A caneta toca o papel,
esforçando-se para acomodar no pequeno espaço as formas enroscadas,
as pontas e voltas da escrita malaiala: afogado no dique de
irrigação. Sua mente se perde em imagens de um JoJo muito mais
novo, o sorriso cheio de janelas — se ela tivesse ao menos guardado
aqueles dentinhos, ainda teria algo dele! JoJo insistiu em plantá-los para
que crescessem e virassem uma presa de elefante, mas depois esqueceu
onde os havia enterrado.
Quando termina, contempla o pergaminho; a Árvore da Água, pode-
se chamá-la; a Condição é uma maldição? Ou uma doença? Há
alguma diferença? Ela conhece uma família em que as crianças têm
ossos que se partem com facilidade, e o branco dos olhos tem um tom
levemente azul. Tudo passa conforme crescem, e, já adultos, todos
parecem quase normais. Todavia, quando um primo e uma prima de
primeiro grau se juntaram e mudaram de cidade, o filho deles sofreu
uma série de fraturas durante o parto, e aos dois anos suas pernas
dobravam-se como pernas de sapo, o peito parecia ter sido esmagado e
a coluna era torta. Morreu antes dos três anos.
Grande Ammachi reúne os papéis, substitui por uma fita o fio que os
amarrava e leva a Árvore da Água consigo. Aquilo agora lhe pertence.
Dali em diante, será ela quem restaurará e preservará essa genealogia,
registrando tudo e passando para a frente.
No jantar, ele não a encara. Sua mãe preparou curry de ovo cozido
em um molho rubro grosso, fazendo pequenos cortes nos ovos para que
o molho os penetrasse. Com olhos vermelhos, nada pergunta sobre a
discussão que os dois tiveram a portas fechadas.
Naquela noite, mãe e filha rezam. “Que os vivos e os mortos digam
juntos: ‘Abençoado Aquele que veio, e que virá, e ressuscitará os
mortos’.”
Depois que ela descobre a cabeça e se aconchega com Bebê Mol,
sentindo o vazio onde JoJo dormia, sente-se no direito de falar
francamente com Deus.
“Senhor, talvez Você não queira curar essa moléstia, por razões que
não posso conceber. Mas, se não vai ou não quer curar, nos mande
alguém que possa fazer isso.”
parte dois
10. Peixe embaixo da mesa

glasgow, 1919

Aos sábados, a mãe de Digby o leva ao Gaiety, o que há de melhor


em Glasgow. Anos depois, sempre que pensar naquelas tardes, seu nariz
se irritará, como se inalasse o odor de Jeyes Fluid que emanava dos
assentos. Mas aquele desinfetante, por mais pungente que fosse, nunca
pôde encobrir o chei­ro de tabaco velho que exalava do piso e das
paredes.
Os olhos do bilheteiro Johnny atentam a outros pisos, não mais
aqueles de seu tempo de lutador. Já não diz que um menino de dez
anos não deveria frequentar shows de variedades. As dançarinas dão
início à matinê, e sua mãe cobre seus olhos até que os mágicos, a
próxima atração, subam ao palco. As manchas flutuantes que nublam a
visão do garoto só desaparecem na apresentação seguinte — o
engolidor de espadas, ou o malabarista.
O público é barulhento e depois do intervalo também se mostra
menos tolerante, embriagado da cerveja forte. A névoa de fumo é mais
espessa do que a neblina matinal sobre o rio Clyde. Os comediantes
vão à luta como gladiadores, brandindo cigarros em vez de bastões.
Passam-se oito minutos até que a bituca queime a ponta de seus dedos,
e este é o tempo que eles têm no palco. A maioria é expulsa sob vaias
em menos de cinco.
O semblante de sua mãe se mantém impassível o show todo, seus
pensamentos distantes, o que sempre preocupa Digby. Pensaria na
época em que ela se apresentava nesse palco? A mãe desistiu da carreira
no teatro, talvez até da fama, porque o levava no ventre. Ou será que
pensa no homem que conheceu aqui e arruinou sua vida? Digby
estuda os artistas. Nunca conheceu seu pai, Archie Kilgour, mas ele era
dessa trupe que sempre viaja de cidade em cidade, assombrando os
mesmos pubs em cada localidade (em Glasgow, era o Sarry Heid),
gente muito mais familiarizada com os donos dos bares do que com os
próprios filhos, dormindo nas mesmas espeluncas teatrais, como a da
sra. MacIntyre. A mãe de Digby certa vez contou que Archie Kilgour
pregou um arenque defumado debaixo da mesa de jantar, porque a sra.
Mac­Intyre lhe negou crédito. Digby perguntou por que naquele lugar.
“Pense um pouquinho, Digs. É o último lugar que a sra. MacIntyre
procuraria por algo podre. Isso é a cara dele. Capaz de chegar tão baixo
que podia deslizar de cartola por baixo da barriga de uma cobra.”
Alguns dizem que Archie embarcou para o Canadá, outros, que
nunca partiu. O verdadeiro talento dele era desaparecer. Tudo que
Digby realmente sabe é que ele é do tipo que deixa um peixe embaixo
de uma mesa, como o deixou na barriga da mãe. Digby imagina meios-
irmãos que ele certamente tem em outras cidades do circuito:
Edimburgo, Stirling, Dundee, Dumfries, Aberdeen…
O finale apoteótico é sempre “There’s a Girl for Every Soldier”, que
ainda ressoa nos ouvidos do garoto quando se retiram. Ele se sente
cheio de vida, mais leve do que o ar, só deseja que a mãe pudesse se
sentir assim também.
Digby não consegue imaginar época mais empolgante. Os irmãos
Wright fizeram o primeiro voo mais pesado que o ar em 1903, mas,
como todo estudante escocês sabe, os irmãos Barnwell fizeram o
mesmo em Causewayhead pouco depois. Seu sonho é pilotar um
bimotor, tornar-se mais leve que o ar! Passear pelos céus de Glasgow
com a mãe, arrancando-lhe sorrisos e a deixando-a orgulhosa.
Às quartas-feiras, os dois se presenteiam com um agrado de meio de
semana: chá no Gallowgate. Digby a espera na porta da fábrica de
máquinas de costura Singer, entre os milhares de funcionários que
fluem ao fim do turno. Os protestantes saem primeiro. Católicos como
sua mãe saem depois — recebem os piores salários e fazem os piores
serviços. O supervisor da mãe é protestante e, claro, torce pelos
Rangers. Glasgow, como a maioria das cidades escocesas, está dividida
violentamente por religiões. Seus avós faziam parte da onda de
imigrantes irlandeses que vieram para a Escócia depois da Grande
Fome, transformando o East End em um bastião católico (e na sede do
Celtic).
Digby adora contemplar a torre do relógio na praça, que se ergue por
seis andares. Os prédios da fábrica se estendem dos dois lados, como
trens de quase dois quilômetros de comprimento. Cada face da torre, o
monumento mais famoso de Glasgow, tem um relógio maciço de duas
toneladas com singer escrito em letras garrafais sobre cada disco,
visíveis de qualquer parte da cidade. Digby já soletrava singer antes
mesmo de escrever seu nome. Parado ali tão perto, olhando para o alto,
ele se sente na presença de Deus, cujo nome é singer. Deus tem os
próprios trens e a própria estação para transportar partes da fundição
para Helensburgh, Dumbarton e Glasgow. Deus produz um milhão de
máquinas de costura por ano e emprega quinze mil pessoas. Deus
permite que não falte papel de desenho e tinta de aquarela para Digby,
bem como permitiu que ele e a mãe saíssem da casa da avó e morassem
sozinhos, livres para serem bobos e ruidosos e tomar chá com geleia
todos os dias, se assim o quisessem, e sempre queriam.
O barulho de centenas de botas de cardas grossas anuncia que os
trabalhadores estão descendo os degraus da fábrica. Ele logo avista a
mãe, bela e ruiva. O modo como os homens a olham o irrita e faz com
que queira protegê-la. “Dê o fora! Não quero mais saber de homens”,
ela diz, cortando um pretendente. “Uma boca para comer e dizer
mentiras, mais nada.”
A mãe não está nem um pouco contente. “Reduziram os montadores
para doze, e o restante dos funcionários precisa dar conta de tudo. Um
horror — não temos tempo nem de fazer xixi. E tudo para o bem da
‘eficiência industrial’!” Hoje não haverá chá. Companheiros de
trabalho reúnem-se ao redor da mesa de jantar de sua mãe, planejando
uma greve. Digby os ouve dizer que Deus — o sr. Isaac Singer — é, na
verdade, o demônio. Deus é um polígamo com uma dúzia de filhos de
várias esposas e amantes. Parece muito com Archie Kilgour. Durante
toda a semana, sua mãe anda metida em reu­niões noturnas, buscando
apoio, voltando tarde, os olhos acesos, mas pálida de tão exaurida.

Ele fatia pão para comerem com chá quando ouve os passos da mãe
na escada, cedo demais. Um terrível pressentimento o assalta. “Me
mandaram embora, Digs. Deram um pé na bunda de sua mãe.
Encontraram um motivo.” Se ela pensa que seus companheiros de
trabalho farão greve para apoiá-la, engana-se. E, como já não está
empregada, o fundo dos grevistas não vai pagá-la.
Só lhes resta voltar para a casa da avó, uma hipocondríaca flatulenta
que faz o sinal da cruz quando ouve os sinos da igreja e se refere a
Digby como “o bastardo”. Ele e a mãe dormem na sala — ficam sem
geleia, às vezes sem pão. Sua mãe está debaixo das cobertas quando
Digby sai para a escola e assim ele a encontra quando volta. Seus olhos
apáticos lembram o hadoque no gelo no mercado de peixes de Briggait.
“Nada de bom jamais saiu do Gaiety”, a avó diz à filha, satisfeita.
É assim que o mundo de um menino desmorona. Ao retornar da
escola, o monstro de quatro olhos na torre monitora todos os seus
movimentos. Nenhuma canção se repete em sua cabeça. Ele e a mãe
são intrusos numa casa que cheira a fumos de caixão de uma “velha
farisaica melindrosa”, como a mãe dizia.

O médico que foi ao pequeno apartamento ver sua mãe diz que ela
está “catatônica”. Quando ela finalmente recobra as forças, Digby a
acompanha às fábricas, às agências de contabilidade e farmácias.
Trabalho, qualquer trabalho, seria terapêutico. Mas era como se ela
andasse com um cartaz no pes­coço escrito: agitadora ruiva feniana.
Foi assim que o açougueiro a des­creveu. Ela faz faxina quando pode;
inválida, é contratada para cuidar de inválidos.
Os invernos são tão frios que Digby não tira o gorro em casa, mas
precisa tirar a luva para fazer as lições. A avó atormenta a mãe.
“Levante. Não temos carvão e a comida é pouca. Se tiver que mendigar
ou abrir as pernas, faça isso. Foi assim que se meteu nessa confusão.”

Passados sete anos da demissão, os dois continuam na casa da avó.


Depois da escola, por hábito, ele cuida da mãe, senta-se a seu lado,
desenhando em livros contábeis manchados de água que um vizinho
lhe deu. Traça um mundo rico e sensual com lápis e tinta. Lindas
mulheres de salto alto cujas panturrilhas se transformam em pilares
eróticos, mulheres de ombros esbeltos e cadeiras largas, com chapéus
chiques e casacos de pele. Aqui e ali um peito salta de uma blusa.
Anúncios de jornal são bons para aperfeiçoar o traço. Os olhos que ele
desenha estão melhorando; o pequeno quadrado de luz refletido sobre
a íris dá vida às suas criações, permitindo-lhes contemplar o criador.
Quando Digby encontra um livro de anatomia na Biblioteca
Clydebank em Dumbarton Road, a mulher de seus desenhos começa a
ter uma pele cuja transparência revela ossos e articulações. Ele se
consola pensando que, por mais decepcionantes que os seres humanos
possam ser, os ossos, os músculos e as vísceras são sempre os mesmos,
donos de uma arquitetura interior imutável… exceto pela “genitália
externa”. As partes íntimas femininas são mais discretas do que
imaginava: um tufo peludo, um portal entre lábios misteriosos que o
deixa cheio de dúvidas.
Sua mãe era a mulher mais glamourosa que ele conhecia. Agora,
tantos anos depois da demissão, ela parece ter entregado os pontos,
pouco fala, e ainda passa horas e horas na cama. Mesmo assim, na
linha de seu braço dobrado sobre o rosto, no ângulo entre o antebraço e
o pulso, e também entre a palma e os dedos, ela exibe certa
graciosidade inata. O cabelo ruivo já não parece um incêndio, e o
topete grisalho faz parecer que ela esbarrou em tinta molhada. Às vezes
se demora encarando o filho, punindo-o com o olhar: Digby sente-se
responsável por todos os problemas dela. Sua mãe envelheceu, mas ele
tem certeza de que ela jamais se parecerá com a avó, com aquelas
fissuras inflamadas no canto dos lábios, os anteparos de uma boca suja.
A única ocasião em que a mãe briga com o filho é quando ele diz
que vai deixar a escola e começar a trabalhar. “Faça isso, e eu morro”,
diz, furiosa. “A única coisa que me consola em todo esse inferno é você
ser o melhor aluno da sala. Sonho com seu sucesso. Não me
decepcione.”

No fim, é ela que o decepciona. Àquela altura ele é quase um


homem, com bolsa de estudos no Carnegie College — um rapaz de
futuro, contra todas as probabilidades. Planeja estudar medicina,
atraído como é pelo corpo e seu funcionamento.
Chega em casa em um domingo depois de uma sessão tutorial que
durou o dia inteiro. A avó não está. Pairando acima de sua
escrivaninha, a mãe lhe mostra a língua obscenamente, uma língua três
vezes maior do que o normal e azul. Seus olhos de sapo zombam dele.
O cheiro lhe diz que a mãe defecou. Ela pende de uma viga, os dedos
dos pés só um tiquinho acima do chão. É a gravata escolar do filho que
mordisca a carne azulada de seu pescoço.
Digby larga os livros e se encolhe contra a porta. Era por isso que ele
montava guarda junto dela. Era isso que temia, embora não ousasse
expressar. Está aterrorizado demais para se aproximar do corpo e arriá-
lo.
Deixa que a avó descubra sozinha. Ela grita, e logo seus soluços
transbordam do quarto. A polícia desamarra o corpo. Os vizinhos
contemplam boquiabertos a forma sob o lençol. A alma de sua mãe
estava morta havia muitos anos, e agora era a vez do corpo.
Digby está na calçada. É dia 22 de maio, já transcorreu um quarto de
século, já passou uma década depois de uma guerra produzir chacinas
terríveis. Uma morte a mais, uma a menos, que diferença faz? Para ele,
faz. Seus pés o transportam dali. Quer encontrar pessoas, luzes, risos.
Logo se vê num pub cheio de boêmios. Precisa gritar para a garçonete,
pedindo duas canecas de cerveja. “Para o degas aqui e seu amigo”, diz,
apontando para os fundos. O gosto é horrível. Ele pensa em Archie
Kilgour. Está enchendo a cara hoje, seu bêbado? Você é viúvo agora,
sabia? Para a mãe, ele não tem lágrimas, apenas palavras rancorosas.
Você pensou em mim, mamãe? Acha que foi para um lugar melhor?
É expulso do pub, não sabe bem por quê. Depois, chega a um bar
pequeno e escuro, onde os bebedores são sérios e silenciosos.
Empoleira-se perto de um grupo de rapazes que o olham torto. “Duas
cervejas para o degas aqui”, diz de novo, porém dessa vez não se dá ao
trabalho de levar as canecas para a mesa, secando a primeira ainda no
balcão. Repara nas bandeirinhas azuis e brancas na parede à frente, em
seguida vê as mesmas cores nos cachecóis daqueles homens taciturnos.
Puta que pariu, é um bar de torcedores do Rangers. Prende o riso, mas
não se segura. “Os putos dos Rangers!” Balança a cabeça. Disse aquilo
em voz alta?
Um homem chama Digby para a rua. Digby tem uma ideia melhor:
vai beber a segunda cerveja ali mesmo, onde está.
Um punho lhe acerta o ouvido. Uma garrafa é quebrada, uma coisa
afiada raspa o canto de sua boca. O dono do bar dá a volta no balcão
para largá-lo na calçada. “Dê o fora antes que acabem com esse seu
sorriso, e com você também!” Digby cambaleia pela esquina, já sóbrio
diante da constatação de que aqueles homens silenciosos acham que
matar é muito mais divertido do que beber.
Numa banca de revista, cem rostos bonitos e idênticos zombam dele,
triunfantes. a coroação de lindbergh, lê-se na manchete. o herói da
américa. O sangue em sua boca é vagamente doce, vagamente
metálico. A manga da camisa está vermelha. Seus olhos não
conseguem focar. Será possível que um homem tenha mesmo cruzado
o Atlântico de avião? Sim! É o que diz a manchete. Um avião chamado
Spirit of St. Louis. Lindbergh pousou, a mãe subiu aos céus. Ele não
sente dor nenhuma.
11. Castas

madras, 1933

“Viajar abre a mente e solta os intestinos.” Um kebab de carneiro de


um carrinho de rua em Port Said deixa Digby de quatro, confinando-o
à cabine por dois dias, tempo suficiente para apreciar as palavras de
despedida do professor Alan Elder em Glasgow. Quando se recupera, já
cruzaram o canal de Suez e agora passam por Bab-el-Mandeb, o Portal
das Lágrimas. O estreito de menos de treze quilômetros de largura
conecta o mar Vermelho ao oceano Índico. De um lado da proa, vê-se
Djibouti; do outro, o Iêmen. Salvo por um posto de três meses em
Londres, Digby passou seus vinte e cinco anos de vida em Glasgow, e
talvez ficasse por lá o resto da vida, e jamais veria essa confluência de
águas, jamais descobriria, com os próprios olhos, que o canal da
Mancha, o Mediterrâneo, o mar Vermelho e o oceano Índico, a
despeito das personalidades individuais, são um só. Toda água se
conecta, só a terra e as pessoas são descontínuas. E em sua terra ele já
não pode ficar.
Sob seus pés, o navio é um ser vivo que geme e suspira. Ele passeia
pelo deque de chapéu, mas as abas largas não impedem o sol de quicar
na água e lhe bronzear o rosto, ressaltando a cicatriz pálida e denteada
que lhe vinca a face esquerda, estendendo-se do canto da boca à orelha.
Os humores e cores cambiantes do mar Arábico — cerúleo, azul, preto
— espelham o fluxo e refluxo de seus pensamentos. O horizonte se
eleva, depois mergulha, salpicos de água salgada refrescam seu rosto.
Tem a sensação de que, embora esteja parado, salta para o futuro.

Digby espia uma cabine de primeira classe; envergonha-se da


curiosidade, mas admira as poltronas e os sofás, as cortinas grossas de
brocado, as portinholas que permitem o trânsito de camareiros e
arrumadeiras. Há um marajá a bordo; ele e sua comitiva reservaram a
primeira classe inteira. Digby vai de segunda, tem uma pequena cabine
só para si. Há mais duas classes abaixo da dele, e a segregação é tão
completa que ele apenas escuta seus ocupantes, jamais os vê.

Um mar revolto torna a confiná-lo na cabine — enjoo, ou uma


recaída da enfermidade provocada pelo kebab de carneiro. Ser médico
implica não ter nenhuma objetividade em relação aos próprios
sintomas. Quando se ausenta da sala de jantar por duas ocasiões,
Banerjee, com quem compartilha a mesa, vai até sua cabine.
Alarmado ao ver que Digby mal consegue erguer a cabeça, o rapaz
volta com uma canja e um elixir paregórico. O odor de cânfora e anis
invade a cabine e aquieta o estômago. Banerjee — ou Banny, como
prefere ser chamado por Digby — tem vinte e sete, vinte e oito anos,
cara de bebê, compleição de menino criado com leite e nata, sem que
carne alguma jamais lhe tocasse o palato; sua pele de um moreno
suave, que ele protege do sol com cuidado, é mais clara que a pele
queimada de Digby. Banny parece jovem demais para ser o advogado
que é, formado depois de quatro anos de estudo em Londres. Seu
percurso é muito parecido com o de Gandhi, ao fim do século passado
— uma observação que Banerjee faz com discrição, mas cheio de
orgulho.
Quando Digby volta à mesa de jantar, a sra. Ann Simmonds, esposa
do coletor distrital na presidência de Madras, diz: “Hoje é pato”, como
se não tivesse notado a ausência do rapaz indisposto. Seu rosto largo
não tem margens nem ângulos; lembra um buldogue, ele pensa, os
mesmos olhos caídos e lacrimosos. Desde o primeiro dia ela assumiu o
controle da mesa, comportando-se como uma passageira de primeira
classe que escolhera jantar com a plebe por generosidade. Ouvindo sua
conversa tediosa, como tem sido todas as noites, Digby se lembra dos
três meses que trabalhou no Saint Bart’s Hospital, em Londres —
prêmio pelo primeiro lugar num concurso no terceiro ano de medicina
em Glasgow. Antes de conviver com as enfermarias do Bart, ele não
fazia ideia de que tinha sotaque nem que seu modo de falar fizesse os
outros o considerarem provinciano ou estúpido. Foi uma epifania
abrupta. Digby não conseguiu camuflar o sotaque por completo, porém
era possível suavizá-lo; lutava para evitar certas palavras, frases ou
pronúncias que o estigmatizavam. Não que esses esforços tivessem
ludibriado a sra. Simmonds, que basicamente o ignorava e agora dizia a
um comensal do outro lado da mesa: “Nós, os ingleses, sabemos o que
é melhor para a Índia. Quando chegarmos lá, você vai ver”.
Naquela mesma noite, Digby passeia pelo deque com Banny. Apesar
do elo que se formou entre os dois, ainda não discutiram política.
Digby confessa sua ignorância em relação ao mundo para além de
Glasgow, ou mesmo para além dos muros do hospital. “Vivi os últimos
anos na enfermaria. Não tinha motivo para ler notícias, a não ser que
um jornal surgisse debaixo de um curativo ou de dentro de uma barriga
que eu tivesse acabado de abrir.” Vinha compensando essa lacuna
lendo os jornais na biblioteca do navio. As manchetes falam da
intenção da Alemanha de se remilitarizar, apesar do Tratado de
Versalhes. Um novo chanceler beligerante promete guiar o país para
longe da devastação econômica. Mas quase não há notícias da Índia.
“Você pode perguntar à sra. Simmonds.”
“Não, obrigado.”
Banny sorri, polindo as lentes e cerrando os olhos. “Por que ir para a
Índia, Digby?”
Digby avista nuvens ao longe, dispostas como se ao longo de um fio
de prumo. Imagina a terra mais adiante. Estão descendo pela costa
oeste indiana, passando por Calicute ou Cochim. “É uma longa
história, Banny. Eu me apaixonei pela área de cirurgia. Fui bom
estudante, depois bom residente. Ávido. Dedicado. Quando não estava
em serviço, demorava-me no pronto-socorro, esperando a oportunidade
de participar de uma operação. Mas, no momento em que chegou a
época de seleção para uma vaga numa pós-graduação cirúrgica em
Glasgow, descobri que não pertencia à congregação certa. E fora de
Glasgow eu não tinha a menor chance. Então me juntei ao Serviço
Médico Indiano, na esperança de fazer carreira como cirurgião.”
“A questão era ser católico, não é? Como eles sabiam? Pelo nome?”
“Não. Meu nome pode ser protestante ou católico. Não é como
Patrick ou Timothy ou David. Foi porque ganhei uma bolsa para
estudar no St. Aloysius’ College, uma instituição jesuítica. Isso eu não
tinha como esconder. Mas, de todo modo, é como se eu emitisse sinais
secretos.” Digby olha para o companheiro com certa vacilação. “Sei
que deve ser difícil de entender.”
Banerjee ri. “Longe disso. É bastante familiar.”
Digby se constrange. É estúpido dizer aquilo para um homem que
viveu sob o jugo inglês a vida inteira. O caso é que Banny pode soar e
parecer até mais britânico do que Digby. “Desculpe, eu…”
“Desculpas por quê, Digby? Você é uma vítima do sistema de castas.
Fazemos o mesmo na Índia há séculos. Os direitos inalienáveis dos
brâmanes. Direito nenhum para os intocáveis. Os menosprezados
encontram outro grupo para menosprezar, salvo os mais rebaixados. Os
britânicos apenas nos reposicionaram um degrau abaixo.”

O navio circunda o sul da Índia e segue para a costa de Coromandel.


À meia-noite, Digby vai sozinho até o deque. Das ondas negras surge
um verde-azulado fluorescente, como se uma chama ardesse no fundo
do mar. Ele é a única testemunha daquele espetáculo absolutamente
belo, mas misterioso. (No dia seguinte o comissário lhe informa tratar-
se de um caso raro de plâncton fluorescente.) Aquilo reforçou em
Digby a convicção de que, com aquela viagem, finalmente extirpava de
si o passado, como quem se livra de uma luva manchada. Mais do que
nunca, livrava-se de uma Glasgow assolada pela Grande Recessão,
livrava-se da conversa fiada, do último parente — livrava-se de tudo,
menos da ferida purulenta que aquela vida lhe deixou. A única
indústria que prosperava em Glasgow era a violência. Borbulhava na
região do Gorbals atrás da velha enfermaria e em outras partes da
cidade, dando as caras no pronto-socorro todas as noites. Como médico
residente, Digby costurou muitos rostos cuidadosamente retalhados
pelas gangues que viviam em conflito, os Billy Boys e os Norman
Conks, sempre aquele par simétrico de cortes que subiam dos cantos da
boca até as orelhas, marcando a vítima com o chamado “sorriso de
Glasgow”. Digby se sente afortunado por sua cicatriz ocupar apenas
uma das laterais do rosto; a garrafa quebrada, menos afiada do que uma
lâmina, deixou um vinco sinuoso paralelo ao original. É um estigma
pálido de uma vida que quer esquecer. De Glasgow, até poderia
perdoar a cicatriz, as decepções, o suicídio da mãe. Nada disso
justificaria sua partida; mesmo a miséria, quando a gente se acostuma,
tem seus confortos. O que não podia perdoar era que, depois de todo o
tempo em que trabalhou como escravizado, depois da devoção quase
maníaca à cirurgia, ele bateu à porta e não o deixaram entrar. Seu
mentor, o professor Elder, homem para além de qualquer casta,
embora de família rica de Edimburgo, fez o que pôde para ajudá-lo,
sugerindo uma saída. “Conheço um lugar onde você acumulará uma
ex­pe­­riência tremenda e, com sorte, encontrará grandes mentores na
cirurgia. Já considerou o Serviço Médico Indiano?” Você sempre
cruzará com seu destino, pensa Digby. Era uma frase que a mãe dizia:
seu destino sempre chegará, de um jeito ou de outro.

Quando desembarca em Madras, sente que chegou a outro planeta.


A cidade tem uma população de seiscentos mil habitantes, e a maior
parte deles está no cais, ou pelo menos é o que lhe parece, a julgar pela
cacofonia, a confusão, o calor. Ele inspira os odores de couro curtido,
algodão, peixe seco, incenso e água salgada, as notas mais
proeminentes do cheiro ancestral dessa velha civilização.
Estivadores pipocam dos porões do navio como colunas de formigas,
curvando-se sob o peso dos sacos que levam sobre os ombros, o suor
lustrando a pele escura. Mulheres aglomeradas na porta da alfândega
compõem um buquê de sáris verdes, vermelhos e laranja, com padrões
inusitados. Fascina-o uma pedrinha brilhante em um nariz aqui, um
ponto vermelho numa testa reluzente ali, acolá o ouro pendendo das
orelhas, refletindo o acabamento carregado dos tecidos. As carruagens e
riquixás enfileirados do lado de fora têm todas as cores do arco-íris. A
paleta vibrante e desinibida de Madras é uma revelação. Algo que se
tencionava dentro dele se distende.
No alpendre da alfândega, ele observa a sra. Ann Simmonds
cumprimentar um homem baixo e robusto, provavelmente seu marido,
o coletor distrital: nenhum dos dois parece muito contente com o
reencontro. Ela marcha em direção a um pequeno carro, o queixo
sempre para cima e o nariz atarracado apontando na direção de
Westminster; arroga-se ares de nobreza.
“Oi! Eu disse não! Seu babu insolente! Quer tomar um sopapo?”
Digby vira-se para ver um inglês esbaforido erguendo-se atrás de uma
mesa da alfândega, encarando Banerjee. A cena lhe dá calafrios, o
reconhecimento doloroso de que, ao pisar ali, ele é também um dos
invasores; ele tem o direito inalienável de ser atendido primeiro no
passadiço, de ter os documentos rapidamente carimbados e de não ser
tratado daquela forma.
No alpendre úmido da alfândega os ponteiros do relógio paralisam,
esperando o desenlace. Naquela sauna, a respiração de Digby se
acelera, e, por instinto, ele dá dois passos para intervir.
Nesse momento, outro oficial da alfândega intercede. Banerjee
deseja apenas visitar um amigo em Madras, durante a parada de doze
horas do navio com destino a Calcutá. O oficial-chefe lança um olhar
impaciente ao subordinado, carimba os papéis de Banerjee e o deixa
partir. Banny encara Dig­by. Seus olhos de pálpebras caídas estão duros
como pedra, expressam o ressentimento obstinado e a resolução
inabalável de uma nação subjugada que espera sua vez. Logo em
seguida esse olhar desaparece. Banerjee dirige a Digby uma expressão
estoica e parte em direção à saída destinada aos não brancos. Não se
despede.
12. Dois grandes

madras, 1933

O funcionário do hospital que o recepciona no porto fica chocado


quando vê que Digby não trouxe um baú, apenas uma mala já bem
surrada. Os dois partem de riquixá tracionado não por um animal, mas
por um homem. O calor e um toque de mal de débarquement deixam
Digby desorientado; aos poucos ele vai assimilando as vacas que se
demoram no meio da avenida larga, o borrão de rostos escuros de
ambos os lados, o sapateiro que labuta na calçada suja, os edifícios
caiados, mais baixos do que ele esperaria, a aglomeração de barracas às
margens de uma espécie de lagoa de água estagnada. Eles saltam à
altura de um bangalô não muito longe do cais, próximo ao Long­mere
Hospital, o novo posto de trabalho de Digby.
Um homem baixinho de camisa e calça brancas, os pés descalços,
lhe circunda a cabeça com uma guirlanda de jasmim e depois une a
palma das mãos à altura do queixo. Muthusamy será o cozinheiro e
criado de Digby. Para alguém acostumado a ter uma lata de sardinhas
como café da manhã, almoço e jantar, Digby mal pode conceber a
ideia de ter um cozinheiro particular, muito menos um que lhe oferece
uma guirlanda de jasmim. Os dentes brancos de Muthu são como um
farol em seu rosto preto como carvão; sua testa exibe três linhas
horizontais desenhadas com cinzas — um vibuthi, marca sagrada
hindu que Digby logo o verá traçar todas as manhãs após acender um
incenso de cânfora e rezar diante do pequeno ícone de um deus
aboletado numa prateleira da cozinha. Muthu parte o cabelo grisalho
ao meio e o fixa para trás com óleo; o homem irradia gentileza. Digby
toma um banho e senta para comer a refeição que Muthu preparou:
arroz com o que o cozinheiro chama de “frango korda” — frango num
molho alaranjado. Digby está faminto, e o korda misturado ao arroz é
delicioso, uma explosão de sabores inéditos em seu palato. Está quase
terminando quando percebe, tarde demais, que sua boca arde e a testa
está encharcada de suor. Depois de aplacar aquele incêndio com goles
de água gelada, deita-se na cama, sob um preguiçoso ventilador de teto.
Seu último pensamento antes de adormecer é que deve pedir a Muthu
para maneirar os ingredientes inflamáveis, pois precisa se acostumar aos
poucos. Digby dorme por onze horas seguidas.

Na manhã seguinte, o cirurgião-assistente Digby Kilgour chega para


trabalhar no conjunto de edifícios de dois andares que compõem o
Longmere Hospital. Encontra-se tão perto do porto que o cheiro de
alcatrão e salmoura chega às enfermarias. Digby vai se reportar ao
cirurgião Claude Arnold, que, como o assistente logo fica sabendo, não
é adepto de horários rigorosos. Uma hora se passa; de vez em quando o
administrador encarregado do consultório repete uma frase curiosa: “O
dr. Arnold está vindo diretamente agora, senhor”. O administrador, a
secretária anglo-indiana e o dublê de cria­do e ordenança de pés
descalços sorriem para Digby. “Aceita um chá, doutor? Ou prefere um
degree coffee?” O tal degree coffee revela-se doce e saboroso; trata-se de
café misturado a um leite quente e cheio de espuma. Conforme lhe
contam, o nome se origina das marcações no hidrômetro ou
lactômetro, que medem o grau de pureza do leite, assegurando que ele
não foi muito diluído em água.
Os ventiladores de teto agitam as bordas dos papéis sobre as mesas,
contidos por pequenos pesos de pedra. Nada mais se move. Os três
funcionários exibem certa habilidade langorosa na arte de não mexer
nenhum músculo naquele calor paralisante. Os cílios da secretária
bonita piscam toda vez que ela olha para o lado, uma espécie de código
Morse, pensa Digby. A pele de seus braços adoráveis é escura, mas o
rosto, coberto de pesada maquiagem, é de um branco pálido que o
batom vermelho e os cabelos negros destacam. Lembra-lhe uma
dançarina sob as luzes do palco.
Por volta do meio-dia, a equipe do escritório se põe a remexer a
papelada; o criado fica de pé. Receberam algum sinal secreto. Minutos
depois, um inglês louro e quarentão, vestindo um belo terno de linho
branco e calçando sapatos marrons luzentes, materializa-se no umbral,
entregando ao criado o capacete de cortiça. A aparição registra a
presença de Digby com um erguer de sobrancelhas. Os ombros largos
sugerem se tratar de um ex-atleta; ele é bonito, mas a tez pálida e os
olhos inchados e avermelhados insinuam uma vida dissoluta. O
bigodinho mais escuro que o cabelo parece meio ridículo a Digby.
O cirurgião-chefe Claude Arnold estuda o recém-chegado: vê um
homem jovem com um bico de viúva no cabelo espesso, um vinco
estranho e irregular na face esquerda, blazer amassado no braço e
calças de lã que só um masoquista usaria em Madras. Digby se agita
nervoso diante desse escrutínio. Claude Arnold demonstra a
autoconfiança de um ex-estudante de uma boa escola, tipo Eton, que se
depara com um colega socialmente inferior. Ao examinar os
documentos do subordinado, os papéis estremecem levemente em sua
mão. Oferece um cigarro; a sobrancelha ergue-se de novo quando
Digby o recusa, como se o jovem tivesse falhado em outro teste. Por
fim, depois de um cafezinho, Arnold se levanta e faz um sinal para o
recém-chegado segui-lo.
“Você ficará encarregado de duas enfermarias cirúrgicas. Sob minha
supervisão, claro”, diz Arnold, por cima do ombro. “Ambas são
enfermarias para os nativos. Para que você pague por seus pecados,
meu caro. Eu me encarrego das alas destinadas a anglo-indianos e
britânicos. Dois práticos vão trabalhar com você, Peter e Krishnan.”
Desfruta demoradamente do cigarro, como para mostrar a Digby o que
está perdendo. “Não gosto de práticos. Preferia ter um médico de
verdade, não um babu imitando um médico.” Digby sabe que clínicos
práticos fazem um curso abreviado de dois anos. “Mas é a Índia, sabe
como é. Não podemos passar sem eles, pelo menos é o que nos dizem.”
Arnold faz uma parada na enfermaria para nativos do sexo
masculino. “Onde está a enfermeira-chefe Honorine?”, pergunta,
irritadiço, à enfermeira morena que corre para saudá-lo com um sorriso
prestativo. Honorine foi à farmácia.
Alguns pacientes ocupam leitos dispostos em ambos os lados do
cômodo alongado, de pé direito alto; outros descansam em esteiras
entre as camas. Na parte externa há um alpendre coberto, com mais
homens em esteiras. Um deles, com uma barriga grotescamente
inchada e um rosto chupado que enfa­tiza os ossos da face, senta-se na
beirada da cama, apoiando-se em seus bra­cinhos de vareta. Ao
encontrar os olhos de Digby, sorri, mas o rosto está tão estragado que o
sorriso mais parece uma careta ameaçadora. Digby acena. A visão do
sofrimento lhe é familiar, é um idioma que transcende fronteiras. A
enfermaria para nativas do sexo feminino fica do outro lado do corredor
e também está cheia.
No momento, a ala dos anglo-indianos do dr. Claude Arnold conta
com apenas um paciente, sob os cuidados de um estagiário. Os demais
leitos cuidadosamente arrumados estão vazios. Arnold não mostra a ala
a Digby. Essa enfermaria, como o jovem médico descobrirá mais tarde,
é composta de seis quartos particulares no último andar, todos
desocupados. Para questões cirúrgicas, os pacientes britânicos ou anglo-
indianos bem-informados preferem o Hospital Geral, próximo à estação
ferroviária, ou o Royapettah Hospital.
No segundo piso, duas salas de cirurgia conectam-se à área de
higienização. “Hoje é dia de cirurgia para os pacientes de suas
enfermarias”, Arnold informa Digby. “Você fica com terças e sextas. Faz
tempo que os nativos não têm um cirurgião. Bem, há os práticos que
até poderiam fazer algumas operações, se eu permitisse. Mas então em
pouco tempo abririam consultórios em alguma cidadezinha,
apresentando-se como cirurgiões.” Arnold aponta para o quadro de
avisos. “Dê uma olhada”, ele diz, desaparecendo de vista.
A lista de cirurgias daquele dia impressiona: duas amputações, uma
fila de casos de hérnias e hidroceles e quatro I&Ds — sigla para incisão
e drenagem de abscessos tropicais. Digby não vê nenhuma operação de
maior complexidade. Arnold retorna com um brilho nos olhos até
então ausente. Digby sente que dele emana certo odor medicinal.
“Então, você é cirurgião”, diz Arnold, de repente, voltando-se para
Dig­by com um charme inesperado, quase sorrindo.
“Bem, não exatamente, dr. Arnold. Passei o total de um ano e…”
“Bobagem! Você é cirurgião! Aliás, me chame de Claude.” Esse novo
tom amistoso é como o do capitão de um time de críquete que precisa
de dez boas rodadas de seu último rebatedor. “Aprende-se cortando.
Lembre-se, Kilgour, para essas pessoas, a escolha é entre você ou nada.
Arrisque!” Os cantos de sua boca se elevam, como se ele apresentasse
um segredo da profissão, ou talvez uma piada. “Bem, você já pode
mandar bala”, declara. Depois, dirige-se para um ajudante: “Arranje
um guarda-volumes para o dr. Kilgour e o que mais ele precisar.” Essa é
toda a orientação que Digby terá.

Em um piscar de olhos, Digby se vê em trajes cirúrgicos, higienizado


e enluvado. O cheiro daquela sala, a um continente de distância de
Glasgow, lhe é familiar: éter, clorofórmio, fenol e o odor fétido de um
abscesso recém-drenado. Mas as semelhanças com Glasgow acabam aí.
Digby tem diante de si uma visão embasbacante, emoldurada pelas
toalhas cirúrgicas: uma bolsa escrotal inflada, maior do que uma
melancia, caindo até quase a rótula dos joelhos. O pênis está afundado
no inchaço como um umbigo em um abdome obeso. Não foi o que
imaginou ao ler “hidrocele” na lista de cirurgias. Digby esperava ver
uma acumulação discreta de fluidos no espaço envolto pela tunica
vaginalis que cobre os testículos. Já havia operado uma hidrocele
unilateral em uma criança, havia sido um procedimento bem simples.
Aquele inchaço escrotal, do tamanho de um pequeno limão, que ele
guarda na memória, não é parâmetro para este colosso enrugado. Na
sala de cirurgia contígua, há uma amputação em andamento. O prático
não pode ajudá-lo. Claude desapareceu. E Digby agora vive o pesadelo
recorrente de todo cirurgião: o paciente sob efeito do éter, a cavidade
corporal aberta, mas uma anatomia irreconhecível. As pernas do jovem
médico ficam bambas.
A enfermeira tâmil lhe sorri sob a máscara.
“Esse… é bem grande” — é tudo que Digby consegue dizer, as mãos
enluvadas entrelaçando-se à maneira dos prelados.
“Aah, sim, doutor… Grande mesmo”, ela concorda, num tom que
sugere que “grande” é algo a se celebrar, e que coisas pequenas não são
dignas da sala de operação. Seus movimentos de cabeça, como os de
Muthu, o confundem: o que é “não” na Escócia aqui é “sim”, contanto
que haja um leve remelexo. “Mas acima do joelho”, a enfermeira
acrescenta, com uma nota de decepção. Digby leva um tempinho para
entender que hidroceles (e também as hérnias de virilha, como
descobrirá) são classificadas ali como “acima do joelho” ou “abaixo do
joelho”, e que só esta última é verdadeiramente digna de ser chamada
de “bem grande”. Se o espécime fosse um peixe, ela talvez o devolvesse
ao rio.
Digby está encharcado de suor. Sente que lhe enxugam a testa antes
que uma gota respingue no paciente — é a mão do ordenança
descalço, agora encarregado da máscara de éter. A enfermeira apresenta
a bandeja de instrumentos, esperando uma ordem.
“Para dizer a verdade, nunca vi nada assim tão grande.” Digby está
paralisado.
“Grande, sim”, ela repete, porém com menos entusiasmo, sem
entender por que o médico não vai em frente. Uma sósia dela em
Glasgow talvez respondesse: “Sim, é um belo de um saco, e você já
disse isso duas vezes, mas ele não vai encolher só com papo furado,
então chega de conversa e passe a faca”.
13. Da magnificência

madras, 1933

Uma mulher branca e robusta adentra a sala de cirurgia; afobada,


pressiona a máscara cirúrgica contra o rosto, desistindo de amarrá-la.
Mechas de cabelo grisalho escapam pelas bordas da touca, ela também
mal ajustada. “Sou a enfermeira-chefe Honorine Charlton. Quase
alcanço você na enferma­ria.” Ela está sem fôlego. “Ah, coitado, Claude
já te jogou às feras. Que coi­sa! Mal pôs os pés em terra firme.” Seu
sotaque tão forte e familiar marca de imediato sua origem: Tyneside, na
Inglaterra.
Digby se afasta da mesa. “Enfermeira-chefe, eu…” Os olhos azuis
dela, emoldurados por um ninho de belas rugas, entendem tudo.
Ela dá a volta na mesa, aproxima-se dele e sussurra: “Algum
problema?”.
“Não, não! Obrigado… Bem, sim… Estou um pouco perdido”, ele
confessa, sussurrando. “Queria ter examinado o paciente primeiro. Se
pelo menos eu tivesse tido a oportunidade de refletir sobre a operação,
revisar as etapas… Já operei hidroceles, mas, num caso assim, nem sei
por onde começar.”
“Sim, claro!”, ela diz, acalmando-o. “Peter ou Krishnan poderiam te
auxiliar, só que estão ocupados. Mas deixa eu dizer uma coisa: você não
precisa de um assistente, porém, como é seu primeiro dia, se não se
importa, eu mesma posso ajudar.”
A vontade de Digby é dar um beijo em Honorine, mas ela logo sai
para a saleta de higienização. Digby desentrelaça as mãos e, para se
ocupar, refaz o arranjo de toalhas ao redor daquela grande melancia
marrom. A enfermeira-assistente acena com aprovação. O jovem
médico não está acostumado com tamanha deferência da parte da
equipe. Em Glasgow ele era alvo fácil do departamento pessoal ou do
médico-assistente, e a enfermeira o intimidava. Nes­se caso não tinha
nada a ver com religião, mas com a hierarquia médica, embora não se
furtassem de perguntar onde estudara ou se inteirar de suas devoções
futebolísticas — “Qual seu time favorito?”. Digby se envergonha
quando descobre que, na Índia Britânica, ele é apenas branco, o que
lhe garante uma posição superior. A enfermeira nada acrescentará a
esse constrangimento.
Muito polida, ela pergunta: “Dezonzequinze, doutor?”.
“Ele solicita a lâmina onze, obrigada, senhorita”, responde a
enfermeira-chefe, retornando a tempo de decifrar a pergunta, e agora
falando com um sotaque digno da bbc.
Honorine segura a bolsa escrotal com as duas mãos, como se
plantando uma bola de rúgbi na linha do gol. “Temos tanta infecção
filarial em Madras. Entope o sistema linfático. As pernas inchadas,
elefantíase, chamam mais aten­ção, mas há umas cinquenta dessas
belezinhas para cada perna inchada.” Ela aperta a grande bola para
retesar a pele. “Eu faria primeiro uma incisão vertical um tantinho
longa aqui.” Indica uma região à direita da rafe mediana, a linha escura
sobre o septo que divide a bolsa escrotal em dois.
A pele se parte sob a lâmina e o sangue germina pelas bordas. Aos
poucos, enquanto estanca um vaso sanguíneo, Digby vai encontrando
seu ritmo. Sua frequência cardíaca fica mais compassada. A ordem é
restaurada.
Por sugestão da enfermeira-chefe, ele enrola um pouco de gaze no
dedo indicador e puxa a pele escrotal do balão retesado até que o
bolsão de fluido seja retirado por inteiro daquela metade do escroto:
um ovo Fabergé brilhante e imenso.
“Agora você pode drenar. Vou pegar uma bacia.”
Mas Digby já perfurou o balão. Um jato de fluido claro e amarelo
acerta-o em cheio no rosto antes que possa se esquivar. Honorine
segura a bolsa escrotal e aponta a fonte para a bacia. “Bem, você
acabou de ser batizado, aí está, meu querido”, diz, rindo. O ordenança
enxuga os olhos dele.
Quando o balão murcha, Digby poda o excesso de pele dos
testículos, deixando apenas uma aba, e então costura a ponta
seccionada. “Dá pra fazer uma bela blusa com isso”, diz Honorine,
exibindo o tecido brilhante excisado.
Ele repete o procedimento do outro lado do escroto e fecha as duas
incisões. “Muito obrigado, enfermeira. Não sei o que teria feito sem
você.”
“Pode me chamar de Honorine, meu querido. Você se saiu muito
bem. É o mesmo tipo de operação que já fez na Escócia, mas aqui a
patologia estava magnificada.”
Aquela palavra captura a primeira impressão que Digby tem da Índia.
É um termo que usará sempre que se deparar com uma doença
conhecida manifestando-se em proporções grotescas nos trópicos:
“magnificada”.

Todas as manhãs Digby vai trabalhar de bicicleta, não tolera ser


trans­portado de riquixá. Essa manhã, na pequena rua de seu bangalô,
dá de cara com um carpete de flores amarelas caídas de uma grande
canafístula. Ele vira na via pavimentada com macadame, bastante
empoeirada, e ultrapassa um dhobi que leva um grande fardo de roupas
lavadas na garupa da bicicleta. A figueira-da-índia no meio de seu
percurso é um centro de comércio. De pernas cruzadas, o redator de
cartas já está a postos, um papelão lhe serve de mesa e ele anota o que
lhe dita uma mulher. Um ambulante dispõe bugigangas de plástico
sobre um pano no chão; o removedor de cera de ouvido aguarda
clientes. Do outro lado da árvore, o cartomante de túnica cor de
açafrão embaralha as cartas, aquecendo-se, uma gaiola ao lado. Teve
um dia em que Dig­by observou como o papagaio emergia da gaiola
para escolher a carta que re­vela o destino do cliente; antes de retornar à
pequena prisão, o pássaro lança aos céus um olhar saudoso.
Passando por uma barraquinha de chá, o jovem médico repara num
freguês que cerra os olhos, tentando enxergar para além de suas córneas
leitosas. Tem as sobrancelhas escassas e o nariz colapsado, em formato
de sela — sofre de sífilis congênita, sem dúvida. Se tivesse a quem
escrever, talvez catalogasse essas cenas matinais, descrevendo aquela
gente tâmil pequena e bonita, com traços romanos bem desenhados,
olhos cintilantes e sorrisos frouxos. Perto deles se sente pálido,
macilento e bastante vulnerável ao sol.
Digby se dedica de corpo e alma à enfermaria dos nativos. Os
práticos Peter e Krishnan são craques em pequenas operações:
hidroceles, circuncisões, amputações, estreitamentos uretrais,
drenagem de abscessos, remoção de lipomas e cistos. Generosos, eles
lhe transmitem seus saberes. E Digby também os emula bebendo
galões de água, com cápsulas de sal ou lassi sal­gado. O calor e a
umidade não dão folga. Há uma breve estação de chuvas, dizem-lhe,
mas tão tímida que mal merece essa designação.
Antes de sua chegada, pacientes nativos que necessitavam de
cirurgias complexas — tireoidectomias, mastectomias, cirurgias para
úlceras duodenais e ressecções de tumores de cabeça e pescoço —
eram enviados ao Madras Medical College ou ao Hospital Geral.
Agora, Digby assume algumas operações de grande porte com as quais
se sente à vontade; entre essas, a mais comum é a cirurgia para úlceras
pépticas. É inútil receitar terapia antiácida diária a um paciente que
mal tem dinheiro para comer. Durante o procedimento, Digby não
ataca a úlcera do duodeno avariado, optando por remover a parte
produtora de ácido do estômago — uma gastrectomia parcial. Depois
conecta o restante do estômago a um desvio do jejuno, contornando a
úlcera. O jovem médico sente os olhos do professor Elder sobre ele,
ouve sua voz a cada passo, enquanto sutura o intestino: “Se parece
bom, está apertado demais. Se parece meio solto, está bom”. Os
resultados são emocionantes, com pacientes rapidamente livres de
qualquer dor, podendo enfim comer. Nos dias de cirurgia, Digby
sempre executa três operações desse tipo antes de qualquer coisa.
Um dos pacientes de úlcera péptica chega ao quarto dia de pós-
operatório sem recuperar as funções intestinais. Digby diz a Krishnan:
“Não entendo, a cirurgia correu bem, o pulso e a temperatura do
paciente estão normais, a ferida cicatrizou. Por que o intestino dele não
funciona?”.
“Talvez precise que o senhor o tranquilize. Passe segurança e eu vou
traduzindo.”
Um Digby cético se acocora ao lado da cama. “Senthil, curamos a
úlcera. Tudo está perfeito em seu corpo.” Os olhos do homem estão
fixos nos lábios de Digby, ignorando Krishnan, como se o idioma tâmil
saísse da língua do doutor. “Logo você poderá comer qualquer coisa.”
Senthil parece aliviado; sua esposa tenta tocar os pés do médico, que
fica sem jeito.
No fim do dia, quando Digby, Peter, Krishnan e Honorine tomam
chá na sala dela, o estagiário estica a cabeça porta adentro:
“Enfermeira! Senthil está com flatulência!”.
“O Senhor seja louvado!”, diz Honorine. “Quem peida vive.”
Digby ri tanto que cospe o chá.

Arnold quase nunca é visto, e suas alas estão, na maior parte do


tempo, vazias. Quando, no fim do expediente, Digby e a enfermeira-
chefe descansam as pernas na sala dela, o jovem cirurgião não resiste e
comenta: “Honorine, fico intrigado com Claude. Digo… Não entendo.
Por que a ala dele… Digo, por que ele não…? Quero dizer…”.
Honorine espera, deliciada com o embaraço do rapaz. “Veja só! Você
demorou para perguntar. Bem, cedo ou tarde ficaria sabendo. E talvez
exagerassem ao contar. O que há com Claude Arnold? Quem, senão
ele próprio, pode dizer? Sabia que ele é o mais velho de três irmãos?
Todos vivem na Índia. O mais jovem é governador, lá para os lados do
norte, de um território maior que a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda
juntas. O do meio é o primeiro-secretário do vice-rei. Em outras
palavras, ambos estão no topo do spi.” Ou Serviço Público Indiano, a
máquina pela qual a bagatela de mil gestores britânicos controlam
centenas de milhões de pessoas, um milagre administrativo. “Por que
Claude não alcançou esses píncaros, bom, eis aí um mistério. O álcool
tem grande parte nisso, mas pode ter vindo depois. Todos os irmãos são
crias da velha Eton, ou da velha Harrow — alguma velharia dessas.
Trata-se de um filhote de escola pública, isto é, um garoto promissor,
que no entanto não prosperou como devia”, diz a enfermeira, falando
com o sotaque de Tyneside que a toma quando estão apenas os dois. “A
educação pública é a alma e o coração do Raj. Você frequentou alguma
dessas escolas, meu querido?”
Digby ri. “Você não perguntaria se achasse que sim.”
“Acredite ou não, quase casei com um ex-aluno da Rugby School. As
escolas públicas dão três ferramentas: conhecimento, etiqueta e
esportes. Meu Hugh conhecia os clássicos, o latim, a História da
Guerra do Peloponeso. Mas quebraria a cabeça se pedisse para ele botar
Newcastle num mapa, entende? A ideia toda é ‘Precisamos crescer,
precisamos vencer’. Ensinam àqueles pirralhos que o destino deles é
governar o mundo. Veja os edifícios magníficos daqui. Ou pense no
durbar que celebrou a rainha Vitória como imperatriz da Índia — não
que ela tenha vindo até aqui, claro. Esse método funciona que é uma
beleza para intimidar os nativos. Mas só dá certo porque esses tipos do
spi, todos eles, acreditam que estão fazendo um bem. Estão civilizando
o mundo.”
Digby se surpreende com a raiva com que a enfermeira-chefe critica
a missão do Império Britânico. Quando se alistou, o jovem médico não
pensou muito sobre a questão. Mas, desde o início, sentiu-se mal com
os novos privilégios. Nada pergunta à Honorine sobre o tal Hugh, e ela
nada lhe diz por conta própria. Agora o humor dela azedou.
Honorine puxa uma garrafa de xerez e, ignorando as sobrancelhas
soerguidas de Digby, enche dois copinhos. A doçura e o sabor de
castanha e caramelo são uma revelação. O copo dele logo está vazio.
“Estamos fazendo alguma coisa boa por aqui?”, ele pergunta,
cauteloso.
Ela lhe lança um olhar gentil. “Sim, querido, você está! Todos
estamos! Nossos hospitais, nossas rodovias, os telégrafos. Várias coisas
ótimas. Mas a terra é deles, Digby, e nos apossamos de muitas coisas.
Levamos chá, borracha; levamos seus teares para que tenham que
comprar nosso algodão por um preço dez vezes maior…”
“Conheci um jovem advogado no navio que me trouxe até aqui. Um
camarada muito amável que cuidou de mim quando adoeci. Ele disse
que nossa saída da Índia é inevitável”, comentou Digby
Honorine contempla o copo de xerez como se não tivesse escutado.
“Bem, vamos lá”, declara, depois de uma pausa. “Já deu sua hora”,
acrescenta, tomando-lhe o copo. “Não discuta. Não posso ir embora
enquanto você estiver aqui. Você cumpriu um belo dia de trabalho.
Agora vá a um clube, como um bom sahib. Você merece um drinque
de verdade.”
14. A arte do ofício

madras, 1934

Pela manhã, chegando à enfermaria dos nativos, Digby se depara


com um bócio colossal. A protuberância vai da clavícula à bochecha,
encobrindo qualquer ponto de referência do pescoço. O rosto parece
uma ervilha sobre um cogumelo. Aavudainayaki é uma mulher magra
com um sorriso largo que compensa a rudeza da doença. Unindo a
palma das mãos, ela o saúda: “Vanakkam, doutor!”. Quando chegou ao
hospital, o hipertireoidismo causava-lhe palpitações e tremores,
tornando-a intolerante ao calor. Duas semanas de tratamento com
solução saturada de iodeto de potássio em gotas reverteram os sintomas
e ela está contentíssima. Mas o medicamento nada pode fazer quanto
ao imenso caroço que tensiona a pele de seu pescoço, revelando a
treliça de vasos sanguíneos empanturrados na superfície do bócio.
“Vanakkam, Aavudainayaki!” Ele se sente mal por não ser capaz —
ou não ser imprudente o bastante — de combater o bócio da paciente,
mas se esfor­ça para pronunciar o nome dela. Para remover a bolota ele
precisa da orientação de um cirurgião experiente. O mesmo vale para
os tão comuns cânceres de língua e de laringe, relacionados ao péssimo
hábito de mastigar paan. Digby encaminhou Aavudainayaki ao Madras
Medical College, mas ela se recusou a ir. Ninguém, senão o “doutor
Jigiby”, que lhe deu as gotinhas milagrosas, pode operá-la. Krishnan
traduz-lhe os pensamentos: “Ela diz que só confia em você, e vai
esperar até que aceite fazer a cirurgia”.
“Honorine”, o médico diz ao adentrar a enfermaria, “pare de
alimentar aquele bócio. Juro que cresceu durante a noite.”
“Ele não vai diminuir só com suas reclamações, Digby. Cancelei
seus agendamentos de hoje. Vamos nos encontrar com Ravi, dr. V. V.
Ravichandran, no Hospital Geral. Ele é brilhante… Leciona no
Madras Medical College e é o primeiro catedrático indiano no campo
cirúrgico. Quando o go­vernador precisou operar, sua mulher
discretamente convocou Ravi. Todos sabem que ele é o melhor; além
disso, é muito gentil e bom professor. Conheci Ravi na época em que
nos enviaram para Tanjore.”

“Ora, ora, o que temos aqui?” Um indiano de calças brancas e


camisa de mangas curtas chega leve e faceiro a seu consultório, com
três médicos residentes a reboque, todos precedidos por sua risada
aguda: “Então um assistente de Claude Arnold quer aprender? Que
milagre! A maioria só pensa em fugir dele!”. Animado, parece sempre à
beira de uma crise de riso histérica, os olhos afundando-se no rosto
redondo e sorridente. Digby sorri também. O dr. Ravichandran segura
as mãos dos visitantes ao mesmo tempo. Seu cabelo prematuramente
grisalho e ralo está penteado para trás. Na testa convexa seu namam é
um garfo triplo na vertical: a listra central é vermelha; as dos flancos,
brancas. Sinal que é adepto do vixenuísmo — considera Vishnu o deus
supremo.
Ravichandran solta a mão de Digby, mas não a de Honorine; seus
lábios grossos estão repuxados para trás, num sorrisinho sedutor que o
jovem mé­dico logo compreende ser permanente. “Dr. Digby, não fosse
esta dama, eu teria tido um treco, teria morrido e sido cremado em
Tanjore, tamanha a minha carga de trabalho todos os dias, da manhã ao
anoitecer.” Sua fala cadenciada faz Digby pensar em seu vizinho, o
professor de música carnática que ensina aos estudantes todo o exército
de notas intermediárias entre o dó-ré-mi ocidental. “Mas madame
Honorine veio em meu socorro, sem questionar. Fez um cronograma.
Incluindo aí o chá diário, que tomávamos juntos, rigorosamente, às
quatro e meia. Depois eu precisava ir para casa. O atendimento
particular só poderia começar às sete da noite. E mais: ela decretou que
essas consultas não poderiam ocorrer em minha casa, para que eu
pudesse dormir!”
“O que não serviu de nada, Ravi, já que você dava o endereço aos
pacientes.”
Ravi gargalha, sabendo-se incorrigível. “Ayo, Honorine, aqueles
pacientes de Tanjore ainda viajam muitos quilômetros para me ver,
embora eu tente dissuadir cada um deles!” Sua vaidade profissional é
estranhamente charmosa.
Um empregado serve chá e biscoitos amanteigados; a estenógrafa
chega com uma série de formulários, Ravi assina sem olhar. Um
homem manco de pés descalços e uniforme azul, que Digby mais tarde
descobre ser Veerappan, antigo paciente e atual motorista de Ravi, põe
uma marmita de seis compartimentos sobre a mesa abarrotada do
patrão. Destrava a estrutura deslizando uma lingueta e mostra cada
compartimento para que Ravi confira o aspecto e o aroma. Em seguida
fecha a marmita e sai, tendo inundado a sala com cheiro de coentro,
cominho e lentilha.
“Vejo que algumas coisas não mudaram”, diz Honorine. “Como
anda sua mãe?”
“Passa bem, graças ao Divino. Digby, nenhuma outra mão prepara
minha comida, só a da minha mãe, pois sou seu único problema na
vida”, e ri com certo ar travesso. “Se ela soubesse que dou tudo aos
pacientes na ala séptica, iria destruir as panelas, se banhar no templo
três vezes ao dia e viver de cevada e ghee por cinco dias. Mas ela tem
suas suspeitas. Tão logo chego em casa, pergunta como estava o
melãozinho, sabendo muito bem que não tinha melãozinho!
Veerappan sempre traz outra marmita, minha mãe não sabe. Como
mais tarde, quando faço visitas nas casas dos pacientes. Então cedo à
mi­nha fraqueza por korma de carneiro com paratha. Minha amada
enfermeira-chefe Honorine foi quem me tentou e me corrompeu com
seu purê de ervilhas com presunto — foi assim que minha vida de
carnívoro começou. Um dia eu me redimo e doo todas as minhas
posses — vestirei mantos cor de açafrão, irei a Benares e me retirarei do
mundo.”
Tudo isso se passa diante de um público de médicos residentes. Um
contínuo entrega a Ravi uma pilha de minutas que ele confere sem
perder o fluxo de pensamento.
“Glasgow, certo? Como queria visitar esse lugar! Edimburgo! Nomes
sagrados para cirurgiões, não? Como teria sido maravilhoso prestar os
exames. Ter aquele emblema de membro do Royal College ao lado de
meu nome! Ayo, cheguei até a comprar o bilhete para o vapor que me
levaria!”
“E por que não foi?”, Digby pergunta, hesitante.
“Três mil anos de história”, Ravi diz, com um ar grave. “Nós,
brâmanes, acreditamos que o oceano é poluído e que se a gente
atravessar suas águas para uma terra estrangeira, a alma apodrece;
ficamos condenados por toda a eternidade…”
“Diga a verdade, Ravi”, Honorine intervém. “Tem a ver com sua
mãe.”
Ele explode numa gargalhada. “Honorine está certa. Ayo, minha
santa mãe… Minha partida seria seu fim. No meu caso, uma viagem
para o estrangeiro seria matricídio. Supondo que ela sobrevivesse, o
único problema que tem na vida retornaria tão poluído que, mesmo se
eu ocultasse meu rosto, ela jamais poderia me dirigir a palavra de novo.
Assim, fiquei. Mas me diga, Dig­by, o que fez você se arriscar à danação
eterna e cruzar o oceano? Do que foge? Ou para onde?”
A cicatriz de Digby fica vermelha. O olhar sorridente de
Ravichandran pousa nela com curiosidade e compaixão. Digby busca
as palavras certas.
“Um cirurgião que enrubesce é melhor do que um cirurgião sem
vergonha”, Ravi diz a Honorine. “Não quero aumentar o desconforto
de um homem que tem Claude Arnold como seu superior. Digby,
sabia que há um Rolls-Royce estacionado em frente à casa de Claude?
Sabe por quê? Porque eu tenho um. Meu Rolls foi o primeiro de
Madras e tem sido uma farpa sob a derme de seus compatriotas. ‘Vejam
a ousadia desse babu’!”, ele diz, tentando imitar um sotaque inglês
arrogante. Sua risada interrompe a narrativa. “O governador também
precisou comprar o dele. Muito mais tarde, tal como seu chefe. Mas o
de Claude não sai do lugar, é tão decorativo como o pottu na testa de
minha mãe. Digby, não sou casado. Trabalho duro. Por meu ofício abro
mão das necessidades, mas devo abrir mão dos luxos? Em meu país,
não posso me locomover como bem entendo?”
De súbito, Ravi grita para alguém que está atrás de Digby; o idioma
parece um tâmil vulgar e rude, e o sorriso em seu rosto desapareceu.
“Gente impaciente!”, diz. O sorriso volta. “Sempre me apressando.
Estou tão atrasado que o dia de ontem alcança o de amanhã. De
qualquer forma, Digby, se a santificada Honorine gosta de você, então
eu também gosto. Venha. Minha primeira cirurgia de hoje é uma
ressecção estomacal para um provável câncer gástrico. Se não for tarde
demais.”

Na sala de operações, Digby faz as vezes de assistente, antecipando


cada movimento de Ravi, mas tomando cuidado para não atrapalhar.
Há uma massa dura como pedra pouco acima do piloro, onde o
estômago se esvazia, localização em que mesmo um pequeno tumor
não tardará a se fazer notar pelo paciente, que se sente farto depois de
poucas garfadas. Ravi corre a mão sobre a superfície do fígado, depois
retira os cerca de seis metros de intestino delgado, conferindo cada
pedacinho em busca de metástases. A seguir, inspeciona a pélvis. “Não
se espalhou. Faremos uma gastrectomia distal. Troque de lugar comigo.
Serei seu humilde servo.” Digby corta metade do estômago. Tendo
Ravichandran como habilidoso assistente, sempre lhe oferecendo
sutilmente a melhor perspectiva e o melhor acesso, Digby tem a
sensação de ser um cirurgião bem melhor do que de fato é. Quando
termina, eles têm em mãos um pedaço do duodeno — para dentro do
qual jorram a bile e o suco pancreático — e o restante do estômago.
“E agora, meu jovem amigo?”
“Vou fechar o duodeno. Depois conecto parte do jejuno ao restante
do estômago.” É o mesmo procedimento que ele usa para úlceras
pépticas no Longmere Hospital.
“Uma gastrojejunostomia, então? Por que não conectar o estômago
di­retamente ao duodeno? À maneira de Billroth? Por que não manter a
continuidade normal? Assim evitamos esse toco duodenal que depois
pode vir a sangrar.”
Digby une as mãos, as luvas manchadas de sangue até o nó dos
dedos, o ventre aberto do paciente esperando uma decisão. “Para ser
honesto”, ele gagueja, “fiz muitas gastrojejunostomias no Longmere.
Para mim seria mais complexo conectar o que sobrou do estômago ao
duodeno avariado do que realizar algo que já faço com frequência e
segurança. Sim, essa opção nos deixa com um toco duodenal cego,
mas, nas minhas mãos, há menos chance de sangramento posterior do
que conectando o estômago ao duodeno.”
“Boa resposta! Uma cirurgia bem-sucedida nem sempre é feita com a
melhor técnica! E, claro, se o câncer voltar, nada disso terá
importância.”

Trabalhar toda semana com Ravichandran no Hospital Geral é


exatamente a educação cirúrgica que Digby buscava ao ir para a Índia.
O jovem médico guarda toda pérola que o brilhante cirurgião indiano
lhe oferece, e acompanha com atenção as operações de Ravi com
outros assistentes. Enquanto isso, Aavudainayaki espera, inabalável na
determinação de que o “dou­tor Jigiby” opere seu bócio. Para garantir
vaga na enfermaria, ela auxilia Honorine e as outras enfermeiras no
cuidado com os demais pacientes. Aavudainayaki já é parte da família.
Cinco semanas depois de conhecer Ravichandran, Digby leva
Aavudainayaki ao Hospital Geral de manhã bem cedo, de riquixá. Ravi
a cumprimenta com muita simpatia, em tâmil. Depois de apalpar o
bócio, pede que ela erga os braços, de modo que os bíceps fiquem à
altura das bochechas. Em pouco tempo o rosto da paciente escurece e
congestiona-se, e o ar lhe falta. “Viu isso, Digby? Pode chamar de ‘sinal
de Ravi’. Significa que o bócio se estende até seu peito. Se não for
possível atacar por cima, teremos que cortar pe­lo esterno. Uma
operação nada rotineira.”
A paciente, ansiosa, tem pressa de comunicar algo em tâmil a Ravi,
que a tranquiliza. O médico traduz a conversa para Digby: “Garanti a
ela que é o estrangeiro quem fará a cirurgia. Apenas auxiliarei o grande
dr. Jigiby”.
Ravi se agita com a paciente já anestesiada, solicitando primeiro um
saco de areia maior entre as escápulas, para arquear bem o pescoço, e
que o pé da mesa seja rebaixado para ajudar na drenagem das veias do
pescoço in­chado. “Pequenas coisas fazem uma grande diferença,
Digby. Deus está nos detalhes.”
Pouco depois do início da cirurgia, o campo operatório está tomado
de pinças hemostáticas para estancar os sangramentos. Como Ravi
previu, aquele bócio se estende até o peito; nem mesmo seus longos
dedos podem resgatá-lo. “A colher de Ravichandran, por favor”, pede à
enfermeira. O longo instrumento que ela apresenta é novo para Digby.
Ravi o insere cuidadosamente sob o esterno. Às cegas, só pelo toque,
alavanca a parte inferior do bócio, retirando-o do peito. “Reconhece
meu instrumento, Digby? É a lingueta em forma de colher que trava os
compartimentos empilhados de minha marmita. Minha mãe culpa o
motorista pelo desaparecimento dessas linguetas. É mesmo um
instrumento de mil e uma utilidades. Pode-se comer curry de peixe
com ela — ou pescar um bócio!” Quando terminam, Ravi parece
preocupado. “A primeira noite é a mais perigosa. É essencial ter um kit
de traqueostomia e uma enfermeira ao pé da cama, por favor.” Há razão
para se preocupar: os anéis de cartilagem da traqueia normalmente
sustentam a abertura para a entrada de ar, mas os de Aavudainayaki
estão enfraquecidos pela longa pressão do bócio. O inchaço pós-
operatório acarreta o risco de um colapso dos anéis.
Digby tem um longo dia de atendimento e cirurgias no Longmere.
Mas, depois do jantar, volta ao Hospital Geral. O sorriso de
Aavudainayaki o recebera todas as manhãs nas últimas cinco semanas.
Diante de tamanha fé, a ideia de que tudo termine mal o aterroriza.
À noite, todos os hospitais se tornam silenciosos, sepulcrais, o
silêncio pontuado por poucas tosses e gemidos. Os passos de Digby
ecoam no corredor quando ele cruza as enfermarias abertas. Uma
enfermeira sentada sob uma lâmpada bastante fraca ergue os olhos,
surpresa, e sorri timidamente. Digby guarda aquele sorriso. Sente
saudade de uma relação mais próxima com uma mulher.
Encontra Aavudainayaki dormindo confortavelmente, um kit de
traqueos­tomia ao pé da cama, mas nenhuma enfermeira à vista. Uma
estagiária morosa e desleixada retorna depois de uma hora e se assusta
ao se deparar com Digby, que a dispensa. Ele mesmo fará a vigília. Para
passar o tempo, ten­t a desenhar os estágios da operação num
caderninho.

Digby acorda com um miado agudo e o som de alguém que luta


desesperadamente para respirar. Aquele som assustador, estridente,
sinaliza obstrução da via respiratória. Ele salta para junto de
Aavudainayaki, envergonhado por ter adormecido. O rosto horrorizado
da paciente não revela nenhuma alegria por vê-lo: ela intui a morte
iminente. Digby abre a bandeja de traqueostomia enquanto grita por
ajuda. Esse é seu pior pesadelo: uma traqueostomia sob má iluminação,
com uma paciente desesperada. Ele rasga as roupas dela e surpreende-
se ao encontrar seu pescoço já não flácido como depois da cirurgia, mas
inchado, como se o bócio tivesse retornado para se vingar! Corta três
suturas cirúrgicas e um grande coágulo de sangue escorrega por seus
dedos, uma bolha lúbrica e geleiosa que se deposita no lençol. A
mulher se acalma no mesmo instante. Outros chegam, apontando
lanternas para o corte, que não revela nenhum sangramento ativo. A
traqueia está exposta, ele poderia facilmente realizar a traqueostomia,
mas não vê sangramento novo, e a respiração de Aavudainayaki está
firme, seu rosto tranquilo. Ela tenta até sorrir.
Digby devia levá-la para a sala de operação e, sob anestesia, explorar
o corte, localizar o vaso e conferir se ainda há sangramentos internos.
No entanto, são quatro da manhã. Para um forasteiro conseguir um
centro cirúrgico naquele horário, só por milagre divino. Não quer ligar
para Ravi. Ele deixa que a pele dela se dobre para a posição original,
sem, contudo, suturá-la, apenas cobrindo-a frouxamente com gaze. Ao
menor sinal de sangramento, eu a levo para a mesa de cirurgia.
Pela manhã, a equipe cirúrgica chega para a visita regular, Ravi à
frente. Ele vê o grande coágulo se liquefazendo numa bacia. O sorriso
de Aavudainayaki voltou, mas o dr. V. V. Ravichandran não sorri.
Examina o corte. A equipe de estagiários e cirurgiões-assistentes está
inquieta. “Quem de vocês checou a paciente à noite?” Silêncio. “Ainda
bem que você estava aqui, Dig­by. Mas, tão logo esse coágulo escapuliu,
o certo era levar a paciente para a sala de operação. Você tinha que ter
me telefonado imediatamente.”
“A respiração dela melhorou. Se…”
“Nada de ‘se’ ou ‘mas’!”, Ravi diz, ríspido, cortando-o. “No interesse
de uma paciente, você pode acordar a mim e ao próprio Senhor Jesus
Cristo. Para acordar o anestesista, será preciso intervenção divina. E
mesmo assim deve levar a paciente ao centro cirúrgico. Sem
discussão!” Olha furioso para Digby por alguns segundos, mas então
sua expressão se desarma. Ele pega o caderno do jovem médico e
confere os desenhos. “Aah, que beleza. Aqueles atlas cirúrgicos nunca
sangram, não é mesmo?”
Quando Ravi e a equipe cirúrgica estão prestes a se retirar da
enfermaria, ele se vira tão de repente que sua comitiva se atropela. Sua
voz repercute pela enfermaria: “Dr. Kilgour, bons cirurgiões podem
realizar qualquer operação, mas apenas grandes cirurgiões cuidam das
complicações pós-operatórias”.
Digby enrubesce com o elogio.
15. Um ótimo partido

madras, 1934

“Nunca vi tantos fardados na cidade”, diz Honorine. Ela e Digby


estão no New Elphinstone Theater, refugiando-se do sol escaldante. O
público da matinê de sábado é um mar de cabelos bem aparados, ao
estilo militar, e calças cáqui. “E eu aqui achando que Longemere seria
meu último posto. Se houver guerra de novo, farei minha parte. Mas o
mundo enlouqueceu, se é que minha opinião te interessa. O Japão
invadindo a China? E se decidirem que a Índia é a próxima vítima?
Sem falar dos alemães, com esse novo chanceler. Não confio nem um
pouco nele.”
“Lendo o jornal, parece inevitável — a guerra, digo.” Digby fica
pasmo ao descobrir que um milhão de soldados indianos lutaram na
Primeira Guerra Mundial, e que pelo menos cem mil morreram.
Segundo os editoriais, se os indianos forem convocados de novo para
lutar pelo Exército da Índia Britânica, só o farão em troca da liberdade.
“Inevitável? Deus meu, não diga isso!” Ela vasculha a grande bolsa
de vime. Desiste, então aceita o lenço que Digby lhe oferece e enxuga
os olhos. “Perdi meus irmãos mais velhos na guerra. Foi o que matou
minha mãe. Esses políticos? Todos bandidos, Digby”, diz,
amargamente. “Se as mulheres estivessem no poder, não estaríamos
enviando esses rapazes para morrer.”
Se houver guerra, Digby será enviado para uma unidade militar.
Vem-lhe à mente o professor Alan Elder em Glasgow dizendo que a
guerra era a verdadeira escola dos cirurgiões. Não é um pensamento
que Digby queira compartilhar com Honorine.

A sessão tripla termina com o filme Luzes da cidade. A comédia física


de Chaplin mata os dois de rir. A doçura melancólica da história — um
mendigo que se apaixona pela moça cega e arrecada dinheiro para uma
operação que lhe devolva a visão — é o antídoto ideal para o
burburinho sobre uma possível guerra.
Saem do cinema depois do que lhes parece uma vida inteira.
Embora anoiteça, o calor segue sufocante, o ar parado. No mesmo
instante, Digby sente gotinhas de suor formando-se nos lábios e nas
sobrancelhas. Apesar do cheiro de vada frita vindo de uma barraquinha
de rua, o calor lhe tira todo o apetite.
“Marina Beah”, diz Honorine a um condutor de jatka cujos dentes
longos, manchados de noz-de-areca, assemelham-se aos de seu pangaré;
nem o homem nem o cavalo parecem muito entusiasmados com a
ideia de se locomover.
“Chaplin redime todos os homens”, ela diz, novamente de bom
humor. “O amor verdadeiro vence tudo. Eu levaria Carlitos para casa
se pudesse.”
“Ele só não é muito bom de conversa.”
“Isso seria a cereja no bolo!”, diz Honorine.
Na Wallajah Road, o cavalo relincha, acelerando o ritmo. O
condutor senta ereto. Honorine fecha os olhos e respira fundo. Digby
sente as primeiras pontadas da fome.
Por meio de sinais sutis, como uma orquestra afinando os
instrumentos, o evento diário que é central para a vida na costa de
Coromandel se anuncia: a brisa do anoitecer. A brisa de Madras tem
corpo, seus componentes atômicos entrelaçam-se para criar um
fenômeno substancial que acaricia e refresca a pele à maneira de uma
bebida gelada ou de um mergulho numa nascente de rio. A brisa varre
a costa de cima a baixo, compassada, pontual, ininterrupta até meia-
noite, quando já terá adormecido a todos. Ignorando castas ou
privilégios, alivia os expatriados em suas mansões de sonho, o
empregado des­camisado sentado com a mulher no telhado da casa de
um único cômodo e os desabrigados que se acocoram pelas calçadas.
Digby já viu o sempre bem-disposto Muthu com a mente longe, sua
conversa entrecortada e morosa, à espera do alívio que vem de Sumatra
e da Malaia, ganhando corpo no golfo de Bengala, transportando
aromas de orquídeas e sal, um ópio aéreo que distende, desenlaça e
finalmente liberta a todos do calor atroz do dia. “Sim, sim, vocês têm
seu Taj Mahal, seu Templo Dourado, sua torre Eiffel”, dirá um nativo
educado, “mas nada se compara à brisa do anoitecer de Madras.”
A praia que surge à frente é tão larga que o azul do mar é uma fita
estreita se dissolvendo no horizonte. Eles estão se aproximando do
exato local onde pela primeira vez os britânicos se firmaram na Índia,
num pequeno entreposto comercial precursor da Companhia Britânica
das Índias Orientais. No século xvii, o entreposto precisou de um forte
militar — forte Saint George — para armazenar especiarias, tecidos,
joias e chás destinados à Inglaterra, protegendo tais riquezas das mãos
dos senhores locais, dos franceses e dos holandeses. Madras floresceu
dos dois lados do forte. Digby tem se familiarizado com a cidade,
explorando-a de bicicleta, desvendando seus bairros. O velho bairro
Blacktown passou a se chamar Georgetown depois da visita do Príncipe
de Gales. Os anglo-indianos aglomeram-se em Purasawalkam e Vepery,
ao passo que os estrangeiros optam por Egmore ou os subúrbios mais
chiques de Nungambakkam. O enclave brâmane é Mylapore,
enquanto a população muçulmana se concentra nas vizinhanças do
Gosha Hospital e de Triplicane. Ele e Honorine chegaram à Madras
Marina, concebida por um an­tigo governador de nome improvável:
Mountstuart Elphinstone Grant Duff. O passeio na orla se estende por
quilômetros.
Ao longo da marina e de frente para o mar há uma sucessão de
edifícios imponentes, construídos para a eternidade. Digby tem a
impressão de que os arquitetos se entregaram às fantasias orientais,
erguendo para o império templos meticulosamente esculpidos. Ele e
Honorine desembarcam em frente à Universidade de Madras. Seus
minaretes elevados parecem ter copulado, dan­do à luz uma ninhada de
pináculos, todos coroados com cumes brancos. Em luta na mesma
estrutura, Digby vê elementos renascentistas, bizantinos, muçulmanos
e góticos, certamente para provocar admiração e fascínio nos nativos, o
jovem médico pensa. Como a torre do relógio da Singer.
“Eu deveria odiar esses edifícios”, Honorine diz. “Mas vou sentir falta
deles quando for embora.”
Digby fica intrigado. Honorine viveu mais tempo na Índia do que na
Inglaterra.
Vendo sua expressão, ela ri. “Oh, Digby, amo essa cidade. Amo
morar aqui. Mas logo o país conquistará a independência. Não falo
disso, porque seria heresia, não? Porém, claro, se os indianos nos
deixarem ficar, ficarei.”
Os dois formam um casal curioso, caminhando descalços na areia: a
mulher robusta de cabelos grisalhos de braços dados com um jovem
esquelético, cujos cabelos castanhos têm um toque arruivado, como se
tivessem henna. A cicatriz em seu rosto lhe dá um ar de menino.
Sentam-se de frente para o mar. Três pescadores acocoram-se à sombra
de um catamarã, fumando, de costas para a água.
“Não sabia nada da Índia quando me alistei”, Digby diz, de repente.
“Meu único propósito era adquirir experiência cirúrgica — como se o
Serviço Médico Indiano existisse para me servir.” Precisava falar alto,
por cima das ondas que quebravam. “Duvido que me acostume aos
privilégios de que desfruto aqui. Tenho medo do que poderia acontecer
se eu me acostumasse.”
Um jovem casal passa por eles, agarradinhos um ao outro. O jasmim
no cabelo da moça deixa um rastro de perfume. A enfermeira-chefe os
observa e suspira. “O que você está fazendo ao lado dessa velha, Digby?
Você sabe muito bem que todas as minhas enfermeiras estão de olho
em você.”
Ele ri, envergonhado. “Não estou pronto para isso. É muita
complicação.”
“Ah, sim. Bem, comigo você está seguro.”
“Quis dizer que…”
“Sabe qual é a questão com essas moças anglo-indianas, minhas
enfermeiras e secretárias? A posição delas é fraca. Algumas talvez
pareçam mais brancas do que você e eu, mas isso não conta. Elas
pensam que, casando com alguém como você, vão se tornar britânicas.
No entanto, a verdade é que você penaria para levar essas moças ao
Madras Club. E seus filhos ainda seriam anglo-indianos e enfrentariam
os mesmos obstáculos. Você, Digby, tem certo ar de alma ferida, meu
querido, e é um cirurgião competente. Tudo isso faz de você um jovem
atraente. Seja cauteloso, é tudo que digo.”
Digby ri nervoso, grato ao entardecer por ocultar seu rubor.
“Não há nada a temer, Honorine. Me habituei à solidão. É mais
seguro que…” Não consegue pronunciar a alternativa em voz alta.
O rosto de Honorine mostra tristeza. Ou será pena? “Perdoe, Digs.
Deixe ela partir.”
Por um momento, ele fica sem palavras. Ela é a única pessoa em
Madras a quem ele contou a história da morte da mãe, dos anos
difíceis, antes e depois. Os segredos vivem nos mesmos cômodos da
solidão. Seu segredo — e seu fracasso — é que, depois da traição da
mãe, já não pode se arriscar no amor.
“Já perdoei, Honorine.”
“Ah, bem”, ela diz, olhando para o mar, a brisa soprando seu cabelo.
“Não é a mim que você tem de convencer, não é, querido?”

Antes do Natal, quando Digby está quase indo para casa, Honorine
chega à enfermaria acompanhada de um homem branco alto e
robusto. “Digby, este é Franz Mylin. O dr. Arnold internou a esposa do
sr. Mylin há dois dias e ela não está bem.”
Mylin tem a altura de um jogador de rúgbi, com tronco e pescoço
largos. É ruivo e, no momento, seu rosto, contorcendo-se de raiva,
também está vermelho. Sobem as escadas enquanto Honorine informa
o essencial ao jovem médico, pesando as palavras para poupar o
marido: os Mylins acabaram de voltar da Inglaterra, de vapor, e, nos
últimos três dias da viagem, Lena Mylin desenvolveu dor abdominal e
começou a ter crises de vômito que só pioravam. Ao desembarcar,
vieram diretamente para o Longmere. O diagnóstico de Arnold era
dispepsia. “Isso foi há trinta e seis horas”, Honorine diz.
Mylin estoura: “Ele mal tocou nela quando chegamos. E não
apareceu mais! Minha esposa está abandonada na cama, piorando a
cada hora que passa”.
A enfermaria dos britânicos está vazia, exceto pela figura de Lena
Mylin, que lembra um pássaro imóvel na cama, a respiração acelerada.
Mechas de um cabelo preto cacheado grudam-se à sua testa. Ela
observa, apreensiva, a aproximação de Digby. “Por favor”, diz Franz,
“não se sente na cama. A dor piora ao menor movimento.”
Só essa afirmação indica peritonite advinda de uma catástrofe
abdominal, o que o exame de Digby confirma: o lado direito do ventre
de Lena está rígido. O jovem médico nota a língua seca, os lábios
quebradiços, um toque de icterícia nos olhos e a pele pegajosa. Quando
lhe pede que respire fundo enquanto ele apalpa gentilmente a região à
direita, abaixo das costelas, a mulher pisca e para de respirar. Os dedos
de Digby encontram a vesícula. Ele não mede palavras. “Tenho certeza
de que há uma pedra obstruindo a vesícula, que agora está dilatada,
com pus.” Evita a palavra “gangrenosa”, para não alarmá-los ainda
mais. “Ela precisa ser operada com urgência.”
“O canalha disse que era enjoo!”, Franz diz. “Onde ele está? Aquele
criminoso!”
Na sala de cirurgia, tão logo Digby abre o abdome, ele encontra o
que temia: uma vesícula dilatada e irritadiça, com nacos escurecidos de
gangrena. Aí está sua dispepsia, Claude. Digby faz um pequeno orifício
na bolsa inflamada. Uma gosma de pus amarela, bile verde e pequenos
pigmentos de pedra derramam-se nas faixas de gaze e no aparato de
sucção. Retira o máximo que pode do órgão, deixando apenas a parte
colada ao fígado. Evita o ducto cístico por onde a vesícula se esvazia.
Dissecar aquela região com uma inflamação tão intensa é arriscado
demais. Os tecidos de Lena sangram com vigor. Antes de fechar a
barriga, ele deixa um dreno de borracha perto do leito do fígado.
Depois da cirurgia, a paciente está pálida e com pressão arterial baixa.
Digby corre para o “banco de sangue” — basicamente, um armário
refrigerado —, onde, pela tipagem sanguínea, determina que o dela é
do grupo B, o mais raro. O banco de sangue é uma inovação de sua
lavra, uma das áreas em que o Longmere sobressai em relação aos
outros hospitais da cidade. Após um quartilho de sangue, a pressão de
Lena sobe, e a cor retorna a seu rosto.
“De quem era esse sangue?”, Franz pergunta.
“Meu”, Digby diz. Seu grupo sanguíneo faz dele um doador
universal. Por sorte, tinha duas bolsas do próprio sangue armazenado
para uma ocasião como aquela. “Vou dar a ela uma segunda bolsa.”
Digby fica de vigília, junto com Franz. Ao amanhecer, o estado de
Lena apresenta clara melhora. Ele descobre que os Mylins têm uma
fazenda do outro lado da costa, perto de Cochim. O rosto de Franz
relaxa quando descreve seu lar de tantos anos nos Gates Ocidentais,
onde cultivam chá e especiarias. “Você precisa nos visitar, dr. Kilgour.”
Ao meio-dia, Digby retorna e encontra Claude Arnold ao pé da
cama, examinando a ficha de Lena, enquanto Franz espera, de braços
cruzados e enraivecido, segurando-se para não falar nada. Lena evita
olhar para Claude.
“Bem”, diz Claude, registrando a presença de Digby. “Ao que
parece, o dr. Kilgour salvou o dia.” Sem mais delongas, passa depressa
por Digby e se retira, antes que possam reagir. Digby tenta acalmar
Franz, praticamente apoplético.
Mais tarde, quando Digby surge na enfermaria, Claude aparece em
seguida. Talvez estivesse esperando atrás de um pilar. Se Digby achava
que seu chefe fosse se dobrar, demonstrando gratidão, ele rapidamente
se desilude.
“Você deveria ter se limitado a botar um dreno. Retirar pedacinhos
de vesícula? Não é muito ortodoxo.” Claude está de costas para a
entrada da enfermaria e não vê Franz Mylin a suas costas. “Chamo isso
de comportamento irresponsável e temerário, Digby.”
Antes que Digby possa formular uma resposta, Claude se dirige para
a saída. Com uma imprecação, Franz arremete e acerta um belo tapa
no ombro dele. Sua arrogância é substituída por surpresa e medo.
Digby salta para se colocar entre os dois quando Franz desfere um soco,
mas o golpe acaba por acertar o peito de Claude, que foge. Franz ruge
para o cirurgião-chefe do Longmere: “Volte aqui, seu covarde de
merda! Quem é irresponsável? Como cirurgião, você não vale a metade
do que vale Kilgour!”. As palavras ecoam na enfermaria vazia. Durante
o tempo em que Lena permanece internada, Claude mantém
distância.
Lena acaba se revelando a parte mais sociável e comunicativa do
casal. Sabe o nome de cada estagiário, e eles se desdobram por ela. O
dreno é retirado em três dias; dez dias depois da cirurgia, ela recebe
alta. No momento da despedida, Franz agarra os ombros de Digby; o
grandalhão está comovido demais para falar.
Lena toma a mão do jovem médico. “Digby”, diz, surpreendendo-o
por usar seu primeiro nome. “Como posso recompensar? Você salvou
minha vida. Ficaremos ofendidos se não for nos visitar. Você precisa de
um descanso. Promete que irá?” A resposta atabalhoada de Digby não a
convence. “Digby, você tem parentes na Índia?”
“Não, não tenho.”
“Ah, tem, sim. Temos o mesmo sangue agora.”
16. O ofício da arte

natal, madras, 1934

Nungambakkam, onde mora Claude Arnold, é uma visão da


Inglaterra plasmada numa tela do sul da Índia. Avenidas ladeadas de
árvores com nomes como College Road, Sterling Road e Haddows
Road. Nos jardins de casas e bangalôs, a topiaria é marcada pelo
pássaro-na-pirâmide, a bola-sobre-bola e o coelhinho, com pouca
variação; o coelhinho é a poda mais popular. Digby crê que seja obra
de um maali itinerante, sobretudo porque os coelhos parecem
mangustos.
Essa Madras fantasiada de Belgravia precisa ignorar a realidade do
vira-lata que cai morto no meio da College Road; deve insistir que é de
fato Natal, apesar da umidade que não faz pensar em neve e do calor
impiedoso que revela que o cachorro não está de fato morto, apenas
abatido pelo sol. O animal cambaleia ao pôr-se de pé, forçando Digby,
que passa de bicicleta, a contorná-lo.

A casa de Claude, branca como porcelana, destaca-se contra a terra


vermelha do acesso circular, tomado de veículos. Quando o sol começa
a se pôr, lampiões a óleo dispostos entre as balaustradas na sacada do
segundo andar e no meio das colunatas do térreo dão à residência um
brilho etéreo. “Você de­veria ser detalhista assim no trabalho, Claude”,
murmura Digby. Hesitou em comparecer à festa, mas acabou
concluindo que não ir só pioraria ainda mais uma relação já
estremecida.
No pórtico, um reluzente Rolls-Royce preto e verde. Antes que
Digby encoste a bicicleta contra um muro, um empregado a recolhe,
assegurando-lhe com um sorriso que ela será rapidamente escondida e
que ninguém reparará.
O salão está repleto. Uma árvore de Natal paira sobre os convivas,
“neve” de algodão pendendo dos galhos no ar abafado. As mulheres
usam vestidos longos, alguns com decote nas costas, todos sem mangas,
os ombros cobertos por estolas de seda.
Digby, suando da pedalada, só pensa em tirar o blazer. Passa por trás
de três convidadas cujos perfumes florais evocam Paris ou Londres e
ouve a voz de Claude, as palavras já um tanto embaralhadas: “… a
maharani só podia beber no banco de trás, escondida por trás das
cortinas, enquanto o motorista circulava pela propriedade”. Uma
mulher faz uma pergunta que Digby não consegue ouvir, mas escuta a
resposta de Claude: “Um Rolls jamais enguiça, querida. Em raras
ocasiões talvez não consiga prosseguir”.
Digby passa por um armário cheio de troféus esportivos e fotografias
de dois garotos de idades variadas, meninos e adolescentes. Um garçom
oferece uísque; em vez do copo, Digby pega um guardanapo e se enfia
na sala de jantar para enxugar o rosto e o pescoço discretamente. Sente-
se maltrapilho e deslocado. A mesa, de carvalho maciço, as taças e
bandejas de metal evocam-lhe os cavaleiros do rei Arthur. De costas
para a festa e ainda bastante suado, Digby para em frente a três grandes
quadros de paisagens. Sente raiva de si por estar ali.
Tudo bem, Digs. Em dois minutos você vai se meter ali de novo,
apertará a mão do canalha, desejará feliz Natal e, como não tornará a
vê-lo antes dos sinos de Hogmanay — que é como os escoceses se referem
à véspera do Ano-Novo —, brinde tudo, dando-lhe parabéns pelas
medalhas e desejando-lhe um ótimo ano. Porém, primeiro refresque-se,
enxugue a testa e aprume o colarinho. Admire seu quadro pretensioso —
um cenário pastoril, não é, Claude? Diga “muito bom” para seu patético
laguinho com flores silvestres. Não, ninguém nunca pensou nesses
termos. E esse último quadro… Floresta Negra, ele diz? Um monturo,
digo eu. É tudo um lixo, muito obrigado. Molduras douradas que gritam
“Merecemos um museu”, mas é tudo lixo, e sempre será. Não importa o
que digam…
“Não são lá grande coisa, não é?”, diz uma voz rouca de mulher.
Digby se vira e se sente desconfortável perto dela; é lindíssima, um
dedo mais alta do que ele. Ambos dão um passo para trás. Seu attar
almiscarado com notas de sândalo e de antigas civilizações é o oposto
dos perfumes parisienses. Ele se sente transportado para o boudoir de
uma maharani. “O garçom disse que você não quis o uísque. Trouxe
um pouco de suco de romã. Me chamo Celeste”, ela sorri.
Ah, por favor. Que não seja a esposa dele!
“Sou a mulher de Claude.” Ela segura um copo em cada mão.
Seus cabelos castanhos estão presos por uma fita prateada, suspensos
à altura do pescoço em um coque. Ela tem um rosto triangular e a
arcada dentária superior levemente projetada, dando a impressão de
que seus lábios fazem beicinho. De frente, seus traços são bonitos,
vagamente andróginos. Ela deve ter a idade de Claude, quarenta e
poucos. Três rubis flutuam sobre o esterno, presos numa corrente quase
invisível.
“Digby Kilgour.” Ele estende a mão, só que as dela estão ocupadas.
O jovem médico pega o copo de suco de romã.
“Claude diz que você é um tremendo artista.”
Como diabos ele saberia? Ela aguarda resposta com certa expectativa.
“Sou mais um admirador da arte”, ele diz, enrubescendo. “Apenas
tento capturar o que vejo.”
Os olhos grandes da esposa de Claude, da cor de amêndoas,
aquecem-se ao brilho dos rubis. Se o marido é distante e desatento, ela
é o oposto, seu olhar é direto e curioso. Mas ele vê uma dureza ao redor
de sua boca, que desaparece quando ela sorri.
“Pintura a óleo?”
“Aquarelas”, ele responde. Ela espera. “Gosto do mistério, da
imprevisibilidade do que emerge.”
“Você faz retratos?”, ela pergunta, erguendo a cabeça. Ela tem
consciência de que está posando para ele? Sua intenção não é provocar
desconforto, mas remediá-lo.
“Às vezes, sim. Eu… Há tanto o que ver em Madras. Rostos nas ruas,
mulheres de sári. Figueiras, paisagens…”
Ela se inclina e sussurra: “Digby, dê sua opinião sincera sobre esses
quadros”.
“Ah, bem… Não são tão ruins.”
“Então você gosta.” Seus olhos de amêndoa fixam-se nele, que não
pode mentir.
“Ah, eu não iria tão longe.”
Ela ri. “São dos pais de Claude. Eu os desprezo — os quadros, você
me entende.”
Pela primeira vez naquela noite, Digby se sente à vontade.
Ela ergue a cabeça de novo. “Posso lhe mostrar uma coisa?” Celeste
começa a se afastar, sem esperar a resposta. O convidado a segue, os
olhos em sua nuca, onde o cabelo forma um padrão arbóreo. No salão
perto das escadas há uma pintura simples sobre um tecido bege. Coisa
de trinta por quarenta centímetros talvez, numa moldura de madeira
rústica: uma mulher indiana sentada, a cabeça virada para um lado, os
ombros para o outro. O estilo é infantil, simples, no entanto cheio de
arte e cor. Não busca correção anatômica ou realismo, mas convence.
Ele demora-se a estudá-lo.
“É extraordinário”, Digby diz. “Só uma linha para o nariz, os olhos
ovais… e as curvas sugerindo o sári, a postura do corpo” — ele traça os
contornos no ar — “e com apenas três cores, a mulher surge! É simples
mas cheio de técnica. Foi você que pintou?”
Aquela risada alegre de novo. A linha curva de seu pescoço emula a
pintura. A impressão de grande estatura que ela transmite reside em
grande parte naquela linha, e nos braços esbeltos. Sua graciosidade
roça a estranheza, e aquilo o encanta.
“Não. Não pintei. Mas é meu. Tive de lutar para pendurar aqui. É
uma pintura kalighat, do tipo que eu via em Calcutá, quando menina.
São obras produzidas para os peregrinos que vão aos templos, vindo de
muito longe. Em geral representam um personagem do Mahabharata
ou do Ramayana. Se dependesse de mim, tiraria aquelas velhas
monstruosidades e trocaria por essas belezinhas.” Eles riem juntos.
“Sim, tenho um quarto cheio de kali­ghats.” Ela ergue o braço, o pulso
em um ângulo recuado, os dedos esticando-se, como se, por meio
daquele gesto, projetasse uma coleção de kalighats nas paredes. Os
olhos de Digby deslizam pelo arco de seu tríceps, pela inclinação do
antebraço, seu pulso, a curva do nó dos dedos, seguindo pelas unhas
polidas direto para a parede. Em sua mente ele vê uma sala coberta
desses retratos vívidos e únicos.
Digby força os olhos a retornarem à pintura. Com um dedo ele
contorna a figura, tentando memorizá-la.
“Há certo lirismo aqui”, ele diz. “Ainda que o artista produza um
punhado dessas telas. Um vocabulário simples, mas eloquente.”
“Exato! O que me fascina é que um aldeão faz uma peregrinação
uma vez na vida e gasta seu rico dinheirinho em um souvenir que tem
raízes na vila dele! É um artesanato local, como as cestas trançadas, mas
esse artesão em particular foi para a cidade, aproveitar o mercado dos
peregrinos. Então vende os produtos para seus velhos vizinhos, e a
pintura termina pendurada numa parede na mesma vila onde tudo
começou.”
“Ou é exibida no salão da inglesa mais… perspicaz”, Digby afirma,
enrubescendo. A palavra “linda” flutua no ar.
“Quero crer que você está tentando me bajular”, ela diz, com
suavida­de. Não parece incomodada. Um longo silêncio se segue.
“Tenho outras kali­ghats. Seria inútil mostrar esses quadros àquelas
pessoas. Elas tomariam por afetação.” Acena alegremente para alguém,
mas a expressão de dureza volta a surgir em sua boca. “Então, gosta de
Madras?”
“Sim! A experiência cirúrgica é tremenda. E as pessoas são afetuosas,
gentis.”
Ele está pensando em Muthu, que cuida dele com muita afeição e se
mostra orgulhoso de todas as tarefas que lhe cabem. Depois de alguns
meses, Muthu trouxe timidamente a esposa e dois filhos pequenos para
conhecê-lo. Eles agora são como família para o jovem médico.
“Digby, você já foi a Mahabalipuram?”, ela pergunta, olhando-o com
uma expressão inquisitiva.
“Já ouvi falar. Templos de rochas, não é?”
“Ah, é difícil descrever…” Ela desvia o olhar com um toque de
melancolia. “É meu lugar favorito. Sei que você apreciaria. Prometa
que visitará.”
“Prometo.”
“Imagine uma praia longa e bonita.” Aquelas mãos mágicas
começam a lhe conjurar imagens de novo. “E, de repente, você se
depara com uma formação rochosa natural. Blocos de pedra maiores
do que esta sala, e outros vinte vezes maiores do que esta casa. Alguns
submersos, outros encalhados na areia. Artesãos dos tempos antigos
esculpiram templos nessas pedras, alguns pequenos como casas de
bonecas, outros do tamanho de um teatro, com assentos e tudo.
Talhados a partir de uma só pedra, pode imaginar? Acredita-se que era
um local de formação de escultores. Mahabalipuram é um dicionário
contendo um amplo imaginário dedicado aos templos. Cada gesto tem
um sentido. E todos os deuses estão lá: Shiva dançante, Durga e
Ganesha. Leões, touros, elefantes — há mais animais ali do que no
zoológico.”
Digby é transportado para a praia em companhia de sua
interlocutora e já pode sentir a brisa soerguendo o cabelo dela na nuca,
além de ver por trás da mulher as silhuetas dos templos antigos ao
entardecer; sente o sal respingando em seu rosto, o cheiro do mar
misturando-se ao perfume dela. Então respira fundo, tragando tudo
para dentro de si.
“Posso ver.”
“Agora, fixe os olhos nas ondas que recuam. Vê aquela forma escura
sob a água? Mais templos! Uma fileira deles. Ocultos pelo mar. Pelo
tempo. As coisas dão um jeito de voltar quando você acha que
desapareceram para sempre.”
Uma explosão de gargalhadas roucas traz os dois de volta à realidade;
a areia dá lugar ao piso de madeira, uma sala de visitas abarrotada,
onde, em torno da árvore de Natal, o Raj se diverte, bandejas com
copos de uísque são oferecidas por garçons de turbante, e ninguém
consegue imaginar quando essa festa chegará ao fim.
“Foi uma bela viagem, sra. Arnold.”
“Celeste, por favor. Sra. Arnold me dá a sensação de que sou mais
velha que um templo submerso. Precisamos levar você lá o quanto
antes. Essa turma aqui jamais iria a Mahabalipuram.” Volta-se para ele,
buscando seu rosto. “Me alegra que você goste daqui. Não está na
moda dizer que gostamos, não sei bem por quê. Durante muito tempo
achei que nossa permanência fosse temporária. Claude estava certo de
que seria transferido para Calcutá, onde cresci. Ou Dheli. Por isso
demorei para me organizar por aqui.”
A casa parece muito bem organizada. No entanto, Digby acha que
não combina com Celeste. Ele a vê em um pequeno palácio de
Chettinad: um pátio central e uma piscina ornamental rebaixada,
margeada por assentos de pedra onde se pode descansar, um balanço
de teca para dois, a brisa entrando nos quartos…
“Lá se foram quase vinte anos, sabia?”
“Tenho certeza de que o novo cargo logo chegará”, ele diz,
gaguejando.
“Que o céu me proteja! Talvez sonhasse com isso no começo. Mas
amo esta cidade. Meus filhos chamam de lar, embora só nos visitem
ano sim, ano não. Por que partir? Se partirmos, Claude ainda será
Claude, e eu ainda serei…” Celeste desvia os olhos para a pintura,
estudando-a mais uma vez, como se fosse ela a hóspede sendo
apresentada à coleção da casa.
Digby memoriza a silhueta dela: a testa, o nariz, o lábio superior
com seu arco de cupido cedendo lugar à borda avermelhada do lábio
inferior, deslizando por sobre a cartilagem tireoide e cricoide, até o vão
macio acima do esterno. Ele gostaria de traçar o contorno com o dedo.
Celeste vira-se a tempo de ver o enrubescimento do jovem médico.
O olhar dela demora-se sobre seu rosto, com uma expressão ilegível.
Então ela passa a observar a sala. O ruído da festa os circunda, sem
penetrar no casulo deles. Veem Claude, o rosto esbaforido, as pálpebras
pesadas.
“Por que conto tudo isso a você, jovem Digby Kilgour?”, ela
pergunta, a voz rouca quase inaudível. Volta-se para ele de novo,
esperando, com as sobrancelhas arqueadas.
“Porque você sabia que eu ia me interessar.”
Há uma súbita dilatação das pupilas dela, seus olhos brilham. Os
rubis sobre o esterno ascendem. Depois de uma longa pausa, ela diz:
“Você não cometerá o erro que cometi, não é?”. O olhar dela é suave e
ao mesmo tempo sorridente, a expressão melancólica desapareceu.
“Que erro… Celeste?”
“De escolher ver no futuro companheiro mais do que as evidências
sugeriam.”
17. Raças à parte

1935, madras

Owen e Jennifer Tuttleberry são dois amigos anglo-indianos de


Honorine, e agora também de Digby. Ela trabalha como telefonista, ele
é condutor de locomotivas. Owen passa o dia em pé, na plataforma de
Bessie, sua grande “dama” sibilante, tendo diante de si uma infinidade
de mostradores e alavancas. É um garotinho cujo sonho se realizou. A
rota para Shoranur lhe dá poucas chances de descanso. “Vejo o sol
nascer no golfo de Bengala”, diz, “e se pôr no mar Arábico. Não sou o
homem mais sortudo do mundo?”
Digby anda querendo um meio de transporte melhor. Um carro é
caro demais, mas uma motocicleta de segunda mão pode ser
interessante. Owen mandou avisar que pode vender a sua. Digby e
Honorine partem de jatka para a Colônia Ferroviária de Perambur.
Esse enclave murado anglo-indiano no extremo da cidade parece uma
vila de brinquedo, pontilhada por casinhas idênticas. No descampado
central, garotos jogam críquete com uma bola de tênis. Adolescentes se
aglomeram perto dos balanços sob o olhar vigilante dos adultos. Não se
vê um único sári ou mundu — apenas calças, shorts e vestidos.
Do lado de fora da casa dos Tuttleberry há um carro de marca não
identificada, sem pintura, com soldas à vista. Owen leva Digby ao
quintal para conhecer Esmeralda, que, por um precinho camarada,
pode ser dele. O preço é de fato uma barganha, embora Digby tema
que Esmeralda não seja a “joia cem por cento confiável” que seu dono
diz ser. O homem prometeu expandir os conhecimentos de Digby
acerca de assuntos mecânicos — um bom contraponto ao que ele já
sabe sobre o funcionamento do corpo humano. Esmeralda é, em
essência, uma Triumph, mas Owen admite que o tanque de
combustível, o guidão, a forquilha dianteira, o suporte do motor, o
chassi, o exaustor e o carrinho lateral de madeira foram fabricados na
oficina da Estação Ferroviária de Perambur — ela é em parte uma
locomotiva… Só o motor de cilindro único é original. “Ela é um pouco
retraída no começo, até você conhecer melhor. Mas é leal como
ninguém. Prometo que serei seu mecânico pelo resto da vida.” Com
Owen no carrinho lateral passando-lhe instruções, Digby liga
Esmeralda e anda pelo enclave. Ao voltar, está apaixonado. “Ela é
como parte da família, Digby. Se não tivesse meu carro, ficaria com ela.
Você viu o carro? Uma belezinha, não? Só precisa de uma pintura.”
Eles têm que ficar para o jantar: “Isso nem se discute”. Honorine
senta ao lado de um jovem de ombros largos que veste uma calça preta
bem passada e uma camisa azul impecável, as mangas enroladas bem
acima dos cotovelos, deixando à mostra bíceps poderosos. É o irmão de
Jennifer. Tem a pele mais clara que ela e cabelo castanho-claro. Ele
aperta a mão de Digby com força e declara: “Doutor, meu cunhado
deve gostar muito de você para se des­pedir de Esmeralda”.
Owen comenta: “Você está apertando a mão de um futuro campeão
olímpico, pode escrever. Se Jeb não entrar para a equipe de hóquei,
então já não sei de nada.”
“Não fala isso que dá azar, pelo amor de Deus”, Jeb diz.
Jennifer intercede: “Meu irmão não sabe diferenciar um bilhete de
trem de uma beringela, mas supostamente é bilheteiro”. Ela abre um
sorriso largo, emoldurado pelo batom vermelho. “Eles lhe dão ovos
crus toda manhã, carneiro no almoço, e ele joga hóquei o dia inteiro.
Vida boa, não?”
O contraste entre a pele clara de Jeb e a pele escura do cunhado é
admirável. Owen, com suas mãos pretas pela exposição ao sol e uma
linha permanente de graxa contornando as unhas, é, dos dois, a alma
mais simples.
Jeb vive com a mãe algumas casas mais adiante. Ela logo chega,
trazendo a tia de Owen, as duas crianças do casal e uma sobrinha. A
família se aperta em torno da mesa de jantar com os convidados de
honra. Digby observa, encantado, esse quadro da vida familiar: os filhos
sentados no colo dos pais, tio Jeb servindo um licor caseiro, Jennifer
servindo um prato delicioso que ela chama de “pish-pash”: arroz,
carneiro, batatas, ervilhas e especiarias, todos os elementos cozidos
juntos.
Owen olha com orgulho para a esposa. “Ela é um partidão, não é,
doutor? Quem imaginaria que fosse se casar com um escurinho como
eu?”
Quando deixam para trás os limites da colônia ferroviária, Esmeralda
passa por aglomerados de cabanas e habitações precárias. O contraste
impressiona: um enclave de anglo-indianos que exclui os nativos; no
entanto, seus moradores também são excluídos pela raça governante
com quem se alinham. A situação do jovem cirurgião não é muito
diferente. Digby Kilgour: oprimido em Glasgow, opressor aqui. Aquele
pensamento o deprime.
18. Templos de pedra

madras, 1935

O motorista de Celeste estaciona em frente ao bangalô de Digby. Na


casa contígua, a voz vacilante de um velho rege um grupo de garotas
que cantam “Suprabhatam”, hino cantado para despertar Lord
Venkateswara, a divindade do célebre templo em Tirupati. Celeste
sente que aquela escala parcimoniosa, a melodia e o ritmo do hino
fazem parte dela. Janaki, a aia tâmil que a acompanha desde a infância
em Calcutá, cantava-o enquanto lhe penteava o cabelo.
Depois que os pais de Celeste morreram, Janaki passou a ser toda a
família dela. Anos mais tarde, quando Claude, apesar de seus protestos,
enviou os filhos para o colégio interno na Inglaterra, Celeste sentiu a
casa morta. Para tirá-la da depressão, Janaki a levou a Tirupati. De pés
descalços, as duas se juntaram aos milhares de peregrinos que subiam a
montanha, galgando degraus polidos por milhões de visitantes, e ali
mais uma vez ela ouviu o hino. A solidariedade de tantos devotos, cada
um com seu problema, deu-lhe forças. Quando Janaki raspou a cabeça,
oferecendo o cabelo ao templo, Celeste fez o mesmo. Assim que as
tranças caíram no chão, parecia que a dor se aquietava. Depois de horas
na fila, ao pôr os olhos em Lord Venkateswara, Celeste sentiu os pelos
de seus braços se arrepiaram. Aquele ser pacífico de três metros de
altura, coberto de joias, não era um mero ídolo ou representação: era a
própria encarnação de Vishnu, e a força que irradiava era tamanha que
ela sentiu a montanha vibrar sob seus pés e sua vida mudar.
Quando Celeste voltou para casa, Claude poderia ter se informado
sobre sua transformação, sua entrega à seva, se lhe tivesse perguntado.
Mas não: ele olhou para sua cabeça raspada e ficou em silêncio. Seva
significava apagar toda consciência do eu por meio do serviço. Para ela,
aquilo se manifestava de muitas formas, como no trabalho voluntário
semanal no orfanato de Madras.

Digby aparece com um sanji de pano sobre o ombro, uma opção de


bolsa que poucos britânicos escolheriam. Entra no carro, nervoso e
animado. Como um garotinho pronto para uma excursão, pensa
Celeste.
A mão escura de Muthu entrega uma lata pela janela. “Saar
esqueceu as samosas”, ele diz.
“Posso?” Celeste abre a lata. Dá uma mordida em uma das samosas,
o recheio ainda fumegante. “Divina”, ela diz, inclinando-se para que os
farelos não caiam sobre sua kurta laranja. “A melhor que já comi.”
“Se senhorita gosta, faço mais”, diz Muthu.

Enquanto o carro se afasta, Celeste ri. “Ele me chamou de senhorita.


Como se eu fosse uma estudante.” Digby sorri, sem dizer nada.
Nas redondezas de Adyar, cruzando o rio e o pântano aberto, Digby
gagueja: “Confesso que não dormi a noite inteira”.
“Não?”
“Temo ter passado a impressão de que entendo de arte. Não tive esse
tipo de educação. Nunca vi os grandes museus europeus. Nos poucos
meses em que trabalhei em Londres, nunca saí do hospital. É isso!
Precisava confessar.” A revelação o deixa corado.
“Digby, vou te desapontar. Não fui a nenhum grande museu na
infância. Meus pais eram missionários em Calcutá. A gente morava
numa casa de dois cômodos, com uma aia, não dez empregados, como
outras famílias que eu conhecia. Mas não faça essa cara. Foi uma
bênção! Como meus pais não tinham meios de me enviar para a
Inglaterra, fui poupada da dor de ser extraditada aos cinco anos. Essa é
a regra, sabe. Embarcar os pequenos para um colégio interno do outro
lado do oceano. Claude fez isso com meus meninos. Ano, sim, ano,
não, desembarca uma criança sempre mais alta. Ela aperta sua mão e
diz: ‘Olá, mãe’, pois a memória de ‘mamãe’ já desapareceu.”
Os péssimos amortecedores do Model T os embalam no mesmo
vaivém, um ritmo que facilita a confissão. “Sorte minha que eles nos
visitam. Outras crianças passam todo o verão com a ‘vovó’ Anderson ou
a ‘tia’ Polly em Ealing ou Bayswater, que tomam nosso lugar por uma
pequena quantia. É de uma crueldade inconcebível.”
“Então por que agir assim?”
“Por quê? Porque a opinião médica respeitada é que, caso as crianças
permaneçam na Índia, sucumbirão à febre tifoide, à lepra ou à
catapora. Se sobreviverem, serão frágeis, preguiçosas e traiçoeiras. Não
importa que milhões de nós tenhamos sobrevivido sem nenhum
problema. É o que diz o manual do serviço público! ‘A qualidade do
sangue deteriora’, de acordo com Sir Fulano de Tal, da Faculdade Real
de Cirurgiões. Há boas escolas aqui. Mas, nesse caso, meus pobres
filhos teriam de ser educados ao lado de anglo-indianos. Teriam
sotaque, como a mãe, e seriam chamados de ‘quinze annas’ pelas
costas, mesmo não sendo anglo-indianos.” São dezesseis annas para
cada rúpia, e ser alguém como Celeste significa carecer de uma anna.
Aquela amar­gura, que o espanta, também a surpreende. Digby a escuta
com todo o seu ser, oferecendo-lhe uma tela em branco para seus
pensamentos, e ela percebe. Deus meu, ele parece enamorado. Seja
gentil com ele.
“Eu não fazia ideia”, ele diz. “Uma inglesa que nunca pôs os pés na
Inglaterra.”
Quando mencionou o novo cirurgião-assistente, seu marido disse se
tratar de um católico de Glasgow — isso lhe bastava para classificar um
ser humano. O homem ao lado dela é muito mais. Sem pensar, ela se
aproxima e toca a cicatriz sinuosa em sua face. Digby enrubesce, como
se com aquele gesto ela expusesse algo grotesco a respeito dele, embora
a intenção dela fosse bem diferente. Celeste logo volta a falar, para
quebrar o constrangimento de ambos.
“Mas conheci, sim, a pátria. Um amigo de meus pais pagou minha
passagem quando terminei o colégio. Estava curiosa.” Ela lembra de
desembarcar no porto frio e nevoento em Tilbury e de ter o primeiro
vislumbre da grande cidade de Londres. Os edifícios imensos que ela
tanto imaginara eram cinzentos, pareciam asfixiados pela fumaça das
chaminés. Nas rígidas cidadezinhas rurais, pequenas casas
compartilhavam paredes, espremendo-se umas contra as outras, como
halwa na confeitaria. Até as roupas nos varais eram cinza. “Ganhei uma
bolsa para estudar numa escola que treinava garotas para serem
missionárias. Mas o que eu queria mesmo era cursar medicina. Poucos
meses depois de minha partida, meus pais morreram. Cólera”, declara,
sem meias palavras.
Ela se volta para o mar, agora visível à esquerda. Um carro vindo na
direção oposta obriga ambos os veículos a puxarem para o lado,
cuidando para não atolar na areia.
Quando ela se vira, Digby a está analisando, como um artista estuda
sua modelo.
“Também sou órfão”, ele diz, tímido.

Em Mahabalipuram, Celeste mostra a praia a Digby. À frente deles,


a fai­xa leitosa de areia branca é interrompida por escuras formações
rochosas que parecem cascos de navios naufragados. “Aquelas cinco
esculturas talhadas a partir da mesma rocha são chamadas de rathas”,
ela diz, “pois têm forma de carruagem. São como que um comboio.
Uma coisa interessante é que…” Ela se cala. “Não há nada pior do que
um guia turístico. Digby, vá explorar. Eu te encontro na última ratha,
com o elefante de pedra. É fácil de reconhecer.” Ele parte sem
protestos, o que a desaponta um tantinho.
Do lado de fora da primeira ratha, um par de figuras femininas
grandiosas e curvilíneas mantém guarda; uma faixa de tecido mal lhes
oculta os mamilos, e outra, o púbis. Celeste vê Digby pegar o caderno
de desenhos. O que esse órfão da católica Glasgow — como soa pesada
essa descrição — pensa sobre a presença de esculturas tão sensuais
numa estrutura sagrada?
Ela toma assento à sombra da quinta ratha e tira os óculos escuros
para examinar a obra-prima absidal. Após a primeira visita a
Mahabalipuram, decidiu aprender tudo sobre a arte dos templos —
uma jornada que a levou a organizar, anos depois, uma exposição com
obras de pintores do sul da Índia. Um negociante de arte que comprou
muitos dos quadros admirou sua curadoria. E deu-lhe o seguinte
conselho: “Compre o que você ama de acordo com seu orçamento”. A
partir de então virou colecionadora. É por isso que estou aqui? Quero
Digby em minha coleção?
Passado um bom tempo, ela avista Digby emergindo da quarta ratha.
Ele vê Celeste, e uma súbita preocupação cruza seu sorriso — será que
a fez esperar? Os dois seguem na direção das dunas, até o ponto onde o
motorista os espera com um cesto, à sombra de um pau-rosa-do-
pacífico. Ela estende uma manta. Diante deles há um rochedo de
arenito de quinze metros de altura e trinta de comprimento, exibindo
na superfície uma narrativa sem fim de deuses, humanos e animais.
Esquecido de si — coisa rara —, Digby analisa o painel, devorando os
sanduíches de tomate e chutney que ela trouxe. “O que é isso tudo?”,
ele pergunta, ainda mastigando.
“A descida do Ganges. Aquela fissura é Ganga, jorrando em resposta
às preces do rei. Mas se caísse diretamente na terra, ela despedaçaria o
mundo, então Shiva deixa que caia pelo cabelo dele — consegue ver,
com o tridente? Aqueles pares voadores no topo são os meus favoritos.
Gandharvas. Semideuses. Amo a forma como voam sem esforço. Dá
para ver trabalhadores, anões, sadhus… Vê o gato de pé, se fingindo de
sábio? E os ratos vindo em adoração? Tem humor, drama, sempre algo
novo.”
Digby se apressa para terminar o sanduíche e puxa o caderno.
“Podemos ficar aqui um tempinho?”
“Claro! Trouxe um livro.” Ela descansa recostada à árvore e abre um
romance.
Ao despertar, encontra Digby a estudá-la. Quando terá adormecido?
Senta e lhe estende a mão. “Posso?” Ele hesita, mas logo lhe entrega o
caderno. Registrou algumas impressões rápidas, três ou quatro por
página. Seus olhos de desenhista junto com seu conhecimento
anatômico fazem dele um estenógrafo preciso das coisas que vê.
“Puxa, você tem peito! Digo, jeito! Não me entenda mal.” Ele não
exagerou os seios das figuras de pedra mais do que os próprios
escultores, mas, de fato, seu lápis no papel branco os favoreceu.
Capturara todos os gestos de mão, as mudras — todo um vocabulário
para dançarinos. “Digby, estou sem palavras. Que talento!”
Ela passa a um desenho de uma mulher de óculos escuros, os lábios
levemente entreabertos, como se sugando pequenos goles de ar
enquanto dorme. Sua imagem no papel junto das figuras de pedra
funde os séculos. Ela estuda esse outro eu. Lisonja não é a palavra certa
para esse retrato. É empatia — a mesma qualidade das esculturas que
os cercam. Os artistas antigos eram, acima de tudo, devotos. Sem amor
pelo tema, a atividade deles se resumiria a talhar pedras; é a adoração
que dá vida à obra. Sente o rosto enrubescer. Dig­by não tem malícia
mas é hábil em desenhar a forma feminina, graças às horas de atenciosa
contemplação e à intimidade macabra que sua profissão lhe garante.
Digby a observa com ansiedade. “Gostei”, Celeste diz, com uma voz
que parece de alguém que ela mal conhece. “Você tem um dom…”
Claude alguma vez lhe rendeu uma homenagem como aquela? Sente-
se invadida por um desejo urgente e desesperado de se libertar da vida
atual.
“É uma fuga”, ela ouve Digby dizer, como se lesse seu pensamento.
Ela cora de novo. “Perdão?”
“É uma fuga. Não um dom. Quando menino, desenhava mundos
que em minha cabeça eram mais felizes que o meu. Rostos. Posturas.
Exatamente o que vejo aqui.”
O desejo de criar veio com o desejo de desmontar? Para recompor
tudo de novo? “Escapar do quê, Digby?”
As feições dele se enrijecem, igual ao arenito. É como se ela tivesse
tocado de novo na cicatriz no rosto dele. Por fim, Digby responde,
numa voz animada que despista qualquer sondagem. “Eles não tinham
vergonha do corpo, não é? Isso se vê bem. Sentiam-se à vontade na
própria pele.” O jovem médico a encara.
Ela concorda. “É verdade. Visitei os templos em Khajuraho, ao
norte, com Janaki, minha aia. Esculturas admiráveis da intimidade de
casais, cortesãos… bem, digamos que nada fica a cargo da imaginação.
Os peregrinos ficariam escandalizados se encontrassem aquilo em um
cartaz de cinema, mas na parede de um templo é sagrado. As esculturas
apenas ecoam suas Escrituras. ‘Isto é a vida’, é o que diz a mensagem.”
“Não há nada parecido na catedral de Glasgow, garanto!”, Digby diz,
deixando deliberadamente que o sotaque escape de sua usual
vigilância. É recompensado pela risada de Celeste. “É sério”, ele
continua. “A primeira coisa que o cristianismo diz é que somos
pecadores. Sempre abominei isso. Se ganhasse um centavo cada vez
que minha avó dizia que todos os meninos eram ladrõezinhos
mentirosos e que eu não era exceção… Desculpe, Celeste. Espero que
minhas crenças, ou a falta delas, não te ofenda.”
Ela balança a cabeça. Depois da morte dos pais, como se apegaria à
sua fé? Ela e Digby estão cercados de fantasmas, e não apenas os
daqueles antigos escultores que deixaram sua marca na pedra.
“Digby, como seus pais morreram?” A pergunta flutua no ar, como
uma das gandharvas. O semblante de Digby se ensombra: um
garotinho tentando se mostrar estoico diante do indizível. “Esqueça que
perguntei, tudo bem?”, ela diz. “Esqueça.”
Os lábios de Digby se abrem, como se prestes a falar. Mas ele desiste.

Na volta, os dois ficam em silêncio. Ela sente o embevecimento


daquela viagem no tempo, o presente que Mahabalipuram oferece aos
visitantes. Mas seu companheiro a preocupa. Ambos são criaturas da
perda. Celeste o olha furtivamente, seu queixo firme, os ombros fortes.
Ora, ele não é feito de porcelana chinesa. Ficará bem.

“Celeste…”, começa Digby quando chegam a seu bangalô, a voz


áspera, carregada do silêncio que se acumulara durante o caminho.
Ela se aproxima e lhe toma a mão antes que ele diga qualquer coisa.
“Dig­by, muito obrigada pelo dia maravilhoso.”
“É o que eu ia dizer”, ele retruca.
Ela sorri, embora se sinta tomada de tristeza e de um estranho
anseio. Aperta os dedos, mantendo o próprio corpo sob rédeas, ereto.
Olha para baixo, para as mãos dos dois, entrelaçadas.
“Você é um bom homem, Digby”, ela diz. “Adeus. Pronto. Falei por
nós dois.”
19. Pulsátil

madras, 1935

Digby jura a si mesmo que não pensará nela. Mas é impossível.


Celeste está talhada em sua memória como uma escultura de pedra;
seus pensamentos sobrevivem a uma estação chuvosa que não mereceu
esse nome, a um tufão, que fez por merecer sua denominação, e a uma
“primavera” que passou num piscar de olhos. Ele ainda consegue sentir
o cheiro do mar, o sabor dos sanduíches de chutney, bem como
conjurar o rosto adormecido de Celeste, que sugere tudo que ela
suportou, mesmo que as cicatrizes sejam menos óbvias do que a dele.
Como consolo, Digby tem Esmeralda. Até agora ela confirmou o
vaticínio de Owen: uma “joia cem por cento confiável”. Tem muitas
idiossincrasias, mas recompensa a paciência do dono. Nos fins de
semana, ela o acompa­nha a novas paragens, investigando as franjas da
cidade: o monte de São Tomé, a praia de Adyar e mesmo Tambaram.
Embora seu horizonte tenha se expandido desde seus tempos de
ciclista, o círculo de amigos do jovem médico continua restrito:
Honorine, os Tuttleberry e Ravichandran. Lena Mylin lhe escreve
cartas afetuosas — passa bem, e Franz lhe manda lembranças. A certa
altura envia uma fotografia do chalé de visitas na propriedade deles,
onde, diz ela, o rapaz poderia pintar e relaxar. Ele promete fazer a
viagem no verão, quando Madras se torna insuportável.

Digby e Honorine são os convidados dos Tuttleberry para o Baile de


Outono do Instituto Ferroviário, que, segundo Jennifer, é um evento
“im-per-dí-vel” — e ao que tudo indica ninguém na comunidade anglo-
indiana o perdeu. Vovôs e vovós de cabelos grisalhos e os pequenos
infantes cochilam pelos cantos, ignorando a presença no palco do
conjunto Denzil and the Dukes, que toca de swing a polca. Uma
cantora cheia de malícia junta-se a eles para “April Showers” e
“Stardust”. Digby observa um casal de meia-idade navegando pela pista
de dança lotada; estão casados há tanto tempo que já deixaram
incrustações no corpo um do outro.
Jennifer arrasta Digby para o salão, ignorando seus protestos. “Eu te
ensino, não se preocupe”, ela diz. “Não é mais difícil que fazer uma
cirurgia.” Ele, contudo, preferiria uma gastrectomia. “Use os quadris
para conduzir”, a mulher o encoraja.
A chegada de Jeb, irmão de Jennifer, acompanhado de um pequeno
séquito de rapagões bonitos, cria uma pequena comoção. “O Príncipe
de Perambur nos deu a honra de sua presença esta noite”, ela declara,
franzindo as sobrancelhas. Na mesma hora uma moça levanta da
cadeira e parte indignada do salão, pais e irmãos em seu rastro, todos
lançando olhares para Jeb, que se afasta — humilde, educado, os olhos
no piso de concreto. Jennifer balança a cabeça: “Mary e Jeb
namoravam desde o tempo em que os dois usavam fraldas. Ele chegou
a lhe dar um anel. Até que, poucas semanas atrás, meu irmão deu um
pé na bunda dela. Ainda estou brava”.
De volta à mesa, Digby observa Jeb passeando pelo salão como um
candidato a prefeito; acena para os Denzil and the Dukes, que lhe
devolvem o cumprimento como se estivessem diante de um membro
da realeza. Passa por Jennifer, que o ignora, mas ele se esgueira por trás
dela e a ergue nos braços, levando-a para a pista de dança. Denzil and
the Dukes atacam um chá-chá-chá; todos os olhos estão fixos nos
irmãos; Jeb conduz a dança com habilidade, exercendo uma pressão
suave com a ponta dos dedos e conduzindo tudo com os quadris. Digby
inveja aquela destreza que sabe que jamais terá. Fica impressionado
com o contraste entre os olhos azuis e o cabelo castanho de Jeb e os
olhos e o cabelo negro de Jennifer. Se vestisse um sári, aplicasse henna
no cabelo e pusesse um pottu na testa, ela bem poderia passar por uma
moça tâmil, ao passo que Jeb poderia ser um inglês bronzeado, recém-
chegado de um verão na Itália.
Numa série de rodopios Jeb devolve a irmã sorridente à cadeira e
logo se volta para uma beldade jovem e modesta num belo vestido
branco com estampa de rosas vermelhas e decote generoso. Porém é na
mãe da moça, uma senhora corpulenta, que Jeb está de olho. De calça
de cintura alta e camisa branca de smoking, o rapaz é como um
toureiro conduzindo-a para o salão: finge admiração por seus talentos
secretos e lhe dá oportunidade de provar que, vinte anos atrás, ela
brilhava… Enquanto isso, a modesta filha fica cada vez mais aflita em
sua cadeira, pois sabe o que Digby só agora percebe: que desde que Jeb
adentrou o salão, tudo não passou de uma sequência de disfarces e
pistas falsas, pois o destino estava selado, só havia uma garota no
mundo para ele, e era a adorável filha da senhora corpulenta, a moça
no vestido branco com rosas vermelhas, pois, claro, “foi amor à
primeira vista, meu benzinho”, e, por favor, esqueça as baboseiras que
você ouviu sobre mim, porque era tudo conversa fiada daquela Mary e
seus irmãos Charley-Billy-po-po-gunda, assim é essa gente da roça,
cheia de histórias, lixo, sapos presos num balde tentando colocar para
baixo uma alma corajosa que só deseja ver o mundo…
Digby não fica tão surpreso ao descobrir por Owen que a nova
namorada de Jeb se chama Rose. Celeste, o jovem médico pensa,
amaria toda aquela intriga e confusão. Mas ela é um devaneio,
enquanto mulheres de carne e osso passam por ele em nuvens de
perfume, lançando-lhe olhares e convidando-o a aventuras. Uma hora
depois, quando Digby e Honorine se retiram, a dança segue firme.
Digby parte em baixa velocidade, o único compasso que Esmeralda
aguenta com um passageiro no carrinho lateral — apenas um pouco
mais rápido do que uma bicicleta. A brisa do mar hidrata e limpa.
Digby desliza os óculos de proteção para a testa, o cabelo de Honorine
esvoaça.
“É um mar de rosas para Jeb”, Digby grita por sobre o ombro, a
imagem do vestido branco coberto de rosas ainda vívida. Quer falar
sobre Celeste, mas jamais a mencionaria, jamais pronunciaria seu
nome a outra pessoa.
Honorine ri, gritando de volta: “Rosas seriam irritantes ervas
daninhas se os botões nunca definhassem e morressem. A beleza reside
em sabermos que ela não perdura”.
Bem, Jeb com certeza sabe disso, pensa Digby. Mas e Rose? E, se a
beleza está no efêmero, o que dizer das coisas belas que não podemos
possuir? Talvez esse tipo de beleza dure para sempre.

A chegada dos dias de cão do verão marca o começo de outro ano no


Longmere; Muthu registra a ocasião no calendário da cozinha.
Quando Digby passa pela antecâmara da sala de cirurgia, enxugando
o suor com um lenço, reconhece um paciente numa maca. Os olhos
azuis e a pele vagamente bronzeada do homem lhe dão uma aparência
britânica, coisa rara quando se trata dos pacientes de cirurgia naquele
hospital.
Digby confere a lista de operações de Claude e encontra um único
nome por lá: Jeb.
“Não é nada”, o rapaz diz, constrangido por encontrar Digby. “Um
maldito abcesso.” E aponta um caroço vermelho e irritado no pescoço.
“Pensei em drenar com o dr. Arnold. Ele é fã de esportes. Assiste a
todos os nossos jogos.”
“Há quanto tempo o caroço está aí?”, Digby pergunta, porém o que
de fato quer dizer é: Eu não deixaria Claude retirar nem um carrapato
de minhas costas. Ele examina bem a íngua.
“Ah, meses e meses, eu diria. Mas só agora começou a incomodar de
fato.”
Quando o assistente de Claude aparece pontualmente para levá-lo,
Jeb se despede com um aceno animado.
Meses e meses? Aquilo não sai da cabeça de Digby. E começa a preo‐­
cupá-lo.
Pede a um estagiário que pergunte a Honorine se ela pode
comparecer à sala de cirurgia. Ele veste o uniforme cirúrgico e adentra
a sala para conferir o tal caroço de novo. O clorofórmio já fez efeito, e
os olhos de Jeb estão cerrados. O inchaço é forte e vermelho — parece,
de fato, um abscesso. Talvez tenha me equivocado, pensa Digby. Mas,
quando o toca com um dedo, percebe que a região não está quente
como deveria caso fosse um abscesso. Em vez disso, o caroço lateja,
como Digby temia.
“Ora, se não é o dr. Kilgour”, Claude diz, aparecendo a suas costas,
devidamente higienizado e uniformizado, bem quando Honorine
chega, apertando a máscara ao rosto. Não é nem meio-dia ainda, mas
Digby sente cheiro de bebida alcoólica. “Você já não tem trabalho
suficiente na enfermaria nativa? Veio dar uma conferida?” Se Claude
sorri, a ação com certeza não transparece em seus olhos e é ocultada
pela máscara.
“Ah, desculpe. É que conheço Jeb”, Digby declara. “Irmão de um
amigo. Topei com ele na antecâmara.” O jovem médico baixa a voz.
“Eu me preocupo… Estou preocupado, dr. Arnold. Isso não poderia ser
um aneurisma, em vez de um abscesso?”
Os olhos de Claude gelam e o ódio explícito que manifestam abala
Dig­by. Por um momento o jovem se pergunta se aquilo não diz respeito
à Celeste, mas os únicos pecados que cometeu estão só em sua cabeça.
Claude se recompõe. “Bobagem, meu velho. Você está aqui há
bastante tempo, sem dúvida consegue reconhecer um abscesso. Está
cheio de pus. Os vasos atrás dele é que pulsam. Estamos nos trópicos.
Os abscessos piogênicos são mais comuns do que a acne.”
Suas palavras não saem embaralhadas, são enunciadas com cautela.
Ele pode estar certo.
“É que não está quente…”, Digby argumenta. “Talvez uma pequena
agulha inicial possa esclarecer…”
“É um abscesso cheio de pus”, Claude diz, monocórdico. “Eu já
abria essas coisinhas quando você ainda aprendia a pintar com os dedos
sujos de tinta. Espere e veja.”
O dr. Claude Arnold faz uma incisão no inchaço antes que o
antisséptico seque. O pus jorra, grosso e cremoso; Claude vira-se para
Digby e está prestes a dizer “Viu só?”, mas no instante seguinte um jato
de sangue, claro e arterial, o acerta na cabeça. Ele recua, pasmo,
porém não se move rápido o bastante e é golpeado de novo, um jorro
sincronizado com os batimentos cardíacos de Jeb.
Claude derruba um banquinho ao se retirar. Digby assume o
comando, pegando toalhas cirúrgicas com as mãos sem luvas para
pressionar o aneurisma, pois é disso que se trata: um enfraquecimento
focal da parede da artéria carótida. Honorine abaixa a máscara e se
prepara para ajudar.
O corte de Claude é tão longo e profundo que a compressão não
estanca o vazamento. As esponjas, como os dedos de Digby, enchem-se
de sangue, que escorre, formando poças no chão. O rosto de Jeb já está
pálido, fantasmagórico. Quando Digby retira as toalhas, o sangue jorra
com menos vigor. Ele costura os vasos grosseiramente, mas a essa altura
o paciente já perdeu muito sangue e seu coração parou. Os olhos de
Jeb estão entreabertos, e Digby sente aquele olhar que o observa, como
se perguntasse: Por que você deixou?
O som da banqueta caindo atraiu a atenção de todos nas
proximidades. Na sala de cirurgia há uma pequena multidão estudando
o quadro tenebroso. “Mas que loucura!”, diz Claude a dois metros de
distância, rompendo o longo silêncio.
Está quase tão pálido quanto Jeb, exceto pelo sangue que lhe suja
metade do rosto. Todos olham para ele, que oferece uma imagem
patética.
“Aquela desgraça o teria matado de todo jeito”, Claude declara.
“Ninguém tem culpa”, murmura e sai, cambaleante.
20. Em casas de vidro

madras, 1935

Pela janela da igreja, Digby pode ver o cemitério. Claude, quantas


almas você enviou para cá? O homem voltou ao “trabalho” no dia
seguinte como se nada tivesse acontecido. Digby estremece quando
uma voz interior o alerta: Cuidado, Digby. Nenhum cirurgião é
infalível.
O funeral teve de ser transferido de Perambur para um espaço maior
em Vepery. A comunidade anglo-indiana compareceu em peso, as
mulheres de chapéu e véu negro. Ele mal consegue discernir o altar
entre tantas coroas de flores ao redor do caixão. Uma fotografia
emoldurada de um Jeb admiravelmente belo apoiando-se em um taco
de hóquei lembra a Digby a imagem de Rodolfo Valentino. A igreja
está quente, a cerimônia é longa, o ar tomado pelo aroma enjoativo das
gardênias.
Quando os colegas do time de Jeb, uma falange de homens de blazer
azul e calça branca, leva o caixão pelo corredor, o gemido de uma
mulher estilhaça o silêncio, e os soluços preenchem toda a igreja.
Do lado de fora, Digby ouve alguém chamá-lo. Owen lhe agarra a
mão. De ombros caídos, parece ter virado a noite. “Doutor, sabemos o
que aconteceu na sala de cirurgia. Você tentou impedir.”
Digby não disse nada para ninguém de fora do hospital.
“Estivemos com o superintendente do hospital”, Owen diz, “Um
filho da puta escorregadio que só queria proteger Arnold. O próprio
chefão lá da Companhia Ferroviária peticionou o governador em nome
da família. O governador ligou para o diretor do Serviço Médico
Indiano e prometeu uma investigação. Não vamos deixar isso passar em
branco, Digby.” Owen procura os olhos do jovem médico. “Sei que ele
é seu chefe e tudo. Mas, doutor, não proteja o filho da mãe.”
“Owen, se me perguntarem, direi a verdade”, Digby afirma, sem
rodeios.
O outro assente. E completa: “Jeb não era santo. Não tinha
maturidade e ainda se meteria em muitas confusões amorosas, mas não
merecia isso”.
Digby faz uma pergunta que martelava em sua mente: “Owen, por
que Jeb não foi ao Hospital da Companhia Ferroviária?”.
A razão era seu novo amor, Rose. “Ela é filha do superintendente
desse hospital. Jeb era meio Don Juan, sabe? De qualquer jeito, Rose
ficou enciumada quando soube que ele andava se insinuando para
outras garotas por aí e contou para o pai, que por sua vez mora em
frente à nossa casa. Ele bateu à nossa porta, fez um escândalo, depois o
filho dele começou a dizer isso e aquilo de nossa família, resultado:
uma grande gumbaloda Govinda, uma confusão dos diabos, com taco
de hóquei, pedras, ossos e tudo mais. Até minha mãe deu uns chutes.
Então é por isso que Jeb não foi ao hospital da companhia.”

Para o editor do The Mail:


A morte de Jeb Pellingham, esperança olímpica do hóquei, é uma
tragédia nacional. E o modo como sua família tem sido tratada é uma
vergonha para todo o país. O sr. Pellingham morreu por negligência de
um cirur­gião do Longmere Hospital; contudo, apesar de promessas do
governador de abrir uma investigação, dois meses se passaram sem que
uma audiência fosse marcada. Enquanto isso, a família e os delegados
da comunidade anglo-indiana não conseguem ter acesso a uma cópia
do laudo do médico legista.
O azar do sr. Pellingham foi cair nas mãos de um cirurgião de má
reputação, que já fora mandado embora do Hospital Geral do
governo. Nenhum europeu busca seus serviços. Ainda assim, ele
permanece no Longmere, ganhando muito para fazer pouco, e esse
pouco que faz resulta bem perigoso. O cidadão curioso deveria se
perguntar se é porque um de seus irmãos é primeiro-secretário do vice-
rei, e o outro é governador de uma província do norte… Por qual outra
razão o assassino estaria sendo blindado?
Em outros tempos, nós, anglo-indianos, tínhamos orgulho de ser
filhos e filhas de homens britânicos, desfrutando de todos os privilégios
da cidadania. Não mais. Se a independência na Índia se concretizar,
sem dúvida seremos ainda mais marginalizados. No entanto, o país
depende de nós para o bom funcionamento de suas engrenagens. É
hora de a comunidade anglo-indiana reconsiderar o apoio inabalável
ao governo, que remonta ao motim de 1857, quando os rapazes do La
Martinière College em Lucknow resistiram com bravura, ou às figuras
heroicas de Brendish e Pilkington, no telégrafo de Delhi, que lutaram
sob grande risco para sinalizar aos britânicos que os amotinados
haviam adentrado a cidade. Na Primeira Guerra Mundial, três
quartos da população anglo-indiana elegível serviu com distinção.
Agora, porém, não aguentamos mais.
A Índia perdeu um bom homem na figura de Jeb Pellingham, e
talvez sua melhor chance para outra medalha de ouro no hóquei. A
indiferença à sua morte e a ausência de qualquer investigação é um
golpe duro no coração da comunidade anglo-indiana. Não deixaremos
que isso caia no esquecimento.
Sinceramente,
Veritas

Celeste larga o jornal sobre a mesa. Vê-se de repente numa casa de


vidro, com toda a cidade de Madras à espreita. A seção de cartas
daquele diário é mais popular que a primeira página. No mês anterior,
os leitores ficaram mes­merizados com um debate acerca da contratação
de indianos qualificados para o Serviço Público Indiano. Essa mudança
na regra pretendia acalmar os ânimos dos indianos, mas os oficiais
britânicos da velha guarda mostraram-se indignados com a diluição de
suas fileiras pela presença de nativos. “Uma Índia sem a ‘Moldura de
Ferro’ de um serviço público britânico colapsará”, dizia uma carta,
enquanto outra argumentava que “era sabido que os brâmanes
fracassam quando aceitos nos postos mais elevados.” Havia tantas
mensagens de oficiais do Serviço Público Indiano (que assinavam
apenas com a letra inicial do nome) que se falou disso como um
“motim branco”, para o desprazer do vice-rei.
A carta de “Veritas” traz o selo da verdade, ainda que impute ao
marido de Celeste nada menos que um assassinato. Um homem que se
mostra indiferente às queixas da esposa e que arranca seus jovens filhos
de seu colo deve levar a mesma indiferença cruel para o trabalho. O
segredo para cuidar de um paciente é se importar com ele, a mulher leu
certa vez, e, se isso é verdade, Claude só poderia fracassar. Ele também
nasceu na Índia, mas em uma família de militares. Por muito tempo ela
achou que a ferida dele advinha de ter sido enviado à Inglaterra ainda
muito jovem, separado dos braços de sua aia. Mas os irmãos de Claude
passaram pela mesma situação, e ainda assim se tornaram pessoas
generosas, prestativas e bem-sucedidas. Quando Celeste o conheceu,
Claude tinha tudo para seguir caminho semelhante; ela se encantou
com sua beleza, sua autoconfiança — e sua determinação em
conquistá-la. Demorou a perceber que lhe faltava alguma coisa, e que
essa falta custou a ele um casamento feliz e o progresso na carreira.
Naquela noite, ela está na sala de estar quando Claude aparece de
roupa branca para jogar tênis. Seus olhos recaem sobre o The Mail
largado à mesa. Ele não olha para a mulher. Vai à bandeja de bebidas e
se serve de uma pequena dose.
“O gramado parece bem seco. Pode falar com o maali, querida?” Sua
voz soa límpida, como num dia normal. Segue para o escritório com o
copo, sem conseguir ocultar com o corpo o decanter de uísque que
surrupiou da bandeja.
Na manhã seguinte, no café, os olhos de Claude parecem mais
fatigados que o normal. Nem termina de descascar o ovo e se retira. Por
um momento Celeste acha que alguma coisa no New India ao lado do
prato o incomodou. Mas não: é o telegrama debaixo do jornal.

carta veritas publicada bombay chronicle pt toby consultado


pt não repita não contate toby ou a mim em nossos escritórios
pt

É do irmão de Claude, Everett, o governador da presidência de


Bombaim. Toby, o outro irmão mencionado no telegrama, é o
primeiro-secretário do vice-rei.
Nos dias subsequentes, a seção de cartas do The Mail mantém acesa
a questão da morte de Jeb. Claude não é mencionado, mas o vice-rei,
seu primeiro-secretário e o governador da presidência de Bombaim
sim, o que não deve deixá-los nem um pouco satisfeitos.

Duas semanas depois, o vice-rei vai a Madras para uma visita


agendada, viagem que evitaria se pudesse. Quando seu comboio
adentra a Estação Central, ele, parcialmente vestido, se surpreende ao
abrir as cortinas de sua cabine e avistar uma falange de jogadores de
hóquei uniformizados, com fitas negras atadas aos braços em sinal de
luto, esperando em silêncio na plataforma. Atrás deles, quase cem
pessoas seguram cartazes com o nome de Jeb e as palavras liberem o
laudo da autópsia! Silenciosos como fantasmas, todos.
O homem fecha as cortinas, lívido. Temia exatamente isso e
ordenara que seu vagão fosse desacoplado ainda no galpão, antes de
chegar à plataforma. O condutor, por algum motivo misterioso, não
recebeu a mensagem e, por milagre, não se deparou com nenhum sinal
vermelho à noite, graças a todos os chefes de estação anglo-indianos.
Como resultado, o trem chega às seis da manhã, não às oito. A brigada
policial que deve escoltar o vice-rei não está presente e, de qualquer
modo, estaria esperando no lugar errado.
A multidão inclui repórteres e fotógrafos de todos os jornais indianos.
Por fim, o vice-rei, enrubescido, o creme de barbear ainda lhe
lambuzando a ponta de uma orelha, aparece na porta, põe a cabeça
para fora mas não desce do vagão. Recebe respeitosamente a petição da
mãe de Jeb. Depois, limpa a garganta, preparando-se para discursar,
mas quando pronuncia a palavra “au­diência” uma voz berra lá de trás:
“Chaa! Já ouvimos essa, não é, garotos?”. Uma mulher grita:
“vergonha, vergonha, vergonha!”, e a multidão a acom­­pa­nha. Os
flashes das câmeras pipocam, e a autoridade volta para dentro, sofrendo
a humilhação de ver seu vagão atacado por tacos de hóquei. Os jornais
descrevem a cena com detalhes e fotografias límpidas.

Naquela noite, o primeiro-secretário do vice-rei vai à casa de Claude,


surpreendendo Celeste. Dos três, ele é o mais bem-apessoado, ainda
que mais baixo que Claude. Toby ignora o irmão e beija Celeste,
entregando-lhe um embrulho que ela logo abre. Ele diz: “É um porta-
joias antigo de marfim. Escolhi em Jaipur, já sabendo que presentearia
para minha cunhada favorita”.
“Sua única cunhada, Toby. Olha, é mara…”
“Celeste”, Claude interrompe, “peça ao garoto para trazer a bandeja
com as bebidas. Iremos para o escritório…”
“Qual a pressa, Claude?”, diz o irmão, irritado. “E esqueça essa
bandeja.” O sorriso de Claude fica congelado, e ele nada diz. Quando
se reúnem, os irmãos permitem que Claude faça as vezes de irmão
mais velho. Celeste agora se pergunta se essa deferência não seria pena,
uma vez que o ultrapassaram em tantos aspectos.
Toby não larga a mão da cunhada. “Celeste? Mande lembranças a
Janaki, sim?”
Ao que parece, Toby não tem a menor vontade de entrar no
escritório, pois quando Celeste alcança o topo das escadas escuta-o
falando num tom bem diferente do que empregou ao chegar. “… de
todas as asneiras que você poderia fazer, Claude! Realmente acha que o
vice-rei quer ouvir seu lado da história? Não vê que isso só o
constrangeria ainda mais? E a mim?” A resposta de Claude é inaudível.
“Não, você escute agora”, Toby diz. “Não! Muito pelo contrário. Vim
aqui dizer que, por ordem do vice-rei, haverá, sim, uma audiência.
Nossas mãos estão atadas.” Ela não consegue ouvir a resposta que
Claude resmunga, porém Toby o interrompe. “Chega! Nem mais uma
palavra. Para todos os efeitos vim visitar Celeste e jamais discuti o caso
com você. Nem o vice-rei nem nós, seus irmãos, vamos interferir. Não
telefone nem mande telegramas. Tome juízo, Claude. Isso não é uma
formalidade. O vice-rei quer a verdade.” Segue-se um longo silêncio.
Então ela o ouve dizer com mais doçura: “Sinto muito, Claude. Isso te
colocará sob os holofotes. O passado virá à tona. Dê uma boa olhada no
espelho. E, por Deus, fique longe do copo até que tudo isso acabe”.
Toby lança um último olhar da porta e a vê congelada no patamar. A
expressão no rosto dele é dolorosamente triste.

Os jornais noticiam que o vice-rei autorizou uma indenização para a


família Pellingham e nomeou uma comissão liderada pelo antigo
governador, dois representantes da comunidade anglo-indiana, o chefe
do Serviço Médico Indiano e dois renomados professores do
departamento de cirurgia das escolas de medicina de Bombaim e de
Calcutá. A data é marcada para dali a dois meses. A comissão pode
convocar testemunhas; sua conclusão acarretará efeitos irrevogáveis.

Nos dias seguintes, o casal vai tocando a vida separadamente. Se


Celeste se sente à beira de um ataque de nervos, nem imagina como
Claude está. Ele passa horas no clube, embora lá seja assunto de
falatórios. Ficar em casa e encará-la talvez seja pior ainda; no clube,
encontra refúgio em algum canto escuro, sozinho ou com colegas de
copo, anestesiados demais para julgá-lo com severidade.
No fim daquela semana, quando ela retorna à casa ao entardecer,
surpreende-se ao encontrá-lo. Ele logo se levanta e, antes mesmo que
ela retire a boina, ele pede que lhe tragam um chá. Está
completamente embriagado.
“Querida”, Claude diz, “o dia da audiência está chegando.” Ela não
diz nada, as mãos no colo, imóveis. “É uma coisa política, sabe.
Infortúnios acontecem em cirurgias, todos sabem. Acho que vou me
sair bem. Tenho um plano.” Ele sorri, animado. É preciso ter fé, nunca
desistir.
Há novas bolsas sob os olhos dele. Os capilares espalhados por suas
faces e seu nariz estão mais visíveis. Celeste talvez sentisse pena se ele
demonstrasse algum remorso ou não lutasse tanto para esconder o
medo.
“O caso, querida, é que as coisas podem terminar mal. Isto é, se seu
amigo Digby decidir me caluniar.”
“Ele é seu colega, Claude”, ela diz, irritada. “Uma vez, séculos atrás,
levei Digby a Mahabalipuram, e isso depois de te contar que faríamos o
passeio.”
“Bem, quem você acha que assinou Veritas naquela carta? Só pode
ter sido ele.”
Ela arregala os olhos. “Você está louco. Por que ele fingiria ser anglo-
indiano?” É a primeira vez que eles falam da questão. Talvez por isso
ela sinta sua raiva fervilhando.
“Ah, está na cara, querida. Inveja, o que mais? Ele quer meu posto.
Acha que Digby estava lá por acaso, metendo o nariz na sala de
cirurgia, quando isso… quando houve a complicação? Então, ele
interpreta errado o que vê, e a fábrica de rumores começa a divulgar
uma narrativa mentirosa. É contra isso que terei de me defender. Se ele
insistir na versão dele, nosso navio pode naufragar.”
Ele se cala e espera. Celeste parece prestes a rir na cara dele. E aí o
verniz cortês de Claude começa a rachar.
“Pelo amor de Deus, Celeste, como acha que eu poderei bancar
tudo isso? Você viveu confortavelmente todos esses anos, mas o poço
pode ser mais raso do que você imagina…” Celeste vê o rosto de seus
meninos; imagina-os retornando da Inglaterra, porque o pai já não
pode pagar as mensalidades. É um pensamento feliz, ao contrário do
que seu marido pretendia. “Se eu for dispensado do Serviço Médico
Indiano, se eu perder o salário… Droga, Celeste! Será o fim de tudo.”
E, uma vez que meus filhos voltem, eu não teria absolutamente
nenhuma razão para ficar com você, Claude.
“A questão, querida, é que preciso ter certeza de que o jovem Digby
não levantará falso testemunho.”
“O que você quer, Claude?”, ela pergunta, muito baixinho. “Diga de
uma vez, pelo amor de Deus.”
“Nada! Eu… Eu não quero nada de você, meu anjo. Mas devo
dizer… Fa­rei Digby saber que o citarei como interveniente em um
processo de di­vórcio.”
De início, aquelas palavras não fazem sentido. Todavia, logo ela
entende.
“Claude, como você tem coragem de me usar assim? Como moeda
de troca em seu esqueminha sórdido!”
“Mas, escute, não chegaremos a isso, querida! Digby vai mudar de
tom. Só quero que ele se ponha em seu devido lugar. Quem confiaria
na palavra de um homem que se atreveu a ir para a cama com a esposa
do superior?”
“Ir para a cama… comigo?” Ela se surpreende com a própria
compostura. As palavras do marido são tão desprezíveis que gritar com
ele seria uma resposta bastante generosa. Em vez disso, ela fica olhando
para ele por um longo tempo, observando. Sorri, o que, no momento,
fere mais do que um tapa. “Claude, tolerei tanta coisa de você ao longo
dos anos. Agora você quer salvar a pele com uma mentira que faz de
mim uma adúltera? Foi o melhor que te ocorreu? Vamos esquecer
Digby por um momento. Você não se importa nem um pouco de me
caluniar? Não há mesmo nada de honra e decência em você para além
das aparências? São esses os elementos que faltam a você. A seus
irmãos, eles não faltam, e foi isso que fez toda a diferença para eles,
você não percebe?”
Apontar os irmãos como padrão a ser seguido é provocá-lo. Mas ele
não reage, não se abala, continua a olhá-la, suplicando, dando a
medida de seu estado patético.
“Mas te garanto que não chegaremos a esse ponto. É apenas uma
manobra”, ele diz, debilmente. “Que diabo, Celeste, você tem uma
saída melhor? Estou pensando no futuro de nossos filhos. No nosso
futuro…”
Ela o olha com nojo. “Da última vez que me ameaçou com o
divórcio também foi ‘por nossos filhos’. Eu, tola, deixei que você me
dobrasse e enviasse os garotos para longe. Nunca mais farei isso.”
Levanta-se para sair. Ele a agarra pelo pulso. Celeste se solta com um
puxão e volta-se para encará-lo. Claude recua.

No começo da noite de domingo, Muthu, espantado, aparece na


porta do quarto de Digby, que lê, reclinado. O médico havia passado a
tarde pintando e tirou uma longa soneca.
“Saar, visita! A senhorita, Saar”, Muthu diz, retirando-se às pressas.
Que senhorita? Digby, intrigado, lava o rosto e veste uma camisa
limpa. Vê uma bicicleta feminina na varanda.
Na sala de estar, quando reconhece a visita, lamenta não ter trocado
aquelas calças salpicadas de tinta. Sente uma descarga de adrenalina,
todos os sons se amplificam, do tilintar dos pratos na cozinha ao gorjeio
do bulbul lá fora. Ela está de costas para ele. Digby se pergunta o que
terá achado da decoração, dos cavalos de terracota na varanda. Ele viu
versões enormes desses animais enquanto passeava com Esmeralda
pelos vilarejos: oferendas a Aiyanar, que protege os homens da fome e
da pestilência. No chão há um tapete de junco e seda de Pattamadai,
feito à mão. Mas é claro que os olhos dela se fixam numa parede sem
janela nenhuma. Do piso ao teto, toda ela está coberta de pinturas
kalighat em toscas molduras de madeira, nenhuma maior que um
cartão-postal. Uma vila inteira de kalighats a mira também. As mãos de
Celeste estão no peito, congeladas naquele primeiro momento de
surpresa.
Depois de um bom tempo, vira-se para ele.
Digby perde o ar. Ela é ainda mais adorável do que em sua memória.
O brilho alaranjado do pôr do sol ilumina a lateral esquerda de seu
rosto como uma figura num quadro de Vermeer. Ele pensa naquele
adeus no carro, tantos meses atrás, tão definitivo.
Digby é o primeiro a falar, para aliviá-la daquele fardo. “Comprei as
pinturas em Calcutá.” Aproxima-se. “Fui incumbido de acompanhar a
esposa do governador de Bengal, que adoeceu aqui. Dormi apenas uma
noite, mas fui ao templo Kali nas…”
“Nas margens do rio”, ela sussurra. “Cresci ali perto.”
“Os vendedores ofereciam essas pinturas aos peregrinos. Eu mesmo
era um deles.” Queria visitar a casa onde você cresceu, sua escola, a
sepultura de seus pais…
Ela assente com a cabeça, as mãos retorcendo um lenço bordado.
Estar na presença dela, sentir o cheiro de seu attar, é inebriante.
“Fui ao ateliê dos artistas”, ele continua. “O repertório deles vai além
das imagens religiosas. Como aquela ali.” E aponta. “Um célebre crime
envolvendo um soldado britânico e sua amante indiana. Ou essa série
com o tema do teatro da vida. Vê as cortinas típicas dos teatros
ocidentais? Mas é Shiva que dança. Ocidente e Oriente em poucas
pinceladas.”
Chegaram àquele limite além do qual as palavras perdem toda
utilidade. Parado tão perto dela, na própria casa… Não há mais
palavras que Digby possa dizer, senão o nome dela. Soletrava-o no
escuro, lançava-o contra o teto e as paredes. Celeste. Celeste. A última
sílaba demorava-se pelos cantos, como um sussurro encurralado. Agora
quer dizê-lo em voz alta. A voz se move, como se por conta própria,
buscando a dela. Ele não tem como saber que, horas atrás, Claude
agarrou o pulso da mulher, e ela se libertou com um pu­xão. “Celeste”,
ele diz, alongando-lhe o nome. “Celeste, há outras pinturas que você
precisa ver.” É a desculpa que encontra.
De mãos dadas, ela deixa que ele a conduza à sala contígua, seu
“ateliê”, que antes era a sala de jantar. Os quadros, acabados e
inacabados, são do tamanho modesto das kalights, mas o tema é
sempre igual: a mesma mulher. Ela vem à luz com economia de linha
e cor: olhos amendoados; a massa de cabelos castanhos; a linha do
longo pescoço; a sutil assimetria do maxilar, que obriga o lábio superior
a um beicinho e que Digby considera a coisa mais bonita do mundo.
Celeste tinha visto o protótipo daquela figura quando ele a desenhou à
sombra da grande pedra em Mahabalipuram. O artista vê na modelo
uma beleza mais nobre do que ela vê em si própria.
A mão dela se agita na dele, e Digby a conduz ao quarto.
Em uma terra onde papagaios de asas podadas predizem o futuro
com cartas de baralho, onde casamentos são determinados por
horóscopos, o pressentimento de Celeste de onde aquilo terminará —
não apenas nos próximos minutos, mas nos dias e nas semanas por vir
— faz com que tente desvencilhar sua mão, no entanto é tarde demais.
Digby a puxa para si, e com um suspiro ela se deixa cair no corpo dele.
Nenhum dos dois sabe que sempre que buscarem um ao outro,
furtivamente, no calor de um fim de tarde, começarão tal como hoje,
diante da parede com as pinturas do vilarejo, cada figura emoldurada
cantando a mesma nota, uma raga que é só deles. Digby resvala a
língua nos lábios de Celeste, na face, na linha depois da tireoide e da
cricoide, até chegar ao pequeno vazio acima do esterno. Quando a
despe, ele recua e a move igual a uma dançarina, como se a fizesse
posar, girando-a sobre um pedestal imaginário. Ele assimila sua figura
alta e esbelta, os pequenos seios, a ondulação suave abaixo do umbigo,
o clarão dos ossos pélvicos que são asas pairando sobre pernas longas
como as da gazela, o frágil peito do pé e, por fim, os dedos, o vão
curioso entre o dedão e o segundo. Digby absorve tudo, memoriza cada
detalhe…
Celeste só teve um marido e um único amante, este último outro
viajante na terra devastada de um casamento infeliz, e o affair não
ajudou nenhum dos dois a encontrar um rumo. Ela sucumbe à falta de
ironia ou de autoconsciência de Digby, uma inocência e uma pureza
que lhe dão autoridade, como as linhas ousadas que ele desenha. A
paixão dele por ela lhe chamusca a pele, lhe dá vida. Quem não
desejaria ser amada assim?
Naquele momento, já não pode mencionar o propósito da visita. Ela
não veio pedir seu silêncio, o que Claude provavelmente queria, mas
alertá-lo para a acusação falsa e pérfida que logo ouviria: a de que os
dois são amantes.
Se ela não diz, se os dois não param… então a acusação já não será
falsa. Por que Celeste não fala? Por que ele não pergunta nada?
Ela precisa contar. Tem que contar.
21. Prevenido

madras, 1935

Quatro dias depois, Celeste pedala até a casa de Digby. Cruza os


trilhos para Kilpauk, evitando o centro da cidade. Contorna uma vaca e
ultrapassa um trabalhador lutando com um carrinho entulhado de
pedaços de metal. Ela agora vê Madras por novas lentes, já não é a
Celeste de cinco dias atrás.
Um grupo de indianos nada sorridentes a encara. Estão na porta da
hospedaria Satkar, um prédio alto e estreito na Miller Road. Parecem
balconistas ou estudantes, vestem-se com roupas “modernas”: um dhoti
branco com casaco tweed — uma escolha absurda para o clima, mas
não mais absurda que o terno de linho e a gravata dos funcionários do
Serviço Público Indiano. Os chapéus ao estilo de Gandhi, com pontas
arrebitadas, simbolizam o desejo por autonomia. Um deles grita
“Vande Mataram” — “Viva a pátria” —, o slogan que está na boca de
todo o país. O gigante adormecido está acordando.
Vande Mataram para vocês também, ela quer gritar. Nasci aqui.
Também é minha pátria. É mentira? E daí que se sente mais indiana do
que britânica, mesmo que desfrute de todos os privilégios? A vida junto
a Claude é a maior das mentiras. O medo de perder os filhos a
paralisou, impediu-a de se libertar. Tornou-a uma pessoa diferente de
quem realmente é, e ela já não pode tolerar isso. No entanto, a mentira
deplorável e covarde que Claude bolou para salvar a própria pele
acabou virando verdade — ela está tendo um caso com Digby. Por quê?
Por acaso o corpo pode explicar? Pode a mente encontrar justificativas
depois do acontecido? Sente-se grata a Digby por despertar o que
dentro dela andava adormecido, a parte mais verdadeira. Ele fez isso ao
adorá-la em suas pinturas, ao fazê-la sentir-se humana de novo, ao amá-
la. Ce­leste precisa da validação dele — ou, aliás, de qualquer pessoa —
para existir? Se pudesse recomeçar, e se fosse mais jovem, Digby seria o
homem que estaria buscando. Mas a essa altura da vida? Amor?
Ela pedala ainda mais rápido. Está correndo de ou para? Quando
chega, sua blusa está empapada de suor. Minutos depois, afundada no
corpo dele, os dois se movendo como um só, pergunta-se como pode
ter sobrevivido por tan­to tempo em um casamento em que conheceu
uma intimidade como aquela apenas brevemente. O toque de Digby é
uma droga inebriante; seu frescor, sua avidez torna tudo mais potente.
A necessidade cada vez maior que sentem um do outro é uma escultura
de areia que moldam juntos. Ela não reconhece a mulher descarada e
exigente que comanda seu jovem amante, rolando-o para lá e para cá,
até mordendo-o de tanta paixão.
Mas ao fim da cópula a escultura colapsa. O mundo e suas agonias
voltam a perturbá-los. Mais cedo ou mais tarde, Celeste deverá
enfrentar as consequências. Com as pernas trêmulas, ela se levanta e se
veste. Digby perma­nece deitado, observando-a, seus olhos implorando
para que ela nunca parta, para que fique para sempre. Não pronunciam
o nome do marido dela. Mal conversam. Ele não pergunta quando a
verá de novo.
Digby e Celeste logo deixam a prudência de lado. Nos dias em que
ela não pode ir, ele acha que vai enlouquecer. Sua inquietação o leva a
jogar tênis, uma obsessão recente, no Madras Club — refúgio de
Claude. É no vestiário, depois de voltar das quadras, que Digby
encontra uma carta no bolso de sua calça.

Kilgour: Por favor, perdoe esse modo de lhe transmitir certa


informação. Faça disso o que quiser. É notório que seu testemunho
pode condenar Claude Arnold, e quem escreve esta carta não
derramará nenhuma lágrima por ele. Mas você deve saber que Arnold
planeja pedir divórcio e envolvê-lo no processo. É, claro, um absurdo.
No entanto, ao citá-lo, Arnold lançará dúvidas sobre seu testemunho.
Não há razão para crer que a sra. Arnold esteja ciente disso. A mulher
é um anjo. Meu palpite é que ela não tem ideia do que o marido
planeja, o que só prova como ele é canalha. A intenção dele é fazer
você recuar. Do contrário, talvez ele seja baixo a ponto de dar
prosseguimento ao plano. Ele é do tipo que num piscar de olhos pode
produzir evidências falsas. Caso você seja considerado culpado, a corte
pode obrigá-lo a pagar uma indenização substancial. Praemonitus,
praemunitus.

Alguém que achou que você tinha que saber

Homem prevenido a custo é vencido, é verdade. Mas o que fazer


com esse alerta? E por que anônimo? Entre as pessoas que conheceu
no clube, quem redigiu aquilo?
Ele dobra o papel e o guarda no bolso da calça. Está indignado,
furioso, mas não pode negar que o estratagema de Arnold se confirmou
verdadeiro. A caminho de casa, examina a carta de vários ângulos. Por
um breve momento se pergunta se o próprio Claude não a teria escrito.
Não, muito improvável.
Quase chegando, diz, em voz alta, dirigindo-se ao missivista
anônimo: “Pretendo dar meu testemunho. Não tenho escolha. Eu vi o
que vi. E não dou a mínima para meu nome, minha carreira ou o que
as pessoas pensam”. E, se Claude se divorciar de Celeste, ela será minha.
22. Natureza-morta com mangas

madras, 1935

Às quatro e meia, enquanto toma chá no frescor da biblioteca,


Celeste vê o Model T chegar. Claude cambaleia para fora do veículo,
esbarra no Rolls-Royce estacionado e derruba o vaso de jasmim no
caminho até a porta. Tem sido cada vez mais imprudente ao beber, e
começa desde que acorda, ela suspeita.
Quando dá de cara com a esposa, Claude fica surpreso. Tenta se
recompor, mas é inútil, seus olhos vagueiam.
“Como foi seu dia?”, ele pergunta, caprichando na dicção, mas
mesmo assim as palavras se embaralham. Ela não consegue esconder a
repulsa. “Está olhando o quê?”, ele pergunta, bravo, desistindo de toda
polidez fingida e sem esperar que o motorista se retire.
No passado ela podia contar com a civilidade dele, a despeito de
tudo. Não era essa a marca de uma educação inglesa, ao contrário de
sua criação nativa? Ele talvez planeje puni-la com severidade, mas, até
lá, puxará uma cadeira para ela à mesa de jantar.
“Pegue um drinque para mim, Celeste”, ele diz, de pé em frente a
ela.
Pelo menos não disse “querida”. Ela se levanta e se afasta, com nojo
daquela proximidade. Claude acha que ela está indo pegar uma bebida
e diz, magnânimo: “Sirva-se também”.
“Não, é cedo demais”, ela diz. “Claude, se controle. Você não
precisa de outro drinque.”
Foi o mesmo que esbofeteá-lo.
“Celeste!”, ele grita, apontando um dedo que tenta encontrá-la: “É
bom você saber que…” Mas nisso perde o equilíbrio e cai, batendo a
cabeça na me­sa de centro. Ele toca a testa e os dedos ficam com
sangue. “Ah, Deus”, diz, numa voz assustada, e vomita sobre a mesa.
Olha pateticamente para a esposa, um fio de saliva pendendo dos
lábios.
Ela dá uma risada amarga. “Claude, seu único talento real era ser
um bom bebedor. Não sei por que fiquei tanto tempo com você.”
Celeste se retira e sobe na bicicleta. Há outra pessoa com quem precisa
ser honesta.

Anoitece quando ela empurra a porta da casa de Digby, assustando-o.


Ele está no ateliê, sem camisa, limpando os pincéis com aguarrás. Uma
vela lança uma luz fantasmagórica sobre a natureza-morta que ele
organizou sobre a mesa: um excêntrico pote de barro e três mangas. Ao
lado dele, um sári de seda esmeralda, largado com displicência, de tal
modo que parte dele cascateia no ar como uma cachoeira, o excesso
dobrando-se para formar um buquê desconjuntado no chão.
Ela bebe um copo d’água. Quando estuda a face de Digby, percebe
uma mudança. Será que o pegaram? Analisa a sala demoradamente,
como se tentasse memorizá-la, e então se vira para ele.
Digby vê a expressão no rosto dela e logo entende que ela veio se
despedir. Suas entranhas se petrificam. Uma lança foi enfiada bem
abaixo de suas costelas, penetrando-lhe o plexo solar. Ela é parte da
manobra?
Depois de uma longa pausa, ela diz: “Digby”. Seus olhos brilham,
lacrimosos. “Eu…”
“Não! Ainda não. Espere… Não fale.” Ele se aproxima, inspirando
seu perfume, vendo a umidade em sua testa, a marca circular deixada
pelo chapéu. Na faculdade de medicina, assistiu a uma performance de
Harry, o Alienista, em que ele arrancava pessoas da plateia e, apertando
o dedo contra a própria têmpora, revelava detalhes íntimos
impressionantes sobre elas. “Você decidiu ficar com Claude, é isso?”,
pergunta, incapaz de camuflar a amargura em sua voz.
“Não. É bem o oposto.”
Ele abandona o roteiro. Suas feições se iluminam.
“Digby, vim dizer que Claude planeja entrar com um pedido de
divórcio e que vai citar você como…”
“Eu sei.” Agora é ela quem fica surpresa.
“O quê? Como?”
“Recebi uma carta anônima me avisando. No Madras Club. Alguém
com nenhuma simpatia por seu marido. Mas o que eu quero saber,
Celeste, é como Claude sabe.”
A risada dela soa como o estalar de um chicote. “Ele não sabe nada
sobre nós, Digby! É só um estratagema. Como ele não pode te ameaçar
diretamente, vai me sacrificar para pegar você.”
“Espere… Foi por isso que você veio aqui na primeira vez que…? No
dia em que apareceu de surpresa? Veio em nome dele pedir que eu não
testemunhasse?”
“Por Deus, não! Vim te prevenir. Na hora em que Claude me contou
o que pretendia fazer — me transformar numa adúltera para limpar a
barra dele —, fiquei furiosa e saí. Pedalei para fugir e acabei vindo aqui.
Eu queria te prevenir.” Um raio de raiva fere sua voz. “Mas acabei não
dizendo nada, não sei se você se lembra.”
As palavras de Digby saem carregadas de veneno: “Por que não disse
nada? Por acaso concluiu que, já que não tinha como evitar, o melhor
era vestir a carapuça? Ou disse a si mesma: ‘Vou deitar com o pobre
Digs antes que ele seja silenciado’? Talvez você ainda esteja
mancomunada com ele…”. Dig­­by levanta a voz.
“Pare, Digby!” Ela se mostra calma, rigorosa e… ferida pelas palavras
dele. “Se gritar, vou embora. Já tive o suficiente disso por hoje.” Celeste
se mantém altiva, ereta, a base das unhas empalidecendo enquanto ela
aperta a bolsa, como se aquilo lhe garantisse uma passagem segura para
o que quer que estivesse por vir. À luz da vela, ela é como a modelo de
um artista. O artista a olha fixamente.
“Desculpe”, ele pede, penitente e encabulado.
“Claude fará qualquer coisa para se preservar, incluindo me
sacrificar. Qualquer coisa para pintar uma péssima imagem sua. Mas
ele acha que o desenrolar dos acontecimentos não chegará a esse
ponto. Acha que, se te ameaçar, você vai se dobrar — e torço para que
não. Talvez ele pensasse que eu ficaria intimidada e viria aqui te
implorar. Mas não vai funcionar. Não comigo. Eu quero o divórcio…”
Digby ousará mostrar seu júbilo? Por que o rosto dela não reflete o
mesmo entusiasmo?
“Celeste… Então não há nada que nos impeça… Podemos ficar
juntos.”
Ela balança a cabeça.
“Celeste, não entendo… Eu te amo. Nunca disse isso para nenhum
outro ser humano, exceto para minha mãe. Eu te amo.”
“Digby, gostaria de dizer que eu também te amo. Mas não tenho a
menor ideia de quem seja esse ‘eu’. Preciso refletir. Quero uma vida
minha, e ficar sozinha, para me descobrir.” Seus olhos são como os de
uma criança que implora. Ela estende a mão para tocar o rosto dele,
mas Digby recua.
“Para onde você vai?”
Ela suspira. “Venho me preparando para isso, embora não pudesse
saber que minha partida se daria dessa forma. Economizei um pouco
de dinhei­ro ao longo desses vinte anos. Não muito, mas o suficiente.
Tenho joias que Clau­de me deu no começo do casamento. E um
depósito cheio de arte, e sei quais peças valem alguma coisa agora e
quais serão valorizadas no futuro. Vou alugar um quarto na Sociedade
Teosófica. Janaki e eu, sozinhas, podemos viver felizes com muita
simplicidade. Ele só contava com as crianças para me prender, mas elas
já são grandes, espero, para saber o pai que têm, bem como para me
conhecer direito se quiserem — depois que eu própria descobrir quem
sou.”
Digby digere o que acabou de ouvir. Ela não precisa dele — não é
isso que disse? Sente raiva de si mesmo por permitir que seus sonhos
voassem muito além dos dela.
A porta abre e Muthu entra, surpreso por ver Celeste, por ver os dois
de frente um para o outro, como combatentes. Junta as mãos. “Boa
noite, senhorita, não ouvi você chegar.”
“Muthu”, ela cumprimenta, assentindo com a cabeça, sem tirar os
olhos de Digby.
Muthu corre os olhos de Celeste para Digby. “Digby Saar… Estou
indo para minha terra natal. Como referido antes? Longe só dois dias.”
Digby continua encarando Celeste. Muthu olha para ela. “A senhorita
gosta de comer algo antes de eu ir? Faço samosa?”
“Muthu”, a mulher suspira, a voz de repente muito cansada e rouca.
“A senhorita aqui gostaria de um uísque duplo, por favor. E um pra ele
também.”
“Sim, senhorita!” Muthu diz de modo automático, mas não se move.
Ela se volta para o criado, erguendo a sobrancelha.
“Muthu?”
“Desculpe, senhorita. Uísque não está tendo.”
“Gim, então?”
Ele balança a cabeça. “Doutor Saar não beber.”
“Ah, por favor, Digby…”, diz Celeste, com um tom de voz que
assusta os dois.
“Mas uísque já vindo, senhorita!” Muthu exclama apressadamente,
mortificado por colocar Digby em apuros. Ele corre para os fundos.
Os dois ficam ali parados. Ouvem vozes do lado de fora, Muthu fala
num tom beligerante, parece outra pessoa. Então retorna, um pouco
descabelado, trazendo uma bandeja com dois copos, um balde de gelo,
água com gás e uma garrafa de uísque com três quartos do conteúdo,
como se tudo aquilo estivesse esperando logo atrás da porta. Muthu
depõe a bandeja, evitando o olhar embasbacado de Digby.
“Como você é um homem bom, Muthu”, Celeste declara. Suspeita
que Muthu tenha entrado na casa vizinha e se apropriado da bandeja
de bebidas.
“Sim, senhorita”, Muthu diz, enquanto contorna a mulher e abre a
gaveta onde Digby guarda dinheiro, coisa que nunca fez antes. Conta
algumas notas e as mostra para o patrão. “Saar, mais tarde eu explico.
Por favor, deixar bandeja e tudo mais na varanda da frente, Saar. Volto
em dois dias.”
Muthu sai pela porta de entrada e na mesma hora eles escutam um
homem gritando em tâmil, além da voz de uma mulher, e Muthu
tentando acalmá-los. Os gritos aos poucos viram resmungos.

Celeste faz as honras. Entrega um copo a Digby. O tempo todo


tinham ficado de pé.
Ferido, incapaz de encará-la, Digby pega o drinque. Até há poucos
minutos, uma vida sem Celeste era inconcebível. Já ela pode imaginar
viver sem ele, levar uma vida em que ele não existe. Como um sonho
que envolve duas pessoas poderia ser sustentado por apenas uma?
Com atraso, ele encosta seu copo no de Celeste, num brinde. E bebe
tudo de um gole. O uísque queima. Como é estranho tentar afogar a
dor com fogo. A face esquerda e a testa de Celeste estão iluminadas
pela vela, um brilho laranja, como se filtrado por camadas de
musselina, produzindo tons ocres e amarelados que se esgueiram pela
lateral até afundar na escuridão de suas órbitas. Ela parece prestes a
falar. Mas ele não quer ouvir, então subjuga sua boca com seus lábios.
Devagar, desabotoa o vestido dela, bem ao lado do cavalete, como se
quisesse pendurá-la ali. Diante de sua beleza desnuda, o ferrão da
mensagem que ela traz se atenua. Ela não é apenas Celeste, cujas
palavras o magoam; é também um milagre da fisiologia, um corpo
magnífico que abriga uma constelação de órgãos sob a pele.
Comparado às suas emoções confusas e transbordantes, o corpo é
sempre firme e apaziguante.
Ele mergulha o dedo indicador na tinta diluída na paleta: Rose
Madder Genuine. Celeste prende o ar, enquanto o dedo de Digby
paira sobre seu peito. Os olhos dela se arregalam. Ele fará mesmo
aquilo? Ela suspira quando o dedo a toca. Sim, fará. Traçará seus
órgãos, trabalhando lentamente para adiar o inevitável: o abandono.
Digby contorna seu ventrículo esquerdo e alcança o mamilo. Era o
caso de usar amarelo? No coração da traidora? Não, é indelicado
demais. Além disso, apesar da carga metafórica, o coração é um órgão
não muito criativo, duas bombas, uma empurrando sangue para os
pulmões; outra, para o resto do corpo. O dela não é diferente.
Celeste poderia resistir, se quisesse, mas não o faz, enfeitiçada pela
adoração de Digby, ciente da dor que lhe causou e aliviada por
deixarem de la­do as palavras. Bebe um gole do uísque, observando o
amante, que contorna o arco da aorta. Agora toma o copo dela e a deita
com cuidado na lona sobre o pi­so, sorrindo. Pousa a paleta sobre a
pélvis de Celeste, sobre o mons veneris, e a paleta quase cai. A luz da
vela tremula acima da pele da modelo. Digby contorna o fígado, no
alto à direita, cruzando o mamilo no quinto espaço intercostal. Ela
sente um arrepio, e seu mamilo enrijece. Sua respiração acelera. Em
seguida, o baço, os rins.
Digby contempla a obra-prima que é o corpo de Celeste, que acaba
de adornar. Ou de dessacralizar? O que fez foi virá-la do avesso. Mas de
repente se arrepende. Foi longe demais. O que um pouco de uísque
não faz. Não está acostumado a beber.
“Me perdoa”, ele diz. “Dói pensar que não viveremos juntos. Mas
não deixo de te amar por isso.” Sente o sabor de lágrimas nos lábios
dela, lágrimas que também podem ser dele.
Ela ergue a cabeça para conferir o que ele fez, a tela de si mesma.
Balança a cabeça, admirada. E sussurra: “Você me ajudou a descobrir
quem eu sou, sabia?”.
Então por que me deixar? Adorarei seu corpo pelo resto da sua vida,
ele pensa, mas não fala, pois a ama o bastante para não dizê-lo. Ela não
mudará de ideia, e Digby está excitado mas ao mesmo tempo
amargurado pela rejeição. Celeste lê tudo isso no semblante dele e
puxa-o para baixo. Para dentro.
No fim, ambos desabam, encharcados de suor colorido, e o alívio é
como uma droga que os impede de passar da lona no chão duro à
cama. Eles vão perdendo a consciência, os corpos justapostos, uma tela
manchada.

Por que vou deixá-lo? Há uma razão, mas o sono a envolve antes que
ela possa se lembrar. Ela vira de lado. Sentindo frio conforme o suor
evapora, puxa o sári esmeralda da mesa — dane-se a natureza-morta —
e se cobre.

Quando Digby acorda, seu coração bate forte; abrir os olhos exige
grande esforço. O cômodo está claro, envolto por uma névoa etérea
dançante. Pigmentos ardem sobre seu corpo nu, com uma violência
perturbadora.
Ele sente cheiro de fumaça. Vira a cabeça e o mistério se resolve:
eles devem ter derrubado a vela durante o sono. Ele a procura às
apalpadelas, mas então nota, como se à distância, uma ilusão de ótica:
a mão dele está azul, e a pele pende como mel escorrendo. Na
verdade, tudo está azul: o chão, a lona onde eles dormem, o cavalete, a
tela. Ele quer rir da estranha cena. Rir, incrédulo. A parafina derretida
encontrou uma pilha de trapos encharcados de aguarrás, e as chamas
azuis escalam as paredes.
Vira-se e se depara com uma visão ainda mais estranha: o sári de seda
que havia posto como pano de fundo da pintura está no chão, só que
vivo, retorcendo-se. É coral, cor de gengibre e verde-azeitona, e,
debaixo dele, como Digby por fim compreende, está Celeste, lutando
para se libertar. Ele salta para o sári, puxando-o mesmo quando a seda
que derrete no fogo queima sua pele. Se conseguir pelo menos arrancar
o tecido e restaurar a bela peça no lugar junto ao pote de barro, perto
das frutas, suas dobras derramando-se no chão, se puder recompor a
cena tal como era, como deve ser — Natureza-morta com mangas —,
então tudo ficará bem. Tem certeza.
parte três
23. O que Deus sabia antes de nascermos

parambil, 1913

Nos dias que se seguem à morte de JoJo, Grande Ammachi sente-se


deslocada no ciclo da vida, luta para encontrar seu ritmo. O galo canta
toda manhã, quando ela ainda não está pronta para levantar; o
cabeleireiro bate à porta da casa, mas ela não lembra que é o primeiro
dia do mês. Não fosse sua mãe cuidando da cozinha, todos teriam de
ciscar atrás de comida, como as galinhas da propriedade.
Parambil perdeu o único herdeiro homem, o menino que ela ainda
considera seu primeiro filho, mesmo que ele não tenha saído de seu
útero. Mas a perda não é apenas sua. Na primeira vez que vai ao porão,
um jarro vazio de conserva cai da prateleira sobre sua cabeça, do nada.
Ela percebeu com o rabo de olho e retirou a cabeça a tempo; o jarro se
espatifou a seus pés. Ela então fugiu pelas escadas, e encontrou no
marido destemido um olhar amedrontado, espreitando o porão. Então
você sabia que ela estava lá esse tempo todo? Aquela expressão no rosto
dele a enfurece. Como esse espírito que ela tem tratado de maneira tão
hospitaleira ousa intimidar seu marido? Grande Ammachi desce de
novo a escada íngreme e, ignorando os estilhaços que ferem a sola de
seus pés, agarra um jarro com uma força que desconhecia e o atira na
direção do canto escuro do cômodo. “JoJo também era meu, sabia?”,
ela grita. “Eu tive o menino por mais tempo que você! Se você é capaz
de fazer um jarro cair em cima de mim, por que não levantou JoJo tão
logo ele caiu na água?” Ela acredita ouvir um choro baixinho, e sua
raiva passa. Sai de lá. No entanto, a coisa não termina aí. Alguns dias
mais tarde encontra outro jarro revirado, encharcado de xarope, e o
porão tomado de grandes formigas-de-fogo, cujas mordidas são
excruciantes. Grande Ammachi cobre os pés com panos e, acendendo
uma tocha de frondes secas de palmeira, afasta os insetos, quase
ateando fogo ao porão. Depois esfrega o piso, na segunda vez com
querosene. “Faça isso de novo e chamo o achen. É assim que você quer
ser lembrada? Não como uma boa mãe, mas como um espírito que
tivemos de enxotar?” No porão se instala alguma trégua, porém na
cozinha seus curries saem com sabor estranho, apesar do barro
confiável das panelas. O leite que toda noite separa para fazer iogurte
azeda. Ela tolera essas provocações até que, aos poucos, elas cessam.
Mas os batimentos cardíacos de Parambil continuam irregulares. Nem
orações, nem missas, nem lágrimas restauram a cadência.
Nesse mesmo período conturbado, e prematuro demais desde a
perda, o marido surge em silêncio de noite, enquanto sua mãe e o bebê
dormem. Ela o pressente e senta, surpresa. Não está pronta. O cheiro
de JoJo ainda é forte no quarto, sua forma ainda impressa no tapete a
seu lado. O marido também parece incerto: não estende a mão, apenas
preenche o umbral. Ela não se move. A presença dele ali parece um
sacrilégio. Ele se retira. No dia seguinte ele a ignora. Até que ela
entende: Parambil necessita de um herdeiro homem. Ainda assim, ela
precisa de tempo.
Grande Ammachi encontra consolo e sanidade no jardim atrás da
cozinha. Assim que chegou, notou que seu cabrito, quando comia
bagas de certo arbusto desmilinguido, ficava claramente mais atiradiço.
Ela investigou, e o aroma da baga entregou tudo. Depois de uma poda
cuidadosa e fertilizantes, o arbusto agora provê café a Parambil. A
infusão escura tem um brilho oleoso na superfície e uma intensidade
inesperada; é uma lembrança de que a doçura da vida vem do amargor.
Mas as bananeiras são seu verdadeiro prazer. Ela começou com uma
pequena muda de poovan de Dolly Kochamma. Agora tem um bosque
particular de bananeiras, alimentado pelo escoamento do telhado da
cozinha. As folhas bloqueiam o sol da tarde, e o som de seu farfalhar ao
vento a conforta. Colhe os cachos quando ainda estão verdes, deixando-
os amadurecer na fresca da copa. A poovan em miniatura deleita sua
filha; o pai da menina come dez de uma só vez. A jovem esposa se
maravilha ao ver como a terra provê recompensas tão deliciosas com
nada mais que água, sol e amor. Para cada árvore, sempre chega o dia
em que é preciso cortá-la, e seu cadáver é oferecido a vacas e cabras. A
jovem esposa decepa todos os rebentos aglomerados ao redor do toco,
exceto o sortudo que reencenará o milagre mais uma vez, levando
dentro de si a memória dos ancestrais.

Ela ainda não batizou Bebê Mol. Em suas conversas com Deus,
evita o tópico, mas pressente a desaprovação divina. Certa noite aborda
o tema. “Como o Senhor pode esperar que eu passe pela sepultura de
um filho e depois entre na igreja para batizar outro?” Além disso, tem
suas dúvidas sobre um ritual que supostamente confere a graça divina,
que ela entende como amor inerente, benevolência e perdão. “Graça
nenhuma salvou JoJo.” Deus não diz nada.
Certa noite ela acorda e vê o marido de novo ao pé de sua esteira,
silencioso, evitando acordar sua mãe ou a neném. Há quanto tempo
está ali? Ele estende a mão, e dessa vez ela se levanta, sentindo aquela
acuidade familiar dos sentidos quando ele a puxa delicadamente para
erguê-la. Só agora percebe como sentiu falta daquela proximidade. O
serviço dos dois é terno e urgente.

Catorze meses se passam, e muitas visitas ao quarto do marido, até


que sua menstruação não vem. Mas ela perde o bebê. Fica aturdida.
Essa possibilidade nunca lhe ocorrera. Imaginava que outra criança
fosse vir, ainda que demorasse, mas não isso. Para ela é como se seu
corpo a tivesse traído. Seu marido fica arrasado, porém não comenta.
“Não dê nada como certo”, Deus a recorda, “a não ser que queira sentir
a dor de sua perda.” O que fazer, senão seguir em frente? Ela perde
outro bebê. Quando se recupera, procura imputar culpas: será obra do
espírito no porão? Seria ele tão mesquinho? Ela desce ao cômodo e
senta sobre um baú vazio, farejando o ar, auscultando. Para sua
surpresa, sente o fantasma se lamentar também. Retira-se apaziguada.
Só Deus sabe por que acontecem os abortos naturais. Só Deus sabe —
mas prefere não explicar.

Quando Bebê Mol faz cinco anos, eles quase a perdem para uma
coqueluche que se segue à catapora. Tão logo ela se recupera, Grande
Ammachi organiza o batizado, temendo pela alma da filha. Convida
Dolly Kochamma para ser a madrinha. Dolly assente com a cabeça, seu
rosto iluminando-se de alegria pela honra, mas nada diz. No jantar, ao
contar ao marido, Grande Ammachi diz: “Você e Dolly são parecidos.
Regrados nas palavras, jamais tagarelam ou falam mal dos outros”. Ele
responde com um grunhido, e ela diz: “Já a concunhada de Dolly,
claro, vai resmungar por não ter sido escolhida”. Nos anos desde a
chegada não anunciada de sua família a Parambil, a pudicícia de
Decência Kochamma mais do que justificou seu apelido; a gula,
contudo, não é um pecado que essa mulher reconheça, pois agora já
dobrou de tamanho, o rosto se fundindo ao pescoço, o corpo, um barril
informe. O gran­­de crucifixo que antes apontava acusadoramente a
todos seus interlocutores hoje se ergue no peito expandido, voltando-se
para os céus. Dolly Kochamma, apesar das provações com a
concunhada, com quem compartilha a casa, preserva uma figura jovial,
a face ainda livre de rugas de preocupação, a postura amigável intacta,
e tudo isso deve parecer uma espécie de violação aos olhos de
Decência Kochamma. Grande Ammachi acrescenta: “Tenho certeza de
que Decência Kochamma pensa que ela é a mais santa das duas”. O
marido murmura uma coisa que ela só entende quando ele já deixou a
mesa: “Só se você medir santidade em toneladas”. Ele fez uma piada!

No batismo, Bebê Mol se delicia com a água que vertem sobre sua
cabeça, coisa que JoJo jamais toleraria. Grande Ammachi ouve o achen
entoar o nome batismal que ela escolheu, e Dolly Kochamma o repete
com diligência. Mas aquele nome soa dissonante ao ouvido de Grande
Ammachi, e em sua língua parece duro como arroz cru.
Quando voltam da igreja, o marido está à espera delas. Lança a filha
ao ar, e a menina solta um grito rouco de alegria. “Então, como você se
chama?”, pergunta.
“Bebê Mol!”, diz a pequena. Ele olha confuso para a esposa.
“É verdade. Deixei o outro nome no registro de batismo e lá ele
ficará.”
Passados cinco anos, ela vive com a dor da morte de JoJo como
alguém que vive com uma visão pardacenta devido à catarata, ou com
a dor de um quadril com artrite. Mas a recém-batizada Bebê Mol é a
salvação deles; mesmo o pai da menina, que há muito renunciou a
Deus, deve ver o divino em seu pronto sorriso, sua natureza generosa. É
a preferida de todos. Quando bebê, ficava igualmente alegre enquanto
a ninavam no colo ou na pequena rede. Crescida, contenta-se em
sentar por horas a fio no banco da varanda de que tomou posse faz
tempo. Dali ela revela a estranha habilidade de anunciar a chegada de
visitantes antes de eles se mostrarem. “Lá vem Shamuel”, ela diz, e eles
não veem ninguém, mas três minutos depois Shamuel aparece. A mãe
se admira de que a menina raramente chore. Ela só chorou naquele dia
terrível quando gritou até ficar azul, o dia em que Grande Ammachi
desejou que… É melhor nem lembrar o que desejou. Ela entende que
uma perda violenta gera mais violência.
Na monção daquele ano, todos têm febre. As brasas no forno
permanecem apagadas durante um dia inteiro, não há quem cuide
delas. Sua mãe é a última a se recuperar: está sempre cansada, dorme
cedo e só levanta com o sol já bem alto. Erguer-se da esteira exige um
grande esforço, e seu cabelo está descuidado, pois os braços se cansam
ao penteá-lo. Quando ela enfim aparece na cozinha, está apática, fraca
demais para ajudar. O mais alarmante é que até sua tagarelice está
desaparecendo. Chamam o vaidyan, que lhe toma o pulso e examina
sua língua, prescrevendo os tônicos e óleos de massagem de sempre,
mas eles não ajudam em nada. Ela piora. A filha, atarantada, cuida da
mãe e da casa ao mesmo tempo.
As bênçãos chegam das mais variadas formas e tamanhos, porém a
que surge perto da época do festival de Onam é a do tipo trôpega. Bebê
Mol anuncia sua chegada — “uma velha se aproxima”; minutos depois
surge Odat Kochamma, de pernas tortas, bamboleante, como se tivesse
ouvido uma con­vocação silenciosa, solicitando ajuda. Mesmo quando
essa mulher de nariz adunco e cabelo grisalho fica de pés juntos, Bebê
Mol ainda é capaz de passar por entre suas pernas. É uma prima
distante do “Grande Appachen”, como Bebê Mol chama o pai (um
nome que, aos poucos, todos passam a usar quando se referem a ele).
Mais tarde, Grande Ammachi descobre que Odat Kochamma zanza
entre os lares de seus inúmeros filhos, permanecendo em cada um
deles por alguns meses. Mas é em Parambil que ela ficará.
“Onde você guarda as cebolas?”, pergunta Odat Kochamma ao entrar
na cozinha, falando pelo canto da boca para que o tabaco que masca
não escape. “E me dê a faca. Sempre rezei para que as cebolas se
cortassem sozinhas e pulassem na panela, mas quer saber?” — cerra os
olhos, mirando mãe e filha com um olhar da mais absoluta seriedade
— “Até hoje isso nunca me aconteceu.” Sua expressão grave se
desarma, o rosto se parte numa miríade de rugas, e ao sorriso cativante
segue-se uma risada tão inesperada que todas as nuvens negras são
banidas da cozinha. Bebê Mol se encanta e bate palma, rindo.
“Mas meu bom Deus”, diz Odat Kochamma, reparando que o arroz
cozinhou e agora transborda; ergue as mãos para os céus, ou tenta fazê-
lo, pois suas costas recurvadas só permitem que as mãos subam à altura
do rosto. “Ninguém está de olho na panela?” A bronca é compensada
por uma piscadela e o tom de voz. “Quem comanda esta cozinha… o
gato?” Puxa o thorthu do ombro e com ele tira a panela do fogo, depois
enfia a cabeça pela porta dos fundos e cospe um jato de sumo de
tabaco. Vira-se a tempo de ver o gato se esgueirando para perto do peixe
frito. Surpreendido, o animal congela. O lábio superior de Odat
Kochamma se projeta, e dentes de madeira esculpidos de modo rústico
emergem como presas sujas de lama — é sua dentadura. Aquilo é
demais para o gato, que põe o rabo entre as pernas e foge. A dentadura
recua, e a risada da velha ressoa. “Por sinal”, diz, sussurrando
teatralmente e olhando ao redor para garantir que nenhum estranho
ouça, “estes dentes não são meus. Aquele appooppan os esqueceu
numa janela agorinha.”
“Que velho?”, pergunta Grande Ammachi.
“Rá! O pai de minha pobre nora! Quem mais? Estava dando o fora
daquela casa, pois ela me chamou de cabra velha, quando vi os dentes
e pensei, Aah, se sou uma cabra velha, então preciso disso tanto quanto
ele, não? Se ele deixou aqui, é porque não precisa, illay?” Ela faz cara
de inocente, mas seus olhos estão cheios de malícia. Grande Ammachi
tem um ataque de riso. Todas as suas preocupações desaparecem por
um momento.
Odat Kochamma é o tônico de que Parambil necessita. Ela não
descansa. Em uma semana, Grande Ammachi já se acostumou a ser
criticada, a ouvir que precisa se sentar e descansar, ou a gargalhar a
ponto de quase fazer xixi. A única coisa de que não gosta é que Odat
Kochamma sempre veste o mesmo mundu salpicado de cúrcuma depois
do banho, embora ela negue com veemência. “Mas eu troquei de
roupa ontem mesmo!” No meio da noite, Grande Ammachi finalmente
compreende e fica furiosa consigo própria: Odat Kochamma só tem
uma muda de roupa. No dia seguinte ela lhe dá dois conjuntos novos
em folha, dizendo: “Não nos encontramos no último Onam, então
esses aqui ficaram esperando por você”.
Odat Kochamma finge indignação e franze o cenho, sentindo a
textura do tecido branco como nunca mais será. Mas seus olhos a
traem. “Oho! O que é isso? Você está planejando me casar com
alguém, a essa altura? Aah, aah. Se eu soubesse, não teria vindo. Pode
mandar meu pretendente embora! Não quero vê-lo. Há algo errado
com ele, e você está escondendo de mim. Ele é cego? Tem surtos? Já
cansei dos homens. Essa panela tem mais inteligência do que qualquer
homem!” Enquanto diz essas coisas, não para de empurrar as roupas de
volta para Grande Ammachi, porém nunca chega a soltá-las.

Bebê Mol corre para o pai sempre que o vê. Ele é mais paciente com
ela do que era com JoJo, que vivia admirado com o tamanho e o
silêncio do pai. Bebê Mol não é assim. Mostra a seu Grande Appachen
seus laços e bonecas. Numa tarde chuvosa, quando ele se vê
aprisionado pelo aguaceiro, ela interrompe o caminhar ansioso do pai
na varanda e o puxa para o que veio a se tornar o banco dela. “Sente
aqui!” Ele se agacha, obediente. “Por que a chuva cai para o chão e não
para o céu? Por que…” Ele escuta, estonteado, o dilúvio de perguntas.
Bebê Mol não espera pelas respostas. Sobe no banco para coroar o pai
com um chapéu que, auxiliada por Odat Kochamma, ela mesma teceu
com frondes verdes de coqueiro. Satisfeita com o adorno, a menina
bate palmas. Depois envolve o pescoço do pai com seus bracinhos
roliços e pressiona as bochechas contra as dele. “Agora você pode ir”,
ela diz. “Você não vai se molhar com esse chapéu.” Ele balança a
cabeça, agradecido. Grande Ammachi morde os lábios para não rir ao
ver o marido gigante, bronzeado por décadas de sol, coroado por um
chapéu comicamente pequeno e torto. Quando ele sai das vistas da
filha, ela o vê retirar o chapéu e examiná-lo.
“Nunca imaginei que fosse viver para ver isso”, diz Grande Ammachi
para Odat Kochamma.
“Aah. Por que não? Uma filha tem passe livre para o coração do pai.”
Um pouco do crédito é meu também, ela pensa. Ajudei Bebê Mol a
amolecê-lo um pouco. Ajudei-o a se livrar do fardo de seus segredos.

O chemachen que certa manhã aparece solicitando uma


contribuição não passa de um menino, o buço tão esparso que cada fio
poderia receber o nome de um apóstolo. Sua voz engrossou faz pouco
tempo. Com uma batina branca que sobra em seu corpo, e um chapéu
preto que lhe engole a testa, o religioso parece vestido para fazer o
papel de padre numa peça escolar. Sem dúvida a família o “consagrou”
à igreja na época em que ainda usava calça curta, para ser educado (e
alimentado) pelo seminário, uma dádiva quando o arroz é escasso. Os
garotos terminam ordenados, mas Grande Ammachi tem dúvidas
quanto à vocação deles.
O rapaz passa alguns minutos observando Damo, admirado, até que
Unni espanta o elefante. Agora não lembra o que foi fazer ali, pois está
ocupado demais olhando fixamente para Bebê Mol. Por fim, Grande
Ammachi pergunta sobre o livro contábil. Seus olhos infantis voltam-se
para ela, sem compreender nada.
“Essa coisa aí debaixo de sua axila suada”, ela diz, apontando.
Ele entrega o livro. “O que há de errado com a pequenininha?”,
pergunta, solícito.
Grande Ammachi ergue a cabeça, seguindo o olhar dele até Bebê
Mol, que está sentada no banco, como fica todos os dias por horas a fio,
as pernas marcando as horas.
“Como assim, o que há de errado? Não há nada de errado com ela!”
Vários segundos se passam até ele se dar conta de que disse uma
besteira. O jovem chemachen recua alguns passos, mas então se lembra
do livro e tenta recolhê-lo com cautela, temendo que ela lhe acerte um
safanão antes que ele possa escapar.
Furiosa, Grande Ammachi estuda a filha sorridente. O que aquele
menino idiota viu? É a língua da filha? A família está acostumada com
seu hábito de pousar a língua sobre o lábio inferior, como se não
houvesse espaço na boca. Seu rosto é largo, ou talvez sua testa
proeminente assim faça parecer. O tênue diamante que os bebês têm
na parte dianteira da cabeça permanece visível sob a pele de Bebê Mol,
embora ela já tenha quase seis anos. Suas feições são grosseiras, é
verdade. Diferentemente dos pais, ela tem um nariz arrebitado, que se
assenta sobre o rosto como uma baga sobre um pires.
Grande Ammachi sente o muttam afundando sob seus pés e se
escora na pilastra da varanda. Bebê Mol já tinha três anos quando
andou sem apoio, e quatro quando aprendeu a juntar palavras. A mãe
sentia-se aliviada por ter uma criança que não tinha vontade de se
balançar em cipós, então não deu muita atenção a nada daquilo.
Ela vai até Odat Kochamma. “Seja sincera: o que você acha?” A
velha estuda Bebê Mol por um momento. “Talvez alguma coisa não
esteja certa. A voz dela é bem rouca. E a pele é diferente, inchada.” É
doloroso ouvir aquilo, mas Grande Ammachi sabe que ela está certa.
“Mas que importa?”, Odat Kochamma acrescenta. “Ela é um anjo!”
Convocado, o vaidyan saca uma garrafa de tônico depois de
examinar a paciente. “Dê-lhe isso”, ele diz, em seu tom sacerdotal, “três
vezes por dia, com água morna.”
“Espere! O que você acha que ela tem?”, Grande Ammachi
pergunta, ignorando a garrafa que lhe foi ofertada.
“Aah, aah, isso deve funcionar”, o homem responde, sem olhar para
nenhuma das duas, ainda oferecendo a garrafa.
“É o mesmo tônico que você receitou quando ela estava com coque‐­
luche.”
“E qual é o problema? A tosse passou, não?”
Grande Ammachi o dispensa e corre para falar com o marido, que se
põe muito quieto. Depois de um bom tempo, ele aquiesce com a
cabeça.

Naquela noite, o patriarca de Parambil convoca Ranjan e lhe pede


que escolte Grande Ammachi e Bebê Mol a Cochim; dos gêmeos, ele
é o viajante mais bem preparado e conhece a cidade. Dolly conta que
Decência Kochamma teve um pequeno surto por causa da óbvia
felicidade que o marido demonstrou com uma tarefa em que ela não
poderá monitorá-lo. A mulher o obriga a se ajoelhar, reza com as mãos
sobre a cabeça dele, unge-o com água benta e ameaça esfolá-lo vivo
caso ele apronte.
Grande Ammachi pede a companhia da mãe, na esperança de que a
excursão a retire da letargia. Partem antes do amanhecer, vestidas em
suas melhores roupas, munidas de guarda-chuvas e lanches. A alegria
de Bebê Mol as mantém animadas. Um barqueiro as leva ao rio, depois
costura por canais e afluentes até alcançar o lago Vembanad, cuja
margem Grande Ammachi viu pela última vez quando era uma noiva
de doze anos, no segundo dia mais triste de sua vida. Um barco maior
as conduz à outra margem.
Anoitece quando chegam a Cochim e adentram a cidade em busca
de uma pousada. Sua mãe vai dormir direto, mas, por insistência de
Ranjan, Grande Ammachi e Bebê Mol vão ver o mar pela primeira vez.
A água se cho­ca contra a praia, produzindo um som semelhante ao que
César pro­duz quan­do bebe de seu balde, porém com uma intensidade
cem mil vezes maior. O mar faz o lago Vembanad parecer uma poça
d’água. Ali perto, está ancorado um navio tão grande que Grande
Ammachi não entende como ele pode flutuar. As ruas estão abarrotadas
de gente, e dentro das grandes lojas ainda há claridade graças à luz
elétrica. Em suas orações naquela noite, ela diz: “Senhor, perdoa-me,
mas às vezes penso que você é o Deus só de Parambil. Esqueço como é
vasto o mundo que criou e do qual cuida”. Depois da morte de JoJo, ela
estudou o Livro de Jó, buscando sentido numa perda absurda, em vão.
Agora lembra como Jó, apesar do sofrimento, celebrava Deus, que “faz
prodígios insondáveis e maravilhas sem conta”.
Na manhã seguinte, guiadas por um Ranjan de olhos cansados e
ressaca, visitam o grande mercado de especiarias, rezam na basílica
portuguesa, entram e saem das lojas, passeiam por palácios e gastam
muitas horas na beira do mar, observando os pescadores operando na
praia suas estranhas redes chinesas, as cheena vala. Quando retornam à
pousada ao fim da tarde, viram tantos homens brancos — sa’ippus — e
até mulheres brancas que Bebê Mol já não quer tocá-los para ver se a
tinta sai. Arrumam-se e depois seguem para a clínica em Mattancherry;
Grande Ammachi diz a Ranjan que elas podem voltar sozinhas, e ele se
manda feliz da vida. Grande Ammachi, sua mãe e Bebê Mol juntam-se
à fila do lado de fora do consultório daquele que, dizem, é o médico
mais astuto de Travancore e Cochim. Grande Ammachi tenta
pronunciar o nome do doutor impresso na placa, mas as sílabas dão um
nó em sua língua.

O dr. Rune Orqvist apareceu na fortaleza de Cochim em 1910,


lançado à praia como Ask e Embla, os dois primeiros humanos da
mitologia nórdica. Rune logo encontrou suas pernas, e elas o levaram
atrás de comida, abrigo, bebida, mulheres e festanças. Com peitoral
largo e voz de barítono, a primeira impressão daquele estrangeiro
recém-chegado, de cabelo louro e barba crescida, era de que se tratava
de um oráculo, o tipo de homem que, vestido em um manto
apostólico, de cajado na mão, poderia muito bem ter descido de um
dhow na companhia daquele outro apóstolo, são Tomé. Sua chegada é
quase tão cercada de mitos quanto a do discípulo. O que se sabe é que
o sul da Índia foi a última parada de uma viagem que começou em
Estocolmo. De acordo com o bom médico, certa noite, ébrio de akvavit
e “cantando para mim mesmo na rua Stora Nygatan, fui abduzido.
Quando despertei, eu era o médico de um navio rumo à Cidade do
Cabo!”. Essa ocupação o levou aos maiores portos do Oriente e da
África. Mas, lá por seus trinta e poucos anos, desembarcou em
Cochim. A beleza do conjunto de ilhas que formavam a cidade na
confluência de uma miríade de canais, a hospitalidade do povo, os
templos, as igrejas, basílicas e sinagogas, e as casas e ruas coloniais de
pedra holandesa levaram o sueco a ancorar ali de vez. Logo depois de
se estabelecer, começou com um tutor o estudo do idioma malaiala e
dos Vedas, e com outro o do Ramayana e do Bhagavad Gita. Seu
apetite por conhecimento se igualava ao gosto por vinho de palma e
pela companhia das mulheres, um coquetel de desejos que arruinaria a
maioria dos médicos.
Para a maior parte dos ocidentais, o “rhha” arrastado do malaiala
despela a mucosa do palato duro e adormece a língua, mas não para
Rune. Na porta da clínica ele brinca com crianças que riem da
cadência escandinava de seu sotaque e chega a regurgitar algumas
frases em judaico-malaiala para os judeus paradesis (judeus
“estrangeiros”). (Depois de libertar a esposa do rabino de um imenso
cisto no ovário, os paradesis — vindos da península Ibérica na grande
diáspora sefardita — só se consultavam com ele.) As velhas cristãs de
são Tomé frequentam o consultório com a mesma devoção com que
frequentam a igreja, apresentando-lhe dores e mágoas que costumam
mascarar sofrimentos matrimoniais crônicos — nesse caso o médico
oferece placebos e homilias solidárias, tais como “Mullu elayil
vinallum, ela mullel vinallum, elakka nashttam”. Caia o espinho sobre
a flor, ou a flor sobre o espinho, é sempre a flor que sofre. “Aah, aah,
você está certíssimo, doutor. Meu marido é um espinho só, o que
fazer?”
A sorte do médico mudou em 1912, com a sra. Eleanor Shaw,
mulher de meia-idade com diverticulite, refluxo ácido e cólica biliar —
uma constelação de distúrbios independentes que ele chama de “a
tríade de Orqvist”, pois parecem ocorrer apenas em mulheres como ela:
brancas, na pré-menopausa e acima do peso. Rune removeu a vesícula
biliar, tratou o refluxo e regularizou o intestino da paciente, que no
entanto não sentiu nenhum alívio. Em um momento de inspiração
divina, Rune fez a ela uma pergunta delicada que nunca tivera chance
de fazer aos pobres, cuja vida sexual nunca apresentava problema,
apesar de doenças e privações: “Sra. Shaw, por acaso o leito conjugal
parece-lhe menos atraente depois de todos esses anos? Talvez até
doloroso?”. Sua entonação cantante sueca dificultava qualquer reação
indignada da parte dela. “Eleanor — se me permite —, os órgãos
sexuais são vitais e se pronunciam quando enferrujados.” Rune intuiu
que a falta de lubrificação, não de libido, era a questão. Ele ministrou-
lhe um litro de um unguento oleo­so, e prescreveu quinhentos mililitros
de vinho de palma fresco, que deveria fermentar por dezoito horas para
se tornar potente a ponto de arrancar lá­grimas, tomando o cuidado de
esclarecer muito bem para que orifício cada medicação se destinava. O
marido de Eleanor, o sr. Benedict Shaw, era conselheiro do marajá de
Cochim e chefe de uma grande companhia comercial inglesa. A
intervenção de Rune junto à esposa foi tão bem-sucedida que Benedict
Shaw, agradecido, mandou reformar uma velha mansão holandesa e
transformá-la numa casa de saúde que ficaria a cargo de Rune,
equipada com sala de cirurgia, dez leitos e uma clínica na parte da
frente. O caso da sra. Shaw era a prova de que um tratamento
benfazejo tem efeitos salutares na família, e que um único paciente é
capaz de mudar o destino de um médico.

Num entardecer de 1913, Grande Ammachi, sua mãe e Bebê Mol


chegam à clínica; o banco de espera já está inteiramente tomado, e elas
precisam aguardar de pé. Rune Orqvist surge, sorrindo e apertando
debaixo do braço uma pilha grande de livros recém-comprados. Os
honorários de Rune para os pobres são simbólicos; para os ricos,
dolorosos. Um casal paradesi — ele de terno branco com uma quipá
bordada na cabeça, ela com uma camisa de botões e gola longa —
senta-se, os dois apreensivos, ao lado de dois “judeus negros”
descamisados. (Esta última comunidade estabeleceu-se em Cochim à
época de Salomão, e, enquanto grupo, ressente-se dos recém-chegados
paradesis, que se comportam como se superiores aos irmãos de pele
mais escura.) Também no banco estão um estivador massageando um
inchaço parótido, um policial irrequieto, um inglês dispéptico e uma
dama brâmane com correntes de ouro robustas o bastante para atracar
um barco.
Quando são finalmente atendidas, o dr. Rune Orqvist as recebe com
um sorriso que desarma Grande Ammachi. O doutor sa’ippu tem um
estetoscópio ao redor do pescoço. Um peso de papel de pedra polida
fixa à mesa uma pilha de papéis. Seus olhos pousam sobre Bebê Mol
com uma expressão de reconhecimento. Quando ele estende sua mão
enorme, a menina, que nunca deu um aperto de mão na vida, entrega-
lhe a sua alegremente. “E quem é essa linda jovem?”, pergunta o
médico, em um malaiala perfeito, mas com sotaque.
“Eu sou Bebê Mol!”
“Tenho um docinho vermelho e um verde. Qual você quer?”
“Quero os dois!”, Bebê Mol responde. “Um para Kunju Mol
também”, explica, exibindo sua boneca.
A risada do médico preenche o consultório. Ele entrega as
guloseimas.
Volta-se então para Grande Ammachi, que ainda está chocada por
ouvi-lo conversar em malaiala. Ela começa a falar, pisando em ovos ao
tratar da Condição, do afogamento de JoJo, da genealogia — tem
certeza de que tudo aquilo é relevante —, até chegar à Bebê Mol. O
médico escuta com atenção.
Quando ela termina, Rune diz: “Tudo é muito incomum. Não sei
como explicar os afogamentos na família. Mas”, ele se inclina, tocando
a bochecha de Bebê Mol, “não acho que essa seja a questão com essa
linda moça…”.
“Graças a Deus! Meu marido também acha que não.”
“Mas sei o que se passa com Bebê Mol.”
“Sabe?” Grande Ammachi se emociona.
“Sim. Eu logo soube.”
“Como assim? Você já viu minha filha antes?”
“Pode-se dizer que sim.” Ele examina as mãos de Bebê Mol.
“Suponho que ela tenha um inchaço, uma hérnia debaixo do umbigo,
certo?” O médico ergue a camisa de Bebê Mol, e é tal como ele diz: há
um caroço ao qual Grande Ammachi não dava importância, já que
nunca incomodou a garotinha. Bebê Mol dá uma risadinha. Rune pede
que ela caminhe um pouco e mostre a língua.
Ele descansa os enormes antebraços sobre a mesa e se inclina. “O
que Bebê Mol tem é uma condição conhecida. É chamada de
‘cretinismo’ — mas o nome não importa.” De todo modo, não significa
nada para Grande Ammachi. “Há uma glândula aqui no pescoço. A
tireoide. Já viu ela inchar e virar bócio em algumas pessoas?” Sim, ela
já viu. “Essa glândula produz uma substância vital para que o corpo
cresça e o cérebro se desenvolva. Por vezes, ao nascer, a glândula não
funciona. Então as crianças se desenvolvem como Bebê Mol. A questão
da língua. O rosto largo. A voz rouca. A pele grossa. Ela é esperta, mas
demora a aprender o que as crianças de sua idade sabem.” Ele listou
todas as características da menina que Grande Ammachi se recusara a
ver.
“Consegue dizer tudo isso só de olhar pra ela?”, pergunta a mãe,
ainda duvidosa.
Ele vai até sua prateleira de livros e, sem hesitar, puxa um volume.
Passeia pelas páginas tal como o pai dela era capaz de fazer com a
Bíblia, íntimo de cada capítulo e versículo. Rune vira o grande livro
para mostrar uma fotografia. É verdade: Bebê Mol se parece mais com
aquela criança do que com seus parentes de sangue. A menina põe o
dedo gordo na página e ri, identificando-se.
“Há algum remédio para isso?”
Ele suspira e balança sua cabeçorra. “Sim e não. Há um extrato de
tireoide, mas não está disponível na Índia. E, mesmo se estivesse, teria
de ser administrado desde o nascimento. A essa altura, nenhuma
quantidade desse extrato pode mudar o quadro atual.”
Grande Ammachi olha para esse homem cuja barba e cabelo são
ouro fiado e cujos olhos são da cor do oceano. Muitos malaialas têm
olhos claros, influência de antigos visitantes árabes e persas, mas muito
diferentes dos desse médico. Além da cor, é a doçura neles que é tão
admirável, o que só torna as palavras de Rune ainda mais dolorosas. A
porta rumo ao futuro de sua filha foi escancarada. A visão é cruel. Ela
quer argumentar, e o médico lê sua mente. “Ela será sempre uma
criança. É o que posso dizer. Nunca crescerá, sinto muito.” Ele sorri
para Bebê Mol. “Mas que criança feliz! Uma filha de Deus. Uma
criança abençoada. Queria ter outra notícia para dar. Queria mesmo”,
ele diz, o rosto grave, os olhos doces agora cheios de tristeza.
A avó da menina observa tudo, os olhos lacrimejantes, a mão no
ombro da filha. Bebê Mol se mostra feliz como sempre, alheia à
conversa, tão absorta com o médico e sua barba, além dos instrumentos
à mesa.
“Deus o abençoe”, declara Grande Ammachi, a voz engasgada. Por
força do hábito, acabou de agradecer ao homem que lhe deu essa
notícia terrível.
“Por favor, entenda. Isso aconteceu antes do nascimento de Bebê
Mol. Ela nasceu assim. Nada que você ou qualquer outra pessoa tenha
feito provocou isso. Entende? Não é culpa sua. Deus, em Jeremias, não
diz ‘Antes de formar você no ventre de sua mãe, eu o conheci; antes
que você fosse dado à luz, eu o consagrei’?”
“Diz!”, ela concorda, surpresa ao ouvir um versículo da Bíblia pela
boca daquele homem mundano.
Ele abre as mãos, como quem fala: O trabalho de Deus é um mistério
para nós.
Ela não consegue evitar as lágrimas. Rune põe sua mão sobre a dela,
e ela a agarra, curvando a cabeça. Nada pode me absolver, é o que quer
dizer. Depois de um tempo, ergue o rosto. “E quanto à Condição, os
afogamentos que mencionei? Se eu tiver mais filhos, eles padecerão
dela? Serão como Bebê Mol?”
Rune responde: “Os afogamentos… Eu não sei. É claramente algo
que passa de geração em geração. Só não consigo pensar numa
resposta. Mas o que aconteceu com Bebê Mol não acontecerá com a
próxima criança, isso eu prometo”.

Elas já estão de saída, quando o médico diz: “Um momento,


Kochamma”.
Não é Bebê Mol, mas a avó da criança que chama sua atenção. Ela
estava ali com eles, abstraída, porém não indiferente. “Posso?” Ele toca
seu pescoço e o avalia, pensativo. Ao retirar a mão, Grande Ammachi
vê o nó que ele detectou em sua mãe. Não há limites para as más
notícias naquela sala? Rune declara: “Os olhos dela estão um pouco
amarelos”.
“Ela anda fraca há meses”, diz Grande Ammachi. “Tem dificuldade
em levantar os braços, e, depois que senta, mal consegue ficar de pé.”
Ele guia a mulher à maca de exames e avalia seu abdome. Grande
Amma­chi nota que parece inchado, apesar da perda de peso. Sua mãe
se mostra confusa, mas não protesta. O médico está visivelmente
constrangido. “Kochamma”, diz, dirigindo-se à examinada. “Tenho um
remédio para você. Pode levar Bebê Mol para olhar o jardim enquanto
preparo a solução? Entrego para sua filha.”

À medida que o barco se aproxima do atracadouro, Grande


Ammachi vislumbra uma silhueta familiar empoleirada num coqueiro
alto. Quando seus pés tocam a terra vermelha, seu marido já está ali,
esperando. Bebê Mol regala o pai com as maravilhas que viu: o mar, as
luzes elétricas, o médico com a pele pintada de branco — uma história
que repetirá pelo resto da vida.
Tão logo o casal fica a sós no quarto, os dois sentados na beira da
cama, ela lhe conta tudo. “A mente e o corpo de Bebê Mol estão
travados no tempo. Ela sempre será como era ano passado. E no ano
anterior.”
O marido arfa, suspira, abaixa a cabeça. Depois de um tempo, fala
numa voz rouca. “Se você está dizendo que ela sempre será Bebê Mol,
uma criança, uma criança feliz… não é tão ruim.”
“Não”, ela concorda, entre lágrimas. “Não é tão ruim. Um eterno
anjo.”
Ele põe seu braço ao redor dela, puxando-a para mais perto.
“Tem mais”, Grande Ammachi diz, soluçando, e conta da icterícia
que o médico sa’ippu notou nos olhos de sua mãe, o caroço petrificado
que descobriu em seu pescoço e em seu abdome, além do fígado
expandido — tudo explicava sua lassidão. Em privado, o médico disse
que um câncer de estômago havia se espalhado para o fígado e as
glândulas no pescoço. Já estava avançado demais para cirurgia. Não
havia tratamento senão tornar a vida da mãe confortável. “Foi como se
a mesma mula que tinha me dado um coice dez minutos antes me
acertasse de novo”, diz Grande Ammachi.
“Ela sente dor?”
“Não. Mas o doutor disse que vai sentir. Precisamos comprar
comprimidos de ópio para combater o sofrimento mais para o fim da
doença.” Ele falou: ‘Alguns cristãos acham que a dor confere
dignidade, que há uma redenção cristã na dor. Mas eu não’. Esse
médico é um santo.”
Naquela noite, em suas orações, ela diz: “Você sabia de todas essas
coisas, Senhor. O que tenho para contar? Antes que minha mãe
nascesse, e antes que Bebê Mol nascesse, Você sabia o que estava
escrito na testa das duas”. Ela sabe que deve agradecer a Deus pelos
poucos anos felizes que teve com a mãe. Porém não hoje. Não estaria
sendo sincera. “Rezo para que o Senhor proteja minha mãe da dor. Ela
já sofreu bastante nesta vida.”
Reza também pelo doce médico. Que dom o dele. Soube de cara do
que padecia Bebê Mol e depois percebeu que havia algo errado com
sua mãe. No entanto, embora conseguisse nomear esses distúrbios, não
podia oferecer nenhum tratamento. Nesse sentido, o vaidyan irritante,
com seu único tônico para todas as moléstias, poderia dizer que não era
pior do que o médico. Mas o vaidyan não sabe de nada. “Senhor,
aquele médico sabia de tudo… Apesar disso, não conhecia a Condição.
Peço-lhe mais uma vez: se o Senhor não vai ou não quer curar a
Condição, nos mande alguém que possa fazer isso.”
24. Outro caminho

cochim, 1922

Rune fecha a clínica à meia-noite. Naquele dia começou a atender


mais tarde os pacientes ambulatoriais devido a duas cirurgias de
emergência seguidas. Faz dez anos que a sra. Eleanor Shaw mudou sua
vida. Em sua tranquila caminhada pela orla rochosa da fortaleza de
Cochim, em geral com um livro debaixo do braço, é seu costume, se o
clima permite, fumar um último cachimbo sentado num banco de
cimento de frente para o mar, saboreando a brisa. As ondas celebram
sua longa viagem com um estrondo final contra as rochas. A lua pende
como um poste de luz baixo, iluminando na beira da água o andaime
angular das redes de pesca chinesas, mais de uma dúzia delas. Os
postes se projetam na água como aves marinhas de pescoço longo,
enquanto as redes se expandem como as velas dos dhows.
O médico se considera uma pessoa feliz. Todo dia é diferente. Não
sente falta de nada, tem bons amigos e muitos interesses para além da
medicina. Logo, por que, em tantas dessas noites em que senta naquele
banco, sente-se irrequieto? A impaciência não falha, ela chega como o
velho muçulmano que aparece ao fim do mês, com o velho livro de
contas, recolhendo aluguéis, com cara de “desculpe incomodar o
senhor”. Mas essa inquietação não é a mes­ma que o levou de porto em
porto até se encontrar em Cochim — não é uma questão geográfica.
Ele está onde deve estar. Mas então o que é?
Um som de batidas ocas fica cada vez mais discernível. Rune vê se
aproximar uma figura de cajado na mão, sua silhueta desenhando-se à
luz da lua. O perfil plano e o nariz ausente são imediatamente
reconhecíveis: a fácies de um leproso. Tocos, não dedos, agarram o
cajado. Moedas tilintam numa lata que pende do pescoço. A figura
canta numa voz diminuta, talvez um hino devocional, o rosto voltado
para o alto, olhando de um lado a outro, como se inspecionasse o céu
oculto. O espectro para, a cabeça cessa o movimento pendular, como
se pressentindo a lua baixa. É uma estátua, imóvel, exceto pelos
ombros que sobem e descem a cada respiração.
Numa mudança de perspectiva vertiginosa, o médico sente que ele se
transformou no leproso: é Rune quem espreita através das córneas
opacas e laceradas; é Rune quem vê imagens nebulosas, sem foco nem
bordas; é ele quem discerne apenas luz e sombras, mas ainda se lembra
da sensação da luz da lua lhe banhando o rosto; aqueles são os pés
tortos, cheios de úlcera, de Rune, enrolados em sacos de juta, presos
com corda de fibra de coco… E então o momento passa. Ele não tem
explicação para o que acabou de acontecer, aquela sensação de
encarnar-se momentaneamente em outra pessoa.
A figura parte, engolida pela noite, as batidas do cajado se perdendo
na distância. Num acesso de clareza, Rune vê todas as coisas que o
leproso não podia ver: o horizonte distante onde o mar encontra o céu,
o céu que suspende a lua, a lua com o xale de estrelas ao redor… O
médico tem a sensação de desaparecer na amplidão do universo.
Tornou-se a rede caída, o leproso cego que precisa dormir sob as
estrelas… Na imensidão do cosmos, sente que ele próprio não é nada, é
uma ilusão. Não existe diferença entre ele e o leproso, os dois são meras
manifestações da consciência universal.
Sob essa nova consciência, o falatório dentro de sua cabeça cessa de
repente. Tal como o mar se manifesta como onda ou espuma, mas nem
onda nem espuma são o mar, o Criador também — Deus ou Brahma
— gera uma impressão do universo que toma a forma de um médico
sueco ou de um leproso cego. Rune é real. O leproso é real. A rede de
pesca é real. No entanto, tudo é maya, a separação entre eles é uma
ilusão. Tudo é um só. O universo não passa de um salpico de espuma
no oceano ilimitado que é o Criador. Rune se sente eufórico e aliviado
— a paz de Deus, que ultrapassa toda compreensão.

Nas primeiras horas da manhã, seu criado sai para procurá-lo,


preocupado. Em outros tempos, chegou a levar o patrão para casa,
carregando-o da bodega de vinho de palma, onde o encontrava curvado
sobre uma mesa. Mas naquela noite ele se depara com um Rune
arrebatado, como um sadhu, contemplando o mundo com olhos
desfocados. O criado o sacode levemente. Rune, sorrindo, volta a entrar
na ilusão que o mundo é.
Ao fim daquela semana, já doou todos os móveis e guardou
instrumentos e esterilizadores na feitoria de Salomon Halevi,
comerciante e banqueiro judeu. Cochim agora tem muitos médicos,
recém-formados nas faculdades de Madras ou Hyderabad, e expandiu
seu sistema de hospitais públicos. Rune sentirá falta de seus pacientes,
mas eles sobreviverão sem ele.
Duas semanas depois, sem despedidas formais, Rune segue para o
monastério Bethel Ashram, em Travancore, fundado por BeeYay Achen.
Um dos primeiros sacerdotes a conquistar um diploma universitário, o
monge, guiado pelos escritos de são Basílio, buscava se aproximar do
Criador por meio de trabalho manual, silêncio e oração. BeeYay Achen
encoraja o médico com seu exemplo: serviço, reza e silêncio. Depois de
sete meses, Rune, quase irreconhecível, emerge como uma borboleta
de sua crisálida, seguro de seu destino, ainda que seu voo seja errático.
A barba, a alegria e a gargalhada estão intactas, porém agora um senso
místico de propósito ferve dentro dele. BeeYay abençoa o médico em
sua partida. “Acredito que Deus trouxe você aqui e lhe revelou sua
missão de vida. Mas o importante é que você aceitou. Lembre-se, Deus
não falou apenas a Isaías, mas a todos, quando disse: ‘Quem é que vou
enviar? Quem de nossa parte?’. Isaías respondeu: ‘Aqui estou. Envia-
me!’.”
Rune convence o barqueiro que fornece peixe, querosene, velas e
outras provisões ao monastério a levá-lo a seu destino final. “Onde? Lá?
Como assim! Por quê?”, indaga o barqueiro, incrédulo. “Esqueceu
alguma coisa por aquelas bandas?” Quando percebe que o médico fala
sério, diz: “Nem sei se meu barco passa por ali. E se os canais estiverem
secos? Vai saber se ainda existe alguma coisa lá!”.
Zarpam ao amanhecer, o homem de pele branca muito maior que
seu companheiro de pele escura. A canoa desliza por canais com
margens de pedra e lama. À tarde cruzam o vasto lago e passam a outro
canal estreito, que deve levá-los ao destino. Gritam para um homem
trepado no alto de uma palmeira, que lhes dá as últimas orientações.
“Sigam reto: não olhem à direita e à esquerda! Em duzentos metros
aparecerá um canal. Cortem por ele. Então vocês verão a escada de
muitos degraus, entre dez e cem degraus.”
Os “dez ou cem degraus” são, na verdade, catorze, e de tão tomados
pelo musgo os homens quase não os avistam. O barqueiro ajuda Rune a
levar seus sacos até um portão de dobradiças enferrujadas nos fundos
do terreno, mas se recusa a passar dali. “Só mais um favor”, o recém-
chegado diz, contando mais notas do que o barqueiro viu em toda a sua
vida. “Venda esse barco para mim.”

Passa sua primeira noite sozinho na única das seis ruínas de edifícios
de tijolos vermelhos que ainda preserva duas paredes intactas e algum
telhado de palha. Ao cair da tarde, vê uma pedra se mover — era uma
cobra que tomava sol por ali. Deitado de costas, ouvindo o bochicho
dos ratos, olha para as estrelas e se pergunta se não estaria louco. A
palavra “lazareto” se referia a estações de quarentena onde pacientes
infecciosos podiam ser isolados, mas com o tempo passou a significar
hospital de leprosos. Este lazareto está escondido no trecho de terra
firme mais distante dos remansos. Erguido por portugueses, foi
reconstruído e abandonado por holandeses e mais uma vez
reconstruído por uma missão protestante escocesa. O estigma dos
desafortunados que um dia se abrigaram no local é tão forte que, desde
a retirada da última missão, décadas atrás, nenhum ocupante tomou
posse da terra.
Na manhã seguinte, munido de um bastão, Rune explora a
propriedade. Traça o perímetro, analisa cada prédio arruinado, examina
o poço e o portão principal, intacto mas enferrujado. Saindo, encontra
uma estrada de cascalho bem preservada que passa em frente ao
lazareto; seguindo à direita, ela leva às cabanas e casas de uma pequena
vila margeada pelo canal que ele navegou na véspera, quando
encontraram o homem trepado na palmeira. À esquerda, a estrada
continua reta por uma vasta planície empoeirada, até erguer-se numa
leve ladeira, depois da qual passa a correr em zigue-zague, como uma
cicatriz sinuosa, no sopé daquelas montanhas fantasmáticas, distintas,
titânicas, envoltas em névoas: os Gates Ocidentais.
Seu ânimo desaba quando volta e digere a tarefa que tem pela frente.
“A realidade é sempre uma confusão, Rune”, ele diz, em voz alta.
“Quando você abre uma barriga, nunca é como nos livros de
medicina.”
Perto do portão principal, um lampejo branco chama sua atenção.
Ocultos na relva crescida, encontram-se os ossos descoloridos de um
esqueleto humano, decerto espalhados por animais. O crânio e a pélvis
estão relativamente intactos, suturados ao chão por trepadeiras. A julgar
pela pélvis, trata-se de uma mulher, e uma leprosa, levando em conta
as erosões nas maçãs do rosto. Rune tem uma visão daquela mulher
chegando àquele lugar, fraca, talvez febril, desejando alívio e só
encontrando escombros. Ela se deita sem cuidados, sem comida e sem
água. Morre. Aqueles ossos ao sol o deixam terrivelmente triste. “Isso é
um sinal, não é, Senhor?”
Naquela noite ele sonha com a irmã Birgitta no orfanato de Malmö,
onde cresceu. Sentia pena dela, que dedicava a vida a um lugar que ele
só pensava em abandonar. Agora entende. No sonho, a irmã Birgitta
está costurando, sentada perto da lâmpada, que se torna cada vez mais
brilhante, cegando-lhe os olhos.
Ele acorda e encontra dois rostos aterrorizados, a poucos centímetros
do seu, suas feições exageradas pela chama da vela que um deles
segura. Rune grita, eles recuam, também gritando. As duas figuras
assustadas retiram-se para um canto. Ele acende a lanterna. “Não quis
assustar vocês”, diz, em malaiala, agravando o choque dos visitantes.
“Pensamos que você estivesse morto”, declara um homem com um
buraco no lugar do nariz. Chama-se Sankar, e a mulher, Bhava. Estão
voltando de um festival num templo. Pedem esmola nesses eventos. “É
uma longa caminhada”, Sankar diz, “mas aqui tem paredes e um teto
sob o qual podemos dormir.”
“Só duas paredes e quase nada de telhado”, Rune diz.
“Melhor do que ao relento, daí os cães selvagens vêm atrás de nós”,
fala Bhava, que produz um som sibilante ao respirar. Rune adivinha
que sua laringe está tomada de lesões. “As pessoas não deixam a gente
nem encostar na parede de um estábulo.”
“Você não tem lepra”, Sankar observa. “Por que está aqui?”
“O poço está entupido”, Rune diz. “Primeiro temos que consertar
isso. Depois restauramos o restante, aos pouquinhos.” E gesticula para a
terra descuidada, os escombros do que antes eram edifícios.
“Você e quem mais?”, Sankar pergunta.
Rune aponta para o céu repleto de estrelas.

Na manhã seguinte, os dois leprosos lhe desejam boa sorte e partem,


arrastando-se lentamente, na fresca da alvorada. Pendendo do pescoço
de am­bos, as latas já bem batidas, em geral com moedas ou comida,
estão cheias do café que Rune lhes preparou.
Uma hora mais tarde, enquanto seleciona tijolos em bom estado em
meio aos escombros, ele vê os dois retornando.
“Decidimos que podemos te ajudar”, Sankar diz. Mostra as mãos a e
ri. “Já fui carpinteiro.” Na direita lhe faltam dois dedos, os demais são
garras. A carne da palma está arruinada, dando a ela uma aparência
simiesca. Tem todos os dedos na esquerda, mas o indicador e o médio
projetam-se em um gesto de bênção papal. Ainda assim, ele recolhe
um tijolo usando as mãos como pás e aperta-o contra o corpo. Bhava,
cujas mãos estão em condições apenas um pouco melhores, faz o
mesmo. Esses dois, Rune percebe, são anjos enviados para ele. Assim
foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército.
Ao anoitecer, Rune cozinha arroz e lentilhas e escuta as histórias
deles. Sankar acabara de se tornar pai quando notou um vergão no
rosto, e outros nos meses seguintes. Suas mãos ficaram dormentes.
“Não conseguia segurar o lápis de carpinteiro. Meu cunhado me
expulsou. A vila inteira me atirou pedras. Minha mulher assistiu a
tudo.” A emoção da voz contradiz o rosto, eternamente congelado
numa carranca. Quanto à Bhava, a pele de seu rosto foi ficando cada
vez mais grossa, lisa de modo atípico, e ela perdeu as sobrancelhas. Seu
marido a proibiu de sair de casa. “‘Até os cachorros fogem de você’, ele
dizia. Aah, mas isso não o impedia de subir em cima de mim à noite.
‘Você ainda é bonita no escuro.’” Quando seus dedos entortaram, ele a
expulsou sem que ela pudesse se despedir dos filhos. Ela ri ao lembrar,
um único dente na boca, como uma árvore solitária num cemitério.
Sankar ri também.
Rune não entende aquele estranho riso deles. A mente deve se
fechar a tamanha rejeição. Os dois morreram para seus entes queridos e
para a sociedade, e essa ferida é maior do que o nariz despencado, a
face horrenda ou a perda dos dedos. A lepra mata os nervos, é indolor; a
verdadeira ferida e a única dor que eles sentem é a dor do exílio.
Esse é o propósito do lazareto, Rune pensa. Um lar no fim do mundo.
Um lugar onde os mortos podem viver com seus semelhantes e onde o
espírito pode se elevar. Ele observa suas mãos, cheias de bolhas. O
polegar é suficiente para provar a existência de Deus. Se a mão é útil ao
trabalho, é um milagre; as suas são capazes de remover um rim ou
empilhar tijolos. Senhor, e se eu perder minhas mãos? Ele aprendeu que
raramente a lepra é contagiosa. É provocada por uma bactéria que vive
no ambiente, sobretudo em lugares sujos, mas só pessoas com uma
suscetibilidade particular contraem a doença. Lembra-se do professor
Mehr, em Malmö, cobrindo as feridas de leprosos, dizendo:
“Preocupem-se com outras doenças que vocês podem pegar, não com a
lepra”. De fato, Rune perdeu um colega de classe para a tuberculose e
outro para uma septicemia contraída num corte de bisturi. Ele agora
debate mentalmente com o professor. E quanto ao padre Damien, que
serviu todos aqueles anos com os leprosos em Molokai? Contraiu lepra e
morreu! Ele imagina a resposta de Mehr: Mas pense na irmã Marianne,
que cuidou do padre Damien. Pense em todas as freiras que serviram em
Molokai — nada aconteceu. Rune decide que não se preocupará com a
possibilidade de contágio. Não fie em sua própria inteligência. Deixe
que Deus se preocupe.

Em um mês, no portão já se vê uma placa em dois idiomas:


leprosário santa brígida. O nome honra a amada irmã Birgitta, de
seu orfanato em Malmö. Por acaso é também o nome da santa
padroeira da Suécia, e talvez isso ajude a conseguir apoio de alguma
missão sueca. Eles reformam dois edifícios e retiram os sedimentos do
poço. Rune compra provisões da loja dos mudalalis no vilarejo.
Mathachen, o coletor de seiva de palmeira que ele avistou no dia de sua
chegada, é um intermediário eficiente, deixando-lhe outras compras —
palha, madeira, ferramentas, corda — em frente ao portão ou nos
degraus à beira do canal. Se por um lado as pessoas do vilarejo têm
dúvidas em relação ao trabalho de Rune, por outro não apresentam
nenhuma objeção a seu dinheiro. Logo ele está com uma bicicleta,
além do barco. Thambi, Esau, Mohan, Rahel, Ahmed, Nambiar, Nair
e Pathros juntam-se a seus dois anjos. Como uma floresta de teca com
raízes subterrâneas, os leprosos têm uma rede; a notícia da ressurreição
do lazareto viaja rápido.

A quase um quilômetro do leprosário há uma propriedade murada


onde uma tradicional casa de palha com beirais adornados e paredes de
madeira foi fundida com muito bom gosto a uma construção moderna
e mais ampla de paredes caiadas, telhado vermelho, janelas altas, uma
grande varanda circular, um pórtico na entrada principal, com um
carro estacionado, e uma estrada de acesso de cascalho ladeada por
tijolos. A inserção na pedra do portão diz thetanatt — o nome da casa
— e, embaixo, o nome do proprietário: T. Chandy. Uma vez, quando
passava por ali de bicicleta, Rune avistou um homem fumando na
varanda, quase de olhos fechados, com um relógio de ouro no pulso.
Em outra ocasião o viu passar de carro em frente ao portão do Santa
Brígida, com uma mulher do lado, bem quando Rune saía. O médico
ace­nou, o casal sorriu e acenou de volta. Sempre que passava em frente
à casa, Rune sentia-se inclinado a fazer uma visita, mas, pela primeira
vez em sua carreira, seu tipo de atendimento médico deixava as pessoas
desconfortáveis. Mathachen, o coletor de seiva, conta que Chandy
havia sido empreiteiro do Exército Britânico em Aden — ele “rasgava
dinheiro”. Quando voltou, comprou uma grande propriedade nas
montanhas, tão grande que Rune a avista do Santa Brígida. Durante a
semana, Chandy fica no bangalô da propriedade, administrando a
plantação e a colheita; nos fins de semana, faz uma viagem de três
horas de carro para sua casa, onde vivem sua esposa e sua mãe, já em
idade avançada.

Três meses depois da chegada de Rune ao lazareto, há uma comoção


na entrada — alguém grita “Doutor-ay! Doutor-ay!”. O empregado
agitado da casa Thetanatt está a três metros do portão, com uma
mensagem: a mulher de Chandy implora por uma visita urgente, pois o
sr. Chandy está tendo um ataque. Rune se apressa de bicicleta. Na
varanda, encontra um par de chinelos largados. Espirais de fumaça
sobem preguiçosamente de um cinzeiro ao lado de uma lata de cigarros
State Express 555. Ele ouve o arrastar de móveis dentro da casa. É
quando vê Chandy combalido no chão, seu mundu torto, os grandes
pés coiceando. A esposa aterrorizada se inclina sobre a figura de bruços.
Usa um sári, brincos cintilantes e pulseiras em ambas as mãos — o
casal parece vestido para sair.
Rune se ajoelha, sente a respiração de Chandy e seu pulso, que é
forte e constante. “O que aconteceu? Me conte, por favor.”
“Obrigada, doutor”, diz a mulher, chorosa, em inglês. “Ele estava se
comportando de um jeito estranho hoje. Não me deixou levá-lo ao
hospital. Daí agorinha deu um grito e caiu no chão. Logo ficou duro,
muito, e inconsciente. O motorista não está aqui. Eu não sabia o que
fazer, então enviei nosso garoto até você. E há pouco ele começou a
tremer.”
De rabo de olho Rune vê uma anciã de chatta e mundu, grandes
brincos de ouro nas orelhas, com aspecto pálido, apertando o batente
da porta com mãos que parecem sem sangue, o lábio inferior
tremendo. Ele se dirige a ela em malaiala. “Ammachi, não tenha medo,
é só uma convulsão, ele já vai ficar bom.” Bem quando diz isso, o
tremor cessa. “Mas quero que você se sente, pois, se desmaiar, não vai
poder ajudar.” Ela obedece.
Rune nota as glândulas parótidas de Chandy inchadas, as palmas
vermelhas, o peito avantajado e a explosão de novos vasos sanguíneos
nessa região e nas faces. Desconfia que o homem entornou mais álcool
que a maioria dos homens beberá na vida. Um odor de amoníaco e
uma mancha amarela no mundu branco revelam que ele urinou.
“Isso já aconteceu antes?”, Rune pergunta.
“Nunca! Ele estava normal quando voltou da propriedade ontem à
noite, apenas cansado da viagem de carro.” A esposa agora fala em
malaiala.
“Não, ele não estava normal”, diz a anciã, encontrando sua voz: “Era
como se o tempo todo estivesse sendo mordido por formigas. Ahh,
brigava com todo mundo”. A esposa constrangida a encara, mas a sogra
se mantém firme: “Molay, é a verdade, e o médico precisa saber”.
“Ele sempre fica irritadiço no começo da Quaresma”, admite a
esposa.
“Ah”, Rune diz. “Ele larga o uísque por quarenta dias?”
“Cinquenta dias. Sim. Larga o brandy. Faz isso por mim”, ela
declara, tímida. “Foi um voto que ele fez, no primeiro ano depois que
casamos.”
A Quaresma havia começado no dia anterior. A súbita abstinência de
Chandy provavelmente precipitou um “surto do rum”, uma convulsão
induzida pela abstinência de álcool. Rune fica de pé. “Não se
preocupem.” A respiração de Chandy é ruidosa, mas constante. “Ele
acordará logo mais, porém bastante confuso. Volto já com um
remédio.”
Rune usa como antisséptico uma infusão que Mathachen, o coletor
de seiva, prepara. É um áraque ilícito — não o arak do Norte da África,
com sabor de anis, que Rune conhece, mas um destilado sem sabor. No
Santa Brígida, o médico prepara uma mistura de extrato de ópio,
áraque, limão e açúcar, e volta à casa do paciente.
Chandy está no chão, mas desperto, um travesseiro sob a cabeça, o
mundu já substituído. Está confuso, mas toma obedientemente o
remédio, qual uma criança.
“Dê a ele uma colher de sopa mais quatro vezes antes da meia-
noite”, Rune diz a Leelamma — o primeiro nome da sra. Chandy.
“Amanhã, dê três vezes ao dia. No dia seguinte, duas vezes, e, a partir
de então, uma vez por dia. Deixei anotado.”
À noite ele reaparece, e a essa altura Chandy já está mentalmente
recuperado, embora se sinta sonolento. Rune diz a eles que, no futuro,
Chandy precisará reduzir o consumo de brandy quando a Quarta-Feira
de Cinzas estiver se aproximando.

Uma semana depois, um carro buzina ao portão e entra. É Chandy.


Fora Rune, ele é o primeiro não leproso a adentrar a propriedade desde
que o médico a administra. Chandy, que agora aparece bem-disposto,
se revela um homem robusto, com peito largo e poderosos antebraços,
com um excesso de peso na cintura. É um dos raros malaialas sem
bigode, tem o cabelo repartido ao meio e penteado para trás. Em sua
juba amarela de seda e mundu esbranquiçado, parece ser um homem
que se sente tranquilo em qualquer lugar, mesmo ali no Santa Brígida.
Sua gratidão toma a forma de uma garrafa de Johnnie Walker. Ele diz:
“Ficaríamos honrados se se juntasse a nós no almoço do Domingo de
Páscoa. Poderíamos convidá-lo para ir antes, mas Leelamma não quer
servir arroz e feijão-verde. E eu gostaria de poder lhe oferecer uma
bebida”. O médico aceita.
O olhar de Chandy observa os arredores com interesse e não se abala
com os curiosos residentes. Rune oferece um tour, e Chandy logo
aceita. Os dois caminham pelos edifícios em reconstrução. O médico
tinha esperanças de reutilizar as vigas de madeira de uma das ruínas,
mas Sankar acha que estão tomadas por cupins. Chandy se agacha,
examina as vigas com cuidado e diz: “Concordo com seu colega.
Cupins e também inundações. Está vendo como a cor é diferente aqui
pela metade?”. Chandy entende muito de concreto e dos vários tipos de
telhado. Nos campos, inclina-se várias vezes para pegar um punhado de
terra e esmagá-la entre os dedos. “Espero um dia tornar o lugar
autossuficiente”, Rune declara. Chandy não comenta nada, mas alguns
dias depois retorna com seu motorista, num carro cujos assentos
traseiros foram retirados; há também uma plataforma soldada à traseira.
O motorista descarrega vasos com mudas de mangueiras, ameixeiras e
bananeiras, bem como sacos cheios de uma mistura de ossos e esterco.
Chandy desdobra um mapa do terreno desenhado à mão, onde marcou
o melhor local para um pomar. Uma área mais rebaixada e mais úmida
perto do canal é ideal para as bananeiras. “Esse fertilizante, por sinal, é
para os coqueiros e as tamareiras que já existem. Parecem não ser
cuidados há muitos anos. Mantenha essa terra aqui, entre esses dois
coqueiros, livre para pastagem; suporta duas vacas. Um galinheiro
também seria bom.”
A Páscoa na casa Thetanatt marca o começo de uma amizade
duradoura. Rune passa a ser um convidado frequente aos domingos,
desfrutando dos pratos suntuosos de Leelamma e do brandy de
Chandy. No verão, quando o calor castiga, a família foge para as
montanhas por dois meses. Em alguns fins de semanas convidam Rune
para visitá-los.

Salomon Halevi envia os instrumentos de Rune que haviam ficado


sob sua guarda, e agora o médico dispõe de uma clínica e uma sala de
cirurgia rudimentar. Pode fazer mais do que cobrir feridas e drenar
abscessos. Opera mãos, procurando preservar-lhes a função ou restaurá-
las aliviando contraturas. Para arrecadar dinheiro, escreve muitas cartas.
Os judeus paradesis patrocinam o forno de tijolos, enquanto uma
missão luterana em Malmö cobre as despesas para uma serralheria e
uma pequena oficina de marcenaria. No Natal, a mesma missão se
compromete com uma contribuição anual e publica em seu boletim
informativo as longas cartas de Rune em sueco. O sr. Shaw, cuja esposa
foi paciente de Rune, dá de presente duas vacas leiteiras e um bom
carregamento de madeira.

Cinquenta anos depois de Armauer Hansen descobrir, no


microscópio, o bacilo em forma de bastão no tecido dos leprosos —
mycobacterium leprae —, ainda não há remédio que cure a lepra. Rune
oferece aos residentes um lar e um trabalho, mas se sente frustrado por
não poder fazer quase nada para remediar as lesões progressivas em suas
mãos e pés. No dia em que abrem a serralheria, ele encontra um dedo
decepado nas aparas. O dono do dedo, ainda trabalhando, só percebe o
que aconteceu quando vê o toco ensanguentado. A partir de então o
médico passa a promover encontros semanais sobre prevenção de
lesões. Escolhe duplas de residentes para inspeções diárias dos pés e
mãos dos colegas e faz curativos nos novos ferimentos, sempre agindo
rápido para pôr um dedo ou um pé sob a proteção do gesso para evitar
danos maiores e permitir que a ferida sare. Toda ferramenta no Santa
Brígida possui uma alça acolchoada para aqueles cujos dedos não
conseguem segurá-las e como proteção para a pele. Baldes e carrinhos
de mão têm arreios que se prendem ao pescoço.
No primeiro ano do lazareto, um recém-chegado sorridente adentra
o complexo, alheio ao fato de que seu tornozelo está grotescamente
deslocado, com o osso projetando-se através da pele. Qualquer não
leproso estaria gri­t ando de dor, mas esse camarada tagarela mostra-se
orgulhoso por ter caminhado o dia inteiro. Rune notava nos residentes
esse mesmo orgulho perverso: a “vantagem” que tinham sobre aqueles
que os rejeitavam era poder caminhar eternamente, como também
ficar parados, de pé, por horas a fio, sem necessidade de mudar o peso
de um pé para o outro. O trauma cumulativo de caminhar sobre pés
lesionados, e da postura ereta prolongada, inflama, tensiona e acaba por
romper os ligamentos que unem os ossos do pé. Quando o tálus — o
osso em forma de sela embaixo da tíbia que transfere o peso do corpo
para o calcanhar — finalmente cede, o arco do pé fica plano como um
appam e, em seguida, convexo, como o fundo de uma cadeira de
balanço. O peso do corpo já não se distribui pelo pé inteiro,
concentrando-se em um só ponto, e o resultado da pressão é uma
úlcera. Se negligenciada, ela cresce e gangrena, forçando a amputação
— que é sempre indolor.
25. Um estranho na casa

parambil, 1923

Quando Grande Ammachi está com trinta e cinco anos, no ano da


Graça de 1923, ela engravida de novo. Parece um milagre. A primeira
pista é um sabor metálico na boca, seguido pela perda de apetite. Assim
que conta ao marido, ele se espanta. Ela se sente tentada a dizer: Não
me diga que você não sabe como aconteceu! Mas o semblante
preocupado dele a impede; já teve três abortos espontâneos nos longos
anos desde que Bebê Mol nasceu, cada um deles acarretando uma
tristeza devastadora, a sensação de que ela estava sendo punida por
JoJo. O marido nunca menciona seus medos, mas ela sabe o quanto ele
deseja um filho a quem legar sua criação, Parambil; um filho que cuide
dos pais na velhice. Se ele se sente ansioso, ela, por seu turno, está
tranquila, confiante de que essa gravidez vingará. Sua convicção deve
vir de Deus. Já se passaram mesmo quinze anos desde que ela trouxe
uma criança ao mundo? Sua única tristeza é já não ter a mãe ao lado.
O câncer a levou dois meses depois da visita ao médico em Cochim.

Quando entra no sétimo mês, seu centro de gravidade rebaixado, os


pés entortando ao caminhar, ela encontra o marido sentado na varanda
depois do jantar, contemplando o quintal inundado pela luz da lua.
Sua expressão é sonhadora, uma rara visão. De perfil, não parece velho,
embora não escute bem e o cabelo, praticamente grisalho, esteja ralo.
Aos sessenta e três anos, ele ainda restaura um dique ou cava um canal
de irrigação. Ao ver a esposa, ele lhe cede assento, sorrindo.
Ultimamente, anda perseguido por dores de cabeça, ainda que nunca
reclame; ela sabe por sua posição da mandíbula, a testa franzida, e
porque ele se retira em silêncio para o quarto com um pano molhado
sobre os olhos.
Grande Ammachi se aconchega ao lado dele, as costas doídas, o
bebê pressionando. Comenta dos pés inchados e que não consegue
imaginar como Odat Kochamma teve dez filhos… Vez por outra ela
observa, com certa avidez, Shamuel e a esposa Sara em momentos
descontraídos, o tête-à-tête entre os dois, a conversa atropelada. Até suas
discussões parecem íntimas. Já ela precisa falar pelos dois.
Ele observa os lábios dela para não perder nenhuma palavra, seus pés
balançando quase imperceptivelmente ao ritmo de seu batimento
cardíaco. “Por que você fala tão pouco?”, ela pergunta, depois de algum
tempo. Ele responde erguendo e baixando as sobrancelhas e os ombros.
Quem é que sabe? Ela o sacode, irritada. É como tentar sacudir o
tronco de uma figueira.
Ele responde: “Como você preenche os espaços em que eu poderia
dizer algumas palavras… fico calado”.
Ela faz que vai levantar, ofendida, mas ele a puxa para perto de si,
rindo em silêncio. Sua risada, silenciosa ou não, é ainda mais rara que
sua fala, e Grande Ammachi sente uma afeição especial quando essa
risada escapa, desarmada e luminosa. Os braços dele a envolvem. Ela
ri. Por que ver os dois assim, abraçados, deveria embaraçá-la? Seus
sobrinhos, os gêmeos, andam de mãos dadas (ainda que as esposas
vivam em pé de guerra); a caminho da igreja, ela vê mulheres de mãos
dadas. Mas os casais se mantêm notadamente separados, como se para
negar que, no escuro, tocam-se e muito mais.
Ele a solta, mas seus ombros ainda pressionam os dela. Ela espera. É
fácil abafar o que ele vai dizer falando primeiro. “Nunca aprendi a ler”,
ele diz, por fim. “Mas aprendi que a ignorância nunca é revelada se
prendemos nossa língua. Falar é o que remove qualquer dúvida.” Você
não é ignorante! Você é sábio, meu esposo. A confissão dele paira entre
os dois no entardecer amistoso. Ela o envolve com os braços como se
fosse cobri-lo, porém é como se tentasse abraçar Damodaran.

Nas dores do parto, ela anuncia aos gritos seu ressentimento contra
os homens, que são poupados do que fizeram acontecer, assim como se
ressente do infante mal-agradecido que carregou dentro de si e agora
quer parti-la ao meio. Mas então, quando aquela boca minúscula se
lança a seu mamilo, Grande Ammachi sente um jato tanto de colostro
quanto de perdão, este último trazendo uma espécie de amnésia. De
que outro jeito ela consentiria em dormir de novo com o homem que
lhe causou tamanha dor?
Depois da primeira respiração, o bebezinho olha à volta para o
mundo de Parambil com uma expressão séria e alerta, franzindo a testa,
concentrado. Ela já se decidira (com a bênção do marido) a lhe dar o
nome de seu pai, Philip. No entanto, a expressão erudita do recém-
nascido a leva a adotar Philipose no registro batismal. Poderia ter
escolhido “Peelipose”, “Pothen”, “Poonan” — variantes locais de
“Philip.” Mas gosta de “Philipose” pelo eco da antiga Galileia, a última
sílaba, reconfortante, que soa como água fluindo. A mãe reza para que
o filho conheça o prazer de ser levado por uma corrente, capaz de
nadar de volta à margem.
Seu nome de batismo será usado na escola e em tudo que seja
oficial. Ela torce para que antes disso não seja substituído por algum
diminutivo. Muitas crianças ganham apelido muito cedo e não
conseguem se desgrudar: “Regi”, “Biju”, “Sajan”, “Renju”, “Tara” ou
“Libni”; ao apelido acrescentam um complemento: “mon” (garotinho)
ou “mol” (garotinha); “bebê” (sem gênero) ou “kutty” (criança). Bebê
Mol tem dois complementos no lugar do nome cristão, que resta
abandonado na certidão de nascimento. Na meia-idade, Philipose será
interpelado por pessoas mais jovens com um sufixo respeitoso:
Philipose Achayen ou Philipochayen (para a mulher, pode ser
Kochamma, Chechi ou Chedethi). Quando for pai, será Appachen, ou
Appa para os filhos, tal como logo mais chamará sua mãe de Ammachi
ou Amma. Alguma confusão é inevitável. Ela ouviu falar de um
homem conhecido na família como Bebê Kutty e entre os amigos
adultos como Bebê Goodyear, embora tenha deixado essa empresa
depois do casamento e agora trabalhe para o Departamento de
Finanças de Jaipur. Os parentes de sua mulher o conheciam como
Bebê Jaipur. Um tio imponente da esposa chegou a Jaipur depois de
uma longa viagem, foi procurá-lo nesse departamento e ficou furioso
quando a equipe lhe disse que nenhum Bebê Jaipur trabalhava ali.
Acionaram a polícia, que o levou preso. Quando George Cherien
Kurian (também conhecido como Bebê Jaipur) soube disso, foi pagar a
fiança, mas não conseguiu localizar o tio, pois só o conhecia como
Bebê Thadiyan (Bebê Gordo) e não pelo nome sob o qual fora
registrado: Joseph Chirayaparamb George.
Poucas semanas depois do nascimento de Philipose, o marido cai de
cama por cinco dias com uma dor de cabeça paralisante, acompanhada
de vômitos alarmantes. Ela fica louca de preocupação, cuidando do
recém-nascido enquanto esfrega óleo na testa do doente, além de
consolar Bebê Mol, triste com o estado do pai. Shamuel acampa do
lado de fora do quarto do thamb’ran, recusando-se a ir para casa. Os
comprimidos e emplastros do vaidyan não adiantam nada. Ela quer
levar o marido a Cochim, para o doutor sa’ippu Rune, mas ele se
recusa a viajar de barco. Então, tal como surgiu, a dor de cabeça
diminui misteriosamente, só que, ao fim de tudo, ele termina com parte
da face esquerda caída. Não consegue fechar o olho esquerdo, saliva
escorre pelo canto da boca. Isso a incomoda mais do que a ele. Em
pouco tempo ele vai para o campo. Shamuel relata que o thamb’ran
está trabalhando duro como sempre, embora agora esteja surdo do
ouvido esquerdo.
O rosto do marido se ilumina sempre que vê o filho recém-nascido,
mas o sorriso é desigual; Grande Ammachi aprende a mirar o lado
direito de seu rosto em busca de sua verdadeira expressão. Há algo novo
nos olhos dele; primeiro, ela pensa que é tristeza. O marido estaria
relembrando o destino do primeiro filho? Não, não é tristeza, mas
ansiedade; uma ansiedade que não se liga a nada que ela possa
determinar, e isso a perturba. Bebê Mol também está preocupada e
agora abandona o banco para seguir o pai quando ele perambula pela
casa, ou empoleira-se na cama dele, calada, permanecendo ali até que
a mãe a ponha para dormir.

Quando Philipose completa um ano, Grande Ammachi não pode


negar a verdade acerca de seu garotinho: ele toma banho de boa
vontade, mas ela se alarma sempre que entorna o balde d’água sobre
sua cabeça — os olhos dele se fecham, e quando abrem, os globos
oculares giram, e muitas vezes seus membros amolecem. Mas, ao
contrário de JoJo, ele ri, como se apreciasse a desorientação. Para ele é
uma brincadeira. Seus olhos pedem bis. Como é grande o bastante
para que a mãe o ponha no uruli, o vaso imenso mas raso, nunca usado,
destinado ao preparo de payasam em festejos, o menino se bate na água
com prazer, rindo enquanto a vertigem o derruba do uruli para o
muttam. Como um marinheiro bêbado, recompõe-se e engatinha para
dentro da água de novo. Seus pais, chocados, assistem a tudo
incrédulos.
Grande Ammachi diz ao marido: “Não posso perder essa criança
linda”.
“Então deixe que ele viva. Não aprisione o menino”, ele diz,
veemente. “Foi assim que meu irmão mais velho pôde tirar vantagem
de mim. Porque minha mãe nunca me deixava ir a parte alguma. Eu te
contei essa história?” Ele terá mesmo esquecido? “O que não entendo é
por que meu filho busca a água, quando ela não lhe é amigável”,
conclui.

Poucos meses depois, à noite, enquanto Odat Kochamma cuida de


Philipose, Grande Ammachi escapole para um mergulho no rio.
Diferentemente do marido e do filho, nada a restaura ou renova mais
do que aquilo. Ao voltar, escuta um som repetitivo de algo sendo
raspado e encontra o marido agachado, cavando sem muita convicção
com uma vara na beira do muttam. Por um momento, ela se sente
como se observasse uma criança brincando, mas o rosto do marido é
sério.
“O que você está cavando aí? E ainda mais depois do banho!” Ele a
olha. Por um breve momento é como se não tivesse a menor ideia de
quem ela seja. Em seguida se ergue, cambaleia e quase cai. O coração
de Grande Ammachi lhe salta à boca. O que ela vê ali é o futuro.

Nas semanas seguintes, acontece de novo: ela o encontra


cavoucando o solo sem que lhe diga por quê. “Fique de olho em seu
thamb’ran”, ela diz a Shamuel, que não entende. “O que houve? Por
que diz isso?” Ela não responde, apenas o olha fixamente. “Não há
nada de errado com ele”, Shamuel diz, veemente. “Seu rosto está caído
de um lado, mas quem precisa de dois lados? É o que digo a ele. Basta
um.”
“Bem, ele já não é jovem. Quantos anos você tem, Shamuel?” O
cabelo dele é grisalho, e o bigode, onde não está amarelo do beedi, é
branco. As rugas ao redor dos olhos são tão numerosas como as de
Damodaran.
Shamuel faz um movimento de torção com o pulso. “Pelo menos
trinta, talvez mais”, responde. Ela desata a rir, e ele a segue — algo raro
para os dois naqueles dias.
Ela decide mencionar as escavações, e é como se lhe desferisse um
golpe. Quando se recupera, ele diz: “Talvez o thamb’ran esteja
procurando moedas que enterrou. Antes de construir o ara fizemos isso.
Pode ter uma, ou cem moedas. De ouro, prata, cobre”. Prefere refugiar-
se nos nomes a nos números.
“Você acha mesmo que tem um tesouro enterrado?”, ela pergunta.
Ele evita encará-la, sua voz treme. “Por que a pergunta? Só penso o que
o thamb’ran pensa.”
O medo de Shamuel é palpável. Para seus antepassados nunca havia
garantia de abrigo ou comida. Eram servos de uma propriedade,
pagando eternas dívidas ancestrais, mas essa prática agora é ilegal. Ele
recebe por seu trabalho, e o terreno onde ergueu sua casa é dele. Pode
trabalhar onde bem quiser. Mas não consegue se imaginar trabalhando
para qualquer outra pessoa. O coração dela se parte por esse homem
que, ao longo de todos esses anos, esteve sempre ao lado de seu marido,
como sua sombra. Grande Ammachi sente o amor de Shamuel pelo
patrão. Sem o thamb’ran, o que acontecerá com sua sombra? Se ele
não puder contar com o thamb’ran, terá de contar com ela.

Passados alguns dias, ela está na varanda, com Philipose no colo. É


fim de tarde e os dois observam Damo. De repente os pelos da nuca de
Grande Ammachi se eriçam, e ela sente uma presença esmagadora
atrás de si. Não pode ser Damo, mas é como se fosse: uma forma
imensa projeta uma sombra sobre ela. Ela se volta e vê o marido, que
por sua vez olha por sobre seu ombro para Damodaran, que come,
barulhento, chutando as folhas. Ao lado do marido está Bebê Mol, que
tateia de levinho o próprio rosto. Ela, que nunca chora, não entende a
natureza das lágrimas, por que são salgadas e demoram a cessar.
Damo fica imóvel, os olhos fixos no thamb’ran. Os dois velhos
gigantes se encaram, sem expressão, e por um momento ela pensa que
avançarão um contra o outro. O marido põe a mão sobre ela — não em
busca de apoio, mas para indicar posse.
“O que ele quer?”, ele pergunta baixinho, a saliva cintilando num
canto da boca.
“Como assim? É o nosso Damodaran!”
“Não, não é. É outro elefante. Mande ele embora.” E se retira, um
pouco desorientado, só encontrando o caminho para o quarto graças à
Bebê Mol.
No jantar, Damodaran se arrasta para perto da casa, ignorando as
frondes frescas de coqueiro que Unni colheu para ele. Parece esperar
por tham­b’ran, talvez para reclamar por ter sido chamado de impostor.
Grande Ammachi leva um balde com arroz e ghee para Damo, que
recusa a oferta.
Ela preparou o prato preferido do marido, erechim olarthiyathu.
Quando ele senta à mesa, não parece notar que Damo se aboletou na
varanda da parte velha da casa, embora seja impossível ignorá-lo. Como
sempre, tão logo a carne em brasa toca a folha de bananeira, ele não
resiste a prová-la antes que o arroz seja servido. Mas então, para choque
da esposa, ele cospe. Como os lábios não se fecham bem, o queixo fica
sujo, engordurado. O que sobrou na folha ele atira no muttam.
“Isso não serve nem para cachorros!”
César, o mais novo vira-lata da casa, discorda, correndo para lamber
os cubos de carne. Damodaran se aproxima.
“Ayo! Por que você fez isso?” Ela nunca ergueu a voz para o marido
antes. Prova a carne. “Pelo amor de Deus, não tem nada de errado com
a comida! O que deu em você? Faço esse prato há quase um quarto de
século!”
“Aah, taí! Não teria errado por descuido. Deve ter sido de propósito.”
Ela olha para ele incrédula. Esse homem que quase nunca fala, e
nunca de modo ríspido, agora a trespassa com suas palavras. “Por todos
esses anos sempre quis que você falasse mais! Eu deveria agradecer a
Deus por seu si­lêncio.” Ela se vira e sai, espumando, reação igualmente
inédita. Encontra Da­mo e ele olha para ela, a tromba encaracolada na
boca. Perdoe seu marido, ele não sabe o que faz. Ela escuta a frase como
se ouvisse uma voz humana.
Seguindo a orientação de Damo, a esposa volta à cozinha com
legumes e picles. O marido mal come. Ela segura o kindi para que ele
possa limpar os dedos. Ele caminha a passos pesados para o quarto,
passando por Bebê Mol. Grande Ammachi percebe que, pela primeira
vez em muito tempo, a filha não se pôs ao lado do pai durante o jantar.
Em vez disso, retirou-se para o velho banco. As lágrimas da menina
cessaram, e ela agora se mostra feliz, conversando com as bonecas em
vez de andar atrás do pai. Grande Amachi olha a filha esperando que
ela se agarre ao pai, como tem feito há vários dias. Nada.
Depois de cobrir as brasas na cozinha, ela vai dar uma espiada no
marido. Ainda se sente mal com o que aconteceu. Ele está na cama, os
olhos no teto. Ela senta a seu lado. Ele a olha e pergunta se ela pode
lhe dar um pouco de água. O copo está bem do lado dele e ela o
oferece. Ele se levanta e, como uma criança, segura-o com as duas
mãos. São poderosas, mas nodosas e envelhecidas pela idade, e cheias
de calos por causa de todas as árvores que ele escalou e em função de
cordas, machados e pás que empunhou. Juntos, erguem o copo e ele
bebe. A mão dela, minúscula perto da dele, já não é a mão daquela
menina que veio para Parambil e deixou uma vida inteira para trás;
exibe cicatrizes das faíscas de incontáveis chamas e de óleo quente.
Seus dedos com nós ressaltados revelam o desgaste de tanto cortar,
moer, descascar, fatiar e picar. As mãos dos dois, sobrepostas, guardam
os muitos anos como marido e mulher. Quando já não há uma gota no
copo, ele relaxa as mãos, deita, suspira e fecha os olhos.
Ela se retira depois de um tempo. Mais tarde pretende verificar
como ele está, assim que botar Bebê Mol e Philipose para dormir. Mas
adormece com as crianças. Acorda no meio da noite e levanta para ver
o marido, como tem sido seu hábito há alguns meses. A figura escura
do esposo está muito quieta. Quando o toca, sente a pele gelada.
Mesmo antes de acender o lampião, sabe que ele se foi.
O rosto dele está imóvel, a expressão perturbada e penitente. No
silêncio, o coração dela bate furioso, como se quisesse se desprender,
buscando libertar-se do peito e pulsar pelo marido, pois o coração que
labutou por tantos anos já não pode fazê-lo.
Chorando baixinho, sobe na cama e deita ao lado dele,
contemplando o rosto que viu pela primeira vez no altar, o rosto que
tanto temeu e que depois amou tão ferozmente; seu marido silencioso,
tão constante no amor por ela. À volta de Grande Ammachi os sons da
terra onde ele viveu e que tomou para si parecem mais agudos e
exagerados: o canto dos grilos, o coaxar dos sapos, o sussurro da
folhagem. Ela então ouve uma trombeta prolongada: um lamento de
Damo por aquele que o resgatou quando ele estava ferido, pois um
bom homem se foi.

Seu marido ficaria muito contente por não ter precisado receber ou
conversar com toda a gente que foi chorá-lo, parentes e artesãos cuja
vida e destino ele alterou tão profundamente. Os naires do tharavad
nos confins de Parambil vêm prestar homenagens. Todos os pulayar
comparecem, de todas as casas, detendo-se silenciosos no muttam, o
rosto carregado de tristeza. Shamuel sobressai, chorando, despedaçado
— Shamuel, que ela conduziu ao quarto, apesar dos protestos dele,
para que se despedisse do thamb’ran que idolatrava. O marido ficaria
impaciente com o funeral, desejaria tomar logo seu lugar na terra que
tanto amava e deitar-se ao lado da primeira esposa e do primogênito.
Poucas semanas depois do enterro, com a vida em Parambil lutando
para encontrar o novo normal, Grande Ammachi ouve sons de
escavações e arranhões no pátio, quando estava prestes a dormir. O
barulho cessa. Na noite seguinte, ele volta. Ela sai e senta na varanda,
voltada para a fonte do ruído. “Escute”, ela diz, “você tem que me
perdoar. Eu me martirizo por não ter ido até você assim que botei as
crianças para dormir. Caí no sono. Sinto muito pela discussão no
jantar. Exagerei. Sim, também queria que tivesse sido diferente. Mas foi
só uma noite ruim entre tantas perfeitas, não? Eu esperava ter muitas
outras noites perfeitas, porém cada uma delas foi uma bênção. E ouça:
eu te perdoo. Depois de uma vida inteira de doçura, você tinha todo
direito a um chilique. Então fique em paz!”
Ela espera. Sabe que ele a ouviu, pois, como sempre foi seu hábito, o
esposo expressa amor por ela à sua maneira: pelo silêncio.
26. Muros invisíveis

parambil, 1926

Quando seu filho tem quase três anos, ela o leva de barco à igreja de
Parumala, onde está a tumba de Mar Gregorios, o único santo dos
cristãos de São Tomé. Philipose se delicia com sua primeira viagem de
barco, mas a mãe não tira os olhos dele. Nem seu marido nem JoJo
jamais aceitaram subir num barco, já o menino não pode ver água sem
querer desafiá-la. Seus amigos pulam no lago como peixes, e ele não
consegue entender por que não pode fazer o mesmo; Philipose adquire
uma obstinação de formiga-de-fogo, ferozmente determinado a superar
o interdito. Suas muitas tentativas de “nadar” deixam a mãe
aterrorizada; os fracassos são um espetáculo patético.
A tumba do santo fica de um lado da nave da igreja. Acima dela há a
foto em tamanho real de um retrato de Mar Gregorios; essa imagem
(ou então o retrato largamente difundido do artista Raja Ravi Varma)
pode ser vista em calendários e pôsteres emoldurados em qualquer
residência dos cristãos de São Tomé. A barba do santo contorna lábios
delicados, e suas tranças laterais emolduram um rosto bonito e
bondoso, com olhos joviais. Ele advogou sozinho para que os pulayar
fossem convertidos e acolhidos nas igrejas, o que não viu acontecer em
vida. Grande Ammachi acha que também não verá.
O garotinho se encanta com a igreja, e ainda mais com a tumba e as
centenas de velas diante dela. Ele puxa o mundu da mãe. “Ammachi,
peça pra ele me ajudar a nadar.” Ela não o escuta; de pé, com a cabeça
coberta, contempla em transe o rosto do santo.

Mar Gregorios olha diretamente para ela, sorrindo. Sério? Você veio
até aqui para pedir que eu ponha um feitiço no menino?
Ela fica chocada. Ouviu a voz do santo, mas, quando olha ao redor,
percebe que ninguém mais ouviu.
Mar Gregorios lê seus pensamentos. Ela não consegue encará-lo.
“Sim”, ela diz. “É verdade. Você ouviu o que meu filho disse. Ele está
tão determinado. O que devo fazer? O menino perdeu o pai. Estou
desesperada!”
Uma das lendas conta que Mar Gregorios queria cruzar o rio que flui
em frente àquela igreja para visitar um paroquiano na outra margem.
Contudo, perto do atracadouro, três mulheres banhavam-se
alegremente no raso, suas roupas molhadas colando-se à pele, os gritos
e gargalhadas flutuando no ar como faixas festivas. Por pudor, ele
voltou atrás. Meia hora depois, elas continuavam lá. O santo desistiu,
murmurando consigo mesmo: “Fiquem na água, então. Vou amanhã”.
Naquela noite o diácono reportou que três mulheres pareciam
impossibilitadas de sair do rio. Mar Gregorios sentiu remorso pelas
palavras que disse tão sem pensar. Ajoelhou-se, rezou e disse ao
diácono: “Diga a elas que já podem sair”. E elas saíram.
Grande Ammachi está ali para pedir descaradamente pelo inverso:
que o santo impeça seu único filho de entrar no rio. “Sou uma viúva
com duas crianças para criar. Além disso, tenho que me preocupar com
esse garoto, que, tal como o pai, corre riscos perto da água. Nasceram
com essa Condição. Já perdi um filho para a água. Mas este está
determinado a nadar. Por favor, eu imploro. E se quatro palavras suas
— ‘Não entre na água’ — lhe permitirem viver uma longa vida em
honra de Deus?”
Ela não obtém resposta.
Philipose se assusta ao ver a mãe, seu rosto iluminado de modo
fantasmagórico pelas velas diante da tumba, conversando com a
fotografia do santo.

Na volta para casa, ela diz a Philipose: “Mar Gregorios te vigia todos
os dias, monay. Você me ouviu fazer uma promessa diante da tumba
dele, não foi? Prometi que jamais deixaria você entrar na água sem
companhia. Se desobedecer, alguma coisa ruim acontecerá comigo”.
Essa parte é verdade: ela morreria se alguma coisa acontecesse com ele.
“Você vai me ajudar a cumprir minha promessa? Nunca irá sozinho?”
“Mesmo depois de eu aprender a nadar?”
“Mesmo depois. Sempre. Uma promessa não pode ser quebrada.”
O menino se abala com a ideia de que alguma coisa pode acontecer
à mãe. “Eu prometo, Ammachi”, diz, sincero. Com frequência ela o
lembrará daquela promessa.

Quando completa cinco anos, Philipose começa a passar três horas


por dia na “escola”, uma simples cabana com telhado de palha, aberta
em três de seus flancos. No primeiro dia, ele e os outros cinco novos
alunos levam folhas de betel, noz-de-areca e uma moeda para o
kaniyan, que recebe os presentes e em seguida pega o dedo indicador
de cada uma das crianças e traça a primeira letra do alfabeto em um
thali cheio de arroz. Essa escola é criação de Grande Ammachi, para
manter as crianças longe de confusão por algumas horas e ensinar-lhes
as letras. Os pupilos — filhos e netos das famílias de Parambil e do
ashari, do oleiro, do ferreiro e do ourives — aprenderão o alfabeto.
O kaniyan é um homem careca, pequeno e inquieto, com um
calombo, ou cisto, no topo da cabeça que Bebê Mol chama de “Bebê
Deus”. Ele sobrevive lendo horóscopos para aspirantes a noivos e
noivas. As aulas lhe dão uma renda extra muito bem-vinda. Alguns
brâmanes acham que a casta kaniyan dos astrólogos e professores é de
charlatões ou de pseudobrâmanes, mas esse kaniyan não dá atenção a
esse tipo de preconceito.

Mal Grande Ammachi vira as costas, Joppan, filho do pulayan


Shamuel, surge do bosque de bananeiras onde se escondera. Pisca para
Philipose e entra na sala de aula. Os dois brincam juntos e são os
melhores amigos um do outro. Como Joppan é quatro anos mais velho,
é também o acompanhante oficial de Philipose. Quando andam por aí
abraçados, parecem gêmeos, sobretudo à distância, pois Joppan é baixo
para a idade.
Joppan leva uma folha que não é de betel, uma pedra que faz as
vezes de noz-de-areca e uma moeda talhada na madeira. Entra na sala
sem camisa, segurando os presentes e exibindo dentes fortes, o cabelo
penteado para trás com água, mas já se desgrenhando.
O kaniyan diz: “Ah ha! Então você quer estudar?”, com um sorriso
estranho. O caroço em sua moleira fica túrgido. “Pois eu ensino. Fique
ali depois do umbral. Aah, muito bem.” O kaniyan acerta as coxas do
menino com a vara de bambu. Os gritos de protesto de Philipose são
abafados pelos gritos do kaniyan: “Seu pulayan metido! Nojento! Cão
imundo! O que mais você quer? Tomar banho no tanque do templo?”.
Joppan foge correndo, mas depois se vira, incrédulo, com uma
expressão de dor e vergonha. Os outros ficam constrangidos. O menino
é o herói deles, nenhum outro tem tanta autoconfiança, nenhum
consegue cruzar o rio a nado ou matar uma cobra sem medo. Algumas
crianças (pequenos adultos que são) se deleitam secretamente com a
humilhação de Joppan.
O peito do menino se expande e ele grita com a voz de alto-falante
pela qual é conhecido: “pegue esse ovo aí na sua cabeça e coma!
quem é que quer estudar com um idiota como você?”. Essa
blasfêmia chega ao arrozal e Shamuel ergue a cabeça. Brandindo a
vara, o kaniyan se lança atrás de Jop­pan, que faz uma finta, levando seu
perseguidor a tropeçar e cair. As crianças riem com as gargalhadas
amplificadas do menino, que se retira desfilando. O professor tem um
momento de dúvida: será que foi Grande Ammachi que teria enviado o
filho do pulayan? Sabe-se que Parambil dá terrenos para seus pulayar,
mas será que esse tipo de excentricidade abrange oferecer também uma
educação a eles? Ela pode até pagar meu salário, mas prefiro morrer de
fome a educar uma criança da lama.

Em casa, Philipose chora de ódio e conta tudo para a mãe. A


hipocrisia do mundo lhe queima o rosto. Grande Ammachi abraça o
filho e o embala. Sente vergonha. A injustiça que ele testemunhou não
é culpa apenas do kaniyan. Suas raízes são profundas e tão antigas que
parecem leis da natureza, como o fluxo dos rios ao mar. Mas a dor
naqueles olhos inocentes lhe recordam o que é fácil esquecer: o sistema
de castas é uma abominação. Vai contra tudo que está na Bíblia. Jesus
escolheu pescadores pobres e um coletor de impostos como discípulos.
E Paulo disse: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre
escravizado e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês
são um só em Jesus Cristo”. Porém eles estão bem longe de serem um
só.
Ela tenta explicar a estrutura de castas de maneira simples, sabendo
que tudo soa absurdo: segundo a lei divina, os brâmanes — ou
nambudiris, como são chamados em Travancore — são a casta mais
elevada, a casta sacerdotal, e, como monarcas europeus, têm a posse da
maior parte das terras. O marajá, claro, é um brâmane. Um nambudiri
desfruta de refeições gratuitas em todos os templos, pois é uma honra
alimentar um brâmane; hospedam-se de graça nas pensões mantidas
pelo Estado. Só o primogênito nascido da união entre duas casas de
brâmanes, ou illam, pode casar e herdar a propriedade, além de tomar
para si várias esposas, como muitas vezes o faz, já em idade avançada.
Filhos que não são primogênitos apenas têm direito a uniões não
oficiais com naires, guerreiros logo abaixo dos nambudiris. Os filhos
desses relacionamentos são naires, uma casta elevada que, como os
nambudiris, se considera poluída se tiver contato com castas inferiores;
seus membros costumavam ser os feitores dos vastos territórios dos
nambudiris, mas hoje são donos de terras. Um degrau abaixo dos
nambudiris e dos naires vêm os ezhavas — artesãos que
tradicionalmente recolhiam seiva da palmeira para produzir vinho, mas
que no entanto se dedicam cada vez mais à produção de cordas ou têm
suas própria terras. A casta mais baixa são os trabalhadores sem-terra: os
pulayar e os cheruman (também chamados de adivasis, parayar ou
“intocáveis”). As populações “tribais” que vivem nas montanhas estão
fora de qualquer hierarquia de casta; seu vínculo tradicional com a
terra em que vivem, caçam e plantam nunca foi registrado em papel —
o que é uma vantagem para os recém-chegados das planícies.
“Quanto aos cristãos, monay”, diz Grande Ammachi antes que ele
pergunte, “nós vagamos por essas estratificações.” Reza a lenda que as
primeiras famílias convertidas por são Tomé eram brâmanes. Rituais
hindus continuam im­bricados aos rituais cristãos, como o pequeno
minnu de ouro, no formato de folha de manjericão, que o marido pôs
no pescoço dela no casamento; ou os princípios Vastu, obedecidos na
construção das casas. Os cristãos não se livraram do casteísmo. Em
Parambil, como em qualquer outra comunidade cristã, um pulayan
jamais adentra a casa; Grande Ammachi serve Shamuel em um
conjunto separado de vasilhas — como Philipose certamente já
observou.
O que ela não conta é que os cristãos de são Tomé nunca tentaram
converter seus pulayar. Os missionários ingleses que chegaram séculos
depois do apóstolo só conheciam uma única casta na Índia: os pagãos
que tinham de ser salvos do inferno. Os pulayar converteram-se
deliberadamente, talvez na esperança de que, abraçando Cristo, suas
famílias se igualassem às de Parambil, onde eram servos ou
empregados. Isso nunca aconteceu. Precisaram construir suas próprias
igrejas onde seguir os ritos da Igreja Anglicana ou da Igreja do Sul da
Índia. “O sistema de castas é discutido há séculos, e é muito difícil
mudá-lo”, ela diz.
O rosto do filho não esconde sua decepção com a mãe, a desilusão
com o mundo. Ele se retira. Ela quer chamá-lo. Você não pode
caminhar sobre um lago só porque decide chamá-lo de “terra”. Rótulos
importam. Mas ele é novo demais para entender. Grande Ammachi
tem a sensação de que seu coração vai se despedaçar.
O ashari, o ceramista e o ourives chamam Shamuel, que sai de sua
cabana. “Seu filho merece uma surra”, diz o ceramista. “Por que ele
achou que poderia ir pra escola? Você não ensinou nada?” Shamuel
fica parado, mortificado. Implora perdão, cruzando as mãos para
apertar os lóbulos da orelha enquanto dobra os joelhos, gesto de
obediência que faz sorrir o Bebê Ganesh. Mais tarde, Shamuel bate de
vara em Joppan com muito mais força do que fez o kaniyan, gritando
que o filho envergonhou a família — ele quer que os que vivem rio
acima escutem. O único choro que se escuta é o da mãe do garoto, que
por sua vez aceita a surra em silêncio e não parece nem um pouco
penitente. Retira-se como um tigre ferido que se mete pelo mato. Os
olhos ressentidos de Joppan deixam Shamuel temeroso. Não tem medo
do filho, mas pelo filho.

Grande Ammachi poderia insistir junto ao kaniyan para que


aceitasse Joppan como pupilo. Mas ela sabe que com isso ele pedirá
demissão, e, mesmo se concordasse, os pais das outras crianças as
retirariam da escola. No dia seguinte, as aulas do kaniyan começam pra
valer, usando o chão de terra como quadro negro. Grande Ammachi
manda chamar Joppan, mas Shamuel diz que o menino deve estar
nadando em algum lugar. Quando Philipose chega em casa, mostra à
mãe o “livro” de folha de palmeira onde o professor escreveu as
primeiras letras — a e aa, e e ee (അ e ആ, e എ e ഏ) — com um prego
afiado. No dia seguinte, outra folha será presa à anterior com um fio.
Mais tarde, ela avista Joppan com Philipose, que prepara folhas para
fazer um livro para o amigo e traça as letras na areia para que ele copie.
Sua alegria desaparece quando ela vê as marcas nas costas do menino.
Por que punir o garoto por um sistema que ele não criou? Grande
Ammachi diz a Joppan que, enquanto os outros estiverem na escola, ela
própria o ensinará a ler. Se não pode desfazer os males do casteísmo,
pode ensinar o garoto a ler. Em um ano as crianças estarão prontas para
a escola primária do governo, perto da igreja, aberta a todos. Uma
unidade de ensino secundário está sendo construída logo atrás e
atenderá várias cidades e vilas no distrito.
Joppan aprende rápido, mostra-se pontual e agradecido. Sua postura
fanfarrona segue intacta, apesar das surras. Mas Grande Ammachi sabe
que ele queria estar na sala com seus amigos. Chegará o dia em que
tanto para seu filho quanto para Joppan os estudos chegarão ao fim e
eles terão de encarar o mundo lá fora, com todas as suas hipocrisias.
27. Subir é bom

parambil, 1932

Quatro anos depois de traçar as primeiras letras com o kaniyan,


Philipose ainda precisa dominar uma habilidade mais primordial para
sua vida: nadar. Não quer se dar por vencido e todo ano, quando as
águas das inundações recuam, ele tenta de novo. Joppan, mais à
vontade na água do que em terra, é o que mais o estimula. Mas chega o
dia em que Joppan se recusa a acompanhá-lo ao rio, e não só por
trabalhar o dia todo. Foi o primeiro desentendimento entre os dois
amigos.
Quando Philipose entrou na escola primária, Joppan se matriculou
com ele. Shamuel não aprovava: de que servem as letras a um menino
pulayan? Não podia, porém, dizer isso para Grande Ammachi. Um dia,
depois da terceira série, Joppan avistou uma balsa à deriva no novo
canal perto de Parambil. Estava encalhada e cheia de água. O
barqueiro estava inconsciente de tão bêbado. De alguma forma Joppan
conseguiu liberar a balsa e então, sozinho, a conduziu com a vara até o
rio e de lá ao atracadouro em frente à feitoria do dono da balsa, Iqbal.
Agradecido, o proprietário ofereceu um emprego a ele, que aceitou.
Grande Ammachi ficou furiosa com Shamuel, como se a culpa pelo
filho ter abandonado a escola fosse dele. Mas o emprego era bom.
Ainda assim, o pai queria que o rapaz trabalhasse em Parambil e só.
Quando se aposentasse, Joppan poderia substituí-lo. Não era a coisa
mais natural a se fazer? Os amigos se desentenderam por isso. E
Philipose persuadiu Shamuel a acompanhá-lo até o rio, pois prometeu
jamais ir sozinho.

“Você acha que esse ano eu aprendo, Shamuel?”, Philipose


pergunta, enquanto os dois caminham. Tem nove anos e faz um
movimento de moinho com os braços, ensaiando uma nova braçada
que ele acredita que o fará flutuar. Shamuel não responde, apressando
o passo atrás do “pequeno thamb’ran”, tal como no passado corria para
acompanhar o ritmo do pai do menino.
Na doca, dois barqueiros estão por ali matando tempo. Os incisivos
frontais de um deles são longos como remos, o lábio superior
dobrando-se sobre os dentes. Quando veem Philipose tirando a camisa,
os barqueiros saem da letargia. “Adada! Olha só quem voltou!”, diz o
dentuço, seus gestos tão lânguidos quanto o rio vagaroso. “O Senhor
Nadador!” Philipose não escuta. Com os olhos escancarados, apertando
o nariz, o menino respira fundo e mergulha. Essa parte ele já dominou:
com os pulmões cheios de ar, sempre reaparece na superfície, embora
só tente fazer isso no raso. E, de fato, ele reaparece, seu cabelo
brilhante escorrendo sobre os olhos como um tecido negro. Agora seus
braços se agitam ferozmente: está tentando “nadar”.
“De olhos abertos”, grita Shamuel, pois sabe, desde os tempos com o
thamb’ran, que essa confusão com a água é sempre pior com os olhos
fechados. Mas o menino não o ouve. Joppan acha que Philipose não
escuta direito, mas Shamuel acredita que o pequeno thamb’ran, ao
contrário do grandalhão, só escuta o que quer.
“Aqui é raso, monay”, grita o dentuço. “Fique de pé!” Aquela
agitação tresloucada remexe a lama no fundo do rio e faz Philipose
girar em círculos, primeiro com a barriga na água, depois de costas; em
seguida mergulha, exibindo a sola branca dos pés. Shamuel se cansa
daquilo, entra no rio e endireita o menino como se Philipose fosse um
vaso caído.
Os barqueiros aplaudem, Philipose se alegra. Apesar dos olhos por
um momento vesgos, ele sorri, vitorioso, interrompendo a celebração
para regurgitar a lama que pegou emprestada do rio. “Acho que nadei
até quase a metade dessa vez, não foi?”
“Ooh, aah, mais do que metade!”, diz o dentuço. O outro barqueiro
ri tanto que quase perde seu beedi.
A expressão de Philipose murcha. Shamuel o acompanha à casa, gri‐­
tando por cima do ombro: “Por que precisam de remos, se a língua de
vocês pode fazer o serviço?”. Ele olha preocupado para o garoto, que se
mostra es­t­ranhamente calado. Não herdou a natureza taciturna do pai.
Será que o pequeno thamb’ran perdeu a fé?
“Estou fazendo alguma coisa errada, Shamuel.”
“O que está fazendo de errado é entrar na água, monay”, diz
Shamuel, severo. Ele será firme, mesmo que Grande Ammachi não
seja. “Seu pai não gosta de nadar. Você já viu ele perto da água? Seja
como ele.”
Sem perceber, Shamuel fala do grande thamb’ran como se ele ainda
estivesse trabalhando ali, no campo próximo. Afinal, seu senhor
continua presente: estão ali o cavalete, a picareta, o arado, as cercas que
os dois cavaram juntos, todos os campos que cultivaram, todas as
árvores… Como o thamb’ran não estaria aqui?
Philipose se afasta desanimado e chuta uma bola. Shamuel segue
para a cozinha.
“Ele foi mais longe dessa vez?”, pergunta Grande Ammachi.
“Mais longe lama adentro. Enfiou a cabeça no leito do rio como um
karimeen. Tirei lama dos ouvidos e do nariz dele.”
Ela suspira. “Você nem imagina como me custa deixar ele entrar no
rio.”
“Então não deixe!”
“Não posso. Prometi a meu marido. Só posso cobrar a promessa de
ele não ir só.”

Mais tarde ela encontra Philipose sentado com sua bola à sombra do
coqueiro mais antigo, cutucando com um graveto um formigueiro
abandonado. Está desolado. Senta-se com ele, bagunça seu cabelo.
“Talvez eu devesse tentar subir”, ele diz, baixinho, apontando para a
copa da árvore, “em vez de…”
Que fascinação é essa dos homens de subir ou descer, virar pássaro ou
peixe? Por que não ficar com os pés no chão? O filho a encara com tanta
intensidade que ela estremece. Ele acha que tenho todas as respostas.
Que posso protegê-lo das decepções da vida. “Subir é bom”, ela declara.
Depois de uma pausa, o menino fala. “Sabia que meu pai subiu
nessa árvore uma semana antes de morrer? Shamuel diz que nesse dia
ele tirou coco pra todo mundo!” A animação em sua voz começa a
voltar, como um arbusto ressecado se desfraldando depois da chuva.
Graças a Deus ele não herdou o silêncio do pai.
“Aah. Bem… Ele quase caiu…”
“Ainda assim, ele conseguiu subir até o céu”, o menino diz,
levantando e pondo um pé no calço talhado daquele lado do tronco,
olhando para cima e visualizando a façanha, observando onde a árvore
termina e onde começa o firmamento.
“Aah, isso é verdade…”, ela concorda.
Mas não é. Shamuel, é óbvio, não contou o que aconteceu. O
marido deixou de escalar os coqueiros no último ano de vida. Mas, uma
semana antes de morrer, algum impulso o impeliu para o alto. A árvore
lhe era tão familiar quanto o corpo das duas mulheres que lhe deram
filhos. Décadas atrás ele talhara aqueles calços que serviam de apoio.
Não foi a árvore, mas a falta de força que o traiu. Empacou ao cumprir
um quarto do caminho. Shamuel foi atrás, uma volta de corda presa
entre os pés, subindo até alcançá-lo. Shamuel tocou o pé do thamb’ran
e conseguiu fazê-lo deslizar para o próximo calço. “Aah, aah, aí. É bem
fácil, não é? Agora o outro… e deslize as mãos.” Grande Ammachi só
conseguiu respirar quando o esposo voltou à terra, o único lugar ao
qual aqueles pés pertenciam agora. “Tirei uns cocos pra você”, o
marido lhe disse, apontando vagamente atrás de si, mas não havia coco
nenhum. “Aah. Fico muito contente”, ela respondeu. Caminharam de
volta para casa de mãos dadas, sem ligar para quem os observava.
Philipose a tira do devaneio. “Acho que não quero subir nessa árvore.
Ainda é um pouco alta para mim, não é?” Ela detecta uma rara nota de
precaução na voz dele.
“Por ora, é.”
“Ammachi, se ele tinha forças para subir nessa árvore… por que
morreu?”
Essa pergunta a pega de surpresa. A seus pés, formigas-de-fogo
carregam uma folha, absortas no trabalho. Se ela soltasse uma pedrinha
em cima da folha, elas considerariam uma calamidade natural? As
formigas conversam com Deus, ou respondem a perguntas impossíveis
dos filhos?
“A Bíblia diz que vivemos sessenta anos mais dez, se tivermos sorte.
Ou seja, setenta. Seu pai estava bem perto disso. Sessenta e cinco. Sou
muito mais nova do que ele. Eu tinha trinta e seis anos quando ele
morreu.” Ela vê a preocupação no rosto dele e sabe que o menino está
fazendo as contas. “Tenho quarenta e cinco agora, monay.”
Seu filho põe o braço magrelo ao redor dela e a abraça. Ficam
daquele jeito por muito tempo.
Abruptamente, vira-se para ela e diz: “Eu nunca vou conseguir nadar
por algum motivo, não é? Meu pai também não conseguia pela mesma
razão”. A expressão em seu rosto já não é a de um garoto de nove anos.
Ao admitir a derrota, parece mais velho, mais sábio. “Que motivo é
esse, Ammachi?”
Ela suspira. Não sabe qual é o motivo. Talvez ele o descubra. Como
seria maravilhoso se sua teimosa determinação se transformasse numa
busca pela cura da Condição! Ele poderia ser o salvador das gerações
futuras. Poderia poupar os filhos dele de igual sofrimento. Por ora,
Grande Ammachi pode apenas nomear o problema, descrever o estrago
que aquilo causou na família desde tempos imemoriais. Talvez ainda
não lhe mostre a genealogia — a Árvore da Água — para não assustá-lo
com visões de uma morte prematura. Ela respira fundo e diz: “Vou
contar o que sei”.
28. A grande mentira

parambil, 1933

Um menino de dez anos que não pode conquistar a água volta-se


ferozmente para a terra. O ceramista sai à caça de barro aluvial azul nas
margens dos rios, já o fazedor de ladrilhos mergulha em afluentes rasos,
de cesta na mão, enchendo o barco com lama de rio, descartando
qualquer outro material. Philipose tem gostos ecléticos; com os dedões
preênseis dos pés, calibra as proporções de areia, barro e lodo. No que
diz respeito à sensação das solas dos pés, o solo arenoso acolchoado ao
lado da igreja é imbatível, contrastando com o laterito vermelho
impenetrável perto do poço de Parambil. O torrão rico em granito perto
da escola tem cor de sangue diluído e é tão frio quanto o aperto de mão
do diretor; no entanto, essa variedade, quando pisada, filtrada e
ressecada no papel, deixa manchas vívidas e cromáticas. Fazendo
experiências como um alquimista, o menino chega a uma fórmula para
uma tinta que cintila na página mais do que qualquer marca conhecida
e torna a escrita prazerosa. A receita final inclui carcaça de besouro
amassada, groselhas e algumas gotas de um frasco com um fio de cobre
embebido em urina humana (a sua).
Como seu falecido pai, ele caminha distâncias prodigiosas. Que os
outros sejam levados à escola de barco impulsionados por varas, remos
ou motores. Ele vai a pé. Sim, podem dizer que o menino tem uma
questão com a água. Não perdeu a vontade de ver o mundo. Em todo
caso, evitará os sete mares. Quem caminha vê mais e sabe mais, é o que
diz a si mesmo. Só os que caminham poderiam travar amizade com o
lendário “sultão pattar”, que está sempre sentado sobre uma galeria em
frente ao grande tharavad dos naires. Pattar é o termo para brâmanes
tâmeis que migraram de Madras para Kerala. O apelido de “sultão”
vem da forma peculiar como ele enrola seu thortu em volta da cabeça,
deixando um pequeno rabo de pavão de sobra. O que faz dele uma
lenda é seu jalebi. Convidados de um casamento logo esquecem se a
noiva era bonita ou se o noivo era feio, mas nunca deixam de se
lembrar da sobremesa preparada pelo sultão pattar, que arremata a
festa. Em certas manhãs o pattar oferece ao jovem caminhante um
pedaço de jalebi que sobrou das festividades da noite anterior. Ao longo
de mais de um ano Philipose implora pela receita secreta. Um dia, sem
avisar, antes que o garoto possa anotá-la ou memorizá-la, o pattar
desembucha a fórmula, como um sacerdote recitando uma shloka em
sânscrito. Foi inútil, pois as medidas do pattar para a farinha de grão-de-
bico, o cardamomo, o açúcar, o ghee e sei lá mais o quê eram todas em
baldes, barris e carros de boi.

Certa tarde, quando o caminhante está voltando para casa, uma voz
em pânico lhe grita às costas: “Saia da frente!”. Uma bicicleta passa por
ele com grande estrépito, quicando no barro ressecado dos sulcos
talhados pelas rodas das carroças. O ciclista de cabelo branco salta
momentos antes de o veículo se esborrachar contra o aterro. Philipose o
ajuda a se levantar. Os óculos do menino estão tortos, a lama sujou seu
mundu, mas pelo menos a caneta ainda está no bolso da camisa. O
bigode grisalho e cerrado do ciclista alcança seu lábio inferior. “Sem
freio!”, ele declara. Um hálito de álcool acompanha o pronunciamento.
O homem se levanta, ergue a bicicleta e apruma o guidão, depois dá
um tapinha na caneta presa ao bolso de Philipose e pergunta, mas em
inglês: “Que modelo é esse? Sheaffer? Parker?”.
Philipose responde em malaiala: “Nada tão chique assim. Mas o que
importa é a tinta, e essa eu batizei de Rio de Cobre Parambil. Feita à
mão por mim mesmo a partir de um filtrado de solo de laterito, cobre e
ureia”. Sem revelar a fonte da ureia, esboça um desenho no caderno
como demonstração. As sobrancelhas do ancião, que fazem frente ao
bigode, se alçam. “Humm!”, ele exclama, agitando a trinca peluda.
Quase um quilômetro mais tarde, Philipose revê o ancião, agora sem
camisa, parado no topo de uma escada íngreme que leva a um
barracão. Ele discursa em inglês numa voz poderosa, como se falasse a
uma multidão, embora não haja ninguém por ali além de Philipose.
“Canhão à direita deles, canhão ao fundo…” é tudo que o garoto
consegue compreender. Contudo, para seus ouvidos, aquele inglês soa
melodioso e convincente, bem diferente do inglês do mestre Kuruvilla,
que ecoa parecido com o malaiala do próprio mestre Kuruvilla, com
palavras pisando no rabo umas das outras —
“Ocachorroestásempreseguindoomestre” ou
“AderrotadeNapoleãoemWaterloo” —, sempre intercaladas por um
“nayinte mone” (filho da puta) e outras expressões em malaiala que
sugerem que seus pupilos têm casca de coco no lugar do cérebro.
Philipose julga autêntico o inglês daquele homem, o idioma do
progresso, da educação superior, ainda que seja a língua dos
colonizadores.
“Menino da Tinta!”, ele grita em inglês, enquanto volta a amarrar o
mundu logo abaixo dos mamilos. “Bom samaritano! Identifique-se, meu
bom camarada.”
“É comigo que o Saar está falando?”, pergunta Philipose, em
malaiala.
“em inglês!”, o outro ruge. “Conversaremos apenas em inglês. Qual
é sua graça?”
“MechamoPhilipose, Saar”, responde o garoto, torcendo para que
aquilo corresponda à sua graça.
“Senhor! Não Saar.”
Philipose repete. O bigode se agita. “Muito bem, suba. Vamos
começar.”

“Ammachi!”, Philipose grita animado, invadindo a cozinha. “Saar


Koshy tem estantes cheias de livros em todas as paredes. E pilhas de
livros dessa altura no chão!”
Grande Ammachi digere aquilo. A “biblioteca” dela tem duas
Bíblias, um livro de orações e pilhas de antigos Manoramas. Ela sabe
quem é Saar Koshy, porque junto com os peixes frescos da vendedora
chegam sempre as fofocas mais recentes. Koshy terminou seus estudos
pré-universitários em Calcutá, depois trabalhou num escritório por
muitos anos. Durante a Primeira Guerra Mundial, tentado pelo bônus
e pelo salário, alistou-se. Retornou outro homem. Depois estudou no
Madras Christian College e lá permaneceu como professor. Agora
voltou com uma pequena pensão e mora na casa de seus ancestrais,
numa pequena propriedade afastada, com um terreninho onde
consegue cultivar mandioca e outras ninharias.
Odat Kochamma, de pé atrás dele, se mete na conversa: “Viu a
mulher dele, monay?”. Philipose não a ouve. Ela lhe dá uma batidinha
no ombro e repete a pergunta.
“Ooh-aah. Vi, sim. Saar me mandou buscar chá pra gente. Ela
perguntou de onde eu era, que família, tudo isso. Saar gritou da sala
em inglês: ‘Aquela mulher está te perturbando?’. Ela respondeu em
malaiala” — Philipose a imita — “‘Seu rato velho, se falar comigo em
inglês, você que faça seu chá!’”
“Rato velho”, diz Bebê Mol, caindo na gargalhada.
“Coitada dessa senhora”, diz Grande Ammachi.
“Você não sabe o que diz”, corrige Odat Kochamma. “Conheci
Koshy na infância. Tão inteligente… Ayo, e bem bonito, de farda, antes
de ir para o estrangeiro. Botas reluzentes, cinto e athum ithuk okke”, ela
diz, suas mãos flutuando pelo corpo para sugerir uma barafunda de
botões, medalhas e dragonas. Estufa o peito como um pombo e se põe
em posição de sentido, mas as pernas tortas e a corcunda lhe dão um ar
cômico. Bebê Mol a imita, e as duas se saúdam. Odat Kochamma
suspira. “Quando ele era menino, teve propostas bem mais
interessantes… Por que casou com ela não me entra na cabeça.” Um
corvo grasna no telhado. “Talvez Deus entenda. Eu, não.”
Notando os olhares em sua direção, ela diz, rispidamente: “O quê?…
Só estou dizendo que, se cérebro fosse óleo, o dela não dava para
acender um lampiãozinho.”
“Você a conhece?”, Philipose pergunta, confuso.
“Aah, Aah. Não precisa. Algumas coisas eu simplesmente sei.”
Philipose declara: “O Exército Britânico deixou que ele ficasse com
a bicicleta. Diz ele que vale mais do que um dote. Ele lutou em
Flanders. Ficou irritado por eu nunca ter ouvido falar em Flanders. Ah,
e me emprestou este livro. Disse que a vida humana inteira está
resumida nele”.
Bebê Mol, Odat Kochamma e Grande Ammachi espiam o livro ao
mesmo tempo. “Não parece ser uma Bíblia”, diz sua mãe, desconfiada.
O texto é denso e tem ilustrações, mas os versos não estão numerados.
“É a história de um peixe gigante. Tenho que ler dez páginas até a
semana que vem. E anotar todas as palavras que não conheço. Ele me
emprestou este dicionário. Saar diz que o livro vai melhorar meu inglês
e me ensinar tudo sobre o mundo. No próximo encontro preciso estar
pronto para discutir o que li.”
Grande Ammachi não consegue evitar certa inveja. Agora que o
filho desistiu de nadar, voltou sua curiosidade para aprender tudo mais
que há no mundo, como uma espécie de vingança. Sua fome por
conhecimento há muito eclipsara o que Parambil tinha a oferecer. A
escola mal dava conta. Koshy Saar é sem dúvida mais educado e sabe
mais coisas do que os professores de Philipose. Assim, ela vê o menino
esfomeado sendo alimentado, embora não por suas mãos.
“Ele espera ser pago?”
“Com um fornecimento regular da Rio de Cobre Parambil, minha
tinta.”
Odat Kochamma diz: “Aah. Só não conte tudo que você bota nessa
tinta, é só o que digo”.
Na semana seguinte, Philipose volta ainda mais animado.
“Ammachi, ele consegue recitar de cor páginas inteiras do livro! ‘Não
pense, é meu décimo primeiro mandamento; e durma quando pode é o
décimo segundo.’”
Aquele tipo de conhecimento a preocupa. “E daí que ele decorou
esse livro? Odat Kochamma sabe recitar o Evangelho de João inteiro,
mesmo sem saber ler. Era assim que ensinavam no passado, não é?”,
ela argumenta, voltando-se para a velha e tentando defender o único
livro que Philipose devia estar tentando memorizar. Mas Odat
Kochamma está mais interessada no relato do garoto.
“Saar só me fez uma pergunta: ‘Quem está contando a história?’. A
resposta é Ismael! É o que diz na primeira linha. Ismael é o ‘narrador’.
Sei que meu inglês vai melhorar, pois ele não me deixa usar uma só
palavra em malaiala.”

Por muitas semanas a família se reúne para ouvir Philipose traduzir,


ou então resumir, as páginas de Moby Dick que teve de ler. Quando ele
diz “Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão
bêbado”, elas caem na gargalhada. Grande Ammachi fica
escandalizada com a narrativa, mas também enfeitiçada. Certa manhã,
tão logo Philipose sai para a escola, ela decide examinar de novo a
ilustração do selvagem tatuado, Queequeg. Vai ao quarto do filho e dá
de cara com Odat Kochamma e Bebê Mol debruçadas sobre o livro.
“Ele é um pulayan, esse Cuic-achine!”, diz Odat Kochamma. “Quem
mais lê o destino nos dados? Quem mais constrói o próprio caixão?
Lembram quando Paulos pulayan se convenceu de que um demônio
estava grudado nas costas dele? Ele não conseguia fazer nada para se
livrar, então se enfiou numa fresta nas rochas, tão estreita que o diabo
não poderia seguir ele…”
“E perdeu metade da pele e quase morreu de picadas de formiga”,
Grande Ammachi diz.
“Aah. Mas ele saiu de lá sorrindo. O diabo soltou.”
Até então, o transcurso dos anos em Parambil se media com a Páscoa
e o Natal, os nascimentos e as mortes, as inundações e as secas. No
entanto, 1933 é o ano de Moby Dick. Lá pela metade do livro, Grande
Ammachi quer que Philipose pergunte a Koshy Saar se essa história
não é inventada. “É divertida. Mas não é tudo uma grande mentira?
Pergunte a ele.”
A resposta de Koshy Saar é indignada: “É ficção! A ficção é a grande
mentira que diz a verdade sobre o mundo!”.

Como se tivessem combinado, a monção chega a Travancore bem


na parte em que o Pequod afunda. Em Parambil, ninguém repara na
chuvarada, pois o caixão de Queequeg virou a tábua de salvação de
Ismael, enquanto Queequeg é visto pela última vez agarrando-se ao
mastro. Quatro cabeças se encolhem debaixo do lampião, debruçadas
sobre um livro que apenas uma delas consegue ler. “Deus os guarde”,
diz Odat Kochamma assim que ter­minam; Bebê Mol fica triste, Grande
Ammachi faz o sinal da cruz. Ela aprendeu a amar Queequeg. Pensa
em Shamuel, em como aquela palavra, pu­layan, o diminui, quando na
verdade, tal como Queequeg, ele é superior a quase todos os homens
que ela conhece. A bondade em seu coração, o caráter industrioso, o
empenho em fazer as coisas corretamente seriam qualidades que muito
serviriam aos gêmeos — Georgie e Ranjan —, por exemplo. Ela já não
sente culpa por seu fascínio por essa “mentira que diz a verdade” que
Moby Dick é.
“Koshy Saar não acredita em Deus”, Philipose confessa na noite em
que volta da aula com um livro novo. Fica evidente que ele vinha
mantendo segredo sobre o ateísmo do mentor até que terminassem
Moby Dick. Há certa culpa em seu rosto, medo de que a mãe ponha
um fim às suas visitas, mas agora ele tirou um peso da consciência.
Ela espreita com avidez o novo livro nas mãos do filho — Grandes
esperanças —, o romance que definirá 1934, tal como Moby Dick
definiu 1933. “Bem, Koshy Saar pode não crer em Deus, mas que bom
que Deus acredita naquele velho. Por que mais Ele ia botar esse
homem na sua vida?”
29. Milagres matinais

parambil, 1936

Certo dia de chuva forte, Grande Ammachi se enche de incertezas


quando seu adolescente se arrasta para a escola, adentrando a escuridão
nas primeiras horas da manhã. Em seus ombros sonolentos, ela não
reconhece sinal do marido. O filho é mais delicado — mais broto do
que tronco. Ela quer chamá-lo de volta, pois ao sair ele cruzou o
umbral com o pé esquerdo — para que dar chance ao azar? Só que
convocar uma pessoa de volta quando ela já embarcou numa viagem
traz ainda menos sorte.
“Ammachi?”, ouve atrás de si. É sua filha que começa a despertar.
Ela espera ansiosa o que Bebê Mol dirá. Além de antecipar visitantes, a
filha tem o dom de prever tempo ruim, desastres e mortes. “Ammachi,
o sol está saindo!” Grande Ammachi respira aliviada. Nos vinte e oito
anos de vida de Bebê Mol, o sol nunca deixou de sair, e no entanto
toda manhã o retorno do grande astro a deixa extática. Ver o milagroso
no comezinho é um dom mais precioso do que a profecia.
Depois do café da manhã, Bebê Mol estende sua palma larga, e
Grande Ammachi conta três beedis. Nenhuma cristã que se respeite
fuma, mas algumas mascam tabaco, e as senhoras mais velhas não
abrem mão de suas caixinhas de ópio. Não se sabe quem introduziu
Bebê Mol ao hábito do beedi, e ela não conta. Mas a alegria que aquilo
lhe dá torna difícil negar-lhe sua porção de três beedis por dia. Sua mãe
não pode imaginar um mundo em que a filha não esteja sentada no
banco da varanda, o rosto engelhado sorrindo enquanto canta para as
bonecas de pano. O muttam é o palco que a distrai. Quando o arroz
escaldado é posto para secar, espantalho nenhum se equipara à sua
vigilância.
“Onde está meu bebezinho?”, pergunta Bebê Mol. Sua mãe a
lembra de que ele foi para a escola. “Que bebezinho lindo ele é!”,
Bebê Mol diz, entre risinhos.
“Verdade. Mas não tão bonito quanto você.”
Bebê Mol ri alto, um som rouco de alegria. “Eu sei”, declara,
modesta.
Mas de repente uma sombra cruza seu rosto e ela diz: “Alguma coisa
aconteceu com nosso bebê!”.

Quando Philipose sai de casa para ir à escola, o céu está baixo e


pesado como lençóis molhados no varal. As escarpas altas e cheias de
musgo em ambos os flancos formam um túnel escuro. À frente, um
relâmpago esboça um objeto sinuoso, com aspecto de corda. Ele
congela até se alegrar por não ser nada vivo. Apenas um graveto.
Seu cérebro de treze anos ainda carrega a lembrança de quando
tinha sete e brincava com César entre as árvores-da-borracha. O
pequeno vira-lata corria de um lado a outro, inclinando-se sobre as
patas dianteiras, sorrindo e desafiando Philipose a acompanhar seu
ritmo. Abanava o rabo tão vigorosamente que sua traseira parecia
prestes a se descolar, até que ele se lançava de novo na carreira,
delirando de alegria. Naquele dia, de repente seu companheiro deu um
salto no ar, como se tivesse pisado numa mola. O Éden acabou.
Philipose conseguiu ver algo se movendo e ouviu um som de bicho se
arrastando no mato. Era uma eetadi moorkhan, ou “serpente dos oito
passos”. Oito passos é tudo que resta a quem é picado, e isso se a pessoa
for rápida. César conseguiu dar quatro passos. “Cachorros têm nome”,
ele diz, amargamente, sentindo a dor da morte do cão como se tivesse
acontecido ontem e retomando o diálogo que travou com um gato que
apareceu na cozinha, de olho no karimeen — o lanche que a mãe havia
lhe preparado. “Um cachorro vive por você. Um gato apenas vive com
você.”
Sua gola está úmida, sua camisa se gruda à pele enquanto ele
caminha ao longo do canal transbordante. Sente uma presença atrás de
si; uma onda de arrepios corre por seus braços. Não deixe Satã dominar
sua vontade, pois ele o arrastará para a perdição. O garoto diz em voz
alta o que a mãe lhe ensinou: “Deus está no controle!”. Volta-se para
ver uma forma sinistra na água, bloqueando o céu. Uma grande balsa
de arroz para aos poucos. Está atracando. De acordo com Joppan, os
balseiros debochados que ele gerencia tem atracadouros secretos onde
mulheres lhes vêm vender companhia e bebida, aliviando-os de seus
salários e surrupiando carga. Philipose tem inveja de Joppan, que, no
lugar da chatice da escola, desfruta de entardeceres no lago Vembanad
e de filmes nos cinemas de Cochim e Quilon. Joppan sonha em
motorizar essas balsas e revolucionar o transporte de mercadorias;
segundo ele, ninguém pensou nisso, pois os canais são rasos e as balsas
são antiquíssimas, mas Joppan esboçou desenhos detalhados que
mostram como esses motores poderiam ser adaptados.
O canal se alarga e se bifurca ao redor de uma ilhota, a água alcança
os pés das duas novas igrejas ali construídas. O que havia sido uma
única congregação pentecostal dividiu-se em duas quando os ânimos se
exaltaram, como fogo na palha. Depois de trocas de socos, o grupo
dissidente construiu a própria igreja em sua parte do terreno. As igrejas
ficam tão próximas que os sermões de domingo se confundem.
Agora Philipose ouve, muito mais alto do que o normal, o rugido do
rio principal mais à frente, onde o canal deságua. Sente um estrondo
sob os pés. Ele se lembra de Shamuel dizendo que inundações rápidas
haviam carcomido as margens dos rios, o que explica por que a balsa
resolveu atracar. Gotas de chuva grossas abrem pequenas crateras na
terra vermelha, batendo re­pe­tidamente contra seu guarda-chuva. O
menino se abriga debaixo de um aglomerado de palmeiras. Vai se
atrasar para a escola. Tem duas opções: ficar seco e levar bronca por
chegar atrasado, ou chegar pontualmente, mas encharcado até os ossos.
De todo modo, os nós de seus dedos sofrerão nas mãos de Saaji Saar,
que é professor de matemática e técnico do time de futebol na St.
George’s Boy High School. O atletismo de Saar se mostra na forma e
na perícia com que lança um pedaço de giz ou acerta um tapa na
cabeça de um aluno. Como Philipose pode atestar, conhecendo isso na
pele, o golpe chega sempre de surpresa. “Eu não estava desatento”, ele
diz para Grande Ammachi. “Saar murmura as coisas! Como entender o
que ele fala quando está de frente para o quadro?” A mãe visitou Saar e
insistiu para que Philipose se sentasse na frente, pois ele sofre para
escutar dos fundos. Com isso suas notas subiram, ultrapassando até
mesmo Kurup, que em geral é o primeiro em tudo. Em contrapartida,
virou alvo fácil para as bolinhas de papel mastigado que o atingem
pelas costas e para os ataques frontais de Saar. Philipose está ficando
conhecido na escola, e não pelos melhores motivos.

Há, contudo, uma terceira opção. “Encha o estômago e decida


depois!” Ele desembrulha o lanche. “Caí na tentação”, diz em voz alta,
para a mãe. Contempla, meditativo, a crosta deliciosamente escurecida
e os sabores de pimenta, gengibre, alho e malagueta. Sua língua busca
as belas espinhas do karimeen, o peixe frito, que é como a natureza
pode dizer: Calma, saboreie.
Nesse momento, um som aterrorizante mas humano lhe fere os
ouvidos. O naco de peixe em sua boca vira barro. Seus cabelos se
arrepiam. Um homem chora.
Uma figura de tanga bate no peito, se lamuriando para os céus.
Philipose reconhece os incisivos frontais que erguem o lábio superior
como as estacas de uma tenda. É o barqueiro do atracadouro perto de
sua casa, um homem que até hoje gosta de provocar Philipose,
chamando-o de “Senhor Nadador”. Hesitante, o menino caminha na
direção dele. A piroga do barqueiro, um palito oco, está largada na
margem. É com ela que ganha a vida, transportando passageiros
solitários como a vendedora de peixe e sua cesta. Quando o rio está
daquele jeito, ele sofre para encher a barriga… Ei, o que é aquela
trouxa aos pés do homem? Um bebê! Philipose vê o rosto pequeno,
inchado e imóvel, os olhos iguais aos de César no dia em que morreu.
O bebê foi picado por uma ettadi?
O barqueiro desesperado bate a cabeça contra uma palmeira até que
Philipose o segura. Ele se vira, o rosto amedrontado, os olhos
ensandecidos, vermelhos como os de um mangusto. Demora para
compreender a figura que paira diante dele, um menino que tem
metade de sua idade. O barqueiro o reconhece.
“Foi cobra?”, Philipose pergunta, docemente.
O barqueiro balança a cabeça e torna a chorar. “Monay… Faça
alguma coisa, por favor. Você tem educação… Salve o bebê!”
Philipose se agacha para olhar melhor, desejando que o barqueiro
pare de gritar. Educação? Numa ocasião dessas, o que vale o que ele
aprendeu na escola? O garoto toca com cuidado o peito do bebê e se
assusta quando ele se agita, com esforço. Mas nenhum ar parece passar
pelos lábios do infante, cujo pescoço está estranhamente inchado.
Alguma coisa branca, como o látex coagulado de uma árvore-da-
borracha, se projeta por trás da espuma da saliva.
“Pare! Por favor!”, ordena Philipose ao barqueiro que não para de
chorar. Dominando sua repulsa, Philipose enfia o dedo indicador na
boca do bebê. A pele branca borrachosa sangra nas bordas. Ele puxa, e,
de início, a coisa sai fácil; é preciso arrancar a última parte. O pequeno
peito se agita, e agora há um rumor de ar — o som da vida! Aquilo foi
puro bom senso, não educação. Era só remover o que engasgava. No
entanto, depois de alguns suspiros, o bebê parece sufocar, o peito
cresce imensamente, a boca se abre e fecha como a de um peixe, mas o
ar não entra. A visão é agonizante, desesperadora — sua própria
respiração lhe parece dolorosa. Ele enfia o dedo mais fundo dessa vez e
puxa um grande naco de casca borrachosa cheia de sangue. O ar entra
com um grasnado de ganso, sua passagem é ruidosa, como se houvesse
pedrinhas soltas na traqueia.
“Saar! Eu sabia! Eu sabia que você podia salvar meu filho!”
Nada de “Senhor Nadador” agora? Agora eu sou Saar? Ele diz para o
barqueiro: “Escute. Temos que levar o bebê para uma clínica”.
“Como, com o rio desse jeito?”, diz o homem, aos prantos de novo.
“E sem dinheiro e…”
“Pare!”, Philipose o interrompe, gritando. “Não consigo pensar com
seus gritos.” Mas o barqueiro não para. Aquele lamúrio enlouquecedor
e a luta desesperada do bebê por ar deixam Philipose num frenesi. No
instante seguinte, esquecendo de sua questão com o rio, Philipose toma
o bebê nos braços e empurra o barqueiro com tanta força que o
homem tomba de volta na piroga. Antes que ele possa se erguer,
Philipose joga o bebê no colo do pai e empurra o barco para o rio,
saltando para dentro da embarcação no último momento. “Vamos!”,
grita Philipose. “Reme!”
“Meu Deus! O que você fez?”, grita o barqueiro. Philipose tira o
bebê dele, e o barqueiro automaticamente se agacha procurando os
remos no fundo da canoa, enquanto a corrente sacode a piroga e
ameaça virá-la. Por reflexo o barqueiro faz a única coisa que pode
mantê-los em curso: aponta a proa para a corrente. Num piscar de
olhos, eles se veem nas garras do rio, navegando em seu centro a uma
velocidade atordoante. Olhando para o lado, Philipo­se vê a água
espumando na margem, devorando ainda mais a areia. “Vamos
morrer!”, o barqueiro grita.
Philipose grita de volta: “Reme, reme!”. A água do céu martela sem
parar. O rugido do rio é alto, seus gemidos soam humanos. A canoa
sobe e desce, Philipose sente o estômago chegar à boca, mas ele precisa
segurar o bebê com firmeza para que ele não voe pelos ares. É possível
viajar nessa velocidade? Uma larga parede de água se eleva de um lado,
e a onda quebra dentro da canoa. O que era um rugido se transforma
num sibilo ainda mais alto, é como se a água risse daquela desfaçatez.
Pela primeira vez na vida Philipose sente terror de verdade.
“Shiva, Shiva!”, grita o barqueiro. “Vamos morrer!”
Ammachi, quebrei minha promessa. Verdade seja dita, ele não entrou
na água sozinho, porém um barqueiro inútil não conta. Mas, veja, não
estou na água, apenas sobre ela. O barqueiro inútil desistiu de remar e
agora deixa o barco à deriva de um lado a outro, ao sabor do rio. Ao vê-
lo Philipose se enfurece, orgulhoso demais para confessar seu medo ou
reconhecer seu equívoco. Aproxima-se do barqueiro e o estapeia com
toda força. “Mostre alguma coragem, idiota! Mantenha o barco
aprumado! Você só serve para zombar de mim quando nado? Não quer
salvar seu filho? Reme!”
O barqueiro afunda o remo na água, grossa e nervosa como arroz
cozinhando. Com uma das mãos Philipose tenta escoar a água
freneticamente. Quando olha para baixo, vê que o bebê parou de
respirar de novo. Sem olhar, enfia dois dedos na pequena garganta,
sentindo dentes de leite lhe raspando os nós dos dedos. Crava as unhas
em outra porção de material borrachoso até sentir o ar passando por
seus dedos. O peito volta a se mover.
O fim deve chegar a qualquer momento, mas, só Deus sabe como,
seguem a todo vapor. Passam voando pelas árvores paradas nas
margens, movendo-se mais rápido do que um trem em aceleração.
Philipose não para de tentar escoar a água. Por quanto tempo aquilo
pode continuar? Há quanto tempo estão no rio? Quando o barco vai
virar?
O pesadelo parece não ter fim, até que, de repente, numa curva
fechada, a piroga gira, afastando-se do centro do rio, e é sugada de ré
para um canal de águas turbulentas. Eles se chocam contra um
obstáculo oculto — um atracadouro submerso na base de uma
escadaria de pedra. A canoa se estraçalha. Philipose pula da
embarcação, erguendo o bebê sem fôlego para o alto. No último
segundo, o barqueiro aturdido pula para a margem, e o quique de seu
pulo impele a canoa como um dardo para o canal e depois para a
confluência efervescente, onde é imediatamente tragada. Ao ver isso,
Philipose se põe a tremer. Não de frio, mas de raiva da própria
estupidez. Ele poderia ter morrido! O caixão flutuante de Queequeg
lhe vem à cabeça: o caixão salvou vidas, mas não a de Queequeg.
Apertando a criança, com as pernas bambas, Philipose cambaleia
pela escada íngreme e lisa de laterito, talhada na margem; o barqueiro
o segue, ofegante. Os degraus terminam num portão de madeira.
parte quatro
30. Dinossauros e montanhas

fazendas allsuch, travancore-cochim, 1936

A memória que Digby tem do inferno, de Celeste se contorcendo no


sári de seda flamejante, qual uma criança brincando com a roupa da
mãe, da fumaça lhe queimando a traqueia quando ele grita, do
estrondo das portas derrubadas e das mãos que o arrancam de lá, tudo
se dissolve na agonia de sua hospitalização. Ele está coberto de ataduras
e sedado, mas o fogo, penetrando a névoa da morfina, ainda devasta e
arde por mais cinco dias. Vê o rosto de Celeste, mascarado pelo tecido
que derrete, se revirando de medo enquanto ele luta para alcançá-la.
Suas narinas estão tomadas pelo fedor de açougue, do pelo
chamuscado da carcaça de um animal. Quando tosse, cospe partículas
de fuligem; a voz rouca que grita o nome dela já não é a dele. Mente e
corpo se separam. A dor atroz é ainda menor do que a dor que ele
merece. Não tem ideia do alcance das queimaduras. A lesão terrível,
mortal, é a lesão em sua mente, que jaz estilhaçada. Ele já não pode ser
reconhecido como Digby de Glasgow; Digby, o filho fiel; Digby, o
estudante de medicina dedicado; Dig­by, o cirurgião de mãos boas.
Cada rosto que paira sobre sua cama — Honorine, Ravi, Muthu, o
estagiário cujo lábio leporino ele operou em sua vida prévia — ferem-
no de vergonha. Vergonha por desapontá-los. Vergonha porque ele é
Digby, o adúltero; Digby, o assassino. A vergonha o persegue desde que
desperta. Deseja se arrastar para uma caverna onde a luz não entre,
onde seja poupado do olhar alheio, sobretudo dos amigos que o
perdoam. Se pudesse deixar a raça humana e virar o verme que merece
ser! Diante de seu estado mental, os amigos se desesperam.
No sexto dia depois do incêndio, antes da aurora, ele se levanta.
Estremecendo de dor, retira as ataduras. Sob o brilho de uma lâmpada
que permanece acesa a noite inteira, cataloga suas feridas. O dorso da
mão esquerda o assusta: do pulso ao nó dos dedos a anatomia está
exposta, veem-se as resplandecentes tiras dos tendões numa moldura de
carne queimada. Não fosse a escara escura na superfície, seria uma
ilustração de A anatomia de Gray. Não dói, portanto deve ser uma
queimadura de terceiro grau, a mais profunda, que destruiu os nervos
cutâneos. Durante o incêndio ele deve ter cerrado o punho por reflexo,
expondo o dorso da mão e poupando a palma e os dedos. Na esquerda,
o fogo queimou tanto as superfícies dorsais quanto palmares, a pele é
de um vermelho vivo, tomada de pus e bolhas, os dedos como salsichas,
duas vezes maiores do que o tamanho normal. Devem ser queimaduras
de primeiro e segundo grau, os nervos estão intactos: a dor é
lancinante. Um dia a pele da região vai se regenerar, embora com
cicatrizes. O mesmo não se pode dizer da mão direita.
Suas costas doem, decerto estão queimadas. Nu, aproxima-se,
hesitante, do espelho, tentando não gritar de dor, o quarto girando.
Quem é essa criatura chamuscada sem cílios, sem sobrancelhas nem
cabelo, as orelhas em couve-flor como as de um pugilista? Uma
criatura sem pelos, meio humana, meio estegossauro, o olha de volta.
Ela diz: Você já está metade grelhado, o melhor é terminar o serviço.
Pode esquecer aquele testemunho cheio de moralismo, não acontecerá,
não com o sangue dela em suas mãos. E ninguém terá pena, seu imbecil.
Os corações sangrarão pelo pobre viúvo, não por você. Fuja! Corra!
O céu se ilumina. Ele vê uma figura na esteira a um canto.
“Muthu”, sussurra, e a figura se levanta de imediato. “Muthu, por
favor, eu imploro. Não posso ficar aqui.”
Descalço, envolto num único lençol, sem as ataduras, ele sai
furtivamente, com o auxílio de Muthu. A viagem de riquixá é
excruciante. Numa pensão perto da Estação Central, o camarada na
recepção se assusta com o hóspede fantasmagórico que talvez seja um
homem branco. Muthu se apressa em cumprir as orientações de Digby.
Ao anoitecer, Digby, agora com ataduras novas, uma camisa folgada
e mundu, estende-se no vagão de bagagens do Shoranur Express. Nessa
fuga, Owen Tuttleberry não é condutor de locomotivas, mas
acompanhante, engolindo sua inquietação. Lacrimoso, Muthu se
demora desesperado na plataforma. Owen diz: “Se minha senhora
descobrir que menti, vai me dar um belo jhaap na cara. Certeza que
ela acha que tenho outra”. Ele esconde sua decepção: o açougueiro
Claude Arnold, que matou Jeb, escapará, pois a principal testemunha
se deitava com a mulher dele.
Franz e Lena Mylin — e Cromwell, o motorista — vão para a
estação, tendo dirigido de AllSuch até lá no escuro. Acomodam o
fugitivo desacordado e drogado no banco de trás e depositam sua bolsa
com ataduras, pomadas e ópio no chão do carro. Ele geme, mas não
fala nada durante a viagem de três horas na estrada sinuosa que leva à
cordilheira dos Gates. AllSuch tem um chalé para hóspedes. Com
bastante cuidado deitam Digby na cama. Ele dorme o dia inteiro.
Ao fim da tarde, Lena e Franz batem à porta. Digby abre, um lençol
de cama lhe cobre a cabeça e o corpo. Olha com pupilas dilatadas para
o homem de bermuda cáqui, camiseta e chinelos que está parado atrás
do casal.
“Este é Cromwell”, diz Lena. “Ele estará aqui para ajudá-lo com
tudo que…”
“Não é preciso, me arranjo sozinho!”, Digby diz, ríspido.
Reconhecendo sua grosseria, pede desculpa e baixa a cabeça. Ele lhes
deve uma explicação. A vergonha, ele diz, sem meias palavras, era mais
dolorosa que as queimaduras. Tinha de fugir de Madras. A
hospitalidade do casal foi um presente dos deuses. Digby implora que
não digam que ele está lá. “Um dia eu os recompensarei. Preciso de
suprimentos. Pinças — as melhores que conseguirem encontrar. E boas
tesouras. Álcool para desinfectar. Uísque serve. Mais ataduras como
esta. Petrolato. E lâminas de barbear.”

Lá no alto das montanhas, sem nenhum rosto que espelhe sua


vergonha, ele pode pensar. Uma crosta preta e grossa já se formou no
dorso da mão direita. Se não a remover, a escara endurecerá como
pedra até cair, quando então o corpo preencherá o buraco com tecido
de granulação, que se firmará como uma cicatriz grossa, com aspecto
coriáceo, que aprisionará os tendões eternamente. Digby dá início ao
processo tão logo as pinças chegam; usa lâmina de barbear quando
necessário, e trabalha a ferida até que os tendões e os músculos
pareçam limpos. Os nervos mortos garantem a ausência de dor só até
certo ponto: nas bordas, o tecido sangra e a dor é intensa.
Ele muda os móveis de lugar para o que precisa fazer em seguida, se
quer ter alguma esperança de reaver a função da mão direita. Para se
manter alerta, evita a dose de ópio; é a mão esquerda que deve ajudá-lo
agora. Imobilizando a coxa direita entre a penteadeira e o canto da
mesa, repuxa um pedaço de pele — sua “área doadora”. Depois de
limpá-la com álcool, corta um naco do tamanho de um botão. A dor é
absurda, intolerável. Grita e engole uma dose de uísque. As pinças
tremem entre seus dedos ao recolher a pele recortada, que ele deposita
na superfície crua do dorso da mão direita, aplainando-a
delicadamente. Por uma hora os anfitriões escutam seus gritos, como se
uma roda de tortura girasse devagar, cortando-lhe um naco a cada
volta. Ele recusa ajuda. Deixam comida à sua porta, e Cromwell fica
de guarda. A esperança de Digby é que essas “pitadas” de enxerto,
como um aglomerado de ilhotas, criem raízes, cresçam e preencham o
dorso da mão. Não é uma operação corriqueira. Um cirurgião não deve
jamais ser o próprio paciente, nem o uísque deve substituir o éter.
No dia seguinte, Digby sai do chalé mancando. Cromwell se
materializa como uma sombra atrás dele. “Preciso andar”, o médico
diz. A cada dia ele aumenta a extensão do passeio, sempre pelas trilhas
planas à sombra dos bosques de árvores-da-borracha; a natureza o
embala. Ele se mantém distante de Franz e Lena, já lhe basta aquela
primeira confissão. Tolera Cromwell, pois não o conhece, não há nada
no passado que precise honrar. Cromwell dirige os passeios diários com
delicadeza, conduzindo Digby para diferentes partes da propriedade.
Três semanas depois de sua chegada, Cromwell diz a Lena: “Doutor
muito triste. Não mexe”. Lena encontra Digby sem camisa, sentado nos
degraus em frente ao chalé. Estremece diante de sua expressão de
desespero absoluto. Em silêncio, ele exibe o dorso da mão direita: um
fosso de lava deformado e escuro. Ela não sabe o que pensar daquela
mão, exceto que o dono parece pronto para decepá-la.
“Lena”, ele diz, depois de um tempo. “Não deu certo. Meus tendões
continuam presos.” Ela não consegue se segurar, precisa tocá-lo, então
escolhe o ombro, onde a pele parece normal. Digby estremece ao
toque, mas não se afasta. “Lena, o que fiz de minha vida?”
Ela se mantém por perto, oferecendo sua presença, falando que ele
não está sozinho. Por fim, diz: “Digby, olhe para mim. Você disse que
não queria visitas. Que partiria caso alguém viesse te ver. Mas, por
favor, preciso falar de um amigo que vem das planícies para as
montanhas nos fins de semana. Ele é cirurgião. Especialista em mãos”.
31. A ferida maior

santa brígida, 1936

O Santa Brígida sofre nos últimos dias de verão, a água no poço paira
a poucos centímetros do leito lodoso. Rune dirige pela estrada que leva
à propriedade de Chandy nas montanhas, deixando um rastro de
poeira. Nos catorze anos desde que chegou, tornou-se parte da família.
No verão, ele muitas vezes os visita nos fins de semana. No espaço de
três anos, Chandy e Leelamma tiveram um filho, e depois uma filha. O
menino nasceu temperamental, e, hoje, aos doze anos, segue o mesmo.
A menininha, Elsie, é o oposto, e adotou o barbudo “tio Rune” de
imediato. Há cinco meses a vida deles mudou drasticamente:
Leelamma contraiu febre tifoide. A febre parecia recuar quando ela
sentiu uma dor abdominal severa e Chandy a enviou para Cochim. Os
cirurgiões descobriram que uma úlcera de intestino havia se rompido;
ela morreu na mesa de cirurgia. Para as crianças foi como se a foice que
ceifara a vida da amada avó no mês anterior, ao passar rasante agora, no
movimento de retorno, colhesse também a mãe. Rune jurou fazer a
viagem de três horas todo fim de semana no verão para ficar de olho na
família, que mal se aguentava de pé.
No que diz respeito a ele, os anos lhe foram gentis. Ele construiu um
pequeno bangalô perto do portão principal, com entrada
independente, separado do leprosário para que seus amigos de fora
fiquem à vontade para visitá-lo. O Santa Brígida agora tem um carro
oficial, presente da Missão Sueca, um reforço para o caquético veículo
de Rune. Graças ao galinheiro, ao pequeno laticínio, à horta e ao
pomar — tudo administrado pelos habitantes —, a comunidade é
autossuficiente, com certo excedente para vender ou doar. Só que nem
um mendigo ousaria encostar os lábios em comida oriunda de um
leprosário. A exceção é o vinho de ameixa. No primeiro dia da
Quaresma, Chandy, sozinho na propriedade, viu-se de novo sob risco
de convulsão. Para reduzir a tentação, Leelamma havia removido todo
álcool do bangalô, mas algumas garrafas empoeiradas do vinho de
ameixa escaparam de seu radar. Um copo curou o tremor de Chandy,
que decidiu que aquele vinho, dada sua origem santificada, podia ser
consumido durante a Quaresma. Passou a comprar caixas, e a bebida
também agradou a população da fazenda, sobretudo as damas, pois era
leve, deliciosa e — assim jurava Chandy — “medicinal”. Nessa visita
Rune leva quatro caixas.
As crianças dormem quando ele chega ao bangalô de Thetannat.
Chandy está de guarda e conta que Lena Mylin lhe deixou uma
mensagem; ela e Franz querem vê-lo na noite seguinte, é urgente. Os
fazendeiros da região com suas famílias — os amigos de Chandy — são,
por tabela, também amigos de Rune.
Antes de se retirar, o médico fuma um último cachimbo na varanda,
apreciando os sons da noite. O véu enevoado sobre ele se abre para
revelar as estrelas, o céu tão baixo que ele sente que, se estender a mão,
tocará a bainha do manto de Deus. Está em paz. Tem quase certeza de
que as dores no peito que o incomodam são angina, mas ele a aceita
com equanimidade. Está vivendo sua fé, seu amálgama de cristianismo
e filosofia hindu. A medicina é seu sacerdócio, ele se dedica à cura do
corpo e da alma de seu rebanho. Enquanto puder, é isso que fará.

Ao anoitecer, depois de uma manhã inteira com as crianças, e um


pouco de bridge à tarde, Rune segue para AllState. Ao dobrar para a
estrada de acesso à propriedade dos Mylins, vê de relance uma
aparição: um homem branco num lungi xadrez, caminhando
apressadamente, as mãos cobertas por ataduras. Rune fica intrigado: é
como avistar um leopardo que se meteu por acaso em um enclave
humano.
Na sala de estar, Lena narra uma história que começa com um
cirurgião salvando-lhe a vida com uma operação de emergência em
Madras e termina com o casal abrigando o mesmo cirurgião no chalé
das visitas. Os dois juraram manter sua presença em segredo — até
agora. Franz está sentado em silêncio.

Rune se dirige ao chalé com uma garrafa de vinho de ameixa e avista


o hóspede no pórtico, com um xale de caxemira sobre a cabeça e os
ombros, as mãos expostas. A visão daquele cirurgião beirando os trinta
anos o comove. É como se encontrasse um camarada em armas, um
companheiro de pelotão, caído no campo de batalha. Tudo que
pensara em dizer se evapora. Sem palavras, Rune pega duas taças, serve
o vinho e senta-se perto daquele desconhecido silencioso. A varanda se
estende sobre uma inclinação íngreme. Quando olha para baixo, Rune
sente certo desequilíbrio, a sensação de estar à beira de um precipício.
Lá embaixo, arbustos de chá seguem em fileiras paralelas bem-
dispostas, como se alguém tivesse corrido um pente gigante ao longo
das colinas.
Depois de um tempo, o visitante aproxima o abajur, vira a cadeira
para o hóspede, põe os óculos e apoia os antebraços do jovem sobre
suas mãos. O espetáculo ali representado — as ferramentas de trabalho
de um cirurgião arruinadas — enche Rune de tristeza. Este, afinal, é
seu pesadelo, embora em seu sonho a culpa seja sempre da lepra.
Tomado de emoção, ele respira fundo. A jornada na qual os dois
embarcarão deve começar com amor, Rune pensa. Amar o doente —
não é esse sempre o primeiro passo?
Ele dá um apertão significativo e demorado nos antebraços de Digby
e o olha nos olhos. O jovem se assusta. É como um animal selvagem,
Rune reflete; seu instinto é rosnar, recuar… Mas ele mantém o olhar e
os antebraços de Digby firmemente presos. Torce para que esse homem
veja em seus olhos não piedade, mas reconhecimento — dois
guerreiros lutando ombro a ombro contra um inimigo comum.
Segundos se escoam. O jovem pisca furiosamente, depois é forçado a
virar o rosto. Rune, em geral loquaz, conseguiu — graças a silêncio,
toque e presença — comunicar uma mensagem: Antes de tratarmos a
carne, temos de reconhecer que há uma ferida maior, uma ferida no
espírito.
Rune tenta digerir o que vê. O dorso da mão direita é um mosaico de
ilhotas de pele ressecada, fina como papel, que ladeiam uma cicatriz
grossa que se contraiu, arqueando o pulso. Rune puxa a cicatriz, ela
quase não se move. Os dedos são garras que se dobram, imobilizadas,
pois os tendões estão entumecidos. Ele ergue o lungi de Digby até a
coxa direita, onde se veem cascas de feridas do tamanho de uma moeda
— como ele previa. Testemunhos da tentativa desesperada de um
cirurgião de tratar a si mesmo.
A mão esquerda está em melhores condições, os danos se
concentram na palma, atravessada por uma cicatriz grossa, com aspecto
coriáceo, que se estende como uma tira; a cicatriz tem bordas bem
definidas — aquela mão claramente agarrou algum objeto
superaquecido. A cicatriz contraída franze a palma, repuxando os
dedos. As orelhas e as bochechas têm nacos de pele descolorida,
descamando, resultado de queimaduras superficiais. A cicatriz linear no
canto da boca deve ser antiga, sem relação com o fogo.
Rune lhe entrega o vinho e, em seguida, enche e acende o
cachimbo, refletindo.
“Voltarei a operar um dia?” A voz de Digby soa como gravetos secos
que se quebram mal pisamos neles.
Então, Rune pensa, ele consegue falar. Fecha os olhos. Pondera uma
resposta enquanto sopra a fumaça do cachimbo. “Da mão esquerda
cuidarei de imediato. Tenho um truque para soltar a cicatriz da palma.
Ficará funcional. Já a mão direita… Bem, foi uma boa tentativa cobri-
la com aqueles enxertos.”
“E…?”
Rune enche seu copo de novo, gesticulando para que Digby prove o
vinho. Ele prova. “Digby — posso te chamar assim? Já ouviu falar do
nariz de Cowasjee?”
Digby olha para Rune como se visse um doido. E então aquiesce:
“Já”.
Rune se impressiona. Cowasjee era um carroceiro do século xviii
que trabalhava para os britânicos. Capturado pelo exército do sultão
Tipu, foi libertado, mas antes lhe cortaram uma das mãos e o nariz. É
possível viver sem uma das mãos, mas nada desfigura mais do que um
buraco no meio do rosto. Como os cirurgiões britânicos nada podiam
fazer, Cowasjee desapareceu. Re­tornou meses depois, com um novo
nariz. Fora operado em Poona, por pedreiros que praticavam uma
técnica do século vii, ensinada por Sushruta, o “pai da cirurgia”. Eles
moldaram um nariz de cera — uma pirâmide oca — na medida do
buraco no rosto de Cowasjee. Depois removeram esse molde e o
achataram, dispondo-o de cabeça para baixo no centro da testa de
Cowasjee, para servir como modelo. Com um bisturi, traçaram uma
incisão em torno desse molde, exceto na parte onde as sobrancelhas se
encontravam. Descartando o molde de cera, recortaram e soergueram
a pele da testa, formando uma aba que pendia entre as sobrancelhas.
Dobrando-a para baixo, costuraram-na às bordas do buraco do nariz,
usando pequenos pauzinhos para manter abertas as narinas. O enxerto
funcionou, já que havia um suprimento de sangue partindo da conexão
perto das sobrancelhas. Verdade que o nariz era um pouco mole por
não ter cartilagem, mas o ar passava, e, mais importante, a aparência do
homem estava salva. Um cirurgião britânico relatou essa técnica numa
revista de medicina.
“É isso que você tem em mente para mim? Uma aba?”
Rune contra-ataca com perguntas: “Por que levamos tanto tempo no
Oci­dente para aprender uma técnica que estava bem debaixo do nosso
nariz? O que mais não sabemos, Digby? O que mais?”.
“Dr. Orqvist, por favor. O que você propõe?”
“Rune, por favor. Homo propronit, sed Deus disponit”, ele diz,
apontando para o céu. “Proponho que você me acompanhe ao Santa
Brígida. Partiremos pela manhã. Mas depende de uma coisa.”
Digby parece ansioso. “O quê?”
“Diga que você gosta de nosso vinho de ameixa.”
32. O guerreiro ferido

santa brígida, 1936

Digby desembarca em um planeta alienígena. Depois de semanas


vivendo nas grandes altitudes de AllSuch, o calor e a umidade das terras
baixas reforçam a sensação de deslocamento. Se hospeda no bangalô de
Rune, que já no primeiro dia o leva para passear até a clínica, por entre
os jardins bem cuidados, conversando em malaiala com os residentes
que encontra no caminho. Digby junta as mãos rígidas para devolver os
cumprimentos dos locais. Sua experiência com a lepra limita-se aos
mendigos que via nas ruas de Madras. E agora já tem problemas o
bastante para temer o contágio. Além do mais, a aparente
despreocupação de Rune ajuda.
Numa sala que parece destinada a moldes ortopédicos, o grande
sueco massageia e estica com vigor as mãos de Digby, medindo o grau
de contração. O pessoal do Santa Brígida se amontoa ao redor das
janelas abertas, todo mundo intrigado por aquela visão, como quem
assiste a um espetáculo de aberrações numa feira. Quando Digby grita
de dor, o público rompe em murmúrios excitados. “Bem, você acaba
de convencê-los de que não tem lepra”, Rune diz. “Eles gritam por
muitas razões, mas nunca de dor.” O médico prepara uma seringa.
“Sua direita precisa de muito mais flexibilidade antes de qualquer
operação. E a esquerda? A esquerda fica direita hoje mesmo, ok?” Rune
dá risada do próprio trocadilho. Parece uma criança crescida, pensa
Dig­by. Então o cirurgião lhe diz em linhas gerais o que pretende fazer.
“Eu pensava que eu tivesse inventado isso. Mas um francês pediu os
créditos antes. Chamou a técnica de ‘méthode de pivotement’. Já eu
batizei de ‘a marca do Zorro’. Consiste em transformar essa cicatriz
horizontal em uma cicatriz vertical, criando espaço, entende?”
Sem esperar resposta, Rune injeta anestesia em dois pontos dos
nervos do pulso de Digby e na cicatriz grossa horizontal. Esfrega a
palma com antisséptico, depois traça um desenho com uma caneta
cirúrgica, valendo-se de um semicírculo e de uma régua. Quando
Digby atravessa um corredor até a pequena sala de operação, a palma
de sua mão já está anestesiada. Rune põe luvas e máscara e faz a longa
incisão horizontal contornando a marca da caneta, bem no meio da
cicatriz. Nos extremos desse longo corte, faz dois outros menores a
sessenta graus, formando um . Digby observa tudo como se estivesse
fora de seu corpo. Com pinça e bisturi, o cirurgião recorta a pele e
soergue uma aba em cada ângulo. Em seguida, ele as transpõe,
lançando a fatia de baixo para cima, e a fatia de cima para baixo,
suturando-as para fixá-las. O agora se tornou um , criando um
afrouxamento na cicatriz. Digby já vê os dedos se endireitando.
“Voilà!”, Rune diz, retirando as luvas. “A marca do Zorro!”

Toda manhã e toda noite Rune trabalha para soltar o pulso direito de
Digby, sessões de tortura que deixam o convalescente suando. O sueco
parece apreciar a presença de um hóspede com quem conversar, ainda
que as conversas sejam um tanto unilaterais. Certa noite, Rune chega
ao bangalô com o rosto pálido, a mão direita sobre o peito. Escora-se no
umbral, quando então Digby se levanta-se para ajudá-lo, mas o
cirurgião o afasta com um gesto. “Só preciso recuperar o fôlego…
Estou com esse… incômodo no peito às vezes. Quando está quente e
ando da clínica para casa. Passa logo.” E passou.
Dez dias depois da chegada de Digby, Rune diz: “Hoje você não
janta, Digby. Amanhã vamos operar sua mão direita. Dessa vez vou te
sedar por completo”.
Quando o éter faz efeito, Rune higieniza a mão direita de Digby,
fazendo o mesmo com a pele acima do peito esquerdo. Usando pinça e
bisturi, remove laboriosamente os pequenos enxertos que Digby havia
feito na mão direita, bem como o tecido cicatrizado que o circunda.
“Não se sinta mal, meu amigo”, Rune murmura. “Seus enxertos foram
úteis. Sem eles, os tendões teriam ficado duros feito cimento. Agora
estão sendo estrangulados por ervas da­ninhas.” Leva uma hora para que
o dorso da mão, do pulso até o nó dos dedos, fique exposto, cru,
sangrando, com os tendões à vista, mas movendo-se li­vremente. O
pulso arqueado cede e fica reto quando Rune o pressiona pa­ra baixo.
O cirurgião posiciona a mão de Digby, de palma para baixo, no lado
esquerdo do peito. Em seguida, traça o contorno da mão no peito com
uma caneta cirúrgica, a ponta mergulhando entre os dedos esticados.
Pondo a mão de lado, protegida por toalhas esterilizadas, Rune faz
uma incisão vertical bem à esquerda do esterno de Digby,
correspondendo ao pulso do traçado da mão. A partir dessa incisão cria
um túnel por debaixo da pele, inserindo e abrindo as lâminas de uma
tesoura, até criar um bolsão largo o suficiente para acolher a mão de
Digby. Depois, com a marca da mão desenhada como guia, faz cinco
incisões perfurantes no peito, correspondendo à base de cada dedo. Em
seguida insere a mão descarnada de Digby dentro do bolsão de pele
que acabou de criar, puxando cada dedo por sua respectiva incisão.
Quando termina, os dedos de Digby estão dentro de um saco de pele,
sua mão como uma luva sem dedos. Meu jovem Bonaparte, Rune
pensa. Ele o imobiliza com uma argamassa do ombro até o cotovelo, e
ao redor do tronco, para coibir qualquer movimento.

No dia seguinte, Digby caminha pela propriedade, zonzo, a mão


encarcerada no próprio bolsão marsupial, o cotovelo, preso na
argamassa, sobrando como uma asa. Ao passar pela oficina, os
residentes o avistam e param de trabalhar. Eles vão a seu encontro, e
seus sorrisos de canto de boca e acenos de cabeça dizem: Já vimos esse
truque antes. Mas Digby não. Não está em nenhum livro de medicina.
Eles o convidam a entrar, sempre tagarelando em malaiala; seus
acompanhantes coxos mostram-lhe o torno, a broca, a serra, e a mesa e
a cadeira não envernizadas que o carpinteiro do grupo produziu;
também exibem mãos e pés para revelar a carpintaria que Rune fez em
suas carnes. Digby fica impressionado com a recepção generosa. Não é
deferência à sua profissão, já que ele não tem mais uma. É porque ele é
hóspede de Rune? Por que ele é branco? Não, é porque ele é um deles,
ferido, com uma asa de gesso, desfigurado. E querem que testemunhe
como eles ainda são úteis, ainda que o mundo já não espere nada deles.
Com gestos faciais e acenos de mão, a esquerda, Digby expressa
espanto, admiração. Sente-se arrebatado por aquelas faces marcadas e
distorcidas, os membros rígidos e deformados, e pergunta-se se escapou
a seu destino ou se o encontrou.
Nos dias seguintes, Digby enfrenta uma tarefa que vinha adiando:
escreve para Honorine, com mensagens para Muthu e Ravi. O ato de
escrever com a mão esquerda é de longe mais fácil do que expressar sua
contrição.

Vinte dias depois da cirurgia, Rune decide que os vasos sanguíneos


na pele do peito de Digby já tiveram tempo de criar raízes no jardim
que é sua mão descarnada. Com o paciente sob a anestesia do éter, ele
recorta o saco de pele e liberta a mão de Digby, que agora veste um
novo casaco de pele viva. O cirurgião cobre a ferida aberta no lado
esquerdo do peito do paciente com finos retângulos de pele, extraídos
do flanco. Diferentemente das pitadas de enxerto que Digby tentou
fazer, essas tiras longas não encolherão muito, preenchendo o vão no
peito, em formato de escudo.
Digby acorda vomitando da anestesia. Um rosto paira sobre ele,
alguém sustenta sua cabeça, e a voz lhe é familiar. Sente uma dor
abrasadora no flanco, mas também a libertação da mão direita. E volta
a dormir. Quando acorda para valer, é noite. Honorine o vela com
carinho. Com a mão esquerda, ele lhe toca o rosto para conferir se é
real. Fecha os olhos, sem coragem de encará-la.
“Pronto, pronto. Shhh, pare. Olhe pra mim! Está tudo bem, garoto.
Está tudo bem.” Ela acolhe a cabeça dele no peito até que ele se
acalme. “Dig­by, vamos caminhar até a casa do Rune. Não há nada de
errado com suas pernas. Então você poderá dormir. Teremos muito
tempo para pôr a conversa em dia.”

Pela manhã, ele se sente um pouco zonzo, mas refeito. A visão de


sua mão direita com a nova capa de pele torna suportável a dor aguda
no peito e no flanco.
“Ah, então acordamos?”, diz Honorine, aproximando-se com uma
bandeja. “Sente-se melhor, garoto?” Digby gagueja um pedido de
desculpas. “Ah, bico fechado, sim? É verdade, você nos deixou
morrendo de preocupação. Achamos que poderia fazer bobagem.
Felizmente Muthu não conseguiu guardar segredo de mim. Eu sabia
que você mandaria alguma mensagem quando se sentisse pronto.
Agora, coma alguma coisa.”
Ele devora a omelete e come dois pedaços do pão caseiro
amanteigado com geleia.
“Digby querido, que carta foi aquela? Fiquei em prantos. Tive que
vir ver com os próprios olhos. Não sabia de sua cirurgia.”
“Sou tão idiota, Honorine… Não, por favor, me ouça. Vai me fazer
bem. Celeste e eu só nos tornamos amantes depois que Jeb morreu.
Essa é a verdade. Antes a gente tinha se encontrado em duas ocasiões,
socialmente. Eu me apaixonei de imediato, assim que nos conhecemos.
Talvez porque sabia que nada poderia acontecer.” Ele ri com amargura.
“E nada teria acontecido, se ela não tivesse ido me alertar que Claude
planejava me citar em um processo de divórcio. Ele não dava a mínima
se não era verdade ou se mancharia a reputação dela!” A hipocrisia do
tom indignado lhe ocorre. Ele cora. “Bem, naquela visita, a mentira de
Claude passou a ser verdade.”
Honorine, que estava inquieta, interrompe: “Digby, por que
desencavar tudo isso? Sim, você cometeu um erro terrível. Com
consequências trágicas. Sim, ficamos todos com raiva de você.
Desapontados. Não vou dourar a pílula. Mas eu já tinha superado isso
muito antes de receber sua carta. Você é humano. Falho. Não é o
único. Merece ser perdoado. Todos merecem. Não sei se algum dia
perdoará a si mesmo, mas deve tentar.”
Digby quer saber dos filhos de Celeste, mas Honorine não teve
muitas notícias. Não foram ao funeral, não havia tempo. Digby se
pergunta o que esperava ouvir a respeito. Que eles juraram vingar a
morte da mãe? Que sabiam da infelicidade dela no casamento? Iriam
julgá-la apenas à luz de seu caso extraconjugal?
Honorine fica surpresa ao saber que ele não sabe nada do processo
referente à morte de Jeb.
“Eu achava que fosse ser uma farsa, considerando tudo”, ela diz.
“Claude estava com uma cara terrível, mais pela bebida do que pelo
luto — sim, estou sendo pouco benevolente. Ele mentiu, Digs. E
culpou você. Disse que você andava com Celeste desde que chegou. E
que toda a coisa do Jeb era uma manobra sua para sabotar a carreira
dele, apesar de todas as horas que ele gastou para te ensinar a operar!
Disse isso, acredita.” Digby ri amargamente. “Que a morte de Jeb foi
uma infelicidade, mas era uma complicação conhecida de um abscesso
que pode enfraquecer a artéria. O patologista externo o desmentiu na
hora, não havia abscesso algum, apenas necrose sobre o aneurisma. Ao
fazer a incisão, Claude matou Jeb. O aneurisma não tratado talvez
viesse a se romper, porém não naquele dia.” A voz dela fica tensa.
“Então foi a minha vez. Contei que você nos chamou para a sala de
cirurgia, porque conhecia Jeb e também porque não achava que fosse
um abscesso e porque Arnold relutaria em aceitar sua opinião. Descrevi
o que vi. E disse que, longe de aprender com Claude, que mal operava,
você andou estudando com Ravichandran, que estava lá. Ele se
levantou, sem que pedissem, e confirmou tudo. E mais: disse confiaria
em você para realizar uma cirurgia nele ou em qualquer familiar dele.”
A parte mais imputável do testemunho de Honorine foi a inação de
Clau­de diante do sangramento torrencial, quando Digby e ela
assumiram e deram o melhor de si.
“O superintendente do hospital teve que trazer os registros da
enfermaria e da sala de operação referentes a Claude. Você e eu
sabíamos. Mas ainda assim foi chocante ver aquelas páginas em branco.
O comitê ainda não deu o veredito, mas recomendou a imediata
suspensão dele. Não uma licença, suspensão. Aliás, você está em
licença médica indefinida. Foi automático, assim que foi hospitalizado
com queimaduras.”
Honorine parte na noite seguinte. Naqueles dias, as mãos de Digby
não estão prontas para nada que não massagem e suaves alongamentos.
Ele precisa dar tempo ao tempo, e isso ele tem em abundância.

Ele vive com Rune há mais de um mês. Aquele homem com mais
do dobro de sua idade o preocupa. Mais de uma vez ele o viu empacar
numa caminhada, esperando passar aquele “incômodo” no peito. Certa
noite em que estão na sala, Digby aborda o assunto, mas o Rune sai
pela tangente. O jovem médico se cala, observando-o limpar o
cachimbo, enchê-lo de tabaco e, finalmente, correr os dois fósforos ao
redor do fornilho. A facilidade daqueles movimentos coordenados,
complexos e em grande parte automáticos sem­pre estará além de suas
capacidades. Nuvens de um aroma adocicado invadem o ar.
O cirurgião estuda seu interlocutor, um homem que logo
completará trinta anos, nascido pouco antes da Primeira Guerra
Mundial. Rune já tinha trinta e tantos quando desembarcou na Índia.
Sente-se um tanto paternal em relação ao jovem escocês que se
ocultava sob um muro de silêncio quando os dois se conheceram. É
possível testemunhar um espírito se curando, ele pensa, tal como
vemos uma ferida se curar.
“E aí, Digby? Você gosta do Santa Brígida?”
“Gosto.” Quando chegou, Digby não pensava no lugar como um
destino final, mas depois de suportar cirurgias e tantas dores, aquele
leprosário começou a lhe parecer um lar. Ele é um pária numa
comunidade de párias. “Sinto que estou em casa, Rune.”
“Veja só! Você é sueco e nunca disse?”
A risada do outro soa mais humana: “Sou de Glasgow. Do lado
errado dos trilhos”.
“Já fui a Glasgow. Tem um lado certo?”
Digby enche de novo as taças dos dois, usando ambas as mãos. “Você
me entende. Toda mão que vejo aqui tem parentesco com a minha. O
‘rebanho’, como você diz, eles são… meus irmãos e irmãs.” E se cala,
envergonhado.
“São meus também.” Rune vira o copo e declara: “Mãos são uma
manifestação do divino. Mas você precisa usá-las. Não podem ficar
paradas, como as de um funcionário público incumbido da escritura de
terrenos. Nossas mãos têm trinta e quatro músculos individuais, mas os
movimentos nunca são isolados. É sempre uma ação coletiva. A mão
sabe antes da mente. Precisamos libertar suas mãos, começando com
movimentos naturais, cotidianos — sobretudo a direita. O que você
gosta de fazer com as mãos?”
“Operar.” Digby não consegue evitar o ressentimento.
“Sim. E o que mais? Bordado?”
“Bem… em outra vida, gostava de desenhar, pintar.”
“Excelente! Essas paredes e portas precisam de retoques.”
“Digo aquarelas, pinturas a carvão.”
“Ah, maravilha! Mãos à obra! A melhor reabilitação é fazer alguma
coisa que o cérebro e as mãos estejam acostumados. E tenho a
professora certa para você.”
33. Mãos escrevendo

santa brígida, 1936

Na tarde seguinte, a nova terapeuta de Digby sai da casa Thetanatt e


se dirige ao Santa Brígida, suas tranças quicando sobre os ombros, a
mochila cheia de materiais de arte. A criada que acompanha a menina
de nove anos se agacha na varanda de Rune, cobrindo o nariz com o
thorthu, seu olhar esmiuçando o entorno como os olhos de uma
sentinela. Rune apresenta o jovem cirurgião à sua terapeuta; diverte-se
ao notar que Digby se mostra mais tímido que ela.
Rune recebe Elsie com agrados — chocolate quente, torradas e
geleia de ameixa. A morte da mãe arrancou daquela garotinha
simpática e brincalhona a inocência da qual ela deveria ter desfrutado
por mais alguns anos, pensava Rune. Estava perdida, uma flor cujas
pétalas viraram para dentro. Na dor, descobriu um consolo e um dom,
tudo graças ao presente que Rune lhe deu: um caderno de desenhos,
carvão e aquarelas. Ela não sentia necessidade de anunciar, mas seria
artista.

Elsie dispõe o papel sobre a mesa, entrega uma vareta de carvão a


Digby e senta ao lado dele para fazer os próprios desenhos. Em pouco
tempo seu papel se enche de formas. Observando-a, Digby lembra de
seu rabiscar compulsivo nos dias em que monitorava a mãe deprimida.
Elsie captura Rune no meio de um passo largo, começando pela barba,
o rabo folgado de sua juba estendendo-se atrás dele como uma vela. O
esboço impressiona pela velocidade e pela precisão. A folha de Digby
continua em branco.
A garota saca uma nova folha para si. Busca um livro pesado da
prateleira de Rune. Digby reconhece as ilustrações características de
Henry Vandyke Carter que fizeram de A anatomia de Gray um clássico,
casando clareza e habilidade artística. Não lembra do texto, mas os
desenhos são inesquecíveis. Será que Elsie sabe que o londrino Henry
Gray não pagou direitos a Henry Vandyke Carter nem o incluiu nos
agradecimentos da obra? Amargurado, o cirurgião Vandyke Carter se
alistou no Serviço Médico Indiano, onde fez carreira, vendo seu nome
ausente das edições subsequentes do livro icônico, embora as
ilustrações lá permanecessem. Henry Gray morreu aos trinta e quatro
anos de catapora, com o nome imortalizado pelo livro epônimo. Qual
dos dois teve o pior destino, Digby se pergunta: morrer jovem, mas
famoso? Ou viver uma vida inteira sem obter reconhecimento por seu
melhor trabalho?
Quando Elsie vai embora, a folha de Digby tem algumas linhas e
muitas falhas onde a vareta de carvão, manejada por uma mão direita
desajeitada, enterrou-se demais. Inspirado por Vandyke Carter, a
imagem que ele tinha em mente, um perfil dos músculos da cabeça e
do pescoço, encontrou um bloqueio no caminho entre o cérebro e os
dedos.
Digby espia o desenho que Elsie deixou. Primeiro pensa que é a mão
de um leproso. Mas aquelas unhas quadradas, a pele descolorida,
inchada, no dorso, as marcas de sutura… é a mão dele. Ele contempla
o desenho com uma fascinação horrorizada. Aquele apêndice ossudo,
rígido e pesado segurando o carvão é o inverso das mãos em A criação
de Adão, de Michelangelo. O dom que a jovem artista possui é de tirar
o fôlego. Ela não demonstra repulsa, não se intimida com o tema —
pelo contrário. Com uma precisão devastadora e sem nenhum
julgamento, desenhou a mão de Digby tal como ela lhe pareceu, e a
aceitou tal como era. Ele próprio ainda não conseguiu aceitá-la.

Naquela noite, chega uma carta de Honorine; os esforços desastrados


de Digby com o abridor de cartas acabam rasgando-a ao meio, mas ela
ainda é legível. A comissão decretou a dispensa de Claude Arnold do
Serviço Médico Indiano. A família de Jeb será generosamente
indenizada. “Só Deus sabe o que Claude fará agora”, ela escreve.
O consolo é pequeno. Claude poderá operar em clínicas particulares
em todo o mundo. Um cirurgião criminoso e incompetente sobrevive
para matar de novo. E o que você é, Digby? Por acaso também não é um
assassino? A carta partida ao meio lhe diz que suas mãos estão mais
aptas a destruir do que a qualquer outra coisa. Pensamentos sobre
Celeste, nunca distantes demais, engolfam-no. Se ela não tivesse ido lá
naquele dia, se… Tantos “ses”. Sente talhada em si uma culpa
permanente, como seu sorriso de Glasgow.

No dia seguinte, quando Elsie chega, Digby comenta seu desenho.


“É muito bom!”
“Agradeço demais”, ela diz num inglês formal de estudante, com um
sorrisinho discreto. Digby sente que apenas enunciou em voz alta o que
ela já sabe. A garota lhe dá uma nova folha de papel, e então diz: “Será
que posso…?”. Ela encaixa o carvão entre os dedos rígidos dele. Digby
se empenha em pressionar a vareta de modo a não quebrá-la, tentando
também fazer com que fique firme sobre a página, movimento que
antes ele fazia sem esforço, como quem respira. Removendo uma fita
de sua trança, e mordendo os lábios, concentrada, Elsie amarra a vareta
nos dedos dele. Ela desce cuidadosamente a mão de Digby para o
papel, como quem pousa a agulha de um gramofone sobre o vinil.
“Tente agora.” Uma linha brusca e escura emerge. O movimento
parece se originar nos ombros. A ponta se firma, mas lhe escapa. Ela dá
um empurrãozinho no braço dele, como se acionasse uma máquina.
Outra linha hesitante emerge, todavia o carvão gira — a agulha do
gramofone entortou. Digby olha para cima e encontra os olhos
cinzentos de Elsie, enviesando-se nos cantos, a íris mais pálida do que a
da maioria dos indianos que ele conheceu. Vê compaixão naqueles
olhos, mas não piedade. A menina não vai desistir.
Ela desenrola a fita, hesita por um instante, depois põe sua mão
sobre a de Digby e envolve ambas num laço, os dedos dela dando apoio
ao carvão. Ela faz um gesto de “tente agora”, o queixo conduzindo o
movimento de cabeça. Ele não entende malaiala, mas domina cada vez
mais esses pequenos meneios de cabeça.
O movimento da mão dele (ou dela?) sobre o papel lhe parece mais
suave, o maquinário deslizando sobre novas fundações. Sua mão
carrega a dela nos ombros, fazendo círculos grandes e libertadores no
papel — um aquecimento, mera brincadeira inconsequente. A menina
puxa uma folha nova, e eles passeiam sem esforço, os pneus se
aquecem, escurecendo o papel com voltas sinuosas em S; depois, já em
outra folha, triângulos, quadrados, cubos e pirâmides sombreadas.
Ele fica mesmerizado com a visão da sua mão brincando pela
página, com os movimentos fluidos que ela agora parece capaz de
realizar. Ver a própria mão daquele jeito excita seu cérebro,
convocando imagens, memórias, sons: um casulo rompendo-se na
floresta da fazenda dos Mylins; um bando de pássaros mynah em
revoada; o som das ondas sobre a areia molhada; a pele que se abre ao
toque de um bisturi número onze.
Uma haste de luz vinda da janela cai sobre o papel. Estava lá desde o
começo? Partículas de poeira giram na luz como acrobatas sob
holofotes, livres de toda gravidade, uma visão tão bela que Digby sente
uma pontada no peito. Novas folhas substituem as já preenchidas,
como se Elsie reconhecesse que o movimento é salutar e não pode ser
interrompido, e, de fato, as linhas de carvão fluindo sobre o papel
transcendem o espasmo em seu pulso e na palma, degelando uma parte
congelada de seu cérebro e deflagrando um fluxo rá­pido de ideias que
viajam pelo braço até o papel. Ele ri enquanto sua mão — as mãos dos
dois — agora se move com deliberação, fineza e propósito.
Um rosto de mulher emerge do papel. Não é o rosto de Celeste —
ele o desenhou centenas de vezes. Não, é o rosto de sua mãe, seus belos
traços aos poucos surgindo: os olhos sonolentos, o nariz longo, os lábios
atrevidos e salientes — uma tríade que era sua marca. Para sinalizar a
linha do cabelo, o carvão produz uma pequena nuvem no topo de sua
cabeça, e, em seguida, tranças longas e ondeadas emolduram-lhe as
maçãs do rosto.
Esta é sua mãe nos dias mais felizes; às quartas, quando ela ia tomar
chá no Gallowgate. Ela teria amado o desenho. Diria: “Muito bom,
Digs. Que belo dom você tem!”. A alquimia das mãos unidas, esse pas
de deux, passou por seus dedos, por seus nervos, até libertar de seu
córtex occipital um retrato, arrancando-o da memória, marcando-o
com amor e riso.
Na faculdade de medicina memorizou as expressões faciais
diagnósticas, as fácies das doenças: a máscara do Parkinson; a fácies
hipocrática do câncer terminal, com bochechas e têmporas
descarnadas; o risus sardonicus — riso sardônico — do tétano.
Enlaçada a essa garotinha, sua mão produziu função e forma, tecendo
um retrato amoroso. Digby ergue os olhos para a parceira. Elsie,
filhotinha que também sofreu a perda da mãe, sabia que conseguimos
fazer o que o tempo não pôde? Por todos esses anos a única imagem que
eu levava de minha mãe, a fácies que se sobrepunha a todas as outras,
era a de sua obscena e monstruosa máscara da morte.
Sua mãe emerge no papel. Ele sente o cheiro da lavanda que ela
borrifava em seus casacos dobrados; sente-se em seus braços de novo.
Perdoe-a, ele ouve uma voz dizer. “Eu perdoo”, responde, em voz alta,
entre lágrimas. Elsie franze os lábios, preocupada… A escultura viva,
em movimento, das duas mãos vacila e então estaca. Com sua
desajeitada mão esquerda Digby desfaz o laço e liberta a mão de Elsie,
tentando oferecer-lhe um sorriso tranquilizador.

Chega o dia que ninguém do Santa Brígida jamais esquecerá. A voz


de Rune ecoa pelo complexo, como toda manhã; o som vem da
plataforma atrás de seu bangalô, onde o grandalhão se banha e entoa
“Helan Går”, uma animada canção de taberna sueca, segundo ele.
Digby, no pomar, admira-se ao ouvir três colegas de trabalho se
juntarem à cantoria. Não entendem o significado, mas reconhecem a
emoção: uma chamada para o dia de trabalho. A melodia é
acompanhada do barulho da água, quando Rune enfia o balde no
tanque e o despeja sobre a cabeça.
A cantoria, contudo, é interrompida no meio de um verso, e ouve-se
um baque metálico. Por todo o complexo o rebanho se paralisa. Digby
larga a enxada e corre. A plataforma de banho tem divisórias de palha
em três lados. Ele encontra Rune de costas sobre o concreto, imóvel, a
mão apertando o peito, uma barra do sabão caseiro do Santa Brígida
ainda nos dedos. O coração do Golias encalhado, o grande coração
nórdico está quieto. Apesar dos procedimentos de Digby, ele não
voltará a bater.

O leprosário costuma ser um lugar silencioso e escuro depois do pôr


do sol, mas naquela noite está tomado de luzes, os portões
escancarados. O coletor de seiva das palmeiras, os mudalalis e outros do
vilarejo que conheciam e amavam o gigante sueco vêm prestar
homenagens, ainda que isso implique cruzar a fronteira do Santa
Brígida pela primeira vez. Carros chegam de todas as propriedades:
Franz e Lena Mylin, os Thatcher, os Kariappa, a equipe toda da Forbes,
o secretário do clube, o cozinheiro e dois garçons — todos amigos de
Rune — dirigiram horas a fio para estar ali. Os visitantes ficam de pé,
respeitosos, do lado de fora da pequena capela, enquanto o rebanho
choroso ocupa os bancos feitos à mão — um dos residentes conduz a
cerimônia. O ar da capela rescende ao aroma de madeira recém-
cortada do caixão, produzido na serraria local.
Quem carrega o caixão de Rune é seu próprio rebanho, Sankar e
Bhava à frente, de muletas, avançando numa procissão desajeitada
rumo ao cemitério na clareira colada ao muro da frente. Mãos
desfalcadas de dedos, mãos fechadas, com aspecto de garras, e mãos
que não são mãos, mas clavas de carne, afrouxam as cordas para
enterrar os restos mortais do santo que dedicou a vida a melhorar a
deles. Os lamentos do rebanho cortam o firmamento e partem o
coração das testemunhas que, pela primeira vez, conseguem enxergar
para além dos rostos grotescos, desfigurados, neles se reconhecendo.

Nos dias seguintes, os residentes traumatizados voltam-se para Digby


como antes iam até Rune; Digby, por sua vez, apoia-se em Sankar e
Bhava. Valendo-se das traduções de Basu, que sabe algum inglês, Digby
os encoraja a continuar trabalhando, cuidando das plantações, do
pomar e dos animais. À noite, na solidão do bangalô, Digby dá vazão à
sua dor. O sueco não era apenas seu cirurgião: era seu salvador, seu
confidente, e o mais próximo que ele teve de um pai.
Talvez Rune tenha tido uma premonição. Devia saber melhor do
que ninguém que tinha angina, pois seu testamento é recente. A soma
considerável na poupança vai para a Missão Sueca, com instruções
para que o capital principal seja mantido e que os rendimentos sejam
destinados ao leprosário.
Digby manda um telegrama para a Missão Sueca. A resposta chega
prontamente:

lamentamos profundamente pt homem melhor nunca houve pt


enviamos nossas orações pt esperamos instruções de uppsala

Ele então escreve uma carta para o bispo indiano em Trichinopoly


que lidera a missão, copiando a parte relevante do testamento de Rune.
Encerra assim:
Sou um cirurgião em licença médica indefinida do SMI, devido a
lesões nas mãos não relacionadas à lepra. O dr. Orqvist realizou duas
cirurgias em minhas mãos. Eu nutria grande afeição por ele e sinto
muito apreço pelos residentes daqui. Tenho dado o meu melhor para
manter o Santa Brígida em funcionamento e oferecer atendimento
médico básico. Se isso atende aos requisitos da Missão, posso
continuar aqui. Contudo, minhas mãos jamais serão capazes do tipo
de cirurgia que Rune realizava.

A resposta chega em dez dias. A missão vai enviar duas freiras para
comandar o Santa Brígida; esperam recrutar um médico no futuro.
Digby sorri com amargura e amassa a carta. “Fizeram algumas
investigações, não?”
Por ora, a licença médica de Digby continua indefinida. O que o
Serviço Médico Indiano fará quando esse período terminar? Vai forçá-lo
a algum tipo de trabalho obrigatório? Dispensá-lo, sem indenização?
Não há lar para ele neste mundo? Nem mesmo num leprosário?
34. De mãos dadas

santa brígida, 1936

Philipose, encharcado até os ossos, de pé com o bebê nos braços,


observa a placa diante de si e se pergunta se não teria de fato se
afogado. O rio, no fim das contas, os engoliu? Nela, lê-se:

Em sua mente aquilo se traduz como Centro de Tratamento Santa


Brígida / Asilo para os que sofrem de lepra, embora as palavras em inglês
logo abaixo sejam mais concisas: leprosário santa brígida. Aquele
portão leva a um leprosário ou ao inferno? Há alguma diferença?
Os pulmões de Philipose estão queimando, mas pelo menos ele inala
oxigênio, não água de rio. O bebê parece pesado como uma pedra de
descanso, e igualmente imóvel, com o rostinho arroxeado. Um
leprosário terá um médico ou uma enfermeira? Terá leprosos, disso ele
tem certeza. Entrar ali lhe parece tão inconsequente quanto ter
empurrado a canoa para o rio. Como explicaria à mãe por que arriscou
a vida para salvar o bebê do barqueiro? Ammachi, senti como se o bebê
fosse eu mesmo. Era como se ele fosse eu me afogando, lutando por ar,
tentando voltar à superfície, lutando para sobreviver. Não tive escolha!
Ele continua sem escolha. Empurra o portão e corre com seu fardo.
O barqueiro não tem ideia de onde estão. No céu escuro aqui e ali
cintila alguma luz. Lá adiante há uma casa central coberta de telhas,
cercada de outras menores, como brotos projetando-se do tronco
principal, todas caiadas de branco, embora manchadas de um
vermelho barrento na base, onde encontram a terra. Se isso é o inferno,
então o inferno é muito bem organizado. O garoto se dirige à estrutura
principal.
“O que está acontecendo? Criança não pode entrar aqui! O que está
fazendo aqui?” Um homem magro de camisa azul e mundu não o deixa
prosseguir. Philipose o olha: ele parece um ovo, o rosto liso
inexpressivo, sem sobrancelhas e sem cabelo. Um dos olhos é branco, e
o nariz é chato. O barqueiro recua.
“Esta criança está morrendo”, Philipose diz. “Chame um médico.”
“Ayo! Nosso médico morreu!”, o homem grita. “Não sabia? Ele não
pode ajudar.”
Ouvindo o alvoroço, um homem branco surge da casa principal. É
bonito, alto, tem por volta de trinta anos. As mãos laceradas, porém,
pertencem a um ancião, e olheiras profundas e escuras circulam seus
olhos.
O barqueiro grita: “Se ele morreu, então quem é aquele branco?
Fala pra ele ajudar a gente, pelo amor de Deus!”.
“Não estou me referindo a esse médico. Me refiro ao outro, o grande.
Agora deem o fora! Nada de criança aqui, já disse.”
O homem branco estremece diante do desespero que vê. Acolhe os
desconhecidos enlameados e ofegantes: um deles de pele escura,
baixote, sem camisa e magro; o outro, um menino em uniforme escolar
encharcado, com o cabelo colado na testa, carrega um bebê
moribundo, de olhos foscos como os de uma cavala na barraca de
peixe.
“Gowon, sossega!”, o médico diz em inglês, enquanto chama
Philipose. Suas palavras são claras em qualquer língua. “O que temos
aqui?”, ele pergunta a si mesmo, curvando-se sobre o bebê.
“O bebê parou de respirar”, Philipose explica. Enrubesce quando o
médico olha para ele, surpreso. O garoto nunca esteve tão perto de um
branco, jamais conversou em inglês com um falante nativo da língua.
Tinha até certas dúvidas de que existisse mesmo um mundo onde as
pessoas falavam o idioma de Moby Dick. “Bebê cheio de… craca
branca na boca e na garganta. Como gordura de baleia. Mas
endurecida… como couro. Arpoei um pouco, e ele respirou.
Funcionou naquele momento, senhor.”
O médico observa o menino, admirado daquele estranho
vocabulário. Arpoei? Ele escancara a boca do bebê com mãos rígidas e
desajeitadas, movimentos desengonçados conduzidos mais pelo
cotovelo do que pelo pulso. Faz gestos para que Philipose deite a
criança na mesa, enquanto ele vira uma bandeja de instrumentos de
cabeça para baixo, fazendo um barulho tremendo, à procura de alguma
coisa.
“Nenhum tubo traqueal, Rune?”, ele murmura. Sua aparência
bizarra combina com o lugar, como se ele, igual àquelas construções
brancas, com o rés do chão manchado de terra, tivesse emergido do
solo, as mãos ainda não completamente formadas.
“Você! Meu arpoeiro! Preciso de sua ajuda”, o médico diz. Ele
umedece o pescoço do bebê com uma pincelada de um líquido
pungente. “Vocês são parentes, então?”, pergunta, apontando na
direção do barqueiro.
“Parentes, não. Eu marchava no rumo da escola, tendo este destino
como certo.” Não consegue evitar o tom recitativo, ainda que não seja
de fato seu, mas de Ismael. Melville é musical, Dickens um pouco
menos, e o inglês de Philipose se fundamenta em grandes trechos da
prosa daqueles dois, guardados em sua memória. “Deus me permitiu
discernir o choro, e vi a criança. O pai temia o rio… Mas em mim o rio
instigou propósito, e flutuamos para lá e para cá, embarcados.”
“E como chegaram até aqui?”
O garoto pareceu atordoado. “Pela graça de Deus?”
O médico sorri. Puxa o lampião para perto do pescoço do bebê.
Tenta alcançar um instrumento, não consegue. Ele o aponta para
Philipose, que lhe entrega o bisturi.
“Qual seu nome?”
“Chamam-me Philipose.”
Os lábios do médico se movem, como se praticassem o som que
pretendem emitir. “Escute, é você quem vai ter que fazer isso”, diz,
entregando-lhe o bisturi.
“Não!” A palavra sai mais alta do que Philipose pretendia.
“O bebê está praticamente morto”, sussurra o médico. “Entende?
Você não tem nada a perder. Neste instante o cérebro dele está
morrendo. Vamos lá. Você já salvou a vida dele uma vez.”
“Mas não passo de um menino, aluno da…”
“Olhe, não posso fazer isso com as mãos assim. Passei recentemente
por cirurgia. Ainda estou recuperando o movimento. E não, não tenho
lepra. Eu te digo exatamente o que fazer.”
Os olhos azuis não lhe dão outra alternativa. Com um dedo erguido
numa curva rígida, o médico traça a linha vertical onde Philipose deve
cortar, na parte mais inferior do pescoço, quase no encontro com o
esterno. “A traqueia. É para lá que vamos. Rápido! Corte!”
O garoto já viu Shamuel cortar o pescoço de uma galinha, mas o
pulayar nunca tinha em mente salvar a vida do animal. Philipose roça o
bisturi pela linha imaginária e recua, apavorado, esperando um jato de
sangue e uma reação agitada do bebê. A criança não se esquiva.
“Foi muito levinho. Segure como um lápis. Pressione mais. Até a
pele romper. Vai!”
Philipose obedece, e agora uma linha pálida surge onde a lâmina
deslizou, depois o sangue negro brota, verdadeiro rio transbordando
sobre as margens. O garoto sente a sala girar e seu estômago se contrair.
O médico ignora o sangue e, com gaze na ponta do dedo, afasta a pele
dos dois lados do corte, revelando uma teia de tecido branco.
Entrega a Philipose um instrumento que parece uma tesoura, mas de
pontas cegas. “Enfie isso aí e abra”, diz, imitando o movimento com
dois dedos. Philipose desliza o instrumento fechado para dentro do vão
da ferida e então o abre. Seu gesto é vacilante, pois a garra dura do
médico sobrepõe-se à sua mão, mostrando a posição certa. “Abra até o
fim.” O menino sente o teci­do se rasgar. Mais sangue brota, escuro e
ameaçador.
“E o sangramento?”
“Isso significa que ele ainda está vivo”, diz Digby, sugando o sangue
com a gaze num gesto que lembra o tamanduá, até revelar um cilindro
rugoso e pálido, menor do que um canudo.
“É a traqueia. Agora fazemos um pequeno corte vertical na parede
frontal, usando somente a ponta do bisturi.” Vendo Philipose hesitar, o
médico diz: “Só tem ar na traqueia, não tem sangue. Mas não corte
fundo. Só queremos fazer uma pequena abertura”. Quando Philipose
hesita, a garra se fecha sobre sua mão, firmando-a. Juntos, os dois
conseguem pressionar suavemente a ponta do bisturi na traqueia, onde
ele se fixa como um machado numa árvore. O barqueiro se aproxima
para espiar, horrorizado, a ferida no pescoço do filho.
“Pronto, não vá mais fundo”, o médico diz. “Agora cortamos muito
delicadamente para baixo.”
O tecido cede à ponta da lâmina como se fosse madeira de balsa. A
bile sobe à garganta de Philipose. Ele olha para cima, como se
perguntando: E agora?
Nesse exato momento ouve-se um som úmido, de algo que suga,
cuja origem não é na boca nem no nariz, mas no pescoço sangrento,
uma absorção borbulhante de ar ao redor da ponta da faca. O peito do
infante se infla. Ao expirar, um borrifo tênue salta da ferida e acerta a
bochecha de Philipose.
O médico retira o bisturi, inverte-o, então enfia a ponta cega no
corte que fizeram, virando-a noventa graus para alargar a fenda. Dentro
da traqueia oca, lutando por espaço com o ar borbulhante, há um
coágulo. O médico puxa algo que parece um fio de linho, longo e
maleável. Na mesma hora o ar entra e sai pela pequena abertura, um
som áspero e esfomeado.
“Essa é a membrana da difteria. Termo grego para ‘couro’. Você usou
essa palavra, não? ‘Couro’? Fez o diagnóstico correto. Trata-se do tecido
morto da garganta que se desprendeu, misturado a células de pus. Já
ouviu falar de difteria? Bem, é uma doença comum. Hoje existe vacina.
São os mais novinhos que morrem dela.”
Ele vê salpicos de sangue no rosto do médico, como no dele.
“É contagiosa?”
“Provavelmente tivemos a doença na infância, mesmo sem saber,
então estamos imunizados. Este bebê está desnutrido, não conseguiu
combater a doença. Nos mais velhos, as vias respiratórias são maiores,
assim, caso se infectem o quadro não será tão severo.”
O médico pega um canudo de metal e o insere com cuidado na
fenda da traqueia. O ar corre pelo tubo como por uma flauta, as
aspirações ríspidas. A cor inunda o rosto do bebê. E ele se mexe.
Philipose fica pasmo ao testemunhar aquela ressurreição. Tem as
mãos manchadas de sangue de um estranho, e aquela visão lhe traz
outra onda de náusea. O momento é transcendente, mas também
repulsivo; sentindo-se sus­penso acima daquela sala que exala um odor
pungente, olha na direção da criança, do pai, do médico e de suas
mãos. Metal, sangue, água, terra, carne, tendões, pele clara e morena,
tudo é uma coisa só. O garoto não tem a sensação de triunfo, apenas
um desejo de fugir. No entanto, as mãos do médico lhe entregam um
alicate com uma agulha curva e um fio preso a ela, e a garra branca
daquele homem logo se aboleta sobre seus dedos. Os movimentos não
partem de Philipose, porém ele os executa mesmo assim, costurando o
tubo à pele e fechando o corte. “Você é o meu amanuense”, o médico
diz ao assistente, que não conhece aquela palavra.
Os olhos do bebê, alertas, focam-se neles, como se prestes a falar.
Então, quando vê o rosto do pai, estica os braços e os cantos de sua
boca caem. Enche os pulmões e seu rosto se contorce, preparando-se
para um choro majestoso… Mas nenhum som emerge, apenas ar pelo
tubo. O bebê se surpreende.
“Suas cordas vocais estão um pouco deslocadas, nenê”, o médico diz.
“Bem-vindo de volta a este mundo louco. Talvez você possa fazer
alguma coisa para mudá-lo.”
35. A cura do que te aflige

santa brígida, 1936

Philipose corre para a varanda quando o estômago insiste em pôr


para fora seu conteúdo, sua garganta queimando especiarias e suco
gástrico. Ele lava as mãos e enxágua a boca sob uma calhe. Suas unhas
têm contornos escuros de sangue. O garoto as esfrega loucamente.
Quando olha para cima, uma face monstruosa a centímetros da sua o
espreita. A aparição tem buracos no lugar das narinas, e olhos que não
veem, embora arqueie a cabeça como se ouvisse sua respiração. O grito
de Philipose sai como um gargarejo abafado. A criatura recua ao ouvi-
lo, mais assustada do que ele.
Precisa dar o fora dali. Precisa voltar para casa. Mas onde ele está
exatamente?
O leproso que atuou como vigia e tentou despachá-los lhe responde,
mas Philipose não consegue acreditar. Outro leproso, aproximando-se,
confirma. Notam a surpresa do garoto ao saber que eles conhecem
muito bem aquelas estradas. “Não há lugar por onde a gente não tenha
andado! Você acha que pegamos ônibus? Barco?” A risada deles é
macabra. Até então, as únicas interações de Philipose com leprosos se
deram ao depositar moedas em latinhas; quem diria que eram
inteligentes e falavam? A caminhada de volta demandará certo circuito,
pois a principal ponte da região foi devastada pelas águas. É um desvio
de oito quilômetros na direção oposta, e depois disso precisa retornar
por mais dezesseis. Nenhum ônibus passa pelo leprosário. Seu coração
se desespera. E pensar que ele estava com medo de chegar atrasado na
escola! Vai chegar em casa tardíssimo.
O médico vem procurá-lo. “Meu nome é Digby Kilgour. Pode
traduzir a conversa pra mim?” Entram e vão falar com o barqueiro, que
está ninando o bebê. “Diga que esperamos tirar esse tubo dentro de
vinte e quatro horas. É melhor ele ficar aqui até lá.”
O barqueiro diz: “Que escolha eu tenho? Perdi meu barco. Perdi
meu sustento. Mas e daí? Tenho meu filho, não é?”.

Dr. Kilgour repara na inquietação e na ansiedade de Philipose.


Quando o garoto expõe suas razões, ele afirma: “Vamos te levar pra
casa. Você salvou uma vida hoje”. E explica que um amigo seu,
Chandy, deve retornar de sua propriedade — de carro — essa tarde
mesmo. O médico lhe garante que o mo­torista de Chandy vai levá-lo à
sua casa.
É uma longa espera, ainda mais porque Philipose recusa a comida e
a bebida que Digby lhe oferece, temendo o contágio. O sol saiu, o céu
está limpo, como se a tempestade da manhã tivesse sido uma piada
ruim. Ele encontra uma sombra no pomar, e, quando já não pode
mais, puxa água do poço e bebe do balde com a concha das mãos,
tentando não tocar na borda.
Lá pelo meio da tarde um carro estaciona. O homem corpulento e
bem apessoado que o dirige desce e vai ao bangalô onde está Digby.
Philipose soletra o nome no emblema do carro: “Che-vro-let”. A
palavra lhe é familiar. Tem certo sentido de movimento, com um estalo
ao fim. Soa tal como ele imagina a América: uma terra de pessoas
ambiciosas e trabalhadoras, como os personagens de Melville. Aquele
carro lhe parece um homem rico que pôs de lado as frescuras e se
entregou à labuta junto de seu pulayar. Os paralamas já eram, as rodas
e entranhas estão expostas, a lataria coberta de barro como a carroça de
Kurian, o vendedor de coco. O banco do passageiro está sendo usado
para transportar algum tipo de motor, disposto sobre uma lona. À
traseira do carro atraca-se uma plataforma de metal com latas de óleo,
corda, um guincho… e uma figura escura, agachada, que o olha
indiferente. Philipose não o teria visto, não fosse o branco de seus olhos
quando ele pisca.
Digby reaparece com Chandy, que fala com Philipose em malaiala,
perguntando onde ele mora. “Tudo bem, vamos te levar pra casa,
monay. Espere aqui. Volto já.”
Mas Chandy só retorna às cinco da tarde, de banho tomado, juba
bege de seda impecável, mundu engomado. Em seu pulso, balança
folgado um relógio tão dourado como a lata dos cigarros State Express
555 que o homem leva na mão. Philipose senta no banco de trás, ao
lado de uma menina de uniforme escolar. Ela tem o cabelo preto
reluzente, repartido ao meio, com tranças. A filha de Chandy, decerto.
A garota sorri para o dr. Kilgour, que lhe acena. Ela é alguns anos mais
nova do que Philipose, mas seus modos diretos e a forma franca como o
analisa a fazem parecer mais velha. Aquilo o deixa mais embaraçado:
com exceção de Bebê Mol, nunca se sentou tão perto de uma menina.
Philipose pensa no rugido do rio ao ouvir o arranque do motor.
Quan­do o carro se põe em movimento, ele bota a cabeça para fora. O
vento sopra em seus cabelos e no rosto, desenhando um sorriso. É a
primeira vez que anda de carro.
A voz de Chandy soa como um motor. “Então, monay”, diz, olhando
por sobre o ombro. “O médico disse que você salvou a vida daquele
kutty. Você é algum santo disfarçado?” E se vira para sorrir, um dente
de ouro reluzindo sob o bigode frondoso.
“As mãos do médico sobre a minha me mostraram o que fazer.”
Os dedos da filha deslizam pelo banco. Philipose observa a
aproximação, incrédulo. Logo os dedos dela estão sobre os dele,
pressionando-os um por um, como se ela tocasse um harmônio. Antes
que ele possa reagir, ela retira a mão, tendo concluído o experimento.
Em seguida saca um caderno de desenhos.
“Monay?”, Chandy diz. Philipose congela. Será que Chandy pensa
que foi o garoto quem fez a aproximação? “O bebê está curado?”
“Ainda não. O médico disse que a difteria produz um veneno que
afeta os nervos e o coração. Mas, segundo ele, se tiver sorte, o bebê vai
se recuperar.”
“Elsie teve difteria. Lembra, molay?” Ela o olha interessada. “Você
tinha seis anos. A garganta inflamou. Só soubemos que era difteria na
semana seguinte, quando a levamos ao médico, porque, toda vez que
você bebia água, ela saía por seu nariz.” O homem ri, uma gargalhada
sonora, e Elsie sorri para Philipose. “Lá descobrimos que seu palato não
fechava. O nervo ficou temporariamente danificado. Como uma
válvula presa.”
Philipose está extremamente consciente da presença de Elsie. Sente
von­t ade de tocar seu cabelo cheio, lustroso. Aquele pensamento o
enrubesce. Tem a impressão de que ela o observa e estuda, o que o
deixa ainda mais sem jeito. O garoto volta a atenção para as casas que
passam voando pela estrada, para a sensação de velocidade que parece
mais imediata do que quando anda de ônibus. Che-vro-LET.

Assim que avista o telhado de Parambil, Philipose luta para não


perder a compostura, pois aquela paisagem o comove de forma
inesperada. Pelos últimos dois anos andou se coçando por aventuras,
querendo correr o mundo como Joppan, só que mais para dentro dos
campos. Mas por pouco essa manhã não foi a sua última na terra. Por
tudo que se sabe, ele deveria ter se afogado. Nem mesmo a lepra ou a
difteria se comparam ao perigo de cavalgar um rio transbordante. No
momento em que pulou da canoa, no momento em que seus pés
tocaram terra firme, ele soube que havia enganado a morte. No
entanto, só se sentiu seguro ao avistar Parambil. Sempre imaginara que,
adulto, moraria numa cidade fervilhante bem longe dali, um lugar
cheio de vida. Só agora entende como Parambil lhe é vital, tão
necessária quanto o coração ou os pulmões. Quando uma pessoa sai de
casa, fica por sua conta e risco.
Carroças e carroções puxados a cavalo, riquixás, um elefante já
passaram por aquela estradinha que leva à casa, mas um veículo
motorizado, nunca. Philipose vê muitas figuras na varanda. A família
estendida deve ter se reunido, temerosa do pior. Ao ver o carro, todo
mundo congela, qual fossem uma família de bichos-preguiças
surpreendida na floresta. O garoto vislumbra as silhuetas dos gêmeos,
Georgie e Ranjan, de mãos dadas, e a figura esbelta de Dolly
Kochamma, ao lado da figura mais baixa de Grande Ammachi, junto de
Bebê Mol. Isolada, mais larga e rotunda, está Decência Kochamma.
Uma alma solitária guarda vigília no muttam. Shamuel.
Grande Ammachi observa o filho descer do carro, mas não consegue
sair do lugar. Só quando ele corre em sua direção ela vence a paralisia.
Abraça-o, sente sua carne. “Monay, monay. É mesmo você? Está
ferido? O que aconteceu?” Ela aperta a própria garganta para exprimir
sua agonia, dizendo “Amma­chi thee thinny poyi!” Eu engoli fogo!
Bebê Mol, com as mãos na cintura, parece contrariada e dá um tapa
na perna do irmão. Mas logo salta em seus braços, rindo. Mesmo
Decência Kochamma o aperta contra o peito, onde ele se afoga em
talco e suor, o crucifixo machucando-lhe a bochecha. Shamuel fica
parado, chorando de felicidade. Philipose o abraça. “Shamuel, estou
bem.”
O menino descobre que Shamuel encontrou o guarda-chuva e o
invólucro de folha de banana. Organizaram buscas nas margens do
canal. Sua mãe diz: “Amanhã iremos à igreja de Parumala. Prometi ir
até lá e agradecer se Deus me devolvesse você”.

Philipose teme que Parambil pareça precária aos olhos de alguém


como Chandy, que anda de Chevrolet. Mas aquele homão fica à
vontade, age como um primo há muito afastado, e não como o
mensageiro divino que lhes trouxe de volta o filho perdido. “Ayo,
Kochamma”, ele diz, numa voz tonitruante, dirigindo-se à Grande
Ammachi, “esse seu filho é um herói de verdade.” E começa a contar
uma história mirabolante, falando com tanta autoridade que até
Philipose começa a crer naquela versão. No entanto, a sacada genial de
Chandy é deixar os leprosos de fora do relato. Encerra com
“Kochamma, é um sinal do Todo-Poderoso para que seu filho seja
médico, não é? Que dom!”
Philipose sente todos os olhos sobre ele. Força um sorriso educado,
mas por dentro treme. Nunca sentiu o menor desejo de ser médico. E,
se tivesse o sentido, os eventos daquela manhã teriam varrido aquela
veleidade.
As mulheres ajudam sua mãe a preparar refrescos. Georgie faz o
gesto de “uma dosezinha” com o polegar e o indicador e um meneio de
cabeça, ao que Chandy responde com outro meneio de cabeça e uma
piscadela. Os gêmeos somem e depois ressurgem com um vinho de
palma preparado pela manhã que, àquela altura, já fermentou o
suficiente para descer forte como um coice de bode. Philipose se
surpreende com o banquete: appam recém-saído da chapa quente,
ooperi — chips de banana-da-terra — recém-fritados, thera de manga,
peixe frito e frango assado. Então compreende que aquela comida veio
das casas ao redor que anteciparam uma longa vigília e a possibilidade
de notícias terríveis.

Na hora da partida, Chandy grita: “Elsie, cadê você?”. Bebê Mol


responde da varanda: “Ela está comigo!”.
No banco de Bebê Mol encontram Elsie, de pernas cruzadas e
desenhando, com Bebê Mol atrás dela, juntando fitas às tranças de
Elsie com suas mãos gorduchas. Espalhados por ali, desenhos que Bebê
Mol pediu: um fazedor de beedi, um elefante, uma de suas bonecas…
Tudo desenhado com muita técnica. Elsie enrola todos os desenhos em
um só rolo de papel, enlaçando-os com uma das fitas de Bebê Mol.
“Chechi”, diz a pequena, como se Elsie fosse sua irmã mais velha,
embora Bebê Mol tenha idade para ser sua mãe, “Povu aano”?
“Sim”, Elsie responde, “preciso ir.”
“Você volta logo?”
Com um gesto de cabeça, Elsie diz que sim, voltará.
Bebê Mol responde da mesma forma, dizendo “Poyeete vah”. Então
vá e volte.
Mais tarde, a pedido da irmã, Philipose abre o rolo de papéis. A
primeira folha é um retrato de alguém bastante familiar: um menino de
perfil, seu rosto voltado para a janela, os olhos semicerrados, o cabelo
soprado pelo vento. Ele nunca tinha se visto pelos olhos de outra
pessoa; esse Philipose é tão diferente daquele que o cumprimenta no
espelho. Impressiona-o a economia dos traços ao redor das narinas e
dos lábios, permitindo que a imaginação do espectador complete o
sombreamento. Elsie capturou a sensação de movimento, de
velocidade. No modo como desenhou os olhos, a inclinação das
sobrancelhas e o vinco de ansiedade na testa, ela registrou para a
posteridade a loucura e o terror de um dia como nenhum outro, um
dia que poderia ter sido o último dele. E, embora ninguém saiba,
capturou também seu desejo ardente de voltar para casa.
36. Não há o que aprender na sepultura

santa brígida, 1936

Quando as freiras da Missão Sueca chegam, Digby se despede de


Bhava e Sankar, depois vai procurar os demais na destilaria, no depósito
de grãos, no pomar e na horta. No dia em que chegou ao Santa
Brígida, os residentes lhe pareceram indistinguíveis, idênticos demais
em fealdade. Mas agora ele os conhece um por um, bem como sua
personalidade: o piadista, o apaziguador, o estoico, o rabugento.
Contudo, no coletivo, compartilham certa qualidade brincalhona e
travessa. Pelo menos quando Rune era vivo.
O médico agradece a cada um por recebê-lo em seu meio e se diz
triste por partir, unindo as mãos e olhando-os nos olhos. Nesse mundo
invertido, caretas são sorrisos, o feio é bonito, o aleijado trabalha mais
do que os de boa condição física, mas as lágrimas são as mesmas. Os
residentes retribuem largando as ferramentas para acenar como podem.
Digby se comove com os “namastês” de dedos ou mãos ausentes ou
tortas. A imperfeição é a marca de nossa comunidade, nosso sinal secreto.
Rune disse que o divino nunca lhe era tão visível quanto no Santa
Brígida, por causa das imperfeições. “[Deus], porém, me respondeu:
‘Para você basta a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta
todo o seu poder’.” O pensamento o consolaria, se Digby tivesse fé.
Sozinho no bangalô de Rune, relembra suas noites juntos, marinados
no vinho e no fumo de um tabaco rico e amadeirado. Numa dessas
noites, pouco antes da morte de Rune, Digby repetiu uma pergunta
que já lhe fizera. “Eu voltarei a operar?” Rune ponderou e então deu
um leve tapinha na cabeça de Digby com a base do cachimbo. “O que
nos diferencia dos outros animais não é o polegar opositor. É o cérebro.
Foi ele que fez de nós a espécie dominante. Ou seja, a diferença não
está em nossas mãos, mas no que decidimos fazer com elas. Conhece
nosso lema aqui no Santa Brígida? É do Eclesiastes: ‘Tudo o que você
puder fazer, faça-o enquanto tem forças, porque no mundo dos mortos,
para onde você vai, não existe ação, nem pensamento, nem ciência,
nem sabedoria’.”

Ainda lhe resta uma última despedida. Chandy e seu filho saíram;
apenas Elsie e a criada estão em casa. Ele senta em frente à menina na
varanda, surpreso por não saber o que dizer, como se ele é que tivesse
nove anos, e ela vinte e oito. Ela espera; há uma maturidade em seus
olhos, certa sabedoria e serenidade que muito lhe ultrapassam a idade.
“Vim me despedir. Eu… Você sabe que as cirurgias de Rune
reconstruíram minhas mãos. Mas foi você quem deu vida de novo a
esta daqui.” Ele estende a mão direita. O gesto da menina, inspirado,
de parear sua mão à de Dig­by, a palma dela sobre a nova pele da mão
dele, reativou os dedos paralisados, destruiu barreiras de ferrugem e
falta de uso para reconectar o cérebro à mão. Ele quer que ela saiba
que, ao ver o belo rosto da mãe na folha, ele apagou a grotesca máscara
da morte talhada em sua memória, uma imagem que bloqueava toda
lembrança que tinha dela. Agora, porém, descobre-se embaraçado
demais para essa confissão. Talvez consiga quando Elsie for mais velha,
se seus caminhos se cruzarem de novo. Ele então entrega um presente
para sua terapeuta.
Elsie desembrulha o pacote. Seus olhos se arregalam de alegria tão
logo reconhece a cópia de Rune de A anatomia de Gray. Digby
acredita que ela tenha o dom de Henry Vandyke Carter: desenhar o
objeto tal como ele é, deixando que ele fale por si mesmo.
Os lábios de Elsie soletram em silêncio a dedicatória na qual Digby
muito labutou. A primeira linha é do grande escocês Robert Burns; as
seguintes são de um escocês que não deixará nenhuma marca na
história.

“Alguns livros mentem do começo ao fim, e algumas grandes mentiras


jamais foram escritas.”
Mas dou minha palavra de que este livro não mente, pois sua
verdade eu conheço de trás para frente.
Para Elsie, que me ajudou a entender que passado e presente andam
de mãos dadas.
Eternamente grato,
Digby Kilgour
Leprosário Santa Brígida, 1936

Ela encosta o volume no peito e pousa a cabeça sobre ele, qual


abraçasse uma boneca. Ao olhar para cima, sua expressão substitui
qualquer agradecimento.
Digby se levanta e Elsie caminha com o jovem médico, abrigando
sua mão na dele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Quando saem, ela a solta.
Ele sente sua alma se desatracando do cais, partindo à deriva, sem
vela ou mapa.
37. Um sinal auspicioso

allsuch, 1937

Franz e Lena oferecem uma ceia de véspera de Ano-Novo para seu


círculo próximo; a ocasião é um tanto agridoce, já que também seria o
aniversário de Rune. Chandy ficou detido na planície, mas os habitués
— os Kariappa, os Cherian, Gracie Cartwright (mas não Llewellyn),
Bee e Roger Dutton, os Isaac, os Singh — estão sentados ao redor da
mesa de jantar de Lena, os antebraços descansando sobre a toalha
adamascada, o candelabro iluminando seus rostos como num quadro
de Rembrandt. Fazem um brinde a Rune com vinho de ameixa e
recordam o amigo entre risos e lágrimas.
Digby chegou há três semanas e mais uma vez ocupa o chalé de
visitas de AllSuch. Em nada se parece com a criatura carbonizada,
oculta sob um manto, que se isolou de todos, exceto de Cromwell, até
que Rune o levasse. Dessa vez senta com Franz e Lena a cada refeição;
passeou com Franz pela propriedade, observou-o na sala de prova do
chá e o acompanhou ao leilão semanal onde ele vende sua produção.
Teve oportunidade de andar a cavalo com Cromwell, aprendendo
particularidades da colheita do chá e do cultivo de cardamomo e café.
Toda manhã bem cedo ele desenha por uma hora, disciplinado,
buscando restaurar a fluidez, se não a graça, dos dedos. Seu plano era
retornar a Madras e ficar com Honorine — mas os Mylins insistiram
para que permanecesse até o aniversário de Rune. Quando sua licença
médica expirar, ele não tem ideia do que acontecerá.
Agora, na ceia, Digby, encorajado pelos clamores dos convidados e
desinibido pelo vinho, evoca certo aspecto de Rune só dele conhecido.
Fala de sua excelência como cirurgião, ele mesmo a experimentara na
carne. Chega a desabotoar a camisa timidamente para mostrar a
cicatriz em forma de escudo na parte esquerda do peitoral. (“O sagrado
coração de Jesus!”, exclama Gracie, apertando a mão contra o peito.)
“Ele morreu cantando”, Digby diz, “cheio de vida, como sempre…” O
jovem médico engasga, já não consegue continuar.
O silêncio não é rompido nem mesmo quando Franz oferece uma
rodada de brandy e eles voltam a brindar a Rune. A noite silenciosa
pulsa ao redor deles. Betty Kariappa leva um fósforo para o restinho de
líquido dourado em seu copo. Uma chama azul, um fantasma, espalha-
se pela superfície do brandy, galgando as paredes do copo até
desaparecer.
Nas primeiras horas de 1937, os comensais continuam à mesa — o
clima nostálgico ficou celebrativo e depois numinoso, como se o nível
de álcool no sangue tivesse alcançado o limiar que destrava a natureza
mística das pessoas. É então que esses fazendeiros falam do que melhor
conhecem: os declives montanhosos onde vivem; o solo fecundo e sua
munificência. Sanjay traz à baila uma propriedade distante chamada
Loucura de Müller, e fala da oportunidade de ouro que sua venda
representa — desde que o preço seja bom. A partir daí, numa
sequência de passos que nem Digby nem os demais se lembram,
estabelecem um consórcio cujo estatuto é esboçado num guardanapo,
e cuja primeira resolução é aprovada unanimemente: Lewis e Clark, na
condição de delegados, acompanhados de Digby e Cromwell, devem
procurar Müller e prospectar sua propriedade.
Dois dias depois, Cromwell e Digby partem no Chevy dos Mylins,
com pneus reservas, gasolina e equipamento de acampar. Os Gates
Ocidentais correm paralelos à costa por mais de seiscentos quilômetros,
a maior parte deles tomada por florestas verdejantes intocadas, salvo
uma dúzia de modestas áreas que aventureiros ousados cultivaram no
século passado. Esses pioneiros escalaram velhas trilhas de elefantes
conhecidas apenas pelos nativos, os “tribais”, e delimitaram terras em
declives férteis. Contudo, se não abrissem uma estrada, quebrando
rochas e construindo túneis e rampas, suas supostas propriedades logo
se mostrariam sem valor algum — era preciso levar trabalhadores da
planície para as terras, que ficavam a mil e quinhentos metros de altura
ou mais, como também transportar chá, café ou especiarias para os
mercados. Os primeiros donos vendiam terras a preços nominais ou
simplesmente doavam grandes áreas, só para dispor de parceiros com
quem dividir os custos de construir e manter uma estrada nos Gates. As
maiores regiões com propriedades estabelecidas são Wayanad,
Highwavys, Anaimalais, Nilgiris e, por fim, as Cinnamon Hills, onde os
Mylins e seus amigos têm terras.
A partida de Digby e Cromwell é pouco auspiciosa, com problemas
no motor logo no começo, mas o motorista resolve o enguiço
desmontando o carburador, limpando-o e reconstruindo-o. Cromwell
pertence ao povo badaga — nativo das montanhas Nilgiri, vive em
comunidades fechadas, cultiva as terras coletivamente e se orgulha de
nunca ter sido servo. Esses badagas que migraram são conhecidos por
serem bons soldadores, carpinteiros, mecânicos e comerciantes. Digby
sente-se à vontade com Cromwell, que ao nascer recebeu o nome de
Kariabetta, mas hoje é conhecido apenas pelo apelido (até a mãe o
chama de Cromwell). Um ex-empregador o descreveu como um
“verdadeiro Cromwell”, depois que ele conteve, com bravura e
inteligência, uma situação envolvendo o filho do patrão, uma mulher
casada e um esposo ofendido — Digby ouviu essa história de Lena.
Digby e seu escudeiro passam a noite acampados às margens de um
riacho. Ao meio-dia chegam ao sopé da cordilheira cujos contornos
repicados lembravam a Digby os picos escarnados de Càrn Mòr ou
Lochnagar. Em algum lugar dentro daquelas nuvens se encontra a
Loucura de Müller. Gerhard Müller foi um pioneiro que nunca
construiu uma estrada de gate. Possuindo uma vasta propriedade que
jamais poderia cultivar — daí a loucura —, ele e a esposa pregavam os
evangelhos aos nativos e se mantinham a duras penas. O filho deles,
Bernard, se saiu um pouco melhor, buscando possíveis parceiros, mas
logo os afugentou com o preço que pedia pela terra. Construiu uma
estradinha precária que era varrida a cada estação chuvosa. Agora,
Bernard Müller de repente decidiu pôr tudo à venda e se mandar para
a terra natal de seus ancestrais, Berlim, que nunca conheceu. O preço
já caiu três vezes em três meses, sinal de desespero.
Chegar à propriedade de Müller prova-se tarefa extremamente
complica­da. Um pneu fura, e eles decidem seguir a pé, em meio a
tremenda neblina. O que estou fazendo aqui?, pergunta-se Digby. Sabe
que não pode ser cirurgião. Focou-se por tanto tempo em se
transformar em um que simplesmente não pode se imaginar exercendo
qualquer outra atividade. Ser fazendeiro é mais atraente que ser clínico
geral, distribuindo unguentos e ervas, atendendo cem pessoas por dia.
Se está fugindo do passado, essas montanhas são perfeitas. Ele segue
Cromwell com muito esforço, perdendo o fôlego. Se Müller aceitar a
oferta do consórcio, o plano é que Digby, tendo Cromwell como
administrador, cuide da propriedade, recebendo uma parte dela com o
tempo. Se Müller topar, Digby tomará isso como sinal de que esse é
seu destino. Rune aprovaria. Tudo que lhe vier à mão para fazer, faça
com vontade.
O vale lá embaixo, os rochedos sob seus pés e a montanha adiante
sobreviverão a ele. Diante dessa terra, o jovem médico não é nada;
palavras como “vergonha” e “culpa” pouco significam ali, e uma
reputação não vale mais do que uma flama azul passageira, um espírito
evanescente num copo de brandy.
parte cinco
38. Correio

parambil, 1938-41

A chegada do homem que ficaria conhecido como Senhor


Melhorias, junto com Shoshamma, sua mulher, não chamou a atenção
das pessoas em Parambil. Quem poderia prever que um só camarada
estimularia de modo tão vigoroso a comunidade? Em pouco tempo o
apelido colou e ninguém mais conseguia lembrar seu nome de
batismo. O casal vivia feliz em Madras, quando o irmão de
Shoshamma morreu de repente — de tanto beber. Ele não era casado
nem tinha filhos e, assim, do nada, a irmã herdou a propriedade. O
terreno da casa, com cerca de um hectare, ficava na parte mais oeste de
Parambil, bem longe do rio, e era uma das terras que o pai de Philipose
havia vendido ou dera a parentes na última década de vida.
Segundo Grande Ammachi, o irmão de Shoshamma tinha menos
iniciativa que uma pedra de beira de rio. Deixou uma casa caindo aos
pedaços, mas a madeira e os coqueiros no terreno eram bons. Quando
o casal vai visitar Grande Ammachi pela primeira vez, a matriarca se
impressiona com o bom comportamento de seus filhos, um menino de
sete anos e uma menina de nove. Shoshamma tem um rosto agradável,
o riso frouxo e parece cheia de energia. O marido, a despeito dos anos
trabalhados numa prestigiosa empresa britânica, é modesto e discreto.
Grande Ammachi apresenta Philipose, dizendo que seu sonho é que
ele estude medicina em Madras. O Senhor Melhorias diz: “Que
maravilha! O Madras Medical College é a mais antiga faculdade do
país. Estive lá uma vez. Vi um professor britânico e todos os estudantes
ao redor de um leito…”. Ele se cala, pois algo no sorriso forçado do
garoto lhe diz que ele não tem a menor vontade de estudar medicina,
só é educado demais para contradizer a mãe.
Pouco depois que o casal se estabelece, o homem consegue um
empréstimo da Secretaria de Desenvolvimento — quem poderia saber
que algo do tipo era possível? Ele compra uma vaca, abre uma estrada e
reconstrói a casa. Propõe aos vizinhos que assinem uma petição para
rever o imposto de propriedade, mas é ridicularizado. Decência
Kochamma diz: “Que cara de pau! O sujeito chega de Madras e acha
que o governo deve cobrar menos impostos dele!”. Só Grande
Ammachi adere à petição, dividindo o custo da análise e da papelada.
O recurso dá certo. Quando aqueles que se negaram a participar
entendem o quanto poderiam ter poupado, imploram a ajuda do
Senhor Melhorias. “Com prazer”, ele diz. “A próxima reavaliação é em
dois anos, então temos tempo.”
A chegada do casal coincide com uma mudança nas atitudes
entrincheiradas do povo de Travancore. Há mais opções de jornais e
mais leitores. Os iletrados sempre podem encontrar uma casa de chá
onde o jornal é lido em voz alta. Notícias da crescente oposição ao
domínio britânico, e de um mundo à beira da guerra, se fazem
presentes na vila mais minúscula. O letramento altera padrões que
atravessaram gerações sem serem perturbados. Prova disso, como conta
à mulher o Senhor Melhorias, é o que lhe aconteceu na casa de chá.
“Um camarada sem camisa, sentado num banco, diz, só para me
impressionar, acho: ‘O marajá é um espantalho dos britânicos. Estou
com Gandhi! Semana passada, quando ele marchou para o mar, por
que ninguém me contou? Eu teria ido com ele! Por que pagar imposto
pelo sal, quando o sal está bem à nossa mão?’. Pobre homem. Não tive
coragem de dizer que a Marcha do Sal, liderada por Gandhi,
aconteceu há oito anos. Mas só o fato de ele saber sobre o evento já é
um progresso!”
Quando o recém-chegado descobre que Philipose é um leitor voraz,
cumprimenta-o e lhe fala de sua paixão pela leitura: “Ela é a porta do
conhecimento. O conhecimento, por sua vez, aumenta o rendimento
do arroz. Combate a pobreza. Salva vidas. Há alguma família por aqui
que não tenha perdido um ente querido para a icterícia ou a febre
tifoide? Infelizmente, poucos entendem que a comida e a água são a
causa das doenças, e que um saneamento melhor pode prevenir a
contaminação!”.
O entusiasmo do homem atrai Philipose e seus pares como um ímã.
Os adolescentes adotam seu lema: Todo mundo deve ensinar alguém.
Encorajados pelo recém-chegado, criam a Associação Cristã de Moços
e a Associação Cristã de Moças, a Biblioteca e a Sala de Leitura de
Parambil, tudo alocado em metade de um galpão na propriedade do
homem, onde um cartaz de papelão anuncia as três instituições.
Philipose, agora com treze anos, lidera os colegas de associação na
perfuração de fossos de latrina em cada moradia, ten­t ando eliminar o
acúmulo de fezes e, assim, as infestações de tênias. As moças dão aulas
sobre o manejo e o armazenamento de alimentos.
Da outra metade do galpão o Senhor Melhorias fez seu escritório.
Perto de um armário alto ele dispôs uma pequena mesa sobre a qual
descansa, qual uma divindade, a preciosa máquina de escrever. Esse
instrumento lhe permite acossar vários departamentos do governo com
petições que demandam estradas, saneamento, educadores no campo
da saúde, uma parada de ônibus e outras melhorias, tudo no mais
oficioso inglês Raj. “Monay”, diz o batalhador, explicando ao discípulo
mais devoto, Philipose, sua filosofia: “Para conquistar mudanças sociais,
é preciso entender um princípio básico do dinheiro: ninguém quer
largá-lo. Seja o marido dando à esposa, ou você quando precisa pagar o
barbeiro, ou o marajá repassando nossos impostos aos britâ­nicos, ou
enviando dinheiro para as nossas causas — quem dá dinheiro de modo
espontâneo? Minha palavra para isso é ‘resistência’. Nossas vilas não
entendem que o governo tem obrigação de financiar projetos cívicos
que me­lhorem nossa vida. Por que pagaríamos impostos? O dinheiro
está no orçamento! Mas o oficial na secretaria resiste a nossa demanda.
O camarada pensa: ‘Aah, aquelas famílias de Parambil sobreviveram
todo esse tempo sem uma ponte. Bem, se meu primo conseguir o
financiamento, e a ponte finalmente chegar à minha vila, nossa
propriedade não vai valorizar?’. Monay, é por isso que datilografo ‘c.c.
Sua Excelência, o Marajá’ na minha correspondência. E ‘c.c.’ para
qualquer outro funcionário acima da pessoa a quem a carta é
endereçada. Isso faz com que o camarada pense duas vezes, não?”.
Philipose fica intrigado e pergunta se ele arquiva as cópias em carbono.
“Aah”, ele responde, com um brilho nos olhos, “na verdade, não. Mas
eles não sabem.”
Quando o Senhor Melhorias convida o marajá (dessa vez enviando
cópias de carbono de verdade a uma legião de oficiais) para inaugurar a
Primeira Exposição Anual de Parambil de Novos Desenvolvimentos em
Fertilização, Irrigação e Criação de Animais, até Grande Ammachi se
pergunta se ele não teria ido longe demais. Ele garante que não
acredita nem por um segundo que o marajá apareça — está apenas
buscando a cooperação dos oficiais a quem enviou as cópias para que a
exposição aconteça.
Ninguém fica mais impressionado do que ele mesmo, o Senhor
Melhorias, quando o marajá aceita o convite! Naquele dia inesquecível,
as pessoas assomam de todas as partes, com suas melhores roupas;
inválidos se arrastam para testemunhar aquele acontecimento, uma
visita real de Sua Excelência, Sree Chithira Thirunal. Todos esperam
que ele seja como nas fotografias coloridas ubíquas exibidas em escolas,
lojas e secretarias do governo: um rosto plácido com bochechas bem
fornidas de ghee, a cabeça apequenada por um turbante cravejado de
cristais, o peito resplandecente de medalhas, atravessado por uma faixa.
Chocam-se ao ver um jovem de seus vinte anos, inteligente,
autoconfiante e sem turbante, descendo do carro real numa impecável
jaqueta preta com gola padre, calça de equitação cáqui e sapatos
marrons. Sua curiosidade e interesse genuíno pelos detalhes da
exibição obrigam o público a prestar de fato atenção a tudo que está
exposto. A afeição do marajá por sua gente se mostra naqueles olhos
suaves e amigáveis e no sorriso tímido. O mesmo marajá, dois anos
antes, desafiou seus parentes e conselheiros ao emitir, corajosamente, a
Proclamação de Entrada nos Templos, permitindo que todos os hindus
de todas as castas entrassem nesses locais. Esse ato revolucionário
enfureceu os brâmanes e levou Gandhi a dizer que era o marajá, e não
ele, quem merecia o título de “Mahatma”, ou Grande Alma.
O jovem marajá faz questão de que o Senhor Melhorias o
acompanhe durante a visita, obrigando os funcionários distritais a se
acotovelarem para se aproximar. Sua Excelência, em discurso, cita o
Senhor Melhorias nominalmente e celebra o espírito progressista de
Parambil, dedicado ao desenvolvimento do vilarejo, como “um modelo
para Travancore”. A fotografia de Sua Excelência com o Senhor
Melhorias sai no jornal e é emoldurada na biblioteca/associação. É
nesse dia que o homem que teve a ideia da exposição, que fez todo o
trabalho e levou o marajá àquele pequeno cantinho do mundo, ganha
o cognome de Senhor Melhorias. A partir daí ninguém lembrará seu
nome de batismo.

Quatro anos depois da chegada a Parambil e três anos após a


histórica visita do marajá, o Senhor Melhorias apresenta a Grande
Ammachi sua ideia mais ousada: se contarem o número de cabeças em
cada família, incluindo os pulayar e os artesãos; e se fizerem uma lista
das serrarias, beneficiadoras de arroz, creches de uma sala só, casas de
chá, alfaiatarias e outros estabelecimentos; e se somarem o total de
animais de criação, então talvez Parambil poderia ser classificada como
“vila distrital”. Ele lhe explica as vantagens daquela designação.
Grande Ammachi lhe dá sua bênção na mesma hora. O Senhor
Melhorias é quem está levando adiante a visão de seu marido para
aquelas terras. Aquele homem consegue as assinaturas necessárias de
todas as famílias, invocando o nome de Grande Ammachi quando
hesitam. Os céticos dizem: “Para quê? Ser uma vila distrital vai fazer o
galo cantar na hora certa? O arrozal vai prosperar sozinho?”.
Dizimada uma floresta de papel e empreendidas muitas viagens de
ônibus que o Senhor Melhorias faz até a Secretaria em Trivandrum,
em sete meses e seis dias Parambil obtém a designação de “vila
distrital”, e com isso um considerável investimento do marajá para
“desenvolvimentos estruturais”. Quem duvidava se cala. Trabalhadores
pagos pelo governo constroem galerias e drenos para que o asfalto novo
não seja levado pelas chuvas. O canal nas proximidades é estendido,
alargado e desentupido, margeado por novos muros de concreto,
aumentando o tráfego de barcaças. Com a nova designação, chega uma
agência de correio com um funcionário na folha de pagamento do
Estado. Por gerações os marajás de Travancore enviaram sua
correspondência pelo sistema Anchal: o portador, levando uma vara
adornada com sinos, goza de direito de passagem por decreto real,
embora hoje eles andem de ônibus, trens e também embarcações. Uma
agência de correio Anchal também os conecta ao Serviço de Correio
Anglo-Indiano; um residente de Parambil agora pode enviar cartas para
qualquer lugar da Índia e do estrangeiro — sem necessidade de
incomodar o Achen para que leve e traga cartas da diocese em
Kottayam.
Chega, então, o dia da inauguração da modesta agência cuja placa
anuncia correio de parambil. O Senhor Melhorias insiste: Grande
Ammachi, a matriarca de Parambil, é quem deverá cortar a fita. No dia
seguinte, a primeira fotografia que ela tira na vida é publicada no
jornal. À primeira vista, o que se vê é uma garotinha sorrindo no centro
da foto, segurando a tesoura, apequenada pelos adultos mais altos que
se aglomeram atrás dela. Mas não. Trata-se de ninguém menos que
Grande Ammachi, e o orgulho que brilha em seu rosto é inequívoco.
Na noite em que recebe a fotografia, ela a aperta na mão,
conversando com Deus. “Meu finado marido não sabia ler nem
escrever, mas tinha visão, não tinha? E ela acabou por se tornar
realidade de uma maneira que ele nunca imaginou.” Seus olhos
lacrimejam. “Queria tanto que ele pudesse ver isso.”
Em geral Deus se cala, mas naquela noite Grande Ammachi O ouve
falar com clareza, como falou a Paulo na estrada para Damasco. Seu
marido vê, sim. Ele vê você. E está sorrindo.
39. Geografia e destino marital

cochim, 1943

Devido ao esforço de guerra, todos os alfaiates de Cochim estão


empenhados em costurar fardas, e por isso não atendem ao pedido do
Senhor Melhorias e de Philipose, que precisa de roupa para a
universidade. Um alfaiate lhes sugere procurar no bairro judeu. No
trajeto, passam pelo mercado de especiarias e se maravilham com as
montanhas de pimenta, cravo e cardamomo conservadas nos armazéns
de pé-direito alto. A certa altura param para observar um antigo ritual:
um comprador se agacha diante de um vendedor e toma sua mão; o
vendedor cobre as mãos de ambos com seu thorthu e com os dedos eles
fazem sinais silenciosos centenários que dispensam um idioma comum.
Sob o thorthu que se agita, as ofertas e contraofertas não são visíveis aos
outros compradores.
Um alfaiate no bairro judeu tem as roupas prontas que eles
procuram. Numa outra loja, compram um baú de metal, um saco de
dormir e roupa de cama, sandálias de couro, sabão (azul para roupa,
branco para o corpo) e pasta de dente. “Nada de xampu de grama verde
ou pasta de dente de carvão moído, meu amigo!”, diz o Senhor
Melhorias, esforçando-se para levantar o ânimo do jovem.
O desejo mais ardente de Grande Ammachi era que o filho estudasse
medicina, afinal, Deus vaticinou essa vocação quando ele salvou a vida
do bebê do barqueiro. Mas Philipose achava o contrário, que naquela
ocasião Deus lhe revelou exatamente o oposto: que ele não tinha
estômago para doenças e moléstias. Se antes daquele evento ele já se
mostrava impressionável ao ver sangue, depois precisava sentar
rapidamente para não desmaiar. Além do mais, o bebê morreu passados
seis meses, de diarreia, o que só enfraquecia o argumento de Grande
Ammachi. Se o jovem tinha alguma vocação, uma paixão, era pelas
palavras nas páginas, e pela magia com que elas transportavam a terras
distantes. “Ammachi, quando chego ao fim de um livro e tiro os olhos
dele, só se passaram quatro dias. Mas nesse meio-tempo vivi por três
gerações e aprendi mais sobre o mundo e sobre mim mesmo do que em
um ano inteiro de escola. Ahab, Queequeg, Ofélia e outros
personagens morrem no papel para que possamos viver vidas
melhores.” Era quase uma blasfêmia, mas ele conseguiu a bênção
materna para estudar literatura. Inscreveu-se no prestigioso Madras
Christian College, o mesmo onde Koshy Saar havia estudado e
ensinado, de modo que lhe pediu uma carta de recomendação. Ficou
em êxtase ao ser aceito, mas duas semanas antes de partir Grande
Ammachi e o Senhor Melhorias perceberam que a euforia havia se
transformado em apreensão. O Senhor Melhorias deu o melhor de si
para animá-lo.

Às três da tarde o Senhor Melhorias e Philipose embarcam num


riquixá para ir à estação de trem. Com o calor e a umidade, àquela hora
as moscas perdem altura e caem no chão, e os meninos que trabalham
no comércio sentam-se imóveis, com as pálpebras pesadas. A cidade só
voltará à vida ao anoitecer, com a fresca.
Na plataforma da nova estação Ernakulam South, porém, a partida
iminente do The Mail provoca um redemoinho de gente. Carregadores
cambaleiam com fardos de bagagem, os rostos franzidos. Um Romeu
segurando guirlandas salta sobre um carrinho de carga e corre para um
último adeus. O maquinista anglo-indiano, apoiando um pé no vagão,
recua para examinar a nuvem de fumaça com um olhar de artista
misturando cores, antecipando o momento de puxar a corrente de
engate e desengate.
“Primeiro apito”, diz o Senhor Melhorias, entusiasmado. Ele está na
plataforma, olhando já saudoso o compartimento de terceira classe no
qual Phili­pose, sentado à janela, foi o primeiro a entrar; os outros sete
passageiros estão se acomodando.
“Quando chegarem a Madras amanhã de manhã”, o Senhor
Melhorias sussurra, “vocês aí nesse vagão serão uma grande família,
pode apostar”. Phi­li­pose não consegue ouvi-lo e ergue as sobrancelhas,
sem entender. O homem fala mais alto: “Eu disse que daria tudo para ir
com você até lá. Grande Ammachi até ofereceu… Mas
Shoshamma…”. Ele afasta da mente a lembrança da careta de sua
mulher ao ouvir a sugestão. “Você vai se divertir muito!” E dá um
tapinha na lateral do vagão, como se se despedisse de um boi querido.
“Nunca dormi tão bem quanto num trem, sabia?”
De calça e camisa polo — Philipose nunca o viu com roupas tão
formais —, o Senhor Melhorias traz um lenço dobrado em retângulo
dentro da gola para protegê-la do suor. “O segundo apito está atrasado”,
ele diz, conferindo o relógio. Nesse momento, escutam passos de
centenas de botas, e a plataforma é logo tomada por soldados indianos
que passam marchando, levando kits e rifles. Aqueles homens
silenciosos, bronzeados e de aspecto feroz mal registram o que há em
volta deles. Um terço deles são siques de barba e turbante. A insígnia da
Quarta Infantaria da Águia Vermelha está reproduzida em estêncil nas
malas que chegam nos carrinhos. “Aah, claro, a Águia Vermelha, não é
de admirar”, declara o Senhor Melhorias. Esses rapazes foram enviados
às pressas para o Sudão Britânico e lutaram pela libertação da Abissínia
dos italianos; viram a morte e mataram. A Quarta está indo agora para
Burma, onde os japoneses têm avançado. A guerra, que em Parambil
parecia tão abstrata, faz-se de súbito real, talhada no rosto daqueles
homens corajosos.
O Senhor Melhorias acaricia o bigode com a unha do polegar. Vê
Philipose imitá-lo sem perceber, embora, em sua opinião, aquela vaga
sombra no jovem de dezenove anos ficaria melhor se raspada e não
aparada. Mas quem pode culpá-lo? Um homem sem bigode está
exposto e vulnerável, com a alma em risco, como uma criança não
batizada.
“Por via das dúvidas”, diz o Senhor Melhorias, “leve esta carta. É
para meu amigo Mohan Nair, que você deve procurar em caso de
necessidade. Ele administra a Hospedaria Satkar, perto da Estação
Egmore.” Philipose guarda o envelope. O Senhor Melhorias suspira.
“Ah, Madras… Que saudade! Marina Beach, Moore Market…”
Philipose nunca o ouviu falar num tom saudosista. “Por que você
saiu de lá?”
“Verdade, por quê? Eu tinha um bom trabalho, fundo de pensão…
Mas todo malaiala sonha em voltar para casa. Meu pai não tinha terra
para nos deixar. Quando Shoshamma herdou a propriedade em
Parambil, foi um sonho. Uma bênção.”
“Pra gente também”, diz Philipose, gentil. “Minha mãe sempre diz
isso.”
O Senhor Melhorias finge que não liga para o comentário, porém
fica contente. O vagão se move. O homem estica a mão e aperta o
ombro de Philipose. “Estamos todos muito orgulhosos! Alguém de
Parambil vai para o Madras Christian College. Você será o primeiro de
nossa família a conseguir um diploma! É como se todos estivéssemos
indo nesse trem. Deus te abençoe, monay!”
Ele acompanha o trem, cujo vagão se move a passo de lesma, e
lamenta o semblante amedrontado de Philipose. “Não se preocupe,
monay. Tudo ficará bem, prometo!” O jovem segue acenando quando a
mão de seu protetor já não é visível.

Com vontade de chorar, o Senhor Melhorias quer correr atrás do


trem: sente-se partido em dois, e isso não tem a ver com Philipose.
Metade dele, a metade boa, deseja pular no trem e retomar a vida de
funcionário daquela que foi um dia a velha Companhia das Índias
Orientais. A outra metade, uma figura solitária de ombros caídos e uma
calça que ele já não consegue abotoar, espera, desolada, na plataforma
deserta, tendo apenas um vira-lata por companhia, incapaz de se
imaginar voltando para casa.
Quando ele fecha os olhos, consegue sentir o cheiro do couro nos
livros fiscais daquela que foi um dia a velha Companhia das Índias
Orientais (nome que prefere ao “Postlethwaite & Sons”, que lhe dá um
nó na língua). Para um filho de vendedora de peixe, que só estudou até
o ginásio, ter sido escrivão foi uma façanha memorável. Ele e
Shoshamma eram felizes em Madras. Como todos os malaialas,
sonhavam em comprar uma propriedade no torrão natal amado,
retornar à terra verdejante onde nasceram, com um quintal repleto de
banana-da-terra e kappa. Às sextas-feiras eles iam para Marina Beach,
sentavam na areia, apoiando-se um no outro, e até se davam as mãos.
Quando o homem da loteria passava, compravam um bilhete e faziam
uma oração. Inevitavelmente, ao chegar em casa faziam amor, o cabelo
de Sho­shamma cheirando a jasmim e maresia.
Assim que Shoshamma herdou a propriedade, não houve discussão
quanto ao que fariam. Tinham ganhado na loteria. Ele pediu demissão,
o casal se despediu dos amigos e se mudou. As melhorias do vilarejo o
mantinham ocupado, mas ele sentia falta do alvoroço do escritório em
Madras, bem como dos corretores e dos agentes — britânicos e nativos
—, indo e vindo. Ele era uma peça no maquinário do comércio global,
e, à noite, contava as his­tórias do dia a uma Shoshamma
impressionada. Claro, nunca mencionava Blossom, a estenógrafa anglo-
indiana de vestidos floridos e corpetes apertados que sempre tinha um
sorriso todo especial para ele. Blossom dava brecha à sua imaginação.
Ah, as coisas que lhe passavam pela cabeça! Em momentos de
intimidade com Shoshamma, por vezes imaginava a estenógrafa lhe
dizendo sacanagens no ouvido, pois com a esposa aquelas intimidades
aconteciam num silêncio sepulcral. Agora, em Parambil, até a
lembrança de Blossom desvaneceu. Uma fantasia, longe da fonte de
origem, é difícil de sustentar, assim como ganhar na loteria não traz
felicidade eterna.
“Geografia é destino”, seu chefe, J.J. Gilbert, adorava dizer. O
Senhor Melhorias acha que o certo seria falar: “Geografia é
personalidade”. Porque a Shoshamma de Madras, que depois do banho
mascava um cravo, vestia um sári fresco e botava um jasmim no cabelo
para esperar sua chegada do escritório, deu lugar à Shoshamma de
Parambil, que vestia a chatta largona e o mundu. Foi-se a visão de sua
pele entre o sári e a blusa, ou as vestes que acentuavam seios e nádegas.
Em Madras, iam à igreja vez por outra, mas agora ela insistia em
comparecer à missa todo domingo e também ficou adepta de orações
noturnas. Mostrava-se amorosa e brincalhona como nunca, contudo
começou a se meter em questões de trabalho que antes deixava a cargo
dele. De início, pequenas coisas, como contrariar as ordens que ele
dava ao pulayan. Depois, havia não muito tempo, ao voltar de
Trivandrum ele descobriu que Shoshamma tinha vendido toda a
colheita de coco para Kurian, o comerciante de coco. Ele ficou pasmo,
magoado e indignado, mas mordeu a língua. Decidiu puni-la pelo
silêncio. No dia seguinte, um édito antiaçambarcamento foi emitido e
o preço dos cocos desabou, pegando Kurian e outros no contrapé,
enquanto, graças a Shoshamma, o casal se saiu extremamente bem. Foi
pura sorte, isso não justificava as ações dela. Naquela noite, sempre em
silêncio, por hábito, ele a buscou na cama. Em muitas outras noites —
de fato, na maioria delas — e sobretudo no sábado e no domingo,
tinham intimidades. Ela em geral se deitava numa posição convidativa,
mas naquela noite, quando ele a puxou delicadamente pelo quadril, ela
não se virou. Ele a puxou de novo. “É só isso que você tem em
mente?”, ela disse, numa voz brincalhona e sonolenta, de costas para
ele. “Depois de dois filhos, acho que podemos dar um basta nisso.”
Ele se sentou, mordido por aquelas palavras que nem de longe
acenavam a brincadeiras preliminares, mas à abolição de qualquer
brincadeira! Quer dizer que ao longo de todos aqueles anos ela apenas
tolerara seus carinhos na cama? Quebrando o silêncio, ele, indignado,
disse, dirigindo-se às costas dela: “O quê? Todas as noites eu tomo a
iniciativa para cumprir meus deveres conjugais, como está escrito em
Coríntios, e meu prêmio é ser caracterizado como um homem
lascivo?”. A mulher nem se mexeu, o que o deixou furioso. “Se é assim
que você se sente, guarde bem minhas palavras: daqui para a frente,
não tomo mais a iniciativa!” Ela se virou lentamente para olhá-lo,
alarmada com aquela ameaça — ou pelo menos foi o que ele achou.
“Sim, juro por Mar Gregorios que não tomarei a iniciativa. De agora
em diante, Shoshamma, a iniciativa deverá ser sua.” Ela o olhou
abismada, depois sorriu docemente e disse: “Aah. Valare, valare
thanks.” Muito, muito obrigada. Seu uso da palavra inglesa “thanks” só
tornava seu sarcasmo mais doloroso. Ela virou de costas e dormiu.
Na hora ele entendeu que cometera um erro terrível: Shoshamma
nunca tomava a iniciativa. Com sua nova decência cristã, então, jamais
o faria! Ele mal dormiu, ao passo que ela teve o sono dos puros. De
manhã, ela lhe levou café e sorriu. Se sentia remorso, ele não viu
nenhum sinal. Seu celibato autoinfligido, estendendo-se agora havia
um ano, é como uma prévia da morte. Com o tempo seus sentimentos
por ela endureceram, porém o desejo segue intacto. No sono, ele se
guia por preceitos carnais. Acordado, toda a sua energia vai para seus
empreendimentos.
Agora, enquanto o trem se afasta com uma parte dele, o Senhor
Melhorias sente o coração pesado, como se desmoronasse. As melhorias
podem sozinhas sustentar seu espírito? Mesmo se um dia o marajá lhe
conceder um título formal, isso abrandará a dor? A melhor parte de sua
vida já chegou ao fim?

Do lado de fora da estação, seu olho é capturado por um cartaz


pregado numa palmeira ao lado de um canal. Há uma seta tosca sob as
letras escritas à mão: കളള്. Kall-uh. Vinho de palma. Ele segue a seta
ao longo do canal com água verde e brilhante, até encontrar uma
barraca se desfazendo entre caniços altos, com o mesmo cartaz, como
um pottu na testa. No interior escuro, ele bebe sozinho pela primeira
vez na vida. Um homem que se sente satisfeito em casa não tem razão
para estar numa barraca de vinho de palma. Entorna um belo gole na
cumbuca de bambu. Não há nada de novo naquela bebida, mas, nessa
tarde, para seu espanto, o líquido branco enevoado se trans­forma num
elixir mágico que restaura seu equilíbrio, alivia seu estresse. É co­mo se
lhe tirasse de cima do peito uma pedra do tamanho de um elefante,
que estava lá desde aquela noite lamentável com Shoshamma. Agora,
na barraca sombria, por efeito do vinho de palma, a pedra desliza e cai.
Naquele momento, ele percebe que se apaixonou, e que nem toda
paixão requer uma segunda pessoa.
40. Rótulos que diminuem

madras, 1943

Quando Philipose abre os olhos já amanheceu, e agora o trem rasga


ruidosamente cruzamentos ferroviários na periferia de Madras,
passando por estradas pavimentadas e casas rebaixadas. Céu e horizonte
podem ser vistos em qualquer direção, não há nenhuma palmeira à
vista. A paleta de Madras é de um único tom: o solo é marrom, as
estradas de piche são revestidas de um marrom empoeirado, os prédios
caiados também têm um matiz marrom. Não parece haver riachos ou
rios. A locomotiva cruza um túnel, seu apito se amplifica, e então ela
adentra uma espécie de hangar, a Estação Central, uma cidade em si.
Carregadores com turbantes vermelhos se agacham na beira da
plataforma, o nariz a alguns centímetros dos vagões que passam. Ao
som de um apito, eles saltam nos compartimentos como macacos,
ignorando os passageiros, atacando as malas e rosnando uns para os
outros.
O carregador de Philipose costura entre a multidão, o baú e o saco
de dormir sobre a cabeça, seu bigode branco se projetando como o
limpa-trilhos de uma locomotiva. O barulho tamborila nos tímpanos de
Philipose: rodas de vagões guinchando, implorando por um pouco de
óleo; vendedores gritando; crianças chorando; corvos agigantados
dobrando-se descaradamente sobre restos de arroz em folhas de
bananeira descartadas; carregadores gritando “Vazhi, vazhi!”, Abram
caminho, abram caminho!, tudo isso culminando com a voz tonitruante
dos alto-falantes que anunciam as chegadas nessa e naquela plataforma.
A cabeça de Philipose gira com aquele ataque sensorial.
As plataformas convergem para um lobby maior que três campos de
futebol, seu piso de cimento protegido por um telhado de metal de
cinco andares de altura, suspenso por vigas de aço. Há mais soldados ali
do que na plataforma em Cochim. A multidão fervilha como formigas
sobre um cadáver, movendo-se em correntes e redemoinhos que
contornam ilhas de viajantes acampados sobre bagagens. Uma delas
consiste numa família em que todos têm a cabeça raspada e vestem
túnicas cor de açafrão — peregrinos de Tirupati ou Rameswaram. O
carregador contorna um aglomerado de ciganos coloridos, entre eles
uma mulher num sári rubro que estuda Philipose com olhos escuros,
delineados com kohl. Ela está sentada num caixote, de pernas abertas,
como se regiamente acomodada sobre almofadas, uma maharani um
tanto desleixada. Ele não consegue tirar os olhos dela, que de propósito
ergue um pouco o sári e, entreabrindo os lábios, desliza a língua úmida
e carnuda por sobre cada dente, depois ri da expressão chocada do
jovem. Isso aqui é apenas uma estação de trem, seu provinciano. Espere
até ver o que há lá fora. Sob o olhar dela, sua ambição de se dedicar às
letras parece piada. O que seu nariz, olhos, ouvidos e corpo estão
vivenciando não pode ser capturado por palavras. Se naquele exato
instante pudesse voltar atrás e subir no trem de volta, ele o faria.
“oy! oy! oy!”, alguém grita, e ele se vira e dá de cara com um
homem branco atarracado, de bochechas esbaforidas, chapéu de palha
e expressão alarmada. O homem aponta alguma coisa, ainda aos gritos,
os botões de seu terno de linho espremidos contra seu torso abarricado.
Philipose se pergunta se os brancos são criaturas de sangue frio —
como ele consegue usar todas aquelas camadas de roupa? Ele afasta
Philipose no exato momento em que um carrinho cheio de caixas de
metal passa rente ao rapaz, uma borda afiada chegando a rasgar-lhe a
camisa. Os carregadores gritam para Philipose em tâmil, idioma
parecido o suficiente com o malaiala para que ele entenda a
mensagem: tire a cabeça de dentro do rabo para poder ouvir. Deviam
estar gritando havia um bom tempo, porém, com aquele barulho
esmagando-o por todos os lados, como poderia escutar?
Seu salvador aponta para as orelhas de Philipose num gesto enfático
que diz: Use-as!
Embaraçado, Philipose trota atrás do carregador, atravessando um
vão em uma montanha de três andares de pacotes embalados em tecido
de juta com informações em letras roxas nas laterais. O suor do
maquinário, os fumos das locomotivas e o vapor da multidão apinhada
por pouco o impedem de respirar. Chega, por fim, ao lado de fora, de
onde ele pode contemplar o forno de tijolos vermelhos que é aquele
prédio. Entre os objetos feitos pelo homem, o relógio da torre da
Estação Central é o mais alto que já viu na vida. Ele preferiria voltar
para casa a pé a entrar ali de novo.

Philipose faz o trajeto para Tambaram de riquixá e bonde elétrico,


até o Madras Christian College, onde se junta aos calouros que vão
quitar a mensalidade no escritório do tesoureiro. Os rapazes temem
uma coisa que ele não havia considerado: os trotes dos mais velhos. O
Senhor Melhorias o havia prevenido. Ele esquecera.
E é tiro e queda: na residência que lhe foi designada, o Saint
Thomas Hall, uma falange de veteranos conduz os calouros aos “bogs”,
os banheiros comuns, e os obriga a tirar o bigode, raspando-lhes
também as costeletas dois centímetros e meio acima do lóbulo da
orelha, o que lhes confere um aspecto de galinha depenada que serve
para identificá-los facilmente. Na sequência, aos berros, verdadeiros
sargentos num treinamento militar, ensinam os novatos a executar a
saudação do calouro, necessária para cumprimentar um veterano e que
envolve dar grandes saltos apertando os testículos. Philipose considera
tudo aquilo chocante, e um pouco cômico. Alguns colegas tremem de
medo, um desmaia. Horas depois já está cumprindo tarefas para os
veteranos de sua ala: comprar cigarros para Thangavelu e lavar as
cuecas de Rich­ard Baptist D’Lima iii.
Domingo de manhã, os calouros fazem a barba dos veteranos, que se
enfileiram na varanda. Philipose opera a lâmina numa tarefa delicada,
pois Rich­ard D’Lima iii nunca para quieto, seu pomo de adão subindo
e descendo quando ele cumprimenta aos gritos outros veteranos.
Philipose e os demais calouros são como a casta mais baixa, invisíveis,
cumprindo tarefas servis para seus mestres.
“Quem vai ao Madame Florie, em Saint Thomas Mount?”, D’Lima
pergunta. “Tem desconto para virgens. Thambi, comece o ano com o
pé direito!” Thambi e os outros veteranos o ignoram. Philipose luta
para manter a navalha firme. D’Lima percebe e ri. “Ei, Philipose. De
que vale a educação, se você desconhece as coisas mais práticas?”
“Sim, senhor, verdade”, Philipose gagueja. Consegue sentir o rosto
enrubescendo.
D’Lima o olha quase com compaixão. E fala baixinho: “Escute aqui,
veadinho, você não vai saber o que é viver se não for ao Madame
Florie. No mínimo vai aprender como agir na noite de casamento.
Piadas à parte, estou falando sério. Vou te levar lá. Fica por minha
conta. Que tal?”. Philipose está nervoso demais para falar. D’Lima
espera, então se levanta, indignado por ter sido rejeitado. “Um avião
japonês bombardeou Ceilão duas semanas atrás, sabia disso, Philipose?
Só para mostrar o alcance que eles têm. Se nos bombardearem esta
noite, você vai morrer virgem com o pau numa das mãos e seu livreco
na outra, punhetando até o além. Idiota, está perdendo sua chance de
ouro.”
Philipose olha de relance para o próprio rosto no espelho de barbear.
Vê o que a cigana na estação viu quando lhe mostrou a língua: um
menino perdido, agora com um lábio superior desnudado e costeletas
curtas; um garotinho destinado a morrer virgem.

Num auditório velho e sombrio, com assentos dispostos como em


um anfiteatro, a primeira aula, Gramática Inglesa e Retórica, é aberta a
todos os calouros, das ciências ou das artes. O palestrante é A. J. Gopal,
mas haverá um breve discurso de boas-vindas do professor Brattlestone,
o reitor. Um punhado de mulheres ocupa a primeira fileira; os homens
deixam vazia toda uma fileira atrás delas, como se fossem contagiosas.
Philipose senta na última fileira, bem no alto. Dois homens entram —
um indiano magro e alto, que deve ser Gopal; o outro é um homem
branco que Philipose logo reconhece: é aquele que o salvou de ser
atropelado na estação e lhe disse para usar os ouvidos. Como Gopal,
ele agora veste uma capa preta de professor universitário. Philipose
tenta se fazer invisível.
Os rapazes estão anotando alguma coisa que Gopal deve ter dito.
Mas o quê? Ele espia o caderno do colega ao lado. “Primeira sessão de
revisão, sexta-feira, duas da tarde.” Enquanto escreve, o mesmo
estudante o cutuca. “Ei, não é você? Você não é Philipose?” Philipose
ergue o rosto e encontra todos os olhos do auditório voltados para ele.
Gopal deve ter chamado seu nome. Ele se ergue de um salto e diz:
“Sim, senhor?”.
“Só diga ‘presente’”, Gopal explica com voz severa. “Pode fazer isso?”
“Presente, senhor.”
O professor Brattlestone o observa por um bom tempo. Quando vê
que ele parou de olhá-lo, Philipose, embaraçado, sussurra para o colega
ao lado: “Não ouvi Gopal!”.
“Não foi nada, não se preocupe”, diz o colega, embora sua expressão,
entre penalizada e zombeteira, sugira o oposto. Quando todos olharam
para ele — inclusive Brattlestone —, Philipose quis que um alçapão se
abrisse sob sua cadeira. O curso ainda não começara, e ele já se sentia
marcado, com uma coroa de merda na cabeça.
O discurso de boas-vindas de Brattlestone é longo. Deve ser
engraçado, pois o público ri em vários momentos. Philipose consegue
ouvi-lo, mas, cu­rio­samente, não consegue entender o que ele diz,
exceto por algumas palavras aqui e ali. Quando Brattlestone se retira,
Gopal puxa uma cadeira, saca as notas que trouxe para sua palestra e
diz: “Sentados!”. Eles sentam empertigados, esperando. Então Gopal
confere suas notas. Lá do alto, Philipose vê apenas sua careca. Ele
começa a ler as notas, erguendo o rosto de vez em quando para
balançar a cabeça ou enfatizar um argumento. Ao redor de Philipose,
canetas anotam sem cessar; a dele, contudo, não se move. A aula
seguinte, Introdução à Poesia, acontece no mesmo auditório. O rapaz
passa discretamente à primeira fileira dos homens, que, ainda assim,
fica três para trás do tablado. O professor K. F. Kurian parece gostar de
sua disciplina, caminhando de um lado a outro, fazendo piadinhas.
Philipose o ouve bem, mas só quando o professor olha em sua direção.
O rapaz sobrevive aos trotes ao longo da semana; aquilo não o
incomoda tanto quanto a sensação de deslocamento em classe. Anda
pela faculdade sen­tindo que está num país onde as pessoas falam uma
língua diferente. Toma emprestado anotações de amigos e copia. Os
livros didáticos que compra no Moore Market — Poetas elisabetanos e
Literatura medieval inglesa são os mais grossos — não são muito
estimulantes. Tirando Shakespeare: uma introdução, nenhuma
daquelas obras ele leria por prazer.
Na terceira semana, um funcionário o procura: Brattlestone quer vê-
lo. Philipose espera na sala de espera até ser chamado. Oferecendo-lhe
uma cadeira, Brattlestone pergunta, caminhando lentamente para sua
mesa: “Como vão suas aulas?”.
“Muito bem, senhor.”
“Desculpe perguntar, mas você… Está tendo dificuldade para ouvir
as aulas?”
Philipose emudece, surpreso. “Não, senhor!” é sua resposta
automática. Sente um arrepio percorrê-lo, alguma coisa nele reconhece
que está em perigo, encurralado. Pisca para Brattlestone, que o estuda,
se não com empatia, com curiosidade clínica.
O professor se vira e empurra um livro para que o volume se alinhe
aos demais na prateleira. Volta-se para Philipose, à espera. “Você ouviu
o que acabei de dizer?”
Philipose se sente afundar. O menino que insiste em nadar mas que
sem­pre afunda e precisa ser pescado, cuspindo lama, enquanto os
barqueiros racham o bico de rir. “Não”, diz, baixinho. “Não, não ouvi.”
“Sr. Philipose, testemunhei você em apuros na Estação Central,
certamente você se lembra. Alguns professores, não todos, notaram que
você tem enfrentado dificuldades. Que, quando fazem uma pergunta,
você ou não ouve a questão, ou sua resposta é insatisfatória, pois não
entendeu direito o que foi perguntado. Temo que sua surdez seja severa
a ponto de impedir a continuidade de seus estudos.”
“Surdez.” A palavra é uma paulada em sua nuca. Chamem-no de
desatencioso, digam que é incompetente, desmotivado, mas não surdo.
Eu não sou surdo. A questão é o volume. As pessoas balbuciam,
sussurram, falam com meias frases. Ele sempre manteve distância
daquela palavra terrível. Odeia os rótulos que rebaixam. Não sabe
nadar. Não ouve direito. Não pode…
No silêncio que se segue não há muito que ele possa ouvir: o tique-
taque do grande relógio, o rangido de uma cadeira quando o reitor se
senta. Essa reu­nião deve ser desconfortável também para o professor,
que por fim diz: “Sinto muito. Vou encaminhá-lo ao médico da
faculdade. Ele vai marcar uma consulta com um especialista. Não vejo
como você possa continuar, a não ser que sua audição melhore. Melhor
que esteja preparado”.
41. A vantagem da desvantagem

madras, 1943

Mas Philipose não está preparado. Não está preparado para o alívio
que o assalta, alívio misturado à humilhação. Seu corpo sabia que a
faculdade seria uma luta, mas ao mesmo tempo sua alma sofre por
Parambil. Aquela ideia romântica de estudar literatura inglesa foi
cruelmente destruída por textos insípidos e aulas ainda mais insípidas
— a julgar pelas anotações que ele copia dos colegas. Secretamente,
desejara que um milagre o libertasse, mas não estava pronto para uma
saída assim degradante.
Nem está pronto para a fila que serpenteia diante da Clínica de
Ouvido, Nariz e Garganta no Hospital Geral, em frente à Estação
Central. Cada paciente bafora na nuca do seguinte, até chegar ao
banquinho de exame ao lado do dr. Seshaya. Nenhum paciente
permanece sentado por mais de um minuto. O dr. Seshaya tem a
papada e o hálito de um buldogue — além dos grunhidos. Ele vira
Philipose de lado no banquinho giratório, prende sua orelha em um
grampo, depois baixa o espelho frontal que traz preso à testa para
espreitar e cutucar o canal auditivo do rapaz, girando-o em seguida
para aplicar o mesmo tratamento direto e ríspido ao outro ouvido.
O médico encosta o punho ao pé do ouvido de Philipose e pede:
“Diga-me o que você ouve”. Ouvir o quê? “Deixa pra lá.” Ele repete o
teste no outro ouvido. O médico abre o punho e devolve o relógio ao
pulso. Agora pressiona um diapasão aqui e ali, e diz, com enfado,
“Diga-me quando o som para” e “Você escuta do mesmo jeito dos dois
lados?”, sempre ignorando as respostas. Terminado o exame, ele faz
umas anotações. “Seus tímpanos estão ok. O ouvido médio também.
Mostre esta nota ao meu assistente. Ele vai levá-lo a Gurumurthy para
testes audiológicos formais.”
“Então estou bem, senhor?”
“Não”, Seshaya responde, sem olhá-lo. “Eu disse que não há
problema no tímpano nem nos ossículos — os ossos dos ouvidos.
Coisas que dá pra consertar. O problema é no nervo que leva o som
para o cérebro. Você tem surdez neural. É algo muito comum e
hereditário. Apesar de você ser jovem, acontece.”
“Senhor, há algum tratamento para…”
“Próximo!”
O paciente seguinte é uma mulher com um inchaço vermelho, em
formato de cogumelo, explodindo da narina; ela expulsa Philipose do
banco com um “chega pra lá” de quadril, e o assistente logo o tira de lá.

Vadivel Kanakaraj Gurumurthy, bacharel (reprovado), não escuta


quando batem à porta nem quando entram, nem quando chamam seu
nome, pois está ocupado escrevendo, os dedos sujos de tinta, vários
papéis espalhados diante dele, todos tomados por sua caligrafia. O
assistente finalmente grita: “gurumurthy SAAR!”.
“Sim?... Sim, bem-vindo, sim!” Ele afasta a papelada rapidamente e
lê o papel que lhe é entregue. “Estudante universitário, aah? Oh…
Sinto muito.” E ele sente muito mesmo, ao contrário de Seshaya, que
mal reparou na sua existência. Os pacientes de Gurumurthy devem ser
bem surdos, pois sua voz é bizarramente alta. “Não se preocupe! Vamos
fazer um teste! Auditivo e vestibular. Um exame completo!”
Os testes de Gurumurthy são mais sofisticados do que os de Seshaya.
Com um gerador de som, Philipose escuta tons que Gurumurthy não
ouve — a audição do audiologista é pior que a do paciente. Ele
emprega dois diapasões, faz testes de equilíbrio e, por fim, injeta água
fria nos ouvidos enquanto estuda os movimentos oculares de Philipose.
O último teste desestabiliza o paciente.
“O dr. Seshaya está miseravelmente certo”, Gurumurthy diz, por fim.
“Sinto muito, meu amigo. É surdez neural. Eu também tenho! Nada
no canal nem nos ossículos, só nos nervos.”
“Não há nada que se possa fazer?”, Philipose ouve sua boca dizer, de
modo automático. Seu cérebro ainda está em choque.
“Tudo pode ser feito! Você está fazendo tudo, só não sabe! Leitura
facial, não é? É um termo preferível à leitura labial, pois temos que
aprender a ler o rosto inteiro. Vou te mostrar como ler o mundo, meu
amigo, não se preocupe! Vou dar umas dicas e algumas observações
pessoais em um livreto. Veja, posso não ser médico, mas sou
audiologista. E físico também. Bacharel! Pela Universidade de
Madras!”
“Sim, vi na porta.”
“Aah, sim. ‘Reprovado’, mas um dia se lerá ‘Aprovado com louvor’.”
Seu sorriso é de um homem que com frequência deve dar palestras
motivacionais para si mesmo. “Veja, sempre sou aprovado nos exames
escritos”, diz, como se Philipose tivesse perguntado. Depois o sorriso
desaba nos cantos da boca: “Mas todo ano, no exame oral, o professor
Venkatacharya me reprova. Ele fala sussurrando — quem é que
consegue ouvir perguntas assim? Enfim, se eu não for aprovado
enquanto ele estiver vivo, depois que ele morrer certamente serei.”
O rapaz passa as duas horas seguintes com Gurumurthy. Ao que tudo
indica Seshaya não lhe encaminha muitos pacientes, então o
audiologista tem bastante tempo livre e está louco para compartilhar o
que sabe.

De volta à residência universitária, Philipose faz a mala, fecha o saco


de dormir e retira a “foto” que Bebê Mol lhe deu. O autorretrato dela
captura o essencial: um sorriso que se estica até a borda do disco que é
seu rosto, e uma fita vermelha no cabelo. Ele espera até o corredor ficar
silencioso, quando todos foram para as aulas. Procura a carta que o
Senhor Melhorias lhe deu na estação de trem.
A Hospedaria Satkar é uma estrutura de cinco andares em meio a
vários outros prédios iguais, cada um a poucos centímetros do vizinho.
Mohan Nair, o tal “o homem que deve buscar em caso de
necessidade”, não está em lugar nenhum. Philipose ouve o som de um
rádio com interferência. Grita. Um rosto tão amarrotado quanto um
mapa velho surge da área oculta por uma cortina atrás do balcão. Os
olhos de Mohan Nair parecem cansados e avermelhados, mas ele tem o
sorriso fácil. “Como anda aquele bode velho?”, ele pergunta depois de
estudar a carta de apresentação. “Ainda usa aquele relógio Favre-
Leuba? Não me pergunte como consegui aquilo para ele. E por aquele
preço!”
Philipose diz que precisa de um quarto para duas noites “e uma
passagem de trem para Cochim em três dias, se possível, por favor.”
Tenta soar como alguém que sabe o que quer, em vez de alguém que
acabou de ficar sem chão.
“Aah, aah!”, Nair declara. “Passagem em três dias? O que mais? Um
tapete voador? Monay, se pegar a fila lá na estação, só vai encontrar
passagem para no mínimo daqui a dois meses.” O coração de Philipose
murcha. Nair toca um sino. “Mas… vejamos o que posso fazer.” Ele
pisca e abre um sorriso que diz: Está no inferno, abraça o capeta.
No dia seguinte, Philipose sai com os livros didáticos adquiridos
recen­temente. O Moore Market é um vasto hall quadrangular feito de
tijolos vermelhos, lembrando muito uma mesquita, mas com um
labirinto de vias ladeadas de tendas. Uma voz aguda grita: “Venha,
madame, temos o melhor preço!”. Dois pássaros mynah numa gaiola o
desafiam a adivinhar qual dos dois falou. Ele evita olhar para os
cachorrinhos, os gatinhos, os coelhos, as lebres e as tartarugas à venda.
Há até um filhote de chacal. Essa área de odor pungente de amônia dá
lugar a uma seção que cheira a papel-jornal e livros encadernados. É
como voltar para casa.
As estantes e as mesas na janakiram livros usados e novos se
dividem em seções de direito, medicina, ciência, contabilidade e
humanidades. Janakiram preside tudo em cima de um estrado, o
ventilador de teto girando a centímetros de seu crânio. Seus óculos
meia-lua sem hastes se apoiam num ossinho no meio do nariz. “J. B.
Thorpe é o Gita e o Veda da contabilidade”, ele diz a um jovem. “Por
que pagar por um Priestley quando Thorpe garante sua aprovação na
prova?” Seu olhar recai então sobre Philipose e, depois, sobre os livros
que ele traz. Com dedos de aranha, o livreiro toca delicadamente os
exemplares que o rapaz havia encapado com papel pardo. Manda um
menino buscar chá e convida o recém-chegado para uma saleta nos
fundos — sua sala de puja. “Thambi, devolvo o dinheiro integralmente,
não se preocupe. Mas, Ayo, me diga o que aconteceu.” Sentam-se de
pernas cruzadas, um de frente para o outro.
Philipose não pretendia contar sua história, mas a gentileza desse
livreiro lendário, amigo de todo estudante universitário de Madras, o
dobra. A expressão de Jana vai da preocupação à indignação e, por fim,
à tristeza. Ser ouvido é curativo, como o chá avermelhado, denso de
leite, fortemente adoçado, com vagens gordas de cardamomo flutuando
na superfície.
“Ótimo chá, esse”, Jana, por fim, exclama, estalando os lábios. “A
vida é assim. As decepções estão ali, e o sucesso também. Nunca
apenas o sucesso.” O homem faz uma pausa enfática. “Eu queria
estudar. Meu pai morreu. E então?! O que fazer? Trabalhar! Primeiro
comprando jornal velho e revendendo, depois livros velhos. E aí? Estou
sentado sobre o conhecimento. Leio qualquer coisa e tudo. É melhor
do que uma faculdade. O que estou dizendo é que você vai conseguir!
Nunca desista!”
Decepções, Philipose as tem aos montes. Queria navegar pelos
mares como Ismael, mas a Condição esmagou aquele sonho logo cedo.
Disse então a si mesmo que exploraria o mundo por terra, mas cá está
ele em Madras, doido para voltar para casa. Se as decepções ele já as
tinha, o que haveria de ser o sucesso? Janakiram tem a resposta.
“Sucesso não é dinheiro! Sucesso é amar plenamente o que se faz. Só
isso é sucesso!”

De volta à hospedaria, Philipose encontra Mohan Nair com um


bilhete de trem para dali a pouco mais de uma semana. “É um milagre.
Todos estão preocupados com a possibilidade de os japoneses
bombardearem Ceilão. Os trens estão lotados. Por falar nisso, deixa eu
te mostrar uma coisa.” Ele leva Philipose para a área oculta por cortinas
atrás do balcão, onde o rapaz se surpreende ao ver não apenas um, mas
uma dúzia de rádios. “Estou vendendo sem licença. Ninguém estava
nem aí pra essa história de licença até a semana passada, até surgir o
medo dos japoneses. Todos estão muito cautelosos. E não estão
liberando licenças.” Com um giro no botão, Nair traz à tona a voz de
um inglês. Por instinto, Philipose põe as mãos no aparelho e na mesma
hora está no lugar onde o som se origina, ouvindo-o com todo o seu
corpo. Outro giro de botão, música orquestral. “Com um rádio”, Nair
diz, “o mundo vem bater à sua porta. Você nunca encontrará um mais
barato.”

No dia seguinte, chuva torrencial, uma visão estranha e bem-vinda.


As estradas inundam. À noite Madras fica sem energia. Velas e lampiões
iluminam o interior sombrio do Moore Market, não há eletricidade na
cidade inteira. Philipose está ali por causa de uma ideia inspirada pela
frase de Nair: “O mundo vem bater à sua porta”. Posso estar voltando
para casa, mas não ficarei eLivros. Enquanto tiver meus olhos, os
romances, as grandes mentiras que contam a verdade, o mundo em suas
formas mais heroicas e obscenas pode sempre ser meu. Mesmo depois de
pagar pelo rádio, ainda lhe sobra algum dinheiro da mensalidade, que
lhe devolveram. É o dinheiro que a mãe economizou para sua
educação; o jovem espera que ela leve em conta que ele o terá gastado
exatamente para aquele propósito.
“Perfeito, meu amigo!”, Janakiram diz, depois de escutá-lo. “Mas
você não é o primeiro com essa ideia!” E conduz Philipose para um
conjunto de volumes encadernados em azul com letras douradas em
relevo, empacotados cuidadosamente em sua própria prateleira de
papelão com três níveis — uma visão belíssima. Na lombada de cada
volume consta: clássicos de harvard. Jana lê no volume introdutório:
“Uma prateleira de um metro e meio, fornida de livros, valerá como
uma boa educação liberal para qualquer um que os leia com devoção,
ainda que só possa dedicar quinze minutos por dia”.
Philipose recua diante do preço. “Não se preocupe”, o livreiro o
acalma. “Tenho os mesmos autores, em exemplares usados. Contudo,
questiono as escolhas de Harvard. Poucos russos! Muito Emerson…
Posso sugerir os verdadeiros clássicos?” O rapaz aquiesce.
Philipose compra outro baú para guardar seus tesouros: Thackeray,
mas não Darwin; Cervantes e Dickens, mas não Emerson. Hardy,
Flaubert, Fielding, Gibbons, Dostoiévski, Tolstói, Gógol… Embora
tenha lido Moby Dick e Tom Jones, Philipose quer ter os próprios
exemplares. Tom Jones é a coisa mais empolgante que leu na vida.
Como presente de despedida, Jana inclui os volumes catorze, dezessete
e dezenove da Enciclopédia Britânica: de HUS a ITA, LOR a MEC e
de MUN a ODD. Os livros usados têm cheiro de gente branca, bolor e
gatos.
Dois baús de livros e a caixa de papelão que embala o rádio de
mogno polido e botões de falso marfim agora ocupam o chão de seu
quarto. Aquelas compras são a única coisa que lhe permite voltar para
casa com uma sensação de missão cumprida em vez de derrota abjeta.
Philipose não está sendo despachado de volta para o correio de
Parambil ou fugindo da vastidão do mundo. Está levando o mundo
para sua casa.
42. Todos se dão bem

de madras para parambil, 1943

Os outros passageiros há muito já se acomodaram no cubículo,


guardaram as bagagens, puxaram travesseiros e baralhos, quando
Philipose, sujo e ensopado, embarca. Seus carregadores empurram as
malas dos outros passageiros, tentando abrir espaço debaixo dos dois
bancos para acomodar tanto os baús quanto a caixa com o rádio. Uma
mulher gorda de sári amarelo e bebê no colo fica indignada quando um
dos carregadores derruba sua mala e lhe faz um esculacho num tâmil
da melhor qualidade, ao qual o homem responde na mesma moeda.
No momento em que o trem se põe em movimento, uma jovem de
óculos escuros e lenço no cabelo resolve a situação orientando o
carregador a colocar a caixa e um dos baús no leito mais elevado — o
dela.
Dez cubículos em cada vagão, seis passageiros por cubículo, três em
cada banco, um banco de frente para o outro. À noite, abrem-se dois
leitos sobre cada banco, e os bancos se tornam leitos. Nos cubículos
adjacentes escutam-se risos e vozes animadas. No de Philipose reina o
silêncio, e por culpa dele.
O rapaz pega o caderno. Na primeira página, havia anotado alguns
axiomas de Gurumurthy: “Escrevemos para saber o que pensamos”. “Se
a audição está prejudicada, atente para que o olfato e a visão
desenvolvam uma precisão superior.”
Na visão periférica de Philipose ele está ciente do pomo de adão
saltitante do sujeito magricela ao lado, cujos dedos inquietos, ajustando
os óculos, prenunciam uma fala por vir. Ele exala um cheiro misterioso
de cânfora, mentol e tabaco.
“A próxima estação é Jolarpet”, o homem solta. “O cruzamento
supostamente mais agitado da Ásia!” Philipose percebe que escuta
melhor no trem, tal como Gurumurthy previu, pois em espaços
barulhentos as pessoas falam em alto e bom som.
“É mesmo?”, Philipose responde, pousando a caneta, grato por se
dirigirem a ele.
“Sem sombra de dúvida! Tecnicamente, não é um cruzamento.
Cruzamento implica quatro caminhos, não é? Em Jolarpet, só há três!
Salem, Bangalore e Madras.”
Philipose faz cara de quem se impressionou. Seu colega de assento
brilha de satisfação e lhe oferece uma mão ossuda. “Arjun-Kumar-
Ferrovias.” Ele abre uma caixinha de metal que explica aqueles
estranhos aromas; o homem pega uma pitada com a ponta dos dedos e
cheira, reprimindo com maes­tria o espirro duplo que lhe chega no
mesmo instante. Reclina-se, claramente mais calmo.
A jovem de lenço na cabeça sentada ao lado de Arjun, aquela que
permitiu que os carregadores alojassem a bagagem de Philipose em seu
leito, tira os óculos de sol e se inclina. “Posso ver?”, pede, educada. Ela
contorna com a unha a gravura na caixinha de metal, um desenho de
folhas e botões. É raro uma mulher sozinha iniciar uma conversa.
Philipose admira a delicada veia que cruza o dorso de sua mão, onde
desembocam afluentes que partem do nó dos dedos. Suas mãos
parecem competentes, como as de um alfaiate ou relojoeiro.
“É uma gravura tão bonita.” A voz da jovem impressiona pelo timbre
grave. Vira a caixinha e cerra os olhos para ler a inscrição, gasta pelo
uso. “Você sabe o que diz?”
“Sim, claro, minha jovem!”, diz Arjun-Kumar-Ferrovias, engolindo
uma risadinha, os olhos ampliados pelas lentes. Ela espera.
“E… Pode me dizer?”
“Sem sombra de dúvida que sim!”
Ela e Philipose trocam olhares e chegam à mesma conclusão: para
Arjun-Kumar-Ferrovias, qualquer coisa que não uma resposta literal é
algo tão equivocado quanto chamar de “cruzamento” o que não é
cruzamento. Ela sor­ri. O cheiro dela é fresco, um leve toque de
sabonete perfumado que Gu­rumurthy não aprovaria (os perfumes
subjugam o olfato), mas que Philipose acha delicioso.
“Então poderia nos dizer, por favor?”
“Certamente! Diz: ‘Chega de palavrão, aqui estou eu’.”
Há uma pausa, então ela ri, um som claro e prazeroso.
Arjan-Ferrovias fica encantado. “Veja, Jovem Senhorita, o hábito de
chei­rar rapé é muito impaciente! Suponha que seja hora do rapé, e
suponha que você esteja precisando de sua pitada; se não a tem, os
palavrões se farão presentes, não é?” A voz aguda e animada dele
contrasta com a dela. “Tenho uma coleção dessas caixinhas de tabaco
em casa”, ele declara, orgulhoso. “Meu hobby. Esta aqui é só para
viagens. Contudo, há pouco em Madras comprei uma nova. Um
segundinho, Jovem Senhorita.”
Enquanto ele procura, a Jovem Senhorita rasga uma folha de seu
caderno e, sobrepondo-a à gravura, decalca com o lápis o intrincado
desenho. Arjun lhe mostra sua mais nova aquisição, uma caixa
adornada de pedrinhas brilhantes, pintada à mão com pincel fino,
exibindo cavaleiros de turbante galopando por um deserto de
madrepérola.
“Arte numa caixinha de rapé”, diz a Jovem Senhorita, quase para si
mesma, completamente absorta, traçando o contorno com a unha.
“Exatamente, Senhorita! Todo mau hábito humano gera arte!
Cigarreiras, garrafas de uísque, cachimbos de ópio, não é mesmo?”
“Li que isso se chama ‘tabaqueira anatômica’”, diz a Jovem
Senhorita, arqueando o polegar para trás, o que exagera a depressão
rasa, triangular, no dorso de sua mão, entre os dois tendões que correm
da base do polegar ao pulso. Philipose fica mesmerizado pela elegância
daquele dedo recurvado, parecendo o pescoço de um cisne, e por causa
dos pelos translúcidos, belos, em seu antebraço. Ela ergue o olhar para
os dois homens, com um ar inquisitivo. Seus olhos, mais próximos um
do outro do que o normal, decaem nas extremidades, o que lhe dá certo
aspecto exótico, como uma rainha egípcia. O nariz é pontiagudo,
combinando com o rosto alongado. A Jovem Senhorita começa a
apagar da cabeça de Philipose todas as outras mulheres do mundo, tal
como, na peça de Shakespeare, Julieta borra Rosalina da mente de
Romeu.
Arjun franze as sobrancelhas. “Sem sombra de dúvida, alguns andam
colocando podi nessas latinhas e cheirando ali mesmo! A pitada é
preferível.”
Embora sentada, a Jovem Senhorita parece alta, tem a postura de
dançarina. O lenço na cabeça desliza, revelando um cabelo preto
denso, preso numa trança simples, que ela agora puxa por sobre o
ombro esquerdo, um movimento inconsciente, a ponta afunilada como
um chicote alcançando sua cintura. A beleza dela não é do tipo óbvio,
Philipose pensa. (Mais tarde, no caderno, ele escreverá: “Uma mulher
de beleza não convencional dá esperanças de que sejamos os únicos a
percebê-la, de tal modo que, ao reconhecê-la e apreciá-la, criamos
aquela beleza”.)
A Jovem Senhorita diz: “Bem, agora acho que devemos provar”. Seus
lábios se curvam para cima. Os olhos denotam certo ar travesso. Encara
Philipose. “O que me diz?”
Se te alegra, Jovem Senhorita, este vosso criado cheirará filhotes de
escorpião. A moça e Philipose pegam cada um sua pitada, obedecendo
ao alerta de Arjun para que “deem apenas uma leve fungadela. Nada
de inalar. Cheirem delicadamente, só até a parte frontal da narina! É
preciso evitar que passe ao compartimento dos fundos”. Arjun faz uma
demonstração e, de imediato, como o coice de um rifle, espirra duas
vezes. Seu rosto, então, relaxa. “Precisamente dois espirros virão. A não
ser que venham mais.”
A Jovem Senhorita e Philipose dão uma leve fungada… Depois
espirram em uníssono, duas vezes. A boca dos dois se abre, esperando
um possível novo espirro. Acabam espirrando mais quatro vezes. Um
dueto. A sra. Sári Amarelo explode em largas gargalhadas, e os demais
se juntam a ela. O gelo se quebrou.

Depois de Jolarpet, Philipose embala o bebê, enquanto Meena — a


sra. Sári Amarelo — vai ao banheiro e o marido prepara os leitos. Arjun
distribui cartas, ensinando a Jovem Senhorita a jogar vinte e oito.
Quando o sol se põe, surgem marmitas e embrulhos. Todas as
distinções de classe desapareceram na Terceira Classe, Cubículo C.
Todos oferecem comida a Philipose, e ele se sente grato, pois não levou
nada. O brâmane taciturno com brincos de diamante e chinelos
estropiados é, claro, vegetariano; oferece seu thayir sadam (arroz
ensopado em iogurte e sal) em troca de um pouquinho do frango
assado de Meena. “Não vou contar para minha mulher. Por que irritá-la
por nada?” A marmita de oito compartimentos de Meena é do tamanho
de um míssil. A contribuição da Jovem Senhorita é uma latinha de
deliciosos biscoitos Spencer, embrulhados num lenço rosa.
Pelas dez da noite, o marido de Meena e o bebê dormem no beliche
do meio, e o brâmane ronca acima deles. Meena, a boca vermelha de
paan, inclina-se para confidenciar à Jovem Senhorita (e, logo, a Arjun
e Philipose) que o homem roncando no beliche do meio “é apenas
meu primo”. Viveram como marido e mulher em Madras por três anos.
“Você deve estar se perguntando como aconteceu, certo?” A Jovem
Senhorita não tinha perguntado. “Estudamos juntos até os onze anos.
Eu gostando dele, e vice-versa. Mas somos primos. O que fazer? Meus
pais arranjaram meu casamento com outro. No dia da cerimônia vejo
pela primeira vez meu marido. Bonito, compleição boa, de pele clara,
como vocês. Mas depois descubro que ele é uma criança. Por fora,
normal. Por dentro, tem dez anos. Após dois anos, sigo inocente. Ele
não sabia o que fazer!” Os sogros de Meena a culparam. Quando seu
primo, que havia prosperado em Madras, veio visitar a família, eles se
apaixonaram e fugiram.
O anonimato de uma viagem de trem, Philipose pensa, dá licença
aos estranhos para revelar esse tipo de intimidade. Ou a liberdade para
inventar. Se me perguntarem quem, onde e por quê, vou inventar alguma
coisa. Se querem uma história, terão exatamente isso. Mas qual é minha
história?
“Eu? Acho que fugi também”, diz a Jovem Senhorita, instada por
Meena. Aquilo surpreende os ouvintes. Não é de surpreender que uma
garota em idade universitária viaje desacompanhada. A atmosfera
comunitária da terceira classe é mais segura do que a da primeira (não
há segunda classe), onde as cabines individuais têm portas que fecham,
deixando uma mulher vulnerável a quem quer que entre em sua
cabine. “As freiras da faculdade não ligavam para mim”, conta. “Talvez
porque eu não ligasse para elas.”
“E seu pai e sua mãe?”
“Minha mãe faleceu. Meu pai não vai ficar muito feliz.”
Philipose se emociona ao perceber que os dois enfrentam uma
situação parecida. A confissão dela diminui a dor do retorno a
Parambil. Mas a Jovem Senhorita está lidando melhor com a situação.
Ele nota o pingente de cruz em seu colar; ela deve ser uma cristã de
São Tomé, embora até aquele ponto toda essa conversa no cubículo
com passageiros de Madras, Mangalore, Vijayawada, Bombaim e
Travancore tenha sido em inglês.
Meena dá de ombros, compreensiva: “Pra que faculdade? Uma
perda de tempo. Depois do casamento, não vai valer de nada”.
“Espero que meu pai veja as coisas assim. Mas não estou pronta para
o casamento, Meena. Ainda não.”
Meena logo vai dormir, e agora apenas os três tabaqueiros estão
acordados. O leito de Philipose é o banco onde estão sentados, logo, o
rapaz só pode dormir quando eles forem dormir também. O lápis da
Jovem Senhorita voa pelas páginas de um caderno duas vezes maior do
que o seu. Philipose bem gostaria que Arjun fosse para seu leito, mas
ele está fazendo cálculos numa folha com informações sobre corridas
de cavalos. Claro, se Arjun for se deitar, Philipose ainda teria de
encontrar coragem para falar com a Jovem Senhorita. Sua caneta
rabisca sem parar com uma tinta brilhosa, dando voz a um diálogo
interior que talvez tenha sempre existido. É excitante. Por que o
“Menino-Tinta”, como Koshy Saar o chama, chegou a essa descoberta
tão tardiamente? Quantos aprendizados sumiram do mapa por não
terem sido anotados?
Uma folha solta e dobrada de papel almaço cai de seu caderno. É
um esboço de lista de possíveis carreiras, profissões que não
demandavam sala de aula ou audição normal. Uma memória dolorosa
então vem à tona, os colegas de classe virando-se para ele: Acorde! Não
é seu nome que estão chamando? Triste, ele guarda o papel. De
qualquer modo, todas as carreiras ali foram eliminadas. Sim, sempre
soube que sua audição não era tão precisa quanto a dos outros, mas
naquele mundo insular da escola secundária, sentando debaixo da
saliva dos professores, deu um jeito. Sempre achou que os outros é que
tinham de garantir que ele os ouvisse. Por toda sua vida até então,
achara que sua questão com a água — a Condição — era seu
verdadeiro empecilho. Nunca a audição.

A Jovem Senhorita vai ao banheiro. Arjun sobe para o leito do meio


e logo já está roncando. Philipose precisa tirar sua bagagem do leito da
Jovem Senhorita para que ela possa deitar. Retira a grande caixa de
papelão com o rádio, depondo-a em seu banco. Depois, luta com o baú
cheio de livros, puxando-o para a beirada, mas, então, quando ele
tomba em suas mãos, Philipose quase sucumbe ao peso. Um par de
mãos fortes — a Jovem Senhorita! — vem em seu socorro, e, juntos,
descem o baú para o banco. Ela sorri, como se os dois tivessem
realizado uma façanha sobre-humana. Ela espera.
“De nada”, a moça diz, encarando-o.
Ele esqueceu de agradecer! Por causa da presença dela, tão próxima.
Philipose foi abduzido pelo cheiro de pasta de dente de menta,
esquecendo seus bons modos, esquecendo tudo.
“Desculpa! Quer dizer, obrigado. E obrigado por deixar o
carregador…” Parece-lhe íntimo demais olhar diretamente para as
pupilas dela. Nunca fez contato visual com uma mulher que não fosse
de sua família. O trem parece suspenso no ar.
“Parece que o baú está cheio de tijolos”, diz ela, sem rodeios.
“Sim, todos os livros que consegui comprar.” Ela disse livros ou
tijolos? “E tem mais naquele outro baú também”, ele afirma,
apontando o baú debaixo do assento, que derrubou a mala de Meena.
Ela reflete sobre aquela informação. “E aquela caixa? Livros
também?”
“Um rádio. Estou indo pra casa. Por razões parecidas com as suas”,
ele revela. O que aconteceu com o plano de inventar uma história?
“Também fui enviado a uma faculdade, ainda que sem freiras.
Questões com minha audição… Eles alegam. Mas está tudo bem. É
uma bênção provavelmente.” Choca-se com a própria confissão.
Ela concorda com a cabeça. “Eu também. Estudava economia
doméstica.” A Jovem Senhorita faz careta e ri. “Uma coisa que
evidentemente se pode estudar em casa. Ainda assim, eu teria
continuado na faculdade. Mas a decisão não era minha.”
“Sinto muito.”
“Tudo bem. Como você disse, é uma bênção.”
“Bem… Para o que quero estudar — literatura — não precisava estar
em Madras. Não vou deixar que isso seja um impedimento. Uma coisa
eu sei: amo aprender. Amo literatura. Com esses livros posso viajar os
sete mares, caçar uma baleia branca…”
A moça olha para baixo. “Diferentemente do Ahab, você tem as duas
pernas.”
Ela conhece seu livro favorito! Philipose segue o olhar da jovem com
obediência, como se para confirmar que ele tem, de fato, duas pernas.
E ri. “Sim”, declara, impressionado. “Sou mais sortudo que Ahab. A
vida me dobrou, me quebrou, mas espero que tenha me tornado uma
pessoa melhor.”
Ela digere aquele comentário. “Que bom”, ela diz, finalmente. “E,
com um rádio, o mundo vem até você, não é?”
Essa é a conversa mais longa que teve com uma moça de sua idade.
Seus olhos pousam nos lábios dela. Uma pergunta lhe foi feita. Ele já
invocou Ahab. E Dickens. Será que está sendo muito metido? Era o
caso de fazer uma piadinha. E se ele parecer estúpido? Além disso,
nenhuma piada lhe vem à mente. O rapaz abre a boca para falar, para
dizer algo… Mas, Deus do céu, ela é tão bonita, os olhos de um cinza
tão pálido… A jovem vê todos os pensamentos dele batendo-se dentro
de seu crânio. O cérebro de Philipose superaquece e entra em
parafuso, quando tudo que ele precisa dizer é “sim”.
“Bem, boa noite então”, ela fala, suavemente. Volta-se para a escada,
um pé no primeiro degrau, e então se detém. “Aquilo era Grandes
esperanças?”
“Sim! Sim, era. Estella é quem diz isso!”
“Você pode citar de novo?”
“Sem sombra de dúvida que posso.”
Depois de um segundo, ela explode numa gargalhada. Os dois se
entreolham, envergonhados da troça com o dorminhoco Arjun. Assim,
ela se inclina para ele, baixando a voz. “Bem, você me diria então de
novo?”
“A vida me dobrou, me quebrou, mas espero que tenha me tornado
uma pessoa melhor.”
Ela agradece com um sorriso, acena lentamente, e então seu rosto
desaparece.
Philipose observa a sola pálida dos pés da jovem, tão macia e suave,
subindo a escada, seguida pela bainha do sári de algodão e o saiote. Ela
desaparece, mas sua imagem se demora — o breve vislumbre do
calcanhar, da parte interna do dedão, os outros dedos seguindo-lhe o
movimento, como bebês seguindo a mãe. Um calor lento se deflagra na
barriga do rapaz, espalhando-se para os membros. Ele se larga
pesadamente no banco, depois recosta a cabeça nas grades da janela —
mas de modo leve. Idiota! Por que não conversaram mais? Você
perguntou o nome dela? Não quis ser impertinente. Como assim
“impertinente”? É uma conversa! Com atraso, uma piada lhe ocorre:
quem é o malaiala que não pergunta ao interlocutor o nome de sua
família, onde mora, quanto ganha e o que há em sua bolsa? Um surdo-
mudo. Você.
Philipose se acomoda o melhor que pode contra sua bagagem, sem
espaço para se esticar. Põe de lado o papel almaço com a lista de
carreiras eliminadas, e agora sua caneta corre de uma ponta a outra no
diário encadernado.
Ela deve achar que sou do tipo que dá fungadelas quando os outros
dão, que come quando os outros comem e que só fala quando se dirigem a
ele. Por favor, não me julgue, Jovem Senhorita, por minha hesitação. Mas
era justo que ele a tivesse julgado, como fez, como uma pessoa segura
de si, disposta a fazer perguntas, mas também capaz de dar de ombros,
pacificamente, caso não lhe respondam? Philipose está bem consciente
da presença dela no leito acima, tendo apenas Arjun-Ferrovias entre os
dois.

O rapaz acorda com uma forte luz no rosto e uma espantosa


paisagem verdejante: arrozais inundados com estreitos diques de lama
serpenteando entre eles, mal contendo a água cuja superfície calma
espelha o céu; coqueiros, tão abundantes quanto o capim; cipós de
pepino na margem de um canal; um lago tomado por canoas; uma
barcaça majestosa cruzando em meio às embarcações menores, como
uma procissão avançando pela nave de uma igreja. Suas narinas
registram jaca, peixe frito, manga e água.
Antes mesmo de o cérebro digerir essas visões, seu corpo — além de
pele, terminações nervosas, pulmões e coração — reconhece a
geografia de seu nascimento. Ele nunca entendeu o quanto tudo aquilo
importava. Nessa faixa de costa abençoada onde se fala o malaiala, a
carne e os ossos de seus ancestrais foram filtrados pelo solo, chegaram
às árvores, à plumagem iridescente dos papagaios dispersando-se na
brisa. Philipose sabe o nome dos quarenta e dois rios que correm pelas
montanhas, mil e seiscentos quilômetros de canais, alimentando o solo
fértil, e ele se irmana a cada átomo dali. Sou a semente em suas mãos,
pensa, contemplando muçulmanas em blusas coloridas e mundus,
panos cobrindo-lhes folgadamente o cabelo, mulheres curvando-se
como folhas de papel dobradas ao meio, movendo-se em fila pelos
arrozais, cutucando a terra para revivê-la. O que aparecer em meu
caminho, seja lá qual venha a ser a minha história, as raízes que devem
nutri-la estão aqui. O rapaz se sente como que transformado por uma
experiência religiosa, porém aquilo nada tem a ver com religião.

A Jovem Senhorita volta do banheiro e detém Philipose quando ele


faz menção de retirar o baú e a caixa do banco; ela se espreme entre ele
e Arjun. Põe os óculos escuros e enrola o lenço no pescoço. Arjun
acabou de se barbear, ostenta uma camisa limpa e um namam de
Vishnu, sua forquilha tripartida contrastando com o namam do
brâmane mais idoso a bordo, que tem uma pincelada horizontal,
indicando aliança à Shiva. Linhas são traçadas — xivaístas contra
vixenuístas —, mas os dois sorriem. Arjun confessa à Philipose: “Passo
metade da vida em trens. Estranhos de todas as religiões e de todas as
castas convivem tão bem no mesmo compartimento. Por que não é
assim fora do vagão? Por que não vivemos em paz, todos juntos?”. Arjun
olha pela janela e engole em seco.
Philipose não tem tempo de responder, pois adentraram Cochim.
Um carregador pega um de seus baús, enquanto o carregador de
Meena ameaça levar seu rádio. Na confusão, a Jovem Senhorita dá um
tapinha em seu ombro e lhe entrega sua folhinha de papel almaço,
com a lista de profissões. Deve ter caído do caderno. Ela se despede
sem falar nada, apenas inclina cabeça e sorri. Boa sorte, os olhos dela
falam. E então ela parte.
Quando Philipose está no ônibus para Changanacherry, sem
nenhuma peça de bagagem a menos, pode relaxar. Mas se enfurece
consigo por não ter perguntado o nome da Jovem Senhorita. “Idiota!
Idiota!”, pensa, e bate com a testa no assento da frente. O ocupante se
vira e o encara. Ele abre o papel almaço, constrangido ao imaginar a
Jovem Senhorita lendo sua lista de profissões. Mas há uma folha a mais
dobrada ali. É uma folha do caderno dela, um retrato: Philipose
adormecido, a cabeça descansando contra a janela do trem, o corpo
caído de lado, a caixa de papelão com o rádio pressionando-lhe as
costelas. Sua boca está fechada, o sulco abaixo do nariz é uma canoa
escavada na carne sobre a borda vermelha do lábio superior.
Não estamos acostumados, ele reflete, a ver nosso rosto verdadeiro.
Mesmo diante de um espelho, compomos uma expressão que vá ao
encontro de nossas expectativas. Mas a Jovem Senhorita capturou-o por
completo: a ambição frustrada, a ansiedade com o porvir. Além disso,
capturou sua determinação. Ele fica comovido e ainda mais
emocionado ao ver o modo como ela desenhou suas mãos — uma
delas descansando sobre o rádio, a outra sobre o baú cheio de livros.
Essa postura no sono fala de sua velha coragem, sua confiança; as mãos
de um homem determinado. Meu pai capinou uma selva inteira; fez o
que outros consideravam impossível. Não deixarei por menos.
Como é possível que, com apenas alguns traços, ela tivesse capturado
tudo aquilo, até a brisa fria que soprou na manhãzinha, deixando uma
de suas faces dormente? Que bom que ele não inventou nenhuma
história e só contou a verdade, pois a moça viu tudo.
Ao pé da página, ela escreveu:

Dobrado e quebrado, porém melhor. Boa sorte.


Sempre,
E.

Muito tempo atrás, uma garota chamada Elsie o desenhou no


Chevrolet do pai dela. Era a primeira vez que ele andava de carro.
Naquele dia ele estava doente de preocupação, imaginado que, devido
à inundação, sua mãe fosse esperar o pior. Uma Jovem Senhorita muito
mais jovem sentada no banco de trás deslizou os dedos para tocar a
mão que ajudara a salvar a vida de um bebê. Ele colou aquele antigo
retrato na parte interna do armário: era um reflexo mais preciso do que
a imagem no espelho.
Se a Jovem Senhorita não é ninguém menos do que a filha de
Chandy, crescida e ainda mais habilidosa com o lápis, então foi o
destino que os uniu. Ele repassa a conversa dos dois no trem, o
semblante dela… O adeus silencioso, o sorriso de despedida.
O ônibus dá uma guinada para o acostamento, e o motorista corre
para trás de uns arbustos. “Não conseguiu segurar?”, resmunga uma
mulher. “Se os homens soubessem como sofrem as mulheres!” Os
cheiros dos companheiros de viagem — óleo de coco, fumaça de
lenha, suor, folhas de betel e pedaços de tabaco — sufocam-no,
trazendo-o de volta para a realidade. Os cristãos de São Tomé são uma
comunidade relativamente pequena e poucas vezes se casam com
gente de outra fé. Ainda assim, Chandy, com o Chevrolet e a vasta
propriedade de chá e o estilo de vida State Express 555, com certeza
tem muitos candidatos para sua única filha, e todos hão de ser rapazes
extremamente ricos e bem-sucedidos, ou pelo menos extremamente
ricos. Em Parambil, Philipose e a família passam bem, mas nem se
comparam aos Thetanatts.
O ônibus arranca de novo, e o movimento deflagra uma mudança
em sua atitude, uma nova determinação se firma. Não desistirei dela.
Elsie é bonita, talentosa e obstinada. Ela sem dúvida sentiu a conexão
entre eles, sentiu que os dois compartilharam mais do que uma
fungadela. Provavelmente o reconheceu de imediato, embora só se
revelasse ao fim da viagem. Elsie, construirei uma reputação, serei digno
de você, ele pensa. Então farei com que Grande Ammachi fale com o
casamenteiro Aniyan para que ele proponha uma aliança entre nossas
famílias. O pior que pode acontecer é que vocês neguem. No entanto,
pelo menos terei tentado, e você saberá disso. “Mas, ah, Elsie, por favor,
espere. Dê-me pelo menos alguns anos.” O casal no banco à frente se
volta para olhá-lo — ele deve ter falado em voz alta. O homem diz para
a esposa: “Avaneu vatta”.
Sim, estou louco. Não se pode correr atrás de seus objetivos sem um
pouco de loucura.
43. Para vossa própria casa

parambil, 1943

Na ausência de Philipose, Parambil tende à desordem. Shamuel cai


ao trepar numa palmeira que ele escalou sem nenhum motivo e agora
seu tornozelo está do tamanho de um coco. O velho fantasma do porão
derruba uma urna e geme. Grande Ammachi, já num humor irritadiço,
desce pronta para a luta. Então, naquele espaço abafado, cheio de teias
de aranha, não vê nenhum estrago: a urna estava vazia e permanece
intacta. Ocorre-lhe que o espírito sofre de solidão. Senta e conversa,
parecendo a vendedora de peixe ao descrever as recentes calamidades.
“Desde que voltou de Cochim, o Senhor Melhorias se mostra confiável
durante o dia, mas quando o sol se põe bebe até cair. E nossa Decência
Kochamma escorregou e quebrou o pulso, culpando Dolly Kochamma
pela cera no piso da cozinha compartilhada. Dolly disse com sua voz
calma e pacífica: ‘Da próxima, se Deus quiser, você quebra o pescoço’.”
Grande Ammachi se retira, não sem antes prometer visitas mais
frequentes.
Às tardes, por hábito, ela se pega esperando Philipose chegar da
escola gritando: “Ammachio!”. “Ammachio” significa que novas ideias
estão nadando na cabeça dele, como girinos em poças de lama. Quanta
coisa ela aprendeu sobre o mundo com o filho! O mapa que ele
desenhou cobre uma parede do quarto, marcando os locais onde as
forças indianas estão lutando e morrendo. Tripoli, El Alamein — até os
nomes são fascinantes. Ela, Bebê Mol e Odat Kochamma sentem falta
das leituras noturnas, quando as três sentavam na cama de corda, como
pássaros num varal, os olhos grudados em Philipose. Naquele ano ele
“representou” dois contos malaialas de M. R. Bhattathiripad. E um
inesquecível drama inglês, em que interpretou todos os papéis: o rei
assassinado, o irmão usurpador e o fantasma do rei falecido. Quando
Ofélia enlouquece e cai no riacho, as mulheres de Parambil se
abraçaram. Seu vestido, abrindo-se sobre a água como um sári, faz a
jovem flutuar por um momento. Depois, apesar das orações
desesperadas das ouvintes, ela se afoga. Assim que Philipose partiu,
Odat Kochamma anunciou: “Vou visitar meu filho. É chato aqui sem
nosso menino”. Não ficou lá nem uma semana.

Numa manhã de sol, nem um mês depois que Philipose partiu, ela
lê o Manorama.

avião japonês bombardeia madras. êxodo em massa da cidade.

A manchete lhe arranha os olhos, um nó na garganta lhe dá a


sensação de que engoliu lixívia. Grande Ammachi se põe de pé,
querendo correr para seu filho.
Bebê Mol também se levanta, dizendo: “Nosso bebê está vindo!”.
Segundo o jornal, o bombardeio aconteceu há três dias. Um avião de
reconhecimento japonês voou sobre uma cidade já às escuras — devido
às chuvas havia faltado energia — e jogou três bombas perto da praia.
As sirenes de ataque aéreo nunca dispararam, e as explosões ficaram
sem explicação: por dois dias, os cidadãos não souberam do
bombardeio, pois as estações de rádio não tinham eletricidade e os
militares não queriam provocar pânico. Quando a notícia se espalhou,
o medo de uma invasão japonesa provocou um êxodo frenético.
Deus, me ajude, como encontro meu filho?
Bebê Mol pula eufórica, distraindo e irritando Grande Ammachi.
Para piorar, uma carroça está se aproximando. O que será agora? A
expressão arrasada dos animais espelha o semblante do passageiro que
desce e diz um “Amma­chio” bastante tímido.
Ela esfrega os olhos. É uma alucinação? Então ela e Bebê Mol
correm e se agarram a ele como se para impedi-lo de partir de novo.
Ele perdeu peso e parece esquelético.
Philipose está aliviado e também espantado. “Não vai perguntar por
que voltei?”
Ela bate o jornal contra o peito dele. “Li isso e quase morri. Deus
trouxe você para casa para te salvar e me poupar.” Philipose lê. Não
sabia de nada.

Naquela noite, depois que Bebê Mol e Odat Kochamma vão dormir,
ela entra no quarto dele com dois copos de água jeera quente. Eles
sentam na cama, como era costume dos dois. Philipose conta que foi
dispensado. Fala do encontro com o professor na estação, um aviso;
depois, quando não ouve seu nome em sala. Ela sangra por ele, queria
tê-lo poupado daquela tristeza. “Ammachi”, ele diz. “Sinto muito te
desapontar.”
“Monay, você nunca vai me desapontar. Estou tão feliz por você
estar em casa. Deus te ouviu. Seu destino não era aquele.”
Hesitante mas empolgado, ele mostra o conteúdo dos dois baús
cheios de livros. Depois, o rádio, à espera num canto. Philipose quer
logo justificar suas compras. “Ondas de rádio estão por toda parte,
Ammachi, e agora temos a máquina para captar essas ondas, para trazer
o mundo até a gente. Só precisamos de eletricidade.”
“Tudo bem, monay. Você gastou o dinheiro com sabedoria.”
Ficam em silêncio à luz do abajur. Ela segura a mão do filho, tão
diferente da mão do marido, seus dedos alongados, mais como os dela.
É como se ele nunca tivesse partido.
“Ammachi, tem outra coisa.”
Meu Deus, e agora? Mas a expressão dele é de uma empolgação ma‐­
ra­vilhada, como no dia em que chegou em casa com Moby Dick,
gritando “Ammachio!”.
O rapaz fala da jovem que viajou com ele no mesmo cubículo.
“A filha de Chandy?”, ela pergunta. “Meu Deus! Lembro dela
menina, desenhando com Bebê Mol. Que coincidência. Como ela
está?”
“Ammachi, ela está linda!”, ele responde. Conta cada detalhe do
encontro como se recitasse uma história mítica, desde o embarque até
o momento em que ele descobriu aquele desenho. Mostra o retrato à
mãe. A imagem lhe parte o coração: seu filho voltando para casa, cheio
de preocupação, cercado pela bagagem.
“Ammachi, vou casar com ela”, ele sussurra. “Se Deus quiser. Sim,
eu sei. Agora que não terei uma graduação, minhas perspectivas não são
as melhores. Sem falar de minha audição — e da Condição.” O jovem
não dá trela para os protestos da mãe. “Mas serei alguém na vida. Só
rezo para que ela não esteja casada quando eu estiver pronto.”
“Você não disse nada disso para ela, disse? Sobre casamento?”, ela se
preocupa.
“Não.”

Depois que a mãe vai dormir, Philipose permanece bem acordado.


Não tinha ideia de quem era a Jovem Senhorita e perdeu a chance de
perguntar. Tudo poderia ter terminado ali. Mas Elsie fez questão que
ele soubesse. Sua fantasia, sua esperança, sua prece é que ele se
demore na consciência dela esta noite, tal como ela vive na dele.
Talvez ela esteja pensando nele, perguntando-se como terá sido sua
chegada, assim como ele imagina nesse exato momento como o pai
dela a recebeu. Se duas pessoas no mesmo instante têm visões uma da
outra, pode ser que os átomos coalesçam numa forma invisível, como as
ondas do rádio, e os conectem. O rosto bonito dela lhe aparece diante
dos olhos quando ele cai num sono apaziguado, o tipo de sono que só
pode acontecer em sua cama, em sua casa, no solo de Parambil, nessa
terra de Deus.
44. Em uma terra de abundância

parambil, 1943

Philipose teve sorte de sair de Madras. Os jornais dizem que os


terminais de ônibus e trens estão lotados. Muita gente fugindo. Ele se
pergunta se seus colegas de classe terão partido. Tudo na cidade está
suspenso. Ele está suspenso.
Não queria ter de explicar para todos por que voltou, mas, por ora,
nenhuma explicação é necessária. O medo de uma invasão japonesa
tomou Travancore. Da noite para o dia, o preço do arroz disparou. O
arroz do sul da Índia é tão apreciado que costuma ser exportado, e os
consumidores indianos devem se conformar com o arroz barato que
importam da Birmânia. Contudo, com a queda de Rangum, as
importações cessaram; ao mesmo tempo, os britânicos confiscaram
para as tropas os estoques do arroz produzido localmente. É assim que
se deflagra uma grande fome.
A guerra logo desliza das páginas do Manorama para dentro de casa;
materializa-se na forma de um homem vestido decentemente, com um
sorriso sardônico, resultado de maçãs do rosto tão magras que se colam
aos ossos. As extremidades de seus ombros sobressaem como nozes-de-
areca, as saboneteiras nas clavículas se destacam. Sua esposa espera à
sombra, com um bebê. A voz do homem treme. Obrigado a deixar
Singapura por causa dos japoneses, voltou para casa sem nada, ele diz.
“Perdoe. Essa manhã eu disse: ‘Meu bebê deve morrer porque meu
orgulho não me deixa mendigar?’. Então mendigo, não por dinheiro.
Só por um bocado de arroz ou pela água que sobrou do cozimento.
Temos vivido de farelo, mas agora acabou. Os seios de minha mulher
estão murchos como os de uma anciã. E ela só tem vinte e dois anos.”
Outro dia, é um homem esquelético que implora por comida em
nome do irmão, que o acompanha em silêncio, levando uma menina
pela mão — sua mulher se jogou num poço com os filhos do casal,
vendo ali um destino menos duro que a lenta inanição. Só aquela
menina se salvou. Philipose iden­tifica um novo cheiro: o odor frutado,
acetonado, de um corpo consumindo a si mesmo, o cheiro da fome.
Perturbado por essas visões, ele leva para o muttam o grande
recipiente de cobre usado durante as celebrações de Onam e do Natal,
instalando-o sobre tijolos. Com a ajuda de Shamuel, cozinha uma papa
de arroz e kappa, acrescentando bananas esmagadas e óleo de coco no
lugar do ghee. Depois, prepara pacotes de folha de bananeira a serem
distribuídos. A pedintes seletos, pois se a notícia correr haverá tumulto.

Passadas poucas semanas do retorno de Philipose, parentes


sorumbáticos se reúnem depois da missa, bebendo chá. O rapaz, pela
escuta e pela leitura labial, acompanha as conversas deprimentes. Os
visitantes, a quem não falta comida, mas que decerto receberam a visita
de pedintes, só falam de como as dificuldades os têm afetado.
“Vocês souberam da última de nosso Philipose?”, pergunta o
supervisor Kora, no tom jocoso de sempre, como se para animar o
grupo. Kora tem problemas pulmonares crônicos e entrecorta suas
frases para recuperar o fôlego. Fala como se Philipose não estivesse ali,
embora sorria para ele. “Ele trouxe um rádio! O problema é que rádio
precisa de eletricidade. Aah! Se não há eletricidade em Travancore,
como chegará a Parambil?”
Aquelas palavras tiram Philipose do sério. O pai de Kora havia
conseguido que o marajá lhe concedesse o título de “supervisor” pelo
trabalho voluntário que fazia quando viveu em Trivandrum. O pai
mereceu o título, ainda que ele só lhe desse direito a um privilégio: ser
chamado de “supervisor”. O cargo não é hereditário, apesar de Kora
insistir que é. A certa altura o pobre pai endossou um empréstimo que
Kora tomou para um negócio, que fracassou; com isso, o pai perdeu a
propriedade em Trivandrum. Ficaria sem teto se um primo de terceiro
grau — o pai de Philipose — não lhe desse um terreno em Parambil.
Depois que o pai de Kora morreu, o filho logo deu as caras com uma
noiva para demandar sua herança. Foi no mesmo ano em que o Senhor
Melhorias e Shoshamma chegaram. Kora era mais jovem e parecia o
mais extrovertido dos dois homens; se tivesse de adivinhar, Philipose
apostaria que ele tinha mais chances de sucesso. Ledo engano. Kora
inventa mil esquemas, mas nada se concretiza.
Todos amam a mulher de Kora, Lizziamma, ou Lizzi, como a
chamam com mais frequência. Lizzi é órfã, estudou num convento até
o pré-vestibular. É bondosa e bonita, cópia da imagem da deusa
Lakshmi, tal como ela aparece na pintura de Raja Ravi Varma, presente
em tantos calendários. Varma era da família real de Travancore. A
iniciativa de ter a própria imprensa lhe permitiu distribuir cópias de
suas pinturas. Sua Lakshmi tem traços distintamente malaialas: face
larga de querubim, sobrancelhas espessas e escuras emoldurando olhos
grandes e arredondados, um cabelo longo e ondulado até os quadris.
Graças à popularidade de Varma e seu tino comercial, sua Lakshmi é a
Lakshmi embutida na consciência dos hindus de toda a Índia. Para
Philipose, Lizzi não tem ideia de sua beleza; sua postura é humilde,
bem diferente da atitude do marido. Grande Ammachi adora Lizzi e a
trata como filha. Lizzi passa muito tempo na cozinha com a matriarca,
e, quando Kora dorme fora devido a algum “negócio”, ela dorme com
ela e Bebê Mol. A única coisa boa que se pode dizer de Kora é que ele
adora a esposa; apesar de todos os seus defeitos, é preciso admirar, a
contragosto, sua devoção a Lizzi.
“Kora”, diz o Senhor Melhorias, “apesar de suas conexões, você não
sabia que Trivandrum tem eletricidade? O diwan tem um projeto para
levar energia elétrica para toda a região de Travancore.” O diwan é o
diretor-executivo do governo do marajá.
“Quem disse?” O tom de Kora é de desafio, mas aquela informação é
claramente uma novidade para ele.
“Chaa! Já existem geradores termais em Kollam e Kottayam! E eu
aqui achando que você estava a par das notícias de Trivandrum.”
Georgie, sentado ao lado do irmão gêmeo, diz: “Kora está a par dos
bolsos de Trivandrum, não das notícias”.
O sorriso de Kora se esvai. Ele dá uma desculpa esfarrapada e sai.
Philipose não sabe se fica contente por Kora ter sido posto em seu
devido lugar ou se sente pena do coitado. Mas a “piada” de Kora ainda
o incomoda, pois ele sabe que o dinheiro que gastou naquele rádio, que
só serve para pegar poeira, poderia ter alimentado muita gente.

Philipose é assombrado pelos famintos que aparecem todos os dias. A


papa que distribui é apenas um lenitivo. Precisamos fazer mais. Mas o
quê? Ele bola um plano e convoca o Senhor Melhorias para ajudá-lo.
Constroem um barracão próximo ao embarcadouro, depois pedem
emprestado grandes caldeirões, daqueles usados em casamentos.
Recorrem ao velho sultão pattar, lendário cozinheiro de matrimônios.
O velho reluta até ver o barracão, a lenha empilhada, os quatro fornos
de chão e os caldeirões polidos. O sangue dele se agita. Ele divisa uma
refeição barata e nutritiva tendo kappa por base, afinal toda casa pode
doar alguns tubérculos de mandioca.
Em pouco tempo o Centro de Alimentação é inaugurado. Cada
pessoa recebe uma porção de kappa, um pouco de thoren de feijão
mungu, um tiquinho de picles de limão e uma colher de chá de sal. O
ancião, empolgado, está irreconhecível: barbeado, dorso nu, saltita e
grita ordens a seu exército — as crianças entusiasmadas encarregadas
de picar, raspar, servir e limpar. O ancião as entretém, dançando com
passos miudinhos e afetados, o peitoral balançando enquanto ele entoa
canções de significados dúbios.
No primeiro dia, alimentam quase duzentas pessoas. Depois de duas
semanas, um repórter aparece. Descreve a refeição simples como uma
das melhores de que se tem notícia e dá o crédito da iniciativa à
Philipose, um jovem que não aguentou testemunhar tanto sofrimento e
não agir. Philipose cita Gandhi: “Algumas pessoas sentem tanta fome
que Deus só pode aparecer a elas na forma de comida”. A fotografia
que ilustra a reportagem mostra o sultão, o Senhor Melhorias e
Philipose de pé, atrás do pequeno exército cujo membro mais novo tem
cinco anos, e o mais velho, quinze. O artigo deflagra uma onda de
doações e voluntários e… mais esfomeados. Inspirados pelo exemplo,
outros centros surgem na região de Travancore.
Ao fim de cada dia, Philipose escreve no diário, tentando registrar as
conversas que ouviu no centro, as histórias de miséria e sacrifício, mas
também de heroísmo e generosidade. Surpreende-se com a capacidade
das pessoas de enfrentar o sofrimento com algum humor. Aqueles
escritos são um exercício, não um relato jornalístico, então ele pode
amalgamar personagens, inventar elementos ausentes da narração
original e criar seus próprios desfechos — “desficções”, é como entende
naquele gênero. Enquanto escreve, pen­­sa frequentemente em Elsie; é
isso que ela faz com o carvão, tentando dar sen­tido àqueles tempos
incertos? Na revista semanal do Manorama, estuda atentamente os
contos e ensaios que admira. O que está escrevendo lhe parece
diferente. Decide inscrever uma de suas desficções num concurso de
contos do Manorama.

coluna de sábado: o homem plavu


por V. Philipose

É possível confundir um homem com uma jaqueira — uma plavu?


Sim, aconteceu comigo. Sou um homem comum, não um escritor,
então lhes dou o fim no começo. (Por que não começar toda a história
pelo fim? Por que não começar pelos Evangelhos em vez de Gênesis e
tudo mais?) Enfim, esta história começa com nosso Centro de
Alimentação. Não o chamem de Centro para Esfomeados, pois o
governo diz que não há gente passando fome, não importa o que
digam nossos olhos. Depois que todos foram embora, um velho magro
como um lápis apareceu carregando uma chakka gigante, maior do
que ele. Isso é para você alimentar as crianças amanhã, declarou. Se
tiver um cozinheiro decente, pode fazer um bom puzhukku. Irmão, eu
disse, perdoe-me, mas você parece faminto, por que doar sua chakka?
Ah, não estou doando nada. É a plavu que dá! A natureza é generosa.
Eu queria dizer: Nesse caso, que a plavu mande também picles e arroz.
No dia seguinte, ele trouxe uma chakka maior ainda. De longe ele
parecia uma formiga carregando um coco. Eu disse: Irmão, coma um
pouco antes de ir. Ele recusou. Quem nesses tempos recusa uma
refeição? Eu falei: Irmão, como é que um velho tão magro consegue
carregar coisas tão pesadas? Qual o segredo? Ele respondeu: Os
segredos se escondem nos lugares mais óbvios.
Naquele dia passei por nossa famosa plavu Ammachi — a mãe de
todas as jaqueiras —, a mesma em cujo tronco nosso marajá
Marthanda Varma escondeu-se dos inimigos, séculos atrás. Sim, a vila
do marajá alega possuir a árvore lendária, mas ela fica aqui, não há
discussão. Enfim, ouvi uma voz dizer: Você veio descobrir meu segredo?
Nesse momento reconheci a voz do velho. Mas não vi ninguém.
Mostre-se, eu disse. Ele falou: Você está olhando para mim.
Se eu disser que ele se encostou na árvore, vocês não entenderão.
Não, ele entrou na árvore. Sua pele era casca, e seus olhos eram nós
na madeira. Ele disse: Quando a fome começou, eu já não tinha
arroz. Recostei-me nesta plavu e esperei a morte. A casca era áspera,
mas pensei: Por que reclamar? Logo deixarei este mundo. Depois de
algumas horas afundei na árvore. Era confortável, eu parecia
descansar no colo de minha Ammachi. Pedi: Oh, poderosa plavu, se
podes fazer frutos gigantes mesmo na seca, não podes me alimentar? A
plavu respondeu: Por que não? Então por isso estou aqui. A plavu me
dá tudo. A natureza é generosa. Eu disse: Velho, se a natureza é
generosa, por que tanta fome? Ele falou: Culpe a natureza humana,
que faz os mercadores acumularem comida nos depósitos e Churchill
levar nosso arroz para suas tropas, enquanto passamos fome. Eu
questionei: Não sente falta de companhia, vivendo sozinho assim? Ele
sorriu. Quem disse que estou sozinho? Olhe ali aquela pequena plavu
— está vendo Kochu Cherian? E aqui, perto de mim, não vê
Ponnamma? Por que você não senta aqui de meu outro lado? A
natureza tudo provê.
Amigos, eu saí correndo. Que vergonha há em confessá-lo? Moral
da história: doem com a generosidade que a natureza doa. E deem
uma boa olhada em sua plavu, pois os segredos se escondem nos
lugares mais óbvios.

“O homem plavu” vence o concurso e é o único, dos três contos


vencedores, a ser publicado. Philipose toma isso como um sinal. Em
poucos meses, foi mencionado no Manorama por inaugurar o Centro
de Alimentação, e agora seu escrito é publicado. Talvez escrever para
jornal seja sua verdadeira vocação. Seu sucesso não silencia os
comentários maldosos de gente como o supervisor Kora — sobre
Philipose não voltar para Madras —, e nem todos gostam do tal
“homem plavu”: Decência Kochamma acha que é blasfêmia. Mas há
apenas uma leitora cuja opinião Philipose deseja, a única leitora para
quem escreve. Reza para que Elsie tenha lido seu conto; torce para que
ela consiga ver que, apesar de dobrado pelo mundo, ele não quebrou.

Agora já faz mais de um ano que Philipose voltou de Madras, ainda


que a ferida daquela breve estadia continue aberta. Depois de publicar
o primeiro conto, o editor do Manorama se mostra disposto a examinar
outros textos. Recusa três contos seguidos, até publicar o quarto, sob a
chamada: “A coluna do Homem Comum”. Aquilo sugere a Philipose
que ele talvez possa vir a ser um colaborador regular, embora não goste
muito do título escolhido pelo editor — quem quer ser chamado de
“comum”?
Naquele ano e no seguinte, Philipose publica mais algumas de suas
desficções. Seus escritos são bem recebidos, a julgar pelas cartas dos
leitores, embora os malaialas sempre possam encontrar defeitos, e
encontram. Ainda assim, nem ele nem o jornal estão preparados para o
imbróglio que se segue à publicação de “Nenhum rato que respeite a si
próprio trabalha no Secretariado”. O narrador é um rato machucado
que se arrasta para um grande edifício do governo à noite e se compraz
ao não encontrar ninguém de sua espécie com quem competir. Na
manhã seguinte, os funcionários do Secretariado chegam:

O grande espaço aberto deve ser um lugar de adoração, concluí. Deus


está lá em cima, invisível. Os ventiladores de teto são as manifestações
d’Ele, pois posicionam-se bem sobre os sacerdotes (que são chamados
de secretários-chefes). Quanto mais baixa sua casta, mais longe dos
ventiladores você fica. Qual é o trabalho ali? Ah, levei horas para
entender, embora estivesse na cara: o trabalho é ficar sentado. Você
chega pela manhã, senta e contempla os arquivos à sua frente e faz
cara de enterro. Por fim, puxa uma caneta. Quando o sumo sacerdote
olha em sua direção, você pega o primeiro arquivo e desenlaça a fita
que prende os papéis. Mas, sempre que ele se retira, você e os demais se
põem de pé, apoiam-se nas mesas, sob o ventilador, contando piadas.
O trabalho é esse.

A União dos Trabalhadores Administrativos se ofende


profundamente com o texto de Philipose e pede a cabeça do Homem
Comum; a confusão só lhe angaria mais leitores. O público (junto com
o Sindicato de Jornalistas e Repórteres) está do lado do escritor, pois
todo cidadão de Travancore já passou pela experiência de se ver
enrolado em burocracias, tendo de se retirar das premissas do
Secretariado com o coração desconsolado. O Senhor Melhorias é dos
raros indivíduos com paciência e habilidade para encarar a burocracia
— uma luta que ele chega a apreciar.
Um leitor anuncia-se tarde da noite, imitando a rola-do-senegal, um
som risonho entrecortado, como se alguém fizesse cócegas numa
mulher. Philipose aparece na varanda e cumprimenta Joppan, dando-
lhe um belo soco no ombro. “Isso é por não vir me visitar por tanto
tempo!”
“Aah, sente-se melhor agora?” Joppan mostra-se robusto como
sempre, de estatura compacta e baixa, os ombros tão largos quanto o
sorriso. Tem uma garrafa de vinho de palma em uma das mãos; com a
outra, devolve o soco de Philipose. “E isso é por eu ter sido o último a
saber que você era comunista.”
“Sou comunista?”, pergunta Philipose, massageando o ombro
dolorido.
“Não foi você que fundou o Centro de Alimentação? Sinto orgulho
de você. Vladimir Lenin disse: ‘A imprensa não deve ser apenas um
agitador coletivo, mas também um organizador coletivo das massas’.
Então basta ver suas ações e palavras: você é um revolucionário!”
“Aah, certo. Agora posso dormir melhor. Então, como anda,
Joppan?”
Joppan dá de ombros. O negócio de barcaças de Iqbal, como todos
os outros negócios das redondezas, está empacado. Iqbal não pode
pagá-lo, mas, já que Joppan é como um filho para ele, o patrão o
alimenta. Joppan diz: “Olhe para mim. Falo e escrevo malaiala e sei ler
inglês. Sei fazer registros. Conheço esses canais de trás pra frente. No
entanto, agora tenho sorte se consigo trabalhar na lavoura aqui e ali. De
noite frequento as reuniões do Partido Comunista, que, se não
alimentam minha barriga, alimentam meu cérebro. Durmo na balsa
porque, se venho para casa, não paro de discutir com meu pai”.
Philipose diz: “Você não pode esperar que ele mude”.
“Eles querem que eu me case, acredita? Mal consigo sobreviver
sozinho!” Ele ri. “Talvez eu case só para que fiquem felizes. Nada que
faço satisfaz aqueles dois.”
Conversam como nos velhos tempos até depois da meia-noite,
quando Joppan se levanta para ir embora, iluminado pelo vinho de
palma que enxugou quase todo. “Sobre o Centro de Alimentação. Falo
sério, Philipose. Sinto muito orgulho de você. Você está salvando vidas.
Mas pense: se nada mudar, se as pessoas não tiverem como escapar da
pobreza, se os pulayar nunca tiverem direito à terra ou a deixar sua
riqueza para os filhos, então, na próxima vez que houver uma grande
fome, você encontrará as mesmas pessoas esperando na fila. E gente
como você terá de alimentar essas pessoas.”
Aquele pensamento tira o sono de Philipose.

Semanas depois, Grande Ammachi anuncia que Joppan vai casar no


dia seguinte.
“Quê? Não pode ser. Ele não me contou. Fomos convidados?”
“Não cabe a Joppan convidar. Shamuel nos convidou hoje. E agora
estou te informando.” Vendo o olhar cabisbaixo do filho, ela diz: “Veja,
não deve ser um matrimônio que passaram meses planejando. Devem
ter decidido agorinha”.
“Onde é o casamento? Vai ser pela Igreja do Sul da Índia? Eu vou.”
“Não seja tolo. Não é assim que funciona.”
“Eu vou de qualquer jeito”, diz, irritado. “Joppan vai ficar contente.”
“Não, você não vai”, a mãe retruca, com firmeza. “Aquela família
significa muito para nós. Não os embarace só porque você não entende
seu lugar.”

Depois do casamento, o novo casal e os pais do noivo vêm fazer uma


visita, trazendo doces de açúcar mascavo. Tímido, Joppan sorri ao
apertar a mão de Philipose. Murmura: “Eu disse que ia casar”.
“Você disse que talvez se casasse.”
A esposa dele, Ammini, é tímida e mantém o tempo todo a cabeça
coberta, então Philipose mal consegue ver seu rosto direito. Shamuel
está radiante, como se todos os seus problemas tivessem chegado ao
fim. Aperta a mão do filho, cheio de afeição. Grande Ammachi
presenteia o casal com três rolos de tecido de algodão, um conjunto
novo e reluzente de vasilhas de cobre e um envelope gordo. Joppan
agradece juntando a palma das mãos e se curva para tocar-lhe os pés,
mas ela o detém. Shamuel e Sara correm as mãos pelos presentes,
como crianças. Philipose fica admirado com a intuição da mãe. Depois
que partem, Grande Ammachi conta que deu a Shamuel um terreno
logo atrás daquele que ele já possui, para que ele construa uma
habitação separada para Joppan e a nora, se quiser, ou para que o
repasse em definitivo para o casal.

Um ano e quatro meses depois da petição do Senhor Melhorias, a


eletricidade chega a Parambil, vindo de uma subestação a quase um
quilômetro de distância. Só quatro famílias se dispuseram a
compartilhar o custo da extensão. O Senhor Melhorias diz: “Quando os
outros quiserem eletricidade, vão ter que pagar uma parcela de nossos
custos iniciais, corrigida pela inflação. Talvez até recuperemos o
investimento”.
No clarão das lâmpadas de vinte watts, as residências eletrificadas
celebram, enquanto os vizinhos resmungam. A expressão no rosto de
Bebê Mol quando ela acende o “pequeno sol” já faz tudo valer a pena.
Insetos acorrem da escuridão e volteiam a lâmpada, como se o Messias
dos invertebrados tivesse chegado. Philipose aciona o rádio que ficou
na caixa, ocioso, por tanto tempo. A voz de um homem preenche a
sala, lendo as notícias em inglês, e, naquele momento, o rapaz sente-se
justificado. Trouxe o mundo para a porta de casa. Odat Kochamma,
ouvindo a voz estrangeira sem corpo, logo se aproxima, agarrando a
primeira coisa que encontra para cobrir sua cabeça — acontece de ser a
calcinha de Bebê Mol. Philipose a vê no umbral, fazendo o sinal da
cruz, com a estranha peça de roupa pendendo da testa. “Fique de pé,
monay!”, ela diz, severa. “Uma voz sem corpo é a voz de Deus!” Ela
não parece convencida pelas explicações de Philipose. Ele muda de
estação, uma música começa a tocar, e Bebê Mol dança até a hora de ir
para a cama. Horas depois, o jovem ainda está curvado sobre o rádio,
sentindo-se como Odisseu conduzindo sua embarcação sobre mares
revoltos de ondas curtas. Depara-se com uma performance de teatro e é
transportado de Parambil para um palco distante, ecoando palavras que
sabe de cor: “Se vier agora, não virá mais; se não está por vir, será agora;
se não vier agora, ainda virá. Prontidão é tudo”.
Grande Ammachi dispensa a lâmpada elétrica no quarto ou na
cozinha. O lampião a óleo, de base gasta, acostumado às suas mãos, é
suficiente; seu halo dourado a consola, bem como as sombras líquidas
que projeta no piso e nas paredes, e o cheiro de pavio queimado. Esses
elementos ondeantes de sua noite ela prefere preservar.
Antes de deitar, ela leva água jeera quente para o filho. O brilho
etéreo do botão do rádio ilumina o rosto dele. O mundo merece sua
curiosidade, seu bom coração e sua escrita, ela pensa. No passado, o
filho buscou um mundo mais largo do que ela podia imaginar. Agora,
ele se contenta com os livros e o rádio. Ela torce para que aquilo seja
suficiente. Senhor, reza, diga-me que o lugar de meu filho é mesmo aqui.
Philipose a pressente, vira-se e diz: “Ammachio!”. Ele a chama e
desliga o rádio pela primeira vez em muitas horas. O rosto dele está
vermelho de tanta excitação, e o rapaz parece um pouco nervoso. Ela
se prepara para qual há de ser a nova paixão dele.
“Ammachi”, afirma. “Chame o casamenteiro Aniyan. Estou pronto.”
45. O noivado

parambil, 1944

Aniyan é um homem circunspecto e fleumático. Tem o cabelo


negro, penteado para trás pelas têmporas, o que lhe confere um aspecto
luzidio e aerodinâmico. Seu nome de batismo ou possíveis apelidos há
muito desapareceram, e hoje só o conhecem por Aniyan, que significa
“irmão mais novo”. Ele não sorri nem se mostra surpreso quando
Philipose conta a história do encontro com Elsie no trem, embora a
certa altura o homem lance um olhar à Grande Ammachi.
Para surpresa de Philipose, Aniyan sabe quem é Elsie, e também
sabe que ela não está casada, “pelo menos não estava até anteontem”. A
comunidade cristã de São Tomé é pequena, se comparada aos hindus e
muçulmanos de Travancore e Cochim, mas seus fiéis ainda chegam às
centenas de milhares, espalhados por todo o mundo. Casamenteiros
como Aniyan devem ser repositórios ambulantes de nomes de família e
árvores genealógicas, remontando aos primeiros convertidos.
“Bem”, Aniyan diz, “sondarei a casa Thetanatt — Chandy, quero
dizer. Se ele se mostrar interessado, e já que você já viu a moça, não há
necessidade de pennu kaanal.” Ele se refere à “inspeção da moça”, a
cargo dos possíveis sogros e que pode dispensar a presença do
pretendente.
“Mesmo assim quero um pennu kaanal”, diz Philipose.
A expressão do casamenteiro não muda. Em seu ramo o rosto não
deve revelar nada, não importa qual seja a provocação.
“Se Chandy achar que você jamais a viu, então… é possível.”
“E quero conversar com ela”, acrescenta Philipose.
“Não é possível.”
“Eu insisto.”
Há uma discreta distensão nas veias das têmporas de Aniyan, que se
levanta, oferecendo um tênue sorriso. “O primeiro passo é apresentar o
pedido à Chandy.”
“Veja, Anichayan. Eu vou casar com ela. Pense no encontro como
sendo uma mistura de pennu kaanal e noivado. Nesse caso, com
certeza não há problema em trocar algumas palavras.”
“O noivado é para arranjar o casamento. Não para falar com a
moça.”

Lá pelo fim da semana, Aniyan dá notícias: Chandy está interessado.


Podem prosseguir para o pennu kaanal.
Mas Grande Ammachi tem uma pergunta. “Eles perguntaram
alguma coisa sobre JoJo? Ou sobre Bebê Mol? Sobre água…”
Aniyan franze uma sobrancelha. “Perguntar o quê? Um acidente
trágico provocou um afogamento. Não é como loucura na família. Ou
convulsões. Esse tipo de coisa eu jamais oculto. E, Ammachi, acredite
ou não, há mais Bebês Mols em nossa comunidade do que você
imagina. Não é um impedimento para uma união matrimonial.”
Grande Ammachi se volta para Philipose. “Se esse casamento
acontecer, você deve contar tudo para Elsie, ouviu? Nada de segredos.”
Aniyan assiste àquela conversa, esperando. Ele diz: “Então…
Ammachi, você e um ou dois parentes de idade mais avançada irão à
casa Thetannat. Aah, e você pode ir também, monay”, ele acrescenta,
de passagem. “Descontando qualquer obstáculo, esse dia poderá ser o
dia do noivado. Fixaremos a data do casamento e o dote…”
“Quero um tempo para conversar a sós com Elsie”, Philipose diz.
Aniyan lança um olhar a Grande Ammachi, mas logo vê que não
terá nenhum auxílio da parte dela. “Bem, talvez depois das orações e
do chá…”
“A sós?”
“Aah, aah, a sós, certamente. Mas com todos lá.”

Na casa Thetanatt, Grande Ammachi está sentada num sofá branco


inacreditavelmente grande, com uma xícara de ornamentos dourados.
Nas pa­redes, bem no alto e inclinadas para baixo, fotografias
emolduradas dos falecidos. Uma coisa mórbida, ela acha. A esposa
morta de Chandy os observa, olhando para baixo. Ao lado dela, um
retrato consolador de Mar Gregorios, de Ravi Varma. Ela se dirige ao
santo: Diga-me que estamos fazendo a coisa certa.
“Ena-di? O que está murmurando aí?”, pergunta Odat Kochamma,
um tanto irritada. “Beba o chá.” A velha está satisfeitíssima por ter sido
convidada como acompanhante anciã, junto com o Senhor Melhorias.
Não se sente nem um pouco intimidada pela casa ou pela ocasião;
verte o chá fumegante no pires de porcelana (“Para que mais serve
isso?”) e sopra. “Aah, bom chá, sem dúvida!”
Aniyan não come nem bebe, seu rosto imóvel como água parada, os
olhos varrendo a sala, catalogando possibilidades futuras, ainda que, de
momento, recém-nascidas.
Grande Ammachi olha para Chandy, o anfitrião gregário, que
conversa com o Senhor Melhorias. Por que meu Philipose? Seu filho é
uma joia, claro, um noivo perfeitamente qualificado, e ele herdará
Parambil, que, a certa altura, chegou a ter duzentos hectares. Mas não
se compara às terras de Chandy, que, segundo lhe dizem, ficam a
algumas horas dali e abarcam vários milhares de hectares de chá e
borracha, além dessa casa ancestral e outras propriedades por aí. A
riqueza dele se mostra na mobília, nos dois carros do lado de fora, um
deles bem lustroso, com uma longa proa e popa de barbatana,
reluzindo como uma safira sob o pórtico; o outro é o que levou
Philipose para casa anos atrás, um veículo com o esqueleto à mostra, e
uma plataforma projetando-se da parte de trás. Chandy poderia ter
encontrado para Elsie o herdeiro de outro proprietário de terras, ou um
médico, ou um coletor distrital. Talvez tenha se afeiçoado ao estudante
de anos atrás — naquele dia o chamou de herói. O estudante ganhou
fama com seus escritos. Ou então Elsie (que ainda não deu as caras) se
mostrou tão insistente quanto Philipose em relação a esse enlace. Ela
suspira, contemplando o filho, tão bonito, apesar do nervosismo,
sentado ereto, o cabelo espesso repartido ao meio, a juba branca
destacando sua tez clara.
Depois das orações, mais chá e palaharam são servidos por uma
mocinha de sári, prima de Elsie, que então conduz Philipose a um dos
dois bancos na varanda ampla, à vista de todos os convidados pelas
portas francesas abertas. Três velhas ammachis da casa Thetanatt, os
lóbulos das orelhas flácidos pendendo sob o peso de brincos de ouro,
erguem-se de imediato e a seguem. Cada dobra das pontas em forma
de leque de seus mundus está me­ticulosamente passada, disfarçando
suas colunas recurvadas, e suas chattas estão tão rígidas de goma após
terem sido encharcadas em água de arroz que quase se rompem
quando as anciãs se largam no segundo banco. Elas ajustam os kavanis
bordados com ouro para ocultar duplamente seus colos.
Odat Kochamma, de cenho franzido, depõe ruidosamente o pires e
vai para a varanda, sua traseira balançando para lá e para cá, ao ritmo
das pernas tortas. As ammachis a observam com certa apreensão. Ela se
espreme no banco das senhoras, fazendo bom uso do cotovelo e
dizendo: “Espaço não falta, cheguem para lá”. Pega uma halwa que a
mocinha oferece, cheira e torce o nariz; devolve o doce à bandeja e
dispensa a mocinha enfaticamente, rejeitando a oferta também em
nome das outras senhoras, que ensaiam um protesto que a anciã ignora
estalando sua dentadura de madeira. As ammachis precisam espreitar
através de suas cataratas e para além de Odat Kochamma para discernir
Philipose. Falam muito alto, pois não escutam bem.
“Conversar com a menina, é? Para quê? Só trate de aparecer no dia
do casamento — é tudo que ele precisa fazer!”
“Aah, aah! Ele terá a vida inteira para dizer o que quiser, não é?”
“Ooh-aah. Por que não guarda algumas palavras para quando for
velho? Pelo menos terá isso quando tudo mais parar de funcionar!”
Os ombros das velhas tremem com as risadas; mãos rugosas cobrem
os sorrisos desdentados. Odat Kochamma finge não ouvi-las. Pisca para
Philipose antes de soltar um pum, e então olha acusadoramente para as
colegas de banco.
Philipose sente todos os olhos sobre ele em meio àquela atmosfera
densa. A mãe parece desconfortável na sala, apequenada pelo longo
sofá que não permite que seus pés toquem o piso. Ele nota as cabeças e
os olhos que se voltam, as vozes hesitando: Elsie deve ter aparecido.
Levanta e enxuga o rosto uma última vez. Seu coração dispara.
Ela está ainda mais bonita do que a mulher de quem ele se lembrava
— a moça no trem. Philipose é incapaz de dizer “olá”. Eles se sentam
lado a lado. O sári coral e azul dela faz as vezes de um sereno pano de
fundo para suas mãos sem adornos, nem mesmo uma pulseira. Os
dedos da mão direita roçam os nós dos dedos da mão esquerda, como
os pincéis e lápis que eles empunham. O rapaz se sente intoxicado pelo
aroma de gardênia em seu cabelo.
Ele limpa a garganta para falar, mas então vê os dedões dela
escapulindo da barra do sári, e suas palavras somem. Philipose está de
volta ao trem, a sola dos pés de Elsie se deixando vislumbrar quando ela
sobe a escadinha para o leito.
As cordas vocais do rapaz parecem congeladas. Oh, Senhor, é isso que
chamam de apoplexia? Ele busca o lenço, mas procura no bolso errado
e seus dedos pegam uma moeda de um chakram, com a imagem de
Bala Rama Varma. Ele mostra a moeda para a moça, e então o objeto
desaparece. Ele exibe suas mãos, dorso e palma. Por favor, examinem
tudo cuidadosamente, senhoras e senhores; quedem-se satisfeitos que
nada está sendo oculto. O rapaz estica a mão até a orelha de Elsie,
obtendo ali a moeda e pousando-a na palma dela.
Uma das velhas ammachis leva a mão à boca, como se tivesse
acabado de testemunhar um estupro. “Você viu aquilo?” As outras não
viram.
“Aah, ele fez alguma coisa! Pôs não sei o quê não sei onde!”
“Foi um truque de mágica”, Philipose diz, por fim, reconquistando a
capacidade de falar. Suas palavras saem em inglês — uma escolha não
deliberada, mas boa, se buscam privacidade. Elsie toma a mão de
Philipose e a vira.
“Você tem mãos bonitas. Mãos me interessam”, ela diz, em inglês.
Foi em inglês que eles conversaram no trem. Ele lembra da voz dela.
Seu timbre lento e sedutor demanda que ele observe os lábios dela com
cuidado. “Reparei em suas mãos na primeira vez que o vi.”
“E eu reparei na sua quando você copiou o desenho daquela
tabaqueira”, ele conta.
Philipose repara num respingo de tinta verde na palma dela. A pele
dele formiga no ponto onde ela o tocou.
“Tenho cadernos inteiros cheios de desenhos de mãos”, Elsie diz. Ele
pergunta por quê. “Acho que porque tudo que desenho ou pinto
começa com minhas mãos. Às vezes sinto que elas conduzem e minha
mente segue. Sem as mãos, eu não teria nada.”
“Tenho anotações sobre pés”, ele declara. “Os pés revelam o caráter.
Você pode ser rei ou bispo e adornar as mãos com joias. Mas os pés são
o seu ser sem adornos, independentemente de quem você proclama
ser.”
A jovem se inclina para conferir os pés dos dois, que estão descalços.
Põe um pé junto do dele. O segundo dedo dela, indo um pouco além
do dedão, as unhas limpas e luminosas e as ondulações das juntas, tudo
aquilo, ele pensa, diz da natureza artística de sua pretendente. Seu pé
apequena o dela. A pele dela roça na dele.
As ammachis estão perto da apoplexia. Se tivessem um apito,
soprariam-no agora. “Ayo! Primeiro bolinando com a mão, agora
tocando os pés. Isso não pode esperar?”
Elsie sufoca uma risadinha. “Você ouviu?”
Ele hesita. “Não peguei todas as palavras. Mas tenho ideia do que
seja.” O inglês foi uma ideia brilhante.
“Philipose?”, ela diz, como se testando seu nome, e o encarando. O
som o comove. “Você pediu para falar comigo?” E sorri.
Ele se perde no sorriso dela e demora para responder. “Sim, sim,
pedi! Quebrei todas as regras ao pedir. Sim, queria falar. Sinceramente,
posso dizer por quê?”
“Sinceramente é melhor do que insinceramente.”
“Depois que a gente… Depois do trem… Tive a sensação de que
aquele encontro, após todos aqueles anos, os dois no mesmo trem, no
mesmo compartimento, no mesmo banco, no mesmo… Nós nos
despedimos muito cedo. Desde então, eu… Sonhei casar com você.
Mas eu era uma pessoa sem um curso universitário. Alguém que o
mundo dobrou e quebrou. Trabalhei duro, e os golpes já não me
derrubam, e foi então que pedi que chamassem o casamenteiro Aniyan.
Porém eu lembro que, no trem, você disse a Meena que não estava
pronta para casar. Elsie, eu quero isso. E quero ter certeza de que… de
que você também quer. Certeza de que você não está sendo forçada.”
Ela reflete. Depois se vira e sorri, comunicando sem palavras: Sim,
eu quero isso.
“Ah, graças a Deus! Temi que seu pai quisesse alguém com…
alguém mais…”
“Eu quis isso. Você.” É como se ela tivesse acabado de beijá-lo. Ele
se sente como que tropeçando no labirinto de Elsie, na explosão de
marrons, cinzas e até azuis de sua íris. Quer pular de alegria. Sorri para
Odat Kochamma, que lhe pisca de volta. Ela desliza para fora do banco,
lançando a ponta de seu kavani sobre o ombro, na direção do rosto das
ammachis. Com o nariz empinado, volta para perto de Grande
Ammachi, pegando um pedaço de halwa no caminho.
“Sou tão sortudo. Por que eu?” Agora é ela quem fica muda, numa
reticência que não lhe é natural. “É segredo?”
Ela responde: “Segredos tendem a se esconder nos lugares mais
óbvios”. O rapaz se sente lisonjeado. É a última frase de sua primeira
desficção, “O homem plavu”. “Você quer mesmo saber, Philipose?
Devo contar, sinceramente?” É uma provocação, mas ela logo fica séria.
“É porque sou uma artista”, ela diz, sem mais. Ele não entende bem.
“Você diz como Michelangelo? Ou Ravi Varma?”
“Bem, sim, acho… Mas também não como Ravi Varma.”
“Então como quem?”
“Como eu mesma.” Ela não sorri. “Se Ravi Varma tivesse nascido
mulher, você acha que ele teria tido a liberdade de, depois do
casamento, estudar com um tutor holandês? Ou fazer uma exposição
em Viena? Ou viajar por toda a Índia? Ele comprou uma prensa em
Bombaim. Uma iniciativa muito inteligente. É por isso que há cópias
dele por toda parte. Ele conheceu e pintou todas as beldades de sua
época, as maharanis e concubinas. Ficou íntimo de uma ou duas.” Não
há nada que ela não se atreva a dizer?, pensa Philipose, admirado.
“Philipose, o que quero dizer é que, se Ravi Varma tivesse sido mulher,
não haveria Ravi Varma.”
Ele entende o argumento dela, mas não percebe o que aquilo tem a
ver com ele.
“Philipose, você também é um artista.” É lisonjeiro ouvir aquilo.
“Você pode passar a maior parte de seu dia com sua arte. Não há
ninguém que lhe diga para não escrever, ou quando escrever. O
casamento não vai mudar isso.”
Isso ele não discute.
“Meu pai tinha pretendentes em vista desde que voltei. Um rapaz lá
das fazendas… outro que tem fábricas têxteis em Coimbatore. Eu não
quis. Concluí que, de todos os homens com quem eu poderia me casar,
você levaria a sério minha arte, minha ambição.” A expressão dela é
seríssima. “Minha situação financeira é muito tranquila. Meu pai não
está me expulsando de casa. Mas, se algo acontecer com ele, tudo,
exceto meu dote, tudo vai para meu irmão. É assim que as coisas são
em nossa comunidade, não é? É injusto, no entanto é assim. Se não
estivesse casada e meu pai partisse, eu não teria um lar de verdade. Por
isso ele andava tão ansioso para me casar. Por meu futuro.”
“Homens também sofrem pressão para casar. Para agradar a família.”
Ele está pensando em Joppan.
“Sim, mas depois do casamento ninguém vai dizer: ‘Philipose, deixe
de lado sua escrita. Seu dever é servir sua esposa e os pais dela pelo
resto da vida. Cuide da cozinha, crie seus filhos’.” Ela acrescenta, com
um toque de amar­gura: “Meu irmão terá a vida que eu deveria ter tido.
Espero que ele faça bom uso dela”.
Eles olham na direção do irmão. Sua barriga estufada sob um belo
mundu duplo. O rosto inchado, com olheiras que logo serão
permanentes. Ele poderia passar por dublê glutão do pai, e pelas
mesmas razões, mas prematuramente: cigarros e muito brandy. Mas sua
feição carece do humor de Chandy, de sua humanidade e vitalidade.
Percebendo o olhar dos dois, o irmão os encara com olhos sem viço,
sem alma. Não há amor entre esses irmãos, Philipose pensa.
Elsie se inclina para se aproximar dele. “Só estou contando isso
porque você perguntou. É difícil explicar como uma moça ama o pai.
Casar é o maior presente que posso dar a ele. Assim passo a ser uma
preocupação sua. Então, se devo casar, quem me respeitará como
artista e me permitirá ser quem creio que devo ser? Pensei que essa
pessoa pudesse ser você.”
Ele se sente lisonjeado. Mas as palavras dela são também um pouco
decepcionantes. Onde está o amor? Onde está o desejo naquela
explicação? Ela lê os pensamentos dele. “Escute, se o que eu disse te
decepciona, me desculpe. Isso aqui é apenas o pennu kaanal. Você
pode dizer que veio, me viu e que não dá certo para você. Pode
cancelar tudo. Ou eu posso. Você perguntou. Então falei com
sinceridade.”
Uma sinceridade tão brutal! Ele teria coragem de dizer o mesmo?
“Elsie, a última coisa que quero é cancelar…”
“Quando desenhei você naquela manhã no trem, pensei ter lido seu
coração. Já não era a menininha daquela viagem de carro. E você já
não era o menino corajoso que salvou aquela criança. Vi um homem
lutando para encontrar seu caminho. Você encontrou sua estrada —
vejo isso em seus contos. Quando o pedido de casamento veio, fiquei
feliz. Pensei: “Aqui está alguém que vê o mundo como eu vejo. Que
tem ânsia de interpretar o mundo como tento fazer. Me diga que não
me equivoquei nesse ponto”.
“Não. Você não se enganou. Só para você saber, não quero casar só
por casar. Quero casar com você. E, quando nos casarmos, vou fazer de
tudo para apoiar sua arte.”
Ela fica contente. “Tem certeza? Sua querida mãe está na esperança
de que eu tome conta da cozinha, guarde a chave do ara, faça um bom
peixe com curry. Ela vai ficar escandalizada quando o vendedor de
peixe aparecer e eu não souber diferenciar um mathi de um vaala…”
“Como assim, você não sabe? Nesse caso…” Ele finge se levantar. As
sobrancelhas em formato de asas de Elsie saltam, e então ela desata a
rir, um som adorável, como um sino. A linha perfeita dos dentes, a
visão de sua língua, o fundo de sua garganta, tudo o deixa tonto. “Elsie,
contanto que você ria assim, não vou me importar. Prometo. Você terá
o mesmo tempo e as mesmas oportunidades para trabalhar em sua arte
como eu na escrita. Você ainda não conhece minha mãe, mas ela é
uma joia.”
“Philipose…”, ela diz, suave, agradecida, e encosta a cabeça em seu
peito. Ele se inclina na direção dela, apoiando seu peso, pouco se
importando com as ammachis. O ponto onde seu braço a toca pega
fogo. Seu coração salta, o pulso galopa, não por medo ou pânico, mas
pelo reconhecimento de ter encontrado o que buscava. Sente orgulho
de si mesmo. O Homem Comum conseguiu um feito extraordinário.
46. A noite do casamento

parambil, 1945

Depois de cinco anos, a guerra está quase no fim. Dois milhões e


meio de soldados indianos serão desmobilizados, incluindo, pela
primeira vez, centenas de oficiais. Durante a Primeira Guerra Mundial,
os britânicos jamais nomearam oficiais indianos, temendo que
treinassem futuros líderes rebeldes. Estavam certos. Agora esses oficiais
que retornam são homens condecorados por seu grande valor; homens
que testemunharam a morte de soldados sob seu comando para libertar
os abissínios, para libertar os franceses, para libertar a Europa do jugo
de Hitler. Não aceitarão nada menos que a liberdade da Índia. Os
britânicos anunciam estupidamente que aqueles soldados indianos
capturados pelos japoneses e depois forçados a se juntar ao Exército
Nacional Indiano de Subhas Chandra Bose, sob o risco de perderem a
cabeça, terão de ser julgados como “traidores.” A fúria de cada soldado
indiano e também do público nacional deixa os britânicos estarrecidos.
Se uma única guar­ni­ção se amotinar, o efeito dominó será inevitável.
Duzentos mil civis bri­­t â­nicos presentes na Índia poderão ser
massacrados da noite para o dia por trezentos milhões de nativos.
Em Travancore, um noivo passeia pelas ondas de rádio todas as
noites, testemunhando a libertação de Leningrado e Roma, Rangum e
Paris. Ele acres­centa novas folhas para estender o mapa na parede, mas
a guerra no Pacífico é impossível de desenhar em qualquer escala.
Anota os nomes ao lado dos pontos: Guadalcanal, Makin Atoll,
Morotai, Peleliu. Homens morreram aos montes naquelas pequenas
ilhas. Nada faz sentido. E um toque pessoal: um dos netos do oleiro se
alistou por nenhum outro motivo que não o bônus de alistamento e o
salário. O pobre-diabo morreu na África do Norte.
Philipose e o Senhor Melhorias decidem fechar o Centro de
Alimentação, pois o fornecimento de comida melhorou de modo
considerável. Ele não consegue deixar de sentir que a mudança na
maré da guerra, como o otimismo na Índia em relação à liberdade
iminente, está conectada à mudança de sua própria sorte.

Eles casam na Igreja onde Grande Ammachi casou e onde Philipose


foi batizado. Quando Elsie entra, ela cobre a cabeça com o pallu de
seu sári, baixa os olhos, como reza a tradição, e dá o primeiro passo
com o pé direito. Há um suspiro coletivo diante da beleza da noiva,
talvez a primeira a casar de sári nessa igreja. Philipose pensa que uma
aura dourada a envolve, como uma névoa de canela. Em vez de cobrir-
se sob o peso das joias da mãe, ela exibe uma única pulseira no pulso,
um fino colar de ouro com um pingente e brincos de ouro. Aos
dezenove anos, tem a postura e a determinação de uma mulher duas
vezes mais velha. Quando Philipose conferiu-se no espelho uma última
vez antes de ir para a igreja, teve uma impressão oposta de si mesmo:
um menino de doze anos tentando se passar por um rapaz de vinte e
dois.
Joppan, em seu melhor mundu e juba, está de pé nas primeiras
fileiras, orgulhoso, ao lado do Senhor Melhorias e dos parentes de
Parambil pelo lado do noivo. Mas, apesar dos apelos de Philipose,
Shamuel recusa-se a entrar. Assiste a tudo por uma janela.
O Ford lustroso, alongado, com popa de barbatana, adornado de
flores, conduz o casal a Parambil. Aproximam-se pela estrada
recentemente ampliada; em um dos lados dela, o enorme pandal
branco está cheio de convida­dos sentados. Do outro, está a forma
descomunal de Damodaran, que entende a importância da ocasião.
Quando saem do carro, Damo faz um carinho em Gran­de Ammachi,
que se estica para acariciá-lo. Ele então puxa Philipose bruscamente
para perto de si e bagunça seu cabelo, para espanto dos Thetannat.
Unni entrega uma guirlanda de jasmim ao elefante, com a qual ele
coroa a cabeça da noiva. Sua tromba cheira as bochechas e o pescoço
de Elsie, que ri, contente. Ela retribui com o balde de arroz adoçado
com açúcar mascavo que Grande Ammachi lhe repassa.
Garçons cruzam a tenda com pratos fumegantes do delicioso
carneiro biryani do sultão pattar. Ouve-se o som chocante da risada
desinibida de Decência Kochamma, um tilintar agudo, mas bonito, que
ninguém jamais ouvira. O “ponche caseiro” de Chandy, um vinho de
ameixa batizado com o nome de uma santa, faz sucesso entre as
mulheres.
Na plataforma elevada, os noivos recebem uma fila de convidados,
incluindo os amigos de Chandy, vizinhos de sua propriedade, além de
vários casais de brancos. Philipose avista Shamuel, fora do pandal,
vestido como um nobre, com a juba de seda cor de mostarda,
brilhante, que Philipose lhe comprou, e um belíssimo mundu branco.
Ele faz careta e não se mexe quando Philipose lhe faz um aceno. Sua
expressão diz que o thamb’ran deveria saber como as coisas funcionam.
Philipose arrasta Elsie até Shamuel, envolvendo-o num abraço, não
apenas por amor, mas porque ele está prestes a fugir.
“Elsie, este é Shamuel, o único pai que conheci.” O choque de
Shamuel com a aproximação dos dois se transforma em consternação
diante da blasfêmia do thamb’ran. Ele mal consegue olhar Elsie nos
olhos quando junta a palma das mãos logo abaixo do queixo. Ela
retribui o gesto, então se curva para tocar seus pés. Com um grito,
Shamuel é forçado a agarrar as mãos de Elsie para impedi-la. Ela, por
sua vez, agarra-se às mãos dele, curva a cabeça e murmura: “Dê-nos sua
bênção”. Sem palavras, incapaz de negar-lhe o pedido, as mãos
calejadas e trêmulas do peloar pairam sobre a cabeça do casal.
Philipose tenta abraçá-lo, mas Shamuel o rechaça, fingindo raiva e
apontando para o estrado, como quem diz a eles que devem voltar,
com o rosto ta­pado para esconder as lágrimas.

É quase meia-noite quando os dois se veem finalmente sozinhos no


quarto de Philipose. Nas cartas que trocaram antes do casamento, ele
mencionou o decreto de Odat Kochamma de que o mapa dele tinha de
ser retirado para que preparassem o quarto para a noiva. Isso deflagrou
um telegrama de Elsie, o primeiro com o endereço de Parambil.

mantenha os mapas pt não mude nada pt quero te ver como


você é pt

Elsie sorri quando vê o telegrama afixado na parede, parte da rica


trama comentada de nações, exércitos, armadas e loucura humana.
Com os baús de Elsie, o quarto parece menor. Há um banheiro recém-
construído ao lado do quarto; um grande tanque de água na parte de
fora precisa ser enchido com água do poço toda manhã para que a água
flua das torneiras, embora Philipose planeje comprar uma bomba
elétrica. Elsie vai ao banheiro com seus artigos de higiene como se
fizesse aquilo em Parambil há muitos anos. Que bom que ela não
precisa caminhar ao banheiro no anexo fora da casa ou à bica.
Philipose se banha no anexo e corre de volta para o quarto.
Quando ela retorna, ele já acendeu o lampião a óleo, cujo brilho é
mais suave que a lâmpada nua na parede. Elsie vestiu uma camisola
branca pontilhada por tênues flores cor-de-rosa, ao passo que ele está
apenas de mundu, o tronco à mostra. Deitam-se um ao lado do outro,
olhando para o teto. Durante toda a cerimônia, sempre que as mãos dos
dois se tocavam, ele sentia uma eletricidade no braço. No carro para
casa, recostaram-se um no outro, sorrindo como criancinhas, como se
dissessem: “Conseguimos!”.
Ele mexe no lampião, atenuando a intensidade da luz. Seguem
deitados por um bom tempo, ouvindo o vento que balança a copa da
palmeira, o distante tilintar da corrente na perna de Damo. O quarto
está escuro, mas gradualmente os dois retângulos pálidos da janela
surgem na parede mais distante, a cortina cobrindo apenas a metade
inferior, deixando à vista os galhos mais altos da plavu do lado de fora.
Os três frutos ainda verdes balançando nas bifurcações dos galhos
parecem crianças brincando na árvore.
Ele se vira para ela, e ela rola para ele, como se esperasse aquilo. Os
joelhos dos dois se batem, de modo atrapalhado. Ele põe sua perna
sobre a dela, e ela desliza a sua por entre as dele; os pés dos dois se
encontram. Ele só consegue ver o rosto dela, sentir sua respiração em
seu rosto; Philipose registra o cheiro de pasta de dente e sabão, e o
perfume natural da pele dela. Timidamente, os dedos de Elsie lhe
contornam a têmpora, a mandíbula, o pescoço — as medições de uma
escultora. Os dedos dele correm pelos cabelos dela. Os corpos dos dois
se apertam, os seios dela suavemente pressionados contra o peito dele.
Ela não consegue suprimir um bocejo, e ele também boceja, antes
mesmo de o dela terminar. Os dois tentam não rir. Ela suspira e se
aconchega mais nele. Sua cabeça descansa na angra formada pelo
ombro e pelo tronco dele, enquanto os longos dedos dela se estendem
sobre o peito dele.
Seu retorno vergonhoso de Madras deixou-lhe um sentimento de
incompletude, emaranhou os fios de seu ser, eliminou algumas seções.
Mas, agora, com Elsie ancorada ao seu lado, sente-se inteiro. O
estômago dela pressiona-se contra ele, recuando a cada tragada de ar,
sua respiração agora mais lenta. Ele observa esse milagre. Depois,
apesar da excitação incontrolável de ter essa linda mulher nos braços,
ele adormece também.
Quando ele acorda, depois da meia-noite, os dois seguem com as
pernas entrelaçadas, mas a camisola dela e o mundu dele se moveram,
e agora a pele nua da coxa de Elsie toca a sua. De súbito, Philipose se
sente tão alerta quanto se tivessem lhe jogado água no rosto. Os pontos
em que sua pele toca a dela ardem. Ele se aperta suavemente contra
ela, e, para sua surpresa, ela responde. Os olhos dela estão abertos. Ele
não sabe exatamente como proceder. Aos poucos, sua cabeça deriva
para perto dela, que se aperta contra uma nova dureza que não estava
lá no doce abraço antes de adormecerem.
Os lábios dos dois se encontram, um roçar sem jeito — excitante,
mas seco. Não o que ele imaginava. Tentam de novo, uma exploração
mais determinada, e agora que as línguas se tocam, ele é percorrido por
uma sensação elétrica, é invadido por uma intimidade tão profunda
que seu corpo treme. Ele tateia de modo desajeitado a camisola de
Elsie, e, de súbito, os seios dela ficam expostos. Nada, absolutamente
nada em sua vida transcende aquele primeiro momento em que os vê, e
os apalpa, e sente a resposta dela. As mãos de Philipose se movem,
tímidas, para baixo, enquanto o dorso da mão dela e depois seus dedos
tocam, com certa hesitação, aquela parte dele que não pode ser
ignorada. A incerteza e a falta de traquejo dos dois é tão erótica quanto
tudo que precedeu aquele momento. Arqueando-se, ele sobe em cima
dela. Age como um cego que tropeçou numa esquina e tateia com a
bengala, mas Elsie o guia com uma das mãos, a outra encostada no
peito dele, como um freio. Sempre muito devagar, ela o recebe. Ela
vacila, no entanto ainda o man­tém junto dela. Só quando percebe que
a jovem esposa relaxou, ele, muito gentilmente, se move. Senhor,
Philipose pensa, uma vez que se descobre isso, como é possível fazer outra
coisa? Ele se desfez no corpo da esposa, a respiração, a seiva e os
tendões dos dois plenamente mesclados. Nem seus experimentos
solitários nem o que leu em Fanny Hill ou Tom Jones o prepararam
para a emoção e a ternura do que acabou de acontecer.
Ambos sucumbem a um véu misterioso e anestésico que os cobre,
denso de seus cheiros misturados. Ele acorda, lembrando o que acabou
de acontecer, e a memória o deixa teso de novo, dolorosamente até,
querendo tudo mais uma vez. Ele a faz abrir os olhos, e do nevoeiro do
sono ela logo desperta, tentando compreender onde está. De repente,
ela parece vulnerável, acordando naquela nova casa. Reconhecendo
seu estado, ele a envolve docemente nos braços. Pergunta-se se ela
estará sentindo alguma dor. A forma como ela se aconchega o faz
pensar que agiu corretamente, abraçando-a. Depois de um bom tempo,
ela recua a cabeça, olha para ele e o beija, o gosto dele e do sono em
seu hálito. Sussurra algo, mas ele não consegue decifrar seus lábios.
“Elsie, tenho dificuldade para ouvir sussurros, desculpe.” Ela aproxima
os lábios da orelha dele: “Eu disse: ‘Não acho que se tivesse me casado
com qualquer outra pessoa eu ia me sentir tão segura quanto me sinto
com você’. Foi isso”. Ela se aninha de novo nele, e os dois adormecem
mais uma vez.

Acordam ao mesmo tempo. A luz flui para dentro do quarto pelos


espiráculos em cruz e pelas janelas. O canto do galo preguiçoso, o
tilintar distante de um balde contra a borda do poço, o estalar e ranger
de corda e roldana. É a casa que desperta.
O suor brilha no vão atrás da clavícula dela. O cheiro misturado dos
dois é tão rico, tão carnal. Ele quer dizer como o ato da noite anterior
foi incrível, como… Mas as palavras talvez rebaixem tudo. Em vez
disso, beija as pálpebras dela, sua testa, e cada centímetro de seu rosto.
“Quero que você seja feliz aqui, Elsie”, ele sussurra. “Qualquer desejo
que eu possa satisfazer, só me diga… Qualquer coisa.”
As palavras soam grandiosas até para ele, que sente que elas o
enobrecem. Soberano benevolente e apaixonado, contempla
amorosamente sua rainha, seu nariz reto, os olhos longos e estreitos.
Nos muitos meses depois daquela viagem de trem, ele pensou em seus
olhos como se fossem bem próximos um do outro, mas era porque
decaíam para o nariz, sua Nefertiti. E sua memória nunca registrou
bem o suficiente o desenho do arco do cupido de seu lábio superior.
Ele está embriagado, completamente embriagado de sua linda esposa,
todo o seu ser explodindo de generosidade, qual o imperador Shah
Jahan oferecendo-se para construir um palácio para a amada.
“Qualquer coisa?”, ela pergunta, sonhadora, os braços estirados
como asas, os lábios mal se movendo, os olhos apenas entreabertos.
“Como o gênio da lâmpada de Aladdin? Tem certeza?”
“Sim, qualquer coisa”, ele diz.
Apoiada em um braço, ela se vira para Philipose, seus seios no peito
dele; a visão é tão estonteante à luz do dia que, se ela lhe ordenasse
cortar a própria cabeça para continuar banqueteando-se com aquela
visão, ele o faria. Ela se diverte, feliz com a atenção que ele lhe
concede, em nada embaraçada, mantendo-se sempre como está para
que ele continue a contemplá-la. A pele dos seios é lisa e suave, e mais
pálida do que o restante do corpo até passar abruptamente à aréola
mais escura. A paixão deles pelo corpo um do outro, tão recentemente
descoberta, supera a timidez. A estudante no carro, a Jovem Senhorita
que cheirou um pouco de tabaco com ele no trem, é agora sua mulher,
e os olhos dela lhe dizem: Vá em frente, olhe, beije, toque…
“Qualquer coisa”, ele repete, suas palavras embaralhando-se de amor
e desejo saciado. “E não estou falando de construir um ateliê. Isso nós
faremos. Já desenhei um projeto — estender aquela varanda ao sul,
cobrir com um telhado. Terá uma ótima luz, mas é você quem vai
decidir. Não, estou falando de qualquer outra coisa. Reconquistar a
Terra Santa? Matar o dragão?” Ele faz um carinho no rosto dela.
Ela o estuda, sorrindo, hesitante. Então olha para a janela. Ele segue
o olhar dela, tentando ver aquele mundo que ele conhece tão bem
através dos olhos da amada.
“Amo a luz da manhã. Aquela plavu”, ela diz, apontando a árvore
onde a jaca mais próxima, do tamanho da cabeça de uma criança, fita-
os de volta. “Ela escurece o quarto. Você pode cortar essa árvore? É
meu desejo.”
Cortar a plavu? A árvore que velou seu sono desde a infância?
“Atrás dela a vista deve ser linda”, ela diz.
47. Tema a árvore

parambil, 1945

Ela cairá até o anoitecer, querida! É isso que ele deveria dizer. Mas
hesita, o galo canta outra vez. “Essa árvore?”, ele pergunta. A nota falsa
em sua voz lhe dá náuseas.
Ela desvia o olhar, o sorriso desmorona como o da criança a quem se
oferece um doce apenas para tirá-lo em seguida. Em um planeta
dividido entre os que mantêm a palavra e os que apenas lançam
palavras ao vento, ela entregou seu corpo a alguém do segundo grupo.
“Tudo bem, Philipose…”
“Não, não, por favor, me deixe explicar. Vou cortar a árvore.
Prometo. Mas você me dá um tempinho?”
“Claro”, ela diz, mas ele já sente a fissura, a fenda que se instaura. Se
ele pudesse voltar atrás… Ou se ela tivesse feito outro pedido.
“Obrigado, querida. É que…”
Seu conto “O homem plavu” teve um efeito peculiar em alguns
leitores. Há quem faça uma peregrinação para ver esta plavu,
acreditando que a história é real e que se trata da mesma árvore que ele
descreveu, e nada que Philipose diga os faz mudar de opinião. Outros
lhe escrevem, aos cuidados do jornal, pedindo que suas cartas sejam
depositadas na árvore, enfiadas nos sulcos de seu tronco — suas
palavras dirigem-se às almas dos falecidos que eles estão tentando
rastrear. Tudo isso levou o editor a querer publicar uma foto de
Philipose na frente da árvore.
“O fotógrafo logo virá. Enquanto isso, também vou pedir a bênção de
Shamuel. Ele me contou muitas vezes a história de seu pai e do meu
plantando essa árvore quando limparam a área. Essa foi a primeira
árvore daqui. Quando eu era menino, Shamuel me mostrou como
plantar uma plavu. Cavamos um buraco, colocamos uma chakka
gigante dentro, intacta. Das cem sementes no interior daquela pele de
crocodilo, vinte brotos nasceram. Cada um poderia ter sido uma árvore.
Mas os enlaçamos todos juntos e os forçamos a serem uma única plavu
majestosa.” Ele sabe que falou demais.
Da cozinha, ele escuta o alarido das panelas. Um corvo rouco grita
para outro: Olhem nosso amigo idiota, abrindo a boca quando deveria
mantê-la fechada.
“Não se preocupe. Não fale com Shamuel. Você não precisa…”
“Elsie, não! Será feito. Considere seu pedido já devidamente
satisfeito. Peça-me algo que eu possa fazer agora mesmo, peça…”
“Está tudo bem”, ela diz, mais doce do que ele merece, ajustando os
ombros na camisola, cobrindo os seios. “Não preciso de mais nada.” Ela
se levanta, alta e orgulhosa, abotoando a camisola até que o triângulo
negro de seu corpo de mulher e a cintilância de suas coxas fiquem
apenas na lembrança.
Ela hesita à porta. Filtrada pelas folhas da plavu, a luz que entra pela
janela ilumina aquelas íris de um cinza-azulado que brilha como
grafite.
“Philipose? Por favor… Mantenha sua palavra em relação à minha
arte.”
Ele a ouve ao longe, primeiro conversando com Bebê Mol, depois
com Grande Ammachi e Lizzi, as vozes claras, felizes, a dela mais
grave, fácil de discernir.

O fotógrafo veio e se foi, meses e semanas se passaram. Toda noite no


rescaldo sonolento do amor na cama, Philipose diz a si mesmo que vai
armar em segredo um plano com Shamuel para que a bela esposa possa
acordar numa piscina de luz e, com isso, fique sabendo que o marido é
um homem de palavra. Elsie, aparentemente, não pensa mais na
árvore. O assunto jamais vem à tona. Mas não sai da cabeça de
Philipose.

Do rádio escorre um jazz de um duque americano chamado


Ellington. Philipose senta bem perto do aparelho, Elsie desenha a seu
lado. Ele confere o que está nascendo na página: é ele, curvado sobre o
rádio, o cabelo caindo sobre os olhos. Um arrepio o atravessa —
orgulho por ela, mas também uma inquietação que não consegue
nomear. O desenho o lisonjeia: linhas fortes para a mandíbula e
delicadas para lábios cheios e sensuais. Mas, saiba ela ou não, a esposa
capturou a confusão dele, seus medos secretos. Ele, mortal im­perfeito
— no fim das contas, nem imperador Shah Jahan nem gênio da lâm‐­
pada —, apequena-se diante do talento dela; já não se sente confiante,
buscando a forma correta de estar com ela, de ser digno dela.
Inspirado pela mulher, Philipose trabalha como nunca. Mas o
trabalho, para Elsie, é um estado de relaxamento, tão inconsciente
quanto a respiração, ao passo que ele brande a caneta com sacrifício,
ainda que seu tema — a vida — esteja sempre ali. Sua arte, ele diz a si
próprio, é dar voz ao ordinário de uma forma memorável. E, ao fazê-lo,
lançar luz sobre o comportamento humano, sobre a injustiça. Mas não
consegue produzir como a esposa, não consegue.
Na cama, Elsie por vezes o surpreende rearranjando-lhe os
membros, afirmando-se de forma tão completa que ele se sente como
uma das bonecas de Bebê Mol. É absolutamente excitante. Uma vez
saciada, ela se retira do mundo, presente apenas na carne que respira,
enquanto ele se desvencilha. Observando sua forma inconsciente, a
inquietação ressurge: ele era o papel, a pedra, o lápis de carvão, que
satisfez a visão que tinha do desejo naquela noite? Quando Philipose
assume o controle, ela se entrega tão completamente que suas dúvidas
desaparecem… Só para ressurgirem de novo mais tarde, uma suspeita
insistente de que parte dela está sempre oculta, um ara trancado cuja
chave não lhe é oferecida. É tudo imaginação? Se não é, então a culpa
é apenas sua, e a causa é a promessa impulsiva sobre aquela árvore
idiota. Encolhe-se sempre que pensa nisso, suas entranhas
envenenadas. Era o caso de correr para a plavu munido de um
machado.

Grande Ammachi está encantada com a nora. É um prazer ver o


casal tão feliz, seu filho tão cuidadoso com a esposa. Antes do
casamento, ele comunicara à mãe o que agora se fazia óbvio: Elsie não
assumiria os cuidados do lar, era uma artista de verdade. Para ela, é um
prazer que Elsie faça o que bem desejar. A nora tem mania de ficar
pela cozinha, sentada num banquinho, contente em esgravatar o arroz
em busca de pedras, rindo da conversa de Odat Kochamma e ouvindo
atenta as histórias de Grande Ammachi. Com isso, a afeição da sogra
cresce a cada dia. Como a mãe de sua nora morreu cedo, quem poderia
lhe contar essas histórias, chamá-la de molay, pentear seu cabelo ou
preparar-lhe um banho de óleo? Grande Ammachi faz tudo isso e mais.
Aonde Elsie vai, sua cauda, Bebê Mol, a acompanha. A mulher do
supervisor Kora está sempre por ali; ela e Elsie logo se tornam íntimas,
praticamente irmãs.

Elsie aprova o projeto do ashari. O quarto dos dois (o antigo quarto


do pai de Philipose) é ampliado para o triplo do tamanho. Um terço é o
escritório do rapaz, com suas estantes em duas paredes e um espaço
para o rádio nos fundos. Para o ateliê de Elsie, deitam cimento ao chão
a fim de fazer um pátio que se alonga por oito metros, partindo dos
fundos do quarto ampliado. Um telhado de duas águas, de telha, não
de palha, cobre o quarto, o escritório e o pátio. Uma divisória de
cimento e tijolo à altura do joelho protege o pátio da intromissão de
vacas e bodes mas permite a entrada de luz. Há um grande portão com
dobradiças nos fundos. Cortinas de corda podem ser baixadas dos três
lados para bloquear sol e chuva. O motorista da casa Thetanatt vai
entregar os equipamentos de Elsie: linho retesado, pilhas de pinturas
inacabadas, containers de pincéis, lápis e canetas; caixas de madeira
com tintas em tubos e tonéis; cavaletes; equipamentos de carpintaria;
barris de aguarrás, óleo de linhaça e verniz. Os cheiros de tinta e
aguarrás logo se tornam tão comuns em Parambil quanto o da fritura de
sementes de mostarda.
Grande Ammachi entreouve Decência Kochamma pedir a Elsie um
retrato seu (“a óleo, como Raja Ravi Varma”). Elsie hesita. Talvez no
futuro. Acrescenta de modo polido que Decência Kochamma precisará
entender que a artista é livre para pintá-la como bem escolher; a
modelo só vê a tela no final, e o retrato pertence a Elsie, a não ser que
seja paga por ele. A cada palavra, a boca de Decência Kochamma
murcha mais. Só a presença de Grande Ammachi a impede de dizer
um desaforo. Ela se retira, vermelha de raiva.
Das longas conversas entre Lizzi e Elsie surge a ideia, deliberada ou
acidental, de Lizzi ser a primeira modelo. Tudo que Philipose queria
era entreouvir os diálogos das duas. Ele reparou que Lizzi tem dormido
em Parambil há duas semanas, mas não desconfia de nada, até que o
Senhor Melhorias lhe conta que Kora está foragido. Um credor
descobriu que ele havia forjado a escritura de um imóvel para
conseguir um empréstimo; a escritura original está com outro credor, e
também esse empréstimo está em atraso. “Talvez fugir tenha sido o
melhor plano”, diz o Senhor Melhorias. Philipose se admira que o rosto
de Lizzi não denuncie a situação. Ela não disse nada a respeito e
ninguém menciona o assunto com ela.
Na mesma época em que a notícia da fuga de Kora se espalha,
Philipose tem uma prévia especial da visão de Retrato de Lizzi — o
equilíbrio de Liz­zi é visível; seu conforto, seu senso de pertencer à
Parambil também são evidentes. Mas ele se admira ao ver no retrato o
que não havia percebido na Lizzi de carne e osso: sua raiva, sem dúvida
relacionada à confusão em que Kora anda metido. Philipose está
presente quando Lizzi pode ver o trabalho concluído: ela fica
paralisada por tanto tempo que Philipose começa a se preocupar. Ele e
Elsie se retiram. Quando a retratada finalmente sai do ateliê, seu rosto
ostenta uma nova determinação. Em silêncio, ela dá um abraço
carinhoso em Elsie, cumprimenta Philipose com a cabeça e segue para
casa.
A família nunca mais voltará a vê-la. Na manhã seguinte, descobrem
que ela desapareceu durante a noite. Grande Ammachi fica arrasada:
perdeu uma filha. “Disse que ela podia ficar conosco para sempre. Esta
é a casa dela. Não veio se despedir porque sabia que não conseguiria
mentir para mim. Deve ter achado que era seu dever ir para onde quer
que ele esteja se escondendo.”
Elsie se desfaz em lágrimas, sentindo que o retrato de alguma forma
deflagrou a partida da amiga. Philipose declara: “Se deflagrou, foi pelos
melhores motivos. Acho que, em seu trabalho, Lizzi viu a si mesma
pela primeira vez, viu a força que tinha dentro de si. Ela sabe há muito
tempo que Kora não consegue dar um jeito na vida ou prover com
regularidade suas necessidades. Sim, ela poderia ter ficado aqui, mas
escolheu ir para junto de Kora por uma única razão, e não foi para ser a
esposa zelosa: Lizzi decidiu tomar as rédeas, ser a chefe da casa. Kora
vai ficar muito grato por isso, e ele concordará com os termos dela ou
ficará perdido para sempre, e tudo isso graças a seu retrato”.
Elsie escuta, de olhos bem abertos. “Isso é uma de suas desficções?”
“Não. É simplesmente a verdade que você capturou. Não vê? Bem,
eu vejo. Você esquece que já passei pela experiência de ser desenhado
por você. Acredite, seus desenhos dão a quem posa um insight
profundo sobre quem realmente é a pessoa.”
Nos dias seguintes, os parentes vêm conferir o Retrato de Lizzi. Ele
vê a mesma reação de Grande Ammachi: contemplam por um tempo,
afundam-se em um diálogo silencioso tanto com o tema quanto com
eles mesmos, emergindo, ao fim, apaziguados. O retrato talvez os ajude
a aceitar o desaparecimento de Lizzi, mas talvez os faça perceber algo
que Philipose já sabe: Elsie é uma artista do mais alto nível. Não como
Raja Ravi Varma, mas muito melhor, porque tem estilo próprio. Seus
retratos fazem a obra de Ravi Varma parecer achatada e sem vida,
apesar da teatralidade de suas composições.

Em junho daquele ano, Philipose rompe a calmaria da noite com


um grito de alegria que leva todos para perto do rádio: “Nehru está
livre! Depois de novecentos e sessenta e três dias na prisão! São os
ingleses admitindo que acabou”.
Philipose permanece grudado ao rádio até tarde da noite. A América,
a Irlanda e a Nova Zelândia se libertaram da Inglaterra no passado. Ele
imagina os britânicos nas demais colônias — Nigéria, Burma, Quênia,
Gana, Sudão, Malaia, Jamaica —, sentados junto a seus rádios,
nervosos, pois a Grã-Bretanha logo perderá a joia da coroa, e o sol que
nunca se põe no Império Britânico logo o fará. Negociações para uma
Índia livre já estão encaminhadas. A estrada à frente é perigosa, pois
Jinnah e a Liga Muçulmana querem um país separado para os
muçulmanos, que constituem quase um terço da população indiana.
Jinnah não confia no Partido do Congresso, dominado por hindus.
Elsie está lendo quando ele vai para a cama. Philipose lhe diz:
“Como uma pequena ilha terminou governando metade do mundo? É
isso que quero saber”.
Ela põe de lado a cópia gasta de Tom Jones. Há dias o livro a tem
consumido na hora de dormir. “O que eu quero saber”, ela diz, “é o
efeito que o safado desse Tom Jones teve no garotinho que leu esse
livro.”
“Bem”, responde Philipose, “na verdade…”, mas ela o silencia
cobrindo os lábios dele com os dela. Ele tateia em busca do interruptor
de luz.
Em agosto, no espaço de três dias, bombas atômicas arrasam
Hiroshima e Nagasaki. Cem mil pessoas morrem na hora. A família
Parambil se reúne para contemplar uma montagem do jornal com
fotografias das duas cidades. De todas as terríveis imagens da guerra
vistas em Parambil, nenhuma se compara àquela.
Mais tarde Philipose encontra Odat Kochamma sozinha, olhando a
foto no jornal e chorando. Ele a abraça. Ela finge afastá-lo, mas se
larga, desolada, contra seu peito. “Posso não ler, mas entendo mais do
que você pensa, monay. Você acha que estou triste? Errado! Estas são
lágrimas de alegria. Estou feliz porque sou velha, então serei poupada
do que virá. Se podemos nos matar tão facilmente, então é o fim do
mundo, não é?”
Ele tira o mapa-montagem da parede. A guerra havia sido um
passatempo vergonhoso, mas agora ele já não é capaz de suportar o
sofrimento catalogado naquele mapa. Elsie o observa, em silêncio. “Há
coisas bem melhores para se lembrar desses últimos anos”, ele diz.
“Voltei pra casa, onde é meu lugar. Tornei-me escritor. Mas, acima de
tudo, você entrou na minha vida. Essas são as recordações dignas de
memória.”

Chega uma carta de Chandy dizendo que está de partida para o


bangalô nas montanhas, onde passará o verão; convida-os para uma
visita. Elsie se anima. “Vai ficar tão úmido aqui, enquanto lá teremos
névoas matinais no jardim…Você pode escrever. Eu posso pintar.
Podemos fazer passeios, jogar tênis ou badminton. E também tem
corridas de cavalo nos fins de semana, se é que elas te interessam. Você
precisa conhecer a propriedade. Todo mundo está louco para conhecer
você.”
“Bem… Parece maravilhoso.” Mas a verdade é que cada palavra dela
o enche de ansiedade. Sente-se tonto e começa a suar.
“Escolheremos uma data, e pedirei que papai mande um carro, e…”
“Não!”, ele diz. A expressão chocada de Elsie o constrange. “Quero
dizer, vamos pensar um pouco, pode ser?”
Traços do sorriso de um segundo atrás agarram-se aos lábios dela,
relutando em abrir mão da esperança. Alguém que toma notas
febrilmente es­cutando rádio, lê até na mesa de jantar, compra mais
livros do que as estantes suportam, com certeza um homem assim se
mostraria ávido por explorar novos territórios, vivenciar coisas novas.
“Philipose… É bom que a gente saia de vez em quando. Ver um
pouco do mundo.” E acrescenta, de passagem: “Bom para nossa arte”.
“Eu sei.” Mas, se sabe, por que seu coração bate tão forte, e por que
esse sentimento terrível de medo, como se não pudesse respirar? Ir para
Madras, por mais breve que tenha sido a estadia, o dilacerou. Voltou e
tomou posse de si mesmo, reconstruiu seu ser. No entanto, só agora,
ouvindo Elsie falar, é que descobriu que a mera ideia de sair de
Parambil evoca um terror semelhante ao afogamento. Parambil é sua
terra firme, seu equilíbrio, e tudo mais parece água. E não se trata
apenas de viajar para as montanhas; os rituais de clubes, festas, corridas
vão desafiar sua audição. Pessoas que conhecem Elsie desde menina
vão julgá-lo, o que só aumenta seus medos.
Elsie fica à espera de uma explicação. Os receios dele são irracionais,
ele sente vergonha. Não consegue admiti-los sem se diminuir, sem
parecer um fracasso completo como homem e marido. Seus
pensamentos se debatem, fazem sua cabeça doer.
“Deixemos que o mundo venha até nós”, ouve-se dizer, por fim, e
seu tom lhe parece arrogante e agressivo. Elsie recua. Ele disse uma
tolice, e sabe. Mas, como disse, está encurralado. Não há escapatória.
“Tenho tudo que preciso aqui. Você não tem? Visito todos os lugares do
vasto mundo pelo rádio.”
A mulher que o adora olha-o fixamente como se não o reconhecesse.
“Philipose”, ela diz, depois de um tempo — sua voz baixa o obriga a
prestar muita atenção aos lábios dela. As mãos de Elsie se esticam com
hesitação, como uma criança prestes a fazer um carinho num cachorro
muito amado que está se comportando de jeito estranho. “Philipose,
está tudo bem. Vamos de carro. Nada de barco, nada de rios para…”
Essa alusão à sua outra deficiência envergonha ainda mais seu ser
encolhido, acuado e ansioso, e uma feia resposta defensiva e impulsiva
borbulha e explode antes que ele possa contê-la. “Elsie, eu te proíbo”,
diz alguém que ele não reconhece, alguém que está usando seus lábios
e sua voz. As palavras soam horríveis ao deixar sua língua. “Eu te proíbo
de ir.” Pronto. Falou.
As mãos dela recuam. Sua feição se paralisa. Ele a observa retirar-se
para aquele lugar fechado para ele. Ela diz algo, ele não capta. “Elsie, o
que foi?”
Ela se põe de frente para ele, de cabeça erguida. As palavras que ele
lê em seus lábios e que também chegam a seus ouvidos não têm
malícia, rancor, apenas tristeza. “Disse que verei meu pai.”
Naquela noite, Elsie não vai para a cama. Quando ele a procura,
encontra-a dormindo nas esteiras com as outras três, algo que só faz
quando Bebê Mol não está bem e lhe pede. Seu orgulho não o deixa
acordá-la ou arriscar-se a acordar a mãe. No jantar, quando Grande
Ammachi lhe pergunta o que está acontecendo, ele finge não ouvir.
Os dias seguintes são esquisitos. Mas calar ainda é melhor do que
confessar. Além disso, como alguém pode explicar racionalmente seus
medos irracionais? Ele tenta uma nova persona sempre que está perto
dela, como um homem experimenta uma camisa nova ou deixa crescer
o bigode, na esperança de que o mundo (e sua esposa) o perceba de
forma diferente. Mas nada funciona. Está na ponta de sua língua em
todo momento que estão juntos: “Me perdoa, eu fui um idiota”. Porém
uma voz beligerante dentro dele o aconselha a não dizer aquilo, de
outro modo ele terá de fazer concessões pelo resto de sua vida de
casado. Quanto tempo durará aquela crise?

No fim das contas, não muito, pois Bebê Mol anuncia que um carro
se aproxima. Meia hora depois, o automóvel e o motorista estacionam.
Elsie, que deve ter enviado uma carta, entrega uma pilha de telas para
o motorista e volta ao quarto para buscar mais. Philipose a segue,
furioso, sem acreditar, o sangue pulsando-lhe nos ouvidos. Ela está
fixando uma presilha nas tranças enquanto olha pela janela na direção
da plavu…
Ele percebe. “Olha”, ele diz. “Tudo isso é por causa dessa porcaria
de árvore, não é? Vou cortar, já disse. Mas, caso você tenha se
esquecido, proibi você de sair.” Ela se vira para ele, calma, mas não
parece surpresa nem abalada por suas palavras. Ele espera. Ela se
mantém em silêncio, juntando pincéis e pentes. Sua reação o
desmonta. Ele, imóvel, sente-se mais tolo a cada segundo.
“Então fique nesse quarto até mudar de ideia”, ele declara, numa voz
muito alta, e se retira, batendo a metade inferior da porta holandesa,
mas como o ferrolho fica na parte de dentro, ele precisa esticar o braço
por cima da porta para fechá-lo. Aquilo tudo só o faz parecer mais
estúpido: o carcereiro que deixa as chaves dentro da cela. Ele fica ali
parado, respirando pesadamente, e, quando se vira, dá de cara com a
mãe, que correu tão logo ouviu portas batendo e o filho falando alto.
Tenta contorná-la, mas ela não cede até que Philipose se explique. Ele
balbucia incoerências sobre a árvore…
“Que bobagem! Corte essa árvore idiota. É horrenda”, ela diz.
Empurra-o para o lado e abre a porta. Antes de entrar, volta-se para ele,
agora num tom de voz mais baixo. “E você não percebe que ela está
grávida? Que estupidez a sua não ir com ela!”
Ele observa impotente a esposa partindo.

Ao longo da semana seguinte ele tem tempo de assimilar a notícia da


gravidez de Elsie, a distância dela e a estupidez dele. Bebê Mol não lhe
dirige a palavra. A raiva de sua mãe desaparece quando o vê lamuriar-se
pela casa. “É bom que ela encontre a família. Eu bem queria ter tido
essa chance quando jovem. Se a mãe dela estivesse viva, Elsie teria o
filho lá. Por mais que você goste de casa, precisa sair mais, pelo bem
dela.”
Ele quer ir ao encontro de Elsie, mas não sabe se ela está na casa
Thetanatt ou no bangalô, que ele não conhece. Escreve longas cartas
penitentes para os dois lugares e espera. Quinze dias depois, ela lhe
escreve uma nota breve e formal, sem qualquer referência às cartas
dele. Está no bangalô nas montanhas e planeja permanecer mais uma
semana, quando retornará com o pai para a casa nas planícies. E não
diz nada mais.

Uma semana e um dia depois, ele viaja para a casa Thetanatt pela
primeira vez desde o noivado. Dá graças a Deus quando os criados lhe
dizem que Chandy e seu filho não estão em casa. Na sala de estar
espaçosa, ele senta num pequeno sofá, de frente para aquele canapé
branco, longo demais, com mais pernas do que uma centopeia. Uma
das fotos emolduradas no alto da parede é um memento mori: a família
em volta de um caixão aberto. Elsie, com seis ou sete anos, olhos
vidrados, ao lado do irmão — como ele não havia reparado nessa foto
antes? Aquilo agrava seu remorso.
Quando Elsie aparece, sua beleza lhe tira o fôlego. Ela senta de
frente pra ele. À diferença dele, que andou insone e atormentado
durante a breve separação, ela parece descansada, como se a distância
lhe tivesse feito bem. A gravidez lhe traz certa plenitude ao rosto, um
castanho profundo às maçãs e à ponta do nariz. Ela veste o mesmo sári
coral e azul do noivado — é um bom sinal? Encara-o sem raiva,
indiferente, tal como olharia para uma lagartixa na parede,
perguntando-se qual será seu próximo movimento.
“Elsie, me desculpe.” Ela não diz nada. Ele fica mortificado ao
lembrar que no noivado, naquela varanda, ele prometeu compreendê-
la e apoiar seu desejo de ser artista. E ele apoiou. Ele apoia. E, no
entanto, ali está ele.
Ele tenta de novo. “E vamos ter um bebê! Se eu soubesse!” Ela não
responde. Ele suspira. “Elsie, eu me comportei mal. Como um boi
chutando a carroça.” Suas palavras parecem entristecê-la, suavizando,
talvez, sua expressão. “Elsie, você está bem?”
Ela encolhe os ombros e pressiona os lábios. Ele quer saltar do sofá e
abraçá-la.
Ela olha para a cintura. Nada transparece. “Meu estômago se
revira… Não suporto o cheiro de tinta. Estou trabalhando com carvão.
Mas foi bom ficar com meu pai no bangalô. Ver velhos amigos.”
“Elsie, você precisa ver o ateliê. O ashari terminou os armários de
teca, lindos, para seus materiais. Botei todos no lugar. Está tão bonito.”
Ele não diz que, nesse processo, viu como ela era prolífica. E que se
sentiu uma farsa. Seus poucos centímetros de divagações são
publicados em um jornal regional num idioma regional, ainda que a
circulação seja grande. “Elsie, por favor, entenda, depois de Madras…
coisas que me tiram da rotina me deixam inquieto, ansioso,
especialmente o fato de conhecer um monte de gente nova; sempre me
preocupo se vou conseguir ouvir o que dizem. Quando você me falou
do convite de seu pai, naquele momento meu coração acelerou. Mas a
pior coisa é que eu estava com vergonha demais para contar a verdade,
então…”
“Tudo bem, Philipose”, ela diz. Olha-o com pena e talvez um pouco
de afeição. Ele se expôs diante dela. A agitação dele, sua confusão é o
que de mais real ela tem dele. Ele imaginara que, quando se explicasse,
ela talvez voltasse com ele para Parambil. Mas agora vê que, se ele a
ama, precisa aceitar qualquer decisão. Ainda assim, se ela ao menos o
deixasse se sentar a seu lado, segurar sua mão…
A criada traz uma limonada e Elsie oferece um dos copos ao marido,
sentando-se ao lado dele. Ele suspira, seu alívio é tão evidente que deve
comovê-la. Sempre que se sentavam assim, tão perto, havia uma
atração magnética que os fazia se tocar, era inevitável. Talvez ela a
sinta, pois se recosta nele e sorri. Ele busca a mão dela, e os dedos dos
dois se entrelaçam. Philipose não se contém e solta um gemido com o
fim das agonias do último mês.
“Elsie, me perdoe”, pede. “Eu te amo tanto. O que posso fazer?”
Ela o olha com afeição, mas ainda hesitante, ainda com certa
distância. “Philipose…Você pode me amar só um pouco menos.”
48. Deuses da chuva

parambil, 1946-9

Bebê Ninan chega no ano da graça de 1946, como uma ventania de


verão que brota de um céu sem nuvens, sem rumor de folhagem ou
balouçar de roupas no varal.
Naquele dia, Grande Ammachi e Odat Kochamma estão na cozinha,
uma espata de palmeira e lascas secas de coco crepitam nas brasas
vermelhas. “Yeshu maha magenay nenaku”, para você, Senhor Jesus,
filho de Deus, canta Odat Kochamma, mexendo a panela. Philipose foi
ao correio.
“ammachi!”
A paz daquela manhã abençoada é quebrada pelo terror na voz de
Elsie, vindo da casa principal. Encontram-na no umbral da porta do
quarto, como se tentando impedir que a porta caia, suas mãos
descoloridas de tanto de apertar a guarnição. O cabelo está solto,
emoldurando uma face mortalmente pálida. A luz naquele dia é tão
bonita, tão substancial que quase se pode apoiar nela, e disso Grande
Ammachi vai se lembrar para sempre.
Entre dentes trincados, Elsie diz “Ammay! Mas é cedo demais!”.
Agarra-se à sogra quando uma onda de dor a abarca. Grande Ammachi
sente algo molhado no chão e logo vê uma poça clara e espelhada: a
bolsa estourou.
Numa voz calma, Grande Ammachi diz: “Saaram illa, molay.
Veshamikanda”. Está tudo bem, não se preocupe. Mas nada está bem.
Grande Ammachi e Odat Kochamma trocam um olhar, e sem dizer
uma palavra a anciã cambaleia em busca de linha e agulha. Ainda bem
que há sempre água fervendo em alguma panela. Grande Ammachi
leva Elsie para a cama, como se escoltasse uma menininha sonolenta,
não a adulta muito mais alta que ela.
Enquanto lava as mãos, Grande Ammachi ouve o chamado de Elsie:
“Ammay!”. Não “Ammachi”, mas “Ammay”, pela segunda vez. O
coração de Grande Ammachi se derrete. Sim, agora sou a mãe dela.
Quem mais haveria de ser? Ela corre a tempo de ver a moleira de uma
pequena cabeça. Odat Kochamma volta com uma panela de água.
Bem nessa hora, quase sem esforço, o bebê mais minúsculo que as
duas já viram pousa na palma de Grande Ammachi, um montículo
débil, molhado e azul.
As duas mulheres contemplam incrédulas aquele lindo menininho
em miniatura, com uma história de vida ainda por se escrever… Mas
ele chegou cedo demais ao mundo. É como um boneco de cera, o
peito não se move. Mais uma vez, Grande Ammachi e Odat
Kochamma trocam olhares, e esta última inclina-se rigidamente,
esticando as mãos para trás por uma questão de equilíbrio, as pernas
tortas plantadas com uma abertura maior do que o normal, e dirige um
sussurro rouco para o pequenino caracol que faz as vezes de orelha:
“Maron Yesu Mishiha”. Jesus é nosso Senhor.
Com um arranque súbito, os braços se debatendo, o bebê chora. Ah,
aquele choramingo agudo tão doce, tão precioso do recém-nascido, o
som que diz que Deus existe e que, sim, ainda faz milagres. Mas é um
choro fraquinho, quase inaudível. A cor do bebê não melhora muito.
Odat Kochamma corta o cordão umbilical. A placenta escorrega para
fora. Vendo Elsie apoiada nos cotovelos, espiando o bebê, Odat
Kochamma diz, zangada: “Meninos! Sempre apressados!”. Grande
Ammachi limpa o bebê com cuidado — não há tempo para o banho
ritualístico. Ele pesa menos do que um coco pequeno. Descascado. Ela
afasta a blusa de Elsie e põe a criança desnuda sobre seu peito, mais
para cima, onde ele não parece muito maior do que um pingente
grande, e cobre mãe e filho com um lençol. Elsie envolve o bebê
timidamente, olhando-o com fascínio, medo e muitas lágrimas. “Ah,
Ammay! Como ele vai sobreviver? Seu corpo está tão frio!”
“Ele vai se esquentar em você, molay, não se preocupe”, diz Grande
Ammachi, disfarçando a preocupação. Vê Bebê Mol no banco,
despreocupada, tagarelando sozinha — ou com espíritos invisíveis que
a deixam entrever o que está por vir. A calma de Bebê ou é um bom
sinal ou um sinal terrível.
Bebê Ninan — é o nome que Elsie escolheu para o bebê — parece
um coelhinho recém-nascido, as unhas malformadas e azuis, os olhos
apertadinhos, a pele pálida contra a pele nua da mãe. Está tudo errado,
pensa Grande Ammachi. Veio cedo demais, pequeno demais, azul
demais, gelado demais, e o pai não está aqui. As palavras “Maron Yesu
MishihaI” devem ser ditas ao pé do ouvido do infante por um sacerdote
ou um parente do sexo masculino. O pensamento rápido de Odat
Kochamma a impressionou: não havia tempo, e as duas estavam
convencidas de que aquele rapazinho voltaria para os braços do Pai
Celestial antes que o pai terreno voltasse do correio.
Os lábios de Elsie tremem, e ela olha ansiosa para as mulheres em
busca de um sinal do que virá. Grande Ammachi diz: “Ele vai ouvir os
batimentos de seu coração, molay. Vai se aquecer”. Sem dizer nada,
Odat Kochamma remove o anel de casamento de Elsie, raspa um
salpico de ouro do interior, mistura-o numa gota de mel e com a ponta
do dedo lambuza aquele mel de ouro nos lábios da criança, pois toda
criança dos cristãos de São Tomé deve conhecer o sabor da sorte, ainda
que brevemente.

Odat Kochamma intercepta Philipose antes que ele entre na casa.


Ele ouve tudo com atenção, depois diz: “Elsie sabe que o bebê pode
morrer?”. Ela finge não ouvir.
Elsie sabe. Ele percebe ao ver seu semblante desabar quando ele
entra no quarto. Pressiona seu rosto contra o dela e espia o filho. A
força em suas pernas se evapora.

Três horas depois, Bebê Ninan ainda pertence a este mundo, a ponta
de seus dedos menos azuis, sua respiração regular mas rápida, pulsando
contra o corpo da mãe, que tenta lhe oferecer o peito, em vão: sua
auréola é grande demais para o pequeno rosto, assim como o mamilo
para a abertura da boca. Grande Ammachi a ajuda a derramar o
primeiro leite, grosso e dourado, em um copo. “É sua essência
concentrada. Muito boa para ele.” Elsie mergulha o dedo no leite e
leva-o à boca de Ninan; uma gota escorrega para dentro.
Grande Ammachi se oferece para segurar o bebê e liberar Elsie.
“Não!”, ela diz, abrupta. “Não. Ele viveu todos esses meses ouvindo os
batimentos de meu coração. Vai continuar aqui, ouvindo.” Segurá-lo
não exige esforço, é como acalentar uma manga ao peito. Ainda assim,
um delicado sling de musselina segura o bebê junto ao corpo de Elsie.
Grande Ammachi cobre a cabeça do bebê com a mesma musselina.
Naquela noite, eles três guardam vigília. Elsie recostada na cabeceira
da cama, Grande Ammachi ao lado e Philipose numa esteira no chão.
Elsie não tira os olhos do filho. “Meu corpo mantém o bebê quente,
como quando estava dentro de mim. A temperatura dele é a minha. Ele
ouve minha voz, os batimentos de meu coração, minha respiração,
como fez todo esse tempo. Não me ocorre melhor estratégia. É sua
melhor chance de sobreviver.” O lampião a óleo ilumina aquela vida
nascente.
Elsie evita visitantes pelos dois meses seguintes. Caminha pela
varanda, e Philipose a segue como uma sombra. Não sente vontade de
ler ou de que leiam para ela, nem de desenhar: dedica cada tico de sua
concentração àquela frágil obra-prima. Se um recém-nascido em geral
empurra o pai para as margens da órbita da casa, esse puxa Philipose
para o centro da família.
Certa noite, quando mãe e avó estão alimentando o bebê pelo
laborioso método da ponta do dedo, Ninan abre os olhos, as pálpebras
separando-se o suficiente para que ele veja o entorno e para que elas o
vejam desperto pela primeira vez. Grande Ammachi acha os olhos do
neto muito claros e luminosos.

Em dez semanas Bebê Ninan sinaliza que já não depende de seu


ninho, agitando os membros, chutando; quando acordado, seus olhos
agora passam mais tempo abertos do que fechados. Consegue até
chupar o mamilo, ainda que apenas por breves períodos. Um dia ele
cochila pela primeira vez em um corpo que não é o de sua mãe, mas
de seu pai, sobre o peito peludo e confortável. As mulheres da casa
rapidamente massageiam e besuntam Elsie com óleos, esfregam-na
com casca de coco; depois ela vai mergulhar no riacho e se delicia com
a água corrente. A jovem mãe logo corre para casa, refeita após
semanas lavando o corpo por partes.
Grande Ammachi dá o primeiro banho em Bebê Ninan, depois elas
o secam, agasalham-no e o colocam pela primeira vez na cama. Ele
dorme. Pai e mãe deitam-se cada um de um lado do filho,
acostumando-se a vê-lo separado do corpo da mãe. O bebê de repente
estende os braços, como se, num sonho, caísse. Depois, o dedo
indicador permanece estendido, uma bênção para os pais. Os dois
trocam um sorriso feliz.
A louca paixão dos pais por Bebê Ninan lhes permite renovar o amor
que sentem um pelo outro. É uma alegria para Philipose que Elsie
tenha sempre um olhar todo especial para o pai de seu filho sempre
que ele entra no quarto. Suas mãos se buscam, e, se não há ninguém
por perto, ele a beija. O roçar dos lábios os enlouquecia, mas agora
sinaliza um novo laço, e a paciência para protelar o outro impulso.
Sempre que recorda seu comportamento infantil diante do desejo de
Elsie de visitar a propriedade do pai, Philipose se encolhe,
envergonhado. “Aque­le não era eu”, diz um dia, sem razão alguma,
quando Ninan está no colo da avó e os dois estão sozinhos. Ele dá um
tapa num lado da própria cabeça. “Aquele era outro, Elsie. Uma
criança estúpida e medrosa que tomou posse de meu corpo e de meus
sentidos. É a única explicação que tenho.” Ela lhe lança um olhar
indulgente.
Vez por outra Philipose olha pela janela e lembra da promessa
fracassada. O fotógrafo veio e se foi, e a coluna do Homem Comum é
agora ilustrada pela fotografia de Philipose em frente à árvore; Shamuel
não se opõe. Mas, de alguma a forma, a plavu segue de pé. Felizmente,
Elsie parece ter esquecido o assunto.

O montículo de barro azul que veio ao mundo de maneira tão


precipitada compensa o tempo perdido. Seus movimentos incessantes e
certa curiosidade precoce malaiala deixam todos convencidos de que
ele próprio instigou sua chegada prematura; o bebê deve ter escalado os
muros que o confinavam na cela aquosa, buscando uma saída. Agora,
do lado de fora, retoma as explorações. Sua missão de vida é muito
simples: subir! Quando nos braços de alguém, tudo que deseja é subir
para os ombros ou o pescoço da pessoa, valendo-se de orelhas, cabelo,
lábios ou nariz como corrimão. Lança-se prontamente ao colo de
qualquer um que queira pegá-lo, mas o que busca de verdade é
locomoção e altura. O peito da mãe é seu lar, mas mesmo o mamilo
que o sacia é atropelado por seu desejo de ser erguido, balançado e
lançado para cima, mesmo se aquilo lhe faz arfar e ficar sem fôlego. Ele
sorri e chuta, sinalizando: “De novo!”.
Um dia, sem estardalhaço, Elsie entra no ateliê, e a partir de então
retorna ao cavalete sempre que o bebê permite. Philipose nota que a
última paisagem dela tem uma conexão frouxa com a realidade: como
a água no arrozal pode ser da cor do gengibre ou o céu, verde-limão?
Nuvenzinhas se enfileiram como vagões. Esse estilo primitivo
exagerado é, de alguma forma, agra­dá­vel. Além disso, cedendo às
súplicas de Decência Kochamma, que pro­mete respeitar as condições
da artista, Elsie embarca na produção de seu retrato. Sem­pre que
Philipose vê aquela dama corpulenta posando sentada, convence-se de
que Decência Kochamma se vê como o próprio Mar Gregorios,
faltando-lhe apenas o báculo, as vestes e a santidade.
Ninan não está muito interessado em caminhar, exceto como um
meio de escalar. Por que usar dois membros, se temos quatro? é a filosofia
dele. Quatro membros permitem-nos ascender. Em pouco tempo o
baque surdo de um pequeno corpo desabando no chão duro torna-se
familiar. Um breve silêncio é seguido por um choro de vida curta, feito
mais de indignação do que de dor, e logo o escalador retoma as
atividades. Shamuel diz: “Ele é como o avô, meio leopardo”.
Grande Ammachi sabe que ele é como o avô e o pai também em
outro aspecto: qualquer água que se derrame sobre sua cabeça o
desorienta, põe seus olhos trêmulos derivando de um lado a outro. Ele
sofre da Condição.
A avó convoca os pais a seu quarto e, espelhando os movimentos do
falecido marido, desembala e abre a Árvore da Água — o nome que ele
deu à genealogia. Na época do casamento, Philipose contou tudo para
Elsie a respeito da Condição. Ela não se preocupou, e, além do mais, já
ouvira rumores aqui e ali. “Toda família tem alguma coisa”, Elsie
dissera. O que havia na família dela? “Bebida. Meu avô. Meu pai.
Meus tios. Até meu irmão.”
Agora Grande Ammachi conduz Elsie pela genealogia. “Você só
precisa ter cuidado com Ninan quando houver água por perto. Não
precisa ensiná-lo a evitar. Ele não vai querer saber de água. A não ser
que seja como seu marido, que lutou para aprender a nadar —
felizmente, a certa altura, desistiu.” Philipose não diz nada. Nunca se
preocupou com a própria segurança como se preocupa agora com a
segurança do filho.

Perto da meia-noite de 14 de agosto de 1947, ouve-se a voz do


primeiro-ministro Jawaharlal Nehru no rádio; são as palavras mais
empolgantes que saíram daquele aparelho desde que começou a
funcionar. Naquele mesmo dia, mais cedo, nascera o Paquistão.
“Muitos anos atrás”, diz Nehru num inglês britânico, “marcamos um
encontro com o destino. Quando der meia-noite, quando o mundo
adormecer, a Índia despertará para a vida e para a liberdade”.
Mas o despertar da Índia prova-se sangrento. Vinte milhões de
hindus, muçulmanos e siques são forçados a se desenraizar das terras
onde suas famílias viveram por incontáveis gerações. Muçulmanos
fluem para a recém-formada nação paquistanesa, enquanto hindus e
siques, que descobrem que já não estão na Índia, rumam em direção a
ela. Trens lotados com refugiados são atacados por gangues da religião
oposta. Turbas sanguinárias esmagam crânios de crianças, estupram
mulheres e mutilam homens antes de matá-los. A vida e a morte de um
homem e de sua família depende da presença ou da ausência de um
prepúcio. Philipose lembra da viagem de trem, retornando de Madras,
e de Arjun-Kumar-Ferrovias, o cheirador de tabaco, louvando como
todas as religiões, todas as castas se davam bem dentro de um vagão.
“Por que não é assim fora do vagão? Por que não vivemos em paz, todos
juntos?”
No sul da Índia, particularmente em Travancore, Cochim e
Malabar, vive-se em paz. A violência do norte parece acontecer em
outro continente. Os muçulmanos malaialas, cujas linhagens
remontam aos mercadores da Arábia que navegaram para a Costa das
Especiarias nos dhows, não têm por que temer os vizinhos não
muçulmanos. Geografia é destino, e a geografia compartilhada da
Costa das Especiarias, e o idioma malaiala, une todos os credos. Mais
uma vez, a fortaleza dos Gates Ocidentais, que repeliu invasores e
falsos profetas por séculos a fio, poupa-os do tipo de loucura que leva ao
genocídio. No caderno, Philipose escreve: “Ser malaiala é em si mesmo
uma religião”.

Pouco antes de Bebê Ninan completar dois anos, um envelope


selado com cera chega para Elsie, encaminhado da casa Thetanatt.
Retrato de Lizzi foi aceito para a exposição do Fundo Nacional em
Madras. Os olhos de Elsie brilham de orgulho.
Philipose diz: “Não sabia que você estava concorrendo”.
“Não fazia sentido contar. Eu participo desde os catorze anos. O
homem que vende o chá de meu pai em Madras me inscreve — ele
gosta de meu trabalho. Porém até hoje sempre rejeitaram minhas
obras.” Ela olha para o esposo com uma expressão cheia de malícia.
“Este ano, em vez de ‘T. Elsiamma’, pedi que me inscrevesse como “E.
Thetanatt.’”
“Isso fez diferença?”
Ela dá de ombros. “Os juízes são homens. Vão pensar que sou
homem também. Mas, enfim, preciso enviar outras obras para
acompanhar o Retrato de Lizzi. Não tenho muito tempo.”
“Bem… Isso é incrível. Estou tão orgulhoso”, Philipose se esforça
para dizer.
Ela o abraça, e o aperto é tão forte que ele perde o fôlego. Com
atraso, percebe que deveria tê-la abraçado primeiro.

Philipose fica feliz por Elsie, mas se envergonha ao reconhecer que


aque­la notícia o perturba. Será por ter usado o nome de solteira? Não é
isso. Ele lembra de todas as vezes que se lamentou pela recusa de seus
manuscritos, ficava abatido por dias a fio. Por sua vez, Elsie não acha
sequer que valha a pe­na mencionar quando suas obras são rejeitadas.
Elsie continua a contemplá-lo de modo sonhador, perdida em
pensamentos. Com mesquinhez, ele diz a si mesmo que ela está
imaginando suas obras na exposição e vencendo o prêmio principal.
No entanto, equivoca-se.
“Philipose, eles não pedem que os artistas compareçam à exposição.
Mas e se a gente fosse para a abertura? Passamos um tempo em Madras,
só nós. Grande Ammachi pode cuidar de Ninan. Não vai ser
empolgante pegar o trem de novo, na direção oposta?”
O marido se volta para ela pálido, incapaz de ocultar sua angústia. O
suor logo lhe brota na testa. Ela percebe, e ele confessa. “Elsie, prometi
ir com você para a propriedade de seu pai e posso ir na hora que você
quiser. Ou para qualquer outro lugar. Basta dizer. Mas Madras? Meu
coração pula só de ouvir esse nome. É algo que me afeta fisicamente. A
cidade onde fui derrotado e humilhado. Onde me mandaram fazer as
malas.”
“Eu também, por isso estava naquele trem. Mas dessa vez estaremos
juntos.”
“Querida”, Philipose diz. Ele quer agradá-la, mas sua garganta
parece estar se fechando, e o suor escorre por seu rosto. “Estou tão
orgulhoso de você. Por favor, entenda. Vou para qualquer lugar a seu
lado. Kanpur, Jabalpur, qualquer-pur. Só para Madras que não.”
“Foi só uma ideia”, ela diz. Contudo, a nota desolada em sua voz
rouca o fisga como um anzol, enchendo-o de vergonha. O antídoto
para esse sentimento é a indignação, a raiva cheia de razão. Felizmente,
dessa vez ele se reprime; sabe que aquelas emoções não se justificam.
Teme retornar à Madras, e não pode escondê-lo. Mas tem mais medo
de perdê-la, medo de que ela perca o interesse por ele.
Naquela noite, atipicamente, Ninan sobe no peito de Elsie e fica
quietinho, colado ali, as pernas dobradas até que ele adormece,
lembrando o pai e a mãe do tempo em que vivia acoplado naquele
corpo. Ela diz: “Seria um choque para ele se eu me ausentasse, mesmo
por uma noite. E eu sentiria falta dele também”. Ela olha para
Philipose, travessa. “Você sentiria minha falta se eu fosse sozinha?”
“E como! E ia me torturar de ciúme imaginando você apreciando
tabaco com algum estranho. Provavelmente saltaria no primeiro trem
atrás de você.”
Ela sorri e olha para Ninan. “Bem, se tivéssemos ido, pelo menos
sentiríamos falta dele juntos. E poderíamos substituir nossas
lembranças dolorosas naquela cidade por novas recordações.”
Philipose diz: “Eu sei. Mas vamos conhecer outra cidade primeiro.
Madras pode ficar para quando eu me sentir mais forte”.

Seis semanas depois, quando ele deita na cama e apaga a luz, Elsie
diz: “O motorista de meu pai trouxe uma carta hoje. Você tinha saído
com o Senhor Melhorias. O Retrato de Lizzi ganhou medalha de ouro
na exposição em Madras. E o retrato de Decência Kochamma ganhou
uma menção honrosa”.
Ele salta da cama. “Quê? E você só me conta agora? Vou acordar a
Ammachi…” Elsie põe um dedo sobre os lábios dele e insiste que tudo
pode esperar até o amanhecer.
A notícia sai no India Express no dia seguinte. O repórter pergunta
por que levou tanto tempo para que as habilidades da artista fossem
reconhecidas. Ao usar um nome que não revelava seu gênero, Elsie
ganhou a medalha de ouro. No entanto, quando assinou Elsiamma,
alguns daqueles trabalhos foram rejeitados no ano anterior pelos
mesmos juízes (A fonte do repórter é o amigo de Chandy, apoiador
fervoroso de Elsie: o chefe da corretagem de chá em Madras, aquele
homem que inscreveu seus trabalhos.) Três dos quadros de Elsie foram
vendidos na abertura. O Retrato de Lizzi alcançou o melhor preço no
leilão. No dia seguinte, os jornais malaialas citaram a reportagem do
Express.

Quando Ninan faz três anos, o Senhor Melhorias especula que


talvez o garoto venha a ser um político do Partido do Congresso, pois
ele visita re­gularmente todas as casas de Parambil. Ama compota de
manga, mas come tudo que é lhe oferecido, um apetite tão
impressionante que as pessoas se perguntam se ele passa fome em casa.
Felizmente não manifesta nenhuma vontade de nadar. Tem os olhos
voltados para as alturas: o topo do guarda-roupa, o alto do palheiro, a
pilastra central do telhado. O ponto mais elevado em que já esteve até
agora foi o lombo de Damodaran, que o ergueu e o entregou a Unni,
que estava à espera. O príncipe está proibido de buscar o cálice sagrado
de todas as elevações: o topo da palmeira cujas frondes garantem o
vinho de palma e a sobrevivência de quem as colhe. Emulando seus
heróis, ostenta um cinto de pano dentro do qual enfia um osso
desidratado e um graveto que fazem as vezes de faca. Ninan tem uma
jovem pulayi cujo único trabalho é mantê-lo o mais próximo possível
do nível do mar. Certa noite, a família está sentada na varanda quando
vê boquiaberta Ninan escalando a pilastra da varanda, as solas
espalmadas contra a superfície lisa como os pés de um lagarto,
enquanto suas mãos, agarrando-se à parte de trás da pilastra, garantem
um contrapeso. Antes que possam reagir, ele já sorri entre as vigas.
Certa manhã, ao retornar do correio Philipose encontra Elsie na
cama, o olhar ansioso e a pele queimando. Ele a massageia com panos
molhados para baixar a temperatura. Pelos dias seguintes a febre não
cede, o que sugere à família uma possível febre tifoide. A algum custo,
Philipose aluga um carro e traz um médico que trabalha a uma hora de
distância de Parambil. O diagnóstico é confirmado. Não há tratamento
específico, ele diz, mas Elsie deve melhorar.
Philipose cuida sozinho da esposa, dispensando toda ajuda.
Descobre que sua melhor versão — a melhor versão deles — vem à
tona quando ela depende dele, como agora. O amor não deveria
sempre ser assim, como as duas pernas da letra A? Quando ela está
absorta no trabalho e não se apoia nele, Philipose se sente sem
equilíbrio, instável.
Lá pela terceira semana da doença, Elsie esboça alguma melhora.
To­ma um banho de verdade com a ajuda de Philipose, mas depois se
sente tão fraca que ele tem de carregá-la para a cama. Elsie aperta a
mão dele e não solta. Seu dedo roça a depressão atrás do polegar de
Philipose, entre os tendões do pulso. O rosto dela se abre num sorriso
bobo. “Só uma leve fungadela”, diz, acariciando o vão da “tabaqueira
anatômica”.
“Precisamente dois espirros virão”, ele diz. “A não ser que venham
mais.” Ela ri baixinho, e ele lhe beija a testa, sentindo uma onda de
ternura e uma forte necessidade de dar vazão a suas emoções imaturas.
Mas, ele sabe, é nesses momentos que ele se mostra mais perigoso para
si mesmo.
Ela pergunta por Ninan, que eles têm mantido longe, para
segurança da criança. “Ele subiu em cima do barracão dos bodes de
Decência Kochamma e roubou as mangas dela”, diz Philipose. “Ela
não ficou nada feliz. Disse que ele era bode da cintura pra cima e
macaco da cintura pra baixo. O que nos toca de um modo nem um
pouco lisonjeiro.” Elsie ri, depois estremece. Sua barriga está dolorida.
Ela abre os olhos para olhar o marido, que pousa a cabeça na dela, de
forma que os dois se olham vesgamente, sorrindo como crianças bobas.
Que nome ele pode dar a essa energia que paira pelo quarto, unindo-
os? Queria tanto poder engarrafar esse elixir que a doença deixou tão
potente. É possível amá-la mais? Ou sentir-se tão valorizado quanto se
sente agora? Que nome dar a isso, senão amor? Um pouco mais tarde,
Elsie chora. Estará pensando na mãe, levada por essa mesma doença
quando a filha não era muito mais velha do que Ninan? Ele sente uma
necessidade desesperada de reconfortá-la.
“O que é? O que posso fazer por você, Elsiamma? Me diga.
Qualquer coisa…”
“Idiota! De novo!” Ele fica envergonhado. Prestes a falar, ela desiste.
Ele espera. A vitalidade que havia no quarto desaparece, deixando
apenas tristeza em seu rescaldo.
Ela olha pela janela.
“Ok.” Ele diz, teatral. “Eu prometo. É o fim da árvore. Sem mais
desculpas.” Os olhos dela se fecham. Era mesmo esse o significado
daquela mirada pela janela? Em todo caso, ele fez uma promessa. De
novo. E não vai decepcioná-la.

Nos primeiros dias de junho daquele ano, 1949, a casa está irritadiça.
Nervos à flor da pele são um sintoma pré-monção que aflige toda a
costa ocidental da Índia. Colunistas escrevem artigos rabugentos que
reelaboram artigos rabugentos anteriores sobre essa irritabilidade, cuja
única cura é a chuva. A monção sempre chega no dia primeiro de
junho, e já estamos no quinto. Os agricultores pedem que o governo
faça alguma coisa. Multidões se organizam para rezar. Em Mavelikara
uma mulher corta a cabeça do marido com quem viveu por vinte e
cinco anos. Ela disse que o bom humor e a loquacidade dele a
exasperaram.
Nesse período, com pouco trabalho para os pulayar, Philipose
encarrega Shamuel de cortar a árvore. O ancião ouve as instruções e se
retira, confuso.
Philipose vê Shamuel retornar com uma equipe de pulayar, Joppan,
inclusive, que ele raramente encontra. Sempre vê a mulher dele,
Ammini, trabalhando com Sara, tecendo painéis de palha, mas quase
não o vê. Ouviu dizer que o amigo reformou sua casa, trocou as paredes
de palha por madeira e botou um piso de cimento que se estende até o
terraço. O ramo das barcaças está a todo vapor de novo. Agora é
Ammini quem varre o muttam, e é paga para isso.

“Primeiro, retirem as jacas. Cada um pode pegar uma”, diz Shamuel


para a equipe. Ele se acocora para assistir, com Sara a seu lado. Os
homens vão tirando aquelas orbes pesadas e espinhentas. “Ainda bem
que esses frutos crescem rente ao tronco”, diz Shamuel. “São como
pedras! Cocos caindo já são perigosos, mas uma chakka pode matar.
Veja meu dedão do pé se acha que estou de brincadeira. Você sabe, não
é?”
Sara faz que não o escuta e levanta sem dizer uma palavra. Shamuel
foi urinar atrás de uma jaqueira, buscando privacidade, pois havia
mulheres por perto. Acabara de colocar o pênis para fora e olhava para
baixo. Na idade de Shamuel, para que as coisas comecem a fluir, é
preciso tossir, cuspir, imaginar cachoeiras, encostar a mão em algo ou
olhar para cima. A história dele sempre termina com “Se eu estivesse
olhando para o meu pinto, teria sido o fim. Se eu não tivesse olhado
pra cima, não estaria falando com você agora!” Ele teve tempo de
esquivar a cabeça, mas a jaca caiu em cima de seu dedão.
Enquanto se afasta, Sara pensa: Por que os homens olham pra baixo?
O troço não está sempre lá? Ele não sai caminhando por aí. Só mire e
atire! Ela volta para junto de Ammini para terminar o painel de palha e
lhe diz: “Aquele homem é a minha vida. Mas, se ele repetisse aquela
história da chakka, eu terminaria o serviço que a chakka começou”.

Uma vez colhidos os frutos, Shamuel orienta os homens a amputar


cada galho perto da origem, “só um pouquinho depois dos ombros”.
Eles o olham sem entender. Seu sobrinho, Yohannan, pergunta: “Por
que não cortar a árvore toda de uma vez?”.
“Eda Vayinokki!”, Shamuel diz. Intrometido! “Quem é você para
fazer perguntas? ‘Por quê?’ Porque o thamb’ran pediu. Não basta?”
O que há de errado com Yohannan?, pensa Shamuel, irritado. Ele
acordou e esqueceu o que é ser um de nós? Mas na verdade nem ele
entende por que a árvore tem de ser cortada desse jeito. E daí? Quantas
coisas ele já fez só porque o thamb’ran assim pediu? É só isso que
importa.
Os homens decepam cada galho com suas vakkathis afiadas,
atacando a madeira de um lado e de outro, até o galho tombar,
sobrando uma ponta aguda, um coto afiado. Desses cortes brota seiva,
que eles prontamente coletam com cabaças. As crianças usam a seiva
como visgo para caçar passarinhos, uma prática cruenta, na opinião de
Shamuel. Mas é uma cola excelente para calafetar sua velha canoa.
Quem diria que a essa altura de junho ainda se pode calafetar uma
canoa? Salpicos de seiva branca pontilham a pele dos homens e
grudam-se às vakkathis. Será preciso passar óleo e raspar um bocado
com casca de coco para limpar as lâminas e os punhos daqueles
machetes.
“Essa madeira é boa”, Shamuel grita. “Deixem só um galho para
mim, vou fazer um remo. Não é uma madeira fácil, mas sabendo tratar
brilha que é uma beleza. Podem levar e fazer o que quiserem. Vendam
para o ashari se são preguiçosos, que me importa?”
Em pouco tempo o ar está tomado pelo cheiro nauseante de jaca
madura. Quando os trabalhadores se vão, Shamuel e Joppan
contemplam o que sobrou: um tronco alto e grosso, com braços e dedos
que parecem adagas. Uma deusa maligna. Joppan diz, com amargura:
“Isso é uma estupidez. Não deviam permitir a posse da terra a quem
não sabe o que fazer com ela”. Retira-se antes que o pai, pasmo, possa
responder.

Do quarto, Philipose observa tudo. Talvez Elsie considere aquele


tronco uma espécie de escultura, um candelabro com uma dúzia de
membros pontudos e curvos. Mas ele sabe que está se enganando. O
que sobrou é um espantalho desagradável, cravando as unhas no céu.
Esse meio-termo foi a solução que encontrou para iluminar o quarto,
preservando seu talismã. O resultado, porém, é feio e constrangedor,
como a nudez de um velho. Era me­lhor cortar tudo. Shamuel está ali,
sozinho, e Philipose está prestes a gritar “O’Shamuel’O! Mande
cortarem tudo”, quando vê Joppan ao lado do pai. O orgulho impede
que as palavras saiam de sua boca. Aquilo só o faria parecer ainda mais
tolo.
O quarto está, de fato, mais claro, a luz chega a revelar uma teia de
aranha a um canto. Elsie estava certa: a árvore obstruía a vista. E o que
é isso que ele vê agora? Inclina-se para conferir melhor. Uma mudança
no céu? Não há nuvens, mas o tecido azul tem uma textura diferente. E
há também um novo aroma no ar. Será que é?
Philipose sai. César late. Uma lufada de vento sopra seu mundu
entre suas pernas. Um bando de pássaros dá um rasante no ar. Se ele
estivesse na praia em Kanyakumari, talvez tivesse visto a grande
monção sudoeste assomando na véspera, refazendo um caminho que
nos tempos antigos trouxe romanos, egípcios e sírios a essas praias.
Evita olhar para a plavu amputada. Cruza o pasto, até chegar ao
dique elevado na margem dos arrozais que se estendem na distância,
oferecendo uma vista desobstruída do céu e um horizonte de copas de
palmeiras. Outros se juntam a ele, os rostos tensos por antecipação.
Esqueceram-se de que a monção os confinará por semanas a fio,
inundará os arrozais ressecados, se infiltrará pelos telhados,
depauperando os depósitos de grãos; tudo que sabem é que seu corpo,
como o solo seco, anseia pela chuva; suas peles descamadas têm sede.
Assim como os campos ficarão de pousio, também o organismo precisa
descansar para ressurgir renovado, lubrificado e maleável.
No alto do céu, uma ave de rapina que parece imóvel, as asas
desfraldadas, surfa o vento constante. O céu à distância está
avermelhado e mais escuro. Um relâmpago provoca uma onda de
excitação entre os observadores. Apreciam esses minutos antes do
dilúvio, esquecendo-se de que logo estarão com saudade do tempo em
que as roupas secam direito e não têm aquele cheiro bolorento e
mofado de coisa do século passado; amaldiçoarão também as portas e
gavetas que emperram como um bebê mal posicionado. Por ora essas
memórias estão enterradas. O vento sopra errático, e Philipose se
esforça para se manter equilibrado. Um pássaro desorientado tenta voar
na ventania, que lhe ergue uma ponta da asa e o despacha rodopiando.
Agora Shamuel está ao lado dele, a pele salpicada de seiva branca,
sorrindo para o céu. Por fim, uma escura montanha de nuvens se
aproxima, um deus negro — ah, homens de pouca fé, por que
duvidaram do meu advento? Parece estar a quilômetros, mas já assoma
sobre eles, pois é a chuva, a chuva abençoada, a chuva lateral, a chuva
que vem de baixo, a chuva nova, da qual não se pode fugir, contra a
qual nenhum guarda-chuva serve de proteção. Philipose segue olhando
para o alto, mesmo quando Shamuel o encara, sorrindo, murmurando:
“Mantenha os olhos abertos!”.
Sim, velho, sim, fiquemos de olhos abertos para esta terra preciosa e
sua gente; de olho no pacto da água, água que lava os pecados do
mundo, água que se congregará em riachos, lagos e rios, rios que correm
para os mares, água na qual jamais entrarei.

Ele corre para casa, Shamuel em seus calcanhares, pois há um ritual


ainda mais importante. Afluem pessoas das outras casas, todos chegam
a tempo.
Depois de uma última olhada no espelho, Bebê Mol segue para a
varanda da frente — uma criança baixinha, os ombros para trás,
embora vá ficando mais corcunda a cada ano, o traseiro balançando de
um lado a outro, como um contrapeso para as pernas. Uma vez que
sentiram o cheiro de chuva, Grande Ammachi tratou logo de adornar o
cabelo de Bebê Mol com laços e jasmins, vestindo-a apressadamente
com sua roupa mais especial: a saia azul brilhante de bainha dourada e
um meio-sári de seda que se enrola por sobre a blusa dourada, preso ao
ombro. Elsie pintou um grande pottu vermelho no centro da testa de
Bebê Mol e aplicou kajal, o que lhe dá uma aparência mais madura.
Bebê Mol sorri, tímida, ao ver o público se aproximar, seus amigos e
familiares juntos para assistir à dança das monções. Sente o peso da
responsa­bilidade: depende dela a constância das chuvas. Essa tradição
começou na infância de Bebê Mol, e, como ela sempre será uma
criança, a tradição continuará. Ela vai ao muttam, os espectadores
lotam a varanda ou, no caso dos pulayar, recostam-se na parede, sob o
beiral.
Ela começa a gingar, bate palmas para marcar o ritmo, arrasta o pé.
À medida que se aquece, o milagre ocorre: os passos deselegantes e
truncados se tornam fluidos, e logo todas as suas limitações — a
corcunda, a baixa estatura, as mãos grandes e os pés largos — se
dissolvem. Vinte pares de mãos batem palmas com ela e a celebram.
Ela lança os braços ao céu, convocando as nuvens, arfando do esforço,
distribuindo olhares aqui e ali. É o mohiniyattam de Bebê Mol, e ela é
a mohini — a encantadora —, rebolando, telegrafando uma história
com os olhos, o semblante, os gestos das mãos e a postura dos
membros. Seu mohiniyattam é telúrico, próximo do chão,
indisciplinado e autêntico. O suor se mistura às gotas de chuva na
seriedade da dança. Cada espectador deve intuir a mensagem que há
nessas rotações, mas os temas são o trabalho duro, o sofrimento, a
recompensa e a gratidão. Quanta sorte, diz a mensagem à Philipose,
enquanto cai a chuvarada. Quanta sorte! Sorte de poder julgar a si
mesmo nessa água. Sorte de poder purificar-se sempre e sempre…
Quando a dança se encerra, tudo está feito: Bebê Mol lhes assegurou o
pacto, a monção lhes jurou lealdade, a família está segura e tudo no
mundo está bem.
49. A vista

parambil, 1949

Um dia depois do começo da monção, Bebê Mol está


inexplicavelmente inquieta e infeliz; não senta no banco, caminha de
um lado a outro, sem apreciar o aguaceiro, como de costume. Temem
que esteja doente, que seus pulmões e o coração sobrecarregado a
estejam incomodando. Ela deita com Elsie, que massageia suas pernas,
enquanto Grande Ammachi lhe ampara a cabeça. Ninguém acredita
que ela tenha quarenta e um anos; nem um pouco bebê, mas ainda
assim sempre bebê. Grande Ammachi implora: “Diga-me o que há de
errado”, porém ela apenas geme e chora, inconsolável, por vezes
respondendo com raiva para o fantasma que lhe sussurra coisas no
ouvido.
À noite, marido e esposa estão deitados na cama, ouvindo os céus se
esva­ziando sobre Parambil, Ninan adormecido ao lado de Elsie,
Philipose abraçado à esposa, ambos preocupados com o que anda
perturbando Bebê Mol.

Na manhã seguinte, há uma estranha trégua e os céus se abrem. O


sol sai. As pessoas se arriscam a sair com cautela, incertas de quanto
tempo durará aquilo. O Senhor Melhorias se apressa para colher a
assinatura de Grande Ammachi em um formulário de um recurso para
redução de impostos. Georgie e Ranjan decidem que aquele é o
momento de conversar com Philipose sobre um arrendamento com
pagamentos atrasados. Shamuel e outros também se reúnem atrás da
cozinha; vieram buscar o ordenado e receber sua cota de arroz, como é
o costume no início da monção. Joppan também se aproxima, vindo de
sua cabana. Odat Kochamma leva as roupas lavadas para pendurar no
varal, pessimista em relação à probabilidade de qualquer coisa secar.
Tão logo termina a tarefa, uma bela garoa começa a cair. Ela resmunga
contra os céus, diz que ele deveria se decidir.
É quando um grito rompe a calmaria, um som tão terrível que
suspende a garoa. Philipose, na escrivaninha, sabe de imediato que vem
do quarto adjacente, dos lábios de Elsie, embora nunca tenha ouvido
um som como aquele antes, um berro violento de horror que lhe gela o
sangue. O marido é o primeiro a alcançá-la.
Elsie agarra-se à guarnição da janela, ainda gritando. Philipose acha
que ela foi picada por uma cobra, mas não vê nenhum sinal do bicho.
Ele segue o olhar da esposa pela janela até a plavu desnuda. O que vê
ali traz-lhe bile à boca.
Bebê Ninan. Suspenso de cabeça para baixo, o rosto pálido, exangue,
congelado numa expressão de surpresa, o corpo entortado de um jeito
que desafia os sentidos.
Um dos galhos pontudos amputados da árvore cresce de dentro de
seu peito; o sangue coagulado ao redor da ferida forma uma franja
irregular.
Philipose, aos gritos, corre e sobe na árvore, sentindo as pernas
escorregarem na casca molhada, friccionando as bochechas contra o
tronco ensopado, ferindo as mãos ao escalar — como Ninan chegou ali
em cima? Movido por adrenalina e desespero, agarra um toco afiado,
encontra um e outro apoio para os pés até alcançar o filho. Tenta soltá-
lo. Shamuel, que estava perto do quarto de Philipose quando ouviu os
gritos, agora também trepa na plavu, desafiando sua idade, esforçando-
se atrás do thamb’ran. Joppan chega a tempo de ver o pai alcançar
Philipose. O corpo do velho, da cor da casca da árvore, pressiona-se
contra o de Philipose, que pode sentir o hálito quente com cheiro de
nozes-de-betel e beedi enquanto, juntos — e é preciso que sejam duas
pessoas —, puxam Ninan, precisando primeiro desacoplá-lo do toco.
Soerguem-no, e, com um som viscoso nauseante, o torso se liberta.
O corpo desliza das mãos deles para as de Joppan e as muitas outras
que esperam lá embaixo, e Ninan é depositado no chão, flácido e
imóvel, a coluna em um ângulo torto, a chuva agora caindo sobre o
corpo inerte e sobre todos. Shamuel desce da árvore, e, quando se
afasta, Philipose, não se dando ao trabalho de descer com cuidado,
simplesmente se lança lá do alto da árvore, tombando fortemente
contra o chão e gritando da dor excruciante que lhe atravessa os
tornozelos assim que seus calcanhares afundam na terra. Contudo, já
no instante seguinte todos o veem curvado sobre o filho, gritando, sua
voz ecoando pelos campos e entre as árvores. “Ayo! Ayo! Ente ponnu
monay! Meu bebê precioso! Monay! Ninan! Fale comigo!”, grita,
recusando-se a aceitar o que os olhos lhe mostram, surdo aos gritos de
Elsie e de Grande Ammachi e dos outros ao redor; surdo ao choro, aos
golpes que alguns dão no próprio peito, aos ruídos dos vômitos. Não
ouve nada disso, pois o tronco de Ninan é o mundo solapado, um poço
escuro de horror, o centro de um universo que traiu uma criança; traiu
a mãe, o pai e a avó, e todos que o amam. Tudo que pertencia ao
pequeno corpo — a respiração, o pulso, a voz e o pensamento — se foi
e está morto, mais do que morto.
Philipose recolhe seu menino partido. Quando mãos tentam impedi-
lo, bate-se contra elas e as afasta. Aninha o filho nos braços, um
lunático que pretende correr para dentro da escuridão das nuvens de
monção. E, se não para aquelas nuvens curativas, para onde correrá?
Para um homem de tornozelos quebrados que busca ajuda para o
primogênito, o hospital mais próximo é mais longe do que o sol.
Shamuel e Joppan trotam atrás dessa figura enlouquecida, a mão do
rapaz em volta da cintura do amigo de infância, em volta da criatura
cambaleante que grita, como se uns decibéis a mais pudessem
despertar o que jamais despertará de novo: “Monay, não nos deixe!
Monay, ayo Ninanay! Espere! Pare! Me ouça! Monay, perdão!”.
Os homens de Parambil — tios, sobrinhos, primos, trabalhadores —,
convocados pelos lamentos, seguem a trilha de sangue, enfileirando-se
atrás do pai e do filho morto. Duzentos metros adiante, Philipose ainda
cambaleia, um bêbado de tornozelos moles, o pé esquerdo virado para
dentro, caminha e chora, e os homens também choram, homens feitos,
cercando-o, mas não se atrevendo a detê-lo, uma marcha contida ao
longo do pai que pensa que corre quando mal se move, e por fim se
detém no mesmo lugar, trêmulo como um ancião.
Seus tornozelos cedem, e os homens o amparam; os braços fortes de
Parambil depositam seu irmão com cautela na terra, sobre os joelhos,
enquanto ele ainda se agarra ao fardo terrível que tem nos braços.
Philipose, voltando a face aos céus, grita, suplica a Deus, qualquer
Deus. Deus se cala. Chuva é o melhor que os céus conseguem
oferecer.
É Shamuel, o mais velho e o mais nobre desses homens, agachando-
se docemente ao lado de Philipose, quem tem a coragem e a
autoridade de desembaraçar a criança das mãos ensanguentadas do pai.
Ele cobre o menininho com o próprio thorthu desfraldado, e de alguma
forma esse pano desbotado, utilitário, transforma-se num sudário
sagrado, a materialização do amor do velho. Shamuel acolhe o corpo
do pequeno thamb’ran nos braços, aninha-o com cuidado,
amorosamente, seus velhos ossos rangendo ao erguer-se; Ranjan,
Georgie, o Senhor Melhorias, Yohannan e dez outros ajudam o velho
Shamuel a se levantar, todos eles irmãos, todas as barreiras de casta e
costume apagadas na solidariedade imposta pela morte, enquanto
Joppan, sozinho, cuida do pai despedaçado, põe-no de pé, enfia a
cabeça por baixo de seu braço, envolve sua cintura e o apoia,
praticamente o carrega, enquanto o amigo manca sobre tornozelos
quebrados.
As mulheres, tomadas de dor, recuaram para a varanda de Parambil,
chorando, lamuriando-se ou soluçando em silêncio, tapando a boca
com panos. Elsie está de joelhos, as mãos no peito, enquanto Grande
Ammachi se agarra a uma pilastra; Odat Kochamma, silenciosa e
ritmicamente, bate no próprio peito, ora com um punho, ora com o
outro, o rosto para cima, e todas esperam. A última coisa que viram foi
Philipose cambaleando pela estrada, os pés grotescamente tortos, a
forma morta do filho nos braços; tinham esperança, contra toda
esperança, de que, de alguma forma, quando não fossem mais vistos, o
pai, ou Deus, ou ambos, pudessem operar algum milagre, consertar o
menino quebrado, reaver o que estava perdido.
Toda esperança é destruída assim que as mulheres veem a falange de
pais e filhos regressando, um muro de homens fortes, de bigodes, os
braços sobre os ombros uns dos outros, irmãos no sofrimento,
caminhando como um só, aos soluços ou com olhos secos, mas cada
rosto distorcido pela perda, se contorcendo de dor, raiva, choque e ira.
Com eles vai o pai despedaçado, um louco, um braço sobre o ombro
de Joppan, cujos músculos se retesam e tensionam sob seu peso, até
que Yohannan se enfia por debaixo do outro braço de Philipose.
No centro da falange está Shamuel, quase nu, vestindo apenas sua
tanga suja de lama; seu mundu ficou perdido na árvore amaldiçoada.
Caminha com dignidade, o torso desnudo em ângulo reto com o horror
que leva nos braços, que seu thorthu não pode ocultar por completo.
Com passos comedidos, aproxima-se lentamente das mulheres à espera,
como se cada minuto de sua labuta ao longo da vida, capinando essa
terra com seu thamb’ran, o trabalho sem fim que moldou bíceps
tendinosos e um peitoral forte, conduzisse àquele momento, a esse
triste serviço: carregar nos braços, solene, o primogênito do temporão
de seu falecido thamb’ran, que agora se junta aos ancestrais no além
divino.

Depois do enterro, Philipose, apoiado em muletas, observa pela


janela o lugar onde ficava a plavu. Sem consultar ninguém, Shamuel
cortou o restante dela. Ventilou sua fúria e sua dor, estraçalhando a
árvore com o machado, e tudo que Philipose queria era tomar o lugar
da árvore, para que o machado do velho lhe cortasse a carne. Joppan,
sem ser chamado, veio juntar-se ao pai, para ajudá-lo — de fato, para
tomar o machado dele, pois os golpes de Shamuel tornaram-se cada vez
mais selvagens e inconsequentes, e logo Yohannan se fez presente ali, e
outros mais, e dessa vez não pouparam nada: atacaram a árvore
violentamente, arrancando até a última raiz e, depois, enchendo a
cratera de terra, para que nem sequer a cicatriz de sua existência desse
testemunho: a execução brutal de uma árvore maldita. Philipose bem
queria que aqueles homens também o tivessem executado, enterrando-
o naquele exato local, naquela terra barrenta onde já crescia o musgo
alimentado pelo sangue de seu filho e a chuva de monção, ocultando
qualquer traço de onde um dia se ergueu certa árvore em Parambil.
Mais tarde, Shamuel conta a Philipose que encontraram um pedaço
da camisa de Ninan no penúltimo galho, duas vezes mais alto do que
aquele no qual o corpo foi empalado. Não diz nada além disso, mas os
dois imaginam a camisa presa naquele galho alto, e o menino por um
momento suspenso, até que o tecido se rasgou e Ninan caiu na direção
daquela espora aguda. Philipose estava no escritório, trabalhando. Não
ouviu a queda, só o grito da esposa.
Agora há luz demais no quarto — uma luz obscena, odiosa.
Philipose ferve de raiva de si mesmo. Por não ter visto Ninan dando
início à escalada. Por não ter ouvido o filho gritar. Por não ter cortado a
árvore inteira. Tudo isso é culpa sua. Mas… Se Elsie nunca tivesse se
incomodado com a árvore, sua árvore, se ela tivesse respeitado seu
trabalho como ele respeitava o dela, então Ninan, seu primogênito,
ainda estaria vivo. Quando Elsie manifestou seu desejo, muitas
monções atrás, tudo que ele precisava ter dito era “Não!”. Ou que
dissesse um verdadeiro “Sim”. Na vida, as situações em que ficamos em
cima do muro são fatais; essa indecisão matou seu filho. Porém, em sua
dor, em sua amargura, ele pensa, naquele momento, que tudo
começou com o desejo fatídico: “Você pode cortar essa árvore?”.
Por que tudo era tão difícil? Ele só queria amá-la. Desde o noivado,
não fez concessões infinitas o tempo todo? Alterou suas atividades para
que as dela florescessem. Foi isso que matou o pequeno Ninan — a
teimosia dela. Alguma parte de Philipose deve saber que aquele
raciocínio não é razoável. Mas sua mente não pode aceitar a
alternativa. Se é tudo culpa sua, que desculpa poderia ter para
continuar respirando?
Passos se aproximam e ele sabe, sem se voltar, que ela entrou no
quarto. Desde a morte do filho, os dois não ficam sozinhos. Vira-se para
encará-la, coxeando com suas muletas, ignorando a dor, mal podendo
ocultar sua raiva.
Philipose se depara com uma raiva que se equipara e supera a dele.
Os olhos de Elsie expressam fúria, e algo pior, que ele não pode
suportar: uma acusação. O rosto duro como as barras de ferro da janela,
sulcado por lágrimas secas que lhe salgam a pele.
O clima entre os dois ferve com a bile da recriminação e do
desprezo. Ela o desafia a acusá-la, e ele a desafia a pôr em palavras o
que ela está pensando.
Elsie olha por sobre o ombro do marido e vê que aquele resquício
letal e assassino da árvore se foi… Tarde demais. Seus olhos se voltam
para ele. Enquanto viver, Philipose jamais esquecerá daquela expressão.
De um deus vingativo.
Ele pressente o desejo primitivo dela de se lançar contra ele, de
atacá-lo, ferir seus olhos, rasgar seu rosto com as unhas. Em sua mente,
pode acompanhar a trajetória desse ataque e, ato contínuo, seu próprio
salto feral para bloquear a arremetida com as mãos e empurrá-la,
amaldiçoando-a por pedir o que nunca deveria ter pedido, acusando-a
de matar seu filho, condenando-a por ter entrado em sua vida e não ter
trazido nada além de tragédia.
No instante seguinte, ela olha para além dele, tal como por muitos
anos olhou para além da plavu e fingiu que aquela fealdade não estava
lá, que nada obstruía sua vista. Naquele momento, Elsie o fez
desaparecer, apagou-o de sua tela, e tudo que sobrou foi uma superfície
manchada, testemunhando algumas linhas falsas, a figura que não saiu
como planejado, as pinceladas equívocas de um casamento, e um
mundo que se estragou e que não tem reparo, em nada parecido com o
que ela imaginou. Ela passa rapidamente por ele, empurrando-o para o
lado com o ombro — o homem menos do que comum, o homem
vazio, invisível, o marido que não estava lá —, enquanto junta algumas
coisas.
Ele ouve gavetas abrindo e fechando. Depois a escuta dizer:
“Vamos”.
parte seis
50. Riscos nas montanhas

gwendolyn gardens, 1950

As batidas de Cromwell na porta da cozinha e o estalar ensopado de


galochas sendo largadas no chão dão início ao ritual noturno dos dois.
O fiel cama­rada de Digby pisa descalço no gabinete, sempre de
bermuda cáqui e ca­misa de manga curta. E sempre sorrindo.
“Quero o meu duplo”, diz Digby, enquanto Cromwell os serve. O
sorrisinho de Cromwell se alarga.
Um drinque, e nunca sozinho, é a regra de Digby. Por
autopreservação. “Contra um dos riscos que corremos nessas fazendas”,
ele diria, se lhe perguntassem. Passaram-se catorze anos desde que
adquiriu a propriedade de Müller para o consórcio — o grupo de
amigos que se reuniu à mesa de jantar dos Mylins em uma véspera de
Ano-Novo. Treze anos desde que comprou parte da propriedade, que
chamou de Gwendolyn Gardens, em homenagem à mãe. Nesse
período, ele testemunhou a queda de três administradores na Perry &
Co., propriedade vizinha: jovens que, na terra natal, sabiam lidar com
o copo. De início era uma grande aventura: bangalô, empregados,
motocicleta da empresa e o orgulho de administrar uma quantidade
inimaginável de chá, café e borracha. No entanto, subestimaram a
solidão e o isolamento da primeira monção e buscaram consolo na
bebida.
O único arrependimento de Digby em relação à propriedade é a
distância de Franz e Lena. Mesmo com tempo bom é uma viagem de
um dia inteiro, passando por Trichur e Cochim, para alcançar as
imediações do Santa Brígida e, depois, várias horas subindo até chegar
a AllSuch. Hoje sua família consiste de Cromwell, os Mylins e
Honorine, que vem todos os verões e fica por dois meses. Quando ela
vai embora, uma melancolia o assola. Sem Cromwell, sem esse ritual
de todas as noites durante a monção, ele talvez se perdesse.
Cromwell dispensa as poltronas e se agacha perto da lareira, o copo
logo abaixo do nariz — uísque, para ser aspirado tanto quanto
bebericado. Essa mistura de deliberação e prazer está em tudo que ele
faz. Digby pensa nele como alguém atemporal, então, quando vê fios
grisalhos se apossando das têmporas do amigo, sente-se perversamente
satisfeito. Digby mantém o cabelo sempre bem curto, o que torna seu
grisalho menos evidente. Tem quarenta e dois anos, parece mais jovem;
Cromwell, em suas estimativas, é um pouco mais velho.
Nesse ritual noturno, “passeiam” pelos trezentos e sessenta hectares
dos Gwendolyn Gardens. Se houvesse só café, seria fácil, pois café
demanda poucos braços — ainda menos desde que passaram a cultivar
o café robusta, quando a ferrugem devastou a plantação do arábico.
Numa mágica manhã de março, quarenta acres dos Gwendolyn
Gardens acordaram como se cobertos por um manto de neve, graças à
explosão noturna das gloriosas flores brancas do café. Mas a
concorrência brasileira fez os preços caírem. O chá é muito lucrativo e
compõe o grosso da propriedade, no entanto é uma criança delicada
que requer a maior parte dos trabalhadores. Estando perto da linha do
Equador, o chá dali pode ser colhido durante todo o ano,
diferentemente do que acontece em Assam ou Darjeeling. A demanda
é insaciável. Nas extensões mais quentes e menos elevadas da
propriedade ficam os muitos hectares de árvores-da-borracha.
“Curva onze. Deslizamento. Mesmo lugar de antes”, diz Cromwell,
ao fim do relatório.
Eu sabia que havia uma razão para meu desejo por uma dose dupla.
Um deslizamento de terra na décima primeira curva é um desastre. As
reservas de arroz acabam em uma semana; para os trabalhadores, as
provisões desse grão são mais indispensáveis do que os salários. Digby
imagina o local, a estrada terminando abruptamente numa fenda de
lama, pedregulhos e árvores desenraizadas. Logo acima, água brota de
modo misterioso da face plana da montanha. Um estigma. Os povos
nativos erguem montículos de pedra no local, oferendas a Varuna ou
Ganga, mas dessa vez os deuses não foram apla­cados. O tratamento é
doloroso: é preciso abrir uma passagem paralela ao des­lizamento,
penetrando a floresta densa, até alcançar o fim do declive mais abaixo,
então abrir uma passagem para o outro lado e subir de novo, religando
a estrada. Todas as propriedades da região vão colaborar. Trabalhadores
terão de levar os sacos de arroz na cabeça ao longo desse desvio em
formato de U até que a estrada seja reconstruída. O desvio talvez se
torne parte da nova estrada.

Na manhã seguinte, como se alguém desligasse um interruptor, a


monção cessa, silenciando o zumbido incessante de chuva no telhado.
Por muitas semanas o horizonte de Digby consistiu de uma névoa
sinuosa; em certas ocasiões, muito raras, ele imitava Zeus,
contemplando as aglomerações de grandes nuvens no vale. Agora,
quando sai, está claro e ensolarado; os galpões de processamento e a
palha no telhado da clínica, ensopados e enlameados, parecem um
vira-lata sem abrigo. Apesar do deslizamento, seu espírito está leve.
Skaria, responsável pela compostagem, corre para a clínica,
ostentando um suéter cor de vômito. Fumaça de tabaco verte-se de suas
narinas, adensando-se no ar fresco. O homem é tão viciado em nicotina
que chega a mascar charutos nojentos como se fossem beedis. Ao ver
Digby, prende a respiração para esconder a fumaça ao cumprimentá-lo.
Numa consulta médica de rotina, esse agitado Skaria até que é de
alguma serventia, mas numa emergência é menos que inútil, é um
entrave.
Cromwell traz os cavalos. Seus olhos parecem cansados, mas ele
sorri. Já foi vistoriar o deslizamento e levou consigo todos os
funcionários capacitados para começar o desvio. Relata que uma vaca
está prestes a parir e que a gata polidáctila no mesmo celeiro deu à luz
vários gatinhos. “Os filhotes também têm seis dedos! Que coisa!”
Digby monta Billroth. As margens de terra que ladeiam a estrada
estão tomadas de não-me-toques, que se contraem em resposta à brisa
súbita, assim como a pele do potro. Ele se arrepia ao ver aquilo. Se
você joga um palito de dente nesse mato, ele logo vira uma plantinha.
Digby foi menino de cidade, depois cirurgião, e agora fazendeiro. O
solo fecundo é o que o mantém ali; é a pomada para feridas que nunca
se fecham.
Billroth tensiona as orelhas e relincha, bem antes de Digby ouvir o
ruído da carroça movendo-se em alta velocidade, contrariando a física
que envolve rodas de madeira, eixos frágeis, estradas irregulares e
bovinos. Só depois avista os bois de olhos esbugalhados, filetes de saliva
escorrendo da boca, o condutor que não poupa o chicote, como se o
diabo estivesse em seu rastro.
Cromwell adianta-se trotando ao encontro da carroça. Depois de
uma breve conversa, aponta para a trilha que termina em um prédio
baixo, com a palha do telhado caindo-lhe sobre as orelhas, como um
gorro. É a clínica.
“Vieram do outro lado da montanha”, Cromwell diz. “Deslizamento
lá também. Viraram e tocaram para cá. Alguém disse que o médico
estava aqui. Nada bom.”
Digby sente apenas o medo, não a excitação inebriante que sentia no
hospital, quando lidava com a vida humana tal como reduzida a seus
elementos essenciais — a respiração, um coração pulsante — ou à
ausência deles. Sabe o que deve ser feito na maioria das emergências,
no entanto não tem os meios de fazê-lo. Para casos que não se
enquadram em emergências… Bem, mais de um proprietário de terra
já entendeu que, se buscam um simpático clínico-geral disposto a fazer
uma visita só porque Mary ou Meena não andam comendo mingau,
Digby não é essa pessoa. Ele encheu o ambulatório com o necessário
para cuidar de seus trabalhadores, mas é, em primeiro lugar, um
produtor rural. Em uma emergência fará o que pode, porém não
consegue não se sentir um tanto incomodado e apreensivo com aquela
aparição.
“senhor, digby, senhor!”, grita Skaria, emergindo da clínica,
agitando os braços naquele suéter tenebroso. Billroth trota em direção à
clínica; o potro sabe onde o dever o obriga a ir, ainda que seu mestre
hesite.

O punho de um bebê golpeia o ar.


O que confunde os sentidos de Digby é que o membro emerge do
rasgo de uma ferida no ventre da mãe, gravidíssima e terrivelmente
apavorada.
A mãozinha cerrada parece intacta, sem lesões. A mãe, de seus vinte
anos, está sobre a mesa, consciente — até bastante alerta. É lindíssima,
o cabelo preto encaracolado emoldurando um rosto bonito e oval. Sua
blusa é verde, o sári e o saiote, de seda, são brancos. Não é de modo
algum uma traba­lhadora rural. O pequeno pingente em seu pescoço —
uma folha com pontinhos em relevo formando um crucifixo —
marcam-na como cristã de São Tomé. Seus traços são familiares, é
bonita de um jeito genérico, Digby pensa. Talvez seja a semelhança
com a imagem de Lakshmi nos calendários, tão ubíquos nas casas dos
trabalhadores e nos mercados, uma cópia da pintura de Raja Ravi
Varma. Ele não consegue ignorar esses detalhes: o anel de casamento,
as olheiras de cansaço e a postura admirável, como se ela fosse sábia o
suficiente para compreender que seu quadro não é muito bom. Por trás
dessa fachada, a bela mulher está aterrorizada. E constrangida.
A pele sobre sua barriga está esticada ao limite. A incisão de dois
centímetros inclina-se logo à esquerda do umbigo, uma boa incisão,
que só pode ter sido feita com faca ou bisturi. O sangue goteja
lentamente de uma das extremidades; não há risco de perder sangue
demais. Digby imagina a lâmina cortando a pele, depois o músculo
reto… e então o útero, o qual, como se trata do fim da gestação,
cresceu para além da bacia, empurrou intestino e bexiga para trás e
alcançou as costelas, ocupando o abdome por completo. Só por isso os
intestinos foram poupados: a lâmina perfurou a pele e o músculo, e
encontrou um músculo maior, mais grosso e mais forte: o útero. Ela fez
um rasgo, uma escotilha no ventre, e o bebê reagiu como qualquer
prisioneiro: buscou a luz do dia.
Os dedos do infante estão dobrados, formando um punho, as unhas,
muito tênues, brilham como vidro. Digby limpa a ferida e o punho
com antisséptico, enquanto faz essas observações. O iodo incomoda a
mãe, mas não parece afetar o bebê. Se ela tivesse dado entrada em um
hospital, certamente teriam feito uma cesárea. Em teoria, Digby
poderia fazê-la. Tem clorofórmio guardado em algum lugar, se ainda
não evaporou. No entanto, sem bons retratores abdominais e um
assistente capacitado, uma cesárea poderia facilmente pôr em perigo
mãe e bebê.
Digby reflete sobre as opções. Mas é distraído por um fedor de adubo
e tabaco barato que o faz pensar no Gaiety, em Glasgow, memória que
vale a pena enterrar. Volta-se e vê Skaria no batente da janela, a
cigarrilha nojenta na boca. O homem sabe muito bem que não deve
fumar perto de Digby ou nas instalações. Porém, abalado, é impossível
não recorrer ao palito umedecido, como um bebê buscando o mamilo.
A mão esquerda de Digby, agora sua mão dominante, move-se com a
precisão de um gatuno na plataforma da estação ferroviária de Santo
Enoque. Ele arranca a cigarrilha dos lábios de Skaria e…
… no mesmo gesto, leva a ponta acesa ao nó dos dedos do infante,
colocando-a a um décimo de centímetro da pele.
O universo vacila, indeciso. Então o pequeno punho recua
viscosamente para seu mundo aquoso, expulso pelo insulto nocivo. O
espaço onde o punho havia pairado é agora apenas ar reluzente,
carregado pelo que já não está lá. Na breve carreira cirúrgica de Digby,
viu vermes arredondados rastejarem para fora de vesículas biliares,
tumores de células germinativas contendo cabelo, dentes e orelhas
rudimentares; mas nunca aquilo.
Digby dá um peteleco na cigarrilha na direção de Skaria, pega uma
atadura esterilizada e a pressiona contra a ferida. “Mãos sob custódia”,
diz em voz alta, dirigindo-se ao feto. (Imagina a criança indignada no
útero, soprando o nó dos dedos queimados, amaldiçoando Digby e
tramando a revolução.) Mãos sob custódia. Nos tempos de Glasgow, a
irmã Evangeline pontuava essas palavras com golpes de régua nas
juntas dos dedos dos alunos.
“O punho desse bebê um dia vai arrumar encrenca”, Digby
murmura. Skaria se retirou, e então ele toma a mão da mãe e a põe
sobre a atadura, pedindo-lhe que pressione.
Do lado de fora ouve um homem se lamuriando e murmurando
algumas palavras, e logo em seguida um grito terrível; quem quer seja
parece bêbado ou delirante. Digby ouve Cromwell intervindo.
Digby prepara a agulha curva e a sutura e sinaliza para que a mãe
tire a mão da ferida, rezando para que o bebê não tente escapar. Ele
abre as bordas da ferida só o suficiente para ver a parede uterina.
Felizmente o útero, graças ao suprimento nervoso muscular, não é
sensível como a pele. Ele passa a agulha pela parede do útero o mais
rápido que pode por um lado do rasgo e depois pelo outro, faz um nó e
corta o fio. A mãe nem pisca. Digby dá mais dois pontos no útero.
Agora a única saída para o bebê é pela porta da frente. Ele fecha a pele
com dois pontos. A paciente estremece uma vez, mas não diz nada. Se
ele usasse anestesia local para toda laceração de pele que sutura já teria
gastado toda a sua preciosa tetracaína em uma semana.
“Muito bem, tudo feito”, ele diz, procurando Cromwell, seu
tradutor. A mãe está pálida, exausta, mas ainda calma.
“Obrigado, doutor”, ela agradece, em inglês, surpreendendo-o. Ele
volta a estudá-la: brincos de ouro, unhas bem cortadas. Pergunta seu
nome. Liz­zi. Ele se apresenta.
“Você está com contrações?”. Ela balança a cabeça. Não. “Quanto
tempo falta?”
“Acho que tenho mais duas semanas.”
“Ótimo. Espero que o parto seja normal. Mas é melhor ter o bebê
num hospital, certo?”. Ela diz que sim com um movimento sincero,
infantil, do queixo. A gritaria do lado de fora o distrai. Quem poderia
estar bêbado de manhã tão cedo? “Por ora, fique aqui. Talvez leve
alguns dias até que as estradas sejam liberadas.”
Ele se vira para preparar o curativo. “Doutor”, ela diz. “Foi um
acidente.”
Quantas mulheres já disseram isso? E quantos médicos, policiais,
enfermeiras e crianças ouviram aquelas palavras, sabendo se tratar de
uma mentira? Por que uma mulher protegeria um homem tão indigno
é um mistério. O rosto de Celeste lhe surge num flash.
“Esse é meu marido. O nome dele é Kora”, ela declara, apontando
na direção da janela. “É escritor de propriedade.” Escritores de
propriedade são agentes que negociam mão de obra com o
representante do vilarejo na pla­nície; a alcunha “escritor” vem do ato
de escreverem o nome de cada trabalhador em um livro de contas.
Representantes inescrupulosos muitas vezes fazem contratos com vários
escritores, deixando na mão uma ou outra propriedade no começo da
estação. Digby tem sorte de ter trabalhadores fiéis que voltam todo ano,
pois ele faz de tudo para lhes garantir as melhores acomodações,
cuidado médico, uma escolinha infantil e uma creche.
“Meu marido surtou do nada ontem à noite, doutor. Achou que eu
fosse o diabo.”
“Você quer dizer que ele estava bem antes disso?”
“Sim. Apenas com asma severa. Aqui, nas montanhas, a asma dele
fica muito ruim. Geralmente ele usa cigarros para asma, mas depois de
três dias não ajudou. Ontem comeu um cigarro. Talvez mais. Os olhos
dele ficaram grandes. Ele não consegue sentar, ouve vozes. Diz que
demônios estão vindo pegá-lo. Quando lhe levei comida, estava
escondido atrás da porta e me atacou. Ficou arrasado em seguida.”
A avó de Digby fumava cigarros de estramônio pré-enrolados. Na
Índia ele sabe que os asmáticos enrolam os próprios cigarros, usando
estramônio seco ou folhas de datura. A atropina nas folhas dilata os
brônquios; no entanto, em excesso, produz um envenenamento
característico, que dilata as pupilas, resseca a boca e pele, provoca febre
e agitação. Todo estudante de medicina conhece a forma mnemônica
para relembrar os sinais: “Cego como um morcego, quente como uma
lebre, seco como um osso, vermelho como uma beterraba e doido
como uma galinha molhada”.
“Pode ter sido envenenamento por atropina. Vou examiná-lo. Ele
deve melhorar à medida que o efeito da substância passar. Vocês são
dessas bandas?”
A pergunta parece entristecê-la. “Não, somos da região central de
Travancore. Tínhamos casa, terras e família amorosa. Mas ele… Nós
perdemos tudo. Ele pegou dinheiro emprestado de gente perigosa.
Muitos problemas. Ele fugiu. Eu podia ter ficado. Às vezes acho que é
o que deveria ter feito.”
É muito mais informação do que Digby buscava. Ele esquece que
ela o vê não como um produtor rural, mas como médico, alguém com
quem pode desabafar. Após toda aquela tribulação, falar da situação é
catártico para ela. A Digby não custa nada ficar ali, contemplando os
traços clássicos do rosto dela, a beleza malaiala em sua forma ideal.
Os dois ficam em silêncio. Depois, e pela primeira vez desde que ela
chegou, sua compostura vacila. Seu lábio treme. “Doutor, meu bebê
vai ficar bem?”
Ele mira aquele rosto adorável que o olha com tanta franqueza, mas
seus pensamentos são interrompidos por outro grito selvagem do
marido. Naquele momento Digby tem um vislumbre do futuro dela,
uma premonição perturbadora de uma catástrofe, algo que ele nunca
vivenciou. “O bebê ficará bem”, Digby responde, confortando-a. O
alívio inunda o semblante de Lizzi. “Bem demais.” Ele torce para que
seja verdade. “Seu bebê tem ótimos reflexos — como já sabemos.
Estava ali com o punho para cima, feito Lênin”, ele declara, tentando
dissipar a tensão. Estende a palma da mão sobre a barriga dela, uma
bênção pastoral, e se inclina para falar diretamente ao bebê:
“Proclamo-o Lênin, imorredouro. Se for menino, claro”. E sorri,
embora sua cicatriz ainda deforme levemente seu sorriso.
“Lênin Imorredouro”, repete a bela Lizzi, a cabeça movendo-se de
um lado a outro, enfatizando cada sílaba, como se as memorizasse.
“Sim, doutor.”
51. Uma disposição para a dor

parambil, 1950

Ninan morreu há seis meses, e desde então Elsie se foi de Parambil,


esposo e esposa viraram as costas um para o outro. É quando Grande
Ammachi e o Senhor Melhorias viajam à casa Thetanatt, vestindo suas
melhores roupas. A última vez que ela esteve na casa de Chandy foi há
seis anos, no noivado. Naquela visita, a sala ecoara o riso solto do
anfitrião. Agora ele se encontra num caixão no centro da sala, coroas de
jasmim e gardênia ao redor. Os lóbulos de suas orelhas e a ponta do
nariz estão escurecendo. Se vivo, dispensaria o cheiro enjoativo das
flores e a água de colônia que lhe espargiram para mascarar o odor.
Grande Ammachi vê-se sentada de novo no longo sofá branco, os pés
suspensos do chão, desejando que Odat Kochamma estivesse ali, como
da última vez.
Senhor, nos últimos seis meses, a quantos funerais o Senhor me fez
comparecer? Se há mais um, que seja o meu. Primeiro, Você levou Bebê
Ninan. Não vamos nem falar disso. Depois Odat Kochamma. Sim, ela
era velha. Ou sessenta e nove ou noventa e seis anos. “Você escolhe”, ela
diria. “É um ou outro. Por que preciso saber?” Mas ela não precisava
morrer visitando a casa do filho. Rezamos e dormimos no mesmo quarto
por mais noites do que dormi com qualquer outra alma que não Bebê
Mol. Ela precisava estar comigo quando se foi. Depois Você veio levar a
esposa de Shamuel, agarrando-lhe as entranhas. Ela morreu antes de
podermos levá-la a um hospital. Já chega, Senhor. Você é todo-poderoso,
onipotente, sabemos. Por que não se senta um pouco sem fazer nada?
Finja que é o sétimo dia pelos próximos anos.
Ah, aquilo é blasfêmia pura, mas Grande Ammachi não se importa.
Ela é uma árvore-da-borracha envelhecida que já não sangra quando
lhe cortam o tronco, seca de lágrimas, embora não de sentimentos —
assim pensa. Mas as lágrimas chegam quando ela ouve as mulheres
cantando “Samayamaam Radhathil”, Na carruagem do tempo. Esse
canto lutuoso entrelaça-se à memória da morte de seu pai — o pior dia
de sua vida —, reforçado pelas perdas que se seguiram. As rodas da
carruagem estão sempre rolando, aproximando-nos do fim da jornada,
para nosso doce lar, os braços do Senhor… Mas, Senhor, alguns, como
Jojo e Ninan, mal subiram na carruagem. Qual a pressa?
Mais cedo, quando ela chegou à casa Thetanatt, Elsie correu para
seus braços, o corpo trêmulo dos soluços que não paravam. Só lhe
restava enxugar as lágrimas da jovem e beijá-la e abraçá-la. “Molay,
molay, Ammachi sente sua dor.” Tinham se passado seis meses desde
que Grande Ammachi vira a nora pela última vez — Elsie partiu logo
depois do funeral. Ela ficou chocada ao notar como a nora emagrecera,
fios de cabelo embranquecidos pelas têmporas, imagem perturbadora
numa jovem.
Grande Ammachi queria muito dizer: Por onde você andou, molay?
Não sabe como Bebê Mol e eu sentimos sua falta! Havia tanto a dizer,
coisas que Elsie talvez quisesse saber: que Lizzi escreveu, mas sem
revelar seu endere­ço, pa­ra dizer que teve um menininho… Mas, claro,
agora não era o momento. Gran­de Ammachi abraçou a jovem e
sentou-se com ela no sofá por duas horas, pois a nora não largava sua
mão; parecia uma criança assustada tentando encontrar um lugar onde
a vida não lhe infligisse mais dores. E então Grande Ammachi
ofereceu a si mesma, seus braços, mãos, beijos e… sua disposição para
a dor. Não é isso que as mães fazem pelos filhos?
No cemitério, tão logo baixam o caixão, o Senhor Melhorias diz:
“Devemos partir, se queremos chegar esta noite”. Elsie se agarra à mão
da sogra, chorando, não querendo que ela parta. Grande Ammachi
declara: “Molay, eu ficaria, mas Bebê Mol…”. E quer acrescentar: Você
não voltaria comigo? Parambil é seu lar. Deixe que sua Ammachi cuide
de você… No entanto, claro, com tantos convidados na casa Thetanatt,
Elsie precisa ficar, e seria indelicado fazer aquele pedido. Além disso, a
cisão entre a nora e Philipose é tão grande que é improvável que sua
súplica faça alguma diferença.

No ônibus de volta, Grande Ammachi contempla, admirada, os


arrozais sem fim, um leproso sentado numa galeria, as casas em cujos
interiores mal iluminados ela vê um velho que lê, duas meninas
brincando, mulheres cozinhando… Famílias vivendo sua vida,
nenhuma delas livre da dor. Todas essas pessoas um dia serão sombras,
assim como ela mesma um dia será enterrada e esquecida. Afasta-se de
Parambil tão raramente que esquece que é o grão de areia mais
minúsculo no universo de Deus. A vida vem de Deus, e é preciosa
justamente porque é breve. O presente de Deus é o tempo. Contudo,
seja uma passagem longa ou curta, é d’Ele que vem. Perdoe-me, Senhor,
pelo que disse. Que sei eu? Perdoe-me por pensar que meu pequeno
mundo é tudo que importa.
Depois de uma breve viagem de barco, eles caminham do
atracadouro para casa. Ela agradece ao Senhor Melhorias e vislumbra
Parambil mais adiante, uma vaga silhueta contra o céu, tal qual viu,
como noiva, meio século atrás. Nem lampião nem lâmpada acesa, o
que só aprofunda sua irritação com Philipose.
Quando o mensageiro chegou com a notícia de que Chandy havia
falecido de repente em sua propriedade nas montanhas, ela correu para
contar ao filho. “Você tem que ir. Fique com sua esposa”, Grande
Ammachi disse. “Então, depois de alguns dias, talvez você possa trazer
Elsie para casa.” Ele lia na cama, as pupilas parecendo duas pintas
minúsculas. Philipose riu. “Ir? Como? Não consigo ficar de pé por
muito tempo, imagine caminhar longas distâncias. E por que ir, de
muleta, e ficar lá sentado, como uma espinha detestável na testa dela?
Ela me culpa pelo que aconteceu. E a culpa é minha.” Philipose
andava tão culpado que chegava a gostar quando a mãe ralhava com
ele. Grande Ammachi desistiu e pediu ao Senhor Melhorias que a
acom­panhasse. “Meu filho virou uma faca que não corta, uma fogueira
que não serve nem para esquentar a água do café.”

Bebê Mol adivinha que a mãe está de volta, sem Elsie. Levanta do
banco e vai para a esteira. A mãe ouve seu choro. Bebê Mol chora
muito raramente.
Grande Ammachi acende o lampião. Philipose cambaleia para fora
do quarto escuro, cerrando os olhos como uma civeta. Agora usa apenas
uma muleta. O tornozelo direito está curado, mas o calcanhar esquerdo
que se despedaçou continua doendo. De início ninguém entendeu a
gravidade da lesão dele, resultado do momento em que saltou da plavu
depois de recuperar o corpo de Ninan; só compreenderam no dia
seguinte, quando seus tornozelos pareciam os de Damo, inclusive da
mesma cor, mas entortados. A dor emocional insuportável de perder
Ninan foi reforçada pela dor física.
Ele se larga no banco de Bebê Mol. Grande Ammachi senta ao lado
dele, esperando alguma pergunta sobre Elsie. Mas não: com o
pensamento longe, ele tateia a borda de seu mundu, como um macaco
procurando carrapatos, até que encontra a caixinha de madeira. Ela
nota que suas unhas precisam ser cortadas quando ele abre a tampa,
revelando a pastilha de ópio. Toda casa tem uma caixinha como
aquela, a panaceia dos velhos para dores nas costas, insônia e artrite.
Grande Ammachi usava para a cefaleia do marido. Agora lamenta ter
dado a caixinha para o filho, que virou um comedor de ópio.
Ele está concentrado, tentando pescar com um palito de bambu
uma espiral de ópio, que enrola entre os dedos até moldar uma
reluzente pérola negra. Quando Grande Ammachi era menina, a avó
também comia ópio e essa pérola parecia-lhe bonita. Certa vez a anciã
a convenceu a lamber seus dedos, o sabor amargo nojento a fez
vomitar. Sente-se tentada a dar um tapa na mão de Philipose, seu filho
antes tão bonito, no entanto o ópio já está em sua boca. Ele diz:
“Ammachi, pode me trazer um pouco de iogurte com mel?”. Ela se
levanta antes de lhe dar uma resposta horrível. Ele que pegue o iogurte.

Algumas semanas depois do funeral de Chandy, Grande Ammachi


escreve para Elsie de novo. Suas cartas até então ficaram sem respostas,
mas ela precisa dizer à nora que a respiração de sua amada Bebê Mol
está pior que nunca. A verdadeira doença de Bebê Mol é a ferida na
alma. Mal come, diz que comerá assim que Elsie voltar. Grande
Ammachi escreve: “Quando as pessoas que ela ama vão embora, é
como uma espécie de morte. Imploro que você a visite”. Ela deixa
muita coisa de fora da carta. Lizzi tornou a escrever, ainda sem revelar
seu endereço — aparentemente não quer que saibam por onde anda.
Ela diz que, na gestação, sofreu um acidente no qual a mão do bebê
escapou de seu ventre. Milagrosamente, o bebê, batizado Lênin,
nasceu saudável. Grande Ammachi também não menciona o dia em
que Philipose desapareceu, retornando com uma nova bicicleta, tendo
ralado o queixo, os joelhos e os tornozelos tentando aprender a andar.
Ele a adquiriu depois de Joppan se recusar a comprar-lhe ópio e lhe
dizer para parar com aquilo. Depois da morte de Ninan, Joppan
dormiu no mesmo quarto de Philipose por semanas a fio. Agora o ópio
os afastou. Grande Ammachi suspeita que o único propósito da
bicicleta é permitir que seu filho compre seu próprio ópio no mercado
do governo perto da igreja. Nada disso ela menciona na carta.

A condição de Bebê Mol se deteriora. Desesperada, Grande


Ammachi escreve a última carta, uma mensagem breve — parece
inútil continuar escrevendo.

Querida Elsie,
Rezo para que esta carta chegue até você. Bebê Mol está morrendo.
Chame de inanição ou coração partido, no fundo dá no mesmo. De
uma mãe para outra, imploro que venha visitá-la. Tudo que ela diz é:
“Onde está Elsie?”. Se você vier, ela vai comer. Então talvez sobreviva.
Sua Ammachi que te ama

Philipose está sentado na varanda, barbeando-se, o espelho apoiado


no parapeito. O sol saiu. A tal monção não durou nada, provou-se uma
impostora. No reflexo do espelho, ele vê se aproximar alguém. Um
mendigo, pensa. Não, é uma mulher vestindo um sári branco. Alta,
pálida, esquelética e linda. O coração lhe salta à boca. Uma onda de
arrepios cobre seus braços.
É uma alucinação? Se aquela é Elsie, onde está o carro dos
Thetanatt? Da névoa da memória lembra que Shamuel falou algo
sobre uma galeria colapsada que transformou a estrada em riacho. Só se
passa a pé, subindo num tronco quarenta e cinco metros acima.
Boquiaberto, o rosto cheio de sabão, ele olha para a esposa que não
vê há um ano. Houve ocasiões em que imaginou que ela nunca havia
existido, que a vida em comum dos dois não passara de um sonho.
Agora as memórias o inundam: a estudante, a noiva que ele trouxe para
casa, a primeira noite, a árvore amaldiçoada… Philipose fica ali,
imóvel, uma escultura de pedra. Nem dez minutos atrás, Bebê Mol,
que havia dias não levantava da esteira, surgiu ao lado de seu cotovelo,
dizendo: “Temos visitas!”. Se tivesse prestado atenção, ele poderia ter se
banhado, vestido uma camiseta e um mundu limpo.
Elsie surge como a deusa Durga, seus olhos opalescentes cravados
em Philipose, que se preocupa com a própria aparência: o machucado
acima do nariz de uma queda de bicicleta, a orelha inchada de outra.
O chão atrai seu lado esquerdo mais do que o direito. O vago aroma
floral de Elsie o alcança, bem diferente do que ele se lembra.
“Elsie!”, Philipose diz, de lâmina na mão. El-sie. Duas sílabas que
dizem sua alegria, a tristeza compartilhada dos dois, e o perdão que ele
busca, mesmo não podendo perdoar a si mesmo. Naquele momento,
ficar sem palavras é uma bênção — com Elsie, as palavras nunca lhe
serviram.
“Philipose”, ela diz, e olha para alguma coisa atrás dele. Seu rosto
vazio se ilumina, Bebê Mol corre para os braços de sua chechi, rindo
alto. Elsie a segura pelos ombros e a olha, espantando-se ao ver suas
maçãs do rosto, até então invisíveis, ou a blusa que parece sobrar
naquele corpinho. Grande Ammachi aparece, tendo ouvido as risadas
auspiciosas, e abraça Elsie, dizendo, simplesmente: “Molay!”.
Philipose observa tudo com inveja. As mulheres mais importantes de
sua vida se confundem numa frisa de tranças negras, sáris brancos,
cabelo grisalho, fitas claras e uma chatta manchada de cúrcuma. Elas
somem dentro da cozinha. No espelho ele vê a boca aberta do Homem
Comum, pronto para comer moscas.
52. Como era antes

parambil, 1950

Como um Deus vingativo, a verdadeira monção chega logo depois


de Elsie e os pune por a terem confundido com a falsária anterior. Uma
chuva torrencial acompanhada de ventos de tufão espalma as folhas das
palmeiras, que ficam como caudas de pavão até se partirem. O vento
que entra pelas janelas cria um zumbido estranho, como se alguém
soprasse na boca de uma ânfora. Os postes elétricos desabam,
silenciando o rádio. Shamuel se arrisca a sair e volta chocado: depois da
pedra de descanso formou-se um lago cuja margem oposta não se
consegue ver. As inundações lendárias de 1924 provocaram destruição
por toda a região de Travancore, mas não afetaram Parambil. Agora o
riacho onde Grande Ammachi se banha ameaça as cabanas dos
artesãos e dos pulayar. O rio transborda, perde as margens, arrasa o
atracadouro e pela primeira vez na memória de Grande Ammachi é
possível vê-lo desde sua casa, cuja localização o marido escolheu por
considerar fora do alcance do rio. Pela quinta semana, o espanto diante
da violência da natureza dá lugar à desolação. A terra pede
misericórdia. Não há vocabulário para o profundo senso de isolamento.
O jornal não é entregue desde o início da monção.
Grande Ammachi se preocupa com Elsie, que passa horas
caminhan­do para lá e para cá na varanda, mesmo à noite, estudando o
céu com um ar de desespero, como uma mãe que tivesse deixado o
bebê sozinho do outro lado do rio. Houve um tempo em que Elsie
ficava tão imersa nos desenhos que, se o telhado fosse destroçado pelos
ventos, não notaria. O plano de Elsie era sem dúvida uma visita rápida;
ainda assim, por que tanta pressa em partir?

Quando compreendeu que Elsie veio somente visitar Bebê Mol e


não pretendia ficar, Philipose recuou, desistindo de qualquer tentativa
de inte­ração. Mal a vê; para ele, a diferença entre o dia e a noite está
borrada por causa de uma pequena pérola, e agora ele é, cada vez mais,
uma criatura da noite. Vez por outra a vê patrulhando a varanda,
contemplando a chuva como se acreditasse que, de tanto olhá-la,
poderia interrompê-la. Philipose quase ri quando a ouve rente à sua
janela perguntando a Shamuel se há como enviar uma carta. O velho
diz que o posto do correio está submerso. Philipose fica tentado a gritar:
Você é boa nadadora, Elsie. Por que não vai você mesma entregar a
carta?
Uma noite ele acorda pouco antes da meia-noite e, por costume,
afasta as cortinas e olha para fora. Distingue uma figura empoleirada no
batente da varanda, os joelhos puxados para o peito, uma mulher de
pedra, talvez uma aparição, contemplando a chuva sem fim. Seu
estômago se contorce de medo, até que reconhece Elsie. Seu rosto,
coberto por sombras, parece alterado, como se sob um grande peso.
Vendo-a chorar, ele se apieda, ainda que involuntariamente. Levanta-se
da cama, pensando em ir vê-la… mas desiste. Talvez sua presença não
leve nenhuma consolação, talvez só piore tudo. Elsie se tornou uma
estranha. Ele não sabe nada sobre sua vida no último ano. No entanto,
fica intrigado. Por que tanta angústia? Por que é tão importante partir?
O que é, Elsie? Não tem a ver com Ninan, certamente.
Ele deve ter cochilado, pois quando abre os olhos o céu está mais
claro. Foi tudo imaginação sua? Espreita pela janela, e ela ainda está lá,
de costas para ele, dobrando-se sobre a mureta, vomitando. Dessa vez
corre para ajudá-la. Ao vê-lo, ela se apruma, porém logo se
desequilibra. Philipose a segura e a guia até o banco de Bebê Mol.
Sentada, ela se curva, apertando a barriga. Philipose traz água. “Elsie,
Elsiamma, me conte. O que é?”
A expressão dela é tão cheia de sofrimento, de tormento, que
Philipose sente um calafrio. Por instinto a abraça, conforta-a até que
aquele espasmo pas­se. Por um breve momento ele tem certeza de que
ela está prestes a abrir o coração, a se desafogar. Ele espera… E a vê
mudar de ideia. Ela baixa os olhos. “Pode ter sido o picles…”, balbucia.
Ele a solta. Picles não causa esse tipo de tristeza. Ele diz: “Não me
fez mal”.
“Você mal comeu uma refeição conosco”, ela afirma, numa voz
áspera.
“Eu sei… Trabalho e durmo em horários estranhos.”
De modo inconsciente, Philipose imita a postura dela: curva-se para
a frente, olhando para baixo. Seu tornozelo direito está inchado; o
esquerdo está torto, uma condição agora permanente. Os pés dela são
como ele se lembra, talvez mais bronzeados, os dedões mais
flexionados. Uma imagem dos pés dos dois emparelhados no noivado
lhe vem à mente. Um abismo separa aquela memória do presente. Ele
aspira o novo cheiro dela, que é completamente diferente. Em certo
momento, o corpo de ambos compartilhara a mesma fragrância, uma
função da água, do solo e da comida de Parambil. O cabelo de Bebê
Ninan, ele ainda lembra, tinha um odor doce, tênue, um cheiro de
cachorrinho misturado ao aroma geral da família.
Elsie o observa com a desesperança de uma prisioneira condenada.
Balança a cabeça. Se não estivesse olhando para os lábios dela, não
teria entendido o que ela disse: “Não planejei ficar tanto tempo”. De
novo, os olhos dela se enchem de lágrimas.
As palavras dela o ferem. A chuva fica mais forte, como se dando voz
à frustração de Philipose, que por fim diz: “Não é só Bebê Mol que
precisa de você aqui”. Seu pé deformado estremece por conta própria.
As palavras dele fazem-na pensar. Ela o olha de novo: “Desculpe”,
diz, enxugando os olhos. “Era difícil continuar aqui depois de
Ninan…” Talvez agora lhe ocorra que ele não tinha escolha senão
ficar, pois logo acrescenta: “Mas não escapei de nada. A dor estava lá
comigo. Em todos os momentos. Como deve estar com você. Eu sabia
que Bebê Mol precisava de mim. Grande Ammachi precisava de
mim…”. Sua voz fica cada vez mais baixa, um sussurro. “Você
precisava de mim. Porém não consegui.” Ela põe o copo d’água sobre o
banco. “Vou me deitar, tudo bem?” A mão dela resvala no ombro dele,
desculpando-se, ainda que sem afeto.

Dois dias depois, Philipose vê o sol refratando-se entre nuvens


alaranjadas, dando à terra um brilho etéreo. Aquela luz passa em
questão de segundos, mas a essa altura ele já está em um frenesi,
montado na bicicleta, pedalando furiosamente. Está perto do fim da
estrada, contornando poças de la­ma, ganhando velocidade, radiante…
Quando abre os olhos, sua visão está escura. Mesmo um amante do
solo não quer afundar a cara na terra. Por quanto tempo esteve
desacordado? A chuva cai pesada. Ele rola no chão. Um par de pés
descalços se aproxima, claro nos tornozelos, as solas como bronze
pintado, sujas de lama. Elsie o ajuda a levantar e, depois, lentamente, a
se erguer. “Eu não sei”, ela responde, quando ele pergunta o que
aconteceu. “Por acaso olhei nessa direção e vi alguma coisa caída. Aí
você se mexeu.” O cotovelo dele está esfolado. O joelho esquerdo
lateja. O ombro dói. Ele apoia todo o peso na bicicleta torta, enquanto
caminham em silêncio, ambos ensopados. Philipose busca a caixinha
na cintura do mundu e fica aliviado ao constatar que não a perdeu.
Precisa muito de uma pérola, mas não na frente de Elsie. De repente,
desabafa: “Elsie, podemos começar de novo. Construir uma nova casa
em outro ponto da propriedade. Ou ir embora”. Ela não o olha, nem
responde. Depois de um tempo, mais para si mesmo do que para ela,
ele diz: “Como a situação chegou a esse ponto? É tudo minha culpa”.
No quarto dele — antes o aposento que os dois compartilhavam —,
ele enrola rapidamente uma pérola, uma dose extraforte para a dor no
joelho, no ombro, nos tornozelos, na cabeça e… no coração. Depois de
tomar banho, Philipose deita e deriva, flutuando em um ventre,
batendo-se gentilmente contra paredes acolchoadas. De repente ouve o
ranger do guarda-roupa ao lado. É Elsie, de costas para ele, que tomou
banho e agora busca suas velhas roupas. Geralmente ela envia Bebê
Mol naquela missão, mas ele sabe que a irmã está adoentada. Um
thortu envolve seu cabelo molhado, e o mundu úmido enrolado no
torso deixa ombros e pernas descobertas. Ela está se retirando na ponta
dos pés com seu fardo de roupas quando, por impulso, Philipose agarra
sua mão. Ela o encara assustada, qual um camundongo preso numa
armadilha. Ele a solta.
“Elsie… por favor. Eu imploro. Sente um pouco.” Ela hesita.
Aproxima-se, depois senta, tímida, na beirada da cama. “Quero te
agradecer”, ele diz, tomando-lhe a mão de novo. O olhar dela
permanece no chão. O simples ato de envolver os dedos dela com os
seus traz conforto a ele. “Não fosse por você, uma carroça poderia ter
rolado sobre minha cabeça… Não fosse por você…” A voz dele vacila.
“A culpa é minha. Já disse isso?” E estende a mão buscando docemente
o queixo de Elsie. Levanta seu rosto. “Elsie. Me perdoe.” A expressão
dela o espanta. Sem entender, o camundongo olha para a armadilha
que lhe pede perdão. Ela entende o que ele diz? Ela vira o rosto, seus
lábios se mexem. “Elsie, não consigo te ouvir.”
“Eu disse que sou eu quem precisa de perdão.”
Ele ri, um som estranho e sem lugar. “Não, não, Elsie! Não. O
mundo sabe que minha dignidade se foi. Minhas pernas se foram. Meu
filho se foi. Minha esposa se foi. Mas, quanto à culpa disso tudo, ela é
minha. Não me roube a única coisa que possuo.” Philipose se senta,
estremecendo, e põe o braço com o cotovelo esfolado em volta dela. A
dor não importa. Seu tom é jocoso. “Elsie, você nasceu perdoada.
Podemos voltar a focar neste pobre-diabo, por favor? Ele precisa de
perdão, de piedade.”
Ele não percebe que ela recusa sua tentativa de humor. O desespero
que viu naquela outra noite recobre permanentemente o rosto de Elsie,
e aquilo o fere. Se segurar a mão dela lhe serve de curativo, então
deveria curá-la também, não? O nó do mundu no peito de Elsie está se
soltando. Ele não consegue desviar os olhos e sente vergonha das
movimentações do sangue em sua pélvis. Não, esse não era meu
propósito quando pedi que se sentasse, eu juro pelo deus das monções.
Mas o desejo tem vocabulário próprio, mais convincente do que as
palavras que sua língua pode plasmar; apesar de sua resistência, o
desejo se impõe.
Sentindo uma onda de ternura, Philipose a abraça. Ela não o rejeita.
O thortu escorrega de seu cabelo, e, quando ela tenta segurá-lo, o nó do
mundu se desfaz. Eu não fiz isso acontecer. É o universo, ou o destino,
ou o deus dos mundus e dos thortus, o deus do mal-entendido, o deus no
qual não creio. Ela segura o mundu, mas a mão dele a impede
gentilmente. Ele beija suas faces, depois as pálpebras. Ela treme, o
rosto tão cheio de tristeza que o machuca. Ele quer apenas consolá-la,
mas também está dominado por um espanto que ele conhece bem, o
antigo assombro diante da constatação de que aquela mu­lher belíssima
é sua esposa. Senhor das decepções, Senhor das tristezas, por que me
abençoar e depois me tirar suas bênçãos? Sente o corpo dela crescendo
diante dele, e o dele também — é a pérola negra que faz aquilo? Os
lábios dela estão mais cheios, o vão ao pé das escápulas, que ele tanto
ama, está mais amplo, e a auréola negra mais larga — todas as
características mais sensuais dela lhe parecem magnificadas, crescendo
a seu olhar.
Quanto prazer seus corpos trocavam! Não importa o que mais
estivesse acontecendo, nunca falhava. Talvez fosse esse o bálsamo que
os dois precisavam para suportar o insuportável. Depois da perda,
nunca se deram a chance de chorar nos ombros um do outro. Em vez
disso, trocaram olhares perversos. Ele vê tudo isso, entende o que
deviam ter feito. Corre seus dedos pelo cabelo molhado dela, um
cabelo tão denso que sempre lhe pareceu uma coisa viva, com vida
própria. Com doçura, reclina-a, deitando-a na cama. Sem forçá-la. A
porta está escancarada, então ele se ergue lenta e dolorosamente, e vai
fechá-la. A cabeça de Elsie não está voltada para ele, seus pensamentos
estão longe, como se ela tivesse esquecido a presença dele; contudo,
quando Philipose se aproxima, ela o olha, contemplando seu corpo
cheio de feridas e cicatrizes, o olhar de uma artista, mas não sem
curiosidade e preocupação.
Ele sobe na cama. As pupilas dela são o oposto das dele: grandes e
sem fundo. Seus pés contra os dele parecem-lhe ásperos e calosos, não
mais suaves e delicados. Ela tem andado de pés descalços, sinal claro
da negligência de um marido. Ele beija a mão que lhe protege os seios,
e seus lábios encontram uma crosta dura na lateral do indicador da
esposa. Pode imaginá-la trabalhando loucamente, ferindo os dedos até
os ossos, brandindo os pincéis dia e noite para remodelar um mundo
que se despedaçou. Sua compleição é pálida e irregular. Ele sente
remorso deparando-se com mais provas de sua negligência. “Oh, Elsie,
Elsie”, diz, o coração se partindo. “Tenho que consertar tudo isso, colar
esses cacos.” Ela não parece entender, mas não importa, contanto que
ele entenda. Os dois são um par perfeito, ele pensa, ambos testados pela
dor e pelo tempo. E o que é o tempo, senão uma só perda acumulada?
Os lábios de Philipose pousam sobre os dela, hesitantes. Ele não
quer forçar nada. Desistirá, se aquilo angustiá-la. Mas não eram os
beijos que sempre os ressuscitavam? Um beijo nunca pode dizer uma
palavra errada. Ele quer rir, relembrando os primeiros beijos dos dois,
sempre desajeitados, que pressionavam os lábios como se estivessem
selando envelopes. Mas se tornaram especialistas. Ela, contudo,
esqueceu. Devo relembrá-la. Meu dever é ressuscitar esses lábios e abrir
nosso coração. Ele o faz ternamente, e imagina que ela corresponde.
Sim, ele diz a si mesmo, houve movimento nos lábios dela — não
paixão, mas isso levará tempo.
Ele cobre os peitos dela com as mãos, circula seus mamilos com os
dedos. Mal consegue se conter. Os olhos dela estão fechados, as
lágrimas vazando dos cantos, e ele entende, pois como aquilo não os
lembraria de Ninan? Ela não se opõe, nem o busca, como nos velhos
tempos. Está tudo bem, meu amor. Está tudo bem. Eu farei tudo. Não é
disso que precisamos? O bálsamo de Gileade, a cura para o que nos
aflige.
No passado, quando seus corpos se movimentavam, lembravam
esculturas extáticas entalhadas em Khajuraho, girando para um lado e
para o outro, os lençóis caindo no chão. Mas há tempo para tudo isso,
ele pensa, pondo-se por cima. Não se trata do que ele precisa, porém
apenas de seu desejo de comunicar amor, cuidado. Lenta e
gentilmente, tateia, explora, toca, e, quando sente que ela está pronta,
ele entra. Agora são um único corpo. Ele se move pelos dois. E, de
súbito, apesar das melhores intenções, ele sente a ascensão, o ímpeto, a
necessidade egoísta, o sentimento renascido, e ouve o nome dela
crescer dentro de sua boca, pronuncia-o tão urgentemente que pela
primeira vez ela abre os olhos, e dos buracos negros de suas pupilas um
outro ser sem nome o espreita — mas ele já se foi, e agora colapsa sobre
ela, e dentro dela, a única mulher com quem já esteve, a única para
todo o sempre. Que gesto haverá contra a morte, senão aquele? Isso é
perdão, é o fim da tristeza solitária. Alegria e tristeza, triunfo e tragédia
são as flores e as ervas daninhas do Éden dos dois, e esse Éden
sobreviverá às floradas mortais deste mundo.

Depois de um tempo, ele não sabe bem quanto, o horto calmo e


particular dos dois estremece, e ela sai de baixo dele. Suas pálpebras
estão pesadas como remos, quando ele senta e estica a mão em busca
do mundu de Elsie. Philipose está flutuando, saciado, o coração em
paz, a barreira entre os dois dissolvida. Sente um déjà-vu ao vê-la na
beirada da cama, de costas para ele, os braços erguidos enquanto
prende o cabelo, enrolando-o em torno da palma da mão e depois em
um nó, os cotovelos formando os pontos de um triângulo que emoldura
sua cabeça, a curva das miçangas de sua coluna repercutindo a curva
para dentro de sua cintura e a curva para fora de suas ancas. Elsie se
volta para ele, não encara seu olhar, mas põe a mão em seu peito, com
os olhos fechados, a cabeça caída, como se rezando, assim
permanecendo por um bom tempo. Depois levanta, e ele sabe que, em
seguida, ela correrá delicadamente o mundu úmido entre as pernas…
No entanto, ela não faz isso. Amarra o mundu e pega as roupas
dobradas sobre a cama. Olha-se no espelho para ver se está coberta.
Seus olhos no espelho encontram os dele, e ele sorri, um pouco zonzo,
outra reencenação do velho ritual dos dois. Mas é uma estranha quem
o olha de volta, uma alma que já partiu desse mundo, porém que
concedeu uma derradeira mirada para sua antiga vida. Retira-se sem
dizer uma palavra.
53. Mulher de pedra

parambil, 1951

Sem as vozes incorpóreas do rádio de toda noite, sem o jornal, sem as


novidades que a vendedora de peixe traz, sentem-se os últimos
humanos da terra. Decência Kochamma, aterrorizada, patina de casa
em casa, gritando para que os habitantes se arrependam dos pecados, só
assim a vila sobreviverá. Philipose, sem camisa, impede-a de cruzar o
umbral de sua casa. Trata de informá-la que todas as famílias
concordam que, se Decência Kochamma sozinha se dispusesse a se
sacrificar no rio, a magnitude de seus pecados bastaria para apaziguar o
bom Deus.
Quando todos já perderam a esperança, a monção se afunila e cessa.
Ainda leva duas semanas para que a entrega do jornal se normalize. É
nesse momento que descobrem que centenas de pessoas morreram
afogadas, milhares estão desabrigadas, há epidemias de cólera e
disenteria.
Assim que a unidade do correio reabre, Philipose se irrita, pois isso
implica a possibilidade de Elsie partir. Seu orgulho não lhe permite
pedir a ela que não vá embora, e, além disso, não voltaram a ficar a sós.
Naquela noite, mais tarde, sua colherinha de bambu raspa o fundo da
caixa de ópio. O som lhe gela a alma, como a quilha de um navio
batendo num rochedo. Toda noite esfrega bálsamo de menta no corpo
e geme de dor. Na manhã seguinte, pedala até a loja de ópio, passando
por campos pegajosos de lama, sentindo náuseas devido ao fedor dos
peixes mortos que, com o refluxo da água, encalharam. Três homens
inquietos esperam do lado de fora do estabelecimento, fungando e se
coçando. Não sou como eles. Philipose se esforça para conter as mãos
inquietas. Krishnankutty abre seu comércio tarde e não se desculpa. O
único vendedor licenciado de ópio naquela área tem enormes cicatrizes
de varíola no rosto. Um de seus olhos se move à deriva, e o cliente é
desafiado a decidir a qual olho se dirigir. Krishnankutty pega a matriz
do ópio — uma massa reluzente do tamanho da cabeça de um
homem, sua superfície úmida assemelhando-se às costas cobertas de
suor de um trabalhador, exalando um fedor mofado repulsivo — e fatia
um pedaço… Mas logo sente um espirro se formando. Esfrega o bigode
com vigor, enquanto a ponta globular solta do nariz se move de um
lado para outro, até que o espirro é neutralizado. O fiel da balança
ainda não parou de todo e ele já enrola o naco num jornal e o lança
para o cliente. Philipose morde a língua, desprezando-se por ter de
engolir aquela indignidade. Uma vez do lado de fora, rapidamente
enrola uma bolinha três vezes maior do que sua dose de sempre.
Engasga com o amargor, mas seus nervos trêmulos suspiram aliviados.
Em pouco tempo as dores do corpo que o azucrinam e as cólicas do
estômago desaparecem. O punho cerrado que era seu coração se abre.
Sorri para estranhos que o observam com cautela. Logo volumes
inteiros se desenham em sua cabeça, coçando-se para serem escritos.
Alguns talvez pensem que a pérola negra é a fonte de tal inspiração,
mas isso é absurdo. As ideias estão sempre lá! No entanto, a dor é o
cadeado, o carcereiro severo que as mantém presas. A perolazinha
apenas as liberta, e sua caneta faz o restante.
Aproximando-se da casa, ele ouve um estranho som de martelo. Elsie
de avental, os antebraços cobertos de poeira, bate numa rocha no
ateliê. Uma senhora rocha! Do tamanho de um bezerro, mas larga
numa ponta e afunilada na outra. Com que pernas chegou ali?
Shamuel e seus ajudantes. E aquelas ferramentas? A marreta, o cinzel
enorme e o raspador? O ferreiro, sem dúvida. É doloroso saber que ela
conversa mais com Shamuel e o ferreiro do que com ele. Todavia, o
sentimento passa quando ele entende que a ambição daquela
empreitada significa que ela não vai partir! Philipose fica ali,
mesmerizado, observando-a manusear a marreta, desferindo golpes
masculinos, experientes, os quadris movendo-se num ritmo constante.
Elsie parece tão absorta que nem mesmo uma procissão de elefantes
poderia distraí-la. Ele se retira para o quarto, para trabalhar, inspirado
pelo exemplo dela.
Philipose pretende juntar-se à família para o almoço, e até para o
jantar… Mas acaba adormecendo. É meia-noite quando acorda. A casa
está silenciosa. Abre uma página aleatória de sua bíblia, Os irmãos
Karamázov. Mesmo quando não presta atenção, a cadência das
palavras, o sentimento que provocam, a sensação de penetrar no sonho
de Dostoiévski é apaziguante. Lê: Deus o poupe, meu garoto, de um dia
pedir perdão por um deslize a uma mulher que você ama. “Chaa!”, ele
diz, largando o livro. Dessa vez o tom de Dostoiévski não bate com seu
estado de ânimo.

Na manhã seguinte, Elsie não está nem na cozinha nem em sua área
de trabalho. Quando Philipose vai ao quarto onde dormem as três
mulheres, Bebê Mol o intercepta, pedindo silêncio. “Você não pode
entrar.”
“Como assim? São quase dez da manhã. Ela não está bem?”
Sua mãe passa por ali e diz “Shh!” Todas enlouqueceram? Quando
Elsie marreta uma pedra por horas seguidas, todo mundo acha normal,
e agora ele está sendo barulhento? Ele esboça um protesto, mas Grande
Ammachi põe um dedo sobre seus lábios. “Fale baixo”, diz, sorrindo.
“Ela precisa dormir por duas pessoas. Era assim quando eu estava com
você na barriga.”
Ele olha para a mãe, sem entender nada.
“Chaa! Homens! Sempre os últimos a perceber”, ela diz, beliscando
a bochecha do filho antes de seguir para a cozinha com uma alegria
que há séculos não demonstra. Seus joelhos enfraquecem. Desde
aquela noite em que os dois tiveram intimidades, ele torceu para que
Elsie viesse a seu encontro quando Bebê Mol e Grande Ammachi
dormissem, os lábios delas curvando-se naquele sorriso de desejo de
uma dançarina de templo. Mas ela não veio. E, no entanto, Deus — o
Deus delas, não seu — decretou que uma vez era suficiente. Um bebê!
Uma segunda chance! Começarão tudo de novo. Por que ela não lhe
contou? Ele se retira para seu quarto e espera a esposa acordar.
Adormece e é acordado pelo som do cinzel na pedra. Parado no
umbral do ateliê, vê os pelos claros nos antebraços da esposa delineados
em poeira, reluzindo como fios de prata; há uma pátina de pó em sua
testa. Ela faz uma espécie de dança vagarosa ao redor da pedra,
mudando o peso de um quadril para o outro. Observando-a, ele pensa:
O Deus que nos desapontou está tentando nos compensar, está fazendo
concessões depois de mijar em nossa cabeça. Ele sente certa leveza. O
peso da frustração se dissipa e…
Um novo pensamento lhe ocorre, uma ideia tão excitante, tão
perturbadora, tão cheia de alegria e redenção… Não, ele não vai se
permitir dizê-la em voz alta. Ainda não.
Aparece para jantar, surpreendendo a todos. Elsie se levanta para
trazer-lhe um prato, mas ele diz que não precisa: “Comi mais cedo”.
Não comeu. Grande Ammachi suspira e vai à cozinha buscar-lhe
iogurte e mel — é disso que ele tem subsistido. Quando se vê a sós com
Elsie, ele declara: “Estou sabendo de tudo!”.
Ela tenta sorrir. Então, sem sobreaviso, seu rosto desaba, e precisa
lutar contra as lágrimas. Claro, ele entende: a bênção de uma nova
criança é também uma lembrança da perda que sofreram.

Dois dias mais tarde, Bebê Mol anuncia, como um ritual: “Bebê
Deus está vindo”. Elsie, tendo acabado de tomar banho, trança o
cabelo de Bebê Mol. Grande Ammachi espera que ela termine,
segurando um copo de leite quente para Elsie.
Dez minutos depois, o primeiro professor de Philipose, o kaniyan,
trota pela estrada, suando da caminhada, o sanji cruzando-lhe o peito.
“Quem cha­mou esse sujeito?”, pergunta Grande Ammachi, cuspindo
um jato de sumo de tabaco na direção dele, revelando sem querer o
mau hábito que finge não ter.
“Fui eu”, Philipose responde.
Os ombros lustrosos do kaniyan são miniaturas de sua cabeça careca,
uma trindade que revela uma vida inteira esquivando-se do trabalho
manual. Alguém disse de brincadeira para Bebê Mol que o quisto era
um deus bebê vivendo na cabeça do kaniyan.
“Aparecendo numa quarta-feira?”, resmunga Grande Ammachi. “Ele
deve saber que isso não traz boa sorte. Mesmo um filhote de leopardo
não sai do ventre da mãe numa quarta.” E se retira para a cozinha. O
kaniyan a segue, a mão descansando na guarnição da porta,
recuperando o fôlego enquanto pede “algo” para matar sua sede,
torcendo para que seja soro de leite coalhado ou chá. Com um olhar
desconfiado, ela lhe dá água.
Agachado no muttam diante do banco de Bebê Mol, o kaniyan puxa
pergaminhos do sanji. Grande Ammachi volta. O kaniyan traça um
triângulo na areia com uma vareta, depois o divide em colunas e
fileiras, murmurando: “Om hari sri ganapathaye namah”.
Grande Ammachi torce o crucifixo no colar e olha para Philipose;
ele a ignora e põe uma moeda em um dos quadrados. Ele não entende
por que a mãe está inquieta; não foi esse homem que ela contratou
para ensinar-lhe as primeiras letras? Ela age como se os conhecimentos
védicos que lhe permitem prever o futuro fossem uma bobagem sem
sentido, mas acabou de falar que é de mau agouro visitar alguém numa
quarta-feira. Shamuel, que está de saída, um saco dobrado sobre a
cabeça, acocora-se para assistir.
O kaniyan cantarola o nome dos pais, recita seus astros e a data de
nascimento de memória e então pergunta indiretamente a respeito da
última menstruação de Elsie. Ela é pega de surpresa. Sem se
incomodar com a ausência de resposta, ele murmura frases em
sânscrito, contando com os dedos e lançando um olhar para o
estômago de Elsie; seu dedo paira sobre os mapas astrológicos, depois o
homem escrevinha com um estilete de metal numa pequena tira de
folha de papiro. Deixa a folha se dobrar, formando um cilindro
apertado, amarra-a com um fio vermelho e recita um slokum antes de
entregar a folha para Philipose, que só falta rasgá-la de tanta
impaciência. Nela se lê:

o rebento será um menino.

“Eu sabia! O que foi que eu disse? Que seu Senhor seja louvado”, diz
Philipose, numa voz que ele mesmo sabe que ressoa alta demais.
“Nosso Ninan renascido!”
Cinco pares de olhos o fitam, pasmos. Elsie fica boquiaberta.
Grande Ammachi diz: “Deivame!”. Deus Pai!, e se benze. Shamuel dá
um tapinha na cabeça para conferir que o saco continua ali e se retira.
Bebê Mol olha fixamente o Bebê Deus. “Venha”, diz Grande Ammachi
para Elsie. “Deixemos de lado essa tolice.”

O júbilo de Philipose é cortado pela descortesia das mulheres. Não


percebem que acabaram de testemunhar a profecia em toda a sua
potência? Sua convicção é inabalável: a criança no ventre de Elsie é
Bebê Ninan reencarnado. Essa é a justificativa para todo o tormento
que ele passou, para o pesadelo recorrente em que ergue o corpo sem
vida do galho e corre com os tornozelos quebrados, corre para lugar
nenhum. O olvido do ópio não consegue impedir que os cães da
memória o persigam. Ah, mas agora esses cães terão de fugir com o
rabo entre as pernas! Bebê Ninan voltará!

Semanas e meses se passam, e Elsie trabalha firme na grande pedra.


Não mexe na extremidade mais larga e pesada, mas logo atrás um
pescoço emerge, depois o rosário da coluna flanqueado pelas escápulas.
Aos poucos, Philipose compreende que é uma mulher de quatro no
chão. Talvez ela esteja se voltando para olhar por cima do ombro, no
entanto ele não tem certeza, pois o rosto está oculto na ponta larga da
pedra. Os seios pendem inteiros, e a barriga posiciona-se de modo
convexo à terra, numa curva suave. Uma das mãos está plantada na
terra. O outro braço desaparece na pedra logo depois do ombro. O
braço sinaliza uma atitude de desafio? Entrega? Estende-se em busca
de algo?
Numa noite que, mais tarde, ele desejará apagar da memória,
enquanto a casa dorme, ele vai ao ateliê de Elsie para examinar a
Mulher de Pedra. Esse tem sido seu costume por incontáveis noites.
Sua mente se debruça naquela superfície como sobre um enigma. Na
semana anterior trouxe uma fita métrica e confirmou suas suspeitas: ela
é um quarto maior do que uma figura em tamanho real. Uma escolha
decerto deliberada. A razão de quatro para cinco, paradoxalmente,
torna a escultura ainda mais real. Ela está ajoelhada sobre uma esteira,
peneirando arroz? Ele já viu Elsie de quatro naquela pose, brincando
com Ninan, deixando o cabelo cair sobre o rosto dele. Viu Ammini, a
esposa de Joppan, brincando assim com a filha recém-nascida dos dois.
No entanto, a torção no pescoço da Mulher de Pedra, a posição do
suposto queixo sugere que talvez esteja olhando para trás. Um convite?
É possível que o braço ainda oculto que se estende para a frente esteja
agarrando-se à cabeceira da cama, apoiando o corpo enquanto seu
amante a penetra? Quando Elsie terminará o rosto? A espera é
insuportável e o deixa ansioso.
Volta para seu quarto, puxa a caneta, mas antes enrola uma pérola
para se acalmar. Só depois de engoli-la lhe ocorre que já tomara uma
dose minutos antes.

Elsie, rodeei sua Mulher de Pedra esta noite, como um achen


rodeando o altar. Três voltas é seu limite, mas seus rituais de magia
negra não me limitam. Elsie, por favor, quem é essa Deusa que
engatinha para trás, saindo de um ventre de pedra? É você? Além
disso, se isso é um nascimento, a natureza concorda que o melhor é
que a cabeça saia primeiro. Diga-me que ela está saindo, não voltando
para dentro. Que verdade seu rosto revelará sobre você, ou sobre nós
dois? Esperei semanas a fio que terminasse esse rosto! Toda noite vou
lá na esperança de que seja esta noite. Nos velhos tempos, quando
nossas mentes estavam tão conectadas quanto nossos corpos, poderia
simplesmente perguntar a você. Elsie, Ninan está vindo. Ninan
retorna. Como pais, deveríamos nos aproximar…

Ele fecha os olhos para pensar, a caneta na mão. Cochila, a cabeça


na mesa, à revelia do temporal que cai. Não é nem uma das chuvas
pequenas, nem a monção, apenas um tempo caprichoso. Meia hora
depois, desperta numa agitação terrível. Teve um sonho vívido! Um
sonho tão brilhante, delicioso e profundo. Olha para baixo e está
excitado! No sonho, a Mulher de Pedra se voltava para ele. Acenava-
lhe. Philipose viu o rosto dela claramente. Sua expressão revelava uma
verdade profunda sobre… sobre… Ele acerta um tapa na própria
cabeça. Verdade sobre o quê? A verdade paira no ar, próxima, mas
inalcançável. Lamenta-se e raspa outra pérola.
Suas pernas o levam ao ateliê de Elsie, mas ele esqueceu os chinelos.
Farpas agudas de raspas de pedra machucam seus pés. Philipose
confronta a escultura: “Ouça, já vi seu rosto no sonho. Pergunto só
mais uma vez… Por que se esconder? Você está com medo? O que é?”.
A Mulher de Pedra fica em silêncio. Um raio de luz a ilumina. Os
respingos de chuva soprados pelo vento fazem sua pele parecer úmida e
viva. Outros relâmpagos animam seus braços e pernas. Ela está se
contorcendo, lutando para libertar a cabeça! Será que ele ainda está
sonhando? Aquele bloco de pedra a aprisiona em um capuz rochoso. É
Elsie a carcereira cruel? Ou a Mulher de Pedra não é outra, senão
Elsie?
O próximo relâmpago seguido de trovão torna inequívoco o medo na
figura. Ele deve agir! Espere, minha querida, libertarei você. Estou indo!
No instante seguinte segura uma marreta gigantesca, erguida para o
alto. É mais pesada do que imaginava, difícil de equilibrar. Desce com
muito mais força do que ele pretendia, quica ao bater na pedra, saem
faíscas, uma onda de choque se arrasta por seu cotovelo. No golpe,
como se por vontade própria, a marreta acerta sua clavícula, e ele ouve
o som do osso sendo esmagado. Grita enquanto a dor se espalha pelo
pescoço e pelo ombro. A marreta tomba no chão. Por instinto, a mão
esquerda toma a direita e a pressiona contra o peito, pois o menor
movimento de seu braço ou ombro provoca uma dor excruciante na
clavícula. Contorce-se em agonia. Os batimentos cardíacos ressoam
mais altos do que a chuva. Em meio à névoa da dor, pensa: Sem
dúvida, estou acordado. Ele tem certeza de que seu grito e o baque da
marreta no chão acordaram a casa. Um minuto se passa. Ninguém
aparece.
Fica horrorizado ao ver que não apenas não conseguiu libertar a
Mulher de Pedra, como garantiu que jamais um rosto surgirá dali. O
pedaço que arrancou deixou uma cratera onde os olhos, uma testa, um
nariz e um lábio superior poderiam vir a nascer.
Cambaleia para o quarto, a clavícula latejando. Qualquer
movimento do braço direito, mesmo o mínimo gesto dos dedos, lhe
provoca uma dor insuportável. A única forma de minimizar a dor é
pressionar com a mão esquerda o braço direito contra o peito. No
espelho, vê o inchaço terrível e a irregularidade no contorno do osso. É
possível viver toda uma vida sem reparar na clavícula, sabendo apenas
que ela está ali, acima do peito como um cabide. Então um ato de
estupidez lhe dá uma bela medida da existência dela. Com grande
dificuldade, prepara uma tipoia. O esforço o deixa coberto de suor.
Logo amanhecerá. Elsie não pode ver o que ele fez. Como esperar
que ela entenda se ele próprio mal pode compreender? Se não é
assassinato, é homicídio involuntário, mas, em todo caso, há um corpo
a ser despachado. Volta para o pátio e esconde a coleção de marretas e
cinzéis de Elsie atrás das prateleiras de seu quarto.
Antes do amanhecer espera por Shamuel na varanda. A tempestade
da noite anterior cobriu o muttam de folhas mortas e folhas de
coqueiro. Por fim Shamuel aparece, apresentando-se como um totem
escuro, nu da cintura para cima. O cheiro de beedi que Philipose
associa ao velho apega-se a ele, como o thorthu puído que estava
enrolado sobre sua cabeça ao chegar, mas que, por respeito ao
thamb’ran, está dobrado sobre o ombro. O mundu está amarrado pela
metade, e as rótulas dos joelhos são discos brancos. Agora tudo nele é
grisalho, até as sobrancelhas, e há também um toque acinzentado nas
profundezas de suas pupilas.
“Que chuva ontem à noite”, Philipose diz. Sabe que ele é uma
decepção para esse homem que o amou e o serviu desde o nascimento.
O velho estuda a tipoia em seu ombro, vê o machucado. “Vejamos,
Shamuel… Hoje… Lembre de levar o arroz para o moinho.”
“Aah, aah”, Shamuel fala de modo automático, embora tenha moído
o arroz na semana anterior.
“E peça para o vaidyan vir aqui.” Antes que Shamuel possa perguntar
por quê, Philipose acrescenta: “Mas, antes de tudo isso, peça ajuda e
leve essa pedra em que Elsie anda trabalhando”.
“Aah, a…” Shamuel se detém. “Você diz a mulher grande?”
Também tem acompanhado a evolução.
“Sim. Tire-a de lá o mais rápido possível, por favor. Não espere”,
Philipo­se diz, afetando um tom de voz casual, enquanto se levanta da
cadeira. “Tire-a de vista, bote ali atrás do tamarindeiro, talvez. Mas
logo. Ela voltará a trabalhar depois que o bebê nascer.”
Philipose entra, deixando Shamuel a sós no muttam, coçando o
peito.
Em meia hora, Shamuel retorna com dois homens, cordas enroladas
nas mãos. Philipose fica feliz por Joppan não ser um deles. Aproximam-
se do pátio semifechado que é o ateliê de Elsie. Rodeiam a Mulher de
Pedra, a sola dos pés impenetráveis às lascas de pedra. Philipose assiste
a tudo discretamente. O que pensam da escultura? Será que acham que
a arte é uma terrível indulgência? Em especial agora que a tal arte está
lhes dando trabalho. Arrastam a pedra deformada.
Mais tarde, o vaidyan aparece. Philipose pouco crê em seus tônicos e
comprimidos, mas sabe que o homem entende de fraturas. No fim, a
tipoia que Philipose preparou é o tratamento para a fratura. Deve
mantê-la por pelo menos três semanas.

No café da manhã, Elsie come idli no vapor, suculentos e brancos


como nuvens. Depois, sob a supervisão de Grande Ammachi, aplica
dhanwantharam kuzhambu morno por todo o corpo. Todo vaidyan tem
sua própria fórmula, mas a base é óleo de rícino e de gergelim, e raízes
de erva-moira. Uma hora depois ela toma banho, esfoliando o óleo com
pó de gravanço. Antes que a sogra a deixe ir, ela bebe uma infusão de
leite quente com brahmi e raiz de shatavari. São onze da manhã
quando Elsie chega ao pátio, atando um avental ao sári. Philipose a
espera, de pé; balança o corpo de cansaço, sonolência e ópio.
Ela se vira lentamente para ele.
“Elsie, posso explicar. Guardei sua escultura num lugar seguro. Só
até nosso filho nascer.”
Uma mosca paira na frente do rosto dele, e o mero pensamento de
espantá-la já lhe dispara a dor.
Ela vê a tipoia, o inchaço feio azulado e a deformidade ossuda com
cu­rio­sidade e até certa preocupação. Depois se volta para o que já não
está lá. Inclina-se para recolher do chão o fragmento que se partiu
quando a marreta cumpriu o serviço. Ele se lastima por ter deixado
aquilo ali. Segurando a peça à distância de um braço, ela a vira de um
lado a outro, tentando imaginar sua origem. Philipose ficaria mais feliz
se ela explodisse e lhe dissesse tudo que ele merece ouvir.
“Foi um acidente, Elsie”, desabafa. “Tive um pesadelo terrível.” Não
era isso que ele queria dizer! “Estava convencido de que ela queria
escapar. Acho que eu ainda estava sonhando quando vim até aqui.
Queria libertá-la.” E se cala, esperando o pior.
“Então, você não fez por mal.” A voz dela é neutra. Sem sarcasmo.
Sem nada.
Ela compreende! Graças a Deus. “Sim. Sim. Sinto muito. Elsie,
depois que nosso filho nascer, trago de volta a escultura. Ou consigo
dez outras pedras para você, se quiser”, ele diz.
“Nosso filho?”, Elsie questiona, por fim.
Que ela já não queira falar da Mulher de Pedra é uma bênção. “Sim,
nosso filho! Ele está reclamando”, ele responde, arriscando um tom de
piada. “Ele andava dizendo ‘Appa, estou muito animado para chegar ao
mundo, mas essas marteladas estão me enlouquecendo!’.”
Elsie diz: “Você tem tanta certeza de que é um filho”.
Não é uma pergunta. Ele ri, nervoso.
“Você esqueceu da visita do kaniyan? É nosso Ninan renascido!” Sua
voz vacila quando ele diz o nome, e a expressão no rosto dela muda.
Um fantasma se põe entre os dois.
“Deus é penitente, Elsie. Deus pede perdão. Deus quer nos oferecer
uma razão para acreditarmos de novo. Deus está nos devolvendo Ninan
para que nos curemos.”
Ela olha para o fragmento de pedra em sua mão, como se não tivesse
certeza do que fazer com aquilo, até que o deita no chão com cuidado,
como se fosse um objeto sagrado. De repente parece cansada. Quando
fala, é sem rancor, e talvez até haja alguma compaixão pelo homem
com quem casou.
“Philipose, oh, Philipose, o que aconteceu com você?” Sob o olhar
de Elsie, ele se sente encolher, tornando-se do tamanho do fragmento
de pedra. “Tudo que queria era seu apoio para que eu pudesse
trabalhar. Mas, de alguma forma, sempre que você acha que me dá
alguma coisa, na verdade tira.”

a coluna do homem comum: a anticura


por V. Philipose

Vale para qualquer um que você abordar numa estrada: assim que
entendem que não é dinheiro — ou o último restinho de tabaco — que
você busca, mas uma história, as pessoas te contam alegremente a
lenda da vida delas. Quem não quer falar do karma ruim, da traição
que se interpôs entre eles e a grandeza, que os impediu de serem
famosos como Gandhi ou Sarojini Naidu? Ou ricos como Tatas ou
Birlas? Todo malaiala tem uma lenda pessoal, e, garanto, é tudo
ficção. Da mesma forma, um malaiala tem também mais duas
histórias, tão infalíveis quanto seu umbigo: uma delas é sobre
fantasmas, e a outra, uma receita de como curar verrugas. Querido
leitor, sou um coletor de histórias sobre como curar verrugas. Tenho
centenas. Se você quer levar uns sustos coletando histórias acerca de
fantasmas, a escolha é sua. Então, seja lá o que pense de minha
coleção de histórias a respeito de como curar verrugas, reserve sua
opinião para vo­cê, por gentileza.
Por que histórias sobre como curar verrugas, você me pergunta? Por
acaso estou coberto de verrugas? Não. Mas tive uma neste dedo
quando garoto. Naturalmente, achava que fosse consequência de um
pecado que cometi. Em vez de contar para minha mãe, fui a um
amigo de infância, um camarada mais velho e confiante, meu herói.
Ele compartilhou comigo seu método de cura secreto: urina fresca de
bode, que ainda não tenha molhado o chão; aplicar pouco antes do
nascer do sol. Irmão, por favor, tente encontrar mijo de bode em algum
lugar que não no chão. Irmã, pode ser que seu bode mije o tempo todo
e olhe para você de modo insolente enquanto molha sua perna, mas
tente recolher um pouco de urina num coco vazio no escuro, sem levar
uma cabeçada ou um coice em locais que não podemos mencionar.
Mas, enfim, eu consegui. É uma história à parte, mas consegui… E a
verruga caiu! Quando contei ao meu amigo, ele rolou no chão de tanto
rir. Era tudo invenção dele! Mas eu ri por último, não? A cura
funcionou.
De geração em geração, famílias transmitem histórias sobre como
curar verrugas, como quem passa receitas secretas. “Corte uma cabeça
de enguia e enterre. Quando ela apodrecer, a verruga também
apodrecerá.” “Vá a um velório e esfregue discretamente a verruga no
cadáver.” “Caminhe por três minutos à sombra de alguém cujo rosto
esteja coberto de cicatrizes de varíola.”
Foi por isso que fui ver o doutor X. (Não é seu nome, significa
apenas que não direi quem é.) Verrugas são sua especialidade. Seu
nome estava na placa, seguido pelas letras: “DM(h) (USA), MRVR”.
Era de esperar que uma placa desse tipo se encontrasse em um prédio
pukka com telhado forrado, não em uma cabana perto de uma oficina
mecânica, tendo à frente uma vala de água fedorenta. Um homem sem
camisa, com um mundu sujo, sorria do lado de fora. Perguntei: Onde
está o dr. X.? Ele respondeu: Sou eu. Perguntei sobre aquelas siglas
depois de seu nome. Ele explicou que DM(h) era doutor em medicina
homeopática. Eu disse: Aah, então você fez faculdade de homeopatia?
(Cá entre nós, eu tinha minhas dúvidas.) Ele declarou: Ah, sim! Aqui
mesmo em casa estudei a Pharmacopeia Britânica, de 1930. Decorei
tudo. Pergunte qualquer coisa! Eu queria dizer: Você deve saber que
lançaram uma nova edição, não? Em vez disso, perguntei: O que tem
a ver a Pharmacopeia com a homeopatia? Ele respondeu: Se há
diluição, por que não? A diluição é essencial! Aah, eu disse. E quanto
ao USA, depois do DM(h)? (Ele não parecia ter viajado para muito
além da supracitada valeta fedorenta.) Ah, isso, ele contou, significa
Unani, Siddha e Ayurveda. Três sistemas de medicina pelos quais
tenho grande interesse. Pode-se dizer que são minhas especialidades.
A cara de pau desse camarada! Senhor, eu disse — ele me
interrompeu. Chame-me de doutor, por favor. Aah, doutor, então, você
não acha que as pessoas podem confundir aquelas letras com o país?
Não prossiga, ele disse, esticando um braço, como um policial faria.
Deixe-me lembrá-lo que Unani, Siddha e Ayurveda são práticas
ancestrais que existiam já muito antes da América. Desafio Churchill
ou qualquer outro que diga o contrário. Aah, eu respondi, que seja,
mas e quanto a esse MRVR? Ele explicou: É do latim, Medicus
Regius Vel Regis, ou médico da realeza. Eu disse: Calma lá! Você
tratou alguém no Palácio de Buckingham? Não, ele falou. Prescrevi,
com sucesso, um purgativo para um homem severamente constipado
que era primo em sexto grau do último marajá de Travancore — todos
os outros tratamentos falharam. Em vez de diluição, no caso dele optei
pela concentração. Usei cáscara, senna, óleo mineral, leite de
magnésia e meu ingrediente secreto. Perguntei: Funciona? (Eu tinha
certo interesse pessoal, pois quem de nós não sofre de prisão de ventre?)
Aah! Meu amigo, ele respondeu, rindo de maneira desagradável e
baixando a voz. Se funciona, você pergunta? Digamos assim: se você
por acaso estiver lendo um livro ao tomar esse remédio, ele arrancará
as páginas da lombada! Enfim, meu paciente ficou muito agradecido.
Portanto, consultei o dicionário de malaiala-latim e acrescentei
MRVR ao meu nome.
Aah, eu disse. Chega. Não vim aqui falar de sua placa. Sou um
coletor de histórias sobre como curar verrugas, das quais existe uma
legião. Sim, sim, ele assentiu, de pleno acordo, e, além do mais,
acrescentou, o ingrediente comum a todas as curas é a convicção.
Quando um método de cura funciona, é porque o paciente de fato tem
fé. Quando os métodos são bem elaborados, é mais fácil de acreditar.
Assim é a natureza humana. Muito bem, eu disse, pois finalmente
concordei com ele em alguma coisa. Então, eu falei, diga-me, o que
você faz para os pacientes com verrugas? Mostrou-me sua mão. O que
significa isso?, perguntei. Bote dinheiro aí, por favor. Se o paciente
puser dinheiro na minha mão, significa que tem fé. Logo, meu método
de cura certamente funcionará.
Peguei minha bicicleta, pronto para partir. Não tenho verrugas, eu
dis­se. Estou perguntando como jornalista. Ele respondeu: Você está
terrivelmente enganado — diagnostiquei verrugas tão logo o vi. Onde?
Mostre-me! Aah, mas suas verrugas estão todas dentro de você, como
bem sabe. A mão dele continuava estendida.
Querido leitor, não seja muito severo comigo, mas nesse momento
entendi tudo e me emocionei. Pus dinheiro na mão do médico. Doutor,
eu falei, estou desesperado. E tenho fé.
54. Um anjo pré-natal

parambil, 1951

Uma trégua desconfortável se impõe ao longo da gravidez de Elsie.


Gran­de Ammachi percebe que a nora tem evitado o marido. Quem
pode culpá-la? Desde a visita do kaniyan, o comportamento de
Philipose se tornou mais errático.
No sétimo mês de gestação, Grande Ammachi convoca Anna, uma
jovem que na igreja é conhecida por sua bela voz. Ammachi ouviu
dizer que seu marido desaparecera e que ela e a filha passavam
dificuldades. A matriarca tem sessenta e três anos, e cada um deles lhe
pesa. Com a chegada de um novo bebê, um pouco de ajuda não cairia
mal; se Anna se dispusesse, o arranjo poderia ser mutuamente benéfico.
Ammachi sente muita falta de Odat Kochamma; a presença da velha
seria uma bênção durante o parto. Ela não tem nenhuma fotografia de
sua amada companheira, então num jarro na cozinha conserva sua
dentadura de madeira — uma dentadura que a velha pegou
“emprestada” do pai de sua nora e que usava quando lhe dava na telha.
Grande Ammachi sorri sempre que seu olhar recai sobre aqueles
dentes maliciosos que tudo observam. Todas as noites, em suas orações
para os falecidos, chora ao chegar ao nome de Odat Kochamma.
Anna aparece depois do almoço, bem quando Grande Ammachi
descansa na cama de corda com o jornal e um pouco de tabaco; com
exceção das moscas na passagem coberta ao lado da cozinha, ninguém
pode criticá-la por aquele hábito. Anna tem quase trinta anos, testa
larga, quadris largos e um sorriso mais largo ainda. Para uma mulher de
seu porte, seu rosto parece um tanto chupado, mais magro do que
Grande Ammachi se lembrava da última vez em que a viu na igreja.
Uma menininha frágil, com uma bermuda grande demais, amarrada
com cadarço, se esconde atrás da mãe, seus olhos maiores que todo o
rosto.
“E essa pequena cauda que você traz aí, quem é?”
“É minha Hannah!”, diz a mãe, cheia de orgulho, mostrando mais
dentes do que poderiam caber numa boca. As manchas ressecadas em
padrão concêntrico em sua chatta não escapam ao olhar de Grande
Ammachi. É o leite materno que impede que aquele anjinho com
olhos de besouro passe fome.
“Aah, acho que talvez Hannah queira comer algo”, diz Grande
Ammachi, não dando ouvidos aos protestos de Anna e logo se metendo
na cozinha. Enquanto as duas comem, Grande Ammachi lhe pergunta
sobre o marido ausente.
“Ammachi, a má sorte seguia meu pobre marido como gatos atrás do
vendedor de peixe. Ele adormeceu debaixo de um coqueiro depois de
beber vinho de palma e um coco caiu e quebrou as costelas dele. Azar
demais.” Grande Ammachi pondera sobre a visão caridosa que Anna
tem do esposo. “Depois ele perdeu o emprego e não conseguiu
encontrar serviço. Ficou frustrado. Numa manhã decidiu que se
enfiaria secretamente num trem rumo a Madras, Delhi ou Bombaim,
em busca de trabalho. Isso foi há três meses. Não temos arroz em casa”,
ela diz, ainda sorrindo, como se descrevesse mais uma reviravolta
cômica na aventura marital, embora seus olhos se encham de lágrimas.
“Quero encontrar meu marido, mas como?” Esfrega as bochechas.
“Quando Hannah crescer e me perguntar se fiz de tudo para encontrar
seu Appachen…”
Grande Ammachi finge certa irritação, mas aperta a mão de Anna.
“Você não pode revirar o país atrás dele!”
Desde o primeiro momento, Anna é como quatro pares extras de
mãos, e Grande Ammachi se pergunta como ela conseguia viver antes
de Anna Chedethi. Esse sufixo dá a ela o status de parente, não de
empregada. Hannah segue Grande Ammachi para cima e para baixo,
como Jojo fazia. Senhor, cheguei aqui também quase criança, com
saudade de minha mãe e sem pai. Agora sou mãe de tantos. A
menininha parece ter três anos, mas mostra cinco dedos quando lhe
perguntam a idade. Não demora muito e suas bochechas crescem
como pão fermentado. Grande Ammachi a ensina a ler, usando a
Bíblia como texto de apoio. Depois da lição, Hannah permanece
sentada com a Bíblia por muito tempo.
Grande Ammachi e Anna Chedethi preparam o quarto para o parto
de Elsie. O cômodo fica ao lado do ara, logo acima do celeiro, sendo
possível vigiar dali os tesouros da residência. A cama sobre a plataforma
elevada com quatro colunas de canto erguendo-se como pináculos de
igreja está atulhada de fardos de tecidos. Grande Ammachi teve seus
filhos nessa cama, e sua mãe dormiu naquele quarto nos últimos meses
de vida, quando sentia dificuldade em se erguer da esteira no chão. As
paredes têm painéis de teca escura, ornamentos em cobre e um teto
falso. É um museu de velhos artefatos de Parambil, cada um com sua
história; Grande Ammachi não consegue se desfazer de nenhum. Há
um conjunto de kindis de bronze de bico longo e lampiões a óleo e
querosene belamente enfeitados; os lampiões pegam poeira desde que a
eletricidade chegou. A um canto repousa o castiçal de sete velas, peça
cerimonial mais alta que Grande Ammachi. As duas mulheres
esvaziam o aposento, deixando apenas a cama. Anna Chedethi limpa as
paredes e o teto, esfrega o piso até conseguir ver o próprio reflexo. O
parto de Elsie será ali, naquele cômodo de memórias, cerimônia e
transição.
Na cozinha, Grande Ammachi ouve um estrondo e corre para o
velho quarto; encontra Philipose com uma escada, escarafunchando
um vão acima do ara.
“Estou procurando o velho velocípede de Ninan, aquele sem
rodinhas”, ele diz. “Não está aqui?”
“Você enlouqueceu? Saia já daí!”
Mais tarde ela ouve o filho dando instruções a Shamuel. “Segundo
meu calendário, o parto será no dia seis. Quero que o sultão pattar faça
biryani…”
Grande Ammachi se aproxima, furiosa. “Que besteira! Acha que isso
é um casamento? A lua é que segue esse tipo de calendário, não os
bebês. Shamuel, você pode ir. Sem sultão pattar nenhum.” Shamuel
retira-se lentamente, chegando a ouvir: “O que há de errado com você,
Philipose? Que comportamento infeliz! Não quero celebrações, não
antes de ter nos braços um bebê sadio”.
Os olhos de Philipose são os olhos de um homem que perdeu toda
razão. Ela talvez compartilhasse com ele a ansiedade em relação à
gravidez de Elsie, mas esse espectro jamais entenderia. Que loucura o
possuiu a ponto de despachar a escultura de pedra de Elsie? Grande
Ammachi se solidarizou com a nora, mas Elsie disse: “Está tudo bem.
As ideias em minha cabeça são inesgotáveis. E ninguém pode tirar essas
ideias de mim”.
Grande Ammachi sabe de uma coisa que Philipose não sabe: Elsie
está construindo outra escultura no lugar onde se banhava, um ponto
que o marido nunca visita. Começou como uma pilha de gravetos, que
se transformou numa parede curva que aos poucos virou um ninho
gigante. Elsie caminha sem parar pela propriedade, partindo ramas
verdes e maleáveis, e gravetos secos, que entrelaça ao ninho junto com
objetos encontrados ao léu, incluindo panos velhos, fios de vime do
encosto de uma cadeira velha, fitas, uma roldana imprestável, corda de
casca de coco, uma maçaneta. Depois da visita de um clérigo, Grande
Ammachi encontra o terço dele entrançado ao ninho. Elsie é como um
pássaro-alfaiate, girando a cabeça para um lado e para o outro,
vasculhando a terra enquanto caminha de pés descalços entre arbustos.
Suas mãos estão cheias de bolhas. Grande Ammachi se pergunta: Um
ninho é mesmo arte? Será que a gravidez lhe afetou o juízo?
Certa manhã, nota Elsie caminhando de forma um tanto rígida,
como se estivesse com pernas de pau. Força a nora a se sentar. “Olhe
seus pés! Logo mais vão estar iguais aos de Damodaran! Chega de
caminhar”. Os tornozelos de Elsie desapareceram. As unhas dos pés
estão sem brilho, os calcanhares fissurados como um leito seco de rio.
Calos amarelos se acumulam nas solas. “Por que não tem usado
chinelos? Eu devia ter prestado atenção.” Mas Grande Ammachi tem
focado é na barriga da nora, atentando se está alta ou baixa — e acaba
de perceber que está baixa, a cabeça do bebê adentrou a pélvis.
Ammachi torce para estar errada, pois ainda é cedo. “Você não sai mais
da minha vista”, ela diz, severa. “Sente-se comigo. Desenhe ou pinte
em vez de andar por aí coletando kara-bura”, declara, improvisando
uma palavra inventada.
Ela e Elsie mudam-se para o velho quarto, Elsie na cama, Grande
Amma­chi numa esteira. Na primeira noite ouve Elsie se revirando,
uma inquietude que anuncia o parto iminente. A espera acabou,
embora seja mais cedo do que o esperado. Perto do amanhecer, quando
abre os olhos, Grande Ammachi se depara com Elsie a olhando
fixamente. Por um breve e estranho momento, tem a sensação de que
outra pessoa ocupa o corpo da nora, alguém que quer contar algo que
ela, Grande Ammachi, não quer ouvir.
“Molay, o que há?”
Elsie balança a cabeça e admite que tem tido câimbras
intermitentes, outro sinal do parto. Ao amanhecer, ela diz: “Ammachi,
por favor, caminhe comigo até meu ninho”. Elas vão até lá, o braço de
Elsie em torno dos ombros, mais baixos, de Grande Ammachi. Metem-
se pela entrada imbricante do ninho que, num primeiro olhar, é
invisível. O topo dele alcança o peito de Grande Ammachi. “Espero
poder fazer outras peças grandes como esta. A céu aberto. Quer dizer,
se eu sobreviver ao parto.”
“Que besteira é essa? ‘Se eu sobreviver’?”, Grande Ammachi finge
irritação.
Elsie olha para a sogra e parece prestes a desabafar. Mas então se vira
e suspira.
“O que é, molay?”
“Nada. Ammachi, se algo acontecer comigo, por favor, cuide do
bebê. Promete?”
“Chaa! Não fale assim. Nada vai acontecer. Mas por que a pergunta?
É claro que cuidarei.”
“Se for menina, quero que tenha seu nome.”
Como resposta, ela abraça Elsie, que se agarra a ela. Quando as duas
se separam, Grande Ammachi se espanta com a expressão cheia de
tristeza de Elsie. Consola-a com palavras, com toques. Grande
Ammachi lembra bem da intensidade de suas próprias emoções, seu
medo à medida que o parto se aproximava, e, no caso de Elsie, esse
momento é iminente. Essa fragilidade é um sinal.
Grande Ammachi vai até Philipose: “Agora, me escute. Elsie está
decidida a ter o parto em casa. Mas não gosto do que estou vendo. Não
sei explicar. Ela vai ter a criança a qualquer momento. Arranje um
carro e…”.
Ele salta da cama, alarmado. “Agora? Mas meu calendário…”
“O que foi que eu disse sobre o calendário? Podemos ir para o
hospital missionário em Chalakad. Na verdade, achei que ainda
teríamos mais tempo. Se pelo menos houvesse um hospital mais
perto…”
Nesse exato momento, Anna Chedethi a chama em um tom
alarmado.
“Deixa pra lá”, diz Grande Ammachi. A bolsa de Elsie deve ter
estourado.

Anna Chedethi prendeu lençóis brancos sobre a metade de baixo das


janelas do velho cômodo. Philipose, do lado de fora, olha para aquilo
sem entender. Ele encurrala Shamuel que passa por ali e lhe diz:
“Parece que nosso Ninan está com pressa de aterrissar, como da outra
vez. Temos que matar um bode. E providencie vinho de palma…”. Sua
mãe, no quarto com Elsie, entreouve a conversa e está prestes a sair
para repreendê-lo, quando ou­ve a voz de Shamuel, quase
irreconhecível.
“Chaa! Pare! Faça silêncio. Não fale comigo. Se quer ajuda, vá para
a igreja e reze. Faça uma promessa de não ir à loja de Krishnankutty. É
isso que você pode fazer.”
O silêncio impera.

Os gemidos de Elsie são rítmicos. Grande Ammachi se prepara,


prendendo o cabelo num coque apertado, olhando-se no espelho. Seus
cachos estão mais ralos, e mais cinza que brancos. Ontem mesmo era
uma jovem esposa se contorcendo de dor nesse mesmo quarto com sua
primeira criança. Mas não foi ontem. Foi no ano da graça de 1906.
Parece que acabou de dar as costas a esse mesmo espelho… e é 1951, e
ela já está em sua sétima década! Os lóbulos de suas orelhas estão
caídos. Mas a beleza que tanto desejava quando moça não lhe significa
nada agora. Apruma-se; se não tomar cuidado, logo os ombros tocarão
as orelhas. Já anda curvada como uma palmeira torta — primeiro
carregou JoJo, depois bebê Mol, depois Philipose, depois Ninan,
sempre na banda esquerda, deixando livre a mão direita para mexer a
panela ou acender as brasas. Suspira e faz o sinal da cruz. “Senhor,
minha rocha, minha fortaleza, meu libertador… esteja conosco agora.”
Elsie grita: “Ammay…?”. Uma contração deve estar vindo.
“Pronto, pronto, molay, não se preocupe”, Grande Ammachi diz por
reflexo, prendendo a última presilha. “Estou indo.”
Anna Chedethi puxa e repuxa lençóis que já não necessitam de arru‐­
mação. A contração é como uma nuvem distante, visível da copa das
árvores, que depois lança sua sombra no rosto de Elsie, quando a dor
lhe torce o cor­po, contorcendo-o como um pano molhado. Elsie agarra
as mãos de Grande Amma­chi com força suficiente para estraçalhar o
nó de seus dedos. “Pronto, pronto. Respire. Você já passou por isso”, ela
fala. Mas a verdade é que Elsie não passou por isso. Bebê Ninan
deslizou para fora como um gatinho atravessando as grades de uma
janela.
A contração passa, e Elsie busca ar de modo desesperado. Grande
Amma­chi se espanta ao ver nos olhos dela não medo, o que seria
natural, mas de novo aquela terrível tristeza. “Ammachi, leve-me para o
ninho.”
“Mas estivemos lá uma hora atrás, lembra? Vamos caminhar aqui
pelo quarto, se é isso que você quer.”
Ela acaricia Elsie, esperando, revivendo a própria provação,
abençoada e terrível, de dar à luz. Lembra que tudo que não fosse
aquele quarto deixou de existir. Quem, senão uma mulher, entenderia?
Quando achou que a dor não poderia piorar, piorou. O fio entre ela e o
mundo se partiu, e ela se viu terrivelmente só, lutando com Deus, com
a criação miraculosa que Ele permitira que crescesse em seu ventre, e
que agora a rasgava — ela, também uma criação de Deus — ao meio.
Os homens gostam de pensar que as mulheres se esquecem da dor tão
logo veem o bebê abençoado. Não. Uma mulher perdoa a criança, e
talvez perdoe até o pai. Mas nunca esquece.
Com a próxima contração, Elsie começa a fazer força. “Segure as
mãos de Anna Chedethi.” Movendo-se para o pé da cama, Grande
Ammachi abre as pernas de Elsie e empurra os joelhos da nora em
direção à barriga.
Ela não entende o que vê. Em vez do cabelo escuro e grudento da
cabeça emoldurada na abertura, vê uma polpa pálida. E uma covinha.
É o traseiro! Aquela covinha é o ânus. Ouvindo batidas fortes ela se
distrai, perguntando-se quem estaria tentando derrubar a porta, até que
compreende que é seu próprio coração. A criança está de cabeça para
baixo. Isso é um problema. A contração passa, e o traseiro recua, sem se
firmar. Talvez o canal vaginal não esteja completamente aberto, talvez,
se esperarem…
De repente as pernas de Elsie se arreganham como se roldanas
invisíveis estendessem seus membros. “Elsie, não! Dobre os joelhos de
novo!” Mas Elsie já não ouve nada, as pernas rígidas, os dedões
apontando para a porta, seus braços dobrados contra o peito numa
postura estranha. Grunhidos atávicos lhe escapam entre os dentes
cerrados, junto com uma saliva espumosa, tin­gida de sangue. “Ela está
mordendo a língua!”, diz Anna Chedethi. Os olhos de Elsie se reviram,
agora exibindo apenas a parte branca. Ela convulsiona, os membros se
agitam, o corpo bate na cama. Grande Ammachi puxa a cabeça de
Elsie para seu colo, como se para combater o espírito que está se
apossando da nora, impedi-lo de chacoalhá-la. Depois de uma
eternidade, o intruso se retira. Mas leva Elsie com ele: o corpo mole, a
respiração rouca, os olhos semiabertos, olhando para a esquerda. Ela
está inconsciente.
Grande Ammachi dobra as pernas da nora mais uma vez,
encostando seus calcanhares nas nádegas. Para seu desespero, o cenário
não mudou. Lava as mãos em água quente, pensando no que deve
fazer. Tira o anel e besunta a mão direita com óleo de coco, até depois
do pulso.
“Anna Chedethi, ajoelhe-se na cama. Ponha a mão aqui na barriga
dela e empurre quando eu disser. Senhor, minha rocha, minha
fortaleza, minha… bem, Você já sabe o que vou Te pedir”, ela diz, com
a mesma voz severa com que falou a Anna Chedethi. Não fosse a
convulsão, elas também esperariam a natureza seguir seu curso, o
traseiro expandir o canal, Elsie fazer força… Mas a passagem não dá
sinal de que se alargará mais, e Elsie, desacordada, já não pode fazer
força.
Ammachi junta os dedos num bico de passarinho e os insere dentro
do canal. As pontas dos dedos passam delicadamente pelo traseiro da
criança, e os dedos então se separam, avançando como minhocas pelo
caminho, o espaço tão apertado que suas juntas uivam. Ela fecha os
olhos como se para ver melhor na escuridão do útero. Vasculhando,
depara-se com tocos macios. Dedos dos pés! E a parte de trás de um
tornozelo! Com a ponta de um dedo, puxa aquele pé, mantendo um
ângulo com a canela, que também localizou. Bem quando acha que a
canela pode quebrar, o pé desliza, passando pelo bumbum, e sai.
Encontra o outro pé mais para cima e o guia delicadamente, e agora,
sem confusão, o bumbum também sai, junto com uma volta do cordão
umbilical. Anna Chedethi observa, pasma.
As pernas pendem do canal, molhadas e pegajosas, um joelho
curvado e outro reto, como se a criança estivesse dando um passo,
tentando escalar para dentro do útero. A coluna aparece, um colar de
pequenas contas sob a pele. Ela enrola uma toalha em torno do torso e
puxa. O tronco não cede, mas rotaciona glacialmente, como uma roda-
d’água. Grande Ammachi vasculha o interior de Elsie mais uma vez e
pesca a curva de um cotovelo e, como bônus, os dois ombros vêm à luz.
Só a cabeça permanece encastrada. Ela olha para Elsie, que não se
mexe. A baba em seus lábios borbulha a cada respiração rápida e pouco
profunda.
Ela puxa, mas a cabeça parece cravada numa pedra. Ela fantasia: se
chamar a criança, ela dirá “Sim, Ammachi” e virá para ela, como tantos
pequenos o fizeram. O suor que escorre sobre seus olhos a cega. Anna
Chedethi limpa seu rosto e abana o leque de bambu. O cordão
umbilical pende como uma serpente branca, pulsando e se contraindo
a cada batimento cardíaco de Elsie, nós de veias sob a superfície
gelatinosa distendida e irritada. Vendo aquele corpinho sem cabeça, ela
pensa na escultura de Elsie. Antes de Philipose desfigurá-la.
“Anna, empurre quando eu mandar”, ela diz, irritada, embora sejam
os devaneios de sua própria mente que a irritam. Agacha-se quando a
próxima contração começa, seus joelhos rangem. Anna Chedethi
empurra a barriga inchada, enquanto Grande Ammachi puxa a
criança. No entanto, o ângulo terrível entre pescoço e corpo a assusta.
“Pare! empurre para cima, não puxe mais”, uma voz diz claramente.
Não foi Chedethi quem falou. Quem foi então? A velha do porão,
oferecendo conselhos? Insere um dedo e encontra uma boca; então, na
contração seguinte, enquanto mantém a cabeça cur­vada, levanta-se e
puxa o torso da criança para cima, na direção da barriga de Elsie,
porque alguém ou algo lhe disse que aquilo era o certo a fazer.
“Empurre, Anna!” A cabeça se solta com um gorgolejo, mãe e bebê
rendendo-se à lei da natureza de que nenhuma alma pode demorar-se a
meio do caminho, não se quiser vencer nesse mundo.
Anna Chedethi corta o cordão com muita habilidade, enquanto o
novo ser jaz azul e sem vida nos braços de Grande Ammachi. Ela
assopra delicadamente para dentro das pequenas narinas. “Vamos lá,
minha joia! Você saiu da água e está em Parambil!” Nada acontece. Ela
tem então uma lembrança mui­to clara de Odat Kochamma se
inclinando sobre suas pernas tortas, os braços apontando para trás, a
título de equilíbrio, falando no pequeno ouvido de Ninan: “Maron Yesu
Mishiha”, Jesus é nosso Senhor. Olha para o falso teto e suplica, certa
de que sua companheira de tantos anos está assistindo a tudo. Diga,
Kochamma! Você quer que eu faça tudo?
… e a criança enche os pulmões e berra, um som glorioso, um
idioma universal, a primeira enunciação de uma nova vida. As roupas
de Grande Ammachi estão encharcadas de suor, seus ossos doem, os
olhos ardem, mas sua alegria transborda.

Há ruídos de felicidade do lado de fora: aqueles que lá esperavam


ouviram o choro.
Grande Ammachi se agacha, a criança nos braços. Sente que nasceu
de novo. Que criaturinha perfeita! Ela se deleita com aquele choro
agudo, peculiar, penetrante, um som que sinaliza o fim da solidão, o
retorno da mãe ao mundo, a superação de um perigo mortal. O que
estava dentro agora está fora, ainda igualmente frágil, igualmente preso
à mãe, mas, pela primeira vez, separado.
“Que bebê grande você é, não? Deus seja louvado. Tinha medo de
que fosse outra miudeza.” Está acostumada com recém-nascidos
ofuscados pela claridade, que mal abrem os olhos, e, se os abrem,
fazem-no apenas para dar uma espiadela no mundo com um olhar sem
foco. Mas a criança que acabou de nascer olha diretamente para a avó,
com uma expressão séria.
A respiração de Elsie é constante, seus olhos já não olham para o
além. Ainda inconsciente, mas viva. A placenta sai, empapada e pesada,
tendo cumprido seu trabalho. Anna Chedethi troca o lençol manchado
por uma toalha branca grossa. Embrulha a placenta numa folha de
jornal.
Anna Chedethi se aproxima, agachando-se ao lado de Grande
Ammachi, as duas sorrindo para a criança, de costas para Elsie. Nesse
momento, sob seus pés, ouvem o som de algo se despedaçando. Do
porão. Aquilo as assusta, as duas olham para baixo, depois se viram.
Veem ao mesmo tempo: um rio de sangue cor de cereja jorra do canal
vaginal, encharcando a toalha branca, gotejando no chão. Grande
Ammachi rapidamente enrola a criança num pano e a deposita com
cautela sobre a esteira. Anna Chedethi abre as pernas de Elsie mais
uma vez, enquanto Grande Ammachi limpa o coágulo de sangue na
abertura, mas logo em seguida vê outro coágulo — a face de Satã —
carregado por um rio rubro constante e caudaloso que se junta ao lago
sangrento sob as nádegas de Elsie.
Grande Ammachi nunca presenciou nada como aquilo, embora já
tivesse ouvido falar. As mulheres têm tantas formas de morrer, Senhor. Se
não é o parto que empaca, matando mãe e criança, então é isso. Não é
justo! Massageia a barriga da nora, pois já ouvira que aquilo pode
ajudar o útero flácido a recuperar o rigor, contraindo-se, interrompendo
o sangramento. No entanto, nesse caso, a massagem só piorou, o jorro
de sangue ficou ainda mais pronunciado. Grande Ammachi se afasta,
derrotada, observando a vida de Elsie escapar entre seus dedos.
Ouve os gritos de Philipose: “O que está acontecendo? Meu filho
está bem?”.
Elas não respondem. Contemplam a hemorragia torrencial, sem que
possam fazer alguma coisa. Anna Chedethi diz: “Ammachi, deixa eu
tentar uma coisa”.
Ela besunta a mão com óleo e penetra delicadamente os dedos pelo
canal. Uma vez lá dentro, no útero, cerra o punho e faz um movimento
para cima. Sua outra mão, por fora, pressiona o abdome para baixo, de
forma que, en­tre o pulso por dentro e a palma por fora, ela imprensa o
útero, comprimindo-o. Escorre sangue por seu braço, mas então o fluxo
diminui e… para.
Falando de maneira entrecortada, o rosto congestionado pelo
esforço, mas, ainda assim, sorrindo, Anna Chedethi diz: “Uma freira
branca… lá depois de Ranni… que era enfermeira… Salvou uma
pulayi que sangrava como um rio… Apertando o útero assim”.
“Você estava lá?”
“Não…”, ela responde, olhando Grande Ammachi nos olhos. “Mas
ouvi falar… E lembrei agora.”
Os braços de Anna Chedethi estremecem, as veias em suas têmporas
parecem prestes a explodir. Grande Ammachi é a ajudante agora,
enxugando-lhe o suor. É uma bênção que Elsie não sinta nada. Mas
seu rosto está branco como um mundu descolorado. Grande Ammachi
lança um olhar à recém-nascida enrolada que observa a luta da mãe
pela vida.
“Ammachi”, Anna Chedethi diz, “que som foi aquele que ouvimos…
lá embaixo?”
“Um jarro de picles deve ter caído”, ela diz. “Aquelas prateleiras
empenaram.”
Mas Grande Ammachi sabe quem foi e está grata. Se tivessem ficado
admirando a criança, encontrariam Elsie morta quando se virassem
para ela. “Anna, e se você soltar agora?” Ela teme que a outra desmaie
do esforço.
De início, Anna Chedethi parece não ouvir. Outro minuto se passa.
Então, devagar, ela afrouxa a pressão na barriga de Elsie, mantendo
dentro, contudo, o punho cerrado. Elas prendem a respiração. Não há
outro derramamento. Mais um minuto se passa, e Anna Chedethi, com
cuidado e delicadeza, retira a mão, encapuzada em sangue das pontas
dos dedos ao cotovelo. As duas mulheres rezam em silêncio, movendo
os lábios, os olhos grudados nas pernas de Elsie. Cinco minutos. Dez.
Outros dez. Aos poucos Grande Ammachi sente que pode respirar de
novo.
Chama Elsie pelo nome. A nora está num sono profundo e estranho.
Mas viva. Meu bom Deus, será que essa pobre menina pode sobreviver,
depois de perder todo esse sangue? Elas continuam esperando.
Esperam um pouco mais, agora com a criança nos braços da avó, que
por fim põe a mão sobre a cabeça de Anna, abençoando-a com os olhos
voltados para os céus. “Obrigada, Senhor. Você viu o que aconteceria.
E me enviou um anjo.”

Quando Grande Ammachi sai do quarto, está irreconhecível:


exausta, esbaforida e pálida, como se ela, não Elsie, tivesse acabado de
passar pela provação. Suas mãos estão limpas, mas os cotovelos estão
ensanguentados, a parte da frente da chatta e do mundu está
encharcada de sangue, e há uma mancha de sangue em seu rosto. Mas
sorri, sonhadora, segurando a criança. Olha para cima, surpresa ao ver
um pequeno grupo ajoelhando-se a seus pés. Bebê Mol, Shamuel,
Dolly Kochamma, o Senhor Melhorias, Shoshamma e Philipose.
“Quase perdemos nossa Elsie. Agradeçam a Deus, que nos ajudou.
Foi um parto muito difícil”, diz, com voz rouca. “O bumbum veio
primeiro. Depois Elsie teve uma convulsão. De alguma forma
estávamos conseguindo. Mas de repente Elsie começou a sangrar, tanto
sangue… Quase a perdemos. Ainda há risco. Ela está muito fraca. Por
favor, rezem para que não sangre de novo. Mas a criança está bem.
Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus…”
Ela dá alguns pequenos passos cansados na direção do filho,
sorrindo. Ele parecia fora do ar enquanto ela falava, mas, agora, quando
a mãe se aproxima, o rosto dele se ilumina, e estende os braços. Grande
Ammachi diz: “Já temos um nome para sua filha”.
Philipose pisca, deixa cair os braços.
“Sua filha”, repete Grande Ammachi.
Ele cambaleia para trás, só não cai porque Shamuel puxa uma
cadeira para ampará-lo. Ele olha para a mãe sem acreditar,
boquiaberto, uma expressão abismada no rosto. “Deus nos decepcionou
de novo”, murmura.
Grande Ammachi se aproxima da cadeira onde o filho está sentado,
pairando sobre ele. Quando fala, suas palavras soltam faíscas, caindo
sobre ele como óleo quente na água: “Depois da provação que Elsie
atravessou… Depois do que Anna Chedethi e eu passamos, é isso que
você tem a dizer? ‘Deus nos decepcionou’?”. Sua voz se eleva: “Uma
mulher arrisca a vida para dar à luz e no fim um homem que não fez
nada — menos que nada — em nove meses diz ‘Deus nos
decepcionou’?”. Se dependesse de Grande Ammachi, qualquer homem
que dissesse o que seu filho falou mereceria por lei uma surra de pau.
“Sim, Deus nos decepcionou”, ela declara. “Quando distribuiu bom
senso, esqueceu-se de lhe dar um pouco. Se Ele tivesse te feito mulher,
talvez não saísse esterco de sua boca em vez de palavras! Tenha
vergonha!”
Nada se move em Parambil. Philipose olha para cima, pasmo, a
decepção agora se transformando em mágoa. Mas não ousa falar.
Grande Ammachi mira o filho fixamente. Ele um dia foi um bebê,
tal como a criança que ela agora segura. A mãe não tem alguma
responsabilidade pelo que Philipose se tornou? “Veja, há uma hora eu
poderia ter saído e dito que Elsie teve convulsões e morreu. Quarenta
minutos atrás, poderia ter di­to que a criança estava presa ao contrário, e
que mãe e filha morreram. E, há dez minutos, poderia ter dito que
Elsie sangrou até morrer. Você entende? No entanto, eu não disse nada
disso, e sim que sua esposa segue viva, mas por um fio. E o que você vê
aqui é a graça de Deus manifestada nessa criança perfeita.”
Philipose não diz uma palavra. Não olha para a filha, seu rosto está
tão angustiado como se Bebê Ninan tivesse morrido de novo e ele
segurasse nos braços mais uma vez o corpo sangrento do filho, entre
vísceras horríveis.
“Mariamma”, Grande Ammachi anuncia com uma entonação forte.
Elsie queria esse nome. Ela não esperará pela opinião do filho. “O
nome da criança é Mariamma.”
Sim, é o nome cristão de Grande Ammachi. Mariamma. Nome pelo
qual ninguém ali presente a ouviu ser chamada, nome que não foi
pronunciado desde que ela, aos doze anos, chegou a Parambil como
noiva.
Mariamma.
55. O rebento é uma menina

parambil, 1951

Elsie está consciente, mas confusa e muito fraca devido à perda de


sangue. Só consegue sentar sem se sentir tonta depois de três dias. A
recuperação é lenta e dolorosa. Não tem a menor condição de
amamentar. Anna Chedethi, de sorriso desdentado, cuida da bebê, o
que para Grande Ammachi é prova de que Hannah, por capricho,
ainda mama à noite. Se tivesse percebido antes, teria recriminado as
duas. Agora reza em agradecimento.
Só no quinto dia Grande Ammachi leva Mariamma para sua mãe. A
sogra se assusta ao ver na nora a mesma expressão assombrada e
miserável que a intrigou antes do parto. Elsie olha para a filha com
grande ternura, mas aquele sentimento é obscurecido, afogado pela
tristeza inexplicável. Suas mãos são como folhas murchas, e ela nem
tenta tocar a criança. Depois de uma eternidade, ela fecha os olhos,
como se já não suportasse olhar. Vira-se, os ombros tremendo,
chorando sem controle.
O pai da criança não sai do quarto, ou só quando a casa dorme, um
degredado no próprio lar, a observar pela janela as idas e vindas no
velho cômodo.
Parambil mais uma vez se transforma com a criança recém-nascida e
a indústria em torno dela. Fraldas de pano no varal, Bebe Mol pelas
redondezas, pedindo silêncio a todos que se aproximam. Grande
Ammachi se deleita com a neta que leva seu nome. Mas uma
bebezinha não deveria trazer alegria aos pais? Esta fez justamente o
contrário.
Grande Ammachi concentra suas energias em Elsie, alimentando-a
com caldos, depois peixe e carne, para revigorar o sangue, junto com os
tônicos restaurativos do vaidyan. Depois de uma semana, Elsie
consegue caminhar com o auxílio de Grande Ammachi, e as duas
andam pelo quarto. Lá pela terceira semana, a parturiente aparece com
as faces mais rosadas, fazendo caminhadas cada vez mais longas,
sozinha, e até se banha no riacho. Embora fique de olho na bebê, não
tenta niná-la, só a contempla nos braços de Anna Chedethi. Grande
Ammachi não consegue entender isso nem ignorar certo presságio, a
sensação de que, depois de tudo que elas passaram, ainda há algo mais
prestes a acontecer.
Três semanas depois do nascimento, Elsie sai no começo da noite,
no crepúsculo, para se banhar no riacho. Antes de partir, pergunta se
Grande Ammachi pode, por favor, fazer de novo sardinhas na folha de
bananeira cozidas no vapor, tal como no dia anterior, sem condimentos
que não uma pitada de sal.
Passam-se duas horas até alguém se dar conta de que ela não voltou
do riacho.
56. Desaparecida

parambil, 1951

Eles fazem uma busca pela casa e pelas redondezas. Shamuel


caminha ao longo do riacho e do canal; pergunta para as famílias do
ferreiro, do ourives e do oleiro se alguém viu Elsie. Joppan percorre de
bicicleta as estradas escuras e vai a todas as casas da vizinhança. Outros
andam pelas margens do rio. Pela meia-noite, os membros da família
estendida se aglomeram na varanda, as vozes agudas das mulheres em
contraste com as dos homens, mais graves. César corre de um lado a
outro, latindo. Joppan inspeciona todos os poços, iluminando o interior
com uma folha de palmeira em chamas.
No dia seguinte, à primeira luz, Georgie segue de ônibus para a casa
Thetanatt, nas planícies. Se nem Elsie nem o irmão estiverem lá,
alugará um carro e partirá para a propriedade nas montanhas.
Para facilitar as buscas, o Senhor Melhorias divide Parambil em
setores, num raio de quase dois quilômetros da casa. Shamuel interpela
todos os barqueiros, ninguém a transportou na noite anterior. Joppan,
corajoso, sondando o caminho com uma vara longa, penetra o mato
alto da sarpa kavu no extremo da propriedade, local onde grandes
rochas sinalizam um antigo templo devotado ao Deus serpente, uma
área que ninguém ousa adentrar. Há muitas formas se contorcendo por
ali, mas nada de Elsie.
Só Bebê Mol não se perturba. Quando a mãe lhe pergunta se sabe
onde a cunhada está, ela diz: “As bonecas estão com fome”. Grande
Ammachi sente um nó na garganta.
Pelo começo da tarde, Georgie está de volta: ela não está na casa da
família, e seu irmão, que havia acabado de vir do bangalô, garantiu-lhe
que ela tampouco estava lá. O irmão de Elsie não foi muito simpático,
tratando-o como um empregado e não como um dos anciãos de
Parambil. Parecia bêbado e só ficou reclamando do cunhado.
Os esforços para encontrar Elsie cessam. Só Shamuel persiste,
voltando a lugares já vistos e revistos. Vinte e quatro horas depois do
desaparecimento de Elsie, Grande Ammachi, Philipose e o Senhor
Melhorias estão na varanda quando Shamuel se aproxima pela estrada,
segurando alguma coisa, qual uma oferenda. Seu passo sombrio, quase
cerimonial, chama a atenção de todos. “Do atracadouro caminhei pela
margem do rio. Cheguei a um ponto onde os arbustos de pandano são
muito densos. Notei um ponto onde um arbusto se achatava para trás.
Abri caminho e cheguei a uma pequena clareira, com espaço para uma
única uma pessoa de pé.” Sua voz vacila. “Lá, encontrei isso.” E
estende os braços. Uma barra de sabão equilibra-se sobre um thorthu
muito bem dobrado, uma blusa, e um mundu; debaixo dessas coisas, os
chinelos de Elsie.
O Senhor Melhorias informa a polícia na subestação. Por ora, o
máximo que podem esperar é a notícia de um corpo à deriva rio abaixo.

Anna Chedethi cuida da bebê. Grande Ammachi, insone, segue até


o local onde Shamuel encontrou as roupas de Elsie. Põe-se de pé ali,
sentindo o solo entre os dedões, como a nora deve ter sentido. Olha
fixamente para a superfície barrenta e ondeante do rio, cujos humores
ela conhece bem, pois por toda a vida se entregou ao abraço daquelas
águas. As canoas no atracadouro flutuam mais elevadas, sinal de chuva
nas montanhas. Estremece ao imaginar Elsie, enfraquecida desde o
parto, despindo-se e mergulhando. O que deu na cabeça daquela
garota? Ela ansiava por uma comunhão com a água, um desejo de ser
purificada e renovada? Elsie é uma boa nadadora, mas isso antes de
quase sangrar até a morte. O rio é impiedoso com aqueles que o
subestimam, e as águas nunca são as mesmas. Parada ali, Grande
Ammachi sente o peito oprimido. Depois de um bom tempo, desaba no
choro, não sem antes se ajoelhar para beijar o solo onde Elsie pisou
pela última vez.
Seus pés a conduzem para o ninho de Elsie. Sente que está se
aproximando de um altar, um santuário escondido do mundo. O
musgo do lado de fora é denso, e os objetos que ela encontrou e
trançou à construção parecem ter sido aprisionados ali há décadas.
Ao entrar lá, Grande Ammachi vê um papel branco e retangular
preso ao chão por uma pedra oval polida, uma pedra de rio do tipo que
Elsie usava como peso na mesa de trabalho. Seu coração acelera.
Quem quer que a tenha procurado por ali buscava uma pessoa, não um
pedaço de papel, que passou despercebido. Ela se curva para recolhê-
lo. É do tipo grosso e granulado que a nora usava para desenhar e
pintar. Antes da morte de Ninan, houve um tempo em que esse tipo de
papel dominava a casa, espalhado pelo chão do banco de Bebê Mol até
a cozinha. Desde seu retorno, as mãos fortes de Elsie tinham trocado o
carvão e o pincel pelo peso do martelo e do cinzel, antes de ela passar a
entretecer o ninho. O orvalho umedeceu as bordas do papel — estava
naquele lugar desde o dia anterior, não mais do que isso, pois seu
branco ainda é puro. Os dedos de Grande Ammachi tremem ao
desdobrá-lo. Ela vê um simples desenho, comunicando com o mínimo
de linhas na página um tema familiar: mãe com criança. Os rostos e as
figuras não estão detalhados, mas, com uma curva aqui e um toque ali,
os traços permitem entrever sobrancelhas, nariz, lábios…
“Isso é importante, não é, molay?” O papel treme em suas mãos. Ela
o estuda. Há a criança, claro. Mas a mãe não é jovem, a julgar pela leve
corcunda, pela inclinação do pescoço. “Molay, molay”, exclama. “Ayo,
molay, o que você tentava dizer? Essa sou eu, não é? Se fosse você, seria
mais alta, mais jovem, e não haveria aquela ruga entre as sobrancelhas.
Está me dizendo para cuidar de sua bebê? Você já me pediu isso. Sabe
que eu cuidaria. Mas tenho sessenta e três anos! Pais são dispensáveis,
mas uma criança precisa da mãe. Ah, Elsie, o que você fez? Isso era um
adeus?”
Seu corpo lhe diz com certeza que Elsie jamais retornará; que ela se
entregou às águas deliberadamente. A ideia da jovem deixando essa
mensagem ali, momentos antes de ir ao rio acabar com a própria vida,
é devastadora. Grande Ammachi aperta o papel contra o peito e se
rende à tristeza que a consome.
Ao longe escuta Anna Chedethi chamando-a da cozinha. “Grande
Amma­chi-o?” Por aquele “o” musical ao fim da palavra, agudo, sabe
que, seja lá o que Anna quer, não é urgente. Mas aqueles chamamentos
melódicos parecem também uma conclusão. É um lembrete de que
Parambil deve seguir em frente. Uma dona de casa, uma mãe, uma avó
tem deveres preciosos que não cessam, que continuarão até o dia de sua
morte.
Ela não conta a ninguém o que encontrou. Com ciúme, protege o
desenho, uma mensagem privada para ela. Guarda-o junto com a
genealogia, no mesmo armário onde mantém o kavani níveo bordado
com ouro de verdade que usa em casamentos e funerais.
Nos anos seguintes, no aniversário de Mariamma, e em outras
ocasiões em que Elsie lhe vem à mente, sacará o desenho, mas sempre
à noite, à luz tênue do abajur. Toda vez que o vê, a economia daquelas
linhas volta a impressioná-la. Poderia ser a Virgem Maria com a
criança. Poderia ser muitas coisas. No entanto, sabe que é ela, ninando
a menina que leva seu nome. Nunca vê Elsie no desenho.
A folha retangular de papel abarca o mundo redondo e seus quatro
cantos imaginados, as lembranças dos desaparecidos e mortos, e o
coração palpitante dos fiéis que rezam todas as noites para que a
vontade de Deus seja feita, sem saber qual será ela.
parte sete
57. Invictus

mansão do supervisor na vila de m…, 1959

Lênin Imorredouro está a uma semana do nono aniversário no


momento em que a pestilência se abate sobre o barracão de um
cômodo que é seu lar. Ela chega de repente, como um lagarto que
despenca do teto. Quando sua mãe, Lizzi, disse certa manhã que a
escola estava fechada, ele celebrou, tão feliz que nem perguntou por
quê. Na manhã seguinte, em vez de acordar com os sons da mãe da
lida na cozinha, tudo é silêncio. Os pais estão na esteira, a irmãzinha,
ainda neném, entre eles. Seus rostos brilham de suor. Ele lembra que
haviam se sentido mal na noite anterior.
A pele da mãe queima. Lênin toca na irmãzinha, Shyla, de cinco
meses, e ela grita como se ferida por uma agulha. O choro desperta o
pai, que leva a mão à testa, com uma careta, e se esforça para se
levantar, em vão. Lênin se pergunta se ele está de ressaca. Mas não, o
pai voltou sóbrio na véspera. Como não encontraram comida,
encheram a barriga de água kanji, com um mero vestígio de arroz.
“Tenho que alimentar a vaca”, diz Kora, a voz mais sibilante que o
normal e rouca como pedra ralando pedra. Não consegue levantar.
Sacode o ombro da esposa, mas ela apenas geme. Pai e filho se
entreolham. Lizzi é a espinha dorsal da família.
“Você também está com febre, monay?” Lênin faz que não com a
cabeça. “Então busque água pra gente. E dê palha e água para a vaca,
por favor.” Como um pensamento que chega atrasado, Kora diz: “Tudo
vai ficar bem.” Então ensaia seu melhor sorriso, do tipo que o
“supervisor” Kora usa para persuadir um chefe de vila que leite e mel
jorrarão se os habitantes do vilarejo fecharem com ele, e não, não, não
tem malária lá na propriedade — quem disse? — só abrigos palacianos,
e leite e mel — não mencionei isso? Mas, naquela manhã, não consegue
sustentar aquele sorriso. “Já vi isso antes”, Kora declara, esfregando as
protuberâncias na pele. “Se as pessoas souberem que estamos assim,
ninguém vai nos ajudar. Não vão se aproximar.” Encosta a mão nas
bochechas da esposa, que também exibe caroços. “Sua abençoada mãe.
As coisas que ela sofreu por minha causa.” Lênin fica surpreso; esse tipo
de confissão não é típica do pai. Depois, Kora repete: “Tudo vai ficar
bem”.
Lênin só ficou mesmo com medo quando o pai pronunciou aquilo
pela segunda vez. Aquilo significava que as coisas não ficariam bem.
Que coisas ruins estavam prestes a acontecer por causa de algo ruim
que Kora fizera? Houve um tempo, antes de Lênin nascer, que eles
moraram em Parambil, lugar onde o menino nunca esteve, mas que,
pelas histórias da mãe, imagina ser um Éden, com uma família
amorosa por toda parte. De ouvir os pais, sabe que as confusões de Kora
os levaram a fugir de lá. Depois disso, a mãe assumiu o controle da
casa. Ajudou o marido a encontrar emprego como escritor de
propriedade em Wayanad, no Malabar. Lênin tem vagas memórias
desse tempo. Mas o pai se encrencou de novo quando o menino tinha
por volta de quatro ou cinco anos. Lizzi vendeu suas últimas joias e
comprou um barracão num terreno minúsculo, para garantir que ela
jamais ficasse sem ter onde morar. Proibiu Kora de tomar dinheiro
emprestado ou fazer qualquer coisa que não trabalhar em troca de um
salário. O barracão é onde têm vivido desde então, o lugar que o pai
chama de “A Mansão do Supervisor”.
Lênin dá comida para o corvo e traz água para a família. Tenta fazer
com que a mãe beba, mas ela não consegue. Ela vive segundo o lema
“Diga a verdade e diga logo”, não “Tudo vai ficar bem”. Seu marido
não consegue encontrar trabalho ou permanecer firme em um
emprego. É a habilidade de Liz­zi como parteira que traz a prata, ou a
carne e o peixe. Aprendeu com uma mulher nas fazendas em
Wayanad. Duas semanas atrás, Kora chegou tarde da noite com uma
vaca, dizendo que a ganhou em um jogo de azar. Lênin nunca viu a
mãe tão brava. Insistiu para que ele devolvesse o bicho. Seu pai
pareceu assustado; ele apanharia se tentasse devolver, contou. A vaca
não tem permissão de deixar as redondezas do barracão deles. E, para
completar, suas tetas estão secas.
Lênin passa a maior parte do dia do lado de fora da casa, pois é
perturbador olhar para a família. Ao anoitecer, não encontra nada além
de condimentos. Mastiga um dente de alho. Sua fome dói. Tenta fumar
um beedi que descansa na caixa de cigarros para asma do pai. Antes de
dormir, tenta dar água para todos. Ainda não consegue despertar a mãe.
Seu belo rosto está marcado por pequenas protuberâncias. Seus cachos,
colados na testa. O pai não consegue erguer a cabeça; toma um gole de
água, depois faz uma careta de dor. Seus olhos cravam-se com urgência
nos de Lênin, e ele aperta o ombro do filho. O terror em seu rosto é
diferente de tudo que Lênin viu na vida. “Escute!”, sussurra. “Não faça
o que fiz. Siga no caminho reto.” Aquelas são as últimas palavras
sensatas do pai.
Siga no caminho reto. Houve muitas ocasiões em que Lênin o odiou
e lhe desejou coisas terríveis. Mas ele não o odeia agora. A sensação
demorada de sua mão em seu ombro o entristece. No momento ele
está bem assustado. Toleraria a escola sem reclamar, se aquilo fizesse
todos ficarem bem.

Na manhã seguinte, antes de abrir os olhos, pensa: Que tudo não


passe de um pesadelo. Que eu veja minha mãe andando pra lá e pra cá,
e meu pai segurando a neném. Mas a pele do pai está fria como pedra.
Ele esqueceu de respirar. Suas feições estão distorcidas pelas bolhas, e
uma expressão confusa congelou-se em seu rosto. A boca da irmã mexe-
se como um peixe fora d’água, o peito agitando-se esporadicamente, até
que, sob o olhar do irmão, sua respiração cessa. Lênin nunca viu um
cadáver, mas sabe que está olhando para dois. A mãe ainda respira.
Algo se parte dentro dele. Lança o vaso de água vazio contra a parede e
sacode Lizzi violentamente. “Como vou fazer sem ninguém para
cuidar de mim?” Cai sobre ela, chorando. “Sou seu bebê. Por favor,
Amma, não me deixe.” Os olhos dela estão revirados e nada veem. Os
ouvidos nada escutam.
Lá fora está quente, mas ele treme de fome e medo. Siga no caminho
reto — foi a última coisa que o pai disse. Ele fará isso. Andará em linha
reta até conseguir comida ou cair morto. Nada o impedirá. Se topar
com água… Bem, nesse caso ele vai se afogar.
A linha reta o leva a saltar uma cerca, passar por um touro
ameaçador, cruzar um campo, e logo uma grande residência caiada
surge à sua frente. A família cristã que vive ali é dona de boa parte das
terras da redondeza. Nunca quiseram nada com Kora e Lizzi. Lênin
estranha a casa, que lhe parece diferente. É porque cada porta e janela
estão fechadas com travas de madeira. A voz de um homem grita lá de
dentro: “não se atreva a chegar mais perto! vá embora antes que
eu solte o cachorro!”.
Lênin para, chocado. Essa família tem coqueiros, kappa, galinhas e
muitas vacas. Não podem compartilhar? Não têm piedade? Chora. Mas
ele está decidido. Siga no caminho reto. Força-se a seguir. Mande o
cachorro. Se ele não me comer, talvez eu possa comê-lo. Me mate ou me
dê comida.
Um rosto surge entre os juncos à sua direita, assustando-o. É uma
mulher pulayi bem magra, um thortu cobrindo-lhe os seios. Ela lhe fará
mal?
“Monay, venha para cá, aqui eles não podem ver você”, ela afirma.
Os juncos a escondem do olhar do casarão. Ele obedece. “Eu me
chamo Acca, moro ali”, ela diz, apontando um pequeno barracão que
só agora ele vê. “Você é Lênin, não é?” Ela intui a condição dele com
um só olhar. “Espere aqui. Vou te trazer um pouco de comida.”
Ele treme de ansiedade. Ela volta com um pacote de folha de
bananeira e duas bananas, depositando tudo ao pé dele e recuando
para acocorar-se a uns seis metros do garoto. Peixe frito! Arroz! Ele
devora tudo, depois dá cabo das bananas.
“Monay”, ela diz, “você não tem feridas?” Ouvindo-a dizer “monay”,
chora novamente. Quer correr para o colo dela. Ergue os braços para
mostrar que não foi afetado. “E os outros?”, a mulher pergunta.
Ele esfrega o rosto molhado. “Appa e a neném estão mortos. Amma
não consegue nem me ver nem me ouvir.”
Ele ouve Acca inspirar com força e profundidade. “Sua mãe…Você
pode viver muitas vidas e não conhecer ninguém tão decente quanto
Lizzi Chedethi. Um coração de ouro. E linda.” Ela enxuga os olhos
com um pano. “Monay, isso é varíola. É ruim. É por isso que dizem
‘Não conte com seus filhos antes da varíola passar por aqui’. Meu
marido e eu tivemos. Por isso não pegamos de novo. Muita gente
morreu nessa região.”
“Queria ter pegado”, Lênin diz. “Assim, quando minha mãe se for,
posso ir com ela.” O menino chora.
A mulher se entristece. “Não. Não diga isso. Deus o poupou por
alguma razão.” Ela fica de pé. “Vou avisar alguém para te ajudar.”
“Acca! Espere.” Ela se vira. Que uma pulayi lhe dê peixe e arroz
quando eles vivem de kanji e picles é de uma generosidade sem limites.
“Acca, você me salvou. Prometo que, se eu viver, encontrarei um jeito
de lhe dar muito mais do que me deu. Aquelas pessoas na casa queriam
soltar o cachorro em cima de mim. Não são cristãos?”
A risada dela tem uma nota amarga. “Cristãos, é? Aah. Meu avô
virou cristão, então também viramos. Ele tinha certeza de que agora o
dono dessas terras iria convidá-lo para comer dentro da casa com ele!
Ninguém lhe disse que o Jesus dos pulayar morreu numa cruz
diferente. Era a cruz baixa e escura atrás da cozinha!” Ela ri de novo.
Lênin não sabe o que dizer. “Acho que você é uma santa.”
“Escute, se isso te consola, eles me enviaram ao mercado para
comprar peixe e carneiro dois dias atrás. Quando voltei, ficaram com
medo e não queriam que eu me aproximasse. E se eu estivesse com
varíola? Ou se estivesse na comida? Disseram que eu podia ficar com
tudo. Então cozinhamos e fizemos um banquete! Sorte sua que
sobrou.” A expressão dela é séria. “Não, não sou santa, monay.” Ela se
levanta. “E eu estava brincando. É a mesma cruz. O mesmo Jesus. Só
que as pessoas não se tratam do mesmo jeito. Você anda rezando, não
é? Espero que sim. Vou buscar ajuda.”

Enquanto caminha para casa, ele se dá conta de que, por todo


aquele tempo, não rezou nenhuma vez. Nunca lhe ocorreu! Teria feito
alguma diferença?
O cheiro o alcança antes mesmo de abrir a porta. Sua mãe respira
ruidosamente. O rosto do pai está encovado, quase irreconhecível. A
irmã está rígida como uma boneca de madeira.
Ele arrasta a mãe para a porta, na direção do ar puro, puxando sua
esteira. Deita-se ao lado dela, cujo hálito é fétido. A mãe que ele
conhece se foi, mas quer ficar perto do que restou dela. Uma última
vez, Amma, me abrace. Ergue o braço de Lizzi para se aninhar,
expondo sua barriga. Nisso vê a cicatriz onde o pai, enlouquecido pelos
cigarros para asma, esfaqueou-a, e por onde a mão de Lênin buscou a
luz. O dr. Digby devolveu a mão para dentro da barriga e o batizou de
Lênin Imorredouro.
Deitado ali ao lado da mãe, tenta rezar. O rosto de Acca lhe vem à
mente e o consola. Talvez ela fosse Maria. Uma Maria pulayi. “Deus,
por favor, envie outro anjo para salvar Amma. Se não enviar, então,
quando levar minha Amma, leve-me também.”

Ao amanhecer, o anjo chega vestindo batina branca, cinto na cintura


e barrete preto de sacerdote. De sandálias, seus pés estão brancos de
poeira até os tornozelos. Ele é magro como um trilho de ferrovia, com
olhos doces e penetrantes, e uma barba grisalha crescida. O anjo dá
uma olhada no interior do barracão, abismado. O cheiro é coisa que se
pode alcançar e tocar. Quando o homem olha para a mãe de Lênin, o
menino, vendo a expressão no rosto dele, sabe que ela está morta. No
momento em que adormeceu, o corpo da mãe estava quente. Agora
está muito frio.
“Lênin Imorredouro? Não é seu nome?” O anjo estende os braços.
58. Acenda o castiçal

parambil, 1959

Grande Ammachi está sentada à luz do lampião na varanda em


frente ao ara, dando de comer à neta de oito anos.
O lampião lança as sombras na parede de teca atrás delas, duas
formas ovais, uma delas maior do que a outra. As pedrinhas no muttam
cintilam depois da chuva que caiu naquela noite, e aqui e ali uma
rocha maior parece se mover. Avó e neta ouvem Philipose chamando:
“Hora de rezar!”.
“Chaa! Seu pai!”, diz Grande Ammachi. “Antes era eu quem tinha
de lembrar das orações.”
“Meu pai diz que os sapos vêm das pedras.” Mariamma está
empoleirada na borda da cadeira e balança as pernas, quando outra
pedra saltita, desafiando a gravidade.
“Aah. Isso significa que a cabeça dele ainda está cheia de pedrinhas.
Pensei que eu tinha tirado todas de lá.” A risada da menininha exibe
vãos entre os dentes, e Grande Ammachi desliza uma bolota de arroz
para dentro de sua boca. “Talvez ele tenha lido isso em um daqueles
livros em inglês que lê pa­ra você”, ela declara, fingindo ciúme.
Philipose fala em inglês com Mariamma, deixando o malaiala para os
outros. “Ele está lendo a história do grande peixe branco?”
Mariamma balança a cabeça, ficando séria. “Não. Outro. Sobre um
menino, Oliver, não tem pai nem mãe. Está sempre com fome. As
outras crianças são ruins e obrigam ele a ir mendigar comida. O
homem ficou bravo e vendeu Oliver para outro homem. Ele organiza
funerais.”
Grande Ammachi queria que o filho escolhesse histórias sem pais
mortos ou crianças sendo vendidas. “Molay, talvez esse fosse o destino
desse pobre menino. Talvez estivesse escrito na testa dele.”
“Como minha ‘singularidade’?”, pergunta a neta, tocando a mecha
branca no cabelo, à direita do fio central.
“Não, sua singularidade é só isso. Singular! Uma marca de boa
sorte.” Grande Ammachi acha que a mecha dá gravidade a tudo que
Mariamma diz. “O que quero dizer é que o azar do menino foi ter
nascido na família errada, no dia errado.”
“Eu nasci em que tipo de dia?”
“Aah! Eu não te contei sobre o dia em que você nasceu?” Mariamma
balança a cabeça, tentando não rir. “Contei essa história ontem. E
antes de ontem, acho. Bem, contarei de novo, pois é sua história, e é
melhor do que a desse rapazote Oli ou Olamadel.” Mariamma ri. “No
dia em que você nasceu, mandei Anna Chedethi arrastar o grande
castiçal de bronze aqui para fora. Em todos os meus anos em Parambil,
nunca vi aquele velakku aceso. Pois seu avô já tinha tido um
primogênito. Sempre que eu entrava naquele quarto, tropeçava no
castiçal. Mas, no dia em que você nasceu, eu falei: ‘Quem disse que só
acendemos o velakku para o primogênito? Que tal acendermos para a
primeira Mariamma?’. Viu só? Eu sabia que você era especial.”
Philipose surge em silêncio, o cabelo penteado para trás. Grande
Ammachi ainda se maravilha com a pontualidade desse novo Philipose,
infalível como a chamada das notícias da bbc que ele costuma ouvir. O
filho vive pela rotina, escrevendo às cinco da manhã, vistoriando a
propriedade com Shamuel às nove, barbeando-se e tomando banho às
dez, depois seguindo para o correio às onze… Antes do jantar, um
banho, e orações em seguida. Ela não está inteiramente livre da
preocupação de que um dia a rotina de Philipose despenque como um
barracão numa chuva torrencial e que ele busque de novo a maldita
caixinha de madeira, com as pérolas negras. Não é apenas a fé que o
leva às orações noturnas ou à igreja: ele precisa desses rituais para
reconstruir a autoconfiança. Se Deus não existisse, o filho teria de
inventá-lo.
“O velakku foi ideia de meu pai?”
“Chaa!”, diz Grande Ammachi, como se ele não estivesse ali parado.
Mariamma ri. “Bem, seu pai tem muitas ideias inteligentes… Talvez
tenha sido ideia dele. Não lembro.” Philipose, olhos postos em
Mariamma, sorri.
Grande Ammachi é tomada pelas memórias do parto angustiante, e
da resposta insensível do filho. Lembra do kaniyan tendo a desfaçatez
de aparecer tão logo soube que a criança era uma menina; o homem
recuperou um pequeno pergaminho escondido debaixo do beiral da
cozinha, e o entregou para Philipose. Nele se lia: “o rebento será
uma menina”. Ele disse que o pusera ali na última visita, pois tinha
uma forte suspeita de que seria uma menina, porém não queria
desapontar Philipose. Grande Ammachi agarrou o manuscrito e o
lançou na cara do kaniyan, dizendo: “Não venha com essas baboseiras!
César vê o futuro tanto quanto você! Deus nos deu uma linda menina,
e isso é ótimo, pois não precisamos de outro homem tolo. Desses já
temos o suficiente”. Ela se lembra então de outro espectador, certo
velho silencioso que guardou vigília do lado de fora do quarto onde
Elsie pariu, e que depois esteve observando as mulheres acendendo o
castiçal; Shamuel era um tradicionalista, mas ela teve a impressão de
que ele aprovara a iniciativa.
Grande Ammachi é bruscamente devolvida ao presente pela neta
que lhe sacode o ombro: “Ammachi! O que aconteceu com o castiçal
da noite em que nasci? Diga!”.
“Aah, o castiçal”, ela declara. Philipose ouve com a dignidade de um
homem que aceitou o passado. Ele sabe para onde os pensamentos da
mãe a levaram. “Pedi para Anna Chedechi polir o velakku até que
pudéssemos ver nosso rosto refletido nele. Foram precisos três homens
para levar o castiçal até ali, entre os dois pilares. Ela verteu óleo, pôs
pavios novos — quatro no topo, depois seis, oito, dez, doze, catorze e
dezesseis. Levantei você e disse para as moças: ‘Esta é nossa noite!’. As
mulheres vieram das casas de Parambil e além, de todas as direções,
pois ficaram sabendo e porque viram as luzes de longe. Trouxeram
doces, cocos. Era sua noite, e também a nossa. Em toda a cristandade,
ninguém jamais celebrou o nascimento de uma menina como
celebramos o seu. Eu disse a elas: ‘Nunca haverá outra como minha
Mariamma, e vocês nem imaginam o que ela fará’.”
“O que eu farei, Ammachi?”
“Deus diz, em Jeremias: ‘Antes de formar você no ventre de sua mãe,
eu o conheci; antes que você fosse dado à luz, eu o consagrei’. Deus
ama histórias. Deus permite que cada um de nós construa a própria
história de vida. A sua não será como a de ninguém.”
A menina se cala, refletindo sobre aquela narrativa que ela conhece
tão bem. Mas nessa noite faz uma pergunta que surpreende a avó.
“Ammachi, quando você era uma garotinha, o que imaginou pra
você?”
“Eu? Isso foi em tempos muito antigos. Tudo é tão diferente agora.
Suponho que tenha imaginado o que meu tempo permitia. Imaginei
exatamente isto: um lar, um bom marido, crianças amorosas, uma neta
linda…”
“Mas, mas, mas… se, por mágica, você tivesse oito anos de novo,
agora mesmo, o que imaginaria?”
“Por mágica?” Ela não precisa pensar muito tempo. “Se eu tivesse
oito anos hoje, sei o que imaginaria. Ia querer ser médica. Construiria
um hospital bem aqui.” Ela tem atormentado o Senhor Melhorias com
isso por anos: se Parambil pode ter um posto do correio e um banco,
por que não uma clínica ou hospital?
“Por quê?”
“Para que eu pudesse ser mais útil às outras pessoas. Sabe quanto
sofrimento testemunhei sem poder fazer nada? Mas, no meu tempo,
molay, uma menina não podia sonhar com esse tipo de coisa. Mas você,
que leva meu nome, pode ser médica, advogada, jornalista… o que
quiser. Acendemos o castiçal para iluminar o seu caminho.”
“Eu poderia ser uma bispa”, Mariamma diz.
Grande Ammachi fica sem resposta de tão surpresa.
Philipose diz: “Aah, por falar em bispos, é hora das orações”.
59. Doces opressores e gratos oprimidos

parambil, 1960

Sem sobreaviso, Parambil recebe um jovem visitante. O menino de


dez anos que põe os pés na varanda e olha nos olhos de todos tem um
nome que se iguala à sua autoconfiança precoce: Lênin Imorredouro.
Faz um ano que BeeYay Achen escreveu para Grande Ammachi com a
notícia chocante de que Lizzi, o supervisor Kora e a filhinha dos dois
haviam morrido de varíola. Só Lênin Imorredouro sobreviveu. Grande
Ammachi respondeu de imediato que ficaria feliz em criá-lo como um
filho e que ele era da família: o pai do rapaz e Philipose eram primos
de quarto grau. Mas então BeeYay Achen escreveu dizendo que Lênin
sentia que Deus o poupou por uma razão: para ser sacerdote. BeeYay ia
enviá-lo para o seminário em Kottayam, onde ele frequentaria uma
escola da vizinhança até ter idade suficiente para ser seminarista. Mas
ele poderia passar as férias de verão em Parambil. A matriarca exultou
com a ideia de o filho de Lizzi tornar-se sacerdote e esperou com muita
animação pelas primeiras férias do garoto.
Agora, vendo Lênin em carne e osso, Grande Ammachi fica tão
contente que nem lhe passa pela cabeça que as férias estão longe, as
aulas não terminaram. Abraça-o. O lindo garoto tem todos os melhores
traços de Lizzi. A notícia de que “o menino de Lizzi, o Bebê Achen,
está aqui” corre pelas outras casas. Todos querem vê-lo e falar a respeito
de sua mãe; ninguém mencio­na Kora.
Lênin, sem que precisem insistir, conta a história da pestilência que
recaiu sobre a Mansão do Supervisor e arrebanhou sua família. Sua voz
poderosa e as imagens vívidas parecem casar com sua vocação
sacerdotal. Diz que, à medida que os dias se passaram, e só sua mãe se
agarrava à vida, teve certeza de que morreria, não de varíola, mas de
fome. As últimas palavras do pai na terra foram: “Siga no caminho
reto”. Seu público se comove com o arrependimento e a contrição de
Kora, prestes a conhecer o Criador. Mariamma observa tudo, com um
pouco de inveja do recém-chegado, seu primo de quinto grau, mas se
mostra igualmente enfeitiçada pela história. Desesperado, Lênin
decidiu partir em linha reta, fosse para onde fosse. Um proprietário do
casarão do qual se aproximava lhe mandou manter distância, senão
soltaria o cachorro. Nesse ponto, uma mulher apareceu. “Eu acho que
foi a Virgem Maria disfarçada de uma pulayi. Tal como se lê em
Mateus, ela me alimentou quando eu tinha fome.” O público mais
uma vez suspira, pois quem não conhece aquela parábola? “Ela
mandou um recado para BeeYay Achen e seus monges, que cuidavam
dos doentes de varíola no vilarejo. Não sei por que Deus me poupou.
BeeYay Achen diz que não preciso saber. E que para tudo há uma
estação e uma época. Deus me salvou. Devo servir a Deus. Disso eu
sei.” Decência Kochamma fica tão emocionada com aquele testemunho
que aperta Lênin contra seus seios avantajados.
Alguém pergunta se o menino gosta de viver no seminário. Pela
primeira vez a confiança do rapaz vacila. “Eu gostava mais no ashram
com BeeYay Achen. Não gosto do seminário. Tive alguns…
desentendimentos com eles.” O Senhor Melhorias pergunta se as aulas
terminaram. “Terminaram. Tive alguns desentendimentos na escola
também. O diretor do seminário disse que é melhor eu viver e estudar
aqui. E me enviou.”
“Sozinho?”, Ammachi pergunta.
“Um achen viajou comigo. Nós… tivemos um desentendimento”,
Lênin diz, relutante. A resposta não é satisfatória. “Quando estávamos
no ônibus, vi que passaríamos a quase três quilômetros da Mansão do
Supervisor. Queria visitá-la. O achen disse que não…” O rosto de
Lênin se fecha. “Então saltei do ônibus e caminhei até lá. Depois vim
pra cá. Andei o dia inteiro.”
Havia uma horta de kappa onde antes ficava o barracão da família,
Lênin relata. O proprietário do casarão — o mesmo que ameaçou
soltar o cachorro — apareceu com uma vara na mão, achando que
Lênin fosse um ladrão. O garoto se explicou e o proprietário disse que a
terra agora era sua, pois Kora tinha tomado dinheiro emprestado dele,
usando a terra como garantia. Lênin protestou, era sua herança. O
homem falou que Lênin podia processá-lo à vontade. Lênin pediu para
ver Acca, a pulayi que o alimentara: ele queria lhe dar o crucifixo que
tinha no peito, abençoado pelo próprio BeeYay Achen. O homem disse
para Lênin guardar sua cruz e contou que Acca e o marido
participavam de reuniões do Partido Comunista e apareceram cheios
de ideias, achando que, como aravam a terra, tinham direito a ela. Ele
disse que os dois haviam esquecido que o arroz na barriga deles e o
telhado sobre a cabeça de ambos eram resultado de sua generosidade; e
aí os expulsou do terreno e tacou fogo na cabana. O rosto de Lênin se
contorceu de raiva ao contar isso.
Philipose faz a pergunta que está na cabeça de todos. Lênin diz: “O
que eu poderia fazer? Se fosse do tamanho dele, eu o teria surrado com
a vara. Então eu disse: ‘Um dia encontrarei a abençoada Acca e darei a
ela toda a sua terra e seu casarão, pois você é um ladrão e uma só Acca
vale mais do que cem proprietários como você’. Ele correu atrás de
mim. Mas com aquela pança nunca me alcançaria”.
Alguns dias depois, eles recebem uma carta do Achen que fora
designado para acompanhar Lênin à Parambil e que tentou impedi-lo
de visitar a Mansão do Supervisor. Contou que certo dia Lênin esperou
o Achen dormir e então amarrou suas sandálias. Quando o monge se
levantou para correr atrás do menino, ele caiu de cara no chão. Lênin
gritou que o Achen o sequestrara. O Achen conclui: “Lênin, sem
dúvida, chegou a Parambil. Deem duas semanas, e logo estarão
procurando um lugar para onde mandá-lo, mas, por gentileza, não
enviem esse demônio de volta para o seminário”.

Lênin se adapta à escola e à vida em Parambil rapidamente. Mas,


quando descobre que Decência Kochamma arrancou as páginas
“indecentes” de sua revistinha favorita do Mandrake, o mágico, o garoto
substituiu as páginas faltantes com desenhos de homens e mulheres
nuas, sob o título: imagens originais de sacanagem da coleção de
decência kochamma. Quando descobre, a mulher rotunda e artrítica,
agora beirando os setenta anos, corre atrás dele, surpreendendo a todos
com a velocidade de seu trote. A visão de Decência Kochamma
assomando é suficiente para levar Lênin a “seguir no caminho reto”.
Ele corre entre porções de arroz secando em esteiras, pisoteia um
arrozal, atravessa urtigas e se mete no barracão do jovem ourives,
tentando sair pelos fundos. O ourives original falecera, mas ainda se
referem a seu filho de meia-idade como o “jovem” ourives. Lênin
explica mais tarde que, uma vez ativada, sua compulsão da linha reta só
termina ao se deparar com um obstáculo intransponível ou quando
recebe um sinal de Deus. O jovem ourives é as duas coisas, pois
esculacha Lênin com fervor e o arrasta pela orelha inchada para
Grande Ammachi. Lênin está coberto de urtiga. O jovem ourives diz:
“Este aqui é tão torto quanto o pai”. Mariamma observa que as
lambanças de Lênin acontecem em geral durante o dia; à noite, o
garoto perde o ímpeto, seus passos tornam-se incertos, e ela já o viu
cambalear feito um bêbado. Enquanto a menina sempre implora para
ficar acordada até mais tarde, Lênin mal pode esperar para se deitar na
esteira.
Como punição pela última escapadela, Lênin fica confinado em
casa por duas semanas. Mariamma diz: “Por que você não tenta escalar,
em vez desse negócio de linha reta? Pode acabar quebrando o pescoço,
mas pelo menos não destrói nada de ninguém”.
“Aah, o problema de subir é que logo você alcança o topo.”
Alguns dias depois, ainda durante o confinamento de Lênin, cai uma
tempestade de raios. As paredes tremem, como se os relâmpagos
andassem caçando uma presa. No meio disso, o “menino abençoado”
desaparece. Avistam-no do lado de fora, no telhado do estábulo, de
braços erguidos, o cabelo para trás, parecendo Cristo no Gólgota, surdo
a gritos e acenos enquanto vento e chuva o açoitam. Trovões abalam a
casa, ao passo que as nuvens faíscam, reluzindo. Um raio acerta uma
palmeira a seis metros de Lênin, com um trovão instantâneo. O raio
parte a árvore, e um galho derruba o garoto de seu poleiro. O menino
abençoado usa o molde de gesso no pulso como se fosse uma medalha.
Alega à Grande Ammachi que subiu ao telhado em busca da “graça”,
mas para Mariamma ele admite que queria que relâmpagos
penetrassem seu corpo e lhe dessem o poder de disparar raios pelos
dedos, tal como Lothar, em Mandrake, o mágico.

Um mês depois de sua chegada, Mariamma e Podi mal conseguem


se lembrar de como era a vida em Parambil antes de Lênin. Podi é a
melhor amiga de Mariamma, e ambas têm quase a mesma idade. Na
infância, o pai de Podi, Joppan, e o pai de Mariamma, Philipose,
também eram melhores amigos. Podi significa “minúscula” ou
“poeira”. Mariamma e Podi concordavam em quase tudo, até que
Lênin apareceu. Mariamma ressente-se dele, porque o garoto é
“abençoado” e não tem medo de nada, e é um herói para todas as
crianças das redondezas, incluindo Podi — embora esta negue. Lênin
não dá a mínima para a opinião de Mariamma, o que só piora tudo. Ela
não consegue admitir que, apesar de detestá-lo, sente-se compelida a
observá-lo, para não perder sua próxima façanha.

Mariamma ouve o pai dizer à Grande Ammachi: “A escola me


chamou de novo. Outra briga. Lênin queria criar uma filial do Partido
Comunista. Ele tem dez anos! Ammachi, sem discussão. O que ele
precisa é de um internato”. Mariamma devia ficar contente ao ouvir
aquilo, mas, por algum motivo, não fica.
Naquela noite ela sonha com um homem, que reconhece como
Shamuel, lhe dizendo: “Obedeça seu pai! Ele sabe que você infringe as
regras dele. Você é igual a Lênin e talvez ele tenha que te mandar para
um colégio interno”. Acorda perturbada. Qual era o significado
daquilo? Se ela ainda compartilhasse uma cama com Hannah, teria
uma resposta. Para Hannah, todo sonho tem um significado, assim
como para José, no Gênesis. Mas Hannah foi para uma escola de freiras
com uma bolsa de estudos. Anna Chedethi não sabe que Hannah quer
ser freira — a menina gosta mais de jejuar do que de comer, e ama
“martirizar” a própria carne com um cinto de corda cheio de nós
debaixo da roupa. (Mas a mãe não sabe nada disso.) Hannah disse que
freiras fazem isso. Mariamma não tem a menor vontade de ser uma.
Sem Hannah, Mariamma se debruça sobre seu sonho sozinha. Por
que Shamuel? Todos falam dele no presente. Uma pessoa pode mesmo
estar morta, quando se fala dela como se estivesse viva? Ela lembra de
ter ouvido sobre o dia em que Shamuel desapareceu. Ele tinha ido ao
mercado e, como demorava para voltar, Philipose foi procurá-lo e
sentiu-se aliviado ao vê-lo acocorado na pedra de descanso, apoiado
numa das vigas, o costumeiro saco na laje horizontal. Seu queixo estava
no peito, como se dormisse. No entanto, sua pele estava fria. O coração
de Shamuel havia parado.
Foi a primeira morte na jovem vida de Mariamma. O pai foi de
bicicleta à feitoria de Iqbal e voltou com Joppan sentado de lado na
barra horizontal. Foi a primeira vez que viu homens adultos chorando.
Eles depositaram o corpo de Shamuel do lado de fora de sua cabana,
num caixão que repousava sobre o velho cavalete que ele amava.
Muitos vieram homenageá-lo — foi como se um marajá tivesse
morrido. A dor de Grande Ammachi assustou Mariamma; sua avó
chorou ao lado do caixão, acariciando a testa de um homem que,
segundo disse, tomara conta dela desde o dia em que pôs os pés em
Parambil, sessenta anos atrás. Shamuel foi enterrado ao lado da esposa,
no cemitério da Igreja do Sul da Índia. Muito depois, seu pai e Grande
Ammachi puseram um painel de bronze sobre a face horizontal da
lápide. Com um pedaço de papel e carvão, Mariamma fez uma cópia
da inscrição em letras maiúsculas. Em malaiala, dizia:

“venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar


o peso do seu fardo e eu lhes darei descanso.”
à lembrança amorosa de shamuel de parambil

Está quase amanhecendo, e Mariamma ainda está longe de


compreender o sonho. Escapole do quarto e agacha-se sob a janela do
pai. Ele não vai ouvi-la, mas ela não pode deixar que veja sua sombra.
Uma vez do lado de fora da casa, ela corre para o riacho e depois para o
canal. Ouve passos atrás dela: Podi. Compartilham o mesmo
pensamento: sempre que Mariamma sai da cama, de alguma forma
Podi sabe. As regras ditam que elas não podem nadar sem adultos por
perto. Regras só servem para tapeçaria e freiras. Ela mergulha, a água
rugindo ao redor de seus ouvidos. Momentos depois, uma explosão ao
lado: é Podi mergulhando. Nadar no canal é o maior segredo e prazer
delas, ainda que, se descobrirem, as consequências serão…bem, ela
não gosta de pensar nas consequências.
Mariamma precisa se preparar para a escola, mas Podi se demora,
pois Joppan não está em casa. Quando o pai está fora, ela não vai à aula
e faz o que bem quer. Se Joppan descobrir, e geralmente descobre, ele
a recrimina. Mariamma já o ouviu gritar: “Eles me expulsaram quando
eu queria estudar! Agora você é bem-vinda, mas é preguiçosa demais
para ir?”. Mariamma tem fascínio por Joppan. Ela só conhece esse
canal, ao passo que ele conhece todos os canais. Algumas pessoas, não
importa o que façam, parecem simplesmente elevadas, mais
importantes e confiantes do que outras. Joppan é assim. Lênin
também. Ela sente inveja.
Então, no café da manhã, ao ver seu pai lhe ocorre: o sonho.
Shamuel dizia que Philipose sabe do canal! Talvez sempre tenha
sabido. Antes de partir para a escola, ela vai ao quarto dele, onde ele
está organizando contas, murmurando consigo mesmo. Ao vê-la, ele
bota o livro de contas de lado e lhe sorri. Ela se põe ao lado da mesa
dele, ajeita seus lápis, pronta para confessar. Ela tem uma regra: sempre
diz a verdade… quando lhe perguntam. Ela abre a boca… Mas dizer a
verdade quando não lhe perguntam prova-se di­fícil. Precisa dizer
alguma coisa. Está decidida. “Appa, sonhei com Shamuel”, ela diz.
“Foi?”
Ela faz que sim com a cabeça. “Appa? Joppan passa muito tempo
fora.”
“E?”
“Tudo bem, eu te vejo mais tarde.” Não confessar é muito mais fácil
que confessar.

Shamuel? Joppan? Philipose fica ali admirado, depois balança a


cabeça e dá uma risadinha. Joppan, de fato, passa muito tempo fora. Se
Mariamma tivesse permanecido ali por mais de dez segundos, se ela
realmente quisesse saber, ele talvez lhe contasse que houve um tempo
em que achou que convenceria Joppan a se fazer presente em Parambil
o tempo todo. Foi logo depois do funeral de Shamuel. Sua mãe
convocou Joppan. Ele lembra que ela sentou, de olhos inchados, na
cama de corda do lado de fora da cozinha, enquanto ele e Joppan
sentaram de frente para ela em dois banquinhos baixos, como
estudantes. Grande Ammachi disse que, sempre que pagava os salários
a Shamuel, ele pegava o que precisava e lhe pedia que guardasse o
restante no caixa-forte do ara. Quando o banco abriu, ela pôs as
economias dele numa conta conjunta. “Agora, esse dinheiro é seu,
Joppan”, Grande Ammachi falou, entregando-lhe a caderneta. A casa e
o terreno de Shamuel também eram de Joppan, que já possuía um
terreno ao lado da terra do pai. Ela contou ainda que estava passando
para ele a escritura da faixa longa e estreita de terra atrás de seu terreno
que se conectava com a estrada. Era dele agora, para fazer o que bem
quisesse. Abençoou Joppan e, entre lágrimas, disse que Shamuel era
parte da família, e Joppan, Ammini e Podi também.
Depois disso, Philipose perguntou a Joppan se ele teria um minuto.
Os dois se sentaram no velho ateliê de Elsie. Joppan acendeu um beedi
e estudou a caderneta. Após um tempo Joppan sorriu e disse: “Quantas
vacas você acha que há aqui?”. Philipose ficou sem entender. “Sempre
que eu mencionava a meu pai uma quantia que ultrapassava algumas
rupias, ele dizia: ‘Isso dá quantas vacas?’. Ele sabia quanto valia uma
vaca — essa era sua moeda.” O sorriso de Joppan se desvaneceu. “Meu
pai podia ter me mostrado essa caderneta antes. Não era de imaginar
que ele teria orgulho de mim, que sei lidar com números e
contabilidade? Pois se ele me visse lendo, franzia a sobrancelha.
Assustava-o que eu tivesse esse tipo de conhecimento. Ele era um
homem bom. No entanto, queria que eu fosse igual a ele. O sucessor
de Shamuel, pulayan de Parambil.”
Ele se sentiu culpado ao ouvir aquilo, pois Shamuel ficou orgulhoso
quando Philipose terminou o ginásio e foi para a faculdade.
Incomodava-o pensar que Shamuel media um e outro com critérios
diferentes. Embora vivessem às turras, Shamuel e Joppan se uniram
para salvar Philipose no pior momento de seu vício no ópio. Certa
manhã, pouco depois do afogamento de Elsie, com a bênção de
Grande Ammachi, e alistando Unni e Damo, eles carregaram Philipose
para fora do quarto. Damo o fisgou com a tromba e o pôs no lombo, e
Unni o segurou. Philipose sentou-se, apertado, entre Shamuel e Unni,
acompanhado de Joppan na bicicleta. Eles foram para o acampamento
madeireiro de Damo. Philipose gritou e implorou durante todo o
caminho. Dali Damo seguiu por uma trilha para o interior, até a
cabana onde Unni mantinha seus potes de pomada e as grandes limas
de metal e foices com que tratava as unhas e as plantas dos pés de
Damo. Sempre que Damodaran decidia vagar livremente pela floresta,
era naquela cabana que Unni o esperava, muitas vezes embriagando-se.
Nas seis semanas seguintes, Joppan foi e voltou de lá, mas Shamuel
permaneceu com Philipose na cabana o tempo todo, aguentando as
acusações e maldições, cuidando dele durante suas câimbras,
alucinações e febres, até que, passadas duas semanas, seu corpo livrou-
se do jugo do ópio. Mas ainda o mantiveram ali. Philipose,
envergonhado, teve longas e comovidas conversas com Shamuel que
lhe permitiram ver o que aquela pequena caixinha de madeira havia
feito com sua vida. A tentação nunca desaparecia por completo, porém,
mais do que tudo, a ideia de desapontar Shamuel, Joppan e a mãe o
mantinha no caminho certo.
“Joppan, minha mãe e eu queremos te fazer uma oferta, mas acho
que, pelo que acabou de dizer, você provavelmente vai declinar. Mas
vou falar ainda assim.” Joppan ouviu que ele e Grande Ammachi
deviam muito a Shamuel, perfeito guia na administração diária de
Parambil, sem o qual ele, Philipose, estaria perdido como ser humano
e também como administrador. “Esta é uma proposta de negócios. Não
se trata de assumir o papel de Shamuel. Queremos que você se torne o
administrador dessas terras, que tome todas as decisões em troca de
vinte por cento dos lucros da lavoura. Também pagaríamos um
pequeno salário mensal, de forma que, se tivermos um ano ruim, você
ainda teria uma renda. Se decidir plantar em alguma terra inculta, é
mais trabalho para você, mas mais lucro também.” Joppan ficou em
silêncio. “Vinte por cento dos lucros é substancial”, Philipose
acrescentou, “mas para mim vale a pena. Eu poderia escrever mais.
Não levo jeito para esse tipo de serviço.”
O silêncio foi ficando desconfortável. Joppan parecia hesitar.
“Philipose, o que vou dizer para você eu não poderia dizer para Grande
Ammachi. Eu respeito demais a sua mãe, pelo amor que ela nutria por
meu pai e que tem por mim. Vai ser difícil que vocês entendam, mas
vou dizer mesmo assim. Esse dinheiro na caderneta…?” Ele fez uma
pausa, estudando Philipose.
“São muitas vacas?”
Joppan assentiu. “Sim. Mas… são bem menos vacas do que meu pai
merecia. Se pensar em como meu avô ajudou seu pai a limpar todos
esses hectares de terra. Se levar em conta como meu pai labutou aqui
desde criança até o dia de sua morte. A vida toda! E, no fim, o que ele
tem? Sim, muitas vacas. E o próprio terreno de sua cabana — coisa rara
para um pulayan. No entanto, imaginemos que ele não fosse um
pulayan, mas um primo de seu pai. Digamos que ele tenha trabalhado
lado a lado com seu pai. Então, depois que seu pai se foi, digamos que
ele tenha continuado trabalhando abnegadamente por Grande
Ammachi e por você ao longo de mais trinta anos. Todos os dias! O que
esse primo receberia por uma vida inteira de trabalho? Não seria muito
mais do que a soma nessa caderneta? Talvez chegasse a ser metade
dessas terras.”
A saliva amargou na boca de Philipose. “É isso que você está
pedindo?”
Joppan olhou para Philipose com irritação — ou era pena? “Não
estou pedindo nada. Foi sua mãe que me chamou. De outra forma eu
nem ficaria sabendo dessa caderneta. E depois você me chamou para
conversar, lembra? Agora há pouco avisei que não ia ser fácil me ouvir.
Vocês dois disseram a mesma coisa: o quanto deviam a meu pai. Ele era
da família. Estou falando com você como meu melhor amigo, como
alguém que fala pelo Homem Comum. Achei que talvez você
realmente quisesse entender a verdade. E a verdade é que nem todo
mundo vê as coisas como você e Grande Ammachi veem. Se dessem a
esse parente de vocês que trabalhou a vida toda aqui a mesma
recompensa — um terreno para uma cabana e os salários
economizados —, as pessoas diriam que ele foi explorado. Mas é para
Shamuel, o pulayan… Então é generosidade. O que vemos como
generosidade ou como exploração tem tudo a ver com o destinatário do
gesto. Com meu pai, era mais fácil, pois ele acreditava que fosse seu
destino ser um pulayan. Ele se achava bem-aventurado por trabalhar
em Parambil! Se sentia rico no fim da vida, com salários guardados, um
terreno para sua cabana e outro para o filho e agora mais um.”
Philipose tinha a sensação de ter trombado num galho de árvore que
ele não tinha visto. A palavra “exploração” o feria. Doía-lhe sentir que
se aproveitara de Shamuel, um homem por quem estava disposto a
morrer. Pensava em si mesmo e em Parambil como um lugar livre de
castas, acima desse tipo de consideração. No entanto, só tinha que
olhar para o rosto à sua frente e lembrar do baque da bengala do
kaniyan na carne de Joppan e da humilhação daquele garoto que
apareceu tão confiante na escolinha de Parambil.
“Porque você amava meu pai, fica mais difícil entender”, Joppan diz.
“Vocês se veem como tendo sido bons e generosos com ele. Os ‘bons’
senhores de escravizados na Índia, ou em qualquer parte, eram sempre
os que tinham mais dificuldade em ver a injustiça da escravização.
Como não tra­t avam os escravizados com crueldade, mas com bondade
e generosidade, ficaram cegos para a injustiça de um sistema de
escravização que eles criaram, que mantinham, e que os favorecia. É
como os britânicos se vangloriando pelas ferrovias, as universidades e os
hospitais que nos deixaram — a bondade deles! Como se isso
justificasse nos roubarem o direito de autodeterminação por séculos a
fio! Como se devêssemos agradecer por aquilo que nos roubaram!
Inglaterra, Holanda, Espanha, Portugal ou França seriam o que são
hoje sem o que conquistaram escravizando outros povos? Durante a
guerra, os ingleses adoravam se gabar de como nos tratavam bem,
supondo o tratamento que receberíamos caso os japoneses nos
invadissem. Mas é justo que uma nação governe outra? Isso só ocorre
quando um grupo pensa que o outro é inferior por nascimento, cor da
pele, história. Inferior, ou seja: merece menos. Meu pai não era
escravizado. Era amado aqui. Mas ele nunca foi seu igual, então não foi
recompensado como tal.” Joppan balançou a cabeça. “Alguns de seus
parentes, aliás muitos deles, ganharam terrenos generosos de alguns
bons hectares, mais do que um pulayan ganha para sua cabana. Era
terra suficiente para passar muito bem. Porém, sendo sincero, tirando o
Senhor Melhorias e alguns poucos, quem teve êxito? Imagine só se
meu pai tivesse recebido um único hectare de terra para plantar.
Imagine o que não teria feito.”
A sofisticação dos argumentos de Joppan surpreende Philipose.
Todavia apenas pensar nos argumentos dele como “sofisticados” revela
o tipo de cegueira a que ele se referia. Nesse caso, o termo “sofisticado”
implicava que pessoas como Joppan e Shamuel não tinham o direito de
se valer da história, da razão e de seus intelectos.
“Suponho que sua resposta seja ‘não’”, Philipose concluiu.
Joppan respondeu: “Amo Parambil. Não há um campo aqui onde
você e eu não tenhamos brincado, ou que eu não tenha ajudado meu
pai a cultivar em algum momento. Mas não posso amar Parambil como
ele amava. Porque as terras não são minhas. No entanto, há uma
questão maior. Você pode me chamar de administrador, e me pagar
bem, mas, para seus parentes, ainda serei o filho do pulayan Shamuel,
o pulayan Joppan. Aquele cuja esposa pulayi trança ola e varre o
muttam de Parambil. Não há muito que eu possa fazer quanto a ser
chamado de pulayan. Todavia posso escolher se quero viver como um”.
Pouco depois dessa primeira conversa, Philipose voltou com uma
segunda proposta: dariam a Joppan oito hectares de terra
razoavelmente desbastada que nunca fora cultivada, terra que seria só
sua. A escritura seria mantida em contrato de depósito por dez anos;
durante esse período, Joppan administraria todas as terras de Parambil,
ganhando vinte por cento dos lucros, mas sem um salário mensal.
Depois de dez anos, ele poderia se desobrigar, ou poderiam negociar
um novo contrato para mais lotes. Joppan ficou surpreso: ele teria mais
terras do que qualquer um dos parentes de Philipose.
Joppan abriu seu famoso sorriso. “Philipose, se meu pai ouvisse isso,
diria que você enlouqueceu.” Disse que precisava de um drinque e
pegou uma garrafa de áraque. “Sua oferta significa que me ouviu. Que
me entendeu, por mais doloroso que tenha sido. É muito generosa.
Pode ser que eu me arrependa depois, mas vou recusar.” E tomou um
grande trago. “Trabalhei tantos anos com Iqbal, atravessando tempos
difíceis. Incontáveis noites dormindo na barcaça, olhando as estrelas e
sonhando com uma frota que possa se mover em um quarto do tempo
que se leva hoje. Sim, sofremos um revés com a lancha motorizada. O
problema não eram os jacintos-de-água emaranhando-se às hélices, mas
as burocracias. No entanto, estamos chegando lá. Mesmo se eu
fracassar, preciso tentar. Se desistir de meu sonho, algo em mim vai
morrer.”
Philipose sentira-se encolher, relembrando seus sonhos antes de ir
para Madras, os sonhos quando conheceu Elsie, quando casaram,
quando ela partiu e voltou. Foi sua vez de engolir um belo trago para
anestesiar a dor. Ouviu sem interesse Joppan falar a respeito do
“Partido” — que significava, sempre, os comunistas. Aquela palavra —
“comunista” — pode ser anátema em muitos lugares, sinônimo de
traição, mas em Travancore-Cochim-Malabar, em Bengala, e em
outros estados da Índia, os comunistas constituíam um parti­do legítimo,
concorrentes reais. Nos territórios dos falantes do malaiala, os esteios do
pc eram antigos membros do Partido do Congresso que se sentiram
traídos quando o Congresso chegou ao poder e cedeu aos interesses dos
grandes proprietários de terras e dos industriais. Os membros do pc não
eram apenas os pobres e excluídos, mas também intelectuais e
estudantes universitários idealistas (geralmente de castas superiores)
que viam a sigla como o único grupo disposto a desfazer os privilégios
de casta enraizados. Naquele ano em que Shamuel morreu — 1952 —,
o Partido Comunista conquistou vin­te e cinco as­sentos, e o Congresso,
quarenta e quatro. A fusão do Malabar com Travanco­re-Cochim para
formar o estado de Kerala era iminente e traria novas eleições.
“Pode escrever”, dissera Joppan ao se despedirem naquela noite, “um
dia Kerala será o primeiro lugar do mundo onde um governo
comunista terá sido eleito por meio de uma votação democrática e não
pela revolução sangrenta.”

Enquanto Philipose relembra essa conversa de quase uma década


atrás, é forçado a reconhecer que Joppan estava certo: poucos anos
depois, o Partido Comunista conquistou a maioria dos assentos em
Kerala, constituindo o primeiro governo comunista democraticamente
eleito do mundo.
60. A revelação do hospital

a convenção de maramon, 1964

Malaialas de todas as religiões duvidam de tudo, menos de sua fé.


Todos os anos a necessidade de renová-la, de renascer, de beber de
novo da fonte, leva os cristãos malaialas ao grande encontro de
fevereiro: a Convenção de Maramon. A família de Parambil não é
exceção.
Desde a primeira convenção em 1895, que aconteceu sob uma tenda
no leito seco do rio Pamba, multidões cada vez mais numerosas têm
comparecido a esse evento. O primeiro microfone, presente do
missionário norte-americano E. Stanley Jones, surgiu apenas em 1936.
Até então, “mestres repetido­res”, dispostos a intervalos regulares em
tendas-satélites, transmitiam a palavra do orador às multidões nas
margens do rio. Mas era da natureza malaiala que os repetidores
tomassem como dever cristão questionar e aperfeiçoar a mensagem
traduzida. Em certa ocasião, a advertência de E. Stanley Jones de que
“preocupação e ansiedade são areia no maquinário da vida, e a fé é o
óleo” chegou às barracas de cerâmicas como “Ah, homens de pouca fé,
sua cabeça está cheia de areia, e não há óleo em seu lampião”, o que
quase provocou um tumulto.
Da transmissão humana, a convenção passou ao excesso de
amplificação — pelo menos é o que parece ao reverendo Rory
McGillicutty, de Corpus Chris­ti, nos Estados Unidos das Américas, ao
ver homens escalando palmeiras para pendurar outra leva de alto-
falantes. Enquanto espera nos bastidores, seus tímpanos são ameaçados
por sons de retorno e estrondos semelhantes a tiros de rifle que botam
os vira-latas para correr, deixando rastros de urina na areia. O eletricista
ceceia: “Tessstando umdoissstrês, kekamo?”. Sim, pode ser ouvido lá
atrás e mesmo para lá do estreito de Palk, no Ceilão.
Os olhos do reverendo estão tão sobrecarregados quanto os ouvidos.
A começar pelo primeiro vislumbre da massa humana e daquela cidade
de tendas infinitas. Sentiu-se um gafanhoto solitário numa praga
bíblica, lutando para acompanhar o chemachen compenetrado que o
escoltava. Aquela multidão apequenava qualquer aglomeração que ele
tivesse visto na Feira Estadual de Tulsa ou mesmo naquela do Texas. As
pessoas estavam ali para ouvir a Palavra e apertavam suas Bíblias contra
as vestes brancas, não se deixando distrair pelas barracas de comida ou
bijuterias. Tampouco pelos shows de mágica ou o Globo da Morte —
um grande hemisfério escavado na terra, com paredes numa lisura
perfeita, no interior do qual dois motociclistas com os olhos delineados
com kohl se perseguiam um ao outro numa velocidade aterradora,
desafiando a gravidade, subindo à borda da cavidade e pondo-se quase
em paralelo ao chão sobre o qual os espectadores os assistiam.
O reverendo ficou extremamente chocado com a guarda de honra
dos aleijados que ladeavam o acesso ao palco. Leprosos de um lado,
não leprosos do outro — para estes, não havia outro denominador
comum que não o sofrimento. Entre eles havia crianças que mal
poderiam ser reconhecidas como crianças: uma delas tinha os dedos
fundidos, o rosto semelhante a uma panqueca, olhos onde deveria
haver orelhas, enfim, um peixe exótico. O chemachen disse que elas
foram mutiladas na tenra infância para serem exibidas por toda a Índia.
“Mas”, dizia ele, “são indianos do Norte”, como se fosse um consolo
que mitigasse o horror. Agora, esperando nos bastidores, McGillicutty,
ner­voso, sente-se uma mosca presa num pote de visgo. Tampouco ajuda
o fato de que está lá para substituir de última hora o reverendo William
Franklin Graham, o célebre Billy Graham. Mas mesmo assim sua
maior preocupação é o tradutor.
É uma preocupação legítima. Se a medida da fluência no inglês é a
capacidade de regurgitar uma frase mal memorizada de um manual de
ensino básico, como Por que o cao isstá saeguindo o sinhor?, então
muitos se sentem qualificados. Afinal, argumentam que para traduzir só
é necessário que se fale com fluência o malaiala, não o inglês. Mesmo
o achen formado na Yale Divinity School provou-se um tradutor
desastroso, pois se comportava como se as palavras do orador traíssem
sua tradução.
Rory não precisava se preocupar; a convenção contava com um
tradutor experiente, descoberto pelo bispo Mar Paulos num evento
beneficente em certa vila alguns anos atrás, onde testemunhou o dito
tradutor atuar como intérprete para um especialista em grãos de
Coralville, Iowa, América. Traduzia com fidelidade as palavras do
palestrante, evitando chamar atenção para si mesmo.

Na manhã da convenção, esse tradutor veterano estava sentado


diante do espelho, aparando seu bigode em forma de lagarta.
Posicionado abaixo do nariz e a um quarto de polegada acima do lábio
superior, o bigode, emancipado, não jurava lealdade a nenhum dos
dois. Para um homem malaiala que já passou da puberdade, a ausência
de bigode não é viril. As opções são inúmeras: bigode escovinha;
sargento-major, com pontas para cima; brigadeiro, com pontas para
baixo; bigode cheio; bigodinho fascista… O segredo para o bigode de
lagarta é achegar-se ao espelho, inflar o lábio superior e usar a lâmina
pinçada entre o polegar direito e o indicador, enquanto a mão esquerda
estica a pele. Com minúsculas raspadas de cima para baixo, define-se a
margem superior e — mais decisivamente — a inferior. Se fosse
escrever um manual, o redator diria que a faixa de pele raspada abaixo
do bigode, que o separa da borda avermelhada do lábio superior, é a
chave de tudo.
Shoshamma observava o marido trabalhando meticulosamente
aquelas margens e disse, como provocação: “Acho que sobrou um
pelinho solto à esquerda no bigode do Senhor Melhorias” — e nisso o
homem acaba se cor­t ando de leve.
“Mulher, por que a zombaria? Viu o que fez?” Ela se desculpa, mas
continua com risadinhas. Ele bate no peito. “Você não tem ideia da
paixão que arde aqui dentro! Paixão!” Ela dá de ombros e se retira.
Paixão sem o escape conjugal normal, devido à sua cabeça dura! Foi
culpa dele, que jurou esperar que ela desse o primeiro passo. E segue
esperando.
O ônibus que tomaram estava tão lotado que pulou as paradas de
sempre. Perto de Changanur, uma figura familiar desafiou a morte
saltando para dentro do veículo, dizendo: “Meu bilhete é tão bom
quanto o de vocês! Aqui não tem sistema de castas!”. Lênin tinha
catorze anos. Fora despachado para um internato religioso de regras
duríssimas aos dez. Viram-no nas últimas férias, mas agora ele já estava
mais alto, com um tênue bigode e um pomo de adão protuberante.
Mas seu couro cabeludo parecia ter sido pastado por um bode, o rosto
exibia machucados. O rapazote ficou felicíssimo ao vê-los.
“Um desentendimento com meus colegas de classe”, ele explicou.
“Eu sou o encarregado das refeições do dormitório. Decidi dar nosso
biryani de domingo para os famintos em frente à igreja.”
“Aah. E seus colegas estavam preparados para jejuar?”
“O sermão de domingo foi Mateus 25. ‘Pois eu estava com fome, e
vocês me deram de comer.’ Bem significativo para mim. Depois, no
grupo de estudos bíblicos, meus piedosos colegas juraram viver de
acordo com esses princípios. Então…”
Shoshamma disse: “Monay, você conhece o dito Aanaye
pidichunirtham, aseye othukkinirthaan prayasam”. Mais fácil controlar
um elefante do que controlar o desejo!
O Senhor Melhorias lançou um olhar para a esposa. Era uma
indireta?
“Verdade, Kochamma. Ainda assim, que hipócritas! O que Jesus diria
quando a gente tem comida em casa e os vizinhos passam fome? Se Ele
voltar, não acha que votará nos comunistas?”
Um homem atrás de Lênin gritou: “Blasfêmia infame! Cristo
votando nos comunistas?”. O Partido tinha feito história e conquistado
muitos eleitores, mas poucos deles estariam num ônibus rumo à
Convenção de Maramon. No bate-boca que se seguiu, o ônibus freou
bruscamente e Lênin saiu. Ria, sacudindo os braços e girando a pélvis
como um herói de Bollywood, antes de escapulir a toda velocidade.

Devido à acne dos tempos de juventude, o rosto de Rory


McGillicutty é cheio de marcas, como uma jaca, e ele próprio é
robusto como uma jaqueira. Tem uma espessa cabeleira em que cada
folículo parece ter sido martelado como um prego de ferrovia, mas ele
ainda não foi apresentado ao Óleo Brahmi de JayBoy, então seu cabelo
se mostra selvagem e desgrenhado. É um milagre que um homem que
cresceu pescando nas planícies da baía do Aransas, no Texas, tenha
terminado como pescador de almas na vila de Maramon, em Kerala, na
Índia.
Ao se encontrar com Rory nos bastidores, o Senhor Melhorias fica
preocupado: o orador não trouxe um texto pronto, nem notas, nem
identificou os versículos bíblicos que vai citar. A preocupação de Rory é
diferente. Ele acabou de ouvir o discurso monótono de um bispo cujo
único gesto expressivo era um vacilante erguer de dedo, como uma
criança cutucando o nariz de um mastim. Mas o público sorridente
parece não ter se incomodado. Seu estilo, como ele agora explica ao
tradutor, é o oposto. “Quero que meus ouvintes sintam o cheiro do
cabelo chamuscado, o calor dos fogos eternos da danação. Só então se
pode apreciar a Salvação, entende?”
O Senhor Melhorias soergue as sobrancelhas, alarmado, embora seu
gesto de cabeça possa significar sim ou não. Ou muito pelo contrário.
“É verdade e dou fé”, diz McGillicutty, “porque vivi isso. Ainda
estaria na sarjeta se não tivesse sido salvo pelo sangue do Cordeiro.”
Esse estilo que evoca fogo e enxofre faz sucesso no sul dos Estados
Unidos; no norte, vai bem até Cincinnati. Triunfou em Cornwall, na
Inglaterra, daí seu convite de última hora para a Índia. Rory não tem
outro recurso: seu estilo é sua mensagem. Ele agarra os ombros do
Senhor Melhorias, olhando-o com muita seriedade. “Meu amigo,
quando você traduzir, precisa comunicar fisicamente minha paixão. De
outra forma, será um fiasco.”
O Senhor Melhorias tem suas dúvidas. “Reverendo, faça o favor de
lembrar que estamos em Kerala. Na Convenção de Maramon não
falamos em línguas. Isso é coisa dos pentecostais. Aqui, somos…
sérios.”
A expressão de McGillicutty é de desolação. Ele não é de falar em
línguas, mas, quando o Espírito Santo leva uma alma sensível a
tagarelar, quem é ele para se opor? Uma visão assim pode transformar
uma tenda inteira de pecadores.
“Bem… Dê seu melhor, combinado? Tente imitar meu tom, meus
gestos. Paixão! É paixão que eu quero!”
Um chemachen avisa que eles são os próximos, depois do coral.
McGillicutty retira-se a um canto.

O Senhor Melhorias o observa. Que descarado esse cara de jaca, sem


roteiro! Mas logo se compadece ao vê-lo se ajoelhar, curvando a cabeça
para fazer uma oração. Aquilo não devia nem surpreender nem
amolecer o Senhor Melhorias, mas é o que acontece. Sente-se um
hipócrita — não acabou de fazer um sermão sobre paixão para
Shoshamma? Quando McGillicutty se levanta, o Senhor Melhorias
põe a mão nos ombros daquele branco — algo que nunca fez na vida.
“Não se preocupe. Darei o meu melhor. A paixão se fará presente. Em
grande parte. Na medida do possível.” O alívio de McGillicutty o
convence de que agiu como um bom cristão. O reverendo lhe dá um
tapinha nas costas e em seguida se serve de uma garrafa de metal,
oferecendo um copo ao tradutor. No primeiro gole o Senhor Melhorias
chega a um novo entendimento do visitante, que o incita a beber tudo.
Rory vira um copo e suga o ar entre os dentes. O Senhor Melhorias
sente um “não sei o quê” feroz no peito. A paixão em seu interior se
infla. Está um pouco de ressaca, verdade seja dita, e a tal garrafa do
reverendo foi uma intervenção divina. Eles bebem outro copo cheio. O
Senhor Melhorias não se sente apenas bem: nunca esteve melhor. Sua
trepidação inicial desapareceu. Relaxa os ombros e diz a si mesmo: Se
McGillicutty fracassar, não será por falta de um bom tradutor.

Um murmúrio percorre a multidão ansiosa: um pastor branco


estrangeiro sempre desperta interesse, mesmo não sendo Billy Graham.
Continuamos escravizados, mesmo depois de livres, pensa o Senhor
Melhorias. Supomos que a mensagem de um branco seja melhor do que
a mensagem de um dos nossos.
McGillicutty é anunciado, e os dois sobem ao palco. O silêncio é
total.
O reverendo abre com uma piada longa e complicada. No desfecho,
ergue as mãos aos céus, fala bem alto e volta-se para o público. Muitos
milhares de faces sem expressão o olham. Vermelho dos pés à cabeça,
vira-se para o tradutor, com olhos suplicantes.
O Senhor Melhorias alisa o cabelo oleoso. Corre os olhos pelo
público, confiante, até com certo desdém. Expõe-se ao escrutínio por
um bom tempo. Então os interpela, como se fossem íntimos.
“Meus sofridos amigos. Querem saber o que acabou de acontecer? O
alto reverendo Sahib Mestre-Rory Kutty contou uma piada. Para dizer a
verdade, fiquei tão surpreso que não posso lhes dar os detalhes. Quem
espera uma piada na Convenção de Maramon? Digamos apenas que
envolvia um cachorro, uma velha senhora, um bispo e uma bolsa…”
Alguém na ala das mulheres dá uma risadinha aguda, seguida pelo riso
das crianças. Agora, ondas de riso se espalham em resposta à audácia do
Senhor Melhorias.
“A piada não é tão engraçada quanto pensa o reverendo. Além disso,
alguma senhora em Kerala anda com bolsa? No máximo algumas
moedas enroladas num lenço, não é? Mas, por favor, não vamos
desapontar um convidado que veio de tão longe. Abençoados os que
riem das piadas de uma visita. Não é o que se diz nas Bem-
aventuranças? Aah. Então, quando eu contar até três, todo mundo, por
favor, ria — e falo especialmente às crianças sentadas aqui na frente,
mestres em artimanhas e em fingir santidade para os pais, pois esta é a
chance de vocês. Finjam agora, com a bênção do Senhor. Um, dois…
três!”
McGillicuty fica animadíssimo. A velha, o bispo e a bolsa não
deixaram a desejar em lugar nenhum, de McAllen a Murfreesboro — e
agora em Maramon. E se saíram melhor em malaiala do que em inglês!
O reverendo faz cara séria e ergue a mão, pedindo silêncio. O
Senhor Melhorias, sua sombra amorenada, imita sua postura.
McGillicutty curva a cabeça, a mão ainda no ar. “Meus irmãos e
irmãs, é como pecador que me apresento diante de vocês…”
O Senhor Melhorias traduz: “Acabaram as piadas, graças a Deus. Ele
disse: ‘É como pecador que me apresento diante de vocês’…”.
Um murmúrio de apreciação se espalha pela multidão.
“Apresento-me diante de vocês como um adúltero… Um
fornicador.”
“Apresento-me diante…” A voz do Senhor Melhorias empaca. Seu
estômago está como naquela vez em Madras, quando teve disenteria.
Se usar a primeira pessoa para traduzir o que McGillicutty disse, não
vão pensar que ele é o fornicador, o adúltero? Procura Shoshamma na
multidão.
O reverendo, os olhos inquietos fixos no tradutor silencioso, diz:
“Amigos, eu não sou de suavizar minhas palavras. Um fornicador, eu
disse. Um homem que dormia com toda mulher da vida e com outras
que, não sendo mulheres da vida, depois de mim, passaram a ser. Eu
era essa pessoa”.
Os bispos e pastores nas fileiras da frente, que entendem inglês muito
bem, entreolham-se com certo nervosismo.
O Senhor Melhorias sorri sem graça para McGillicutty, depois para a
multidão, enquanto tenta desesperadamente organizar seus
pensamentos. “O reverendo disse: Amigos, minha Igreja lá do outro
lado do oceano é grande. Enorme. No entanto nunca vi tanta gente de
fé quanto vejo aqui hoje. E fico contente que o Senhor Melhorias
esteja aqui traduzindo para mim. Sua reputação se estende de
Maramon até minha cidade natal. Foi por isso que eu mesmo pedi que
fosse ele meu tradutor. Obrigado, Senhor Melhorias”.
O tradutor agradece com a cabeça, modesto. Em seguida, olha para
McGillicutty ansioso, tentando antecipar o que está por vir. Quando o
homem pega ritmo, sua boca se escancara a ponto de quase engolir a
própria cabeça.
“O número de pessoas com quem preciso me desculpar, o número
de pessoas que desviei do caminho certo”, diz o reverendo, desenhando
um longo arco com a mão, “estende-se desse lado da multidão àquele.”
Os olhos do Senhor Melhorias seguem a mão do reverendo, e ele vê
uma mulher na terceira fileira tombar, esmagada pela umidade e pelo
calor; ele reconhece Grande Ammachi como a primeira a socorrê-la,
abaixando e abanando a mulher desmaiada com o programa impresso
da convenção. E, bem ao lado da tenda, parece que há uma criança
sofrendo uma convulsão. Adultos aglomeram-se ao redor dela.
O tradutor faz o mesmo arco com a mãos: “Quando olho daquele
lado do rio para este, penso em todas as pessoas aqui nesta linda terra
que sofrem de doenças raras, ou de câncer, ou que precisam de
cirurgião cardíaco, e que não têm aonde ir… Bem, isso me perturba, e
eu preciso falar disso”.
“Parti o coração de minha mãe quando conheci carnalmente minha
própria babá!”, diz o reverendo, apertando o próprio peito. “Uma
mulher inocente do campo. Fui ninado em seu colo, no entanto me
aproveitei dela aos treze anos.”
O Senhor Melhorias, quase sem esperar Rory terminar, aperta o
peito e diz: “Se uma criança nasce com um buraco no coração, como o
filho de nosso Papi, e precisa de operação, aonde ela pode ir?”. Ele
acabou de inventar esse tal de Papi e o filhinho, mas é em nome do
Senhor. “Aquele pobrezinho tinha dez anos e estava mais azul do que
marrom quando Papi arrecadou o dinheiro para levá-lo a outro estado,
até os confins de Vellore, para o Christian Medical College… Mas
então já era tarde demais!”
Agora McGillicutty surpreende seu tradutor ao descer do palco e se
dirigir a um grupo de crianças que estão ali sentadas, de pernas
cruzadas. Puxa uma delas. O camaradinha desengonçado é todo
ouvidos, joelhos e cotovelos, e tem um buraco nos dentes tão grande
que se pode passar um poste de tenda entre eles. O Senhor Melhorias o
reconhece como um dos desgraçados, um potten — nascido surdo-
mudo — que sempre ganha lugar de honra bem na frente. Mais cedo,
esse menino foi quem riu mais alto e foi o último a parar. O Senhor
Melhorias sempre o vê na convenção, ano após ano, pois os pais torcem
por um milagre. Essa criança nunca falou uma palavra inteligível. Que
azar do reverendo escolher logo o potten entre tantas!
“Quando fui pai”, diz o reverendo, agora de volta ao palco, junto
com o potten sorridente, “abandonei meu próprio filho, da idade deste
anjinho. Ele passou fome. Meus sogros tinham de levar comida, pois
eu gastava meus salários com jogo e mulheres!”
A mulher que desmaiou sai carregada. O Senhor Melhorias vê que
Grande Ammachi o encara, animada e ansiosa. Ele diz: “Por que uma
criança tão seriamente doente precisa viajar para Madras ou mais longe
ainda para ser tratada? E se houvesse socorro disponível aqui mesmo?
Não estou falando de uma clínica minúscula com um único médico e
uma vaca na porta de entrada. Estou falando de um hospital de
verdade, de muitos andares, com especialistas para o topo da cabeça e a
sola dos pés, e tudo que vai no meio. Um hospital tão bom quanto
qualquer outro do mundo. Se uma missionária branca, Ida Scudder,
que Deus a abençoe, pôde construir uma instituição de primei­ra classe
em Vellore, no meio do nada, não podemos nós, cristãos, construir algo
semelhante nessa terra de leite e mel?”.
“Só um demônio pode negligenciar uma criança como esta para ir
beber uísque e deitar com prostitutas”, disse o reverendo, a voz
falhando. “Mas, então, um dia, quando eu me encontrava deitado na
sarjeta em Corpus Chris­ti, no Texas, o Senhor me chamou. Ele
ordenou: ‘Diga meu nome!’, e eu disse: ‘Jesus, Jesus, Jesus!’.”
O Senhor Melhorias traduz: “Amigos, esta não é a mensagem que eu
pretendia pregar, mas parece que o Senhor me trouxe lá do Corpo de
Cristo no Texas e pôs essas palavras em minha boca para que fossem
comunicadas a vocês. Ele diz: Atentem ao sofrimento à sua volta! Ele
diz: Não é hora de mudar isso? Ele pergunta: Vocês precisam mesmo
de outra igreja? Ele diz: Glorifiquem meu nome com um hospital que
me faça justiça. Eu ouço sua voz tal como ouvi muitos anos atrás,
quando eu era um homem perdido, um pecador caído na sarjeta, e o
Senhor apareceu diante de mim e me chamou e disse ‘Diga meu
nome!’, e eu disse: ‘Yesu, Yesu, Yesu!’”.
A multidão está mortalmente silenciosa. O único som que se escuta
é o grasnar dos corvos perto das barracas de comida. Rory McGillicutty
e o Senhor Melhorias esperam, ambos torcendo para que o público
responda com “Jesus, Jesus, Jesus”. Mas o esquema pergunta e resposta
não é bem o estilo dos malaialas. O Senhor Melhorias acha que a
multidão não o olha com muita simpatia. Querem que eu fracasse.
Shoshama vai morrer de rir. Só Grande Ammachi o observa com
esperança, acenando com a cabeça para encorajá-lo. Estou dando o
meu melhor, Ammachi! Sente-se péssimo quando a desaponta.
De súbito o potten quebra o silêncio, dizendo com a voz alta e sem a
modulação dos surdos: “Yesu! Yesu! Yesu!.”
McGillicutty se apressa a colocar o microfone na boca do menino,
de forma que o “Yesu” do potten reverbera pela tenda e além. Rory se
curva para o garoto, dispensando o tradutor. “Diga de novo, filho, diga
Yesu, Yesu, Yesu”, ele grita.
“Yesu! Yesu! Yesu!”, grita o potten, feliz que suas palavras virem
ondas sonoras que lhe fazem tremer o corpo. Ele ouve! Fala! Dança de
alegria. Há um crescendo de murmúrios da multidão quando, das
fileiras da frente para o fundo, depois para as tendas-satélites e para os
que estão de pé mais além, para os vendedores de bijuterias, e os
mendigos, e os motociclistas malucos: Um potten acabou de falar pela
primeira vez! Um milagre!
“Digam com ele, meus amigos”, McGillicutty grita, seu rosto
vermelho do esforço, tentando insuflar vida na multidão dócil. “gritem
dos telhados: Jesus! Jesus! Jesus!” Mas apenas o potten obedece,
gritando: “Yesu! Yesu! Yesu!”.
“Aah”, diz o Senhor Melhorias, indignado com essa reserva reticente
malaiala. “Então Deus acabou de dar voz ao mudo. Um milagre!
Agora, por meio de Seu mensageiro, esse toco de plavu de Corpo de
Cristo, Texas, Deus lhes pede um sinal de sua atenção. Ele pergunta:
Vocês estão ouvindo? Vocês estão aqui para receber o Espírito Santo?
Para serem purificados e renovados em sua fé? Ou têm vergonha de
gritar o nome do Senhor? Vocês estão aqui para passear e fofocar e ver
quem engravidou, e qual rapaz está sendo proposto para qual
mocinha?” Há um riso nervoso vindo da ala das crianças. O Senhor
Melhorias percebe uma oportunidade e se vira para elas. “Então
fiquem aí sentados. Deixem suas crianças mostrar a vocês o que é fé e
coragem. Crianças abençoadas, por favor, mostrem a esses adultos
como é que se faz. Vocês viram a coragem de um dos seus que está ali
em cima. Apoiem-no! Digam: ‘Yesu! Yesu! Yesu!’.”
Abençoadas as crianças, pois nunca dispensam uma autorização para
desmascarar os pais. Põem-se de pé aos gritos, e centenas de vozes
gritam: “Yesu, Yesu, Yesu”, um som que vai direto aos ouvidos de Deus.
O Senhor Melhorias estende as mãos, as palmas para cima, apontando
para a ala infantil, enquanto mira os adultos com um olhar cheio de
intenções. Estão vendo? Então ele diz: “Por isso Cristo disse ‘Deixem as
crianças, e não lhes proíbam de vir a mim, porque o Reino do Céu
pertence a elas’. Agora vocês podem gritar também? Yesu, Yesu, Yesu!”.
As mulheres, as mães, erguem-se e emprestam sua voz: “Yesu, Yesu,
Yesu!”. Que alternativa têm os maridos? Os homens se erguem: “Yesu,
Yesu, Yesu!”. Os bispos e pastores, modelos de reticência e decoro
cristãos, ficam numa sinuca de bico, pois há algo de profano naquela
paixão desmedida, sem falar na tradução bizarra. Mas como poderiam
se manter calados quando o nome do Salvador está sendo celebrado?
Juntam-se ao coro. “Yesu, Yesu, Yesu!”
Fervor semelhante nunca se vira naquela plácida convenção. A
multidão está embriagada de sons e não consegue parar. O Senhor
Melhorias sente os pelos da nuca se arrepiarem. Glória, glória, glória!
O Espírito Santo certamente está aqui. Ele corre os olhos pela
multidão em busca do rosto de Shoshamma. Agora você vê a paixão? O
reverendo pisca para ele.
Depois de um longo tempo, o canto é substituído por uma explosão
de palmas, a multidão aplaudindo a si mesma. O potten é recebido de
volta na ala infantil como se fosse Jesus voltando a Jerusalém, e seus
colegas o erguem no ar, celebrando. O público volta aos assentos,
sorrindo, todos chocados por terem rompido com o tradicional decoro.
“Meus amigos, meus amigos”, diz McGillicutty. Ele toma como
texto Mateus vinte e cinco, trinta e três, apontando-o para o Senhor
Melhorias. “O Senhor medirá nossas vidas no Dia do Juízo, e meus
queridos amigos…” McGillicutty mantém a Bíblia aberta contra o
peito e aproxima-se da borda do palco, com cara de quem está prestes a
chorar. Apoiando-se sobre um joelho, aponta o dedo trêmulo na
direção do céu. “Marquem minhas palavras: teremos que responder a
Ele!”
O Senhor Melhorias acha que aquilo é a prova de que o Espírito
Santo está presente, pois McGillicutty recorreu à mesma citação que
Lênin. Também agarrando-se à Bíblia, ele se apoia sobre um joelho,
não sem antes erguer um pouco o mundu. E traduz: “Deus senta-se em
uma kasera de ouro, como a que vocês têm em suas varandas, só que
mil vezes maior. Ele medirá nossa vida no Dia do Juízo. Se o Senhor
permitir que vocês entrem em Seu reino, será kappa e curry de meen
todos os dias. Mas, se não permitir, vocês irão para aquele outro lugar.
Lembram-se daquele poço abandonado naquela propriedade onde ‘não
sei quem’ caiu, e não havia corda que chegasse ao fundo?”. (Ele tem
certeza de que todo mundo ali tem uma versão daquela tragédia.)
“Aquela profundeza não é nada em comparação ao lugar para onde
vocês irão. As serpentes que vivem lá procriaram com humanos
decaídos por tanto tempo que o local é ocupado por criaturas com
presas, mãos humanas com garras nas pontas, e corpo de serpente.”
Ele não tem ideia de onde essas palavras possam estar vindo que não
do Espírito Santo. Avista Kurian, o vendedor do coco, entre o público,
os olhos brilhando em sua direção, os braços cruzados contra o peito, e
continua, antes que McGillicutty possa prosseguir: “Digamos que você
está lá por ter estocado coco e aumentado o preço, pense em como será
viver com aquelas cria­turas te mordendo e te rasgando a carne,
enrolando-se em você por toda a eternidade”.
Há certo espanto na plateia — ele foi longe demais. Ninguém jamais
falou com imagens tão vívidas na Convenção de Maramon. Por outro
lado, não há muita simpatia pelos que estocam coco.
“Deixem-No entrar, meus irmãos. Ele está batendo à sua porta”,
McGillicutty diz, numa voz apaixonada, lágrimas nos olhos. “Abram
vosso coração para o Senhor. Agasalhem seu vizinho. Confortem-no na
tristeza. Lembrem-se do que se diz em Mateus: ‘Pois tive fome e me
destes de comer. Estive doente e me visitastes…”
Dessa vez o Senhor Melhorias traduz palavra por palavra e
acrescenta: “Ano após ano, quando nossos entes queridos adoecem, nós
os levamos de ônibus e de trem para bem longe, em busca de ajuda, e
isso só se tivermos dinheiro. Ano após ano, nossos entes queridos
entregam a alma porque fal­t a um hospital como o de Vellore aqui em
Kerala! Juntos poderíamos construir dez hospitais de primeira classe,
mas gastamos dinheiro ampliando nossos estábulos! O Senhor diz:
‘Construam meu hospital!’. Vocês não ouviram? Vocês não gritaram o
nome d’Ele? Façamos história. Que cada um de vocês tire aquelas
cédulas de seus bolsos”. O Senhor Melhorias puxa um maço de notas
da dobra do mundu. É dinheiro da venda do arroz, dinheiro que tinha
que depositar. “Minha esposa me pediu que doasse com generosidade!”
Ele põe as notas uma por uma na cesta de doação sobre o palco, para
que as pessoas possam ver. Em algum lugar na multidão, tem certeza
de ouvir Shoshamma engasgando. Os assistentes lançam-se à tarefa da
coleta, passando cestas à esquerda e à direita, e mesmo os fiéis do lado
de fora da tenda, nas margens dos rios, descobrem que não podem se
retirar estrategicamente, pois assistentes com cestos bloqueiam o
caminho.
“O que estão esperando?”, diz McGillicutty, que entende muito bem
esse momento, embora não compreenda direito como seu tradutor se
adiantou. “Lembrem-se de Lucas seis, trinta e oito. ‘Deem, e será dado
a vocês; colocarão nos braços de vocês uma boa medida, calcada,
sacudida, transbordante. Porque a mesma medida que vocês usarem
para os outros, será usada para vocês.’” O Senhor Melhorias traduz o
versículo, enquanto McGillicutty saca algumas notas do bolso para
depositar no cesto.
O Senhor Melhorias pode ouvir a mente da multidão trabalhando,
influência de Tomé, que duvidava. Aah, onde ficará esse hospital? Aah,
qual a pressa? Por que o governo não faz isso? Por quê?
Os pais do potten sobem ao palco com o filho. A mãe tira as pulseiras
e o colar de ouro do pescoço e os deposita na cesta que Rory aproxima.
O pai oferece sua corrente. McGillicutty grita: “Deus os abençoe!”.
Depois, para espanto do Senhor Melhorias, vem Grande Ammachi,
sozinha, surpreendendo sua família, que continua sentada. Põe-se de pé
ali, uma figura pequenina no palco, e desenrosca seu kunukku de cada
orelha. A seguir, desata a corrente. Agora sua neta de treze anos,
Mariamma, bem como Anna Chedethi, correm para se juntar a ela,
oferecendo pulseiras e colares.
O Senhor Melhorias diz: “‘Vocês serão medidos com a mesma
medida com que vocês medirem’. Entendem? O Espírito Santo a tudo
observa! Nada ofereçam agora, e nada colherão para sempre. Nada!”.
Agora uma fila se forma para ir ao palco, como se, em vez de
oferecer ouro, fossem pegá-lo. Para espanto do clero, homens e
mulheres põe-se a tirar ouro das orelhas, dedos e pulsos… Nesse
momento ninguém se contém. Pois, se há uma coisa que os malaialas
temem, é ficar de fora no dia da colheita.
61. O chamado

parambil, 1964

“Um milagre!”, diz Grande Ammachi, enquanto esperam o ônibus


que vai levá-los para casa. Inconscientemente leva as mãos às orelhas,
estranhando a leveza pouco habitual. “Rezei por uma clínica em
Parambil por muitos anos. Hoje, o Senhor interveio através da pessoa
de nosso Senhor Melhorias. Haverá não apenas uma clínica, mas um
hospital em Parambil. Como o de Vellore!”
Philipose tem suas dúvidas. “Mas, Ammachi, não temos por que
acreditar que, se de fato construírem um hospital, será em Parambil…”
“Será!” Ela se volta para encará-lo, e sua expressão exibe tamanha
certeza e determinação que Philipose se cala. “Temos que fazer tudo
para que seja! Em Parambil!”

No ônibus, Mariamma estuda sua avó com orgulho e admiração.


Grande Ammachi nunca esteve tão empolgada. A garota não acredita
no que viu no palco, e em quão comovida ela própria ficou, tomada
pela excitação geral. Aquelas emoções estão misturadas ao prazer de ver
Lênin, que com quase catorze anos passou da noite para o dia de garoto
a homem, embora de cabelos tosquiados. Ela, cujo corpo de treze anos
também mudou, notou como ele a observava. Quando veio
cumprimentá-la antes do começo da fala do pastor, ele nem sabia o que
dizer. Pergunta-se se Grande Ammachi ou seu pai perceberam.
Mas este ano a convenção foi diferente também por outra razão —
uma razão inquietante. Na chegada, quando passaram pela enorme fila
dos mendigos de sempre a caminho das tendas, a visão daquelas pessoas
a desalentou. Aquele choque diante dos aleijados e mutilados demorou-
se nela por muito tempo, mesmo depois que já haviam sentado. Agora,
no ônibus, a menina o confessa à avó.
“Antes, os mendigos simplesmente estavam ali. Uma visão
desagradável, um pouco assustadora, mas não mais do que outras coisas
desagradáveis que vemos pelo mundo.”
“Ayo! Eles são pessoas, Mariamma, não coisas.”
“É disso que estou falando, acho. Neste ano, eu realmente vi os
mendigos como pessoas. Entendi pela primeira vez que eles nem
sempre foram cegos, nem sempre foram mancos. Talvez tenham nascido
sãos, e só depois uma doença os afetou. Eu pensei: Isso pode acontecer
comigo! Fiquei com medo, abalada. Mesmo quando já estávamos
sentadas, continuei me sentindo assim.”
“Eu reparei na sua inquietação. Mas achei que era por causa do
Lênin.” Mariamma enrubesce. Grande Ammachi põe os braços ao
redor da xará, que adora a sensação daquele aconchego. “Molay, é
preciso ser alguém especial para ver aqueles pobres mendigos como
seres humanos. Muitas pessoas nunca reparam. É como se fossem
invisíveis. É um bom sinal de sua maturidade. Nós devemos, sim, ter
medo e nunca podemos descuidar de nossa saúde. Devemos rezar e
agradecer todos os dias.”
“Ammachi, quando aquela mulher teve um ataque perto da gente,
fiquei apavorada. Mal conseguia respirar. Minha vontade era sair
correndo. Mas você… você foi ajudá-la imediatamente. Eu me
envergonho disso.”
“Chaa! O que foi que eu fiz, além de deitá-la e abanar seu rosto?
Não se envergonhe.” Elas viajam em silêncio por um tempo. Grande
Ammachi diz: “Eu já vi muito sofrimento e tragédia na vida, molay. E
assisti a tudo de mãos amarradas. Quando seu avô adoeceu, não pude
fazer nada. Quando puxamos JoJo da água, se tivéssemos um hospital
por perto… quem sabe? Quando nossa Bebê Mol adoece, você sabe as
distâncias que percorremos para encontrar um médico. Foi por isso que
subi naquele palco, Mariamma. Porque não quero ficar desamparada
ou assustada. Os médicos sabem o que fazer. Um hospital pode cuidar
dos doentes. É por isso que quero um hospital mais perto de nossa
gente. Já estou velha, então isso é tudo que posso fazer.”
“Talvez fosse melhor quando eu não reparava nos mendigos”,
Mariamma declara. “Agora vou andar por aí com medo de ficar cega,
ou ter convulsões, ou ter um ataque como aquela mulher.”
“Ouça, ela desmaiou, só isso. Estava quente, talvez ela não tivesse
bebido muita água. Acontece o tempo todo. Seu pai vê sangue e fica
zonzo. Já vivi tanto que sei reconhecer um desmaio.” Depois de um
tempo, sua avó se vira e diz: “Mariamma, às vezes, no momento em
que você mais tem medo, quando mais se sente desamparada, é
justamente quando Deus está apontando um caminho para você”.
“Você se refere a querer um hospital por perto?”
“Não, estou falando de você. Seus medos. O medo vem de não saber.
Se você sabe o que está vendo, se você sabe o que fazer, então não terá
medo. Se…” A avó deixa a frase incompleta.
“Você quer dizer se eu fosse médica?”
“Bem, algumas pessoas podem não ter vocação. Não é uma coisa
natural para elas. Não posso te dizer o que fazer. Mas, se eu pudesse
viver esta vida outra vez, é o que gostaria de fazer. Por medo, por
desamparo. Para sentir menos receio e ajudar de verdade. Reflita sobre
isso em suas orações. Só você pode saber.” Grande Ammachi hesita.
“Se Deus te apontar esse caminho, eu vou ficar muito feliz.”
Mariamma se aconchega naquele ombro familiar, refletindo sobre o
que acabou de ouvir. Em um ano e meio, partirá para o Alwaye
College e começa­rá seus estudos preparatórios. Planejava estudar
zoologia. Mas, se o sofri­mento humano e as doenças a comovem e
assustam, por que estudar formigas-tecelãs e girinos? Por que não
medicina? Se Deus está apontando alguma direção, seria bom se o
fizesse mais explicitamente. Imaginar o que Deus está dizendo é o
mesmo que ouvi-lo falar?
Quando chega em casa, sente-se mudada. Conversar com Grande
Amma­chi, falar de seus medos, trouxe-lhe consolo e uma curiosa calma
mental que perdura. Será que Deus lhe falou agora mesmo por
intermédio da avó? A menina não sente nenhuma compulsão de
continuar conversando sobre aquelas coisas, nem com Grande
Ammachi nem com o pai. Rezará, também, mas tentará acima de tudo
preservar aquele sentimento de tranquilidade. Se Deus falou ou ainda
falará, agora não importa: ela está em paz.

O fundo para a construção do hospital criado no rescaldo da


Convenção de Maramon guarda as esperanças e expectativas dos
milhares que compareceram ao sermão inesquecível de Rory
McGillicutty (e do Senhor Melhorias). Aquele evento, hoje referido
como a Revelação do Hospital, é seguido por um milagre ainda maior:
uma generosa doação de sessenta hectares de terra em Parambil, no
centro da velha Travancore. Fica difícil pensar em razões para construir
o hospital em qualquer outro lugar.

Mais de um ano depois, quando chega o momento de Mariamma


partir para o Alwaye College, ela está convencida: pretende estudar
medicina. Ao compartilhar a decisão com a família, a alegria da avó é
palpável. O pai não poderia se sentir mais feliz: “Minha mãe queria isso
pra mim, mas eu não tinha vocação. Já você está predestinada”.
Grande Ammachi puxa Mariamma de lado para lhe dar um colar de
ouro e uma cruz. “Anos atrás, quando Jojo morreu, meu coração se
partiu. Em minha tristeza, rezei para Deus: ‘Se o Senhor não vai ou
não quer curar a Con­dição, nos mande alguém que possa fazer isso’.
Molay, vou te dizer uma coisa que nunca disse antes, que sempre
omitia quando você queria ouvir a história do dia de seu nascimento, ao
acendermos o velakku. A verdade é que rezei para que Deus lhe
apontasse o caminho da medicina. Mas não queria te pressionar com
minha expectativa. Estou feliz que tenha tido essa revelação. Saiba que
rezo por você toda noite e sempre rezarei. Estou velha demais para te
acompanhar, e além disso não posso deixar Bebê Mol. Mas saiba que
sua Grande Ammachi estará com você a cada passo. Mesmo quando eu
já tiver partido, você levará meu nome. Nunca esqueça: Eis que eu
estou com vocês todos os dias, até o fim do mundo.”
62. Hoje à noite

parambil, 1967

Certa noite, não muito depois da partida de Mariamma, Bebê Mol


acorda de repente de um sono sem sonhos e senta-se ereta, as mãos
gorduchas agarrando as barras da janela. Vendo a expressão aterrorizada
dela, que, transpirando, se esforça para respirar, Grande Ammachi
teme que sua preciosa filhinha esteja morrendo. Philipose e Anna
Chedethi acorrem. As veias na testa e no pescoço de Bebê Mol
parecem cordas de tão inchadas, uma saliva borbulhante lhe escapa da
boca quando tenta tossir. No entanto, o que é mais chocante aos olhos
da mãe é o medo no rosto da filha, que viveu sempre tão livre de
temores. Gradualmente, sugando o ar fresco da noite, ela se recupera.
Adormece numa cadeira à janela, apoiada por travesseiros.
Ao amanhecer, vão de táxi para a clínica do governo, a uma hora e
meia de distância. Se pelo menos o novo hospital já estivesse pronto! A
médica aplica uma injeção em Bebê Mol para remover o líquido de
suas pernas. Além disso, prescreve um diurético diário e digitalina.
Suspeita que o crescimento atrofiado e a coluna torta da paciente
pressionaram seus pulmões, e com o tempo aquilo tensionou o
coração. E agora é a retenção de líquidos que vem causando estragos.
Depois da consulta, Bebê Mol urina muitas vezes e tem uma noite
sem percalços. Grande Ammachi permanece acordada, observando a
respiração de sua bebezinha. A casa dorme, então ela conversa com
aquele que a acompanha em sua vigília. “Nunca passamos fome,
Senhor, nunca nos faltou nada. Não faço pouco das bênçãos que o
Senhor nos ofertou. Mas tem sempre alguma coisa acontecendo,
Senhor. Todo ano há uma nova preocupação. Não estou reclamando!
É só que imaginei que fosse chegar um tempo em que eu não teria
mais nada com que me preocupar.” Ela ri. “Sim, sei que foi tolice
esperar isso. A vida é isso, não é? Tal como você quis que fosse. Se não
houvesse problemas, suponho que eu fosse estar no paraíso, não em
Parambil. Bem, fico com Parambil. O hospital que está chegando é
dádiva sua — não pense que não estou grata. Ainda assim, vez por
outra, Senhor, um pouco de paz seria bom. Um pouco do céu na terra,
só isso.”
Bebê Mol se recupera, mas, com a partida de Mariamma, Parambil
parece um pouco fora dos eixos, como quando Philipose viajou para
Madras. É como se o sol nascesse do lado errado e o riacho tivesse
invertido seu curso. As lembranças dela estão por toda parte: o retrato
bordado de seu herói, Gregor Mendel; os desenhos do corpo humano,
copiados do livro de anatomia de sua mãe. Philipose sente falta até das
vibrações inequívocas que ele captava no começo da manhã quando a
filha se esgueirava por debaixo de sua janela para mergulhar no canal,
embora aquilo sempre lhe causasse certo sobressalto. Ela achava que
ele não sabia. Todas as noites Grande Ammachi escuta o filho lendo
um romance em voz alta, baixinho, embora não haja nenhum ouvinte.
Podi surpreende os pais quando consente em se casar, como se, com
a partida de Mariamma, estivesse pronta para deixar Parambil. Joseph,
o noivo, é da mesma casta e trabalha em um depósito. Joppan que os
apresentou: gostou da confiança e da ambição do garoto, lembrou-lhe
seu próprio ímpeto na juventude. O noivo está determinado a ir para o
golfo e já tem um precioso Certificado de Não Objeção que lhe
permite até mesmo imigrar. Destina seu primeiro ano de salário para
cobrir essa despesa, efetuada junto a um despachante. O casamento já
ocorreu quando a carta de Philipose chega à Mariamma no Alwaye
College. A resposta irritadiça da filha, perguntando por que ela não foi
convidada, o lembrou de como se sentiu quando Joppan casou.
Nesses dias, quando Grande Ammachi vai à beira do canal, ela vê o
futuro. Na outra margem, em vez de árvores e arbustos, avista barracões
temporários, grandes pilhas de tijolos, bambus e areia. O canal está
sendo alargado para a passagem de barcos maiores. Damo está
sobrecarregado. O que pensará de toda aquela atividade? Ela bem
queria que ele agora só aparecesse por saudade dela; há muitas coisas
que deseja lhe contar.

Num belo entardecer de fevereiro, uma brisa fresca balança as


roupas no varal. Grande Ammachi, sentada no banco de Bebê Mol,
compartilha com a filha a vista imutável do muttam. “Beba sua água
jeera e tome seus remédios, então você dormirá bem esta noite.”
“Sim, Ammachi. Vou roncar?”
“Como um búfalo-d’água!” Bebê Mol gargalha. “Mas gosto de seus
roncos, molay. Eles me dizem que minha garotinha está tendo uma boa
noite de sono e que tudo corre bem no mundo.”
“Tudo corre bem no mundo, Ammachi”, Bebê Mol repete.
“Sim, minha joia. Você não está preocupada com nada, está?”
“Sem preocupações, Ammachi.”
O que são as preocupações, senão o medo do porvir? Bebê Mol vive
o presente e é poupada de toda preocupação. Ao contrário de sua filha,
Grande Ammachi, agora com setenta e nove anos, habita cada vez
mais o passado, revivendo as memórias naquela casa. Sua vida antes de
Parambil, a infância passageira, parece um sonho que desvanece ao
amanhecer; agarra-se às pontas do sonho, enquanto o miolo
desaparece.
Essa hora crepuscular quando vão para a cama é seu momento
predileto do dia. Bebê Mol senta-se de banda, enquanto Grande
Ammachi desfaz os laços de fita em seus cabelos cada vez mais ralos e a
penteia. A filha balança uma perna que pende no ar. Seus adoráveis pés
de boneca de antigamente agora estão inchados, os ossos dos tornozelos
ocultos, a pele fina e brilhante.
Bebê Mol diz: “Eu amo casamentos!”.
Sua mãe busca uma conexão com os eventos do dia, mas não
encontra. “Eu também, Bebê Mol. Um dia, nossa Mariamma vai se
casar.”
“Por que não casa agora?”
“Você sabe por quê! Ela está estudando. No preparatório para
medicina.”
“Pré-medicina”, Bebê Mol diz, apreciando o som da palavra.
“Depois ela estudará para ser médica. Como aquele médico que
ajudou você. Depois disso, ela pode se casar.”
“Faremos um grande casamento. Eu vou dançar!”
“Claro! Mas… Precisamos de um noivo, não? Não algum bocó que
tira meleca do nariz. Não um toco de árvore que não se mexe e só diz
‘traga-me isso, traga-me aquilo’.”
Bebê Mol declara “Nada de toco de árvore!” e ri tanto que engasga.
“Que tipo de marido queremos, Grande Ammachi?”
“Não sei. Que tipo você acha?”
“Bem, ele precisa ser pelo menos tão alto quanto eu”, Bebê Mol diz.
“E tão bonito quanto nosso bebê precioso.” Ela está se referindo a
Philipose. “E pre­cisa saber andar com elegância.” Ela se levanta com
dificuldade, decidida a fazer uma demonstração. Caminha imitando a
passada larga de seu pai, os pés levemente virados para fora. Grande
Ammachi suspira.
“Aah! Então tem que ser um camarada corajoso, destemido?” Bebê
Mol concorda com a cabeça, mas continua caminhando, pois quer
comunicar outras coisas. “Ah, entendi. Um camarada confiante, mas
não demais, é isso? Ele precisa ser humilde, certo?”
“E bondoso”, Bebê Mol diz. “E tem que gostar de laços de fita. E
beedis!”
“Chaa! Se ele não gostar de laço de fita, pode esquecer. Mas beedies,
não sei…”
“Ammachi, beedis só para olhar. Mas sem caixinha, sem pérolas
negras!”
Talvez a plateia delas estivesse ali há certo tempo: Philipose bota a
cabeça para fora do quarto, segura um livro e tem os óculos na ponta
do nariz; e Anna Chedethi surge da cozinha, a mão abafando uma
risada, apreciando aquele desfile de Bebê Mol de um lado a outro, uma
visão tão rara ultimamente.
“Ei! O que vocês estão olhando?”, ralha Grande Ammachi,
apontando um dedo para a plateia, fingindo raiva. “Bebê Mol e eu não
podemos ter um momento particular? O Manorama disse que estamos
distribuindo bananas de graça para todos os macacos?”
“Nada de bananas de graça para os macacos!”, canta Bebê Mol,
satisfeita. Sua voz é tão cheia de alegria que seu “bebê precioso”, muito
mais alto do que ela e agora grisalho, junta-se à irmã, repetindo o
refrão. “Nada de bananas de graça para os macacos!”
O coração de Grande Ammachi se enche de alegria vendo aquilo:
sua velha Bebê Mol de antigamente, a Bebê Mol das danças de
monção, sua filha preciosa, preciosa, com seus eternos cinco anos. Que
bênção, Senhor. Obrigada, obrigada.

A hora de dormir demanda um tempinho para acomodar Bebê Mol


contra sua montanha de travesseiros. Sua pantomina a deixou sem
fôlego. A mãe massageia seus tornozelos, apertando-os na esperança de
que, ao amanhecer, o inchaço terá desaparecido.
Lá fora os sapos se anunciam, César uiva para a lua. Na cozinha,
Anna Chedethi acende o lampião e uma mariposa vem dançar em volta
dele. No quarto de Philipose, o rádio é ligado, uma mulher fala, mas é
interrompida quando ele gira o botão para outra voz. Um dia as vozes
desses estrangeiros tagarelando à noite foram tão estranhas à vida em
Parambil. Hoje, se Grande Ammachi não as ouvisse, sentiria falta. O
mundo está mudando depressa, mas a casa ainda se parece com Bebê
Mol: atemporal.
Grande Ammachi se deita na esteira ao lado da filha, cujos dedos
roliços se agarram ao braço da mãe como a um amuleto, um ritual das
duas que data da primeira infância. Grande Ammachi cantarola um
hino religioso e ouve Anna Chedethi cantarolar da cozinha. A
respiração de Bebê Mol desacelera.
Grande Ammachi faz à Bebê Mol a pergunta, a mesma que repete
todas as noites há mais de uma década, uma pergunta que conta com o
dom de profecia de Bebê Mol. Pergunta, meio de brincadeira, e sempre
num sussurro:
“Bebê Mol? Minha noite chegou?”
Por todos esses anos, a resposta tem sido a mesma. “Não, Ammachi.
Não pode ser. Quem cuidaria de Bebê Mol?” Não houve uma noite em
que Bebê Mol não tenha respondido a mesma coisa.
Mas hoje Bebê Mol não diz nada. Seus olhos permanecem fechados,
um sorriso brinca nos cantos dos lábios.
De início, Grande Ammachi pensa que ela não ouviu. “Bebê Mol?”
A filha lhe dá um apertãozinho no braço, sem desfazer o sorrizinho.
Ela ouviu mas não quis responder. Grande Ammachi espera até a
respiração de Bebê Mol desacelerar. E dá um beijo na testa da filha.

O que eu estava pensando? Que viveria para sempre?


Ela sente alguma tristeza, como quando tinha doze anos, na véspera
da viagem para casar com um viúvo desconhecido, deixando para trás
sua mãe amada e seu lar. Foi o segundo dia mais triste de sua vida.
Agora à sua tristeza se mistura certa excitação.
Ela se desvencilha delicadamente dos dedos da filha agarrados a seu
braço. Não, não está triste, nem com medo. Sua única preocupação é
Bebê Mol. Mas sabe que pode contar com Philipose e Anna Chedethi,
e até com Mariamma. Cuidarão de sua criança preciosa. É arrogância
pensar que só ela pode fazê-lo. Ainda assim, é mesmo possível substituir
uma mãe? Não há mais nada que eu possa fazer, Senhor? Se é minha
hora, que seja. Este é o momento em que posso parar de me preocupar,
não é? Que seja.
E, se é assim, há dois rostos que ela quer ver uma vez mais.
Na cozinha, Anna Chedethi alimenta um resto de leite com um
pouco do iogurte feito naquele dia e cobre-o com um pano. Grande
Ammachi corre os olhos pelas paredes escurecidas. Há muito esse lugar
deixou de ser uma cozinha e passou a ser um espaço sagrado, uma
companhia fiel que a acolhia com seu abraço quente e perfumado. Ela
agradece em silêncio.
Anna fez água jeera. Grande Ammachi acrescenta um bocado a mais
de mel às xícaras quentes, um mimo extra para ela e seu filho. Parada
na cozinha pela última vez, é tomada por uma onda de amor por Anna
Chedethi, o anjo que veio quando ela mais precisava e que se tornou
sua companheira por tantos anos. Quando Anna Chedethi a vê parada
ali, com as xícaras na mão, a olhando com ternura, seu sorriso irrompe
como o sol dispersando nuvens escuras.
“O que foi?”, pergunta Anna Chedethi.
“Nada, só estou te olhando, só isso. Você estava perdida em
pensamentos.”
“Aah, aah… estava?” Anna Chedethi ri, sem jeito, um som feliz e
musical. Só Grande Ammachi pode ouvir as notas de tristeza. A decisão
de Hannah de ir para o convento obscureceu o lampião de alegria
perpétua que ilumina o rosto de Anna Chedethi. Mas solidificou sua
devoção e sua afeição pela família da qual ela agora é parte integral.
“Você e sua risada andam distantes uma da outra, ultimamente.”
“É hora de rezar?”, pergunta Anna Chedethi. “Você estava esperando
por mim?”
“Já rezamos, bobinha! Não lembra? Você cantou de um jeito tão
doce.”
“Meu Deus! Sim, já rezamos”, diz Anna Chedethi, rindo de si
mesma.
“Rezei por você, como rezo todas as noites. E por Hannah. Durma
bem. Deus a abençoe.” Ela não ousa olhar para trás para ver a resposta
de Anna Chedethi.

Ela para à porta do ara, e então espreita o velho quarto onde deu à
luz e no qual sua mãe viveu os últimos dias, e onde Mariamma nasceu
— há anos é o quarto de Anna Chedethi. Seu olhar passa
amorosamente pelo alto velakku que ela acendeu depois do nascimento
de Mariamma, agora acomodado em seu cantinho. O porão está
silencioso há muitos anos, o espírito encontrou a paz.
Ela senta por um momento no banco de sua amada Bebê Mol, ainda
segurando as duas xícaras, olhando as vigas, depois o muttam,
apreciando tudo pela última vez, seus olhos agora enevoados. Então se
levanta e vai até o quarto de Philipose. O rádio está desligado, o filho
está sentado à escrivaninha. Ele se vira e sorri, depondo a caneta. Ela
senta na cama, e ele se junta a ela, que lhe entrega a xícara. Ela não
ousa falar enquanto ele a olha. Ama tanto seu filho, amou-o mesmo na
época em que era quase impossível amá-lo, quando era prisioneiro do
ópio. Ela amara Elsie também, como a uma filha. Como sofreu esse
casal. Suspira. Se já não disse o que preciso dizer, não valia a pena dizê-
lo. Ela sorri, conjurando o marido e seus silêncios. Estou ficando cada
vez mais como você, meu velho. Deixando que os intervalos entre as
palavras falem por mim. Te vejo logo mais.
“O que foi, Ammachi?”, pergunta Philipose, apertando a mão livre
da mãe.
“Nada, monay”, ela responde, bebericando o chá. Mas não é nada.
Agora pensa em Elsie, no desenho que ela lhe deixou: a bebê e a velha
senhora — ela. Afogar-se por acidente é terrível, mas se afogar de
propósito é um pecado mortal. O desenho foi o meio que Elsie
encontrou para confiar Mariamma a seus cuidados. Ela nunca o
mostrou ao filho. Nunca compartilhou suas apreensões. Ele o
encontrará em seus pertences e tirará as próprias conclusões.
Ao contrário de Bebê Mol, que vê as coisas à frente, ela por vezes só
vê as coisas quando olha para trás… Mas, na maior parte, o passado não
é confiável. Ela pensa no dia em que Elsie entrou em trabalho de
parto, muito mais cedo do que se esperava, quando duas vidas ficaram
por um fio. Naquele momento, Deus, em sua misericórdia infinita,
deu-lhe as duas coisas que ela pediu em suas preces: a vida de Elsie e a
vida de Mariamma. Poderia muito bem ter havido dois funerais no
mesmo dia. Depois, Elsie se afogou.
“Me perdoa”, ela diz.
“Pelo quê?”
“Por tudo. Às vezes podemos ferir sem querer.”
Philipose a olha preocupado, esperando que ela se explique. Como
ela se cala, ele diz: “Ammachi. Fiz você passar por tanta coisa. E,
mesmo assim, você me perdoou há muito tempo. Por que eu não faria
o mesmo? Então, seja lá o que for, eu te perdoo”.
Ela se levanta, acaricia seu rosto, beija sua testa, deixando que os
lábios se demorem ali por um bom tempo. No umbral da porta, vira-se,
sorri, lança ao filho seu amor silencioso e segue para o banho.
Gosta do luxo de ter um banheiro dentro de casa, mas, se não
estivesse escuro lá fora, iria ao lugar onde costuma se banhar no riacho
ou nadaria no rio uma última vez para se despedir. Sentirá falta desses
rituais, além da monção e de como, tal qual faz com o solo, ela nutre o
corpo e a alma. Grande Ammachi se despe, derrama água sobre a
cabeça, suspirando e se deliciando ao senti-la escorrer pelo corpo. Uma
água tão preciosa, Senhor, tão preciosa, água de nosso próprio poço; esta
água que é nosso pacto com o Senhor, com este solo, com a vida que o
Senhor nos concedeu. Nascemos e somos batizados nesta água, crescemos
cheios de orgulho, pecamos, somos despedaçados, sofremos, mas com a
água somos purificados de nossas transgressões, somos perdoados, e
renascemos, dia após dia, até o fim dos nossos dias.

A esteira aceita seu peso com delicadeza, acomoda a dor em suas


costas quando ela se estira. Ela pensa em Mariamma, que leva seu
nome, tão longe, no Alwaye, estudando à luz de um abajur, os livros
abertos sobre uma mesa. Grande Ammachi lhe envia uma bênção e
uma prece. Talvez outra matriarca, avisada de sua partida iminente,
convocasse a família, a parentela de perto e de longe. Para quê? Por
toda a minha vida eu disse a eles: “Sigam em frente! Tenham fé!”. Ela
beija Bebê Mol adormecida, sua criança eterna, torcendo para que não
sofra demais com a ausência da mãe. Seus lábios demoram-se na filha,
como há pouco se demoraram no filho. Bebê Mol, no sono, mais uma
vez apega-se ao braço da mãe.
Ela faz uma prece por todos. Os filhos e a neta. Anna Chedethi e
Hannah. Pede a Deus que abençoe Joppan, Ammini e Podi. Pensa em
Shamuel. É minha vez, meu velho amigo. Também posso descansar de
meu fardo. Reza pelo incorrigível Lênin, futuro pastor. Lembra de Odat
Kochamma e sorri — talvez possam rezar juntas de novo à noite. Reza
por Damo, que cada vez mais prefere suas trilhas pela floresta e a
companhia de seus pares. Ela teria gostado de vê-lo mais uma vez,
tocar-lhe a pele enrugada. Deixa o marido por último. Estão separados
há mais de quatro décadas, embora ele, como Shamuel, esteja presente
em cada partícula de Parambil. Quando se reencontrarem, ela lhe
contará tudo que ele perdeu, ainda que leve mais tempo do que todos
os anos em que esteve viva. Grande Ammachi terá uma eternidade para
pôr a conversa em dia.

Na manhã seguinte, quando o sol se levanta, o fogo do braseiro está


apagado. Galinhas ciscam do lado de fora. César corre para o fundo da
cozinha e espera, ansioso.
Philipose depõe a caneta para verificar por que a casa está tão
silenciosa, e encontra Grande Ammachi e Bebê Mol abraçadas,
imóveis, seus rostos cheios de paz.
Ele não faz estardalhaço, apenas senta de pernas cruzadas ao lado
delas, imóvel, numa vigília silenciosa. Entre lágrimas rememora a vida
da mãe, o que ela e outros lhe contaram, e o que ele próprio
testemunhou: sua bondade, sua força, sua paciência e tolerância, mas,
acima de tudo, sua bondade. Ele pensa na conversa da véspera. O que
havia para perdoar? Você jamais faria nada que não fosse de meu
interesse. Pensa na irmã amorosa, na vida estreita e confinada que
viveu, sem jamais encarar daquela forma; pensa em como ela
enriqueceu a vida de todos. Ele era seu “bebê precioso”, que, para ela,
jamais envelhecia, tal como ela nunca envelheceu. Estranhos talvez
tenham tido pena de Bebê Mol, mas, se entendessem como foi feliz,
como viveu o presente de modo pleno, sentiriam inveja. Levará tempo,
ele sabe, para começar a traçar os contornos do buraco descomunal em
sua vida e na de todos que conheceram a matriarca de Parambil e Bebê
Mol. Por ora, é algo vasto demais para compreender, e ele apenas
abaixa a cabeça.
parte oito
63. Os encarnados e os desencarnados

madras, 1968

No primeiro dia, Mariamma e seus colegas de classe vão ao Forte


Vermelho, uma construção à parte, separada dos edifícios da faculdade
de medicina, como aquele parente assustador que se esconde no sótão
— nesse caso, atrás do campo de críquete. Cipós espessos, musculosos
e acinzentados formam um exoesqueleto que sustenta os tijolos
vermelhos que aos poucos vão se esfacelando. Os torreões que lembram
os das mesquitas e as gárgulas que tudo observam dos frisos evocam O
corcunda de Notre-Dame.
Madras mudou desde os tempos — breves — em que seu pai foi
estudar lá, quando os britânicos estavam por toda parte, seus elmos
coloniais indo e vindo pelas ruas, a maioria dos carros transportando
gente branca. Agora seus fantasmas se restringem a certos edifícios de
escala amedrontadora, como a Estação Central e o University State
Building. E o Forte Vermelho. Seu pai contou que essas estruturas o
intimidavam; tinha birra delas, pois, para financiá-las, os ingleses deram
fim aos teares manuais das tecelãs dos vilarejos — o algodão indiano
passou a ser despachado para as fábricas inglesas, que pro­duziam
roupas que por sua vez eram vendidas na Índia. Disse que cada
quilômetro de trilho de trem construído no país tinha um único
propósito: transportar o butim para os portos. Mas Mariamma não
experimenta nenhum sentimento em relação a essas construções. Seja
lá qual for a origem delas, agora tudo pertence à Índia. Os únicos
brancos são turistas desalinhados, com pesadas mochilas, todos
precisando desesperadamente de um banho.
Mariamma lança um último olhar para fora, como Jean Valjean
dando adeus à liberdade, quando passam sob o arco onde se lê mortui
vivos docent. Dentro do Forte Vermelho, faz frio. As luminárias de
brilho embaçado pendendo dos tetos elevados garantem um espaço
escuro como um calabouço. Os armários dos corredores são como
sentinelas envidraçados — um guarda um esqueleto humano preso por
um fio, o outro está vazio, como se seu ocupante tivesse ido dar um
passeio.
Dois bedéis descalços e barbados, vestidos em uniformes cáqui,
observam a chegada dos estudantes em fila. Um é alto e cadavérico, a
boca apenas um rasgo, olhos sem expressão, seria um empregado de
abatedouro que acompanha a subida do gado pela rampa. O outro é
baixo, a boca tingida do vermelho-sangue da noz de areca, babando de
lubricidade. Dos cento e dois estudantes, um terço são do sexo
feminino; o segundo atendente só tem olhos para as mulheres;
Mariamma se sente conspurcada quando o olhar dele recai sobre seu
rosto e logo passa aos seios. Os estudantes veteranos alertaram que, na
estrutura de castas da faculdade, aqueles dois, que parecem os mais
reles dos reles, reportam-se aos professores e podem determinar o
destino de um aluno.
“Fique por perto, Ammachi”, Mariamma diz, baixinho. Na noite em
que a avó morreu, ela estava no Alwaye College, à escrivaninha,
estudando anotações de botânica. Teve a curiosa sensação de que
Grande Ammachi estava ali no quarto com ela, que, caso se virasse,
fosse vê-la parada à porta, sorrindo. Aquela sensação ainda permanecia
quando ela acordou, e continuava lá quando o pai apareceu em um
carro alugado para levá-la para casa. Sua dor pela morte de Bebê Mol e
de Grande Ammachi ainda é recente, duvida que algum dia passe.
Mas, apesar de tudo, a sensação de que a avó a acompanha, encarnada
dentro dela, persiste — esse é seu consolo. A avó acendeu o velakku na
noite do nascimento da neta com a esperança de que sua xará lançasse
luz sobre as mortes de JoJo, Ninan e do Grande Appachen, e quem
sabe lutasse pela cura da Condição que afeta alguns membros da
família, como Philipose e, como se viria saber mais tarde, Lênin. Sua
jornada começa aqui, no entanto ela não está sozinha.

O cheiro pungente de formol com um leve odor de abatedouro fere


as narinas dos estudantes antes mesmo que eles entrem na sala de
dissecação. O espaço cavernoso é bem claro graças aos janelões foscos
do piso ao teto e às claraboias que iluminam o mármore das fileiras de
mesas de autópsia. Nas mesas, lençóis de borracha manchados de
vermelho cobrem formas estáticas que um dia foram vivas. Mariamma
baixa os olhos para o piso de cerâmica. O formol arranha suas narinas,
seus olhos lacrimejam.
“quem é seu professor?”
Todos param ao mesmo tempo, uma manada confusa, aterrorizada
por aquele grito. Mariamma sente que pisaram em seu calcanhar.
A voz berra de novo, repetindo a pergunta. Brota de lábios grossos
que se equilibram sob narinas exaltadas. Olhos aquosos e injetados de
sangue espreitam de um rosto-fortaleza guardado por imponentes
sobrancelhas; as faces parecem concreto desgastado, marcado por
cicatrizes de varíola. Este irmão de carne e osso das gárgulas no topo do
Forte Vermelho é o professor P. K. Krishnamurthy, ou
“Gárgulamurthy”, como os veteranos se referem a ele. Seu cabelo nem
está repartido, nem penteado, mas eriçado como as cerdas de um
javali. O longo jaleco, porém, é de um branco reluzente, feito do
melhor algodão prensado, contrastando com as batas curtas dos
estudantes, de um algodão que pinica e que parece cinza perto do
mestre.
Os dedos de Gárgulamurthy se enroscam no braço de um camarada
sem sorte, com cara de bebê, cujo pomo de adão proeminente faz
parecer que ele engoliu um coco. Seu cabelo denso e ondulado cai
sobre os olhos, e ele por reflexo arremete a cabeça para trás, um gesto
que pode se confundir com insolência.
“Nome?”, pergunta Gárgulamurthy.
“Chinnaswamy Arcot Gajapathy, senhor”, ele responde, confiante.
Mariamma fica impressionada — no lugar dele, teria gaguejado ou
emudecido.
“Chinn-ah!” O gárgula se diverte e exibe dentes longos e amarelos.
“Arcot Gajapathy-ah?” Gárgulamurthy sorri com cumplicidade para os
demais estudantes, certo de que todos também acham o nome
engraçado. Como um bando de Judas, eles riem. “Então, agora estou
sabendo quem você é. Mas, Chinnah, pergunto de novo: Quem eh, o
seu-eh, professor-eh?”
“Senhor… você é nosso professor? Professor…”
“errado!”
Seus dedos apertam o braço de Chinnah, como uma serpente
python reajustando sua torção. “Chinnah?”, ele diz, mas agora corre os
olhos pelo bando, ignorando o aluno. “Por acaso vocês repararam na
inscrição que havia na entrada, quando chegaram?”
“Senhor… sim, reparei em alguma coisa.”
“Alguma coisa, aah?” Gárgulamurthy finge irritação.
“Era alguma outra língua, senhor. Então eu… ignorei…” Chinnah
tenta corrigir-se apressadamente: “Acho que dizia ‘Macku’… algo
assim”.
Os estudantes ficam passados. “Macku” significa burro. Estúpido.
“Macku?” As sobrancelhas se juntam como grandes nuvens de
chuva. O pescoço atarracado se retrai para dentro do peito, os olhos se
cravam em Chin­nah. “Macku é o que você é. Aquela “outra língua” é
latim, macku!” Gárgula­murthy retoma a compostura. Estufa o peito e
grita: “Estava escrito ‘mortui vivos docent’. Significa: ‘Os mortos
ensinarão os vivos’!”.
Ele arrasta Chinnah para a mesa mais próxima e, num gesto teatral,
retira o lençol de borracha, expondo o que todos ali temiam. Lá está…
Um tronco caído, um objeto de couro petrificado, com forma de
mulher, mas o rosto é achatado como uma panqueca, difícil de
identificar uma figura verdadeiramente humana. Anita, colega de
quarto de Mariamma, geme e se apoia nela. Mariamma reza para que
ela não desmaie. Na noite anterior, com saudade de casa, Anita
perguntou se poderiam juntar as camas, e, sem esperar resposta, deitou
juntinho de Mariamma, tal como a jovem fazia com Hannah, Grande
Ammachi ou Anna Chedethi. As duas dormiram muito bem.
Gárgulamurthy põe a mão de Chinnah na mão do cadáver, qual um
padre unindo dois noivos. “Aqui, macku, esta é sua professora!” Um
sorriso adultera as feições de Gárgulamurthy. “Chinnah, aperte a mão
de sua professora! Os mortos ensinarão os vivos. Não sou eu o professor.
É ela.”
Chinnah aperta a mão de sua nova professora com prazer,
preferindo-a à de Gárgulamurthy.

Mariamma e os cinco colegas de dissecação se empoleiram como


abutres em banquinhos ao redor da mesa de autópsia sobre a qual jaz o
corpo “deles”. Todos ganham uma “caixa de ossos” — uma caixa de
papelão retangular, que levarão para casa. Cada uma contém uma
caveira, com os respectivos ossos colados mas com o cocuruto, ou
melhor, o sincipício solto qual uma tampa de bule, e a mandíbula
presa com dobradiças. Há também vértebras amarradas por um fio que
atravessa a arcada neutral, compondo um colar; um lobo temporal;
uma amostra de costelas soltas; uma hemipelvis com fêmur, tíbia e
ulna do mesmo lado; um sacro; uma escápula com respectivos úmeros,
rádios e ulnas; uma mão e um pé, com uma perfeita articulação por
fios; um pulso solto e ossos tarsais em dois pequenos sacos de pano.
Gárgulamurthy dispõe Chinnah na “posição anatômica”: de pé, com
as mãos ao lado do corpo, palmas para a frente, lembrando levemente o
Homem Vitruviano de Da Vinci.
Ele diz: “Somos criaturas móveis e flexíveis. No entanto, para
propósitos anatômicos descritivos, devemos imaginar o corpo fixo, em
posição ereta, como Chinnah, entenderam? Só assim é possível
descrever qualquer estrutura do corpo em relação às estruturas
adjacentes”.
Ele vira Chinnah de lado e sobrepõe a escápula da aula à escápula
de Chinnah. Em seguida, define seus aspectos mediais (mais próximos
da linha do meio), laterais (mais afastados da linha do meio), superiores
e inferiores (ou cranianos e caudais), anteriores ou posteriores (ou
ventrais e dorsais). Qualquer coisa mais perto da raiz ou mais próxima
do ponto de conexão é “proximal” (o joelho, portanto, é proximal ao
tornozelo), enquanto as coisas mais distantes são “distais” (o tornozelo é
distal ao joelho). Eles precisam desse vocabulário básico para começar.
No dia anterior, no Moore Market, Janakiram, velho amigo de seu pai,
deu-lhe de presente uma edição usada, mas recente, de A anatomia de
Gray. “Quebre a cabeça, ma!”, ele disse. “‘Memorização e recitação’ é
o mantra!” Quando folheou as páginas do livro, ouviu o mesmo man­tra
ressoar, ecoando nos grifos meticulosos e nas notas marginais do
proprietário anterior, sinalizações de trânsito para guiá-la na jornada.
Gray lhe era familiar. Em Parambil, uma vez que pôs na cabeça que
faria medicina, passava horas com a cópia de A anatomia de Gray da
mãe. Era uma edição antiquíssima, ainda que as ilustrações fossem, na
maior parte, as mesmas. A anatomia não mudou, mas sim a
terminologia. Os nomes em latim se foram, graças a Deus; a “arteria
iliaca comunis” agora se chama “artéria ilíaca comum”. A jovem ficava
fascinada com as ilustrações, e não só porque devem ter sido úteis à
mãe. Ela não tinha a veia artística de Elsie, no entanto descobriu ter
um talento. Depois de analisar uma ilustração, fechava o livro e era
capaz de reproduzir a figura com precisão (embora não de maneira
artística), só de memória. Não via nada demais naquilo, mas seu pai,
admirado, garantiu-lhe que era um dom. Seu dom era, então, traduzir
uma figura bidimensional vista numa página para uma figura
tridimensional em sua mente. Então, como uma criança empilhando
bloquinhos, ela reproduzia a figura partindo da camada interna para
fora, até chegar ao todo. Era uma coisa que a entretinha, um truque de
salão. Agora ela precisará saber o nome de cada estrutura e memorizar
as páginas de texto que acompanham as figuras.

Duas horas depois todos se retiram enfileirados, os cento e dois, e


seguem para um auditório na outra ponta do Forte Vermelho. Tal como
no curso preparatório, as senhoritas ocupam as primeiras fileiras da
galeria escalonada, os garotos as demais. Fitando-os das paredes estão os
chefes do Departamento de Anatomia — cdas — todos brancos,
carecas e de costeletas, de expressão séria, e mortos, mas eternizados
naqueles retratos.
O dr. Cowper entra em silêncio, o primeiro e único cda indiano,
nomeado depois da Independência, um parsi de barba devidamente
raspada. Cowper tem boa constituição, traços bonitos e agradáveis.
Quando seu retrato for parar em uma daquelas paredes, será também o
único com cabelo. Os dois assistentes descalços e o professor-assistente
fazem uma pantomina ao redor de Cowper, mas o médico não precisa
nem espera salamaleques. Enquanto o assistente faz a chamada,
Cowper se põe de lado, observando cada rosto com interesse paternal.
Quando Mariamma se levanta para dizer “Presente, senhor”, Cowper
lança um olhar em sua direção, um olhar receptivo, só para ela (pelo
menos é o que ela acha, mas depois descobre que todos tiveram a
mesma impressão). Naquele instante ela sente uma pontada de
saudade do pai.
Os quadros-negros com roletes que se sobrepõem atrás de Cowper
brilham como ébano. O bedel mais nanico de olhar lascivo (ou “Da
Vinci”, como os veteranos o chamam) dispõe giz e um pano para
apagar o quadro; sua letargia desapareceu, bem como a protuberância
do paan em sua bochecha. Os alunos esperam, munidos de canetas e
lápis de cor, prontos para reproduzir cada desenho desse lendário
professor de embriologia. Os únicos sons que Mariamma escuta são os
gemidos e suspiros do antigo forte.
“Senhoras e senhores”, Cowper diz, dando um passo à frente e
sorrindo, “estamos apenas alugando esses nossos corpos. Vocês foram
inspirados para dentro deste mundo e um dia serão expirados. Por isso
dizemos que tal pessoa… ‘Expirou!’” Seus ombros se sacodem em
silêncio, divertindo-se com a pia­da, os olhos brilhando atrás dos óculos
de metal. “Sei o que acontece com o corpo quando já não há vida, mas
não sei o que acontece com vocês, com a essência de vocês. A alma.” E
acrescenta, com pesar: “Eu bem que queria saber.”
Ao confessar sua dúvida, esse professor gentil e sorridente conquista a
todos.
“Contudo, eu sei de onde vocês vieram. Do encontro de duas
células, uma de cada um de seus pais — foi assim que passaram a
existir. É possível viver uma vida inteira e nunca deixar de se maravilhar
com a elegância e a beleza da embriologia. ‘Felicidade e paz
duradouras são daqueles que escolhem este estudo por seu próprio
valor, sem esperar qualquer recompensa.’”
Enquanto fala, Cowper desenha nos quadros com ambas as mãos,
tão naturalmente quanto anda com os dois pés. Num átimo diagrama a
fusão intricada de óvulo e esperma para formar uma única célula, o
blastocisto.
Passada uma hora de aula, Cowper espalma o pano que usa para
apagar a lousa na mesa de demonstração. Delicadamente, pinça uma
dobra no centro do pano, em seu eixo longo, compondo com cautela
uma saliência comprida e estreita. “É assim que o tubo neural se forma,
o precursor da medula espinhal. E essa ponta bulbosa”, diz ele,
estufando uma ponta da saliência, “é o princípio do cérebro.”
Vem então um momento que nenhum deles jamais esquecerá: ele se
abaixa para que seus olhos fiquem no nível da superfície da mesa e,
com os dedos pálidos, muito cuidadosamente — como se manuseasse
um tecido vivo —, ergue as bordas mais longas do retângulo, de modo
que formem um arco sobre a saliência central, encontrando-se ao meio.
“E isto”, declara, apontando com o nariz e fitando-os pelo cilindro oco
que ele formou, “é o intestino primitivo!”
A essa altura Mariamma esqueceu onde está, esqueceu seu nome.
Ela é aquele embrião. Uma célula de Philipose e uma célula de Elsie.
Os dois se tornaram um, e então se separaram.
O professor Jamsetji Rustomji Cowper larga o pano: já não é um
embrião tridimensional, mas um trapo estirado sobre a mesa. Bate uma
mão na outra para limpar o giz e contorna a mesa. Ergue as mãos,
como se numa atitude de submissão, falando em voz baixa. “Sabemos
tão pouco. E o pouco que sabemos me deixa pasmo. Ernst Haeckel
disse uma frase célebre: ‘A ontogênese recapitula a filogênese’. Quer
dizer, os estágios do desenvolvimento do embrião humano — saco
vitelino, brânquias, até um rabo — emulam os estágios da evolução
humana, da ameba unicelular ao peixe, o réptil, o símio, o Homo
erectus, o neandertal… até vocês.” Ele tem uma expressão distante, os
olhos cheios de emoção. Depois se recompõe e retorna ao presente,
sorrindo. “Tudo bem? Isso basta como primeira aula.”
O professor se vira para sair, então para e diz: “Ah, e bem-vindos,
todos vocês, bem-vindos”.
64. Articulação ginglimoartroidal

madras, 1969

Todos os dias seis deles serram e raspam “Henrietta” — batizaram-na


em homenagem a Henry Gray —, começando pelos membros
superiores. É impressionante a velocidade com que aquela reticência
inicial se evaporou; enquanto trabalham, três de cada lado, já apoiam o
guia de dissecação, Manual de anatomia prática de Cunningham, sobre
a barriga de Henrietta. Já criaram um vínculo com ela — não
conseguem se imaginar trabalhando com nenhum outro cadáver. Ela é
uma aliada na labuta. Quando seu ombro é desarticulado, Mariamma
talha o número de seu grupo em um pedacinho de pele intacta do
braço, que é jogado no tanque de formol no corredor. No dia seguinte,
Da Vinci, pescando com mãos nuas, retira um membro gotejante e
anuncia o número. Mariamma tenta transportá-lo pinçando o pulso de
Henrietta com o polegar e o indicador, mas descobre que é preciso
segurar o braço com as duas mãos, como um sabre; ela está de chinelo,
e boas gotas de formol se infiltram entre seus dedos do pé. É impossível
almoçar depois da dissecação, o fedor de formol em sua pele. Uma
breve carta de Lênin na primeira semana é uma surpresa bem-vinda.
Querida doutora: posso ser o primeiro a chamá-la assim? Mas não me
chame de Achen, pois não sei se chegarei a ser um. Por sinal, BeeYay
Achen veio fazer uma palestra no seminário. Contei a ele que estou
pensando seriamente em sair. Depois de todos esses anos, tudo que sei
é que minha vida foi poupada para que eu servisse a Deus. Mas e se
Deus tivesse imaginado outro tipo de serviço? BeeYay me encorajou a
cumprir meu período à disposição do serviço estudantil rural. Não
discorda que Deus talvez tenha outros planos para mim, mas disse
que, às vezes, precisamos “viver a dúvida”, sem forçar uma resposta.

Mariamma e Lênin começaram a trocar cartas quando ela entrou no


Alwaye College, época em que ele já estava bem adiantado no
seminário. As cartas dele oscilam entre o malaiala e o inglês. Ela nunca
imaginou que ele fosse ser um correspondente tão assíduo. Mas o que a
surpreende ainda mais é o quanto ele se mostra disposto a desafogar
seus sentimentos, explorá-los longamente, como se não tivesse outra
pessoa com quem compartilhá-los. Antes de Mariamma vir para
Madras, ele escrevera:

Aqui sou um furúnculo projetando-se numa pele lisa. Se


compartilham minhas dúvidas, meus colegas seminaristas nunca vão
admitir. Fingem até que o Livro dos Juízes e as Crônicas — com
certeza os livros mais tediosos da Bíblia — são inspiradores. Mas
temos uma ou duas joias de seminaristas cuja fé arde em cada ação.
Sinto inveja. Por que não me sinto como eles?

A dissecação do membro superior leva seis semanas para ser


finalizada, quando então há uma prova sobre o assunto. Depois da
prova, Mariamma escreve a Lênin celebrando aquela conquista. “Fico
deprimida se penso demais no que ainda falta. Tórax, abdome e pélvis,
cabeça, pescoço e membro inferior. Mais um ano disso. Se o Alwaye
College era como beber água na mangueira, a faculdade de medicina é
como beber de um rio revolto — e é tanta coisa para memorizar.”

Um ano e dois meses depois de Mariamma conhecê-la, Henrietta


parece os restos mortais da caça de um tigre comedor de gente. À noite,
Mariamma e Anita se revezam no papel de examinadora e examinanda,
praticando para o viva voce que se segue à prova escrita. Anita joga um
osso dentro de uma fronha vazia e diz: “Pode retirar, senhorita”.
Mariamma está esperando um pulso ou osso tarsal, que deve identificar
apenas pelo toque.
“Fácil: escápula, lado esquerdo.”
“Mais devagar, espertinha! Alguém mandou você falar tão rápido?
Diga o nome das estruturas ósseas.”
“Processo coracoide, acrômio, coluna…”
“Pegue a peça e me mostra a inserção do trapézio e do músculo
redondo maior…”

Logo Mariamma se vê escrevendo ao pai para lembrá-lo de enviar


dinheiro para a taxa dos exames finais: o ano, de alguma forma, passou.

Acho ótimo que Podi mande lembranças por você, mas pergunte por
que ela não me escreve diretamente. Diga que não enviarei nenhuma
outra carta até que ela não me escreva. Por favor, diga à Anna
Chedethi que todas as noites tomo um chocolate quente. Não me
surpreende o que você me contou sobre Lênin. Ele me escreveu dizendo
que preferiria dissecar cadáveres a ficar sentado ao lado de colegas que
parecem cadáveres.
Appa, depois de um ano estudando o corpo, minha aprovação no
exame dependerá de seis dissertações. Se eu fracassar, junto-me ao
grupo B e presto de novo o exame em seis meses. Imagine só, centenas
de páginas que memorizei, os diagramas todos, tudo isso para terminar
em seis questões do tipo: “Descreva e ilustre a estrutura de X”. X será o
nome de uma articulação, um nervo, uma artéria, um órgão, um osso,
um tópico de embriologia. É injusto! Seis dissertações para julgar tudo
que aprendi em mais de treze mil horas. (Anita fez as contas.)
Já te falei de Gárgulamurthy e Cowper, não? Eles gostam das
minhas dissecações e me convidaram para o Concurso de Anatomia.
Pouca gente tem coragem de se inscrever. A competição ocorre num dia
sem aula. Temos que escrever um ensaio de nível avançado e depois
devemos fazer uma dissecação em até quatro horas.

Em um dos dias livres para estudar, depois de uma soneca vespertina


Mariamma se depara com um camarada de cara preta, pele enrugada e
costeletas mais claras instalado em sua escrivaninha, piscando
rapidamente. Deve ter se pendurado nas grades da janela da classe e
deu um jeito de abrir o ferrolho. Quando tenta espantá-lo, ele mostra
os dentes e dá um passo à frente, ameaçador. O kurangu revira as
demais escrivaninhas em busca de comida e, nada encontrando,
arranca um varal por pura maldade e sai. O problema dos macacos está
mesmo fora do controle.
Mariamma procura Chinnah, o representante da classe. Ele suspira.
“Já azucrinei o reitor e o superintendente. É inútil! Queria esperar até
depois das provas, mas os macacos declararam guerra.”
Chinnah foi a escolha unânime para representante, talvez pelo
sangue frio diante de Gárgulamurthy no primeiro dia. Enquanto os
demais colegas estudam febrilmente, Chinnah começa a campanha
indo-símia. Reforça a regra de não haver comida armazenada nos
quartos — os infratores são achincalhados no quadro de avisos.
Contrata moleques de rua armados com es­tilingues para se sentarem
nas sacadas superiores e afugentar as incursões vespertinas do inimigo.
Então, misteriosamente, um par de macacos termina preso durante a
noite no escritório do reitor, e outro par no escritório do super­in‐­
tendente, destruindo e conspurcando essas salas na ânsia de escapar.
No dia seguinte, uma equipe de funcionários poda galhos que pendem
sobre as moradias dos estudantes e repara as telas de proteção das
janelas, e agora o lixo é coletado duas vezes por dia. O quadro de avisos
no refeitório proclama: com chinnah não tem macacada. Sua
reeleição está garantida.

Chinnah, contudo, confessa à Mariamma que não está preparado


para os exames. “Vou dizer a verdade: só entrei no curso de medicina
porque meu tio era dem.” O tal dem, Diretor do Ensino de Medicina,
controla todas as admissões e nomeações dos professores da faculdade.
“Meu tio mexeu os pauzinhos, mas eu teria preferido estudar direito.
Os caras da faculdade de direito não ralam tanto assim, pode ter
certeza.”
Nas semanas frenéticas rumo à prova final ela recebe uma carta em
que o endereço está escrito com a letra de Lênin, mas traz um carimbo
de Sulthan Bathery, Kerala. Ele está no Distrito Wayanad, segundo
escreve, tomando conta de um velho achen — um viúvo, um homem
bom, de muita fé, mas que anda muito esquecido. Viu-se finalmente
livre do toque de recolher do seminário, no entanto está numa cidade
que se mete debaixo dos lençóis às quatro e meia da tarde. O zelador da
igreja, um tribal chamado Kochu paniyan, é sua única companhia.
Ficaram amigos. Lênin diz que ainda está “vivendo a dúvida”, como
sugeriu BeeYay Achen. “Mas minha fé desapareceu”, ele escreve. “Na
Eucaristia, o Achen chora quando ergue a sosaffa para sinalizar a
presença do Espírito Santo! O bom homem fica emocionado. E eu não
sinto nada, Mariamma. Estou perdido. Não sei o que será de mim.
Estou esperando um sinal.”

Às vésperas dos exames finais, todos na residência universitária estão


de olhos vidrados, num delírio de tanto estudar. Cochilam de luz acesa,
pois a sabedoria coletiva diz que assim se consegue ficar bem mesmo
dormindo pouco. Poucos dias antes da última prova, Mariamma sonha
que um homem bonito a leva para uma cama com dossel e com um
dedo acaricia delicadamente o perfil de seu rosto. Em seguida beija um
ponto embaixo de sua orelha e sussurra: “Isso é a junta
ginglimoartroidal.”
Ela acorda com uma marca numa das bochechas e descobre que
dormiu em cima de uma fíbula. Não lembra de já ter ouvido a palavra
“ginglimoartroidal”. Pesquisa e aprende que “ginglimo” significa
“dobradiça”, como as articulações entre os ossos dos dedos, enquanto
“artroidal” significa “deslizamento”, como as articulações entre os ossos
adjacentes do pulso. Porém só há uma “ginglimoartroidal”, que tanto
funciona como uma dobradiça quanto desliza: a atm, ou articulação
temporomandibular.
Ela conta o sonho para Anita.
No refeitório, na hora do café da manhã, os colegas de classe
recebem Mariamma estalando beijos no ar e acariciando as orelhas.
Anita fez uma investigação sobre perguntas de antigas provas e
descobriu que a atm só foi cobrada uma única vez, dezessete anos
antes. Na história de qualquer faculdade de medicina, nunca tantos
estudantes decoraram as mesmas duas páginas de A anatomia de Gray.
Por fim, chega o grande dia e eles rompem o lacre da prova. Na
primeiríssima questão das seis se lê: Descreva e ilustre a articulação do
tornozelo.
Mariamma corre os olhos pelas outras perguntas. Precisa descrever e
ilustrar uma artéria axilar, o nervo facial, as glândulas adrenais, o
úmero e o desenvolvimento da corda dorsal.
No entanto, a articulação do tornozelo? Seu sonho era uma manobra
diversionista, a pista estava na cara: a fíbula! Era parte da articulação do
tornozelo. A marca em sua bochecha no dia seguinte era um sinal…
Ela sente os olhares fulminantes dos colegas.
No dia seguinte, Mariamma e mais seis prestam as provas do
Concurso de Anatomia. Depois do ensaio escrito, a dissecação que lhe
foi designada era expor o nervo mediano inervando a mão. Ela faz um
trabalho decente e consegue não partir o nervo ou suas ramificações.
Chinnah tem certeza de que se saiu mal no exame escrito. Ele só
não vai repetir de ano se por um milagre for muito bem na prova oral,
que acontecerá em duas semanas. Só assim. E para tanto ele bola um
plano: ao longo dos próximos catorze dias, ele comerá um quilo de
cérebro de peixe frito com masala diariamente e pedirá a Gundu Mani,
seu primo bacharel em ciências (não aprovado), que leia em voz alta
passagens de A anatomia de Gray enquanto ele estiver dormindo.
Chinnah espera que as palavras do primo fiquem impressas em sua
memória na matriz da proteína de peixe. A residência feminina é
separada da masculina (“tal qual as Ilhas Virgens ficam separadas da
Ilha de Man”, como diz Chinnah), mas, da sacada, Mariamma pode
ouvir a cantilena de Gundu, como um sacerdote recitando os Vedas.
Dez dias antes do exame oral, ela recebe uma longa carta de Lênin.
Hesita em abrir. Se ele foi vítima de algum grave “desentendimento”,
prefere não saber. Mas não resiste. Lênin conta que as coisas
melhoraram agora que ele topou com o Moscou, apelido da Casa de
Chá de Baby, que fica aberta até bem depois da meia-noite e serve chá,
e também certos líquidos mais fortes. É um ponto de encontro de
intelectuais, muitos deles inclinados ao pc. Lênin comenta que anda
aprendendo muitas coisas, particularmente com certo Raghu, que tem
sua idade e trabalha num banco. “Raghu fala que sou o terceiro Lênin
que ele conheceu em Wayanad. Conheceu mais Stálins do que
Raghus. Mais Marxes do que Lênins. Nenhum Gandhi ou Nehru. Este
é o local de nascimento do comunismo em Kerala.”
Mariamma tenta estudar, porém sua cabeça está na carta de Lênin.
Kerala do Norte — antes Malabar — é diferente do resto de Kerala. Ela
nunca entendeu bem (até ler a carta) que, no Malabar, sessenta e cinco
proprietários rurais — brâmanes nambudiri, ou jenmis — eram donos
de territórios tão vastos que eles próprios jamais os teriam visto de cabo
a rabo. Seus arrendatários eram naires ou mappilas que angariavam
lucros enormes repassando uma parte aos jenmis. Quando os preços da
pimenta despencaram, os jenmis taxaram os arrendatários e mesmo os
povos nativos — gente como Kochu paniyan. Segundo Lênin, é por
isso que, em Kerala, o comunismo começou em Wayanad. “No
seminário, não sabíamos nada sobre o sofrimento de nosso povo.
Chame de comunismo ou do que quiser, mas lutar pelo direito das
castas inferiores me atrai.”

No dia do exame oral, Druva é o primeiro a ser chamado. Tremendo


de nervoso, ele entra na sala. Brijmohan “Brijee” Sarkar, o examinador
externo, aponta um jarro cilíndrico de formol onde flutua um recém-
nascido mal-formado. “Identifique a anormalidade.” A cabeça inchada
do bebê, do tamanho de uma bola de basquete, é típica da hidrocefalia,
“água no cérebro”, condição que Druva conhece muito bem. Depois
de nomeá-la, deve-se seguir uma discussão sobre os ventrículos e a
circulação do fluido cerebrospinal neles produzido. Nesse infante, a
saída do fluido está bloqueada, fazendo com que os ventrículos, que
geralmente são cavidades — como rasgos — nas profundezas de ambos
os hemisférios, estufem, empurrando o cérebro que os rodeia. No
crânio não fundido, flexível, de um infante, a cabeça expande. Mas em
um adulto, com os ossos do crânio devidamente amalgamados, o
cérebro pode ficar espremido entre o crânio e o ventrículo inchado, o
que leva à inconsciência. Druva, tomado pela ansiedade, consegue por
fim falar mas se confunde: a palavra que lhe escapa dos lábios é
“hidrocele” e não “hidrocéfalo”. Logo se dá conta de que cometeu um
erro fatal. Há uma enorme diferença entre um fluido ao redor dos
testículos e um fluido ao redor do cérebro.
Segue-se um silêncio mortal. Antes que Druva possa se corrigir,
Brijee Sarkar explode numa gargalhada contagiosa, e logo dr. Pius
Mathew, o examinador interno, também está se contorcendo de rir.
(Chinnah e Mariamma, esperando do lado de fora, torcem para que
aqueles sejam sons auspiciosos.) Sempre que tentam retomar a
pergunta, racham de rir de novo. Por fim, Brijee, enxugando as
lágrimas, pede que Druva se retire.
Druva, corajoso, pergunta: “Senhor, eu passei?”. Pius ainda sorri,
mas não Brijee.
“Meu jovem, um hidrocele pode provocar o inchaço da cabeça?”,
pergunta Sarkar.
“Senhor, não, mas eu…”
“Então está aí sua resposta.”
“O que foi, da?”, pergunta Chinnah quando Druva sai da sala.
“O que foi? Me fodi, foi isso!”
Chinnah é chamado. Reaparece num piscar de olhos, logo seguido
do dr. Pius.
“Me dê cinco minutos, Mariamma”, diz dr. Pius, sorrindo
tristemente. Pausa para ir ao banheiro.
Quando Pius já não pode ouvir, Chinnah diz à Mariamma: “Grupo
B: berinjelas e bordoadas para Chinnah e Druva”.
“O que Brijee perguntou?”
“Nada! Disse: ‘O filho da mãe do seu tio, o dem, cancelou minha
promoção. Você pode passar a vida inteira comendo cérebro de peixe e
quem sabe até criar brânquias e uma barbatana dorsal, mas enquanto o
dr. Brijmohan Sarkar for o examinador, vai ser difícil Chinnaswamy
Arcot Gajapathy passar no exame oral’. Aquele maldito Da Vinci deve
ter falado do meu tio. E do cérebro de peixe.” Antes do exame,
Chinnah recusou-se a dar uma “gorjeta” de boa sorte para os bedéis.
Era extorsão, mas todos, com exceção de Chinnah, aceitaram. Ele fala,
vermelho de raiva: “Vou te dizer, nada de bom acontece quando sua
família mexe os pauzinhos para você. Os pauzinhos viram cacetetes”.
O dr. Pius ainda não deu as caras quando o dr. Brijee Sarkar bota a
cabeça para fora e convoca Mariamma. Ela faz um sinal para Chinnah,
pedindo que espere. Pode ser que sua sorte não seja muito melhor que
a dele.

“Senhorita”, diz o dr. Brijmohan Sarkar assim que a porta se fecha


atrás dela, “sua dissecação no concurso foi muito, muito boa.” Os dois
ainda estão de pé. “Você foi a única que conseguiu não partir nenhum
nervo auxiliar. Cá entre nós, diria que suas chances são…”
Ele não diz, mas sorri e ergue as sobrancelhas. Mariamma
enrubesce, contente.
“Pronta para a prova oral?”
“Acho que sim, senhor.”
“Muito bem. Por favor, ponha a mão no meu bolso.”
Parada diante dele, a jovem, com seu sári creme e uma bata curta
branca, se pergunta se teria ouvido direito.
Apesar do calor opressivo, não há uma gota de suor no rosto
empoado do dr. Sarkar, que está em pé, entre ela e a porta. Ele é alto,
tem seus cinquenta anos, as faces murchas pela falta dos molares, uma
barriga protuberante que destoa de seus membros magros. Balançando
nos calcanhares, nariz apontado para o teto, sua expressão agora é tão
severa quanto o vinco de sua calça de linho. A posição meio de lado
pretende oferecer à Mariamma acesso fácil ao bolso direito da calça.
Ela estudou muito: está preparada, mas não para isso.
Um zumbido dispara em seus ouvidos. O ventilador de teto sopra o
ar escaldante que sobe do piso de concreto. Na mesa, o bebê
hidrocefálico que fez a ruína de Druva observa tudo com interesse.
Uma bandeja aberta contém a metade de uma cabeça serrada ao meio,
com a mandíbula removida. De uma sacola de pano, podem-se
distinguir os contornos dos pequenos ossos em seu interior.
Se ele se sentasse. Se pelo menos o dr. Pius retornasse. Ou me
perguntasse sobre hidrocefalia. Ou me pedisse para retirar algum osso da
sacola de pano… Mas Brijee não está oferecendo uma sacola de pano,
apenas seu bolso.
Uma pulsação dispara no pescoço de Brijee, uma onda sinuosa,
bífida, como a língua de uma serpente. “Ou você põe a mão no meu
bolso ou pode voltar em setembro”, ele fala, baixinho, olhando sempre
para a frente.
Mariamma fica paralisada. Por que não diz não e pronto? Sente
vergonha até de contestar. Vergonha de ver sua mão esquerda se
aproximar, como se por vontade própria — pela forma como Brijee
está posicionado, é mais fácil usar a esquerda.
Ela enfia a mão no bolso do professor. Quer crer que, qualquer que
seja a peça esqueletal que Brijee Sarkar enfiou ali — pisiforme ou
astrágalo —, ela identificará. Assim ela deseja crer. Não quer fracassar.
Afunda mais a mão e por uma fração de segundo não tem certeza do
que está apalpando. Terá sua mão se perdido no caminho? É culpa dela
que nesse momento se veja segurando o pênis do professor? É culpa
dela que não haja nenhuma peça de roupa se interpondo? O que sente
é um órgão mais ossudo, mais firme e menos flexível do que imaginara.
Ela deve nomear suas partes? O ligamento suspensório, o corpo
cavernoso, o corpus spongiosum…?
Seu cérebro luta para permanecer no modo “examinanda” diante de
um órgão com o qual ela não tem nenhuma experiência direta,
intumescido ou não; mas seus pensamentos fogem do reino da
anatomia e retornam a memórias dolorosas que fazem a bile lhe subir à
garganta: um barqueiro em cima de uma balsa se exibindo enquanto
ela e Podi nadavam; o estranho que se esfregou contra ela no ônibus;
um encantador de serpentes de turbante que se materializou do outro
lado da rua da residência das moças e, vendo que Mariamma o
observava, fez que removeria o pano que cobria sua cesta, mas não: foi
seu lungi que ele levantou — e uma cobra bem diferente surgiu de sua
virilha.
A troco de quê os homens a submetiam, a ela e também a todas as
mulheres que ela conhecia, a esse tipo de assédio e humilhação? É só
quando forçam alguém a tocá-lo ou quando têm uma plateia que ficam
convencidos de que o órgão de fato existe? No começo daquele ano,
assim que o ônibus da residência feminina as trouxe de volta de uma
exposição de sáris, um trecho interditado na estrada forçou o motorista
a fazer um desvio por uma via estreita que contornava a residência
masculina. Na varanda, um estudante lia o jornal nu. Num gesto
rápido, optou por cobrir o rosto, não as partes baixas. Aquilo era
compreensível — ele queria se poupar da vergonha de ser reconhecido.
No entanto, o que Mariamma não conseguiu entender foi por que ele
decidiu se levantar, ainda cobrindo o rosto, porém exibindo tudo mais,
enquanto o ônibus e suas passageiras passavam.

Mais tarde, ela mal consegue explicar o que faz em seguida. É o


instinto desesperado de um animal encurralado, mas também a
explosão de uma raiva primitiva. Mariamma lembra do pesadelo
recorrente em que uma víbora mostra as presas e lança cusparadas em
sua direção, enquanto ela agarra desesperadamente a cabeça da cobra,
afastando-a de seu rosto, lutando enquanto o animal a chicoteia e se
espreme e tenta dar o bote… E assim seus dedos se cerram
instintivamente ao redor do pênis de Sarkar, com uma força assassina.
Sua mão direita salta para a batalha, socorrendo a esquerda, socando a
virilha de Brijee por fora, apoiando a torção da esquerda ao agarrar tudo
que balança — saco escrotal, epidídimo, testículos, a base do pênis e…
que se dane a anatomia —, esmagando tudo com a força de quem luta
pela vida.
Por um breve momento, a vaidade de Brijee o faz pensar que ela o
acaricia. Quer falar, levanta as sobrancelhas, mas gagueja e fica pálido.
Então dá um passo para trás, as veias em sua têmpora se incham, ele
cambaleia contra a mesa — derruba as amostras, o vidro se parte, o
bebê hidrocefálico desliza pelo piso inundado de formol. Nessa
retirada, o inimigo arrasta Mariamma com ele, pois, não importa o que
aconteça, ela não soltará a cabeça da serpente. Brijee consegue dar um
grito, e Mariamma grita também, um grito de gelar a alma, e os dois
caem sobre a mesa. A testa dela bate contra o vidro quebrado, porém
nada a distrai do propósito de esganar a serpente, mesmo que pereça na
tentativa.
De repente a porta da sala é escancarada, mas ela não pode nem
olhar nem soltar a serpente. O rosto de Brijee Sarkar está a centímetros
do seu, o paan perfumado de seu hálito em suas narinas, seu grito
caindo no silêncio, a pele dele ficando acinzentada. Tarde demais, ele
agarra os antebraços dela, mas sua força se foi, o gesto é fraco,
suplicante. O corpo do professor pende, as mãos tombam, ele é um
boneco de pano, seus olhos se reviram. Ela consegue ouvir Chinnah
lhe implorar para soltá-lo, enquanto Da Vinci e Pius socorrem Sarkar.
Mas ela não consegue soltar nem pode silenciar seu grito de guerra.
Chinnah, corajoso, vai com tudo e desgruda os dedos de Mariamma,
um por um.
Chinnah tira Mariamma da sala, primeiro a arrastando e depois a
levando nos braços. Ele a deita em uma sala de laboratório vazia e
pressiona um lenço contra a testa que sangra. Mariamma cambaleia até
uma pia e esfrega as mãos furiosamente, depois vomita, enquanto
Chinnah segura sua cabeça, ainda pressionando os ferimentos.
Soluços e ódio se misturam com a água e o sangue. Ela abraça
Chinnah, e então lembra que ele também é um homem. Ela lhe soca
o peito e as orelhas, e ele aceita os golpes, oferecendo-se, disposto a ser
ferido. Espera até ela se cansar.
“Desculpe”, ele sussurra.
“Desculpar o quê?”
“Sinto vergonha por todos os homens.”
“Tem que sentir mesmo. Vocês são todos uns canalhas.”
“Você não está errada. Lamento muito.”
“Também lamento, Chinnah.”
65. Se Deus falasse

madras, 1971

A residência feminina está deserta. A maior parte das estudantes foi


para casa no recesso, salvo algumas poucas que já estão praticando na
clínica. Como o refeitório está fechado, precisam comer na cantina do
hospital.
Mariamma escreve ao pai, dizendo que passou em anatomia… Mas
precisará adiar seu retorno a Parambil por mais ou menos um mês, a
fim de terminar um “projeto inacabado”. O tal projeto é ela própria.
Exteriormente, ela relevou o episódio nojento com Brijee, mas seu
interior está um caos. Tem vergonha de encarar o pai. Que ficaria
louco ao ver a cicatriz em sua testa e ouvir a história. Buscaria justiça.
De algum modo, fez-se justiça. Ao menos acreditaram em sua versão —
Brijee era conhecido por aquele tipo de comportamento. Mas seu
infarto, além da desonra, da suspensão do serviço federal não foram
punição suficiente. Ele deveria estar preso. E ela não tem vontade
nenhuma de lutar por essa causa e atrair mais holofotes para si mesma.
Já algum médico, poeta frustrado, imortalizou sua vergonha em verso:

O dr. Brijee em certo exame


Apresentou o pau como parte do certame
Mas para sua tristeza
Ela respondeu com tanta destreza
Que hoje o doutor, como macho, dá vexame.

No período da manhã, ela acompanha uma veterana designada para


a ala de clínica geral. O contato com os pacientes e as doenças a
entusiasma, serve para lembrá-la das razões para estar ali. À tarde, fica
em seu quarto escaldante, lendo sobre os pacientes que visitou de
manhã. É meio perverso, mas ela sente falta da tortura de uma prova
iminente ou de um catatau para decorar — qualquer coisa que a
distraia do que aconteceu. Ela está à deriva.
Três semanas depois, ao voltar do hospital vê um homem sentado no
banco sob o carvalho no pátio da residência. Seu cabelo cacheado
desce pelo rosto, mesclando-se a uma barba que desliza pelas maçãs do
rosto até chegar à garganta. Essa barba com jeito de tapete não
consegue ocultar de todo uma cicatriz na face esquerda. Vestindo uma
kurta laranja-alvorada, ele parece em chamas. Se estivesse
acompanhado de um papagaio e de um baralho, poderia passar por
vidente. Não fossem os olhos suaves e sonolentos, ela não o
reconheceria. Lênin segura uma xícara de chá da residência — a
enfermeira-chefe Thangaraj, de coração mole, deve tê-lo admitido
naquele santuário isolado.
Ele a reconhece de imediato, embora a Mariamma que os dois
conheciam tenha desaparecido há um ano e meio no Forte Vermelho.
Por dentro, ela é outra pessoa.
Ele deixa a xícara no banco e se aproxima. “Mariamma?” Suas mãos
se estendem para a jovem, mas ela recua.
“O que você está fazendo aqui? Appa o enviou?”
“Pra mim também é um prazer te rever, Mariamma…”
“Homens não têm acesso à residência.” Ela não consegue explicar
sua hostilidade, quando, por dentro, está feliz em vê-lo.
“E, não obstante, cá estou”, ele diz, desafiadoramente.
“Me surpreende muito que a enfermeira-chefe tenha te deixado
entrar.”
“Eu disse que era seu irmão gêmeo.”
“Em outras palavras, você mentiu.”
“Estava falando… metaforicamente. E a enfermeira disse: ‘Que fofo!
Você deve ter sentido a dor de Mariamma e decidiu vir!’.”
“E você sentiu? Sentiu minha dor?”
A expressão de Lênin é a de um garoto que destruiu a bicicleta que
ele pegou emprestada, e cuja maldição é dizer a verdade a qualquer
preço. “Não”, respondeu. “Não, não senti. Você não respondeu às
minhas cartas. Supus que estivesse em Parambil. Por acaso
desembarquei na Estação Central há poucas horas. Olhei para o outro
lado da rua e vi o Madras Medical College. E arrisquei. Perguntei onde
ficava a residência feminina, e eis-me aqui.”
“Você não deveria estar com o achen viúvo?”
“Aah. Eu tive…”
Esse não é o velho Lênin. Falta-lhe a indignação convicta. Nem
consegue dizer aquela palavra que tantas vezes usou para minimizar
suas encrencas.
“Eu também, Lênin. Tive um pequeno ‘desentendimento’.”
“A enfermeira me contou por cima. Achou que eu soubesse”, ele diz,
observando-a sem muita firmeza.
“Sim, todo mundo sabe. Só não sabem o que dizer. ‘Espero que você
se recupere logo’?” Sua risada soa estranha mesmo para ela. Mais
estranho ainda é ela estar enxugando os olhos.
Lênin busca de novo sua mão. Depois ele a puxa suavemente para
perto dele. Ela se agarra ao rapaz como uma afogada. A kurta dele
parece lixa ralando seu rosto, mas tecido nenhum jamais lhe pareceu
mais acolhedor. Se a enfermeira os visse… Porém, enfim, ele é seu
irmão gêmeo.
“Estou com vergonha de voltar a Parambil.”
“Vergonha de quê? Você me dá orgulho. A única vergonha é você
não ter matado esse camarada.”
“Vamos dar o fora daqui, Lênin”, ela diz, com urgência. “Vamos sair
da cidade. Por favor.”
Ele hesita, mas apenas por um momento. “Vamos lá.”

O ônibus se aproxima da praia e o mar parece coberto de diamantes.


A cada quilômetro ela tem a sensação de que se despe de vestes
conspurcadas, de que uma pele contaminada descasca. O barulhento
motor a diesel e o vento que entra pelas janelas desencorajam qualquer
conversa. Lênin tem manchas de nicotina nos dedos. Está mais magro,
seus lindos olhos exibem uma dureza que ela nunca tinha visto. A
cicatriz, espessa, é mais extensa do que ela imaginava, correndo até seu
pavilhão auricular, uma ferida que claramente não foi suturada. Ambos
estão marcados.
Em Mahabalipuram, um ambulante abre uns cocos frescos para eles.
Lênin compra cigarros, biscoitos e um colar de jasmim para o cabelo
de Mariamma. O aroma paira como uma auréola ao redor dela ao se
aproximarem dos templos de pedra.
Não são os templos, mas é o mar o que Mariamma mais deseja: o
murmúrio das ondas, a restauração da água. Ela deixa que a espuma
das ondas lave seus tornozelos, enquanto Lênin fica para trás, à espera.
Os dois estão sozinhos. Pilritos se enfileiram como carregadores na
plataforma do trem, esperando a próxima onda; recuam agilmente um
pouco antes da língua da água, bicando criaturas invisíveis.
“Lênin, preciso nadar. Nunca nadei no mar. A rebentação é muito
forte em Marina Beach.” Ele parece preocupado. “Vire o rosto, não
olhe.” Ela tira o sári, a anágua e a blusa. Mergulha só de calcinha e
sutiã. O chão se desmancha sob seus pés. A corrente é imprevisível,
porém ela se delicia. Lênin ainda está de costas. “Ei!”, ela diz. “Pode se
virar.” Ele se vira e a olha, nervoso. Grita para que ela tome cuidado.
Mariamma tenta nadar, mas luta para acompanhar o movimento do
mar. Seus olhos ardem, a água salgada entra em seu nariz. Mas ela
sorri. Imersão é piedade e perdão.
Lênin fica aliviado quando ela volta. E saca de sua mochila uma
toalha. A jovem se sente audaz, atrevida: depois do que passou, tem
direito a um pouco de inconsequência, a ser como bem desejar. Ele a
cobre enquanto ela tira as peças de roupa molhadas e veste de novo a
blusa, a saia e o sári. A água desfez uma barreira que havia dentro dela.
Sentam-se na areia, e ela lhe fala de Brijee. Tudo bem, já conhecem
sua história, mas ninguém sabe como ela se sente. E é isso que ela
desafoga agora: raiva, vergonha, culpa — tudo que ainda está
entranhado nela. Mas, ao falar, vem-lhe um senso de empoderamento.
Ela não tem culpa, a não ser a culpa de ser ingênua e de ser mulher.
Durante o inquérito ela se convenceu da correção de sua atitude e
soterrou qualquer sugestão de que pudesse ter tido alguma
responsabilidade. Aprendera uma lição: mostrar-se fraca, lacrimosa ou
esgotada não servia a nada. Não se deve apenas rezar por respeito: é
preciso demandá-lo com insistência.
Quando termina, ela se sente melhor. Come um biscoito. Lênin,
sentado de pernas cruzadas e cabeça baixa, fuma e traça círculos na
areia. Ficou visivelmente afetado pelo relato de Mariamma, chegou até
a segurar sua mão. Será autocentrismo dela não perguntar sobre os
problemas dele, sua cicatriz e a razão de ele estar ali? Ou ela está
apenas lhe dando espaço para decidir se fala ou não? Ele pode falar,
caso decida fazê-lo. Ou não.
À medida que a luz desvanece, as ondas quebram mais
ruidosamente. As silhuetas negras nos templos de pedra contra o céu
fazem-na se sentir como se os dois tivessem voltado ao passado. Sua
mãe deve ter visitado aquele lugar quando estudou em Madras, deve ter
mergulhado naquelas mesmas ondas. Essa água conecta vivos e mortos.
Talvez as esculturas até tenham inspirado a Mulher de Pedra. A brisa
marítima acalenta e refresca. Madras parece a milhões de quilômetros
de distância.
“Os minutos que passamos olhando as ondas não são contabilizados
na duração de nossa vida”, ela diz.
“Sério? Eu devia ficar por aqui então, para ver se chego aos trinta.”
Ele sorri, mas Mariamma não gosta do comentário.
Já está escuro quando vão embora, cambaleando na areia, de mãos
dadas. O único ônibus para a cidade já saiu. A antiga Mariamma teria
entrado em pânico, a nova não dá a mínima.

No cartaz escrito à mão na frente da hospedaria estreitinha de três


andares se lê hotelmajesticrefeissõesreais, sem separação entre as
letras. Uma figura solitária salta da cadeira, brandindo um pano como
um chicote, espanando poeira das cadeiras e das mesas de jantar. Está
tomado de alegria pela presença de clientes. Mostra o caminho por
uma escadinha raquítica, enquanto Mariamma admira a forma delgada
de seu crânio.
Ela levanta o colchão fininho para ver se há percevejos. Uma
lâmpada nua no teto é toda a iluminação. Uma escadinha conduz a um
banheiro minúsculo onde há um vaso sanitário instalado diretamente
no chão, uma torneira e um balde com uma caneca flutuando dentro
dele. Baratas se escondem quando ela acende as luzes. Ela enche o
balde e toma banho, deixando escorrer suor, areia e sal. Lênin lhe
empresta um mundu e ela o enrola sob as axilas. Depois é a vez dele.
O garoto que entrega a comida deve ser filho daquele homem, pois
seu crânio também tem a forma de uma torre. “É oxicefalia, não tem
cura”, ela diz. Lênin fica impressionado, mas então se tranquiliza.
“Pelo menos tem um nome”, ele justifica.
Sem saber, a frase dele a desola. Tal como com a Condição, um
nome não cura.
O biryani de vegetais que chega embrulhado em folhas de bananeira
ultrapassa suas expectativas das RefeissõesReais: o prato do chef é
melhor que sua ortografia. Lênin, sem camisa, mal come. Ela o viu
assim muitas vezes, mas agora, por algum motivo, ele parece diferente.
O rapaz acha graça quando ela traça toda a porção dela e depois o
restante da dele. Quando ela termina, ele lhe dá um soquinho no
ombro.
“Então, Mariammaye”, ele diz, “é aquela velha história: dou as
costas por um segundo, e você se mete em apuros.” Lênin acende um
cigarro. Ela o arranca de sua boca. “Ei! Você deveria perguntar se pode
fumar!”
Mariamma traga a fumaça e a expira; a espiral preguiçosa que sobe
para o teto é um ser vivo. O sorriso no rosto lembra o velho Lênin, mas
de longe. “Então, irmão gêmeo. Desembucha. O que aconteceu?”
Chega de esperar que ele decida.
O rapaz olha pela janela.
“Eu escolhi um caminho”, ele diz.
Ela espera, mas ele não diz nada. “Um caminho reto? Só parando se
for obrigado?”
Ele assente. “Mas, nesse caminho, quando eu chegar ao fim, será o
fim.”
Não tem mais nada a acrescentar.
“Então, como está seu amigo nativo — Kochu paniyan, não é? E
Raghu, o bancário? Está vendo? Eu leio suas cartas.”
Ele a encara com uma expressão ainda mais sombria.
“Estão mortos.”
Uma mão fria lhe agarra o pescoço, ela quer tapar os ouvidos.
Deveria impedi-lo de continuar. Levanta, sem saber por quê. A
lâmpada nua lhe cega os olhos, ela a apaga. Pronto. Isso ajuda.
Caminha pelo quarto, há um pouco de luz entrando pela janela. A voz
de uma mulher ecoa no andar de baixo. Ela lembra como, quando
menina, detestava o recém-chegado Lênin por causa de suas
artimanhas, mas não conseguia deixar de segui-lo. Por quê? Queria ver
o que aconteceria depois. Era uma compulsão. O rosto de Lênin à luz
do cigarro mostra certa preocupação. E, por trás daquela expressão,
Mariamma vê desespero. Ela volta a se acomodar na cama, as pernas
cruzadas, de frente para ele. Não consegue evitar. A velha compulsão
não a larga. Precisa saber.
“Quando cheguei a Wayanad, comecei a lembrar de coisas
estranhas”, Lênin diz. “Acho que não falei disso nas cartas. Tínhamos
vivido ali quando eu era pequeno. Foi só depois de conhecer Kochu
paniyan e visitar seu assentamento na floresta, um lugar onde sua
família está há três ou quatro gerações, que algumas lembranças me
ocorreram. Lembranças da minha mãe, minha mãe tão linda. Lembrei
que esperava por ela do lado de fora de cabanas como a de Kochu
paniyan, tapando os ouvidos para não ouvir os gritos de uma mulher
em trabalho de parto. Lembrei que vi um homem igualzinho a Kochu
paniyan indo pra nossa casa com uma carpa gigante. Pagamento para
minha mãe, talvez. Ele limpou o peixe, depois voltou com óleo e acho
que arroz. Talvez estivéssemos só ela e eu quando ele veio, o fogo da
cozinha apagado, e meu pai fora — o que seria bem provável. Com
certeza não imaginei tudo isso. Que outras memórias não estão
enterradas em minha cabeça?”
Segundo Lênin, os nativos são um povo desconfiado. Foram usados e
abusados por todos que chegaram. Os britânicos aboliram o trabalho
escravo, no entanto, para construir navios obrigavam a comunidade
local a cortar as árvores que ela considerava sagradas. Se os ingleses não
tivessem descoberto o chá, as montanhas estariam carecas. Por outro
lado, fizeram os nativos aterrarem as encostas onde tinham vivido por
gerações. Depois, mais recentemente, foram os malaialas de Cochim e
Travancore que os exploraram ao migrarem para o norte. Oficiais,
comerciantes, capatazes. “Gente como meu pai”, Lênin disse. Os locais
não usavam dinheiro, praticavam escambo. Os forasteiros os
encorajaram a construir casas tipo pukka e lhes disseram que se
servissem à vontade de machados, carrinhos de mão, pás, roldanas,
cimento, roupas — sem necessidade de dinheiro, bastava uma digital.
Naquele momento. Ao final, se as pessoas não podiam pagar, elas
perdiam a terra. Esse povo aprendeu lições dolorosas. “Uma pessoa
roubada ganha consciência política muito rápido. Você não tem nada a
perder além das correntes que te prendem. Quem diz isso é Marx, por
sinal, não eu.”
“Olha só, você citando Marx”, Mariamma diz.
Lênin se cala. “Posso parar se você não quiser mais ouvir.”
Ela não responde.
Lênin gostava de ir à Casa de Chá de Baby, o tal Moscou, e sentar
com Raghu. Ele às vezes o via com um homem mais velho, de uns
quarenta anos, Arikkad, que nunca ficava muito tempo. Raghu disse
que, se Lênin realmente quisesse compreender as tensões de classe em
Wayanad, deveria procurar Arikkad. De uma família cristã de classe-
média, ele havia sido preso por participar de uma greve dos
trabalhadores das fazendas que produziam fibra de coco. Raghu dizia
que não havia educação melhor do que ir parar atrás das grades. O
capital de Marx, e a História do Partido Comunista da União Soviética,
de Stálin, circulavam entre os prisioneiros pela simples razão de serem
os únicos livros traduzidos para o malaiala. O camarada ia preso por
embriaguez e saía da prisão doutrinado, um comunista sóbrio. Arikkad
se tornou um membro dedicado do Partido Comunista, vivendo com os
povos nativos, lutando por eles. Algo que o Partido do Congresso nunca
fez.
“Quando fomos apresentados”, Lênin continuou, “vi nele um
homem humilde. Inspirador. Até mais do que meu velho Achen. Era
alguém que estava de fato fazendo alguma coisa para melhorar a vida
dessas comunidades. Ele se mostrou muito mais interessado em mim,
em minha vocação sacerdotal.”
“Aah! Você tinha uma boa história sobre isso, não é?”, comenta
Mariamma. Falou sem pensar. “Desculpe. Esquece. Continue.”
“Não, você está certa. Eu tinha, sim. Esse é o problema. Acreditava
na minha história. Mas já não acredito. Não fui poupado para servir a
Deus. Fui poupado para servir a pessoas como os pulayi que me
salvaram. No entanto, não estava fazendo isso, não como seminarista.
Enfim, falei das minhas dúvidas para Arikkad. ‘Então você está cansado
de distribuir ópio?’, ele perguntou. Não entendi até que ele me
explicasse. Ao que parece, Marx disse que a religião é o ópio do povo. É
ela que impede os oprimidos de reclamar ou tentar mudar as coisas.
Arikkad também disse que a Igreja não precisa ser como é aqui. Falou
que havia jesuítas na Colômbia e no Brasil que viviam e trabalhavam
com os nativos locais, fazendo o que Cristo ensinou. Quando os
camponeses se insurgiram contra um governo que os oprimia, esses
padres se solidarizaram. Juntaram-se aos rebeldes. Desobedeceram à
Igreja deles. Um dos jesuítas havia escrito sobre sua crença, que
batizou de ‘teologia da libertação’. Isso foi uma revelação para mim.
Me perguntei se a biblioteca do meu seminário teria esses textos.
Provavelmente não.”
Tudo mudou certo dia em que Kochu não apareceu para trabalhar.
Na manhã seguinte, ele foi bater bem cedo na porta de Lênin, parecia
angustiado, desesperado. Seu irmão mais novo havia pegado dinheiro
emprestado de um empresário chamado C.T., depois pegou mais,
hipotecando a terra da família. A data para quitar os empréstimos havia
chegado. Em vez de contar para a família — e ele deve ter recebido
muitos avisos —, o rapaz desapareceu. Kochu só soube de tudo quando
C.T. apareceu com uma papelada de cartório dizendo que a família
tinha setenta e duas horas para sair. Kochu queria que Lênin fosse com
ele pedir ao Achen para falar com C.T., que era da comissão da igreja.
“Gente como C.T. é o oposto de Arikkad. Eles odeiam o comunismo,
porque foi explorando os nativos que se tornaram ricos e poderosos.”
Relutante, Achen foi falar com C.T. e voltou quase em seguida,
trêmulo. Fora destratado por tentar interceder. Achen disse que rezaria.
“Eu te digo, Mariamma, nunca as preces me pareceram mais inúteis.”
Kochu já tinha se encontrado com Arikkad, que tentava pedir uma
ordem de permanência junto ao tribunal. “Isso é ótimo!”, Lênin disse
para Kochu, que o olhou consternado: “Ótimo? Quando foi que os
tribunais ajudaram nosso povo? O tribunal é do povo deles”. No dia do
despejo, Lênin foi ao assentamento de Kochu. Muitas famílias nativas
foram mostrar apoio, junto com Arikkad, Raghu e outros ativistas.
Embora Arikkad tivesse entrado com um pedido de permanência, o
juiz era “um deles”. Logo chegaram três jipes, lotados de homenzarrões
com correntes de bicicletas e varas de bambu. Um jipe da polícia
chegou e estacionou atrás deles. C.T. gritou que a família tinha cinco
minutos para ir embora. Seguindo as instruções de Arikkad, todas as
pessoas reunidas sentaram-se pacificamente no chão.
“Passados cinco minutos, os goondas de C.T. vieram para cima de
nós. A polícia só ficou olhando. Vi e ouvi uma vara quebrar a
mandíbula de Kochu. Arikkad levou o segundo golpe. Uma mulher
tentou proteger a cabeça e uma corrente partiu o braço dela. Entrei em
transe, não podia acreditar naquilo. De repente, senti uma dor terrível
no ombro. Virei e agarrei a corrente do sujeito que me batia e parti pra
cima dele — acabou a não violência ghandiana. Apanhei até, me
espancaram sem dó. Depois jogaram gasolina na palha dos telhados e
incendiaram as casas. Precisei fugir rastejando, o calor era terrível.
“Kochu foi parar no hospital com uma perna e a mandíbula
quebradas. Arikkad e Raghu apanharam tanto que precisaram de
atendimento no pronto-socorro. Outras pessoas também foram parar no
hospital. Alguém me levou de bicicleta até meu quarto, meu joelho
estava do tamanho de uma bola de futebol. Achen mal me reconheceu,
meu rosto estava tão inchado que parecia uma máscara. Pobre Achen:
chorava enquanto cuidava de mim. Gritava, clamava aos céus. Caiu de
joelhos, pedindo a Deus por justiça. Ah, Mariamma… Se Deus tivesse
pelo menos respondido às súplicas do Achen, servo fiel que faria gosto a
qualquer deus… Se Deus tivesse respondido… minha vida talvez
tivesse seguido outro caminho. Eu urinava sangue. Não conseguia
caminhar. Ficava na cama ruminando, lambendo as feridas.”
Alguns conhecidos do Moscou foram visitar Lênin. Contaram que
Kochu se mandara do hospital. “Saída por conta própria, contra o
conselho médico”, alegou o hospital. De perna e mandíbula quebrada,
como alguém sai “por conta própria”? A verdade é que a polícia ou os
paramilitares pegaram Kochu paniyan e o torturaram em busca de
informações. O pobre não sabia de nada! A família não o vira.
Provavelmente despacharam o corpo na floresta, onde os animais
selvagens darão cabo de qualquer pista. Lênin ficou sabendo que não
era a primeira vez que aquilo acontecia. Enquanto isso, ignorava-se o
paradeiro de Arikkad e Raghu. A polícia estava no encalço. Entraram
para a clandestinidade. Corria o boato de que seriam naxalitas.
Naxalitas.
Um arrepio percorreu a espinha de Mariamma. De repente ela
sentiu o quarto gelar. A mera menção daquela palavra — “naxalita” —
parece arriscada, seu pulso logo se acelera. “Pare, Lênin”, ela diz.
“Preciso fazer xixi.”
Ela tenta se lembrar do que exatamente entende sobre o movimento
naxalita. Sabe que o nome vem de um pequeno vilarejo — Naxalbari
— na Ben­gala Ocidental. Os camponeses, depois de trabalharem como
escravizados para os latifundiários, recebiam tão pouco da colheita que
chegavam a passar fome. Desesperados, apossaram-se da colheita da
terra que lavravam havia gerações. Policiais armados, subornados pelos
latifundiários, chegaram e dispararam contra os camponeses que
haviam se reunido para uma negociação; uma dúzia ou mais,
incluindo mulheres e crianças, foram mortos. Ela se lembra, saiu em
todos os jornais. A indignação contra o massacre de Naxalbari se
espalhou como cólera, e assim nasceu o movimento “naxalita”. À
época, Mariamma estava de partida para o Alwaye. Camponeses em
muitos lugares atacaram e até mataram os latifundiários e seus
funcionários corruptos. A polícia respondeu com igual violência. Havia
um medo palpável de que o país estivesse à beira de uma revolução. Se
os grupos camponeses espalhados pela Índia se unissem, poderiam
tomar o poder. O governo respondeu criando uma força paramilitar
para perseguir os naxalitas, sem qualquer supervisão ou limites a seus
poderes. Dois garotos inocentes de sua faculdade desapareceram. O
movimento naxalita fora particularmente forte em Kerala. Mariamma
temeu que seu pai se tornasse um alvo, mas ele lhe explicou que suas
propriedades eram minúsculas se comparadas às terras dos fazendeiros
mais ao norte, donos de milhares de hectares; além disso, em Parambil
nunca houve meeiros.
Mariamma volta e senta na cama, enrolando o lençol ao redor dos
ombros, pois está tremendo. Lênin lhe pergunta se deve parar. “Tarde
demais”, ela diz. “Continue.”
“Eu estava com muitas dores. Levei muito tempo para ficar bem”,
Lênin diz. “Mas sentia outro tipo de dor. A da injustiça e da crueldade
que eu havia testemunhado. Não parava de pensar em Acca, a pulayi
que me salvou da varíola. Qual foi sua recompensa? Ser expulsa como
uma vira-lata. O menininho faminto — eu — tinha prometido: ‘Nunca
vou esquecer você’. E não esqueci — essa parte é verdade. Mas o que
fiz por ela? O que faria por ela como sacerdote? Eu tinha ‘vivido a
dúvida’ por muito tempo. Naquela cama, lambendo minhas feridas,
cheguei a uma resposta. Eu não tinha escolha.
“Falei a um frequentador assíduo do Moscou que queria o contato
de Arikkad. Ou de Raghu. Ele se alarmou. Disse que não tinha e se foi.
Dois dias depois encontrei um bilhete debaixo da porta dizendo que eu
fosse ao terminal de ônibus à meia-noite. Uma motocicleta apareceu.
Fui vendado e me levaram. Quando tiraram a venda, me vi numa
clareira. Três homens se aproximaram, armados. Um deles era Raghu.
Ele tentou me dissuadir. Disse que eu poderia fazer outra coisa da vida,
se já não queria o seminário. ‘Como o quê, Raghu?’, perguntei.
‘Trabalhar num banco?’ Não havia mais volta.”
A voz de Lênin parece vir de um lugar muito longe, pensa
Mariamma. Ela está num quarto com um naxalita, não com o menino
com quem cresceu. Sente uma tristeza terrível, um desespero. Seu
corpo e sua mente estão adormecidos, em choque. Ela escuta.
“Fui designado a uma determinada célula, e lá encontrei Arikkad e
os outros. Precisávamos desesperadamente de mais armas. Éramos uma
dúzia de homens e só tínhamos cinco rifles, dois revólveres e algumas
bombas caseiras. Não dá pra fazer resistência armada sem armas.
Planejamos dois ataques. Um era para angariar armamento, e seria a
uma subestação e depósito de armas da polícia; outro era vingança
pura. O alvo era C.T., que tinha um escritório na cidade e um bangalô
na fazenda. O bangalô estava situado num ponto que permitia avistar
qualquer um que se aproximasse vindo de baixo. Mas tínhamos um
acesso lateral, atravessando a mata fechada. C.T. provavelmente estaria
armado. Mas nós também, e estávamos em maior número.
“Arikkad atacaria o depósito na mesma hora em que nosso grupo
atacaria C.T. No momento em que a gente cortou a cerca de arame
farpado para entrar na propriedade, ouvimos o rugido de um motor e
vimos o carro de C.T. rasgando a estrada, desaparecendo montanha
abaixo. A porta da frente da casa ficou aberta, o jantar à mesa, comido
pela metade. Alguém tinha dado com a língua nos dentes.
Encontramos seu dinheiro sujo atrás de painéis de madeira da parede
que haviam sido mal pregados. Era dinheiro sonegado que ele não
poderia guardar no banco. Deve ter pegado o que pôde ao fugir.
Levamos duas armas, depois ateamos fogo no bangalô. Como
planejado, fomos até a cabana de um simpatizante, lá estocamos as
armas e o dinheiro, e esperamos. Em pouco tempo tivemos notícia do
outro ataque. Quando se aproximavam do depósito, Arikkad e seus
homens sofreram uma emboscada da polícia. Raghu, coitado, morreu
na hora. Eles recuaram, perseguidos pela polícia. Arikkad lançou uma
bomba caseira no jipe que os perseguia e feriu um policial. O veículo
ficou inutilizado. Os homens se separaram e sumiram. Nosso grupo fez
a mesma coisa. Partimos sem levar nenhuma arma, para não chamar a
atenção por onde passássemos. Foi um fiasco.
“Dormi ao relento e no dia seguinte, ao meio-dia, cheguei ao ponto
de encontro numa trilha no alto das montanhas. Estava com fome,
medo e raiva. Sabia que esse ponto de encontro poderia estar
comprometido. Não havia ninguém lá. Quando pensava em dar o fora,
Arikkad apareceu, exausto. Perguntou se eu tinha comida. Só tinha
água. Sua pele estava cheia de picadas, pior que a minha. Os policiais
não deveriam estar muito longe, ele disse, mas não se arriscariam a
deixar a estrada principal à noite. Ainda assim, não podíamos continuar
ali. Era preciso comer e dormir. Arikkad tinha um amigo, Sivaraman,
dos “velhos tempos” — dos tempos de prisão, imaginei —, que tinha
uma casa a alguns quilômetros dali.
“Chegamos às margens de uma clareira à uma da madrugada.
Quando vi a casa, alguma coisa ali me incomodou. Me senti de volta à
Mansão do Supervisor com o corpo dos meus pais e da minha irmã.
Podia sentir o cheiro de morte. Tentei segurar Arikkad, mas ele disse
que, se não comesse ou dormisse, estaria acabado. Iria primeiro e me
faria um sinal se fosse seguro, mas eu lhe pedi que não fizesse isso. Eu
ficaria do lado de fora, numa árvore, e ele não deveria mencionar
minha presença. Sivaraman abriu a porta. Parecia relutante, mas
deixou Arikkad entrar. Subi numa árvore com a pouca energia que me
restava. Fiquei num galho a três metros de altura. Usei meu mundu
para me amarrar e não cair. Apesar do frio e dos mosquitos fazendo a
festa na minha carne, adormeci.
“Uma ou duas horas depois, acordei de repente, alerta. Um policial
com um rifle se arrastava bem debaixo de mim! Ele não me via. Tinha
estalado a língua, e foi esse som que me acordou. Dois outros agentes
apareceram, então vi Sivaraman do lado de fora da casa, gesticulando
que entrassem.
“Arrastaram Arikkad e o atiraram no chão, sob o olhar de Sivaraman.
Prenderam suas mãos com tanta força que ele gritou. Tremi de raiva e
medo, tinha certeza de que meus dentes batendo iam me entregar.
Passaram bem debaixo de mim. Arikkad manteve os olhos no chão.
Alguma coisa dentro de mim se partiu.
“Minhas pernas estavam dormentes, levei uma eternidade para
descer. Fui até a casa e com a boca rente à porta falei: ‘Sivaraman, você
traiu um homem bom. Você não vai viver para gastar o dinheiro da
recompensa. Quando sair, vamos estar te esperando’. Eu ouvi ele
choramingar. Queria que morresse de medo. Depois, com as pernas
bambas, fui atrás dos policiais, ficando sempre a uma distância segura.
Apressados, eles se dirigiram a uma das es­tradas que correm pelos Gates
e uma hora depois, bem quando o céu clareava, alcançaram a estrada e
despencaram no chão, exaustos. Ofereceram uma banana para Arikkad.
Me aproximei até onde tive coragem, me ocultando atrás de uma
árvore. Se espirrasse, iriam me ouvir. Fiquei arquitetando planos para
salvar Arikkad, todos eles suicidas. Eu não tinha armas nem forças.
“Pouco depois do amanhecer apareceram dois jipes. Um camarada
grandalhão saltou todo animado, cumprimentado seus homens. Era o
subcomissário. Foi correndo dar um tapa em Arikkad, que sorriu e disse
alguma coisa. O subcomissário xingou e chutou Arikkad. Ordenou que
os agentes algemassem seus tornozelos e cobrissem sua cabeça com um
saco. Depois ouvi que discutiam perto do jipe. O subcomissário
empurrou um dos agentes, o mesmo que tinha se arrastado embaixo da
árvore em que eu estava, e puxou o revólver dele. Será que atiraria num
colega? Não entendi nada. Mas Arikkad entendeu, mesmo encapuzado.
‘Edo, subcomissário?’, ele gritou. ‘Seja homem. Tire meu capuz
primeiro. É tão covarde assim? Não consegue me olhar nos olhos
antes?’
“O subcomissário caminhou na direção de Arikkad, o passo forte. Era
como se ele não estivesse numa clareira, mas num palco. Arrikad se
esforçou para ficar de pé, apesar dos braços presos. O subcomissário
arrancou o capuz e cuspiu umas palavras no ouvido dele. Arikkad riu.
“Então Arikkad, com os pés acorrentados, se virou e olhou para o
local onde eu estava escondido! Ele sabia que eu estava lá e me queria
de testemunha. ‘Conte aos meus camaradas, conte ao mundo’, era o
que tentava me dizer. O subcomissário recuou três passos para tomar
distância, o braço direito estirado como uma régua, o revólver
apontando para o chão. Eu podia ver o rosto de Arikkad sorrindo.
Aquele sorriso era mais poderoso do que qualquer arma. Arikkad gritou:
‘Outros levarão a luta adiante!’. Vi o braço do subcomissário se erguer.
‘Vida longa à revolução…’”
Mariamma mal consegue respirar, os olhos fixos no rosto iluminado
pelo brilho fantasmagórico que entra pela janela.
“O tiro foi tão alto que ecoou nas rochas atrás de mim. Gritei. Com
raiva. Com ódio. Tinha certeza de que tinham me ouvido. Meus
ouvidos zumbiam. Os deles também, com certeza. Arrastaram o corpo
declive abaixo. Nenhum dos agentes parecia feliz. Foi uma execução à
queima-roupa. Botaram o corpo na traseira do jipe. Mesmo depois que
partiram, o zumbido no meu ouvido não parava.
“Encontrei a banana escondida na rocha onde Arikkad tinha
sentado. Ele havia deixado para mim, só pode ser. Eu chorava sem
parar. De algum modo consegui arrastar duas pedras do mesmo
tamanho para o ponto onde a terra estava manchada de sangue.
Encontrei uma rocha longa e achatada, e botei essa pedra sobre as
outras duas. Fiquei ali por um bom tempo, diante desse memorial, essa
lápide dedicada a meu camarada de armas. A resposta é sempre a
mesma, pensei sozinho, ao me afastar. Siga pelo caminho reto até o
fim.”
66. A linha divisória

mahabalipuram, 1971

Lênin logo adormece, como se, ao desafogar-se daqueles eventos


horríveis, tivesse encontrado um respiro temporário. Já Mariamma não
consegue dormir.
Olha pela janela e vê estrelas. Quantos anos-luz aquelas alfinetadas
no firmamento negro viajam para chegar à sua retina? Lênin saberia
dizer. O mar não está visível, mas ela ouve a rebentação contra esse
trecho da costa de Coromandel. O golfo de Bengala se estende a leste
por centenas de milhas até abraçar as Ilhas de Andaman e, por fim, a
costa de Burma. Se ao menos a imensidão desses elementos — o céu,
as estrelas, o mar — pudesse apagar o que Lênin lhe contou. Sente-se
acachapada pelo que sabe agora.
Lênin parece em paz. Grande Ammachi admirava-se que um
menino tão danado quando acordado pudesse parecer tão inocente
dormindo. Ainda é assim. Ao descrever a cena dos agentes saindo da
casa com Arikkad e passando debaixo da árvore onde ele se escondia,
Mariamma tremeu incontrolavelmente. Depois da morte de Raghu, do
fracasso dos ataques, Lênin disse que começou a questionar o que uma
resistência armada seria capaz de realizar se todos os vilarejos oprimidos
da Índia não se sublevassem em massa. Ele mal se juntara aos naxalitas
e já tinha dúvidas. No entanto, ao testemunhar a execução de Arikkad,
Lênin soube que tinha de continuar lutando, a despeito do que viesse a
acontecer. Segundo ele, para ser eficaz uma resistência armada precisa
de armas, e de um treinamento superior. Deixou escapar que sua
próxima parada era Vizag. Mariamma apostava que essa viagem de
Lênin buscaria remediar as deficiências do movimento.

Ela está exausta. Afasta-se da janela e se deita ao lado dele. A noite


está es­friando. Ela puxa o lençol, bastante ralo, e cobre a ambos. O
corpo dele está quente. Ele está ali, respirando bem pertinho, mas
Mariamma já cho­ra sua mor­te. Ele jamais poderá visitar Parambil nem
comparecer a um casamento ou lhe escrever uma carta. Mesmo essa
visita impulsiva é arriscada para ambos. Mas ela está feliz que ele tenha
vindo. Se nunca mais voltar a vê-lo, pelo menos agora tem alguma ideia
do que ele anda fazendo. Melhor que notícia nenhuma. A polícia não
está no encalço dele, ele acha. Mas de agora em diante ele será sempre
um fugitivo. Provavelmente morrerá ou será capturado ainda jovem.
Lênin se vira dormindo e põe um braço sobre ela. É suficiente para
deflagrar nova leva de lágrimas. Ela chora até dormir.
Bem antes de amanhecer, Mariamma acorda e observa o peito dele
subindo e descendo, a barriga se afastando quando a dela recua. Seus
pensamentos lhe parecem límpidos, uma lufada fresca de ar depois de
uma súbita chuvarada. Sabe que ama Lênin. Talvez desde sempre.
Quando pequenos, brigavam e se provocavam, e… era amor.
Recentemente, as cartas afetadas que escreviam desnudavam suas
almas, e era amor também. “Amor” não é uma palavra na qual ela
tenha se permitido pensar, muito menos usar, pois eles são primos de
quarto ou quinto grau. A Condição não precisaria de uma base mais
sólida. Mas agora a genética lhe parece uma religião na qual ela perdeu
a fé.
Ele abre os olhos. Por um momento, o mundo se faz distante, e a
palavra “naxalita” vive em outra parte, com outras pessoas. Agora só há
os dois. Ele sorri. E então a realidade se intromete.
Ele a provocava dizendo que seus olhos eram sinuosos como os dos
gatos. E que suas madeixas variegadas eram evidência dessa origem
felina. Talvez nessa manhã seus olhos revelem todas as emoções que
ela é tímida demais para articular. A mão que estava disposta sobre a
dela agora acaricia seu rosto. Ela sente a barba dele, toca a cicatriz. Ele
se aproxima. Por que se segurar agora, se nunca mais voltará a vê-lo?
Mariamma beija, pela primeira vez na vida; beija o homem que ama.
Os dois recuam depois do choque daquele gesto. A alegria, a surpresa
no rosto de Lênin espelham os sentimentos dela. Se ela um dia tinha
dúvidas, já não as tem. Ele também a ama. Não há por que se conter.

Adormecem nos braços um do outro, de pernas entrelaçadas, os


corpos cobertos de suor. Só despertam quando o sol espanta as sombras
de dentro do quarto e fica quente. O mundo lá fora se intromete, mas
eles não se mexem.
“Não quero que nada aconteça com você”, ela diz. “Por que não
pode ser assim para sempre?” Os seios dela pressionados contra as
costelas dele. Ela agarra um punhado dos pelos do peito dele (que outro
propósito biológico poderiam ter, senão que servissem para que os
segurássemos?) e puxa até ele reclamar. “O que devo fazer agora,
Lênin? Como vou viver num mundo sem você? Sem jamais voltar a
pôr os olhos em você. Me perguntando se algum dia voltarei a te
encontrar. Pensando se você está vivo ou morto. Não posso nem te
escrever!” Ela luta contra as lágrimas.
“Ah, Mariamma.” O tom de pena dele a irrita. Ela não estava
mendigando piedade, e sim lamentando sua falta. Ela morde a língua.
Ele não repara. E continua: “Mariamma, vamos casar! Venha comigo!
Se você entrar para o movimento, podemos ter uma vida a dois.
Seremos marido e mulher”.
Ela reflete e então lhe dá um empurrãozinho, suas mãos buscando o
lençol. Sente-se pelada demais. “Você escuta as coisas que diz?”, ela
sussurra. “Percebe a arrogância? Quer que eu abra mão da minha vida?
Que te siga para a cova? Sabe por que tremi ouvindo você contar
quando os agentes passaram embaixo da árvore? Estava aterrorizada,
temendo que em seguida você dissesse que matou Sivaraman, pois se
sentia no direito. Se estivesse armado, você teria matado, certo?”
“Mariamma…”
“Pare! Não diga nada. Dei tudo — força, sono, todos os meus dias —
para estudar o corpo humano. Para curar, não para ferir, entende?
Talvez até para um dia curar a Condição. Grande Ammachi rezava por
isso todas as noites. Para te curar, seu idiota! Sabe por que acabei de me
entregar a você? Porque sei que nunca mais vou te ver de novo. Mas,
meu Deus, se acha que eu te seguiria nessa trilha de sangue, nesse
caminho… estúpido que você escolheu, que não é nem de longe um
caminho reto, então você não me conhece nem um pouco.”
Lênin se estira de costas, castigado.
Mas ela ainda não terminou. Sacode o ombro dele. “Por que você
não diz que vai desistir da luta e viver uma vida normal comigo, que
sacrificará seus sonhos por mim? Pelo nosso amor…”
Ele olha para ela, seu rosto uma máscara de dor. “É tarde demais”,
ele diz, por fim. “Se soubesse o que você sentia por mim, talvez nunca
tivesse escolhido esse caminho.”
“Se não sabia, você é um macku. E digo mais: não há nada heroico
nos seus atos. Quer ajudar os desvalidos? Seja assistente social! Ou
entre para a política. Junte-se à porcaria do seu partido e dispute
eleições. Mas, não, você ainda está no telhado esperando por um raio,
brincando de Mandrake, o mágico. Cresça! Você não é melhor que seu
pai.” Aquilo é cruel, e ela sabe. Foi longe demais.
Eles escutam risadas do lado de fora, a voz aguda de uma mulher, e
uma garota que responde. O som de um trator ou de um caminhão a
diesel. Quanto Mariamma daria pelo comum! O comezinho seria
precioso. O ordinário seria extraordinário com Lênin. Quem quisesse
desaprová-los poderia sentar com as mãos cheias dessa desaprovação e
fazer um curry com ela.
Ela enxuga lágrimas. “Me perdoa.”
“Você está certa. Foi estupidez minha sugerir que você arriscasse a
vida por algo que não é seu. E a recompensa é… Não há recompensa.”
“Minha recompensa era você, Lênin. Mas não um Lênin escondido.
Ou na prisão.”
“Me perdoa”, ele repete, baixinho.
Ela faz que sim com a cabeça. Deve. Precisa. O perdão é vazio, mas
é tudo que pode oferecer ao homem que ama.
67. Melhor fora do que dentro

madras, 1971

Ela não tem nenhuma esperança de rever Lênin, a não ser em


alguma cela ou no necrotério, e ainda assim seu sentimento por ele só
cresce. Precisa escondê-lo, deixar em salmoura como as conservas
guardadas no ara. Mas fantasmas abundam em lugares assim, e o que
fica engarrafado pode explodir.
Na segunda semana da prática médica em obstetrícia, ela acorda
com enjoo. E esse mal-estar se repete nas manhãs seguintes. É uma
luta tomar banho, se vestir e subir no riquixá de Gopal, que a observa
com preocupação. Ele é perceptivo, porém discreto: nada dirá até que
ela rompa o silêncio. Mariamma o contratou para, durante o mês
inteiro, levá-la ao hospital Gosha e trazê-la de volta ao anoitecer.
O Gosha fica a três quilômetros da moradia universitária, perto de
Marina Beach. Os únicos sons matinais são o rangido dos pedais, o
grasnar das gaivotas e o murmúrio das ondas. Nesse horário o tempo é
fresco. Logo mais o sol será um disco flamejante a se refletir na água, e
o pavimento estará quente o bastante para fritar um ovo. Gopal vira na
esquina do Depósito de Gelo de Madras. No passado, barras gigantes
de gelo dos Grandes Lagos eram recobertas de serragem, transportadas
por navios americanos e armazenadas nesse depósito para oferecer aos
britânicos algum alívio contra o calor. O ar salgado impregnado do
aroma de peixe seco é um duro teste para o estômago dela. À distância,
pescadores que partiram antes da aurora agora retornam. Suas cabeças
avermelhadas balançando e o golpe sincrônico dos remos de madeira
fazem-na pensar num inseto de cabeça para baixo debatendo-se na
água.
Na praia de uma terra distante, ela imagina ondas que se sucedem
naquele mesmo ritmo, produzindo o mesmo marulho quando quebram
e recuam. Naquele lugar, imagem espelhada desse, vive outra
Mariamma, uma Mariamma livre desse tormento. Essa outra está
casada com um Lênin amoroso que não é naxalita e terá preparado chá
para quando ela voltar do hospital. No quarto da moradia estudantil,
ela conserva o Guia dos céus, que Lênin esqueceu em Parambil e que
agora fica ao lado da preciosa edição de 1920 de A anatomia de Gray
que foi de sua mãe — uma edição que não é para ser consultada, mas
guardada como um tesouro. Os livros são seus talismãs, seus amuletos
da sorte. Porém, se a fortuna é isso, Deus a livre de um dia
experimentar o azar.

Seu pulso acelera ao ver a buganvília escalando os muros de pedra


calcária do Gosha. As flores são de um vermelho placental. Ninguém
as rega, Mariamma crê que suas raízes se alimentam de um destilado
dos ralos da ala obstétrica, uma aqua vitae mais rica do que água e
esterco. O sorridente Gurkha a cumprimenta no portão — ela nunca o
viu de cara feia. Na entrada, a inscrição desbotada diz hospital real
vitoriano para mulheres de casta e de gosha 1885. Mas sempre foi
conhecido como “Hospital Gosha”, “gosha” sendo sinônimo de
“burqa” ou “purdah”. Os britânicos o construíram para mulheres
hindus de castas superiores (que jamais compartilhariam um hospital
com intocáveis) e para muçulmanas de Triplicane, o bairro vizinho,
que ficam isoladas no hospital e saem cobertas da cabeça aos pés. Ela
ouviu histórias de muçulmanas às voltas com um parto obstruído que
faziam barricadas nos quartos para impedir que os maridos as levassem
a um hospital onde algum obstetra branco poderia tocá-las. Preferiam
morrer. Mas os tempos mudaram. A obstetrícia já não é uma
especialidade só de homens na Índia. Os colegas homens de
Mariamma que se revezam na ala obstétrica reclamam de se sentirem
párias, pois o local é dominado por mulheres. Além disso, ela teve sorte
ao ser enviada para o Gosha, e não para o hospital e maternidade em
Egmore — é uma bênção, já que apenas o Gosha tem na equipe a
enfermeira Akila.

Uma mulher grávida e pálida passeia nas alamedas do hospital,


apoiada pela mãe e pelo marido. Em seu passo vacilante, o barrigão
acentua sua curvatura lombar. As contrações ainda não chegaram à
frequência ideal, então a orientaram a caminhar. Toda manhã
Mariamma vê essas personagens; às vezes imagina que se trata da
mesma mulher, uma futura mãe num sári branco rústico de hospital,
com aquela absurda blusa de manga longa. A adaptação do casaquinho
e do corpete vitorianos não cai bem no calor paralisante. Agora que os
colonizadores se foram, por que insistir nesse uniforme? A grávida nem
vê Mariamma; só pensa em botar aquele bebê para fora. “Melhor fora
do que dentro” é o lema da enfermeira Akila. A regra dos quatro Fs:
“Flatulência, fluidos, fezes e fetos ficam melhores fora do que dentro”.
Senhor, em seis meses, será minha vez? Meus sintomas são
inequívocos. Ela não pode desabafar com ninguém, nem mesmo com
Anita, sua colega de quarto.

Ao passar pelas portas vai e vem da ala obstétrica, Mariamma adentra


uma fornalha; o cheiro forte e adocicado a acerta como um trapo
molhado fumegante. Nessa manhã, gritos e maldições de uma só
mulher imperam sobre tudo mais; seu marido é poupado de ouvir as
imprecações, pois espera no pátio, com outros da tribo masculina, à
sombra de uma árvore-da-chuva. Os protestos da mulher são
interrompidos por um tapa, que soa como um disparo de rifle, seguido
pela voz aguda da enfermeira: “Cala a boca! Você devia ter xingado
assim nove meses atrás. Agora não adianta mais. Mukku, mukku!”.
Empurre, empurre! “Mukku” é a palavra mágica, o “abra-te, sésamo” da
ala obstétrica que está na ponta da língua da equipe noite e dia.
Mukku!
O fluxo diário de bebês proporciona aos estudantes de medicina uma
rica experiência — Mariamma deu conta dos vinte partos normais
obrigatórios nos primeiros quatro dias. O parto “normal” não é de
especial interesse das residentes, que se demoram em sáris coloridos ao
redor da mesa de madeira lascada, desvencilhando-se da inércia apenas
quando as coisas saem do normal.
No púlpito branco, a enfermeira-chefe Akila, uma mulher baixota,
de pele escura, esbelta e de traços angulosos, não se abala com nada,
anotando as solicitações de medicação, o rosto liso de pó de arroz. Seu
chapeuzinho de enfermeira se destaca contra um cabelo preto brilhoso.
Por cima do uniforme branco há um avental bem passado, em tom de
azul ciano, tão duro de goma que é capaz de desviar balas. Sua língua
desanca qualquer um cujo trabalho ela considere descuidado, mas sua
alma é amorosa e prestativa. Ao vê-la Mariamma se lembra de Grande
Ammachi, embora as duas não pudessem ser mais diferentes. As rezas
para Parvati, Alá e Jesus; os gritos repicando nas paredes azulejadas e
sacudindo as janelas foscas; o miasma de sangue, urina e fluidos
amnióticos emanando de pisos grudentos, permeando narinas, sáris,
pele, cabelo e cérebro; as mesas de parto ao longo de cada parede; as
cortinas verde-musgo que estão sempre presas, tornando comunal a
experiência mais íntima — o que sua avó acharia daquilo tudo? Ela era
forte e não ia se intimidar. Quanto à Mariamma, ela simplesmente ama
aquilo!
O quadro-negro da ala obstétrica parece o quadro de chegadas e
partidas na Estação Central, mas com anotações como “g3p2 rpm”
(terceira gravida, ou gravidez; segunda para, ou nascimento vivo; e
rotura prematura das membranas). Mariamma se aproxima pelas costas
de Akila, porém a enfermeira tem olhos na parte de trás de seu quépi.
“Escutem aqui, senhoritas!”, ela grita. “A dra. Mariamma está aqui!
Força total agora, ok? mukku-mukku!” Akila ri da própria piada.
Ninguém dá atenção, exceto Mariamma, que se emociona ao ouvir a
palavra “doutora” antes de seu nome.
“Olá, enfermeira”, Mariamma diz, pondo um ramo de jasmim no
púlpito. Comprou de uma anciã perto da moradia universitária, uma
mulher que passa o dia preparando buquês numa velocidade que
humilharia qualquer cirurgião. Sob a pele de seu rosto e de seu corpo
há caroços horrendos, alguns do tamanho de bolas de gude, outros do
tamanho de ameixas. A condição se chama neurofibromatose, ou
doença de Von Recklinghausen, tumores fibrosos benignos que
crescem a partir de nervos cutâneos debaixo da pele. Ao que parece, o
célebre Homem Elefante, Joseph Merrick, sofria de uma variante da
neurofibromatose.
“Ayo! Quem é que tem tempo para jasmim aqui?”, pergunta a enfer‐­
meira, levando a flor ao nariz. Sorri. “Vá conferir a número três. Caso
para fórceps. Guardei para você.” Em seguida, grita: “escutem todos!
hoje va­mos ter muito trabalho. posso sentir em meus ossos!”.
Nunca houve um dia que não fosse cheio de trabalho, ou que a
enfermeira não o sentisse em seus ossos.
A mulher malaiala no leito 3 tem um lençol de borracha laranja sob
as nádegas, com uma mancha permanente de violeta de genciana, que
foi herdada das inúmeras mulheres que a precederam. Quando
Mariamma, de luva, abre o indicador e o dedo do meio no formato de
V dentro do canal vaginal, seus dedos mal tocam as laterais do colo do
útero; a mulher está totalmente dilatada. O quadro diz que está em
trabalho de parto há sete horas, no entanto a cabeça do bebê ainda não
se meteu para além do assoalho pélvico. Mariamma aplica o
estetoscópio com aspecto de funil — o fetoscópio — à barriga
distendida. Mesmo no silêncio absoluto, é difícil ouvir o feto. Akila diz
que ela precisa “imaginar o coração do bebê” para diferenciá-lo dos
batimentos cardíacos da mãe. Imagine! Subitamente, ela ouve, como as
bicadas monótonas de um pica-pau. Menos de oitenta é preocupante
— esse bebê está em sessenta. Agora é o coração de Mariamma que
acelera.
“Enfermeira!”, grita, mas Akila já providenciou o carrinho. O
fórceps, recém-saído do esterilizador, ainda fumega. Os cintos do
avental de plástico que Mariamma cata apressadamente ainda estão
molhados do último usuário. Ela anestesia a pele vaginal com
novocaína e faz a incisão. Pequenos jorros de sangue pulsante seguem a
trilha da tesoura angulada de episiotomia. Mariamma só usou o fórceps
uma única vez. As duas hastes são como colheres de servir curvas, com
cabos longos e finos; quando as colheres (ou “lâminas”) estão
corretamente posicionadas, prendendo a cabeça do bebê, os cabos
podem ser aproximados e travados. À altura em que o fórceps se faz
necessário, a cabeça do bebê já está encharcada e inchada, e é difícil
encontrar os pontos de referência. Usando o indicador e o dedo do
meio como guias, Mariamma desliza a lâmina esquerda por sobre a
cabeça do bebê, depois faz a mesma coisa com a direita. Reza para que
as lâminas estejam pinçando um crânio de fato, não espremendo um
rosto. Todavia, por mais que tente, não consegue juntar os dois cabos.
Forçar pode esmagar o crânio. Quando está à beira do desespero, a mão
da deusa Akila aparece por sobre seu ombro, faz um pequeno ajuste em
uma das lâminas, e os cabos se articulam e travam. A enfermeira
desaparece.
Só que a haste de tração que Mariamma tenta fixar ao cabo não
conecta! Mais uma vez, a mão da deusa Akila surge por sobre seu
ombro e com­pleta o encaixe, apesar da incompatibilidade. Mariamma
planta os pés no chão, pronta para puxar. Akila posiciona uma
estagiária atrás da jovem para o caso de ela recuar quando a cabeça sair.
Mariamma dá um puxão na contração seguinte. “Ayo, você chama isso
de puxar, doutora?”, grita Akila lá do outro lado da sala, sem olhar. “O
bebê vai acabar arrastando você lá para dentro, de chinelo e tudo, se
não fizer melhor do que isso.” Mariamma se agacha e dá tudo de si. A
cabeça do bebê empaca no promontório do sacro. “Enfermeira!”, ela
grita, com dentes cerrados. “Vai dar certo, ma”, berra Akila do púlpito,
e logo em seguida brada para outra pessoa: “Doutor, quando você
finalmente terminar de costurar essa episiotomia, o bebê já vai estar
andando!”.
E dá certo, pois a cabeça subitamente aparece. Não fosse a escora da
estagiária, Mariamma e o bebê teriam desabado no chão molhado. A
criatura azul e frágil sofre a indignidade de uma cabeça em formato de
ovo graças ao fórceps. Mariamma aciona freneticamente o sugador de
muco na boca do bebê, sem resultado, depois assopra-lhe suavemente o
rosto. Nada. A mãe olha tudo apavorada. Uma das dez mãos da deusa
Akila se aproxima e dá um tapa no traseiro do bebê, que, com um
soluço, deixa escapar um grito agudo. “Melhor, ma?”, pergunta Akila,
com um sorrisão, o “melhor fora do que dentro” implícito. Mariamma
fica tão feliz que tem vontade de berrar. Os pequenos punhos erguem-
se no ar… Ela pensa subitamente em Lênin, e fica com vontade de
chorar. “Olá, senhorita Mariamma”, grita a enfermeira, agora perto da
autoclave. “Se não quer cortar o cordão, então dê a tesoura para o
bebê. Pare de sonhar!” Akila, que tudo vê, pode até ler mentes.
Mariamma corta o cordão e se prepara para tratar a episiotomia. Assim
que eu terminar hoje, vou me abrir com Akila e contar tudo. Não posso
suportar isso sozinha.

Ao fim do expediente, Mariamma pergunta a Akila se poderia


acompanhá-la. Hesitante, conta seu segredo. Akila explode de rir.
“Ma, toda estudante de medicina que vem para a obstetrícia acha
que está grávida. Até alguns rapazes! Pseudociese, chamam. Mas digo:
como vocês podem estar grávidas, se são virgens?” Akila racha de rir de
novo.
“Enfermeira…? Não sou virgem”, Mariamma diz, baixinho.
Akila olha para ela com novo interesse. Pega seu queixo e o vira para
um lado e para o outro. “Ma, trabalho com isso desde antes de você
nascer. Akila sabe quando uma mulher está grávida. Sei antes de Deus
saber, antes mesmo da mãe. Maridos são idiotas, não sabem de nada,
então esqueça. Mas Akila nunca erra. O corpo me diz. As faces, a cor,
ithu-athu. Posso jurar que você não está grávida. Acredita? Claro que
não! Então, vamos fazer um teste, mas só para você não ficar
preocupada.”
No banco de sangue, Akila recolhe uma amostra. “Mando para o
laboratório com outro nome. Mas não vai dar nada, ma. Gravidez na
cabeça, não no útero.” Ela faz uma pausa. “Dessa vez. Na próxima vez
pode ser no útero. Então, use a cabeça na próxima vez.”
68. O cão do paraíso

madras, 1973

Com o resultado negativo, seus “enjoos matinais” desaparecem.


Mariam­ma sente-se como uma condenada que recebeu um indulto. A
perspectiva de ser mãe solo de um filho cujo pai era um naxalita que
nunca mais foi visto a deixara paralisada.
Está envergonhada demais para fazer uma segunda confissão à Akila:
ficou decepcionada. Por que não engravidou? Há algo de errado com
ela? Sua noite com Lênin não impressionou o universo? Um amor
como o deles, aque­la primeira intimidade tinha de deixar uma marca.
Não é racional, ela sabe, mas o pensamento permanece mesmo quando
ela já arruma a mala para o reces­so de Natal. Vai para casa, finalmente.
Uma visita por muito tempo prote­lada.

Quando tem o primeiro vislumbre de Parambil, ela admira a


serenidade do lugar, tão afastado de todo o caos dos dois anos que
passou longe. A fumaça saindo da chaminé, de um braseiro que nunca
apaga. E lá está o pai dela, emoldurado pelos pilares da varanda, Anna
Chedethi ao lado, como se os dois estivessem em vigília desde o dia em
que ela partiu. Seu pai a abraça com tanta força que ela mal consegue
respirar.
“Molay, sem você falta uma parte de mim”, ele sussurra. Seu abraço
transmite segurança, tal como quando ela era menina. Depois é Anna
Chedethi que a esmaga. Ambos notam a cicatriz na testa, agora bem
mais leve. Ela culpa o piso escorregadio do laboratório e um estilhaço
de vidro. Não deixa de ser verdade, ainda que falte contexto.
Os fantasmas da avó e de Bebê Mol pairam sobre a propriedade,
lembrando-a mais uma vez da razão de sua partida. Tudo que é, e tudo
que deseja, começa nessa morada e em seus habitantes amorosos.
Depois de voltar do Alwaye College para o funeral conjunto, só esteve
ali uma única vez, uma estadia breve antes de começar o curso de
medicina. Em ambas as ocasiões, a casa ainda parecia destroçada pelas
mortes. Mas agora sente que seu pai e Anna Chedethi aprenderam a
viver com a perda, estabeleceram uma nova rotina. Para Mariamma,
isso só torna mais gritante a ausência daqueles dois amados pilares da
morada — como um rasgo em um tecido que mais ninguém pode ver.
Anna Chedethi prepara seu prato favorito, meen vevichathu, o molho
tão denso que poderia sustentar um lápis em pé. “A vendedora de peixe
apareceu ontem. A velha — não a nora. A única coisa que tinha era
esse avoli. ‘Diga a Mariamma que trouxe esse camarada só para ela. E
que estou com uma dor horrível no pescoço e nos braços. Os
comprimidos do vaidyan são inúteis. Se eu jogasse no rio, seria melhor
para mim, mas pior para os peixes’, ela disse.” Mariamma imagina a
velha, os antebraços secos e empedrados, como se enxertados com as
escamas de peixe que caem da cesta que carrega na cabeça. Agora seu
presente jaz na panela de barro de Grande Ammachi, transformado
num filé untado de vermelho, a carne branca desmanchando na boca,
o curry tingindo de púrpura o arroz, seus dedos e o prato de porcelana.
Seu pai está ávido para compartilhar novidades que para ela não são
novas… Ela sente a questão no ar, ressaltada pelos esforços de
Philipose para ignorá-la. Ele espera que a filha termine.
“Molay, tenho que contar uma coisa que vai te chatear. Mas aqui só
se fala disso.” Anna Chedethi, que retirava os pratos, para e senta.
“Lênin desapareceu”, ele diz.
“Estive preocupada. Faz tempo que ele não me escreve.” Outra meia
verdade.
“Bem… Acredite ou não, ele se juntou aos naxalitas”, seu pai
declara.
O preço da mentira é sentir-se um verme. Ela o escuta recontar as
notícias dos jornais sobre os ataques e a morte de Arikkad em fuga.
“Toda essa história dos naxalitas parecia uma coisa tão distante, e de
repente está aqui, em nosso colo”, ele comenta.
Seu pai sempre foi um homem bonito. Mas pela primeira vez ela
nota a pigmentação escura sob seus olhos, as linhas de preocupação na
testa, o rosto murcho e o couro cabeludo brilhando sob o cabelo ralo.
Ela se dá conta de que ele tem cinquenta anos, viveu meio século.
Mas, ainda assim, por acaso o tempo em Parambil acelerou desde sua
partida?
Quando uma filha se apaixona, talvez seja inevitável certo
distanciamento do pai — o primeiro homem que teve seu coração deve
agora competir com outro. Porém, no caso de Mariamma, são seus
segredos que criam a distância. Anna Chedethi olha para ela com
ansiedade, temendo que aquela revelação a despedace.
“Que notícia terrível”, Mariamma diz, pois precisa falar alguma
coisa. “Se ele aderiu aos naxalitas, então é mais estúpido do que
imaginei. Se queria ajudar os pobres, por que não se filiar ao partido,
concorrer nas eleições?” Era o que dissera a Lênin. “Que idiota. Jogar a
vida fora!” Sua veemência os assusta. Será que exagerou?
“Bem”, diz seu pai, depois de um tempo, “uma coisa é preciso dizer
a favor dele: desde o dia em que pisou aqui, ele declarou suas
intenções. O jugo no pescoço dos pulayar pesava no dele. Nós nos
sentamos aqui e nos achamos muito iluminados, justos. Mas a verdade
é que podemos estar cegos para a injustiça. Ele nunca esteve.”
Se Lênin pudesse ouvir aquilo…

Quando Anna Chedethi vai tomar banho, Mariamma se vê sozinha


na cozinha escura, repleta de aromas e memória. Relembra
Damodaran metendo o olho imemorial pela janela, e Grande
Ammachi fingindo irritação, repreendendo-o. Na semana em que a avó
morreu, Damo desapareceu. Só ficaram sabendo depois. Unni esperou
por ele semanas a fio, e nada. Ficou arrasado. Com certeza Damo foi
fazer companhia a Grande Ammachi. Mariamma encontra a caixa de
fósforos e acende um dos pequenos lampiões, daqueles que a avó
preferia para levar consigo quando ia para a cama. A neta chora,
imaginando aquele rosto amoroso à luz suave do lampião. Mas a
matriarca está sempre com ela; essas lágrimas são para o passado, para
os tempos inocentes em que sentava naquela cozinha e era alimentada
por aquela mão amorosa, entretida por suas histórias, sabendo-se
sempre amada.
Ela se recompõe antes de ir ao escritório de Philipose. Que saudade
daquele cheiro de jornal velho e cadernos — e de tinta caseira! E do
aroma tão familiar do pai, que cheira a sabonete de sândalo e pasta de
dente de nim; saudade desse tempo ocioso ao fim do dia, quando ele lia
histórias para ela. Por que, para apreciar uma coisa, era preciso perdê-
la? Essa noite, contudo, a narradora é ela e o pai está louco para ouvir
cada detalhe de seu mundo médico — a curiosidade dele é como uma
mariposa, sempre procurando ficar perto de qualquer coisa que lance
luz sobre um novo conhecimento. Ele exige todos os detalhes, e a filha
os concede, descrevendo-lhe tudo… tudo, menos Brijee.
Quando vão dormir, Philipose diz: “Deve ser muito difícil ver tanto
sofrimento todos os dias”. E estremece. “Não conseguiria. Só a sorte e a
graça de Deus nos mantêm a salvo dessas aflições. Somos tão
abençoados, não?”
Impressiona-a que um homem que sofreu tanto possa se sentir
daquele jeito. “Appa, sinto até vergonha em confessar que muitas vezes
faço pouco disso. Antes tinha medo dos doentes, agora me concentro
tanto na doença que às vezes mal noto a pessoa que sofre. Quando
volto para casa depois de um dia de trabalho na obstetrícia, ou nas alas
cirúrgicas, só penso em jantar ou ver se chegou alguma carta. Acho que
nós, médicos, temos a ilusão de que fazemos um tipo de barganha com
Deus. Cuidamos dos doentes e, em troca, somos poupados.”
“Por falar nisso”, diz o pai, entregando-lhe um papel. “Encontrei em
uma das minhas leituras o juramento de Paracelso. ‘Tenho que copiar
para Mariamma’, disse a mim mesmo.” Em geral a caligrafia de
Philipose é ilegível, mas o juramento foi copiado com capricho:
“Pensei: ‘Quero que minha Mariamma seja esse tipo de médica’.” Ela
lê: “Ame os doentes, cada um deles, como se fossem gente sua”.
Naquela noite ela dorme na cama de Anna Chedethi, no quarto
vizinho ao ara. Sente-se acolhida ao se aconchegar a essa mulher que
lhe deu de mamar, que foi uma mãe para ela tanto quanto para
Hannah. Anna Chedethi lhe conta que Joppan tem passado por tempos
difíceis. Iqbal queria largar o negócio das barcas e se aposentar. Joppan
comprou toda a operação com um empréstimo do banco, mas, para
conseguir pagar, precisava trabalhar dobrado, expandindo as rotas,
aceitando todo serviço que aparecesse. Pagava os funcionários
generosamente, afinal, foi um deles. Porém eles também trabalhavam o
dobro. Antes de Onam, na época mais atarantada do ano, os barqueiros
e carregadores fizeram greve. Queriam sociedade na empresa. Joppan
tentou argumentar. Queriam parte da dívida também? Não queriam
saber, e Joppan se sentiu traído. “Lembra de um camarada do Partido
por quem ele fez campanha e ajudou a eleger naquele distrito?”, Anna
Chedethi pergunta. “Bem, ele e o Partido ficaram do lado dos
trabalhadores. Melhor sacrificar o voto de Joppan do que perder todos
os votos dos trabalhadores. Joppan demitiu os funcionários e tentou
contratar outros, mas os que foram demitidos afundaram uma das
barcaças e tentaram tacar fogo no depósito. Em vez de ceder às
demandas, Joppan fechou a empresa. Deixou que o banco ficasse com
ela. Não sei quanto dinheiro conseguiu salvar, mas me preocupo.”
Mariamma acha que fome eles não vão passar, Ammini tem uma renda
vendendo cestas de palha. E eles têm a propriedade. Além disso, talvez
Podi pudesse ajudar, embora tenha se mudado para Sharjah com o
marido. Mas de qualquer modo não era essa a vida que Joppan
imaginava para si. Mariamma se surpreende que o pai não tenha
mencionado nada daquilo. Decerto não quis expor o amigo.

Pela manhã, Mariamma pega um thorthu e sai. Quer ver as obras do


hospital, mas antes visita o ninho. Inspira profundamente seu aroma
amadeirado, seco. Cipós de videira avançam na direção do sol. Era isso
que a mãe imaginava? Que a natureza renovasse e alterasse o ninho
todo ano, a cada estação? Os dois banquinhos seguem ali, e ela senta
num deles, apoiando o queixo nos joelhos e pensando em Podi, que se
sentava na frente dela. Jogavam damas ou se revezavam no “Posso te
contar uma coisa?”, quando compartilhavam segredos que os adultos
não queriam que elas soubessem. Às vezes Mariamma ia sozinha e fazia
de conta que a mãe estava sentada no outro banquinho. Tomavam chá
e conversavam sobre a vida.
A Mulher de Pedra está no caminho para o canal. Ela e Podi a
descobriram por acaso, praticamente escondida sob o capim e os ramos
de pimenteiras. Mariamma se emocionou pelo poder da escultura, sua
presença sem rosto. A peça apequenava as duas meninas. E ainda o faz.
Seu pai disse que era uma obra abandonada por sua mãe. Ela e Podi a
libertaram, limpando o terreno em volta dela, e plantaram calêndulas.
Mariamma pensava na Mulher de Pedra como outra encarnação da
mãe, diferente daquela que lhe sorri na fotografia no quarto. Quando
criança, deitava-se nas costas da Mulher de Pedra e imaginava que a
força da mãe penetrava sua carne, como uma seiva brota de uma
árvore. Agora se limita a correr as mãos pela Mulher de Pedra, numa
saudação silenciosa.
Do outro lado do canal, o concreto para a fundação do hospital foi
vertido. O andaime de bambu preso por cordas sugere uma estrutura
maior do que ela imaginara. A jovem tenta visualizar como ficará o
prédio. Alegra-a que o bracelete de ouro que doou na convenção esteja
embutido ali de alguma forma, como parte da estrutura do hospital.
O canal foi recentemente alargado e dragado até a confluência com
o rio. A superfície da água é um caleidoscópio verde e marrom; as
folhas correm nela com mais velocidade, diferente do que Mariamma
lembrava. Ela encontra um trecho mais discreto e se despe, em seguida
desce pela inclinação de pedra, a sola dos pés deslizando no musgo, até
que salta e mergulha de cabeça. A sensação de transição súbita é
deliciosa, familiar, nostálgica e… triste. Esperava voltar no tempo ao
mergulhar. Mas não é possível; o tempo e a água fluem sem parar. Ela
emerge do mergulho muito mais adiante do que imaginava,
surpreendida pela força da correnteza. A confluência se anuncia
ruidosa à frente. Mariamma desvia, encontra um apoio e sobe para a
margem. Não, não é o mesmo canal, assim como ela não é a mesma.

Ao fim do breve recesso, Philipose freta um táxi de turista para


Mariamma, não para levá-los ao terminal de ônibus, mas até a estação
de trem em Punalur, uma viagem de duas horas e meia. Sentam-se no
banco de trás, com a sensação de nobres. Seu pai confidencia que a
tarefa de administrar as terras o consome. “Nunca fui bom nisso. Se
tivesse a paixão de Shamuel ou do meu pai, cultivaria mais terra e
ganharíamos mais.” Ele olha para a filha, meio sem jeito. “A verdade é
que seu pai prefere a caneta à enxada.”
Mariamma acha que ele está sendo modesto demais. Além de ser
conhecido por suas desficções, uma ou duas vezes por ano escreve
longas reportagens investigativas para a edição de fim de semana do
Manorama.
“Então, venho conversando com Joppan para que ele administre
Parambil. Tenho esperança. Ele vai deixar o negócio das barcaças, dá
muita dor de cabeça. Anos atrás, quando Shamuel morreu, fizemos
uma boa oferta — ele mesmo reconheceu que era boa. Ganharia lotes
consideráveis de terra, mais do que qualquer parente nosso, e uma parte
da colheita. Mas seu sonho era conquistar o mundo. Ou pelo menos os
canais. Além disso, não queria que pensassem nele como ‘Joppan
pulayan’, assumindo o lugar de Shamuel.”
“E dessa vez você ofereceu alguma coisa diferente?”
“Que bom que perguntou. A propriedade um dia será sua, então é
bom que saiba. Ofereci quatro hectares de imediato. Em troca, ele
administra nossas terras por dez anos e leva dez por cento de toda a
produção. Depois, quando Joppan cultivar a terra dele e ganhar
dinheiro, se quiser, poderá comprar mais terra.”
“É uma proposta generosa”, Mariamma diz.
Seu pai parece contente. “Espero que ele também encare assim. A
oferta que fiz tempos atrás era muito melhor, mas tanta coisa mudou.
Me sinto mal por ele.” Philipose olha através da janela em silêncio.
“Molay, Joppan era nosso herói, nosso são Jorge na infância, sabia? O
destino é uma coisa engraçada. Veja meu caso. Terminei a escola, tinha
ambição de fazer faculdade, ver o mundo. Em vez disso, cá estou, onde
comecei, e foi Joppan quem viajou o mundo. É em Parambil que me
sinto completo. Joppan pode muito bem descobrir que justamente
aquilo de que fugia pode ser sua salvação e sua felicidade. Você pode
até lutar contra o destino, mas os cães te encontram. Atentai, todas as
coisas fogem de ti, pois tu foges de Mim!”
Separar-se do pai na plataforma é doloroso. Ela sente culpa por tudo
que escondeu dele. Seus segredos. Não consegue imaginar o pai com
segredos, mas talvez até ele os tenha.
O longo abraço dos dois é diferente de outros abraços. Trocaram de
lugar. Agora é ela quem deixa na plataforma seu filho, que terá de lutar
por conta própria e que se agarra a ela. Quando o trem se põe em
movimento, o pai segue ali, acenando e sorrindo, uma figura solitária e
desolada.
69. Ver o que você imagina

madras, 1974

Ao fim da residência em clínica médica, a dra. Uma Ramasamy, no


Departamento de Patologia, chama Mariamma para uma reunião. A
primeira reação da jovem é o receio de ter feito alguma coisa errada. Se
bem que o curso de patologia acabou faz muito tempo. E o temor é
logo substituído por certa empolgação. Uma Ramasamy é uma mulher
divorciada de trinta e poucos anos, professora fenomenal. Todos os
colegas de Mariamma têm uma queda por ela. Chinnah diz: “Ela tem
tema”, o que no jargão daquela faculdade significa ter domínio de
campo. “Chinnah, você tem certeza de que é o ‘tema’ e não outra coisa
que te atrai?” “O quê, ma? O Premier Padmini da madame?”, ele
retruca, inocente. “Chaa! Nada disso!”
Um Fiat Premier Padmini combina mais com a doutora do que o
pesado Ambassador ou a baratinha Standard Herald. Rebatizados, esses
três modelos estrangeiros são os únicos que podem ser construídos na
Índia socialista; quem quiser qualquer outro carro deve estar disposto a
pagar uma taxa de importação de cento e cinquenta por cento. O Fiat
de Uma ostenta pintura personalizada em tom de ébano com capota
vermelha, faróis extras, vidro fumê e um escapamento potente. E, coisa
rara, ela mesma o dirige.
Quando a dra. Ramasamy deu sua primeira palestra para a classe de
Mariamma no centenário Auditório Donovan, mesmo os alunos do
fundão, que nunca paravam de cochichar, se calaram assim que aquela
mulher alta e confiante adentrou a sala num jaleco de mangas curtas.
Já começou falando de inflamação, a primeira resposta do corpo a
qualquer ameaça, o denominador comum de todas as doenças. Em
poucos minutos levou os estudantes para o centro da batalha: os
invasores (bactérias causadoras da febre tifoide) são avistados pelas
sentinelas no topo da montanha (macrófagos), que enviam sinais para o
castelo (medula óssea e gânglios linfáticos). Os veteranos de batalhas
anteriores com a febre tifoide (os linfócitos T de memória) são
obrigados a se levantar, convocados a ensinar de modo apressado a
conscritos inexperientes as habilidades necessárias para domar os
invasores, armando-os então com lanças personalizadas, feitas
especificamente para atacar e penetrar o escudo tifoide — em essência,
os veteranos clonam seus eus do tempo de juventude. Esses veteranos
de antigas campanhas tifoides também reúnem um pelotão de guerra
biológica (os linfócitos B), que produzem rapidamente um óleo
fervente único (anticorpos) para verter por sobre as muralhas do castelo;
o óleo derreterá os escudos dos intrusos tifoides, sem prejudicar mais
ninguém. Enquanto isso, tendo ouvido o chamado para a batalha,
mercenários autônomos (neutrófilos), armados até os dentes, ficam de
prontidão. Ao primeiro sinal de sangue derramado — qualquer sangue,
amigo ou inimigo —, eles se lançam numa matança desenfreada…
Enquanto caminhava na frente da lousa, a professora chutava a barra
em dourado e fúcsia de seu sári vermelho. Mariamma lembrou das
mulheres conjuradas nos desenhos da mãe; as linhas sinuosas de carvão
comunicavam não apenas a dobra de um sári, mas a forma da mulher
sob ele.

Uma placa de cobre do lado de fora do laboratório diz apenas


centro de pesquisa hansen. Aparentemente, a dra. Ramasamy não
precisa inscrever seu nome na placa, algo incomum. O frio do ar-
condicionado na sala faz Mariamma pensar nas lojas de sári no
subúrbio afluente de T. Nagar, onde vendedoras puxam sem muito
cuidado um sári atrás do outro, todos estupendos, desdobrando-os e
cascateando-os diante da cliente. Mas, ali, refrigeradores cromados,
banhos-maria, incubadoras, lustrosas bancadas de laboratório e
centrífugas tomam o lugar das paliçadas de seda e algodão. Os olhos de
Mariamma recaem sobre o microscópio binocular, que lhe dá água na
boca. O aparelho conta com segundo binocular acoplado — para o
professor —, de forma que mestre e aluno possam estudar a mesma
lâmina, cuja base é iluminada por lâmpada. Comparada a essa beleza,
o microscópio monocular de Mariamma, que só funciona perto de
uma janela bem iluminada e com muita oscilação do espelho refletor,
é uma carroça.
“Uma belezinha, não é?” A dra. Ramasamy veste um sári azul-
oceano. Nas orelhas, botõezinhos de ouro. Ela aponta para os bancos
altos perto do microscópio. Depois de alguns comentários preliminares,
diz: “Então… Pedi que viesse porque gostaria de convidá-la para
trabalhar em um projeto comigo sobre…”.
“Sim-eu-amaria-senhora!”, Mariamma responde, as palavras se
atropelando.
A dra. Ramasamy sorri. “Não quer saber sobre o que é? Ou diz ‘sim’
para tudo?”
“Não-quero-dizer-sim, senhora.” Mariamma não consegue conter os
movimentos da cabeça. Deve estar parecendo uma garotinha muito
tola. É preciso falar mais lentamente, como Anita sempre lhe diz.
“Seria para trabalhar numa pesquisa sobre nervos periféricos. Sobre
hanseníase.”
Por que não dizer simplesmente lepra?, Mariamma se pergunta.
“A tarefa é dissecar os membros superiores que preservamos de
pacientes com hanseníase e expor por completo os nervos medianos e
ulnares, e suas ramificações. Então fotografamos os espécimes
macroscópicos antes de sacri­ficar os nervos e fazemos múltiplos cortes
para examinar tudo microscopicamente. E enviamos a Oslo algumas
dessas lâminas para tingimento e análise imuno-histoquímica.”
Mariamma pensa nos leprosos da Convenção de Maramon, ou nos
que viu pela estrada para Parambil — alienígenas, que mantêm
distância enquanto pedem esmolas, chacoalhando canecas. Estremece
ao pensar em dissecar um dos membros dessas pessoas. Talvez
“hanseníase” seja mesmo um nome melhor.
“Fico honrada com o convite.”
A dra. Ramasamy ergue a cabeça, o sorriso alargando-se no rosto.
“Mas…?”
“Não, nada… Só por curiosidade, senhora, por que eu?”
“Boa pergunta. O dr. Cowper me recomendou você. Vi a dissecação
que fez no concurso. Foi incrível o que produziu em duas horas. É
exatamente o que preciso. Mas minhas amostras serão mais capciosas.”
“Obrigada, senhora. Fico contente por não ter me escolhido por cau‐­
sa do…”
“Porque você esmagou as bolas de Brijee?”, ela pergunta, com uma
expressão seríssima. Mariamma explode numa gargalhada, em choque.
“Ayo, senhora!”
“Isso serviu como mais uma recomendação, para ser franca.
Também estudei aqui. Tínhamos os nossos Brijees, embora ninguém
tão tóxico. Infelizmente, alguns ainda estão por aí.”
Mariamma começa no dia seguinte, retirando uma amostra de um
tanque de formol que parece conter uma pilha de antebraços com suas
respec­tivas mãos. Ela disseca rente à janela que tem a melhor luz. Caso
necessite, na bancada há uma lupa à disposição. Deve encontrar os
troncos dos nervos medianos e ulnares no antebraço e dissecar as
ramificações que os conectam aos dedos, ou aos tocos, já que a amostra
carece de dedos. Quando se aproxima do nervo, não pode usar nada
muito agudo, como bisturi ou tesoura. Por quatro horas Mariamma
escava, puxa e raspa com gaze enrolada no dedo, ou com o cabo do
bisturi — “dissecação bruta”, como se diz no jargão cirúrgico. Ela é
igual a uma caçadora buscando um rastro. Os sinais são sutis, como
certos sulcos tênues, mais escuros, produzidos na terra por uma
minhoca. Sentada, curva-se sobre a amostra, tal como fazia quando
bordava com Hannah. Freiras enclausuradas têm direito a esse tipo de
hobby?
Depois de uma semana, pulsos doloridos e um pescoço travado,
completa a primeira dissecação.
“Que maravilha!”, diz Uma, quando a examina. “Contratei você
porque não tenho tempo para fazer isso. Mas confesso que tentei. E fiz
um trabalho de açougueiro! Qual é o segredo?”
Mariamma hesita. “Em parte, é minha visão. Aprendi a bordar muito
nova. Descobri que podia fazer coisas muito ínfimas que Hannah — a
menina que me ensinou — não conseguia, embora não tivesse
problemas para enxergar. Nem tenho usado a lupa, porque fico tonta.
Além disso…” Ela faz uma pausa. Quando tentou explicar aquilo à
Anita, sua colega de quarto achou que ela havia enlouquecido. “Não
quero parecer arrogante ou… louca. Porém, durante a dissecação
anatômica, sentia que via as coisas de um jeito diferente. Digo, a turma
podia observar um tecido fixado em formol todo achatado e
esborrachado. Mas eu conseguia ver em três dimensões. Conseguia
girar o tecido em minha cabeça. É algo que envolve mais do que saber
o que eu devia ver — para isso, tínhamos o manual de dissecação à
nossa frente. Eu era capaz de perceber como o tecido diferia da figura.
Capaz de imaginar ele por inteiro, quase como se visse através dele.
Depois disso, o desafio é trazer essa visão à tona, usando todos os
sentidos. Presto atenção à resistência do tecido, à sensação, e mesmo à
vibração ou fricção dos instrumentos ao se moverem por ele.”
Uma pondera a questão. “Não se preocupe — não acho que esteja
louca. Você tem um dom, Mariamma. Só assim para dissecar desse
jeito. O cérebro tem capacidades extraordinárias. Em nosso
entendimento simplista, colocamos cada função numa caixinha — área
de Broca para a fala, área de Wernicke para interpretar o que ouvimos.
Mas essa ideia de caixa é superficial. Simplista. Os sentidos se
entrelaçam e transbordam de uma área a outra. Pense no membro
fantasma. A perna é amputada, porém o cérebro sente dor em um
membro que não está lá. Então posso imaginar seu cérebro pegando o
sinal visual e fazendo algo diferente com ele.”
Mariamma pensa na Condição. Com o conhecimento de anatomia e
fisiologia que tem, especula que a Condição deva envolver partes do
cérebro associadas à audição e ao equilíbrio. Talvez, para aqueles
afetados, a imersão na água leve os sinais a transbordar para áreas
cerebrais que deveriam estar fora do alcance — o oposto de um dom.
Ela precisa interrogar Uma sobre isso, mas, antes, a doutora fala.
“Vi alguns de seus desenhos. Você desenha bem.”
“Não muito. Queria ter os dons artísticos de minha mãe.”
“Que tipo de arte ela faz?”
“Bem, não faz. Mas fazia… Nunca conheci minha mãe. Ela se
afogou logo depois que nasci.”
“Ah, Mariamma!”
A tristeza na voz de Uma faz a jovem sentir um jato de dor. Não pela
mãe. Como poderia sofrer por alguém que não conheceu? E jamais
superará a dor pela perda de Grande Ammachi, que era mãe, avó, a
pessoa de quem recebeu o nome, tudo isso em uma só. Mas estar perto
de Uma Ramasamy, dada a sua idade, e natureza dinâmica e vibrante,
oferece à Mariamma um vislumbre do que seria uma conversa com a
mãe se ela não tivesse se afogado.
Uma se levanta, aperta o ombro de Mariamma.

As aulas, a prática clínica, as dissecações e os livros mantêm a mente


de Mariamma ocupada. Vira e mexe ela sente o ímpeto absurdo de
escrever para Lênin, que, claro, está inacessível. As únicas cartas que
ela recebe agora são do pai, cheias de notícias de casa. Joppan
concordou em ser o administrador de Parambil, e logo no primeiro dia
foi como se ele estivesse na função desde sempre. Philipose diz que,
pela primeira vez, pode respirar. E há certo drama envolvendo o
Senhor Melhorias e o fundo para a construção do hospital. Podi
trabalhava para o Senhor Melhorias, ajudando-o na contabilidade.
Depois que ela foi embora, ele contratou uma nova assistente, que
aparentemente desviou dinheiro. A confusão está sendo resolvida, mas,
por ora, o pobre homem está suspenso, ainda que seja inocente. O caso
não afetou as obras:

Os muros estão quase prontos. Dei uma olhada e me sinto num sonho
diante de um belo prédio moderno aqui, em nossa Parambil. Quem
dera Grande Ammachi pudesse ver. Tem o dedo dela nisso. Talvez veja,
sim. Com certeza sabia que estávamos perto disso. Anna Chedethi
envia lembranças. Temos muito orgulho de você.
Seu Appa que te ama

Em um sábado, quando Mariamma está trabalhando nas


dissecações, Uma passa por lá, e as duas conferem juntas alguns dos
primeiros cortes no microscópio binocular. “Penso muito em Armauer
Hansen. Tantos cientistas olharam para tecidos com lepra pelo
microscópio antes dele, mas não viram o bacilo. Não é muito difícil de
ver! É que os anteriores tinham decidido ser impossível que aquilo
existisse. Às vezes precisamos imaginar uma coisa para então encontrar
essa coisa. Isso, por sinal, aprendi com você!”
Aquilo envaidece e inspira Mariamma a se esforçar ainda mais.
Sente-se atraída por Uma. Quando menina, sonhava acordada,
pensando na mãe voltando para casa, coberta de joias, sempre numa
carruagem, o cabelo esvoaçando, a mãe livre do feitiço que a manteve
adormecida por anos a fio. Geralmente essas fantasias lhe vinham
sempre que estava com a Mulher de Pedra, ou no ninho, pois Elsie
estava viva naquelas criações, viva em seus esboços e pinturas — uma
artista interrompida que voltaria a qualquer momento. Mas, com o
passar dos anos, a Bela Adormecida nunca voltou, as pinturas
continuaram incompletas. Uma, sua vibrante mentora, que respira,
cheia de vida, uma mulher que, como Mariamma descobre, compete
em corridas de automóveis e está reconstruindo um motor com as
próprias mãos, é mais real do que qualquer desenho, mais real do que
qualquer relíquia de pedra sem rosto em Parambil.

Mariamma reserva uma passagem de ida para casa, onde passará


uma semana de recesso. Dois dias antes de ir, está no laboratório,
preparando a dissecação para ser fotografada, quando sente uma
presença atrás dela.
Vira-se. Uma está parada à porta, uma banda do corpo para dentro,
com uma expressão estranhíssima, os olhos lacrimosos. O primeiro
pensamento de Mariamma é que Uma andou pescando no tanque de
formol e a fumaça a fisgou.
Em câmera lenta, como uma sonâmbula, Uma flutua até Mariamma
e lhe toca suavemente os ombros.
“Mariamma”, ela diz, “aconteceu um acidente.”
70. Mergulhe

cochim, 1974

Philipose passa uma rara noite longe de Parambil, no famoso Hotel


Malabar, em Cochim, cortesia do jornal. Propôs um artigo com um
ponto de vista diferente sobre Robert Bristow, homem que era visto
como santo naquela cidade portuária, e o editor gostou da ideia.
Bristow, engenheiro naval, chegou a Cochim em 1920 e viu que,
apesar do pujante comércio de especiarias, o local estava fadado a ser
sempre um porto de menor envergadura por causa de um banco de
areia rochoso e um re­bordo gigantesco que só permitiam a passagem de
pequenos barcos. As embarcações tinham de ancorar ao largo,
passageiros e mercadorias seguiam de bote até a praia. Bristow levou a
cabo uma façanha de engenharia tão formidável quanto o canal de
Suez: removeu os obstáculos e, no processo, gerou quantidade de
rochas e sedimentos suficientes para criar a ilha Willingdon. Os navios
agora contam com um porto em águas profundas situado entre o
continente e a ilha, que hospeda o aeroporto de Cochim, secretarias do
governo, empresas, lojas e o magnífico Hotel Malabar.
Philipose janta ao ar livre no hotel, contemplando o largo canal que
corre entre a ilha Vypin e o forte de Cochim e deságua no mar
Arábico. Diverte-o — dada sua questão com a água — ver-se
acomodado numa terra que antes era água. Ele está ali porque um
biólogo mal-humorado andou azucrinando o Homem Comum,
convidando-o a explorar o que a façanha de engenharia de Bristow fez
com o equilíbrio ecológico do lago Vembanad, que se abre para o
oceano naquele ponto. Os canais e remansos, que são o sangue vital de
Kerala e se alimentam do lago, estão expostos à água salgada. “Um
dano imensurável ocorreu às comunidades bentônica, nectônica e
planctônica”, disse o homem, por carta. “E como a dragagem ocorre o
ano inteiro, o dano é constante. A preciosa ostra-de-pedra, Crassostrea,
é vital para uma cadeia alimentar que vai das larvas de peixe a peixes
adultos e crianças com cérebro em desenvolvimento!” Philipose não é
avesso ao argumento: viu questões semelhantes com a construção de
represas, o desmatamento de florestas de teca ou a mineração —
consequências acidentais existem. Os pobres habitantes dos vilarejos
cuja vida pode ser afetada raramente têm voz para questionar de
antemão esses projetos. Uma vez que o dano está feito, o que dizem
pouco importa.
Philipose não se apressa para terminar o jantar, depois do qual lhe é
servido um brandy, cortesia do chef que, como ele fica sabendo, é um
admirador do Homem Comum. Sente a brisa delicada lhe acariciando
o cabelo como os dedos de uma mulher. Bem que gostaria que
Mariamma estivesse com ele naquele hotel!
Estou nas franjas do meu mundo, ele pensa. Não irei mais longe que
isso.
Ele fareja a história naquela brisa. Holandeses, portugueses,
ingleses… Todos deixaram sua marca. E todos se foram. Sombras. Seus
cemitérios foram tomados pelo mato, seus nomes ilegíveis nas lápides,
desbotados pelo vento. Que marca ele deixará? Qual há de ser sua obra-
prima? Sabe a resposta: Mariamma. Ela é sua obra-prima.

Depois do jantar, levanta-se com movimentos cuidadosos, não está


acostumado ao brandy. Os turistas que mais cedo se sentaram a uma
longa mesa esqueceram um livro numa cadeira. Não, não um livro,
mas um catálogo pequeno, bonito, impresso naquele tipo de papel
pesado que convida ao toque. Ele o pega. Na capa, uma fotografia em
preto e branco de uma grande escultura de pedra ao ar livre.
Retoma a sobriedade num instante. O mar se põe imóvel, a brisa
cessa, as estrelas param de brilhar.
Os ombros e braços da figura na capa são agigantados — é uma
mulher, mas uma mulher sobre-humana. Lembra uma figura de barro
primitiva, com peitos cheios e pendentes. As escápulas parecem asas
achatadas contra o corpo. A pele deliberadamente áspera. Está em
quatro apoios, mas estende um braço. Seu rosto está oculto, ainda preso
na pedra.
Philipose sente as entranhas revirarem e um arrepio que lhe sobe
pelos fios de cabelo: as proporções agigantadas, a postura, a atitude —
aquilo tudo é Elsie.
Cambaleia para o quarto e, num transe, estuda o catálogo à luz do
abajur. O índice lista aquela figura como “#26, artista desconhecido”.
É o catálogo de leilão de peças de uma casa em Adyar, pertencente a
um ricaço inglês — um “orientalista” que acumulou uma coleção de
pinturas indianas, arte folclórica e esculturas. A casa de leilões Messrs.
Wintrobe & Sons preside o leilão, em Madras. Ele se debruça sobre
cada página, estudando os demais itens. Não vê nada mais de Elsie.
Teoricamente, aquela escultura poderia ser um trabalho realizado antes
do casamento deles. Ou quando ela foi embora, depois da morte de
Ninan. Mas intui que não.
Ele volta à capa. A pedra rústica e intocada onde o rosto está
enterrado é uma opção deliberada. Ele começa a suar, sente um
ímpeto de escavar o papel, abrir à força a pedra para revelar o rosto.
Philipose caminha de um lado a outro, tentando entender o que não
faz sentido.
Nunca encontraram o corpo. Na ausência de um corpo, tiramos nossa
conclusão.
Quando Elsie se afogou ele estava lá, mas perdido em fantasias
opiáceas de reencarnação, em seguida afundado em recriminações. Ao
retornar da floresta, depois que Shamuel, Joppan, Unni e Damo o
arrastaram para lá, viu-se sóbrio, com o pensamento claro. Cheirava as
roupas que Elsie deixara às margens do rio. Inalava seu novo aroma
depois da longa ausência. A fragrância do sofrimento. Ele nunca quis
aceitar que a esposa se entregara ao rio, tirando a própria vida, pois, se
assim o fosse, ele teria sido o culpado. Não, havia sido um acidente.
Em seus pesadelos deparava-se com um corpo em decomposição, longe
de Parambil, destroçado por crocodilos e cachorros-do-mato.
Mas, em todos aqueles anos, nunca considerou outra possibilidade
que não o afogamento; nunca imaginou um cenário em que uma Elsie
viva, respirando, existisse no mesmo universo que ele, ainda praticando
seu ofício. Razões para fugir dele não lhe faltavam. Mas da própria
filha? Não, com certeza não.
Oh, Elsie. Com que tipo de animal você se casou, se a única forma de
viver sua paixão era sacrificar Mariamma?
O leilão acontecerá em dois dias. O catálogo até pode falar em
“artista desconhecido”, mas em duas décadas de trabalho num jornal
aprendeu que o “desconhecido” muitas vezes é apenas o não revelado.
Ele precisa ir a Madras. Durante todos aqueles anos, essa cidade foi o
símbolo de seu fracasso. Nem mesmo a presença da filha lá conseguiu
fazê-lo subir num trem. A ideia ainda o deixava sem ar e suando.
Mas agora vai. Precisa ir. Não apenas para encontrar uma resposta,
mas para corrigir erros passados.

Na manhã seguinte, o escritório do Manorama em Cochim


consegue o impossível. Algumas horas mais tarde, retira seu bilhete no
guichê de reservas. Está trêmulo, as palmas das mãos úmidas. Philipose
dirige-se a si próprio: Vamos subir naquele trem e acabou. De volta ao
Hotel Malabar, escreve uma carta para Mariamma.

Minha querida filha, logo mais embarcarei em um trem para Madras.


Estarei aí ao amanhecer. É provável que eu chegue antes desta carta.
Mas você mesma disse que, depois de todos estes anos, se eu aparecesse
sem avisar, você provavelmente morreria de susto. Daí estas palavras
para dizer que estou a caminho. Tenho muito a contar. A viagem de
descoberta não tem a ver com novas paisagens, e sim com novos olhos.
Seu Appa que te ama

Na hora de embarcar, ao ver seu nome numa lista fixada no vagão,


lembra de quando esteve naquela mesma plataforma com o Senhor
Melhorias. É como se toda a sua vida ainda estivesse por acontecer: ele
ainda está para conhecer a garota dos óculos escuros que será sua
esposa; Grande Ammachi, Bebê Mol e Shamuel estão vivos; Ninan e
Mariamma ainda não nasceram e seguem à espera de serem
chamados…
Sobe no trem como um viajante experiente, levando apenas uma
maleta com o caderno de anotações e uma muda de roupas. “De
nada”, ouve-se dizer, magnânimo, ajudando uma mulher a enfiar uma
mala embaixo do banco. O trem arranca. Ele ri com os demais quando
uma kochamma grita da plataforma: “E não se esqueça de lavar as
cuecas, kehto! Não leva no dhobi”. Os universitários no cubículo ao
lado gritam: “Qual o problema, ammachi? Deixa o cara em paz!”.
A viagem começa alegre. Seus novos amigos de cabine debatem se é
melhor pedir um jantar em Palakkad ou esperar até Coimbatore, como
se a vida dependesse de pequenas decisões como aquelas. Se espanta
quando se ouve emitir uma opinião, fingindo experiência. Seu covarde!,
pensa. Toda aquela confusão que você fez para não visitar Madras! Tudo
que precisava era que Elsie voltasse do reino dos mortos.
Ao anoitecer, as encostas verdejantes dos Gates Ocidentais silenciam
os passageiros, suspendendo as conversas. Ele olha pela janela, perdido
em pensamentos. Se você mudou, Elsie, eu também mudei. Aprendi a
ser firme. Levei minha filha para a escola todos os dias, até que ela me
proibiu. Li histórias para ela todas as noites. Mariamma é uma leitora,
graças a Deus, e não há nada que aprecie mais do que se enfiar num
livro. Decretei as quartas como noite de música carnática da All India
Radio, mas ela preferia ópera da BBC — uns sons horríveis. Ah, Elsie,
você perdeu tanta coisa da vida de nossa filha! Não realizei nada demais
nesta vida, sou o primeiro a admitir. No entanto, que feito poderia ser
maior do que nossa filha? Você não precisa se explicar nem nada do tipo.
Elsie, estou indo pedir desculpas. Dizer que queria poder rebobinar o fio
de nossa vida. Eu era diferente naquela época. Sou outra pessoa agora.
Quando entram no primeiro túnel, a luz tênue do compartimento dá
ao vagão um clima fantasmagórico, e o ruído do trem sobre os trilhos
amplifica-se estrondosamente.
Nunca deixei de pensar em você. Em como você era quando nos
conhecemos e em nosso primeiro beijo… Converso com sua foto toda
noite.
Mas Elsie, Elsie — e essa escultura? Terá sido feita no ano em que
você foi embora de Parambil? Senão, significa que você está viva? Talvez
preferisse pensar em você morta, para não ter que encarar meu
comportamento terrível. Porém, Elsiamma, se você está viva e se
escondendo, mostre a sua cara. Tem muita coisa pra ser dita…

Logo o trem cruzará um rio sobre uma longa ponte de treliça — ele
ainda lembra dela, depois de tantos anos, e estremece ao recordá-la,
pois à época levou um grande susto: quando o trem chegou à ponte, o
ruído rítmico das rodas nos trilhos transformou-se de súbito num
zumbido agudo, e quando ele olhou para fora, o trem parecia navegar
sobre as águas, sem nada que o sustentasse. Na ocasião seu jovem eu
quase desmaiou. Agora seria melhor estar dormindo quando chegassem
à ponte.
Ele sobe para o leito — o mais alto — e se estira. Naquele espaço
confinado, a visão do teto a centímetros do nariz evoca um caixão.
Fecha os olhos e conjura o rosto de Mariamma. Ela compensou suas
ambições frustradas, sua solidão, as imperfeições de seu antigo eu. Não
temos filhos para realizar nossos sonhos. Os filhos nos permitem deixar
para trás os sonhos que nunca realizaríamos.
Ele está quase dormindo quando um baque agudo vindo de outro
vagão o desperta, seguido por um tremor que atravessa sua cabine. Seu
corpo salta do beliche. Isso é estranho! A cabine gira ao redor. Philipose
vê uma criança suspensa no ar e um adulto que passa voando. O
compartimento explode com gritos e rangidos de metal. Ele é lançado
contra o teto, só que o teto ago­ra é o piso.
As luzes se apagam. Ele tomba na escuridão, afundando sempre
mais, sente o estômago na boca, como na viagem com o barqueiro e o
bebê agonizante, mil anos atrás.
Ouve-se um baque estrondoso, e no impacto o compartimento se
abre. A água inunda a cabine. Por reflexo, ele respira fundo, insuflando
o peito instantes antes de ser engolfado pela água fria. Desliza para fora
do vagão partido. É tudo tão familiar. Olhos abertos!, Shamuel lhe
ordena.
Philipose nota uma mancha vagamente escura, igual a uma baleia,
logo abaixo dele — é seu vagão que afunda. O ar em seu peito o leva
para cima. Alcança a superfície e puxa uma nova lufada de ar; sentindo
o mundo rodopiar, agarra-se a um objeto duro que boia perto dele, mas
uma ponta aguda corta sua mão. Agarra-se desesperadamente a outro,
que flutua. Olhos abertos, a tontura cessa.
O silêncio é mortal. Ele lança um olhar sobre a superfície da água,
iluminada por uma luz fantasmagórica, pontilhada por bagagens,
roupas, chinelos e cabeças. A ponta de um vagão irrompe, embicando
acusadoramente na direção do céu, e afunda.
Dos dois lados, as paredes escarpadas de uma ravina se estreitam,
emoldurando uma faixa de estrelas. Ele vê o resquício partido da ponte
de treliça. A água está fria. Philipose não sente dor, mas sua perna
direita não responde. Uma luz atrás dele! Vira-se devagar, mas é apenas
a lua crescente, indiferente a tudo. Agora ouve um coro que se ergue,
os gritos dos sobreviventes. Uma mulher berra “Shiva! Shiva!”, outra
grita “Deus! Meu Deus!”, mas o deus dos desastres não se comove, e as
vozes se afogam no silêncio.
Uma figura imóvel flutua perto dele, o rosto submerso na água, um
emaranhado de pano e cabelos longos, o corpo torto numa posição
impossível que faz Philipose recuar.
O objeto ao qual ele conseguiu agarrar-se é um assento encharcado.
Mal chega a boiar. Ele nada com o braço livre, surpreendendo-se
quando consegue avançar. Não há corrente, apenas morte e escombros
flutuando na calmaria. Ele move a perna direita e agora sente um
choque de dor.
“Appa! Ap…!”
O grito da criança vem de algum lugar atrás dele. Uma garotinha ou
um menino? Ou uma alucinação?
Com um gesto se vira com a boia volumosa. Na superfície espelhada
Philipose avista uma cabeleira partindo-se sobre dois grandes olhos
apavorados, grandes como duas luas, olhos que perdem o foco, o
pequeno nariz e os lábios gorgolejando debaixo d’água, erguendo-se
brevemente para tentar gritar, enquanto pequenas mãos desesperadas
escalam uma escada invisível. É a luta da criança para respirar que o
galvaniza. É o bebê do barqueiro de novo. A cabecinha afunda e
desaparece. Ele ouve um urro no fundo da garganta ao patinar naquela
direção, mas, ah, ele se move muito devagar, a dor na perna o atrasa.
Appa! É o grito da criança, de todas elas. No momento menos
oportuno, vem-lhe um entendimento: o rosto que tanto desejava ver, o
da Mulher de Pedra, não foi feito para que ele o visse. Que importa?
Morremos mesmo quando estamos vivendo, somos velhos mesmo
quando jovens e nos agarramos à vida mesmo quando aceitamos deixá-
la.
No entanto, aquela criança afogada para a qual se dirige dá a chance
a ele, um homem comum, de fazer algo de relevante. Ame os doentes,
cada um deles, como se fossem gente sua. Ele escreveu aquelas palavras
de Paracelso para a filha. Aqui, um pouco além de seu alcance, há uma
criança, não a sua, mas ele deve amar todas como se assim fosse. Talvez
essa criança já não possa ser salva, como ele mesmo, porém não
importa e ao mesmo tempo importa terrivelmente. Philipose nada e se
debate de modo furioso, o homem de uma perna e de um braço só, o
homem que não sabe nadar, buscando a criança fora de seu alcance.
Sua mão roça pequenos dedos, mas eles já lhe escapam, afundando.
Philipose respira fundo, tragando nos pulmões os céus, as estrelas e
as estrelas além dessas, e Senhor, Senhor, meu Senhor, onde está Você?
Respiro para que me dê fôlego, o hálito de Deus… Pela primeira vez na
vida, livre de indecisões, livre de dúvidas, está absolutamente certo do
que deve fazer.
71. Os mortos hão de se erguer intocados

madras, 1974

Ela tem em mãos uma carta fechada do pai. Suas lágrimas borram o
endereço escrito naquela caligrafia impossível que o carteiro sempre
consegue decifrar.
Nessa carta o pai está vivo.
Naquela manhã, no necrotério, não estava.
Do lado de fora daquele lugar, uma multidão raivosa de parentes
clamava por notícias. Em seus rostos contorcidos, incrédulos,
Mariamma viu-se a si própria. A mesma garra os reunira ali, como a um
punhado de folhas secas; a mesma foice lhes cortou à altura dos
joelhos, arrebatando os entes queridos. Repelindo os demais enlutados,
um guarda permitiu que Mariamma, de jaleco branco, se espremesse
pelas grades de metal. “Por que ela pode ver o corpo e nós não?”
O corpo. Aquela palavra era um golpe de cacetete.
Uma a esperaria no necrotério, mas, como não a viu, Mariamma
caminhou pela sala cavernosa, sem que ninguém a impedisse em meio
à confusão de corpos estirados pelo chão e sobre macas de metal.
Então viu uma determinada mão, tão familiar quanto a sua, pendendo
sob um lençol de plástico. Aproximou-se, segurou a mão fria e
descobriu o rosto dele. O pai parecia em paz, como se repousasse.
Tomada de emoção, quis um cobertor para ele, não aquele lençol de
borracha, e também um travesseiro, para que a cabeça do pai não
descansasse no metal frio e duro. Não estava morto. Era um engano.
Não, só precisava dormir, era isso; depois do descanso, ia se sentar e
sairia com ela daquele necrotério barulhento… Suas pernas ficaram
bambas, a sala escureceu e os sons emudeceram. Num reflexo,
agachou-se ao lado da maca, a cabeça entre os joelhos, ainda
agarrando-se à mão dele, chorando incontrolavelmente. O mundo
havia acabado.
Aos poucos, os sons da sala retornam. Ninguém lhe deu a menor
atenção. O caos era grande, todos choravam, alguém gritava tentando
restaurar a ordem. Depois de um bom tempo ela se pôs de pé. Entre
lágrimas perguntou ao pai o que o fez embarcar naquele trem. Por que
aquele trem? Ele sabia que logo mais ela iria para casa, então por que
vir?
Uma Ramasamy, de avental, encontra-a conversando com o pai.
Uma e todos os demais patologistas da equipe estavam ocupados
ajudando o médico legista assoberbado a lidar com a enxurrada de
corpos. Uma a abraçou, chorou com ela. Quando Mariamma
perguntou, Uma disse que o lençol de borracha ocultava um joelho
espedaçado e uma laceração profunda no tronco à esquerda.
Mariamma não queria ver aquilo.
Tinha consciência de que Uma precisava trabalhar e não podia ficar
com ela o dia todo. “Nunca imaginei que falaria disso aqui ou nessa
situação, mas tem que ser agora. É importante, é sobre meu pai, sobre
minha família. Tem alguns minutos, por favor?”
Uma a ouviu, o rosto imóvel, atenciosa, as sobrancelhas erguendo-se
de surpresa.
“Farei isso”, a professora disse. “Pessoalmente. É preciso assinar
alguns papéis.”

No quarto, com mãos trêmulas, e Anita ao lado, ela abre a carta do


pai.

Minha filha querida.

Ela lê uma, duas vezes. O pai diz que está de partida para encontrá-
la. Mas não diz por quê. “A viagem de descoberta não tem a ver com
novas paisagens, e sim com novos olhos”?
As palavras não fazem sentido. Mariamma aperta a carta contra os
lábios, tentando entender. Captura o aroma da tinta caseira do pai: a
fragrância inequívoca do lar, do solo de laterito vermelho que ele tanto
amava.

Dois dias depois, em Parambil, quando Mariamma retorna com o


corpo do pai, ela e Anna Chedethi agarram-se uma à outra como duas
almas afogadas. Anna Chedethi é mais do que uma parente de sangue:
agora é o último sobrevivente da família da jovem médica.
Joppan está logo atrás de Anna Chedethi, seu rosto duro como pe­dra
quan­do toma as mãos dela, os olhos como se planejassem vingar-se do
Deus que le­vou seu melhor amigo. Nem Anna Chedethi nem Joppan
sabem por que Phi­lipose subiu naquele trem.
Ela mal reconhece o saco de ossos que se aproxima para consolá-la: é
o Senhor Melhorias. Seu pai foi o único a apoiá-lo depois do escândalo
que envolveu uma funcionária ladra, embora tenha sido constatado
que o desvio de dinheiro foi mais um prejuízo do banco, o fundo para a
construção do hospital permaneceu praticamente intocado. Ninguém
julgou o Senhor Melhorias com mais severidade do que ele próprio.
Ainda assim, é a pessoa certa para momentos iguais a esse: as
necessidades dos outros, a missão de organizar e executar um funeral,
aquilo lhe dá um propósito. “Estou de coração partido, molay”, ele diz.
Ela se afasta para conversar com o motorista da van que leva o corpo.
No dia seguinte, na igreja, há muitos rostos que ela não reconhece,
admiradores do Homem Comum que vieram prestar condolências.
Uma mulher que, em aparência, poderia ser irmã de Grande
Ammachi, mas recurvada, de bengala, diz: “Molay, rimos e choramos
com seu pai por um quarto de século. Nosso coração está partido por
você”. E lhe dá um abraço apertado.
Mariamma guarda um segredo que nenhum dos enlutados pode
saber: o corpo do pai no caixão teve todas as vísceras removidas, o
abdome e o tórax são uma concha vazia. Uma extraiu também toda a
coluna, inserindo um cabo de vassoura no lugar. Os que
testemunharam mais cedo o caixão aberto não viram a longa incisão
atrás da cabeça, de orelha a orelha, pouco abaixo da linha do cabelo. O
couro cabeludo foi puxado para frente, e a calvária foi aberta para
remover o cérebro. Depois o crânio e o couro cabeludo foram
restaurados. Normalmente não se realiza uma autópsia cerebral no
contexto de um desastre e com tantas vítimas, sobretudo se os pulmões
indicam afogamento. E mesmo assim Uma conduziu pessoalmente
uma autópsia naquela vítima. No entanto, nenhuma autópsia explicará
por que o pai de Mariamma subiu no trem.
Philipose será enterrado ao lado do pai, de Grande Ammachi, de
Bebê Mol, JoJo e de seu amado filho, o irmão de Mariamma, Ninan,
no solo vermelho que os alimentou e que eles amavam. Se os restos
mortais de sua mãe um dia forem encontrados, ela também descansará
ali. Como a própria Mariamma.
Ela se pergunta o que Grande Ammachi diria do corpo desfalcado
do filho. Sim, a trombeta tocará e os mortos ressurgirão incorruptíveis; e
nós seremos transformados. Sua avó acreditava naquilo literalmente?
Talvez sim. Se Deus pode erguer os decompostos, então certamente
poderá reconstituir Philipose, ainda que seus restos mortais estejam
divididos, jazendo em costas opostas.
Descem o caixão. A terra bate na tampa com uma nota tão cabal que
ela descobre um novo reservatório de lágrimas. Mais tarde, de volta à
casa, a família estendida de Parambil se reúne: todos os adultos ali a
conheceram quando criança, muitos deles agora já bastante velhos. Os
gêmeos são anciãos, ainda mais parecidos naquele estado recurvado,
com bengalas iguais e cabelo ralo. Decência Kochamma não está ali;
está de cama, com oitenta e tantos anos, sem força nem maledicência.
Dolly Kochamma, da mesma idade da concunhada, tem rugas, mas
conserva o aspecto e a mobilidade de uma mulher ágil de seus
cinquenta anos, correndo para lá e para cá, ajudando Anna Chedethi a
servir a comida. Mariamma vê o rosto das crianças com quem cresceu,
alguns quase irreconhecíveis como adultos. Faltam os dois que talvez
lhe trouxessem mais consolo: Lênin e Podi. Na tradição dos cristãos de
São Tomé, não se costuma fazer uma eulogia ao pé da sepultura, no
entanto agora, encerrado o enterro, aqueles reunidos na casa olham
para Mariamma com expectativa, antes de o Achen fazer uma oração.
Ela fica de pé, de mãos juntas, encarando-os. Ocorre-lhe então que é só
quando nosso pai e nossa mãe estão mortos que deixamos a infância.
Ela já não é uma filha. Acabou de virar adulta.
“Se Appa pudesse ver vocês agora, ficaria tomado de gratidão. Pelo
amor de vocês por ele e pelo apoio que têm me dado. Meu pai sentia
tanto amor por Ninan e tanto amor por minha mãe. Porém não teve
chance de amar os dois por muito tempo. Verteu todo esse amor
represado sobre mim, que recebi mais desse sentimento do que a
maioria das filhas recebe ao longo de muitas vidas. Fui abençoada.
Agradeço a todos por estarem aqui, por me darem força. Tentarei seguir
em frente. Todos devemos. É isso que ele gostaria de ver.”

Na manhã do funeral, o jornal que Philipose tanto amava publica


sua coluna pela última vez. Sob seu nome e fotografia as únicas
palavras são: O Homem Comum, 1923-74. Debaixo disso, a coluna está
vazia. Uma moldura preta enquadra o vazio.
72. A doença de Von Recklinghausen

madras, 1974

Mariamma escreve a Uma Ramasamy para avisar quando deve


voltar. A doutora telegrafa: Traga a genealogia que mencionou. Tenho
algo para mostrar a você.
Duas semanas depois do funeral, ela embarca para Punalur no trem
noturno — uma rota diferente da que o pai seguiu. Não consegue
dormir, ansiosa. Por que Uma não disse logo o que encontrou?
Ela chega a Madras no começo da manhã. Às onze está na sombria e
inquietante Sala de Amostras de Patologia, esperando por Uma. As
centenas de amostras preservadas nas prateleiras, usadas por
examinadores para apertar estudantes nas provas orais de anatomia,
patologia, e toda especialidade médica, fitam-na fixamente.
A médica chega, abraça Mariamma, toma uma curta distância e se
põe a estudá-la, para ter certeza de que a jovem está inteira. Desiste de
encontrar as palavras certas e a abraça de novo. “É a genealogia?”,
pergunta, por fim, enxugando os olhos e apontando a folha do
tamanho de um pôster, enrolada como um tubo.
“Uma cópia, o original está se desfazendo. Está em malaiala, mas
traduzi o que pude.”
Como sacerdotisas responsáveis pela proteção de uma fé, debruçam-
se sobre as vidas de Parambil. Mariamma resume o que sabe: o
crucifixo sobre linhas onduladas é para os afogados; linhas onduladas
sem crucifixo indicam aversão à água. As anotações sugerem que pela
quinta ou sexta década de vida alguns daqueles que sofriam da
Condição experimentaram dificuldades para caminhar ou tonturas. Há
muitas referências à surdez. E três menções à fraqueza parcial do rosto,
incluindo uma relacionada a seu avô.
“Não vejo um padrão mendeliano simples de hereditariedade. É
curioso que afete mais os homens que as mulheres!”, diz Uma.
“Bem… talvez não. Como as mulheres se afastavam ao se casar, há
poucos registros do que acontecia com elas depois. Faziam parte de
outra família dali em diante. É como se o casamento as fizesse
desaparecer.” Como minha mãe, ela pensa.
“Obrigado por trazer essa genealogia, de qualquer modo. É uma
ajuda imensa.” Uma se recosta no apoio da cadeira. “Então…
Mariamma, na autópsia geral, não havia lesões suficientes para causar a
morte de seu pai… Ele se afogou.” Ela faz uma pausa, esperando
Mariamma absorver o fato. Não fosse a Condição, o pai poderia ter
nadado para a margem.
Depois de um tempo, Mariamma faz um sinal para que Uma
continue. “Antes de fazer a autópsia cerebral, conversei com o dr. Das,
neurologista, e contei o que sabia. Ele estava comigo quando removi o
cérebro. Vimos uma coisa. A verdade é que a descoberta crucial quase
me escapou. Era sutil, e foi bom ter sua história em mente e também a
presença do dr. Das. Vamos ao laboratório e vou te mostrar”, ela diz,
levantando-se.
No corredor, Uma diz: “O cérebro precisa de pelo menos duas
semanas para enrijecer em formol, de preferência mais. Pincei o órgão
assim que chegou aqui. O manuseio é seguro, mas ele não está pronto
para ser seccionado”. Como ritual patológico, secciona-se o cérebro
com uma faca e uma tábua, tal como se faz com um pão. “O dr. Das
vai nos encontrar no laboratório. Está pronta?”

O Laboratório de Estudos Cerebrais parece um armazém retangular


ladeado de prateleiras; ao fundo, um janelão que vai do piso ao teto. As
pra­teleiras estão atulhadas de baldes de plástico, como tintas numa loja
de equi­pamentos de construção. Dentro daqueles baldes, porém, há
cérebros ainda não duros. Um cérebro fresco, quando removido, é
mole e tomará a forma de qualquer recipiente que o acolha. Para reter
o aspecto original enquanto endurece, passa-se um fio através dos vasos
sanguíneos na parte de baixo, em seguida o cérebro invertido é
suspenso em formol, amarrando-se o fio a uma trave acima do balde.
O dr. Das já está lá, um senhor discreto e recurvado. Numa bandeja
na mesa à janela, coberto por um pano verde, como uma massa em
processo de fermentação, jaz o cérebro do pai de Mariamma.
Depois das devidas apresentações, Uma olha para Mariamma e
então remove o pano. O cérebro é um pouco maior que um coco
descascado. Na parte de baixo, como o caule de uma couve-flor, vê-se o
tronco encefálico. Pendendo logo abaixo, como cadarços desamarrados,
os nervos cranianos que Uma seccionou para remover o cérebro do
crânio. Aqueles nervos levavam os sinais de olhos, ouvidos, nariz e
garganta a Philipose, permitindo-lhe ver, sentir cheiros e sabores,
engolir e ouvir. Expandindo-se como um cogumelo sobre o tronco
encefálico e apequenando-o, estão os dois hemisférios cerebrais. Parece
um cérebro qualquer, mas não é: aquele era depositário de memórias,
de todas as histórias que o pai escreveu e daquelas que poderia ter
escrito; naquele cérebro residia o amor que sentia por ela. E ele guarda
a razão misteriosa que o levou a Madras.
Uma diz: “Como disse, não vi nada de anormal num primeiro
momento, mas então…”. Entrega uma lupa para Mariamma. “Olhe
aqui, onde o nervo facial e o nervo acústico estão prestes a penetrar o
tronco encefálico. Consegue ver esse pequeno caroço amarelo no
nervo acústico? Em qualquer outro cérebro e sem o dr. Das comigo, eu
talvez não desse muita importância, ainda mais porque vi o mesmo do
outro lado. Contudo, levando em conta o histórico familiar, ele me
pareceu significante. Extraí uma pequena amos­tra de um dos caroços
antes de mergulhar o cérebro em formol. Fiz uma secção de tecido
congelado e, ontem, um exame de coloração mais permanente na
amostra. Vi células fusiformes, dispostas em paliçadas. É um neuroma
acústico.”
“Isso explica a perda de audição”, Mariamma diz.
O dr. Das limpa a garganta e declara: “Sim”. O corpo do
neurologista de voz suave flutua dentro de um jaleco de mangas curtas.
“Neuromas acústicos não são malignos no sentido usual. Não se
espalham. Apenas crescem muito lentamente. Mas, nessa fenda
apertada entre o interior do crânio e a parte de fora do tronco
encefálico, algo do tamanho de um amendoim é como um elefante
entocado dentro de um guarda-roupa, não é? O tumor começa
naquelas fibras nervosas acústicas que recebem sinais de equilíbrio do
ouvido interno, do labirinto. Porém, ao crescer, pressiona as fibras que
afetam a audição, como você notou. Crescendo ainda mais, tensiona os
nervos faciais e adjacentes, provocando a fraqueza de um lado da
face…” Ele faz uma pausa.
“A maioria dos pacientes que diagnostiquei com neuroma acústico só
tem o tumor em um dos lados. Mas, como seu pai tinha nos dois lados,
e graças ao histórico familiar, ele provavelmente tinha uma variante da
neurofibromatose, a chamada doença de Von Recklinghausen.
Conhece?”
Ela conhecia. A velha que vendia jasmins em frente à residência
universitária tinha a doença de Von Recklinghausen. A profusão de
caroços sob a pele originou-se nos nervos cutâneos. As partes visíveis do
corpo da mulher estavam completamente cobertas de protuberâncias
parecidas com cogumelos, embora não parecessem incomodá-la.
“Mas meu pai não tinha caroços na pele, nada.”
“Sim, eu sei”, diz o dr. Das. “Porém, veja, há uma variante da
neurofibromatose que apresenta poucas ou nenhuma lesão e provoca
neuromas acús­ticos dos dois lados. Às vezes apresenta tumores benignos
característicos em outros lugares. Eu, na verdade, penso ser uma
doença diferente da de Von Recklinghausen, mas, por ora, as duas são
agrupadas juntas. Não há muitos relatos de hereditariedade. Sua
família é um caso raro.”

Meia hora depois, a dra. Ramasamy e o dr. Das se foram. Mariamma


pediu para ficar sozinha no laboratório por um momento.
Os baldes nas prateleiras são os espectadores da cena. Ela fecha os
olhos. Com os pés firmemente plantados no piso, não vacila. Seu pai
não conseguiria fazer aquilo: talvez tropeçasse. Mas ela pode ficar de
pé, de olhos fechados, graças aos labirintos, os órgãos de equilíbrio
enterrados no crânio — um de cada lado. Dentro de cada labirinto, três
canais circulares cheios de flui­dos, como anéis que se conectam em
certa angulação, registram o movimento do fluido no interior,
determinando assim sua posição no espaço; eles enviam aquela
informação ao cérebro por meio do nervo acústico. No caso do pai, os
sinais eram interrompidos por esses tumores.
Das falou dos labirintos como “prova da existência de Deus”.
Quando criança, Mariamma gostava de rodopiar como um dervixe e
ficava tonta ao parar. Isso acontecia porque o fluido nos labirintos,
naqueles canais circulares, ainda girava, dizendo ao cérebro que ela
continuava rodopiando, embora seus olhos dissessem que não. Os sinais
conflitantes a faziam cambalear como uma bêbada e lhe davam até
ânsia de vômito. Rodopiar como um dervixe não era uma brincadeira
da qual Lênin ou o pai pudessem participar. Eles já viviam com sinais
conflituosos.
Como Philipose recebia sinais incertos ou nenhum sinal de seus
labirintos, ele deve ter compensado essa deficiência,
inconscientemente, valendo-se dos olhos para ver o chão e encontrar o
horizonte. Além disso, dependia da sensação sob os pés, que lhe dizia
estar em terra firme. No escuro, quando não podia ver bem nem
observar o horizonte, ou sempre que seus pés entravam na água e não
tinham onde pisar, perdia-se.
O dr. Das disse que um novo procedimento, ainda em teste —
tomografia axial computadorizada, ou cat scan — permitiu incríveis
imagens transversais do cérebro. Neuromas acústicos pequeninos como
os de seu pai podiam ser diagnosticados cedo. Mas, mesmo se o tumor
de Philipose tivesse sido diagnosticado no último ano, a não ser que
estivesse causando sintomas consideráveis, como paralisia facial, dor de
cabeça ou vômito, devido à pressão elevada no cérebro, ninguém
consideraria cirurgia. A operação é rara e arriscada, reservada para
tumores grandes. Nesse caso, os neurocirurgiões faziam uma abertura
do tamanho de um envelope na parte de trás do crânio, logo acima da
linha do cabelo, movendo o cerebelo para o lado a fim de alcançar o
tumor, que ficava enterrado num campo minado de estruturas crí­ticas
— grandes seios venosos, artérias cranianas vitais — e com outros
nervos cra­nianos dobrando-se sobre ele, além de estar bem perto do
tronco encefálico.

Mariamma sente a presença de Grande Ammachi espiando tudo lá


de cima, chocada com a visão do cérebro do filho. Será que a avó
consegue relevar a terrível violação do corpo de Philipose e alegrar-se
com esse novo entendimento? A Condição agora tem um nome
médico e uma localização anatômica, que explica seus estranhos
sintomas: surdez, aversão à água e afogamentos. O inimigo foi
encontrado, mas a vitória parece-lhe vazia. Que importa o nome? De
que serve aquele conhecimento, se a ciência e os procedimentos
cirúrgicos não avançarem, se não garantirem a uma criança vítima
daquela desordem uma vida normal, sem riscos de afogamento, ou
perda auditiva, ou sintomas ainda piores na velhice?
Três gerações de nossa família estão nesse laboratório, pensa
Mariamma. Quando Grande Ammachi acendeu o castiçal de sete velas
na noite em que sua homônima nasceu, ela disse ao kaniyan: “Nunca
haverá outra como minha Mariamma, e você nem imagina as coisas
que ela fará”. Na infância, sempre que contava essa história, a avó dizia
que havia acendido o castiçal para que ele iluminasse o caminho da
menina. “O que vou fazer, Grande Amma­chi?”, Mariamma pergunta
em voz alta, tal como o fez tempos atrás. Ela ouve a resposta da avó: “O
que você imaginar”.
Ammachi, eu me imagino enfrentando esse inimigo que afogou meu
pai, um inimigo que o derrubou mesmo depois de ele ter sobrevivido a um
desastre de trem. Me imagino conquistando esse território abarrotado na
base do cérebro, fazendo dele meu campo de batalha, me dedicando a
conhecer com mais profundidade esses tumores. Levará anos de
treinamento, mas é isso que imagino, Ammachi, nunca estive mais certa
disso — serei cientista e cirurgiã.

Terminada a graduação, Mariamma passa mais dois anos em Madras


— um ano de residência obrigatória, alternando entre todas as
especialidades; o outro com o pomposo título de “cirurgiã-residente-
chefe”. Só quando completa os dois anos se qualifica para uma vaga na
especialização em neuro­cirurgia.
Decidir ser neurocirurgiã é muito mais fácil do que conseguir uma
vaga em um dos poucos programas de treinamento neurocirúrgico do
país. Mariamma tem notas excelentes, uma medalha de ouro em
anatomia, cartas de recomendação de peso, e à ocasião já conta com
dois artigos publicados em conjunto com Uma (um deles sobre lepra; o
outro, um estudo de caso sobre o neuroma acústico do pai e sua
figuração em uma só família ao longo de várias gerações). Contudo,
ainda que não se diga abertamente, muitos centros são refratários ao
ingresso de mulheres na neurocirurgia.
No último instante, ela é aceita no melhor e mais antigo programa
de neurocirurgia: o do Christian Medical College, em Vellore, a apenas
duas horas e meia de trem, a oeste de Madras. Fundado por Ida
Scudder, médica missionária americana, o Christian Medical College
foi a primeira clínica feminina e, depois, a primeira faculdade de
medicina para mulheres, antes de virar uma instituição de educação
mista. Tornou-se um incrível centro de referência, com uma equipe de
médicos dedicados. Igrejas de variadas denominações apoiam a
instituição, fornecendo bolsas a estudantes.
A entrada de Mariamma tem um porém. Como se candidatou para
uma das vagas “patrocinadas”, isto é, com bolsa oferecida por sua
diocese em Kerala, ela precisa cumprir serviço obrigatório de dois anos
em algum hospital missionário antes de começar a especialização. Na
sequência, quando tiver obtido o título de neurocirurgiã, precisará
servir por mais dois anos, também num hospital missionário, antes de
se aventurar por conta própria.
Sete anos depois de pisar pela primeira vez no Forte Vermelho, ela
deixa Madras, com um adeus lacrimoso para Anita, Chinnah, Uma e
tantos outros. Começará o período de dois anos em um hospital
missionário de quatro andares, novinho em folha, mas ainda
desmobiliado: segundo consta, o local ainda receberá o melhor
equipamento possível. Ela será a primeira, e, por ora, a única médica
por lá.
A localização desse hospital missionário fica a dois passos de onde
sua avó acendeu o castiçal por ocasião de seu nascimento: o distrito de
Parambil.
parte nove
73. Três regras para uma possível noiva

parambil, 1976

Sob a guarda de Joppan, Parambil tornou-se um Éden verdejante,


uma fazenda-modelo, com bananeiras e mangueiras vergando sob o
peso dos frutos, jovens coqueiros ostentando suas prendas como
robustos colares de luxo. Uma fonte extra de renda é propiciada pelo
laticínio a pleno vapor, que vende leite para uma empresa de câmaras
frigoríficas. Dois primos mais jovens de Joppan trabalham como
assistentes permanentes. Nos últimos dois anos em que Mariamma
esteve em Madras, Joppan de início escreveu cartas mensais, listando
gastos e renda. Passados seis meses, por solicitação dele, contrataram
um contador temporário. Parambil vai bem.
A casa, contudo, não esconde a idade: há uma intrincada rede de
rachaduras no cimentado vermelho do piso; as paredes de teca oca
imploram uma demão de verniz. Mariamma leva Anna Chedethi a
Kottayam para que ela escolha tinta para a casa inteira e selecione
ventiladores de teto, novas pias e acessórios, um fogão de duas bocas e
um gerador reserva. Anna Chedethi só titubeia quando entregam uma
geladeira. “Ayo, molay! Que faço com isso? Como ela vai me ouvir? Ela
fala malaiala?” Na primeira vez que Mariamma lhe traz um copo
gelado de suco de lima doce, com cubos de gelo tilintando na
superfície, Anna Chedethi se converte. Agora carnes, peixes, legumes e
leite poderão ser preservados por muitos dias.
O Hospital Missionário Malaiala Mar Thoma é o edifício mais alto
em um raio de muitos quilômetros. É cercado por um muro caiado, no
qual os avisos de não colar cartazes estão cobertos por anúncios do
Partido do Congresso e do Partido Comunista. Em frente ao portão
principal, há um ponto de ônibus e a casa de chá de Cherian. Mais
adiante, um edifício retangular abriga o Armazém Frigorífico de
Kunjumon, o London Tailors e o Brilliant Tutorials. Mariamma se
esforça para lembrar do tempo em que ali só havia terrenos repletos de
árvores — nas quais ela e Podi subiam.
Raghavan, o pobre vigia, está rouco de explicar aos pacientes
ansiosos que, sim, o hospital parece pronto, mas ainda não pode
atender. Se o chamam de mentiroso, ele mostra o interior carente de
mobília, os equipamentos empilhados por toda parte, alguns doados por
missões internacionais. Certa noite, Raghavan acorda Mariamma às
duas da manhã por causa de uma criança que ele crê sob perigo
mortal, com asma severa. E está certo. Sem a adrenalina de
Mariamma, a criança não teria sobrevivido.
A médica menciona esse episódio na reunião semanal do conselho; o
bispo, que é o chefe do conselho, não demora a mobiliar a sala onde
ocorre a reunião. Enquanto ela tenta explicar a urgência de um pronto-
socorro com equipamentos básicos, os presentes escutam
educadamente, mas logo passam, sem comentários, à tarefa mais
urgente: decidir o tamanho da placa inau­gural no lobby e quais nomes
devem ser inscritos nela.
Mariamma deixa a reunião fumaçando de ódio e se surpreende ao
encontrar Joppan do lado de fora, tragando um beedi. Ele a acompanha
no escuro, ouvindo suas queixas. “Parece piada! Nesse ritmo, o hospital
talvez não abra nunca.” Cruzam o portão da ponte particular para
pedestres que atravessa o canal e leva a Parambil. Quando chegam,
Joppan diz: “Molay, nada está acontecendo porque o Senhor Melhorias
não está lá. Ele saberia lidar com aquela gente. Vou mandar uma
mensagem para ele”. Só depois que ele se vai é que Anna Chedethi lhe
explica que Joppan foi ao hospital para escoltá-la de volta para casa,
pois já escurecera. É o que o pai de Mariamma teria feito.
Os rumores de que o Senhor Melhorias só se aventura fora de casa
altas horas da noite e prefere a companhia de fantasmas à de humanos
devem ser verdade, pois Anna Chedethi já está dormindo quando ele
aparece. Mariamma compartilha suas frustrações em relação ao
hospital e capta certa satisfação nele ao ser informado do caos
administrativo que impera. Ela implora para que ele fale com o
conselho.
“Nunca! Só se me pedirem pessoalmente. Ainda me culpam por
aquela mulher que tentou desviar dinheiro do fundo.” Mariamma
garante que ninguém o culpa. “Aah, é isso que as pessoas dizem. Mas,
se eu apareço para o chá, contam os grãos de arroz no ara depois que
vou embora. É assim que as pessoas são.”
Ela suplica, evocando o nome da avó e do pai, porém ele bate o pé.
“Serei seu conselheiro particular, só isso. O que você tem que fazer é
o seguinte. Primeiro, não perder tempo pedindo alguma coisa ao
conselho. Aadariyumo angaadi vaanibham?” A cabra entende o negócio
do açougueiro? “Faça uma lista dos remédios e equipamentos
necessários e eu envio um pedido à empresa de produtos médicos em
Kottayam em seu nome, com instruções para que a fatura seja
encaminhada ao bispo. Em segundo lugar, Raghavan, seu vigia, é um
camarada decente. Eu que arranjei esse emprego para ele. Dê a
Raghavan um maço de papéis em branco e diga para ele pedir a toda
pessoa que aparecer lá para escrever algo, uma ou duas linhas, e
assinar, com o endereço. Se não souberem escrever, basta a assinatura.
Enviaremos as cartas para o Metropolitan. Umas dez ou vinte cartas
bastam para que o bispo comece a sofrer um pouco. Por fim, foi bom
você ter me falado da placa. Sei quem é o fornecedor e vou descobrir o
preço. Então ligo para a secretária do bispo fingindo ser jornalista e
pergunto: ‘É verdade que uma criança quase morreu de asma porque
vocês não podem gastar dez rupias em remédios, mas pagam vinte mil
rupias numa placa?’.”
“Em um minuto, você conseguiu mais do que eu conseguiria em um
mês”, Mariamma diz. “Precisamos de você.”
“Não foi nada”, ele diz, mas fica contente. “Sabia que eu que dei o
nome ‘Hospital Missionário Malaiala Mar Thoma’? Flui na língua feito
mel, não é? Mas, antes mesmo de botarem as lajes o povo já tinha
abreviado para ‘Hospital Yem-yem-yem’.” A letra M na língua malaiala
soa como Yem. E os malaialas amam acrônimos. “Depois começaram a
falar ‘Hospital Triplo Yem’. Pode? Triplo Yem! Parece pomada para
hemorroidas.” Ela não confessa que ela própria se refere assim ao
hospital, o apelido pegou.
Ao partir, ele diz: “Aliás, quando o bispo perguntar sobre a fatura,
diga apenas que, como ele vinha pedindo creme para cabelo, talco
Cuticura e vitaminas para uso próprio e listando esses itens como
‘suprimentos essenciais’, você achou que não haveria problema em
acrescentar alguns produtos essenciais para salvar vidas”.
Tendo o Senhor Melhorias nos bastidores, o Triplo Yem começa a
ganhar forma, com eletricistas montando equipamentos e o térreo
sendo mobiliado. Uma sala na entrada torna-se pronto-socorro, e um
espaço grande nos fundos, com uma área de espera do lado de fora, vira
o departamento para doentes de atendimento externo. O hospital conta
com quatro leitos hospitalares em uma “enfermaria” apenas para
emergências. A sala de cirurgia está pronta, equipada com uma
iluminação de primeira — é tanta lâmpada que parece o olho de um
inseto. Mas a seleção de instrumentos — todos doados — é bizarra: há
tudo de que se precisa para uma operação de catarata e para
procedimentos dentários, porém só o mínimo para uma cirurgia
abdominal. Mariamma tem uma enfermeira noturna, uma diurna e um
assistente que preside um pequeno ambulatório.
O único artigo que não falta, desde o início, são pacientes.
Quando a seção de atendimento externo abre, famílias inteiras,
vestidas com suas melhores roupas, vão em excursão ao Triplo Yem, tal
como se fossem à Convenção de Maramon. Certa manhã, uma
kochamma senta sorrindo, silenciosa, no banquinho em frente à
Mariamma, depois de esperar uma hora inteira na fila. Quando a
médica pergunta por que ela foi até ali, ela faz um gesto rápido com o
pulso: “Oh, chuma!” Simplesmente vim! “Meu filho e a esposa estavam
vindo, então pensei: O que há lá? Por que não vou também? Aah. Já que
estou aqui, por que não me dá aquela injeção laranja?”
Mariamma é forçada a inaugurar a sala de operação antes do tempo:
aparece uma cesárea de emergência à meia-noite, o bebê corre risco.
Tão logo mãe e médica entram na sala de operações, a enfermeira
noturna sente as pernas bambas e vai sentar a um canto. Mariamma
recorre à Joppan, que está ali porque Raghavan tem ordens explícitas
de buscá-lo sempre que a médica for convocada depois do anoitecer.
Depois de receber instruções mínimas, Joppan calma e
competentemente verte éter na máscara de gaze. Mariamma, operando
sozinha, retira o bebê. Só quando ouve o choro agudo sua tensão
desaparece. A enfermeira recebe o bebê no colo. Mariamma fecha o
útero, depois o músculo e a pele. A expressão de admiração de Joppan
vira um sorriso bobo quando Mariamma costura o último ponto. “Se
você respirar mais desse éter, Ammini vai pensar que você fez uma
visita à loja de vinho de palma.” Joppan está eufórico ao escoltá-la para
casa. “Molay, o que você acabou de fazer… Não tenho palavras.
Imagine só se Podi tivesse continuado na escola. Ou se eu tivesse
continuado. Somos inteligentes, mas não fomos o bastante para
entender como era importante estudar, não é?”
“Não diga isso. É você quem faz Parambil prosperar. Você dá de dez
a zero em nossos parentes. E Podi e o marido estão ganhando um bom
dinheiro…”
Ele balança a cabeça. “Não é a mesma coisa. Enfim, estou muito
orgulhoso de você, molay.”
Quando deita a cabeça no travesseiro, Mariamma ainda está sorrindo
de felicidade, lembrando das palavras de Joppan.

No entanto, toda visita à sala de cirurgia é angustiante; não há


cirurgião-chefe a quem pedir ajuda ou alguém gabaritado para auxiliá-
la. Certa noite, chega uma paciente que foi esfaqueada na barriga. Ela
encarrega Raghavan do serviço do éter e máscara de gaze, enquanto
Joppan é promovido a enfermeiro-assistente. Só de observá-la, Joppan já
aprendeu o básico da esterilização. Agora a médica lhe mostra como se
higienizar, paramentar-se de luva e avental e ficar de prontidão, na
frente dela. A visão do ventre aberto não o abala. Entrega a Mariamma
o hemostático, tesouras e ligaturas quando solicitado, e aproxima o
refrator. Em pouco tempo ele começa a antecipar as necessidades dela.
Quando terminam, ele está no céu. “Molay, sempre que precisar de
ajuda, é só me chamar. E de dia também. Meus assistentes Yakov e
Ousep podem passar sem mim por um par de horas.”
Mariamma prefere a assistência de Joppan à de qualquer outra
pessoa. Ele pesca rápido suas explicações sobre a fisiologia envolvida no
processo e como a doença a alterou. Um dia ela o flagra estudando o
manual de cirurgia, seus lábios movendo-se para decifrar as palavras em
inglês.
Passados seis meses, a monotonia da rotina de pacientes externos, só
interrompida por alguma emergência médica ou cirúrgica, começa a
pesar. A maioria das queixas é trivial — dores no corpo, tosse, resfriados
— ou então são aflições crônicas, como asma, ou úlceras tropicais de
perna que precisam de cuidados diários. Mariamma se recusa a fazer
operações eletivas antes de contar com um anestesista e mais
enfermeiras. O sonho de um hospital de referência com especialistas
ainda está distante, mas, com o Senhor Melhorias trabalhando nos
bastidores, e Mariamma como sua amanuense, tudo começa a
caminhar. Mas suas dicas de mestre são difíceis de camuflar. Quando o
bispo (pressionado pelo Metropolitan) dobra-se e pede que ele
interceda para liberar alguns equipamentos presos na alfândega, o
Senhor Melhorias é oficialmente reintegrado.

Depois dos anos em Madras, com tantas distrações, suas noites e fins
de semana talvez fossem tediosos, caso Mariamma não tivesse um
projeto que a mantivesse ocupada: anda estudando cada nó e galho da
Árvore da Água. Em especial, está interessada nas mulheres que
casaram e foram embora, e cujos destinos nunca foram registrados.
Seus parentes — mesmo a doce Dolly Kochamma — relutam em falar
da Condição ou em admitir que ela exista. Nesse ponto, um grande
avanço vem de uma fonte inesperada.
Toda tarde Cherian envia um chá “especial”, com biscoitos, para a
“doutora madame”. Mas recusa pagamentos. Certa manhã, Mariamma
o observa montar o toldo de palha com estacas, destravar a cancela de
madeira e arrumar sistematicamente sua barraca para o dia de trabalho.
Ela se aproxima para agradecer. Cherian insiste que aceite um
cafezinho. O arco do líquido fervilhante voa entre seus dois
receptáculos de mistura antes de verter-se com um floreio no copo que
Cherian lhe entrega. O “obrigado” de Mariamma o deixa tímido. Ela
beberica o café, e ficam os dois ali, meio sem jeito, olhando fixamente
para o Triplo Yem, como se o edifício tivesse acabado de pousar ali, e os
marcianos estivessem prestes a desembarcar. Grande Ammachi certa
vez disse: “Você pode abrir o coração a pessoas silenciosas. Elas abrem
espaço para nossos pensamentos”. Mas, Ammachi, quando elas não
dizem nem uma palavra, como começar?
Ela está de saída quando Cherian lhe diz: “Minha irmã se afogou”. A
médica para e olha para ele. Ouviu bem ou foi uma alucinação?
“E o irmão do meu avô também. Afogado. As duas filhas do meu
irmão odeiam água.” O que o levou a lhe dizer aquelas coisas? Todos
sabem que a família de Parambil sofre da Condição? “Minha pobre
irmã precisou trabalhar nos arrozais inundados, não teve escolha.
Quando um dique estourou, ela caiu e se afogou em água rasa.”
“Cherian, você com certeza sabe que nossa família sofre da
mesma… condição. Acha que somos parentes?”
“Não. Minha família não é daqui. Eu tinha uma caminhonete até
sofrer um acidente. Transportava gente e cargas por toda Kerala. Nessa
época ouvi falar de outras famílias como as nossas. Todas cristãs. Com
certeza há outras.”
O dia inteiro ela reflete sobre a informação extraordinária de
Cherian. O homem está errado: eles têm, sim, um parentesco. A
comunidade dos cristãos de São Tomé hoje é bastante grande, mas seus
membros compartilham os mesmos ancestrais nas famílias originais que
o apóstolo converteu. A imagem de uma roda de bicicleta lhe vem à
mente. Se ela tivesse de alocar cada família com a Condição ao longo
de um único raio da roda, então a família de Cherian é um raio e o clã
Parambil é outro. As outras famílias afetadas têm os seus. Traçando os
raios de volta ao centro chega-se ao ancestral com o gene alterado que
deu início a tudo. Mariamma fica empolgada. Sua tarefa é encontrar
muitos outros raios, mais famílias com a Condição, e ela conhece um
homem que pode ajudá-la.

A cabeleira densa e grisalha do casamenteiro Aniyan está repartida ao


meio e penteada para trás pelos lados; enquanto pedala em direção à
casa, seus olhos inteligentes dão conta de tudo. Ele desce da bicicleta
de modo elegante, jogando uma perna por cima da barra, a única
opção quando se veste um mundu. Num lugar onde os bigodes são
regra, seu rosto barbeado o faz parecer ter bem menos que seus setenta
anos.
“Molay, lembro como se fosse ontem. Propus uma aliança para
Elsie, de Thetanatt, com Philipose, de Parambil.”
“Achei que eles tivessem se conhecido num trem!”
Ele sorri, indulgente. “Aah, pode ter havido um ‘olá, como vai?’” no
trem, além de um anseio de amor, mas, sem um casamenteiro, como as
famílias poderiam ser apresentadas, ou de que modo se discutiria um
dote ou as sugestões do horóscopo?”
Anna Chedethi preparou chá e halwa de jaca, a especialidade da
matriarca.
“E se os horóscopos não batem, mas o casal quer se casar?”,
Mariamma pergunta.
Aniyan cerra os olhos, depois os abre, um gesto que, para os de fora,
pode parecer uma piscadela de dor, mas em Kerala significa algo bem
específico. “Não é problema. Fazemos ajustes! A maioria dos
impedimentos é de menor importância, e impedimentos assim não são
impedimentos. Sabe, os pais muitas vezes têm lembranças imprecisas
sobre a hora exata do nascimento”, ele conta, com a paciência de um
padre que deve recitar regularmente os preceitos de sua fé.
Experimenta a halwa e aprova. “Senhoras, antes de começarmos hoje,
posso compartilhar com vocês três lições que aprendi fazendo o que
faço por décadas a fio?”
Antes que Mariamma pudesse interceder, Anna Chedethi diz: “Sim!
Diga!”.
“Primeira lição — e não me leve a mal, molay, mas sua geração
muitas vezes tenta conduzir a carroça de ré. De fato, quanto mais
educação, mais a pessoa cairá nesse equívoco”, ele declara, lançando
um olhar capcioso para Mariamma. “A primeira prioridade é encontrar
a pessoa certa, não é mesmo? Você tem que averiguar esta proposta,
depois aquela, e em seguida fazer um quadro de prós e contras,
correto?”
Elas assentem. Ele beberica o chá e sorri. “Errado! Essa não é a
primeira prioridade.” Reclina-se, esperando. Mariamma é obrigada a
perguntar qual é afinal a primeira prioridade, de outra forma elas
esperariam ali o dia inteiro.
“A primeira prioridade é: Marque a data! Simples. Sabe por quê?”
Elas não sabem.
“Ao marcar uma data, você se compromete! Diga-me, molay, se você
decidir abrir uma clínica, vai primeiro esperar um paciente aparecer e
só então alugará um consultório e fixará uma placa? Claro que não!
Você se compromete! Aluga um consultório e assina o contrato com o
aluguel para tal dia. Vai atrás de móveis, não é? Aah, aah. Se
soubessem quanto tempo perdi com um camarada que fazia um
doutorado em Berkeley, nos Estados Unidos da Califórnia. Ele veio
numa licença de duas semanas. Apresentei ele e a mãe dele a oito
moças de primeira linha… E ele foi embora indeciso! Por quê? Porque
não marcou uma data! Então, a primeira lição é se comprometer com
uma data.”
“Qual a segunda?”
“Aah, aah, a segunda lição já mencionei.” Ele sorri, malicioso.
“Talvez você não estivesse prestando atenção antes. Disse que a maioria
dos impedimentos é…?”
“De menor importância”, respondem as duas, em uníssono.
“Aah. E impedimentos de menor importância…?”
“Não são impedimentos!” Mariamma se sente de volta à escola
primária.
“Exato. Eis aí o ajuste.” Sua expressão é de contentamento.
Anna Chedethi não consegue se conter. “Há uma terceira lição?”
“Certamente! Há dez lições. Mas essas três eu compartilho porque
tornam meu trabalho mais fácil. As outras morrerão comigo. Meu filho
não vê futuro na minha ocupação, já que há anúncios de casamento
nos classificados de jornal. Deus ajude a quem buscar essa alternativa.”
Anna Chedethi limpa a garganta.
“Aah, claro, sim. A terceira regra é a seguinte. A beleza passa, o
caráter, não. Então eu presto atenção no caráter, não na aparência. E
para saber o caráter de uma moça você olha para sua…”
“Mãe?”, dizem as duas.
“Aah, correto”, ele diz, contente com as pupilas. “E para o caráter do
moço você olha para…”
“O pai!”, elas respondem, certas de que estão abafando.
“Errado!”, ele declara, feliz por tê-las atraído para aquela armadilha.
Acende um cigarro, depois devolve o fósforo gasto à caixinha.
Mariamma se per­gunta por que todos os fumantes fazem aquilo. É um
vício paralelo ao da nicotina? Ou o gesto é para compensar o fato de
que usam o mundo inteiro como cinzeiro? Por um momento ela
consegue sentir o sabor do cigarro que arrancou de Lênin na pousada.
“Errado, minhas queridas senhoras. Para o caráter do moço, deve-se
olhar de novo para a mãe! Afinal, a única coisa de que você pode ter
certeza nesse mundo é da mulher que te deu à luz, não é mesmo?”
Anna Chedethi digere aquilo por um segundo e desata a rir.
Mariamma percebe que Anna Chedethi está animada demais. Ela não
contou por que convidou Anyian.
“Achayan, você tem algum parentesco com nossa família?”, pergunta
Mariamma.
“Certamente! Do lado de Parambil, sou irmão do marido da neta de
um primo de segundo grau do bisavô.” E olha para o teto. “Pelo lado
dos The­t annat…”
“Espere”, Mariamma diz. “Irmão do marido da neta… Isso é muito
distante. Nesse caso você pode alegar parentesco com qualquer família
que convocar seus serviços.”
“Não! Se você não consegue rastrear a relação, não pode alegar
nada!”, ele responde, com certa indignação. “Eu posso. E sei que tenho
parentesco.”
“Achine”, ela diz, usando o termo respeitoso para “ancião”. “Prometo
que, quando estiver pronta para casar, irei até você. Nada de jornal.
Espero que me perdoe, mas não o chamei para isso. Preciso de sua
ajuda para entender uma condição médica séria, que ceifou a vida de
meu pai. E a de outros em nossa família — bem, você sabe disso
melhor do que ninguém. Não sei que nome você dá, mas Grande
Ammachi chamava de a Condição.”
Ela senta ao lado dele e desdobra uma cópia expandida e atualizada
da genealogia, em malaiala. “Copiei do original, que minha família
manteve por gerações.”
Os olhos espertos de Aniyan passeiam pela folha, traçando as
gerações com uma unha manchada de nicotina. “Isso aqui é uma
mentira descarada — ele nunca casou”, murmura. “Humm, não três,
mas quatro irmãs aqui — gêmeas —, mas uma morreu ainda menina, a
outra era Ponnamma…” Em poucos minutos, com sua caneta, ele
anotou mais três gerações anteriores, a partir do bisavô de Mariamma.
É mais do que ela conseguiu fazer em semanas. Ele não menciona as
gerações presentemente vivas.
“Achayan, estou tentando completar esse quadro.” Ela conta de
Cherian. Aniyan entende de imediato a analogia dos “raios da roda”.
“Se eu conseguir completar todos os raios, entenderemos como a
doença é transmitida.”
Ele pondera. “Molay, você será capaz de fazer alguma coisa, quando
encontrar outros com a Condição?”
Aniyan conseguiu botar o dedo na ferida. “Não… Ainda não. Por ora
só podemos justificar uma cirurgia para pacientes com sintomas
severos, pois o procedimento é perigoso. Mas logo conseguiremos fazer
uma operação mais segura por meio de um buraquinho em cima da
orelha. Atacando o tumor mais cedo, poderemos impedir que crianças
afetadas fiquem surdas ou mesmo que se afoguem. Além disso, se
entendermos como a Condição é herdada, poderemos evitar, por
exemplo, que um menino e uma menina que nem saibam ser
portadores dela se casem. Gente demais já sofreu e morreu por causa
da Condição. Por isso vou me especializar em neurocirurgia. Para
prevenir a doença ou tratá-la com antecedência. É a minha missão.”
O casamenteiro a estuda com atenção. E então a surpreende: “Por
que não? Planejo me aposentar no fim do ano, então por que não? A
causa é justa. Mas só depois de me aposentar”. Pega sua caixinha de
fósforos e os cigarros. “Duas coisas quero dizer antes de partir. Primeiro,
meu trabalho é forjar alianças, reduzir impedimentos. Eu sempre sei
mais do que revelo. Não me entenda mal. Jamais vou sugerir um
casamento nocivo. Não escondo casos de loucura, retardo mental ou
epilepsia. Mas, molay, lembre-se — há outra regra, se quiser chamar de
regra, mas que compartilho apenas com você. Toda família tem
segredos, mas nem todos os segredos pretendem ludibriar. O que define
uma família não é o sangue, molay, e sim os segredos que compartilha.
Então, sua tarefa não será fácil.”
Aniyan está com o pé no pedal, quando Mariamma diz: “Espere,
você disse duas coisas. Qual a segunda?”.
“Marque uma data, Mariamma”, ele diz, sorrindo. “Mesmo que seja
daqui a cinco anos. Marque uma data.”

Na noite seguinte, Mariamma retorna do Triplo Yem depois de um


dia longo. A água flui preguiçosa sob a ponte, os hibiscos e oleandros
estão em chamas. No horizonte, as silhuetas de dois búfalos-d’água,
livres do arado, encaram-se, como anteparos para livros. Os grilos
cantam mais alto, quase delirantes, logo incitarão o coral de sapos.
Esses ruídos banais de sua juven­tude lhe são agora, com a morte dos
entes queridos, uma ode à memória, o passado adentrando o presente.
É a hora dos fantasmas graciosos.
Sua rota a faz passar pela Mulher de Pedra, e ela nunca deixa de
homenagear a escultora. Elsie casou com alguém de uma família
afetada, mas ela mesma não tinha a Condição; que ironia cruel que
logo ela se afogasse. Mariamma passa pelo celeiro em cujo telhado
Lênin tentou canalizar o relâmpago. Marque uma data. Se eu pudesse.
Depois do banho, ela e Anna Chedethi comem na cozinha,
preferindo as paredes escurecidas, com cheiro de canela, que guardam
a memória viva de Grande Ammachi, à nova mesa de jantar e às novas
cadeiras. Joppan passa e apresenta desenhos e um orçamento para uma
construção que contará com um defumadouro contíguo, dedicado às
árvores-da-borracha. Nesse local o látex será derramado em bandejas e
misturado com ácido até endurecer. Uma nova prensa manual
transformará o látex endurecido em folhas finas de borracha que serão
penduradas no defumadouro para serem curadas, quando, por fim,
serão empilhadas e vendidas. Anna Chedethi ignora os protestos de
Joppan, que diz que já jantou, e o serve. Assim, como em tantas noites,
todos se sentam nos banquinhos de dez centímetros, curvando-se sobre
os pratos que descansam no chão. Shamuel ficaria escandalizado vendo
o filho dentro da casa, comendo em um prato que não foi marcado para
ele. Parambil mudou. Os três são uma família e pertencem à mesma
casta.
74. Uma mente analisada

parambil, 1976

O antigo editor da coluna de Philipose é um dos muitos dignitários


presentes na cerimônia para cortar a fita de inauguração do novo
hospital. Para surpresa de Mariamma, depois do evento ele lhe faz uma
visita. Essa é a primeira vez que a médica conversa com ele, antes só
haviam se cumprimentando no funeral. É um homem bonito,
elegante, mais velho que seu pai. Ele evoca com afeição o falecido
colunista. Mas não tem a menor ideia do que o fez partir abruptamente
para Madras. “Ele estava em Cochim para escrever uma reportagem
sobre a contaminação salina de nossos remansos. Porém mal chegou e
já pediu um bilhete para Madras a nosso escritório em Cochim. Só
fiquei sabendo depois do acidente.
“Por muito tempo pedi a seu pai que escrevesse alguma matéria
sobre Dubai, ou sobre o Qatar — a respeito de nossos compatriotas que
moram lá. Você sabe, quando descobriram petróleo no golfo, nos anos
cinquenta, muitos jovens se mandaram para lá de kalla kappal — esses
barcos ilegais que abarrotam as margens dos rios — ou nos dhows que
até hoje fazem a travessia. Eles não tinham documentos, nada. Mas o
que acontece? As pessoas vão mesmo assim, pois não podem bancar um
Certificado de Não Objeção ou passagens de avião. São deixadas ao
largo da costa e precisam nadar ou caminhar na água até a praia. Se
pegos, vão para a cadeia. Queria que seu pai viajasse num dhow —
legalmente, claro — e escrevesse sobre a jornada. Depois eu disse que
ele ficaria num hotel chique por uma semana para escrever sobre os
nossos que labutam no sol quente, dormindo em quartinhos apertados
como latas de sardinha e economizando tudo que ganham para enviar
para a família. Até prometi que ele voltaria de avião, de primeira classe.
Era o assunto perfeito para o Homem Comum. Philipose sempre
recusou e nunca entendi o porquê.”
“Quer dizer que você não sabia da questão de meu pai com a água?”
O editor não tinha conhecimento, e fica estupefato quando Mariamma
descreve a Condição e lhe mostra a genealogia. Parece nauseado ao
ouvir os detalhes da autópsia cerebral. “Depois de morto, meu pai
resolveu o mistério.”
Ele fica sem palavras. “Meus Deus”, ele diz. “Não tinha ideia!
Nossos leitores — os leitores dele — adorariam ouvir essa história.
Claro, meus lábios estão selados. Pode ficar tranquila que não direi
uma palavra nem escreverei sobre o assunto.”
“Na verdade, ficaria feliz se escrevesse”, diz Mariamma. “O segredo
em relação à Condição não ajudou em nada. Segredos matam. Como
combater essa doença se não sabemos quantos são os afetados? Meus
parentes podem não gostar, mas é a história de meu pai, e ficarei alegre
em compartilhar tudo que sei. Combater a Condição é minha missão.
É por causa dela que vou para Vellore estudar neurocirurgia.”

Querida Uma,
Desde que o editor de meu pai escreveu um artigo sobre a Condição
e como ela levou o Homem Comum à morte, meus parentes
mostraram-se subitamente dispostos a conversar. Recortei o artigo e ele
está em anexo. Sei que você não sabe ler malaiala, mas pode ver as
fotografias. O artigo tem um quê de romance policial, meu pai é uma
das vítimas. E a detetive que caça o assassino é a própria filha! “O
Homem Comum resolve o mistério de sua própria morte devido à
Condição” é o título. Estou feliz que ele tenha adotado “Condição”.
Não só “uma variante da doença de Von Recklinghausen” soa um
tanto pesado, como é bem possível que a Condição não tenha nada a
ver com essa enfermidade. Além disso, o editor transmitiu meu pedido
aos leitores que me escrevam caso tenham familiares com aversão à
água. Por sinal, acho que essa é a melhor pergunta para uma triagem.
Acredite, em Kerala, se você não gosta de água, as pessoas percebem.
Recebi notícias de três famílias. E mais: meus parentes me deram
informações a respeito das noivas que se mudaram — o elemento
faltante na Árvore da Água.
É impressionante como as mulheres com a Condição são sempre
lembradas como “excêntricas”. A excentricidade aparece tanto quanto
a aversão à água. A nós, mulheres, ensinam “adakkavum” e
“othukkavum”, ou modéstia e invisibilidade, desde cedo. Mas essas
garotas eram tudo menos modestas e recolhidas. Uma delas era tão
desbocada que afastava possíveis noivos. (Num homem, essas
características seriam lidas como sinal de autoconfiança.) Quando
essa moça desbocada finalmente casou, ela construiu uma casa em
cima de uma árvore. Morria de medo de enchentes, mas não de altura.
Sempre que o rio subia, ela se transferia para a casa da árvore. Uma
outra era fascinada por cobras desde criança, não tinha medo de
nenhuma delas. Na vila do marido, era ela que chamavam caso
encontrassem uma serpente atrás dos potes na cozinha. Ela as
agarrava pelo rabo, depois as balançava com o braço estirado.
Aparentemente, as cobras não conseguem se dobrar e morder —
precisam de uma superfície para tomar impulso. Mas quem quer se
arriscar? Pois bem: descobri que essas duas mulheres morreram com
sintomas como os de meu avô paterno: tontura, dor de cabeça e
debilitação facial. Uma terceira moça estava determinada a virar
pastora, o que é heresia. Chegou a se vestir como tal para fazer um
sermão na igreja. Recriminada, passou a se prostrar do lado de fora
das igrejas fazendo sermões, até que a expulsaram. A família a
internou à força num convento, mas ela fugiu e sumiu. Acabou
reaparecendo num seminário, de cabelo curto, fingindo ser homem.
Depois disso a trancafiaram num asilo, onde morreu.
Mas devo dizer: no quesito excentricidade, meu avô, meu pai,
Ninan, Jojo e meu primo Lênin seriam todos considerados excêntricos,
cada um à sua maneira. Tinham uma relação peculiar com a
gravidade e o espaço. Quando não era a paixão por subir em árvores,
era uma compulsão por andar sempre em linha reta, ou caminhar por
distâncias que outros consideravam inimagináveis. Essas
“excentricidades” não se explicariam por um tumor no nervo acústico,
certo? Então eis minha hipótese: e se esses neuromas acústicos tiverem
uma contraparte na mente, alguma aberração ocasionada pela
Condição e que se revela como “excentricidade”? E se houver um
“tumor do pensamento” (é o que andei pensando), algo que não
podemos ver a olho nu ou com as ferramentas habituais?
Bem, talvez eu tenha uma ferramenta para estudar os pensamentos
de meu pai. Ele tinha o hábito obsessivo de manter diários (mais
excentricidade! Escrevia muito por dia). Todos aqueles pensamentos
estão preservados em quase duzentos cadernos de notas. Este é meu
próximo projeto: analisar sistematicamente os diários em busca desse
“tumor do pensamento”.

Mariamma se depara com um grande obstáculo nesse projeto: a


caligrafia indecifrável do pai. Quando criança, ela bisbilhotara aqueles
diários, buscando segredos cabulosos, mas se viu impedida pela letra
minúscula que desprezava margens ou espaços em branco. Philipose
escrevia como se papel fosse mais precioso do que ouro, ainda que a
tinta fosse de graça. Escrever em inglês lhe garantia certa privacidade,
mas as letras em formato de cunha pareciam caracteres do sumério
antigo. Decifrar seus escritos é como decifrar uma língua estrangeira.
Além disso, os pensamentos mais valiosos do pai às vezes estavam
soterrados em um mar de observações diárias triviais sobre mofo,
lagartos caindo de vigas e coisas assim. Quando Mariamma folheia
brevemente os títulos dos diários, vê algo como “cheiros”, “rumores”,
“cabelo (rosto e corpo)”, “pés” e “fantasmas”. Apesar desses títulos,
depois de algumas poucas páginas, o texto tomava outro rumo e nunca
mais voltava ao tema original. Não havia índice ou referências para as
entradas. Assim, não dá para apenas passar os olhos pelas páginas. A
tarefa é hercúlea. Talvez impossível.

Toda noite antes de dormir ela pensa em Lênin. Se ao menos


pudesse falar com ele, contar seu dia. Falaria do prazer de estar em
casa. O único porém é que, ali, é subtraída de toda identidade que não
a de médica. Seu sonho é terminar logo com aquilo e começar o
treinamento em neurocirurgia. E como foi seu dia, Lênin? Ela
estremece só de pensar. Estará vivo? Se tiver morrido, ela não teria
como saber.
Uma se anima com a ideia do “tumor do pensamento” e a estimula.
Mariamma então dá duro toda noite, organizando as entradas do diário
à medida que lê. É um trabalho exaustivo, e a tinta que o pai usava
deixa seus dedos acobreados. A velocidade da leitura aumenta com o
passar do tempo, o índice cresce. Até o momento, sua única descoberta
sobre a mente de Philipose é a capacidade de mudar de assunto, como
uma mariposa numa sala cheia de velas. É isso o tumor do
pensamento? Aqui e ali algumas passagens a deixam sem fôlego:

Na noite passada Elsie desenhou na cama e pude contemplar a


silhueta de minha mulher, mais atraente do que qualquer outra. Tive
uma visão súbita, como se um portal se abrisse no tempo. Vi a
trajetória de Elsie, a artista, tão claramente como se visse uma seta
viajando no ar. Entendi como nunca antes que ela deixará sua marca
por muitas gerações. Não sou nada em comparação, é uma dádiva
estar na presença de tamanha grandeza. Fiquei emocionado, quase
chorei. Ela percebeu a estranha expressão em meu rosto. Não
perguntou nada. Talvez tenha lido meus pensamentos e compreendeu,
ou achou que compreendeu. Largou o desenho e me empurrou para a
cama. Tomou-me como uma rainha fazendo uso de um de seus nobres,
e felizmente o nobre que ela ama sou eu. É meu único direito à fama
imorredoura: Elsie me escolheu. Ela me escolheu, portanto, tenho
valor. É toda ambição de que preciso: continuar digno dessa mulher
espantosa.

Em outra ocasião, Mariamma se depara com um momento do


casamento dos pais diametralmente diferente, que lhe acerta como um
golpe de bastão: quando eles se voltaram um contra o outro, depois da
morte terrível de Ninan. É horrível ler as palavras do pai, tão cruas: a
dor agonizante de seus tornozelos quebrados; o desprezo por si mesmo
por não ter cortado a árvore; a raiva insensata por Elsie ter partido de
Parambil — à data da entrada fazia seis meses que ela partira.
Mariamma nunca soube que os pais haviam se sepa­rado! As palavras no
diário são desconexas, uma ode ao ópio. Em vez de um “tumor do
pensamento”, ela se vê espreitando a fossa da mente confusa de um
viciado. Sim, sua busca é científica, mas o objeto sob o microscópio é
seu pai. Os pensamentos dele podem devastá-la.
Fecha o diário e sai do quarto, inclinada a abandonar o projeto. Por
favor, Deus, enquanto sigo os pensamentos de meu pai, não deixe que eu
termine desprezando o homem que idolatro e amo. Não me tire isso.
Seus pés a levam à Mulher de Pedra, ainda luminosa na clareira,
mesmo ao entardecer. Personificada na rocha, essa manifestação de sua
mãe tem uma permanência como nada mais na vida de Mariamma;
em sua pose imóvel, ela expressa a paciência da natureza, do tempo
medido em séculos. Mariamma senta-se ali por um bom tempo.
“A Condição… é a vida, não é, Amma?”, ela pergunta, falando à
Mulher de Pedra. “Talvez eu não esteja buscando resolver o mistério da
Condição ou o mistério da razão pela qual estou no mundo. O mistério
é a natureza da vida. Eu sou a Condição. Talvez não esteja em busca
dos mecanismos da mente do Appa, ou das pistas para uma doença
herdada. Acho que, no fundo, estou procurando você, Amma.”
75. Estados de consciência

parambil, 1977

Para Mariamma, o banco vazio do lado de fora da clínica naquela


manhã parece bom demais para ser verdade. O dr. T. T. Kesavan é seu
novo colega. “T.T.” seleciona os pacientes e lhe envia apenas aqueles
com queixas significativas. Logo aquele banco vazio estará repleto de
pessoas, mas pelo menos agora ela não começa o dia com a sensação de
já estar atrasada.
No consultório, ela é surpreendida por um homem descalço, de pele
bem escura, usando bermuda cáqui e camiseta, sentado num banco ao
lado de sua mesa. Ele lhe sorri. Há certa sombra nepalesa em suas
feições, apesar da compleição negra, e também certa qualidade
atemporal em seu rosto — apenas as sobrancelhas grisalhas e a
cabeleira branca sugerem que ele possa ter bem mais de sessenta anos.
“Bom dia, doutora”, ele diz, em inglês, pondo-se de pé. “Doutor
pediu a Cromwell para dar a você!” Ela desdobra o papel enquanto
tenta decifrar o que ouviu. “Sou Cromwell”, o homem acrescenta.
“Que doutor?”
Ele aponta para um veículo em frente ao portão do hospital, um
misto de jipe e caminhão. Nas portas, numa inscrição desbotada, lê-se
leprosário santa brígida. Um homem branco está sentado no banco
de trás do veículo, esperando. Ela lê a nota.

Querida Mariamma, sou um médico que conheceu seu avô, Chandy.


Busco sua assistência profissional para alguém que está terrivelmente
doente. Alguém que você conhece. Para sua segurança e a minha, por
favor, permita que eu só lhe dê mais detalhes dentro do carro. Até lá,
por gentileza, não fale com ninguém. Posso também pedir que traga
discretamente uma trefina e outras ferramentas que você talvez precise
para abrir um crânio e a dura-máter?

Digby sente uma fissura na atmosfera antes de Mariamma surgir.


Tem porte de dançarina, apesar do pesado sanji que carrega. É alta e
bonita, e o sári azul-marinho favorece sua pele clara. A mecha grisalha
no meio da cabeça a faz parecer mais velha do que é. Ele enrubesce de
timidez com sua apro­ximação.
Mariamma senta no banco de trás, sacudindo a barra do sári para
que o tecido não se esgrouvinhe. Ele estende a mão; a dela é quente e
macia, enquanto a dele certamente é áspera e rígida, incapaz de formar
uma concavidade que complemente a dela.
“Digby Kilgour”, gagueja, e só relutantemente solta sua mão.
“Conheci e convivi muito com seu avô, Chandy. E conheci sua mãe
quando menina…”
Ela analisa aquele homem de olhos azuis como safiras, que reluzem
contra o rosto gasto e curtido. O dorso de suas mãos é uma colcha de
retalhos, a pele ora quase albina, ora cobreada. Uma kurta folgada de
algodão exagera seu pescoço esquelético. Deve ter seus sessenta e
tantos, ou setenta e poucos, magro e em forma, mas não tão em forma
quanto o motorista de pele escura.
“Chefe, vamos indo. Muitas gentes”, Cromwell diz, dando partida
no motor.
“Sim”, Mariamma e Digby dizem, em uníssono.
Tão logo se afastam do Triple Yem, ela pergunta ao homem. “Como
ele está?”
Ela não pergunta quem é o paciente, Digby nota. “Nada bem.
Quase não consegue se manter acordado, e está piorando a cada hora.”
Mariamma reflete. Tira os pés das sandálias e põe os joelhos
atravessados no banco, como uma sereia, entocando os pés descalços
debaixo de si.
“Ele apareceu nos Gwendolyn Gardens. É minha antiga
propriedade, perto de Trichur…” Digby mal consegue manter o fio dos
pensamentos com aqueles olhos translúcidos o encarando. “Anos atrás,
quando a mãe de Lênin engravidou, ela chegou à minha propriedade
com uma ferida de um golpe de faca…” Mariamma balança a cabeça,
impaciente. Conhece a história. “Bem, Lênin provavelmente sabia
desde sempre essa história, por meio da mãe. E sabia de mim: sou parte
de sua história. Ele apareceu na propriedade na noite passada, mas não
moro lá faz vinte e cinco anos. Administro um leprosário aqui em
Travancore. A propriedade é de Cromwell. Ofereceram uma
recompensa pela captura do rapaz. Manter ele lá seria perigoso demais,
muito tentador para os trabalhadores. Então Cromwell dirigiu a noite
toda para trazer Lênin até mim.”
Mariamma agora já não parece médica; é uma jovem mulher
confrontada com um fantasma do passado. “Dr. Kilgour, o que
podemos fazer?”
“Me chame de Digby, por favor. Sim, essa é a questão. O que fazer?
A presença dele nos põe em perigo. Eu não sabia como ajudar. Sou um
médico de leprosos, um cirurgião de mãos. Ele estava estuporoso
quando chegou. Não queria envolver você, Mariamma. Se estou aqui, é
porque ele pediu que eu a chamasse.”
Ela fica imóvel. Depois de um tempo, diz, baixinho: “Ele vai se en‐­
tregar?”.
Digby balança a cabeça. “Não. Ouça, não tenho simpatia nenhuma
pelos naxalitas. No entanto, a polícia também não é flor que se cheire.
Você sabe que não farão nada por ele, em termos médicos.
Provavelmente será morto logo de cara. Ele está vomitando e
reclamando de uma dor de cabeça terrível. Repetiu mil vezes que você
ia saber o que ele tem. Acho que também sei. Li sobre sua família e o
transtorno hereditário.”
“Tenho quase certeza de que ele tem neuromas acústicos, como meu
pai. Dos dois lados. Mas isso não quer dizer que eu seja capaz de
curar.”
As mãos de Mariamma juntam-se sobre seu colo; ela olha para a
frente, perdida em pensamentos. De perfil, Digby reflete, suas feições
— os olhos, a sobrancelha, o nariz longo e pontudo — são iguaizinhos
aos da filha de Chandy, Elsie.
“Ouça, você não precisa se envolver, Mariamma. Por tudo que
sabemos, pode ser tarde demais…” A expressão que surge no rosto dela
sugere a Digby que ele pesou muito mal as palavras. Cromwell olha
pelo retrovisor, como quem diz Que trapalhada, chefe! “Desculpe! Que
coisa de se dizer.”
A voz dela soa frágil, falando mais para si do que para os
companheiros de viagem: “Então ele aparece de repente e pede que
me chamem? Depois de todos esses anos. O que devo…?”.
Ela não termina a frase. Seus olhos se enchem de lágrimas. Digby
puxa o lenço, aliviado, pois está limpo. A jovem médica pressiona o
lenço contra os olhos. Depois, para surpresa de Digby, inclina-se e
descansa a testa em seu ombro. A mão de Digby passa por ela e pousa
gentilmente em sua escápula, acomodando-se com o maior cuidado,
para não acrescentar nada ao seu já pesado fardo.
76. Despertares

santa brígida, 1977

Digby a observa contemplar os jardins do Santa Brígida quando


cruzam o portão. O que ela há de pensar de sua morada, do lar onde
ele vive há um quarto de século? Um oásis calmo, cujos muros elevados
não deixam que os ruídos do mundo exterior alcancem seus ouvidos.
Suja, uma das “enfermeiras”, junta a palma de sua mão esquerda ao
toco da mão direita. Mariamma responde de modo automático, mal
registrando que o “namastê” de Suja precisa ser imaginado para ficar
completo.
O quarto de Lênin é privado, separado das demais dependências.
Mariamma hesita na porta, depois segue Digby, movendo-se como
uma sonâmbula. Graças a Deus ele ainda está respirando, pensa Digby,
que observa os dedos trêmulos de Mariamma aproximando-se para
tocar as faces de Lênin. A figura desacordada tem um fiapo de barbicha
escura no rosto e o cabelo bem curto, como um devoto retornando de
uma peregrinação a Tirupati ou Rameswaram. As veias sinuosas no
braço magro ressaltam-se devido à completa ausência de gordura
subcutânea. A barriga encavada e a proeminência das costelas fazem-no
parecer um homem prestes a morrer de fome, não um guerrilheiro.
Digby amarra calmamente a braçadeira do medidor de pressão no
braço exangue. Aquilo tira Mariamma do transe. Seus dedos buscam o
pulso do paciente. “Dezessete por sete”, Digby anuncia, retirando a
braçadeira. “Mais ou menos como estava antes.”
“O pulso está em quarenta e seis”, ela diz. “O reflexo de Cushing.”
Quando foi a última vez que ele ouviu aquela frase? Meio século
atrás, numa sala de operação em Glasgow? Não foram muitas as
ocasiões em que pôde relembrar a tríade daquele neurocirurgião
pioneiro. Cushing observou que, quando um sangramento ou tumor
eleva a pressão dentro dos limites rígidos do crânio, a pressão sistólica
aumenta, o pulso diminui e a respiração se torna irregular.
“É melhor sentar o paciente”, Mariamma diz. “Ajuda a diminuir a
pressão intracraniana.” Não é uma censura, mas Digby sabe que ele
deveria ter pensado naquilo. Com a ajuda de Cromwell e usando o
colchão da outra cama do quarto, eles põem Lênin sentado, sua cabeça
tombando para a frente como a de um boneco de pano.
“Posso examinar?”, ela pergunta.
“Ele é todo seu!”
Mariamma olha para Digby com certa estranheza, depois sacode os
ombros de Lênin. “lênin!” Mais cedo, ele tentou abrir os olhos quando
Dig­by o chamou pelo nome. Chegou até a falar. Agora seus olhos se
reviram. Um paciente que não reage caso explodam bombinhas
debaixo de sua cama está sempre pior do que o paciente que reage.
Mariamma aperta o nó de seus dedos contra o esterno de Lênin — um
estímulo doloroso para um paciente acordado. Lênin se agita de leve,
há uma breve contorção em seu rosto.
“Viu isso?”, ela diz. “Só o lado direito se mexeu.” Digby não tinha
visto. Ela faz de novo. “Uma paralisia do nervo facial esquerdo”,
Mariamma declara. “O tumor no nervo acústico esquerdo é o
problema. Para envolver o nervo facial, deve estar enorme.”
Mariamma ergue as pálpebras superiores de Lênin e balança sua
cabeça de um lado a outro, conferindo o reflexo oculocefálico; em
seguida, testa o faríngeo e, com um martelo de reflexos, compara a
reação dos tendões. Sacando um oftalmoscópio da bolsa, examina as
pupilas de Lênin. “Papiledema bilateral”, ela diz. “Outro sinal de
pressão alta cerebral.”
Digby a observa, pensando no que poderia ter feito. O corpo diante
dela é um texto, e ela, como hermeneuta, logo realizará sua exegese.
Ele tem consciência de sua idade — Mariamma é duas gerações mais
jovem, pensa. Mas hoje sua especialidade são os nervos irrecuperáveis,
desapareceu todo o conhecimento livresco que deixou de usar. No
campo das transferências tendíneas, ele é um inovador, tendo
publicado artigos a partir do legado de Rune. Mas aquele paciente o
leva a um território desconhecido.
Mariamma guarda os instrumentos, o cenho franzido.
Digby diz: “Achei que talvez precisássemos fazer uma trepanação
cranial. Por isso pedi que trouxesse a trefina. Isso talvez alivie a
pressão…”.
Mariamma faz que não com a cabeça. “Não vai ajudar. O tumor fica
perto do tronco encefálico e bloqueia o fluxo do líquido
cefalorraquidiano. Ele tem hidrocefalia, por isso está inconsciente.
Uma trepanação é indicada se houver acúmulo de sangue debaixo do
crânio, mas no caso dele só provocaria uma herniação cerebral.”
Digby digere o que Mariamma acabou de dizer, pensando naqueles
vãos que parecem fendas — os ventrículos —, localizados no fundo dos
hemisférios direito e esquerdo do cérebro. Normalmente, o líquido
cefalorraquidiano é produzido nos dois ventrículos, passa pelo canal
central que se estende através do tronco encefálico, esvaziando-se na
base do cérebro, de forma a banhar e amortecer a parte externa do
órgão e a medula espinhal. Todavia, com esse ralo agora bloqueado
pelo tumor, o fluido se acumula nos ventrículos, que, em vez de fendas,
viram balões inchados. Nos bebês o crânio infuso simplesmente se
expandiria, acompanhando o crescimento dos ventrículos. Mas em
Lênin, os ventrículos expandidos estão aos poucos esmagando o tecido
cerebral que os cerca, pressionando-o contra o crânio, levando à
tontura e, por fim, ao coma.
“Mas o que poderíamos fazer”, diz Mariamma, “é atacar um dos
ventrículos. Passaríamos uma agulha pelo cérebro até atingir um
ventrículo inchado e então drenaríamos o líquido cefalorraquidiano.
Teríamos de fazer um buraquinho aqui no crânio.” Ela aponta para o
topo da cabeça de Lênin, rente à linha do meio. “Não se trata de uma
trepanação comum, apenas um buraco por onde passar uma agulha.”
“Mas faríamos isso às cegas?”
“Há marcos anatômicos que podemos seguir. E, sim, às cegas. O caso
é que o ventrículo a essa altura deve estar tão distendido que a agulha
tem boa chance de acertar o bendito.” Ela espera, como se na
esperança de que Digby a convença do contrário. “Já vi fazerem isso.
Não é uma cura, mas pode nos dar um pouco de tempo. Tempo é
cérebro, como se diz na neurocirurgia. Se ele melhorar, e se
conseguirmos levar ele a Vellore, ao Christian Medical College, digo,
se ele concordar em fazer a cirurgia…”
“É o melhor plano”, Digby diz, com firmeza.
Na pequena sala de operação de Digby, acomodam a cabeça de
Lênin em molduras ortopédicas que se conectam à mesa de cirurgia.
Com uma caneta dermatográfica, Mariamma desenha uma linha
vertical da raiz do nariz até o centro do crânio. Com uma fita de
medição faz um ponto na marca de onze centímetros. Dali ela desenha
uma segunda linha, perpendicular à primeira, em direção à orelha
direita de Lênin e faz um X na marca de três centímetros.
“Remover o líquido de um dos ventrículos esvaziará os dois, pois as
cavidades estão conectadas. Escolhi o direito para evitar a área da fala
no hemisfério esquerdo. Caso esteja se perguntando.”
“Eu bem que deveria estar me perguntando…”, Digby diz.
A trefina que Mariamma trouxe faria um buraco grande demais.
Averiguando as opções, Digby pega a broca helicoidal que usa quando
opera ossos mais alongados. Mariamma injeta anestesia local na pele e
crânio adentro, na marca do X. Com um bisturi, faz uma incisão no
osso, pequena mas profunda. Como está familiarizado com o
instrumento, é Digby quem opera a broca. Assim que a sente penetrar a
camada externa do crânio, Mariamma entra com a rugina para debicar
o osso até avistar a membrana reluzente que cobre o cérebro. Mesmo
aquele buraquinho minúsculo faz uma protuberância emergir na
membrana: é o cérebro buscando aliviar a pressão. Digby vê
Mariamma hesitar: ela se importa com o dono daquele cérebro.
Mariamma pega a agulha espinhal, longa e oca, com um estilete
interno removível. Mais cedo, marcara a haste aos sete centímetros,
contando-se a partir da ponta da agulha. Ela prende o canhão da
agulha com uma pinça hemostática e entrega a pinça a Digby. “Fique
bem na frente dele, Digby, e segure a pinça. Ficarei de lado. Você tem
que me apontar para o canto interno do olho, a partir de sua
perspectiva. Vou mirar no trago do ouvido, de meu ponto de vista.
Ainda que eu incline a agulha no plano frontal para trás, seu trabalho é
não deixar que me desvie do plano de lado a lado. Mantenha-me
sempre apontada para o canto interno do olho.”
Deus nos ajude, a coisa é bruta, ele pensa. Mariamma penetra a
agulha no cérebro. Com cinco centímetros, ela para e retira o estilete
interno. Nada jorra do canhão. Volta a inserir a agulha, agora um
centímetro a mais, e retira de novo o estilete.
Um fluido claro, como uma nascente d’água, começa a jorrar.
“Uau!”, Digby exclama. Teorias são ótimas, mas o que vale é a prova.
No caso, o líquido gotejando incessantemente sobre as toalhas.
“Consigo ver a superfície do cérebro refluindo!”, Mariamma diz, em‐­
polgada.
Assim que o fluxo finalmente cessa, ela repõe o estilete no vão
interno e remove a agulha, depois tampa o osso com cera óssea
esterilizada. Quando está costurando o ponto solitário da ferida no topo
da cabeça, sentem a mesa balançar. Uma mão sem luva emerge.
“Calma lá”, Digby grita, afastando o cortinado com um gesto rápido.
Lênin, grogue, observa a cena por entre as cortinas que lhe caem
sobre a testa, como uma toupeira saindo da toca, ofuscada pela luz.
“Tire a máscara”, Digby diz, baixinho, para ela, removendo também
a sua.
Lênin não pode mexer a cabeça, mas seus olhos passam de Digby
para Mariamma, repousando nela. O médico não consegue dizer qual
dos dois parece mais aturdido. Um silêncio se apodera da sala enquanto
os dois se entreolham. Todo som desaparece.
“Mariamma”, diz o paciente há pouco comatoso, com uma voz fraca
e rouca. “Estou tão feliz em ver você.”
77. Estradas revolucionárias

santa brígida, 1977

Lênin, ressurreto, tem os olhos fixos em Mariamma, que não


consegue se mexer. Ela observa Digby cortar as fitas que imobilizam a
cabeça de Lênin, falando-lhe calmamente, como se os dois tivessem
acabado de se conhecer em um bar. “Meu nome é Digby Kilgour. Vi
você essa manhã, mas duvido que se lembre.”
Por um momento Mariamma os imagina dando um aperto de mão,
como Stanley e Livingstone. Seria cabível. O último encontro dos dois
foi memorável: Lênin mostrou-lhe um punho cerrado, e o dr. Kilgour o
fez recuar com a ponta fumegante de uma cigarrilha.
“Você não está na fazenda, mas no Leprosário Santa Brígida.” Lênin
parece preocupado. “Aqui você está absolutamente seguro. Foi preciso
te contrabandear dos Gwendolyn Gardens. Lá era muito perigoso.”
A mão direita de Lênin flutua em direção ao crânio. “Calma lá!”, diz
Dig­by. “Você levou um ponto aí.” E olha para Mariamma, como quem
fala Vamos, interaja!
“Como está sua cabeça?”, ela pergunta. Ai, Deus. São essas minhas
primeiras palavras para meu único amor depois de cinco anos longe?
Como está sua cabeça — depois de eu ter enfiado uma broca em seu
crânio e cravado uma agulha em seu cérebro? Sente as faces coradas.
Quando menina, ninguém a enrubescia tanto quanto Lênin.
“Minha cabeça está bem”, ele diz. “Eu me lembro…”
Aguardam a continuação da frase. Lá fora, um pássaro-alfaiate
cantarola siga-siga-siga. Mariamma prende a respiração.
“Eu lembro… Que fiquei um tempão com dor de cabeça.” As
palavras saem num inglês enferrujado. “Se tusso ou espirro, minha
cabeça… explode. Sentia a vida se esvaindo.” Lênin começa a ficar
mais fluente. “Tive convulsões. Muitas. Diariamente. Tínhamos
cápsulas de cianeto. Estava pronto para tomar a minha, então
pensei…” De novo, a pausa, igual a um rádio com um fio solto.
“Cadê ela?”, Digby pergunta.
Ele apalpa a dobra do mundu. Digby o ajuda e extrai notas de rupias
presas num elástico e um embrulhinho de plástico com uma bolota
imunda.
Lênin o observa. “Doutor, sei pela minha mãe que você a ajudou
quando ela mais precisava, impedindo minha entrada no mundo. E
agora interrompe minha saída!”
Digby ri. “Seria prematuro, em ambas as ocasiões. Mas, acredite, se
eu não tivesse localizado Mariamma, você não precisaria do cianeto.”
Ouvindo aquilo, algo se rompe em Mariamma. Um atraso de poucas
horas, e ela teria encontrado um cadáver, não este ser consciente e
conversador, esse homem que, apesar de tudo, ela ama. A jovem
médica se curva sobre a mesa. Digby lhe puxa um banco.
A mão de Lênin busca a dela.

O sorriso dele está torto por causa da paralisia facial. Mas o calor, a
afeição e a preocupação por ela — tudo é real, tudo aquilo é Lênin.
Mariamma já não quer continuar no papel de médica, no entanto
ainda não terminaram. Ela se recompõe e se pergunta por que ele não
quer saber como resolveram sua dor de cabeça.
“Lênin?” Ele parece tão vulnerável, sua testa dividida ao meio por
uma caneta e uma ferida suturada na cabeça. “Você tem um tumor,
um neuroma acústico. Ele vinha elevando a pressão…”
“Sinto muito por seu pai, Mariamma”, ele a interrompe. “Li no
jornal. A Condição. Estou tão orgulhoso de você. E o meu tumor?”
Dói ver a esperança se extinguindo nos olhos dele quando ela diz
que o tumor continua onde estava. Com uma caneta cirúrgica,
desenha num pedaço de papel o que está acontecendo. “… e quando
enfiamos a agulha, o líquido jorrou. Você acordou. Mas com isso só
conseguimos um pouco de tempo.”
Uma luz brincalhona surge nos olhos dele, ele ri. Ao rir, a
imobilidade da metade paralisada de seu rosto se acentua. Ela tem que
fixar os olhos no lado direito da face.
“Mariammaye”, ele diz, afetuosamente, “minha médica. Lembra que
quando a gente era criança você disse que tinha um parafuso solto na
minha cabeça? E que um dia ia consertar?”
“O que eu disse é que, um dia, partiria sua cabeça e arrancaria o
demônio de dentro dela.”
“E foi o que você fez!”
Digby os traz de volta à realidade. “Lênin, o tumor ainda está lá. Nós
só aliviamos temporariamente a pressão.” Olha para Mariamma,
buscando apoio. “A pressão voltará a subir.”
Lênin diz: “Tenho uma agulha no cérebro? Mas não sinto nada”.
“É um paradoxo, não é? Se você cutuca o cérebro diretamente, o
paciente não sente nada. Contudo, se pisa num prego, o cérebro indica
o ponto exato. A não ser que você seja um de nossos pacientes aqui, do
Santa Brígida, que não sentem nada e terminam mal”, Digby diz.
“Lênin, você precisa extrair urgentemente esse tumor”, diz
Mariamma. “Mas não dá para fazer esse procedimento aqui”. Põe a
mão no peito dele. “Precisamos te levar para Vellore. Eles têm
experiência com esse tipo de operação.” Lênin recua, Mariamma
percebe. O fugitivo calculando rotas de fuga.
“Por que não aqui? Confio em você…”
“Quem me dera. Mas não tenho essa habilidade. Ainda.”
“Em Vellore eles logo vão descobrir minha identidade.”
“Mas, sem o tumor, você viverá. Uma vida plena!” Ela prende a
respiração.
Lênin não diz nada, acabrunha-se ainda mais. Mariamma desconfia
que ele esteja se preparando para a morte.
Digby diz, docemente: “Lênin? O que você acha?”.
Ele não encara Digby. E, subitamente, parece exausto. “Eu acho…
Acho que estou tão faminto que não consigo pensar direito.”
“Ó céus!”, Digby exclama. “Que médicos somos! Você deve estar
morrendo de fome. E essa jovem também precisa de uma xícara de
chá.”
De repente Mariamma se sente pesada, como se o teto lhe caísse
sobre os ombros. Precisa de ar fresco.
Cromwell está agachado do lado de fora da sala de operação. Ao vê-
la, sorri… e então o sorriso se esvai, ele se se levanta num instante e
corre para ela. E agora?, ela pensa. Por que o chão está se inclinando
desse jeito estranho?
Agora Mariamma está reclinada numa poltrona, as pernas sobre uma
otomana. Um xale de seda serve de cobertor. Há chá, biscoitos e água a
seu lado. Mal se recorda que foi carregada por Cromwell. Uma vez na
horizontal, voltou a si. “Descanse”, diz Digby. Ela disse que fecharia os
olhos por cinco minutos e deve ter adormecido. Não sabe por quanto
tempo.
Mariamma come e bebe avidamente. Seu refúgio é um escritório
frio, acarpetado, pé-direito baixo, coalhado de livros. Um lugar íntimo e
acolhedor. Cortinas pesadas ladeiam janelas francesas que dão para um
gramado pequeno e retangular, cercado por roseirais; o jardim é
circundado por uma cerca de estacas com uma portinhola ao centro.
Ela imagina aquele gramado como o pequeno paraíso de Digby, um
lugar para sentar ao sol e ler. Observa tudo, fascinada pelas margens
perfeitamente demarcadas do gramado, os roseirais belamente podados.
É como um cartão-postal dos pequenos jardins em frente aos sobrados
geminados na Inglaterra, os cercadinhos minúsculos demais para as
ambições horticulturais dos proprietários, mas ainda assim acolhedores
e confortáveis.
Nas estantes, entre os livros, repousam algumas fotografias.
Mariamma é atraída por uma moldura prateada, com uma fotografia
em preto e branco de um pequeno garoto branco com meias até os
joelhos, bermuda, gravata e um suéter com gola em V. No cenho e nos
olhos, reconhece traços inequívocos do Digby adulto. O sorriso tímido,
com que olha para a câmera, não esconde a ansiedade. Seu primeiro
dia de aula, talvez? Uma mulher linda de saia se agacha ao lado dele,
com a mão em seu ombro. Deve ser sua mãe. Seu rosto é jovial mas
exausto, e o cabelo negro já exibe uma mecha branca. Porém, naquele
instante, ao clique do obturador, ela envergou seu melhor sorriso,
valeu-se da experiência de atriz veterana na hora de estrear, e o
resultado é simplesmente atordoante. É bonita como uma estrela de
cinema, abençoada com um carisma de igual envergadura.
Uma fotografia sem moldura em outro nicho mostra um homem
branco enorme e barbado entre um grupo de leprosos, seus braços nos
ombros deles, como um técnico com a equipe. É o mesmo rosto que
ela viu no retrato a óleo pendurado logo à entrada do Santa Brígida.
Deve ser Rune Orqvist. Ela muitas vezes viu aquele nome na folha de
guarda da antiga cópia de A anatomia de Gray de sua mãe. O livro era
de Rune, ainda que a dedicatória fosse de Digby. Deve ter sido o
presente perfeito para uma jovem artista. Ela estava tão preocupada
com Lênin que ela e Digby ainda não falaram dessa conexão. Lênin!
Ela bebe o chá em só gole, sem tempo a perder.
Mariamma lava o rosto no banheiro, ainda admirada com as
conexões em seu mundo, invisíveis ou esquecidas, mas ainda assim
presentes, como um rio conectando as pessoas que habitam as margens
em seu curso, que talvez nem saibam dessas ligações. A casa Thetanatt
ficava por ali — já não existe, o tio a vendeu havia muitos anos. Rune
era padrinho de Elsie. Quando menino, Philipose também esteve ali.
Ao sair da saleta, vê Digby se aproximar pelo corredor: sim, o toque
de ansiedade do estudante na fotografia, a franqueza e mesmo o sorriso
persistem no semblante do velho. A preocupação dele por ela é
comovente.
“O chá e os biscoitos foram mágicos”, ela diz. “Agora estou bem.”
Ele parece aliviado. “Digby, a foto no escritório — aquele é Rune, não
é? Como na entrada?” Digby confirma. “O nome dele está na cópia de
A anatomia de Gray de minha mãe. E você escreveu a dedicatória.
Guardo esse livro comigo há muitos anos. É meu amuleto!”
Digby parece tocado, quase comovido. Tenta dizer alguma coisa mas
desiste. Então oferece o braço a ela, um gesto tão distante do mundo da
jovem que ela sente vontade de rir. No entanto, passa seu braço por
dentro do dele. Parece-lhe a coisa mais natural do mundo.
Os dois vão ao encontro de Lênin em silêncio, passando por um
claustro fresco e sombreado, os arcos de tijolos conferindo uma
atmosfera de monastério medieval. As pedras do piso são rasuradas pelo
musgo que se espreme entre os vãos. À sombra do claustro, uma leprosa
de branco se recosta contra uma pilastra. Está tão quieta que, por um
momento, Mariamma a toma por uma estátua… até que o pallu de seu
sári, puxado por sobre a cabeça, balança na brisa. A mulher se vira em
direção ao som dos passos de Digby e Mariamma, à maneira dos cegos.
Mariamma estremece, não devido aos traços grotescos da mulher, mas
porque o objeto que acreditava sem vida se mexeu.
Quando esse pesadelo acabar, ela escreverá para Uma sobre o
leprosário e seus pacientes, que contraste em comparação aos restos
humanos preservados em formol sobre os quais ela se debruça. Sente-se
tentada a falar a Digby sobre Uma e seu interesse pela doença à qual
ele dedicou a vida, sua prisão perpétua. Aquele trabalho fortuito a levou
a descobrir a causa da Condição e a levou a Lênin. Mas há assuntos
urgentes a tratar.
“Digby, acho que a Condição produz mais que neuromas acústicos.
Minha teoria é que ela afeta a personalidade, torna as pessoas
excêntricas. É responsável pela… inconsequência de Lênin, o caminho
estúpido que ele tomou. E sua intransigência agora.”
“Bem, seria um bom argumento para apresentar a um juiz, caso ele
se entregue”, Digby diz. “Talvez diminua seu tempo na prisão.”
“Ouvi falar de uma mulher naxalita que foi condenada à prisão
perpétua”, Mariamma diz. “Saiu depois de sete anos.”
Ela se admira com o caminho pelo qual sua mente está tentando
conduzi-la. Antes, pensava que jamais voltaria a ver Lênin; agora,
planeja um futuro com ele. Você está botando o carro na frente dos bois.
“Digby, e se Lênin não quiser se entregar ou ir para Vellore…”
“Convença seu amigo.” Digby solta seu braço. “Vou deixar vocês a
sós.”
Lênin está no quarto, sentado e aparentemente adormecido. A jovem
senta na cadeira ao lado do leito. Ele abre os olhos.
“Mariamma?” Sorri, pega um biscoito e o parte no meio. “Se
mordemos ao mesmo tempo, teremos superpoderes. Como Mandrake,
o mágico, lembra? Uma mordida, e, em algum lugar da galáxia, se
estivermos sincronizados…?” Ele faz o sinal da cruz sobre ela com a
metade do biscoito, como um padre, mas ela lhe agarra a mão.
Ela ri, apesar de tudo. “Era o Fantasma, macku. Não o Mandrake.”
Mariamma o trouxe do mundo dos mortos para chamá-lo de idiota.
“Lênin, não temos muito tempo. Você vai perder a consciência de
novo. Por favor, deixe a gente te levar para Vellore.”
O sorriso, agora de um só lado da face de Lênin, desaparece. Ela vira
o rosto e diz: “Que desperdício, ma. Esses últimos cinco anos. Parecem
quarenta. Nada mudou para os adivasis, os pulayar. E você e eu? Fui
tão estúpido, tão cego”.
Ela está tomada de tristeza por ele — pelos dois. Um feixe estreito de
luz filtra-se entre folhas, toca a cama. O Deus que nunca interfere nos
afogamentos e nos desastres de trem gosta de espreitar o experimento
humano nesses momentos de ajuste de contas e resolve banhar a cena
com um pouco de iluminação celestial. Mariamma se impacienta,
esperando a resposta de Lênin.
“Mariamma, quando tudo acabar, quando a vida estiver quase no
fim, do que você quer se lembrar?”
Ela pensa na única noite dos dois juntos, em Mahabalipuram.
Reencontrou-o numa época em que já o perdera para uma causa
fadada ao fracasso. E agora de novo. Encontra-o apenas para perdê-lo.
Ela não responde, apenas segura a mão dele.
“Do que você quer se lembrar, Lênin?”, ela pergunta, baixinho.
Ele não hesita. “Disto. Aqui. Agora. O sol em seu rosto. Seus olhos
mais azuis do que cinza hoje. Quero me lembrar desse quarto, do
farelo de biscoito em sua boca. Por que esperar que o mundo me
mostre algo melhor?” É como se ele se despedisse.
Uma nuvem negra passa pelo rosto de Lênin — uma intrusa. Sua
respiração se acelera e gotas de suor cintilam na sobrancelha.
“Lênin, te imploro. Vamos para Vellore. Tiramos o tumor, e depois a
gen­te vê. Entregue-se e aceite a sentença. Mas viva! Viva por mim. Não
me peça para assistir você morrer.”
“Mariamma, é inútil. Vou morrer de qualquer jeito. A polícia vai me
matar, com ou sem tumor.” As palavras dele se atropelam, seus olhos
vagam pelo quarto e é um esforço focá-los em Mariamma. Ela observa
o véu se sobrepondo. A voz dele é tênue. “Fico feliz por você ter
enfiado aquela agulha no meu cérebro. Pude ver você mais uma vez, te
tocar, te ouvir. Mariamma, você sabe, não? Sabe o que sinto por
você…?”
O corpo de Lênin se enrijece, os olhos reviram.
Ela grita e Digby chega a tempo de vê-lo convulsionar,
chacoalhando a cama numa agitação violenta. Aos poucos a convulsão
passa.
Digby pergunta: “Ele disse o que quer fazer?”.
Ela ignora a pergunta, pois não vai mentir. “Vamos levar Lênin para
Vellore.”
Em uma época de mentiras, dizer a verdade é um ato revolucionário.
No entanto, essa é a verdade dela, seu ato revolucionário por Lênin e
por ela. Vida longa à revolução.

O carro, já bem maltratado, saltita e costura pelo caminho, cruzando


a cintura afunilada da Índia, de uma costa à outra, acelerando para
Vellore, Cromwell no volante. Digby não pôde ir — ficou triste.
Mariamma o queria junto dela, mas não questionou suas razões. Senta-
se de lado, de olho em Lênin a todo instante, mas ele está num torpor
pós-convulsão — ou é isso, ou o líquido cefalorraquidiano voltou a se
acumular. Seguem pelo norte a caminho de Trichur, depois dobram
para o leste para subir pelo estreito de Palghat, nos Gates Ocidentais,
antes de descer para as planícies em Coimbatore. Com três horas de
viagem, o pescoço de Mariamma se enrijece de tanto se virar para
cuidar de Lênin. Ela adormece e, quando acorda, assusta-se ao ver
Lênin a encarando, como se ele fosse o acompanhante, e ela a paciente
sendo levada às pressas para a cirurgia.
Mariamma não tinha pensado muito no que diria a Lênin sobre levá-
lo a Vellore contra sua vontade. Tinha certeza de que aquele momento
estava num futuro distante, bem depois da cirurgia… isto é, se ele
sobrevivesse à viagem, sem falar na operação. O que dizer agora? Quero
que você viva, independentemente de como você se sente em relação a
isso. Ela gagueja, Lênin percebe e se diverte.
“Ah, diga de uma vez”, ela desabafa. “Diga que estou te levando para
Vellore contra sua vontade.”
“Está tudo bem, Mariamma. Não tem problema. Cromwell me
explicou.”
“De nada”, Cromwell diz, olhando de relance pelo retrovisor. “Duas
horas mais”, acrescenta. “Talvez menos.”
Ela olha pela janela. A lua brilha entre as nuvens, sua luz
fantasmagórica ilumina a paisagem árida e esburacada, é como se
tivessem pousado na lua. O mundo, e os dois homens no carro, estão
em paz. Ela é que está agitada e quer estrangulá-los.
Lênin toma sua mão. “Cromwell diz que conversamos essa manhã
mesmo, mas minha sensação é de que estive longe por meses a fio. E
por todo esse tempo andei pensando em nossa conversa. Suas últimas
palavras. Refleti a respeito por muitas semanas, parece.” Sua mão
inconsciente vai à cabeça, tocar o curativo. “Antes de acordar neste
carro, já tinha tomado minha decisão. Se estava disposto a morrer por
uma coisa na qual não acreditava, tenho que estar disposto a viver por
algo em que realmente acredito.”
Mariamma não ousa respirar. “E o que é isso?”
Ele sorri. “A essa altura você com certeza já sabe.”

Alguns vira-latas correm pelas ruas da cidadezinha. Faltam algumas


horas para o amanhecer quando passam pelo portão do Christian
Medical College Hospital em Vellore. Estão à espera deles, e, enquanto
as enfermeiras e os residentes se debruçam sobre Lênin, o
neurocirurgião residente chega e conversa longamente com
Mariamma. Ela pede uma dose de anticonvulsivantes e determina que
Lênin não pode tomar nada por via oral. Quando o dia rompe, ele é
levado para uma bateria de exames.
Mariamma encontra Cromwell, que havia dormido no carro.
Encoraja-o a voltar — não há mais necessidade de sua presença ali. Ele
parte, relutante. Ela telefona para Digby, que fica aliviado ao saber que
chegaram bem. “Escute”, ele diz, “acho que pode ser uma boa você
ligar para o editor do Manorama. Conte a ele o que está acontecendo.
Se conectarem Lênin a sua família, a seu pai e à Condição, talvez isso
sirva de aviso para que a polícia não o maltrate. Por sinal, em Vellore,
eles já estão de sobreaviso. Falei de Lênin, e eles vão ter de informar à
polícia, que por fim informará seus colegas em Kerala.” Quando
encerra a ligação com Digby, Mariamma telefona para o Manorama.

Lênin retorna depois dos exames, a cabeça raspada. Adormece, e ela


também, na poltrona ao pé da cama dele. Ao meio-dia, a equipe
neurocirúrgica retorna em peso, dessa vez com o chefe da equipe, um
homem calmo com olhos doces e inteligentes por trás de óculos sem
aro, ainda com o uniforme de cirurgia. Acena para Mariamma
educadamente enquanto o neurocirurgião residente apresenta o caso
de Lênin em voz baixa, mostrando os resultados dos exames.
Mariamma fica sem jeito diante de seu futuro chefe, que examina
Lênin rápido, mas com minúcia.
“Vocês chegaram a tempo”, ele diz aos dois. “Discutimos seu caso
com nossos neurologistas também. Tivemos de adiar uma cirurgia
importante. Então vamos operar agora mesmo, não faz sentido esperar.
Rezemos por um bom resultado.”
As enfermeiras chegam para levar o paciente. Tudo caminha num
ritmo que Mariamma nunca imaginou que fosse possível. Só tem
tempo de dar um beijo no rosto de Lênin, que diz: “Vai ficar tudo bem,
Mariamma, não se preocupe”.
Não há nada mais vazio do que um leito de hospital para o qual um
ente querido talvez não volte nunca mais. Mariamma está arrasada,
desaba na cadeira, o rosto afundado nas mãos. A mulher que cuida do
filho na cama ao lado se aproxima para confortá-la. Para sua surpresa,
uma enfermeira vem sentar a seu lado e reza em voz alta. A fé, naquela
instituição, é algo concreto, não abstrato. Depois da morte do pai,
Mariamma virara as costas para a religião, perdendo toda confiança no
divino. Mas fecha os olhos, enquanto a enfermeira reza… Lênin
precisa de toda ajuda que conseguir.
Agora ela deve esperar. Três horas, depois quatro. Uma agonia. Ela
confere o relógio de pulso a todo instante, examina qualquer um que
entra na enfermaria. Então um assistente vem a seu encontro — o
chefe de cirurgia quer vê-la, é tudo que ele sabe.

Caminham por corredores, sobem escadas… os pensamentos de


Mariamma são um borrão. Ela é conduzida para um grande vestíbulo
colado às salas cirúrgicas, onde o chefe espera calmamente, sentado
num banco. Sua máscara pende de uma orelha. Ele dá um tapinha no
banco ao lado dele.
“Ele passa bem. Conseguimos extrair a maior parte do tumor. Tive
de deixar um resíduo que estava perigosamente colado. O nervo facial
pode ou não se recuperar, mas estou otimista.” O sorriso do médico a
reconforta mais do que as palavras.
Uma onda de alívio a inunda, ela não consegue segurar o choro. Ele
espera. “Obrigada! Me desculpe”, ela consegue dizer, por fim,
enxugando os olhos. “É que estou emocionada. Não posso deixar de
pensar em meu pai. E no pai de meu pai. E tantos parentes que nunca
entenderam o que tinham. É a primeira vez que alguém da família que
sofre dessa doença é tratado.”
O médico escuta. Quando tem certeza de que ela terminou, diz: “Li
os artigos que você nos enviou junto com sua solicitação. Fiquei me
perguntando se alguns de nossos pacientes com neuromas acústicos ao
longo dos anos não seriam de famílias como a sua. Agora estamos
prestando mais atenção no histórico familiar. Bom trabalho”.
“Obrigada. Vai ser uma honra estudar aqui”, Mariamma diz. “O que
você fez… remover um tumor tão grande em um espaço tão
pequeno… Um milagre.”
Ele sorri. “Bem, não acreditamos que façamos nada sozinhos.” Ele
aponta um grande mural na parede oposta, representando cirurgiões de
máscara e avental debruçando-se sobre um paciente, sob a auréola da
iluminação cirúrgica. Nas sombras, figuras observam a cirurgia. Uma
delas é Jesus, que descansa a mão no ombro do cirurgião. Mariamma
fica olhando aquela cena e sente inveja da fé do futuro chefe.
“Nós nos orgulhamos de que podemos fazer praticamente tudo que
os principais centros cirúrgicos internacionais fazem, mas a uma fração
do custo. No entanto, a operação que acabamos de realizar, retirando
um retângulo do crânio pouco acima da linha do cabelo, afastando o
cerebelo… Bem, sin­ceramente, é uma coisa meio tosca em
comparação à operação de neuroma acús­tico que, no momento, apenas
dois ou três hospitais no mundo realizam. Foi inventada por um
cirurgião otorrinolaringologista chamado William House, que era
dentista antes de virar cirurgião. Ele começou a usar uma broca dental
para chegar ao ouvido interno, o labirinto ósseo, e percebeu que podia
se aproximar do neuroma acústico aprofundando esse túnel. É uma
inovação brilhante, mas bastante difícil se você não sabe o que faz.”
Mariamma havia lido sobre ela, mas não interrompe o chefe, para
não dar uma de sabichona.
“É isso que precisamos oferecer aqui. Requer um microscópio
operacional, a broca dental, irrigação e outras ferramentas que ele
adaptou. Porém, mais do que tudo, requer treinamento especial, muitas
horas dissecando o osso temporal em cadáveres até aprender. No
momento apenas House e alguns poucos cirurgiões treinados por ele
realizam essa cirurgia. Em algum momento quero enviar alguém para
treinar com ele.” Ele sorri, levantando-se. “Quem sabe, talvez esse seja
o plano de Deus para você, Mariamma. Vamos ver. Vamos rezar para
isso.”
Grande Ammachi teria amado esse homem. As palavras dele a
deliciariam. Deus respondeu às preces da avó: curar a Condição ou
enviar alguém que possa fazê-lo.
O chefe diz: “Por sinal, o delegado de nossa polícia local conversou
comigo. Garanti que Lênin não irá a lugar nenhum. Sei que você vai
me ajudar a manter minha palavra”.
78. Saca só

vellore, 1977

Na sala de recuperação, o rosto de Lênin está vermelho e inchado.


Suas pálpebras tremelicam, a anestesia o deixou enjoado. Está
inquieto. Mariamma lambuza vaselina em seus lábios ressecados e se
pergunta: O tempo se expandiu de novo para ele, como ocorreu depois
da convulsão? As quatro horas de cirurgia parecem-lhe quatro anos?
Sem esse tumor que definiu toda a sua vida, ele vai se mostrar o Lênin
de sempre ou outra pessoa? Ela massageia os lábios dele com lascas de
gelo, murmurando palavras de conforto. Ele desperta, e num primeiro
momento não consegue focar os olhos. “Mariamma!” Ela mal
consegue ouvir; sente um punho cerrado relaxando dentro do peito —
estava lá desde que Digby apareceu no Triplo Yem, mil anos atrás.
No dia seguinte, Lênin já ocupa a enfermaria comum. Está fraco,
mas os membros funcionam, a fala e a memória permanecem intactas
— nada foi danificado, exceto o tumor, ao que parece. Mariamma lhe
dá de comer, segura o coletor de urina, lava-o, fazendo o que pode
parar poupar as enfermeiras. Observando os estagiários, ela aprendeu a
trocar lençóis manchados sob um paciente acamado, como virá-lo e
como lhe dar um bom banho na cama. É uma experiência que a enche
de humildade. Todo médico não deveria aprender aquilo? Não é disso
que se trata a medicina?

O Manorama publica a reportagem “O sacerdote naxalita” um dia


depois da cirurgia. Um doce coroinha foi atormentado por um tumor
que crescia aos poucos no cérebro e que o levou a se tornar um
naxalita; agora, depois de uma cirurgia cerebral heroica, voltou a si e
está arrependido — é essa a fábula que o repórter elabora. E quem sabe
não é verdade? Digby tinha esperanças de que aquele tipo de
publicidade impedisse a polícia de Kerala de cometer abusos contra
Lênin quando ele fosse levado sob custódia. Pode ser que funcione.
Dez dias depois da operação, Mariamma passa o dia acompanhando
cirurgias, a convite do chefe. Quando volta para a enfermaria, às cinco
da tarde, é pega de surpresa por um jovem bem barbeado, vestindo
uma camisa folgada e calças, sentado na cadeira dela ao lado da cama
vazia de Lênin. Todos os olhos se voltam para Mariamma. As
enfermeiras sorriem, cúmplices.
O estranho se levanta sozinho e vira-se lentamente, aproximando-se
dela. Desde que pôs os olhos em Lênin pela primeira vez no Santa
Brígida, Mariamma ainda não o vira de pé. Ele é mais alto do que ela
lembrava. Lênin cambaleia para abraçá-la. Mariamma sente um corpo
só ossos, repleto de ângulos agudos. Todos os pacientes despertos e seus
parentes observam a cena; a enfermeira-chefe e as subordinadas exibem
expressões abobalhadas… Mariamma sente o sangue correndo-lhe às
faces. Deus, por favor, que não comecem a bater palmas!
Por insistência de Lênin, e com a bênção da enfermeira-chefe,
caminham até o pátio atrás da enfermaria e sentam num banco. As
folhas secas do grande carvalho à frente rumorejam, como o arroz
deslizando numa cesta. Os olhos de Lênin observam os galhos de ponta
a ponta. Ele escaneia o céu. “Se pudesse dormir aqui, eu dormiria”,
diz.
Seus pensamentos não parecem vagarosos, ao contrário: eles saltam
como cabras escalando uma montanha rochosa, como se as palavras
estivessem acumuladas. Nos últimos dois anos ele e seus camaradas, os
poucos que sobraram, estavam com a cabeça a prêmio e não podiam
confiar nos moradores do vilarejo — as pessoas por quem haviam
lutado. “O dinheiro da recompensa era tentador demais. Um morador
por quem eu estava disposto a dar a vida podia me enviar para a
sepultura.” O grupo passava cada vez mais tempo na floresta, a
desilusão só aumentava. “Sabia que um fungo chamado Exobasidium
vexans fez mais pela luta de classes do que todo o movimento naxalita?
Ele devastou fazendas inteiras de chá. Os proprietários abandonaram a
terra para os nativos. A terra era deles por direito.” Ele e os camaradas
foram silenciados pela imensidão da floresta, mal conversavam.
“Um ancião em Wayanad me ensinou como suspender uma pedra
com a parte mais alta e delgada do tronco, por sobre o galho mais baixo
da árvore mais alta. Então, amarrando uma corda ao tronco, eu podia
dar uma volta com a corda sobre o galho mais baixo e fazer um balanço
para meu corpo. Ele me mostrou um nó especial, secreto, que permitia
que me suspendesse aos pouquinhos — a corda trava, de forma que
você não escorrega. O nó de fricção, tão difícil de aprender, é passado
de geração em geração. As pessoas pensam em herança como sendo
terra ou dinheiro. Aquele nativo me deu sua herança.”
Na floresta, Lênin se içava. Vivia dias na copa das árvores, em
companhia de cogumelos, besouros, ratos, pássaros canoros, papagaios
e por vezes uma civeta. “Cada árvore tinha sua personalidade. O tempo
delas é diferente. Pensamos que são mudas, mas é que as árvores levam
dias inteiros para completar uma palavra. Sabe, Mariamma, lá entendi
meu fracasso, minha limitação. Sou consumido por uma ideia fixa. E
depois por outra. E outra. Caminhar numa linha reta. Querer ser
sacerdote. Depois naxalita. Mas, na natu­reza, uma ideia fixa é
antinatural. Ou, antes, a ideia, a única ideia, é a própria vida.
Simplesmente ser. Viver.”
Mariamma escuta, entretida e um pouco preocupada com aqueles
pensamentos.
A enfermeira-chefe envia o jantar, com um mimo especial —
sorvete.
“Mariamma, sabe qual foi a melhor refeição de minha vida? Sempre
pensava nisso. Foi a RefeissõesReais. Mahabalipuram? Um dia vamos lá
de novo. Para aquele mesmo quarto.”
“Promete?”
Ele assente, toma-lhe a mão e a beija, depois a encara, como se
tentando memorizar seu rosto. E suspira. “Não queria estragar nossa
noite. Porém, mais cedo, quando você foi acompanhar as cirurgias,
ficamos sabendo que vou ser entregue à polícia de Kerala amanhã. Vão
me levar para a prisão em Trivandrum.”
Não é dor, mas um medo primitivo se apodera dela. Medo pela vida
dele — tal como quando foi para a mesa de operação. Lênin a observa,
apreensivo. “Mariamma, o que está sentindo?”
“Estou triste, com medo — o que esperava? E estou com raiva de
você. Sim, sei que é tarde demais. Mas se você não tivesse insistido em
ser… em ser Lênin, poderíamos ter tido uma vida.” O velho Lênin teria
protestado, botaria a culpa num desentendimento. Mas este Lênin tem
um ar penitente, e ela se sente mal. Acaricia-lhe o rosto. “Por outro
lado, se você tivesse sido um bom garoto e tivesse virado sacerdote,
talvez eu te achasse bem chato.”
“Agora que sou um fora da lei, sou irresistível?”
Ela gosta desse Lênin. Não. Ela o ama. Por mais que ambos tenham
mudado, a essência de uma pessoa é formada aos dez anos — essa é sua
teoria. A parte “excêntrica” pode ser eliminada. Ou podemos talvez
aprender a administrá-la.
“Mariamma, sei que dissemos adeus para sempre em Madras. Ainda
assim, sempre tinha conversas imaginárias com você. Guardei coisas
num compartimento mental para um dia te dizer… O que estou
querendo dizer é que nunca desisti de você. Não podia. E cá estou —
vivo. E poderei vê-la. Pois você vai saber onde me encontrar…”
“Na prisão!”, ela explode, amarga, entre lágrimas.
“Mariamma, você sabe que não precisa esperar por mim, não sabe?”
Ele não consegue esconder o toque de ansiedade em sua voz.
“Ah, pare, por favor. Estou chorando porque vai ser difícil. Mas vai
ser mais difícil para você. Queria que a gente não precisasse esperar.
Porém, agora que te encontrei, acha que vou te deixar sumir de novo?”

Ela passa a última noite na poltrona ao lado da cama dele, agarrando


sua mão, a cabeça descansando no seu travesseiro. Quando amanhece,
fica inquieta, angustiada. Ele está calmo. Todos na enfermaria sabem o
que vai acontecer.
Às dez da manhã, o subcomissário Mathew da Força Tarefa Especial
da Polícia de Kerala chega com dois oficiais, suas botas ecoando como
marretas no piso. Ele é um homem grande, severo, com um bigode
áspero. Da boina aos sapatos marrons bem engraxados, dos tufos de
cabelo que se projetam de suas orelhas até os nós dos dedos, todo o seu
ser é ameaçador. Mariamma se ergue, tremendo.
Lênin se levanta e se põe entre as camas para encarar o policial, os
ombros corajosamente para trás, mas tão magro que uma brisa pode
derrubá-lo. O olhar que os dois homens trocam gela o sangue de
Mariamma: dois antigos inimigos se medindo, homens cujo único
desejo é arrancar o coração do outro, que buscam vingança pelo que
cada um fez contra o outro. No entanto, foi Lênin quem decidiu se
entregar, então o ar desafiador em seus olhos desaparece, como se
nunca tivesse existido. Aquilo só enfurece ainda mais o subcomissário,
que cerra os punhos. Se não houvesse testemunhas, ela tem certeza de
que o policial teria arrancado sangue de Lênin antes de levá-lo.
Quando o oficial algema Lênin, ele não protesta. Assim que o
subcomissário berra uma ordem para que tragam correntes de ferro
para os tornozelos, Mariamma abre a boca, mas a enfermeira-chefe se
antecipa. “Subcomissário!”, diz a enfermeira numa voz que paralisa os
residentes e faz os estagiários molharem as calças. “Não perturbe meus
pacientes! Seu prisioneiro passou por uma cirurgia cerebral. Se ele
correr, não acha que conseguirá alcançá-lo?” O subcomissário vacila
sob o olhar severo da enfermeira. As correntes de ferro para os
tornozelos desaparecem. “Estou entregando meu paciente em boas
condições”, ela diz. “Por favor, mantenha-o assim.”
Um furgão está à espera. Mariamma tem permissão para caminhar
ao lado de Lênin. A porta de trás do veículo se abre, deixando ver
bancos laterais de fren­te uns para os outros. A enfermeira-chefe, sem
pedir permissão, joga lá dentro um travesseiro e um cobertor, e também
uma garrafa de água; depois disso, reza com as mãos sobre a cabeça de
Lênin e o abençoa. Antes de os oficiais ajudarem-no a subir,
Mariamma o abraça, sentindo as frias algemas de metal contra ela.
Lênin beija sua testa. E sussurra: “RefeissõesReais, o Hotel Majestic
ma! Não esqueça. Dessa vez leve roupa de banho. Vou te buscar. Esteja
pronta”.
79. O plano de Deus

parambil, 1977

Os prisioneiros não podem receber visitas no primeiro mês. Esperar


todo esse tempo é uma tortura para ela. Não bastasse, todos os pacientes
no Triplo Yem parecem estar cientes de seu caso. Não passa um dia
sem que alguém diga: “Pelo menos os presos têm uma boa refeição por
dia. Não pode ser tão ruim”. Um lavrador de palmeiras com uma
laceração profunda na testa opina por baixo de uma toalha cirúrgica:
“Se pelo menos eu tivesse sido preso, não andaria trepando em árvores.
Lá ensinam coisas úteis, como alfaiataria”. A paciência de Mariamma
desaparece. “Você está certo. Se tivesse sido preso, eu não estaria aqui
costurando um homem que beijou uma cabra porque a confundiu com
a esposa.” Joppan assume a sutura, que domina bem, enquanto
Mariamma se retira furiosa da sala de cirurgia.
Toda manhã Anna Chedethi faz questão de conferir as dobras do sári
da jovem médica antes de sua partida para o hospital. “Você perdeu
peso”, ela reclama. “E não come o que mando.”
Mariamma e o Senhor Melhorias vão a Trivandrum em busca de um
advogado. Contratam um homem competente e com experiência. Até
que Lênin seja formalmente acusado, há pouco o que fazer, ele diz.
Fala de naxalitas que, embora tendo recebido sentenças de sete a dez
anos, ou mesmo prisão perpétua, tiveram a sentença reduzida para três
ou quatro anos. A maior parte delas, aliás. Com o histórico médico de
Lênin, e já que não está conectado diretamente a nenhuma morte, é
possível que cumpra apenas “alguns anos”.
É uma boa notícia. Ou deveria ser. No entanto, quando Mariamma
chega em casa, a realidade do que “alguns anos” significarão para a
vida de ambos a deixa abatida. Logo estará em Vellore para a
especialização em neurocirurgia. Em vez de uma viagem de ônibus de
três horas, será preciso passar uma noite inteira no trem para ver Lênin.
E todo dia ela se preocupa com o bem-estar dele na prisão. Sente-se
exausta.
Anna Chedethi a encara assim que ela entra e, sem dizer uma
palavra, obriga-a a se sentar. Despeja iogurte e água numa pequena
tigela, acrescenta uma fatia de pimenta-verde, gengibre picado, folhas
de curry e sal, e serve tudo em um copo alto. Repuxa o cabelo de
Mariamma para trás das orelhas, tal como quando ela chegava da
escola, ainda menina. Mariamma bebe tudo: é uma invenção superior
à penicilina. Toma um banho, come um pouco de kanji com picles e
vai dormir cedo.

Pouco depois da meia-noite ela está completamente desperta. Não


adian­t a resistir. Segue para o escritório do pai, querendo ouvir a voz
dele nos diários. Ela marcou as entradas em que ele expressa o amor
pela filha, passagens preciosas que sempre a fazem chorar. Quantas
odes daquelas o pai lhe escreveu na época em que ela ainda morava sob
seu teto! Quando a jovem partiu para a faculdade, ele sofreu pela filha
ainda mais. Se pelo menos Mariamma tivesse vindo para casa com
mais frequência…
Ela acaricia a capa do caderno. Os diários são tudo que sobrou dele:
seus pensamentos. O único que falta é aquele que jaz no fundo de um
lago, mais uma perda entre muitas numa tragédia terrível. Talvez
jamais venha a saber por que ele embarcou para Madras. Até agora, o
“tumor do pensamento” não se revelou, a não ser que a própria
existência daquelas notas confusas, a quantidade avassaladora delas, o
comentário compulsivo e incessante sobre sua vida seja o “tumor”. No
entanto, não é um traço que outros que sofrem da Condição
compartilhem. Era uma característica peculiar dele.
Mesmo se ela tivesse certeza de que sua hipótese estava errada e que
não existia “tumor do pensamento” algum, ainda leria todas as páginas.
Nelas, seu pai, o Homem Comum, está vivo. Ela tem horror em pensar
que um dia chegará à última entrada.

Mariamma ajusta o abajur, pega uma caneta e retoma a decifração,


o índice, o ponto no fim da página onde ela parou. E vira a folha…
… E algo parece errado. Seus olhos estranham os espaços em
branco, os cortes de parágrafo e uma fileira de letras maiúsculas —
tudo que o pai evitava, verdadeiros pecados mortais. Essa página parece
uma violação de seu próprio regulamento.

Mariamma fez sete anos hoje e queria bolo. Ninguém jamais fez um
bolo em Parambil. Ela teve essa ideia lendo Alice no País das
Maravilhas. Ela e Ammachi mexeram a massa numa tigela com
tampa e colocaram carvão quente em cima e em baixo. Jurei a ela que
eu tinha a poção BEBA-ME, se, como em Alice, esse fosse um bolo do
tipo COMA-ME, que a faria ficar subitamente gigante. Delicioso!
Baunilha e canela. Depois lhe dei um presente de aniversário: sua
primeira caneta-tinteiro, uma Parker 51, azul com tampa dourada.
Um lindo instrumento. É o que eu tinha prometido tão logo ela virasse
uma mocinha. Ela ficou animada: “Isso quer dizer que sou finalmente
uma mocinha?”. Confirmei. E ela é!

Mariamma vê os próprios rabiscos em inglês na página, feitos com a


nova caneta.

MEU NOME É MARIAMMA. EU TENHO SETE ANOS.

Depois de outro espaço em branco, seu pai retorna.

Só ao meditar sobre a morte de Ninan, sofrendo-a toda noite por doze


anos, é que cheguei a uma compreensão plena do presente, do milagre
que é minha preciosa Mariamma. De início não me dei conta disso.
Levou algum tempo. Tive de subir na palmeira mais alta, como meu
pai, para ver o que me escapara no chão, para ver o que não queria
enxergar, o que nun­ca escrevi aqui, pois, se o fizesse, estaria
reconhecendo o que sabia no fundo do coração mas nunca quis
reconhecer. Pensamentos podem ser enxotados. Palavras numa página
são tão permanentes quanto figuras talhadas na pedra.
Nesta noite em que minha filha se tornou a mocinha que queria ser,
devo ser digno dela, sendo verdadeiro comigo mesmo e com esses
diários. Não podia redigir estas palavras
ATÉ ESTE MOMENTO

Mariamma fica desorientada com as maiúsculas. O pai claramente


parou para desenhar cada uma das letras, construindo um monumento
de palavra, buscando eternizar aquele momento. Ou era hesitação? O
que relutava em escrever? Aqueles três termos ocupam o restante da
página.
Mariamma passa à folha seguinte:

Depois da morte de Ninan, minha Elsie foi embora. Ficou longe por
pouco mais de um ano. Quando voltou, ela já estava grávida.
Que eu escreva “já estava grávida” é prova de que meus olhos estão
abertos. Talvez Grande Ammachi tenha sabido desde sempre. Talvez
tenha sido isso que ela quis dizer quando me disse, no dia em que
Mariamma nasceu, que “Deus enviou-nos um milagre na forma desta
criança, que chegou completamente formada e única”. Não era Ninan
renascido, mas algo infinitamente mais precioso: minha Mariamma!
Mas eu era um imbecil nas garras do ópio, incapaz de receber ou
reconhecer o presente inestimável daquela criança que hoje é uma
“mocinha”.
Livre do ópio, minha cura só começou de fato quando me dediquei a
amar a nenenzinha com todo o meu coração. Sou seu pai — sim, sou
— por escolha. Se ela fosse de meu próprio sangue, então seria uma
criança diferente, não seria minha Mariamma, e só de pensar nisso
estremeço. Recuso-me a imaginá-lo. Jamais aceitaria perder minha
Mariamma. Meu Deus amado não me devolveu meu filho. Não, ele
me deu algo muito melhor. Ele me deu minha Mariamma. E ela me
deu vida.

Mariamma lê as palavras do pai seguidas vezes, primeiro sem


entender, depois recusando-se a entender, ainda que as palavras lhe
caiam sobre a cabeça como um teto se desmoronando.
Já estava grávida.
Quando ela entende, engasga com essa informação terrível.
Cambaleia para longe da mesa, sua mente titubeia, o corpo ameaça
rejeitar seu escasso jantar.
Aquela sala, o escritório do pai, parece-lhe subitamente alheio. Ou é
a si própria — a observadora — que já não conhece? Lembra-se de ir
para aquele lugar com ele depois que comeram o bolo de aniversário.
Ela sentou no colo dele, segurando sua nova Parker 51, enchendo-a
com a tinta Parambil Púrpura. E se recorda de escrever aquelas
palavras, agora imortalizadas na página. São as palavras de seu pai logo
em seguida que a devastam.
“Appa, o que está dizendo? Meu amado pai — que me diz que não é
meu pai —, o que está dizendo?”
Se sente enlouquecer. A quem poderá perguntar? Grande Ammachi
sabia, é o que seu pai achava. Mas ela não está aqui. Mariamma
caminha pelo quarto em um torpor de incredulidade. Por onde andou
a mãe naquele ano ausente? Quem aplacou sua dor? Terá começado
uma vida nova? Se sim, por que voltar? Para dar à luz?
Ela já leu a metade dos diários do pai, e agora as entradas vão se
dispersando ao longo do tempo. Mas esta é a única menção que ele fez
a isso. Sempre soube, no entanto lhe era doloroso demais escrever.
Anotou cada pensamento não dito, exceto aquele. Não conseguia —
até que conseguiu. Talvez ele nunca tenha tocado no assunto de novo
por escrito, tendo exorcizado o que se deteriorava dentro dele e
alcançado a paz.
“Ah, Appa, você encontrou sua paz, porém me deixou de pernas para
o ar. Você revirou as raízes que me conectavam a esta casa, à minha
avó, a você…” Ela pensa em acordar Anna Chedethi e aninhar-se em
seus braços. Será que ela saberia? Não, ela só veio para Parambil
quando Elsie estava prestes a dar à luz. Ao que tudo indica o pai nunca
discutiu suas suspeitas, sua convicção, com Grande Ammachi. E a
matriarca não falou disso com o filho. Levou para o túmulo o que sabia.
Como também Philipose… Exceto por esta nota.
Ela flagra a própria imagem no espelho que o pai usava para se
barbear, ainda ali em um nicho, como se esperando por ele para ser
posto na varanda. Mariamma recua, pois vê uma mulher insana,
angustiada, com olhos selvagens, devolvendo-lhe o olhar.
“Quem sou eu?”, pergunta à aparição no espelho. Sempre achou
que tinha as sobrancelhas do pai, seu jeito de inclinar a cabeça para
ouvir, o nariz, sem dúvida, o lábio superior — como é possível que
nada disso seja verdade? Mesmo o cabelo dos dois era tão semelhante,
espesso mas levemente ralo nas têmporas. É verdade que ele não tinha
a mecha de cabelo branco…
A mecha de cabelo branco… Essa é sua pista. É isso que a leva ao
topo da palmeira, como o pai, e agora sua visão se abre, desimpedida.
Vejo.
Lembro. Entendo.
Eu a possuo agora, essa informação terrível que jamais desejei ter.
parte dez
80. Não piscar

santa brígida, 1977

O taxista velho e encolhido apequena-se diante do volante do


Ambassador, mas maneja a alavanca de câmbio com habilidosos golpes
de palma da mão. Como muitos no ramo, senta de lado, pressionando-
se contra a porta, acostumado a ter pelo menos três parentes apertando-
se com ele na frente, sem falar das mulheres, crianças e bebês no banco
de trás, a caminho de um casamento ou de um funeral.
Do assento traseiro, Mariamma olha para o mundo com novos olhos.
Parambil é o lar que tomou como seu, mas, como tantas coisas em que
acreditava sobre si mesma até então, aquilo é uma mentira. “A única
coisa de que você pode ter certeza neste mundo é da mulher que te deu
à luz”, disse o casamenteiro Aniyan. Mariamma nunca conheceu sua
mãe, e agora ela acaba de descobrir que também nunca conheceu seu
pai.
Da última vez que passou por aquela estrada, no carro de Digby,
correndo para ver Lênin, ela não pensava na casa Thetanatt. O
motorista de seu táxi esteve em todo lugar, e, como um casamenteiro,
ele sabe exatamente onde ficava a residência, antes que o falecido
irmão de Elsie a vendesse. Naquele terreno erguem-se agora seis
“mansões do golfo” — construídas por malaialas que retornaram de
Dubai, Omã e outros entrepostos. A única coisa que Mariamma pode
ver do passado de sua mãe é o rio majestoso no extremo da antiga
propriedade. Eles aceleram.
“Aqui, senhorita?”, pergunta o taxista, hesitante, bem antes do portão
aberto do Leprosário Santa Brígida. Apesar de todas as viagens que ele
deve ter feito, Mariamma duvida que já tenha levado alguém até lá.
Talvez esteja torcendo para que ela salte do carro e faça o restante do
caminho a pé.
“Siga para aquele edifício atrás do lago de lótus. Vou pedir que lhe
tragam chá.”
“Ayo, obrigado, senhorita, não é necessário!”, ele responde, entrando
em pânico. Ela lhe entrega dez rupias e pede que ele volte depois do
almoço. Pode ser imaginação sua, mas tem impressão de que o homem
recebe a nota com certo receio.
Mariamma pergunta por Digby. Suja, a mulher em traje de
enfermeira que ela viu da última vez, mostra o caminho. Seu pé direito,
coberto de ataduras, e suas sandálias, feitas a partir de pneus velhos,
dão-lhe um andar rígido e manco. Passam pelo pátio sombreado, depois
pelo corredor que conduz à sala de operação, os odores de sabão
desinfetante cedendo lugar ao aroma va­poroso de estufa da autoclave.
Digby Kilgour está em cirurgia, mas Suja a encoraja a entrar.
Mariamma pega uma máscara e um gorro, cobre os sapatos com
protetores e entra. À assistente de Digby faltam alguns dedos, o que a
obriga a prender com fita adesiva as sobras de sua luva. Digby olha para
cima. Sorri por sobre a máscara. “Mariamma!”, exclama, feliz.
Vendo a expressão dela, hesita. “Lênin…?”
“Ele está bem.”
Os olhos pálidos dele a estudam, tentando ler seus olhos. Ele acena
com a cabeça, lentamente. “Estou prestes a começar. Se quiser, pode
se vestir…” Ela diz que não. “Não devo demorar muito.” O dever da
cirurgia vem sempre em primeiro lugar. Ela lembra de seu professor
em Madras, um homem que se divorciou duas vezes, dizendo que, na
sala de operação, o caos da vida — as decepções, as dívidas —
desaparecia. Por um tempo.
Para Mariamma, é como se seus pensamentos já não lhe
pertencessem. Luta para continuar focada. Digby faz três incisões
separadas na mão do paciente, emoldurada por toalhas cirúrgicas
verdes. Fica tentada a lhe dar um tapa na mão. Você por acaso é um
carpinteiro com um martelo? Segure esse bisturi como um arco de violino,
entre o polegar e o dedo médio. O indicador por cima!
As linhas pálidas revelando-se ao correr da lâmina e o sangue que
demora a brotar são como ela está acostumada a ver. Os movimentos
de Digby são lentos e deliberados.
“Não sou um cirurgião que valha a pena ser observado em ação”, ele
diz. Cuida de um sangramento que ela talvez ignorasse. Depois de
ganhar espaço, corta um tendão de sua inserção e o canaliza para um
novo local. “Aprendi do jeito difícil”, continua, “que enxertos livres de
um segmento excisado de tendão… não funcionam.”
Ela morde a língua. Cirurgiões gostam de pensar em voz alta.
Assistentes precisam ter mãos silenciosas e cordas vocais mais ainda.
Observadores também.
“Rune era um pioneiro em enxertos de tendões livres. Mas hoje
acredito que um tendão precisa permanecer conectado ao músculo
parente, por uma questão de fornecimento de sangue e função. O
verdadeiro inimigo é o tecido cicatrizado. Uso as menores incisões
possíveis e evito sangramentos.”
Ela está impressionada, ainda que um pouco a contragosto, com o
que ele é capaz de realizar com dedos tão rígidos — sua mão esquerda
faz a maior parte do trabalho. Se ela trabalhasse naquele ritmo, a
enfermeira Akila diria: “Doutora, as bordas de sua ferida já estão
cicatrizando”.
Digby continua: “Você precisa ter paciência, como uma minhoca
que se enfia entre as pedras… contornando raízes para chegar aonde
precisa chegar. Mesmo as estruturas mais rígidas no pulso têm uma
camada quase invisível de tecido escorregadio, pelo menos é o que eu
acho. Não está nos livros. É preciso alguma fé. Acreditar sem prova. Eu
tento não danificar essa camada. Isso tudo deve soar como bruxaria”.
Mariamma não confia nem na sua voz. Todo cirurgião tem suas
crenças, mas também tem um pouco de são Tomé. Precisam de provas.
E ela foi ali em busca disso.
Digby sutura o tendão na nova inserção na base de um dedo e fica
um tempo fazendo isso. “Essas pequenas fibras desgastadas na ponta do
tendão são como cipós, porém duras como cabos de aço. Uma gavinha
solta dessas po­de se agarrar a alguma coisa que não devia e arruinar o
resultado.”
Acabou. Por hábito ela olha o relógio. Não demorou tanto quanto
lhe pareceu.
“Sem torniquete?” Aquilo saiu da boca de Mariamma, também por
hábito.
“Não acredite neles. O melhor torniquete é aquele que você pode
ver pendurado na parede.” Digby faz um curativo na ferida e imobiliza
a mão no gesso. Depois retira as luvas e o avental.
Pede que levem um pouco de chá a seu escritório. “Você se
incomoda se a gente der uma espiada numa paciente? É o grande dia
dela, e ela esperou a manhã inteira.”
Eu me incomodo, sim! Esperei minha vida inteira.
Ela o segue.

Na pequena enfermaria, uma jovem está sentada na cama. A seu


lado, de prontidão, uma bandeja de instrumentos médicos. Digby põe a
mão no ombro da paciente.
“Esta é Karuppamma. Tem cinquenta anos, mas parece vinte, não é?
Isso é lepra lepromatosa. Espanta as rugas. Difere da forma
tuberculoide.”
Karuppamma é tímida. Cobre a boca com a mão livre, que parece
uma garra.
“Uma semana atrás fiz nela o mesmo procedimento que você acabou
de ver. Cortei o tendão flexor digital superficial que vai para o anelar.
Posso fa­zer isso porque ela tem o tendão profundo como apoio. Fixei o
tendão aqui”, ele diz, apontando para a raiz do polegar. “Agora ele deve
ser capaz de fazer movimentos opositores. Recuperando a capacidade
de segurar coisas, antes perdida. O caso é que, para fazer o polegar se
mover, ela deve imaginar que está movendo o dedo anelar. O dedo
acha que é impossível. Precisa ser convencido de que as coisas não são
o que parecem.”
Você está falando comigo? Por fora, Mariamma está mais calma do
que quando chegou, pacificada pela espera e por ter observado Digby
trabalhando. Suas entranhas, porém, remoem-se de raiva,
ressentimento e confusão. Precisa da verdade. Não vim em busca de
conhecimento cirúrgico. Ainda assim, não será rude na frente de uma
paciente.
Digby diz em malaiala: “Toque o polegar no mindinho”. Ele domina
mal o idioma, mas Karuppamma entende. Ela faz uma careta com o
esforço. Nada acontece.
“Pare. Agora… mova o dedo anelar.”
E agora é seu polegar que se mexe. Há uma pausa, Karuppamma
irrompe numa risada. Digby compartilha sua alegria, sorrindo. Uma
pequena multidão se aglomerou no entorno, participando do triunfo de
Karuppamma. Mariamma se comove. Quando Digby se volta para ela,
porém, sua expressão alegre foi substituída por uma profunda tristeza.
“Essa doença vai tirando tudo. Ano após ano, você perde algo. Não
por causa da lepra ativa, mas pelos danos neurológicos. Este é um dos
raros momentos em que podemos reconquistar alguma coisa.”
Ele diz a Karuppamma que a cada dia ela conseguirá mover o
polegar um pouco mais, até que alcance sua força plena, contudo, por
ora, não deve forçá-lo demais. Orienta Suja a imobilizar a mão e o
pulso da paciente com uma placa posterior de gesso.
Digby diz: “Logo ela moverá o polegar sem pensar. É
impressionante. Como diz Valéry, ‘Ao fim da mente, o corpo. Mas, ao
fim do corpo, a mente’”.

Os dois se retiram. Ele diz: “Paul Brand, em Vellore, e Rune, aqui,


foram os primeiros a realmente entender que esses dedos são lesionados
pelo trauma repetido. Não pela lepra que os consome, mas porque eles
não têm a sensação da dor…”.
A mente de Mariamma deriva. Pensa em Philipose menino
empreendendo aquela viagem maluca e tomando o lugar das mãos de
Digby, que ainda se recuperava da cirurgia.
“… Paul Brand viu uma paciente cozinhando num braseiro, lutando
para virar um chapati com uma pinça. Ela se irritou e, botando a mão
no fogo, virou o pão. Você e eu gritaríamos se tentássemos isso, mas ela
não sentiu nada. Foi aí que Brand compreendeu. Sem o ‘dom da dor’,
como diz, ficamos desprotegidos.” Digby fala consigo mesmo. “É
impressionante como tão poucos entendem isso. Essa é a natureza da
lepra clínica. Poucos médicos querem estudá-la. Poucos cirurgiões
desejam tratá-la.” Digby a encara.
É uma experiência incômoda para Mariamma contemplar aquele
rosto curtido pela idade e lacerado por cicatrizes de queimaduras, pois
tal face evoca o rosto que ela vê ao se olhar no espelho. Será que Digby
não vê a semelhança?

Entram no mesmo escritório, onde, no que agora lhe parece outra


vida, ela tirou uma soneca. É uma manhã gloriosa. Mariamma é
atraída pelas janelas francesas, quer ver mais uma vez aquele jardim.
Rosas amarelas e vermelhas contornam o gramado, não lembrava
dessas cores. A portinhola que dá acesso ao jardim está aberta. No
gramado uma paciente de sári branco está sentada ao sol; ela seleciona
grãos de painço tostado na palma de sua mão, depois os enfia
desajeitadamente dentro da boca. Suas mãos são como árvores com
galhos cortados que deixaram protuberâncias. Usa um polegar
rudimentar para selecionar o painço. Sua cabeça está coberta pelo
pallu do sári. Mariamma vê seu perfil achatado, o nariz aplanado como
se alguém atrás dela lhe puxasse as orelhas. É preciso coragem para
fazer da lepra sua vocação. Digby a tem, ela reconhece.
“Quando os nervos faciais são afetados, a lesão rouba as expressões
naturais”, ele diz, parando atrás dela. “Você acha que estão mostrando
os dentes de raiva quando podem estar sorrindo. Isso fortalece o
isolamento da lepra.” Digby continua dando aula. Mariamma preferiria
que ele se calasse. “Aprendi a ouvir mais do que a olhar”, ele afirma.
Mariamma ouve a tristeza na voz dele. Seria muito mais fácil dar
vazão à raiva se ele fosse um agricultor bêbado em vez desse homem
que dedicou a vida a doentes cujas provações os transformaram em
párias.
Digby por acaso não entende por que ela está ali? Ele deve saber que
poderia ser seu pai, mesmo se nunca mais viu Elsie nem soube que ela
teve uma filha. E, se sabe, então é parte do conluio que ocultou a
verdade dela.
Ela está prestes a se virar e falar quando ele sussurra: “Repare na
frequência com que ela pisca”. A mulher não percebe que está sendo
observada. “Conte quantas vezes você pisca para cada piscada dela.”
Mariamma tenta não piscar. Os olhos coçam, depois ardem. Ela
cede. Mas a paciente ainda não piscou, e agora engatilha a cabeça na
direção do latido de um cão, tal como uma cega que busca localizar
um som. Um olho é de um branco leitoso, nada vê, afundado. A córnea
do outro é turva.
“Eles não piscam, a córnea se desidrata, e vem a cegueira. Na maior
parte, os residentes não chegaram aqui cegos. Quando acontece, é um
momento triste.”

Chega o chá. Mariamma senta na mesma poltrona em que tirou a


soneca. Sem pensar, ela retira o xale dobrado sobre o encosto e o põe
sobre seu colo. Digby a serve.
Na estante, ainda está a fotografia de moldura prateada em que se vê
Dig­by menino, na companhia da mãe. Sua mãe bela e deslumbrante,
Digby. Com cara de estrela de cinema. Com a mecha branca no cabelo.
Minha avó. Quando, na última visita, Mariamma olhou pela primeira
vez para aquela fotografia desvanecida, achou que a mãe de Digby
começava a ficar grisalha. No entanto, ela era jovem. A pista estava ali,
bem diante de seus olhos… mas ela não percebeu. E jamais perceberia,
não fossem os diários do pai.
Digby senta-se à frente dela, inclinando-se sobre sua xícara. Está
quente, pois ele depõe a xícara, o pires batendo contra o porta-
cachimbo e fazendo um som de gongo.
Ela se prepara. “Dr. Kilgour…”
“Digby, por favor.”
Digby, então. Só não te chamarei de “pai”. Tive um pai que me
amava mais do que a vida.
“Digby…”, ela diz, mas o nome já não lhe parece certo. É como um
dente lascado raspando a língua. “Você não quer saber por que vim
aqui hoje?”
Ele senta na poltrona e fica em silêncio por um bom tempo. “Por
anos me perguntei se você viria, Mariamma. E se ia me perguntar o
que você vai me perguntar.” Entreolham-se. “Você é exatamente igual
à sua mãe”, acrescenta.
Ela respira fundo. Por onde começar? “D…” Ela não consegue dizer
o nome dele, então começa de novo. “Como você conheceu minha
mãe?”
Digby Kilgour suspira e se levanta. Por um momento vem à
Mariamma a ideia absurda de que ele está prestes a abrir a porta e se
retirar — por ela ter feito a pergunta anunciada. No entanto, não, ele
fica ali, parado. Os olhos que vão ao encontro dos dela mostram-se
solenes, contritos e cheios de compaixão. “Sabia que um dia viria
procurar por ela.”
Ela não entende o que ele está dizendo. Ele vai até as janelas
francesas e fica ali como um homem prestes a encarar o pelotão de
fuzilamento, seu nariz quase tocando o vidro. Mariamma se ergue,
levando a xícara de chá, e se junta a ele.
A vista não mudou. A grama brilha. No centro, vestida em branco
puro, a mulher que não pisca ainda está lá, sentada, escolhendo grãos
de painço.
“Mariamma, aquela mulher ali ao sol… Ela é provavelmente a
maior artista indiana viva. Ela é o amor de minha vida, a razão pela
qual passei vinte e cinco anos no Santa Brígida. Mariamma, aquela é
Elsie. Sua mãe.”
81. O passado encontra o futuro

gwendolyn gardens, 1950

Naquela tarde de setembro de 1950, quando Digby chegou ao clube


parecia a estação Victoria Terminus. Carros enfileirados na beira da
estrada, malas empilhadas sob o pórtico. Começava a Semana dos
Fazendeiros, e, na­quele ano, pela primeira vez, coube ao clube de
Digby — o Tradewinds — a honra de sediá-la.
Em 1937, quando ele e Cromwell assumiram a Loucura de Müller,
uma estrada de gate utilizável já era uma grande ambição. A estrada
ficou pronta bem quando os preços do chá e da borracha dispararam,
permitindo que o consórcio com Franz e os demais parceiros
recuperasse rapidamente o investimento, com a venda de lotes dos
quase oito mil acres comprados. Em pouco tempo as fazendas
prosperaram em torno dos Gwendolyn Gardens. Por volta de 1941,
Digby e os demais proprietários fundaram o Tradewinds, contratando
um secretário experiente que, desde o primeiro dia, fez lobby na
Associação dos Fazendeiros do Sul da Índia — afsi — pelo privilégio
de sediar o encontro anual, que durava uma semana. Aquela honra
continuava sendo concedida aos clubes mais antigos em Yercaud, Ooty,
Munnar, Peerumedu… Até aquele ano.
Digby, como membro fundador do clube, sentia-se obrigado a
mostrar-se visível. Aboletou-se em um sofá na grande sala de visitas,
olhando a vista das montanhas pelo janelão de vidro. Em qualquer
outro dia, um garçom se materializaria dentro de poucos segundos.
Agora as pobres almas, exibindo esplendorosos turbantes — o que não
era comum —, corriam como galinhas acossadas.
Desde a Independência, em 1947, e com a partida de muitos
proprietários brancos, os indianos passaram a ser maioria nessas
reuniões. No entanto, para espanto de Digby, o teor da Semana dos
Fazendeiros permanecia imutável. As disputas de críquete, tênis,
sinuca, polo e rúgbi eram mais intensas, e o desfile de beleza e as
danças estavam mais presentes do que nunca. O orgulho nacional
estava no auge, mas a classe rica e educada, e os ex-militares, tinham a
língua e a cultura inglesa profundamente enredadas à herança indiana.

Um jato de vento fez voar pelo gramado um chapéu de palha de aba


larga e fita azul. Digby observou o trajeto dele. Uma figura correu para
recuperá-lo. Ele esperava ver uma pálida esposa de fazendeiro, não a
indiana alta e deslumbrante de sári branco que apareceu. Seu cabelo
espesso, preso num rabo de cavalo, caía por sobre o ombro direito,
brilhando contra a pele morena. Ela estava admirável, sem nem um
toque de batom, pó de arroz ou pottu, os braços esbeltos e nus.
Recuperando o chapéu, ela ergueu o rosto e encarou Digby, que se
sentiu trespassado por um raio, como se ela tivesse enfiado a mão
através do vidro. Seus olhos assombrosos, como os de uma vidente,
deslizavam para um nariz afilado; Digby sentiu-se cair para dentro de
um abismo. E então ela desapareceu.
Quando pôde respirar de novo, ele sentiu os aromas de perfume e
fumaça de cigarro e a cacofonia de vozes ao redor.
“O High Range estava fazendo confusão na gincana o dia todo. Os
pilantras querem o troféu. Eles…”
“Esqueci meu fraque. Que tonto. Ritherden deve ter um extra…”
Digby cambaleou para fora da sala com a sensação de que vira um
fantasma. Foi um delírio? Ouviu alguém chamando seu nome.
Também seria obra de sua imaginação?
Ao se virar, deparou-se com Franz Mylin, com dois drinques nas
mãozorras, chegando do bar agora tomado de corpos brancos e
morenos. “Assustei você, Digby? Deixamos nossas coisas em seu
bangalô e viemos direto para cá.”
“Franz! Achei que fosse chegar bem mais tarde.”
“Lena está ali pelo pátio. Por sinal, Digby, espero que não se
incomode, trouxemos uma convidada. O que está bebendo? Segure
esses drinques”, ele disse, sem esperar resposta.
“É meu clube, sabe. Tenho que…”, Digby tentou dizer, mas Franz já
estava mergulhando na multidão que cercava o bar. O médico ficou ali,
parado, com uma taça em cada mão. Franz retornou quase de imediato
com mais dois drinques, sorrindo maliciosamente. “Talvez fossem
daqueles jovenzinhos ali, mas estavam distraídos.”
Saindo do salão, Franz baixou a voz. “Digby, você conhece a filha de
Chandy? Elsie?”
Então ela não era um fantasma. “Claro!”
“Lena está tentando distrair a pobrezinha da tragédia — você sabe
co­mo Lena é.” Vendo a expressão confusa de Digby, ele perguntou:
“Suponho que você tenha sabido, não?”.
“Da morte de Chandy?”
“Não, não… Tome um gole primeiro. Você vai precisar.” Digby,
ainda segurando os drinques, sentiu o corpo gelar quando Franz contou
da morte terrível do filho de Elsie no ano anterior. O aspecto
insondável de Elsie no gramado estava gravado em seu cérebro. “…
Então ela partiu da casa, abandonou o marido.”
Digby sussurrou: “Pobrezinha! E as pessoas ainda acreditam em
Deus?”.
“Uma coisa tremenda”, Franz disse. “Foi Chandy quem levou Rune
para nossas montanhas. Conhecemos Elsie desde criancinha. Fomos ao
casamento dela. Ela está muito mal, Digs. Não quer participar das
atividades da Semana dos Fazendeiros, mas Lena achou que seria uma
boa que ela viesse, ao menos para um passeio.”
Digby seguiu Franz. Nunca tinha se esquecido da filha de Chandy,
de rabo de cavalo, uma artista séria já naquela idade. Nunca tinha
esquecido a atitude solene com que ela encarou sua “desenhoterapia”,
como Rune chamou. Foi esse método que destravou o cérebro e a mão
de Digby, puxando-o de volta para o mundo dos vivos.
Ele pensava nela com frequência. Tinha certeza de que ela teria feito
bom uso de A anatomia de Gray, o presente que ele lhe ofereceu
catorze anos atrás, quando partiu do Santa Brígida. Esperava grandes
conquistas da parte dela, mas ainda assim foi uma surpresa agradável
quando leu no jornal sobre a medalha na exposição de arte em Madras.
Agora ela era a alma ferida. O que dizer diante de tamanha perda?

Quando Lena viu Digby, abriu os braços. Ele a abraçou e não soltou
mais. Havia duas mulheres em sua vida que o viram em seu pior
momento: Lena e Honorine. Ambas, cada uma a seu modo, salvaram-
no.
Elsie esperava ao lado, educadamente, observando. O branco não é
apenas a cor do verão, ele pensou. É também a cor do luto.
“Digs, lembra de Elsie?”, Lena perguntou. Os olhos de Elsie o
hipnotizaram mais uma vez. Ele acolheu a mão longa e esbelta que lhe
era estendida em suas próprias, relembrando a garotinha que enfiou
um lápis de carvão entre seus dedos e amarrou a mão à dele com uma
fita de cabelo. Os dois passearam sem esforço sobre o papel, rompendo
os grilhões que o prendiam! Agora ele sentiu o tempo se dissolvendo, os
anos transcorridos se esfumaçavam. Ela o alcançou, por assim dizer. É
uma mulher feita. Ele precisa falar, precisa soltar sua mão, mas não
consegue fazer nada. Sua mudez comunicava sua dívida, e agora sua
angústia por ela.
Os olhos vazios e sem fundo dela encontraram foco, devolvendo-a ao
presente, os cantos da boca tentando compor um sorriso. Digby teve
uma premonição de perigo, como se ela corresse o risco de cair de um
precipício à beira do mundo.
Foram sentar. Houve um silêncio constrangedor. Franz disse: “Bem,
saúde, Digby. Um brinde a velhas e novas amizades…”.
“Amizades renovadas”, Lena disse.
Um casal veio cumprimentar os Mylins e eles se levantaram. Elsie
lançou um olhar às mãos de Digby. Ele estendeu a mão direita,
flexionou os dedos, e ela sorriu, envergonhada, flagrada no ato de
observá-lo. Estudou a mão de Digby com cuidado, reconciliando-a à
sua lembrança, depois balançou a cabeça em aprovação e olhou com
firmeza para ele. Digby não podia desviar o olhar, não precisava.
Embora dezessete anos mais velho do que Elsie, naquele momento ele
sentia que os dois eram iguais. Ele era um especialista em perdas
trágicas e violentas, e agora ela se juntara às suas fileiras. O médico
conhecia uma verdade simples: não havia nada que ninguém pudesse
dizer para curar aquela dor. Era preciso, simplesmente, viver. Nesses
momentos os melhores amigos eram aqueles que não tinham nenhum
plano além de se fazerem presentes, oferecendo-se a si mesmos, como
Franz e Lena fizeram por ele. Digby agora fazia o mesmo, em silêncio.
Passado um momento, ele falou. “Alguns anos atrás vi suas pinturas
numa exposição em Madras. Deveria ter escrito para dizer como eram
esplêndidas.” Aconteceu de ele visitar Madras na época da exposição.
As obras de Elsie tinham sido vendidas, mas no dia da visita ele
descobriu que um dos compradores desistira, então Digby comprou o
quadro. Era o retrato de uma mulher gorda de seus cinquenta ou
sessenta anos, sentada numa poltrona, com ares de imperatriz; trajava
as vestes tradicionais dos cristãos malaialas, chatta e mundu brancos, e
tinha um grande crucifixo de ouro descansando sobre seu delicado
kavani. O cabelo preso de uma forma tão severa que parecia lhe erguer
a ponta do nariz. O espectador via algo dissonante ou pretensioso em
sua pose, uma falsidade em seu sorriso e nos olhos. O poder da pintura
vinha da incapacidade da modelo de perceber que o retrato a revelava.
“Acabei de rever meu quadro em sua sala de estar”, Elsie disse,
sorrindo. Ele esperou, mas aquilo foi tudo.
“Como é rever uma obra sua tanto tempo depois?”
Um traço passageiro de prazer cruzou-lhe o rosto, uma emoção que
ela não sentia havia um bom tempo. Elsie ponderou a questão. “Foi
como… me deparar comigo mesma numa floresta.” Ele riu, um som
vazio. “Faz sentido?” Digby fez que sim com a cabeça. Os dois falavam
baixo. “Depois que superei a surpresa, fiquei contente. Geralmente
quero consertar certas coisas. Mas fiquei satisfeita… Também sabia que
a artista já não era a mesma pessoa. Se eu pintasse aquele quadro de
novo, talvez saísse bem diferente.”
Ela olhou para as próprias mãos, que continuavam no colo.
Digby disse: “Uma obra de arte nunca fica pronta. Ela é
abandonada, só isso”. Ela o encara, surpresa. “Foi o que disse Leonardo
da Vinci”, ele acrescentou. “Ou talvez Michelangelo. Ou talvez eu
tenha inventado.”
Foi um prazer ouvir a risada dela, como uma criança solene caindo
numa armadilha. Digby riu também. Quando se vive sozinho, a risada
mais alta passa despercebida e, portanto, não é melhor do que o
silêncio.
Elsie, ele pensava, não tinha mácula no exterior. Perfeita. Suas
cicatrizes, suas queimaduras e suas contraturas estavam todas no
interior, invisíveis… a não ser que olhássemos para seus olhos: então
era como mirar dentro de um lago calmo onde aos poucos
discerníamos o carro afundado, com os ocupantes presos. Você não está
sozinha, ele quis dizer. Elsie devolveu-lhe o olhar e não virou o rosto.
82. A obra de arte

gwendolyn gardens, 1950

Naquela noite o bangalô estava vivo, ocupado pelos quatro, as luzes


dos quartos todas acesas. A toalha de mesa de Jaipur, de estampa
vermelha, era como uma fogueira em torno da qual eles se reuniam.
Depois que retiraram a louça do jantar, demoraram-se por ali, a
conversa, o riso e os drinques fluindo. Elsie continuou silenciosa, mas
parecia acalentada pelas vozes dos convivas.
Na manhã seguinte, ela não apareceu para o café da manhã. Lena e
Franz partiram para a abertura do evento. Digby ficou no bangalô.
Quando Elsie apareceu, lá pelas onze, bebeu chá, recusando os ovos
com salsicha. “Você não precisava se dar ao trabalho”, ela disse. Tinha
lavado e trançado o cabelo e usava um sári verde-claro. As sombras sob
seus olhos sugeriam que a noite fora difícil. Talvez todas as noites o
fossem.
“Não foi incômodo algum.” Ele viu que ela estudava os pães na
frigideira. “É bannock. Franz comeu um batalhão desses, mas deixou
alguns. É uma velha receita escocesa, apenas farinha, água e manteiga.
Cromwell e eu vivíamos disso quando acampávamos por aqui, na época
em que derrubamos a velha casa de Müller. Havia fantasmas demais.
Eu fazia bannock na fogueira. Aqui, experimente”, ele diz, preparando
uma cobertura de manteiga e marmelada. Ela pôs na boca e balançou
a cabeça, aprovando.
“Gosto desses janelões”, ela diz. “Ótima luz.” Ele ficou satisfeito com
a aprovação dela. Depois ela se serviu de outro pedaço de pão e
acrescentou mel. Ele pensou em dizer que o mel era de sua
propriedade, mas não quis quebrar o feitiço. “Você não deveria ir para o
encontro?”, ela perguntou, baixinho, com sua voz grave e peculiar.
“Não vão sentir minha falta. Não frequento comitês, como Franz e
Lena.”
“Gwendolyn Gardens?”, ela diz, mastigando. “O nome de sua
propriedade…”
“Minha mãe”, ele disse, simplesmente. Por um instante, a mãe se fez
pre­sente na sala, aprovando tudo. Elsie assentiu. Digby estava pensando
no retrato que os dois desenharam juntos. O retrato dela. Talvez ele lhe
fale disso em outro momento.
“Elsie, estava pensando…” Ele não tinha pensado nada, estava
inventando, como um cirurgião que sonda com um dedo coberto de
gaze, buscando um tecido operável. “Você me acompanharia numa
caminhada?”

Ele a levou à parte oeste da propriedade, seguindo por uma alameda


que cruzava uma vegetação alta onde duas espécies de borboleta, o
corvo-do-malabar e a rosa-do-malabar, faziam seus passeios — jamais
juntas. Digby fantasiava que aquelas borboletas eram suas, ou criações
suas. Em resposta à sua súplica silenciosa, uma rosa-do-malabar voou
diante deles, o vermelho vívido de seu corpo delgado acentuando as
asas pretas como carvão. Digby parou de repente, e Elsie trombou nele,
a maciez dela esbarrando em suas costas ossudas. A borboleta era
lustrosa, ágil, com asas em cauda de andorinha que para Digby eram
como as tampas dos motores de um avião. Elsie se aproximou para
olhar.
Catadoras de chá, conversando, aproximaram-se, e a rosa-do-malabar
voou para longe. Vendo os dois, as mulheres se puseram tímidas e
mudas. Ao passarem, Digby sentiu que uma força vital e telúrica
emanava delas, como um vapor. Elsie pareceu saborear aquela força.
Elas ocultaram seus sorrisos com os panos soltos e esvoaçantes que
cobriam suas cabeças, e por educação mantiveram os olhos baixos.
Digby, juntando as mãos, murmurou: “Vanakkam”, pois suas
trabalhadoras eram tâmeis do estado vizinho. As mãos de Elsie também
se juntaram no mesmo gesto. As mulheres responderam, afoitas, com
vozes animadas, os panos de cabeça caindo e revelando sorrisos
tímidos. Aproveitaram também para surrupiar um vislumbre da bela
convidada de Dig­by. Elas desapareceram na luz clara do dia, sob o
olhar de Elsie.
“A luz aqui… é tão especial”, ela disse. “Quando criança, achava que
fosse porque ficava mais perto do céu. Me referia a ela como a luz dos
anjos.”
Seguiram montanha acima por uma velha trilha de elefantes. O
bangalô ficava a mil e quinhentos metros, e eles escalaram mais cento e
cinquenta. Digby ficou sem fôlego. Será que deveria ter prevenido
Elsie? Ele não se virou para ver como ela estava. Era melhor deixá-la
em paz. Aquele fora o método de Cromwell quando Digby apareceu
com queimaduras no chalé dos Mylins em AllSuch. Guiar quieto.
Deixar a natureza falar.
Ofegavam quando chegaram ao afloramento de rochas brancas que
se projetava qual mão que dá bênçãos ao vale abaixo. Os nativos o
chamavam de Trono da Deusa. Em outros tempos, peregrinos
quebravam cocos no topo, deixavam flores e espalhavam pasta de
sândalo. Digby ofereceu sua garrafa a Elsie, que bebeu alguns goles
ávidos, o rosto brilhando do esforço. Em nenhum momento ela tirou os
olhos da vista deslumbrante.
Sempre que Digby ficava ali, imaginava-se empoleirado na barriga
da Deusa, lançando um olhar para além de suas coxas — para o vale
verdejan­te que se abria entre seus joelhos e que, mais adiante, à altura
dos distantes tornozelos, transformava-se nas planícies empoeiradas.
Torcia para que Elsie achas­se que a vista valia aquela escalada.
Antes que pudesse alertá-la (e quem mais precisaria ser alertado,
senão uma criança?), Elsie deu alguns passos para a beira do
afloramento, parando ali como um mergulhador numa prancha
elevada. Volte! Ele abafou as palavras, temendo assustá-la e provocar
sua queda. Em todos os anos em que visitou aquele lugar, Digby jamais
sonhou em chegar tão perto do precipício.
Digby se esgueirou, aproximando-se alguns centímetros à esquerda
de Elsie, para que ela o percebesse. Forçou-se a se mostrar
exteriormente calmo, enquanto lutava contra a adrenalina e todo o
medo em seu interior. Ela com certeza ouvia sua respiração, pois ele
ouvia a dela, como via seus ombros subindo e descendo, sua escápula
projetando-se e repousando a cada respi­ração. Muito devagar, ela se
inclinou e olhou por sobre os dedos dos pés, hipnotizada pelo convite
lá debaixo. Digby prendeu a respiração. Uma brisa ergueu o pallu do
sári de Elsie, que ondulou por sobre seu ombro, uma bandeira verde.
Elsie virou as faces para o céu, que a banhou de luz angelical. A
expressão em seu rosto era radiante, seus olhos prateados cintilavam.
Ele seguiu o olhar dela e viu um gavião ascendendo numa corrente de
ar.
Ela afastou os braços do corpo e virou a palma das mãos para cima,
como para receber uma bênção, ou a fim de imitar o gavião. Digby
seguia prendendo a respiração. Estava a um passo dela. Se tentasse
agarrá-la e errasse, provocaria sua queda. Se ela resistisse, os dois
mergulhariam para a morte. Ele suplicou à Deusa do Trono, ou a
qualquer deus que o escutasse, implorou que ignorassem a falta de fé
do suplicante, seu desprezo por todos os deuses, e preservassem a vida
dessa mãe desolada. Em silêncio, ele se dirigia a Elsie. Por favor, Elsie.
Acabei de encontrá-la. Não posso perdê-la.
Depois de uma eternidade, a mão esquerda de Elsie buscou,
hesitante, o apoio de Digby, e a mão direita dele logo se estendeu a seu
encontro, como se as mãos soubessem o que a cabeça ignorava. Seus
dedos se entrelaçaram, e ele a conduziu para longe do precipício
traiçoeiro. Pé ante pé. Em seguida ele a virou para que ela o encarasse,
a respiração dos dois e o vento do vale pulsando em uníssono. As pernas
dela imitavam as dele, num tango arrancado à beira da morte. O corpo
de Elsie tremia.
Digby tinha certeza de que Elsie pensou em pular, que pretendia
envergonhar Deus, constranger o charlatão sem vergonha que se
mantinha de braços cruzados quando crianças caíam de árvores,
quando sáris de seda pegavam fogo; ela se imaginara zarpando com asas
desfraldadas, tal como o gavião, ganhando velocidade até alcançar
aquele lugar onde toda dor cessava. Digby se viu tomado de fúria,
tremendo de raiva. Como você sabe que iria para um lugar melhor?,
pensava. E se você fosse para um lugar onde o horror que te assombra se
repete a cada minuto?
Elsie o encarava, lendo seus pensamentos. Chorava em silêncio. Ele
enxugou suas lágrimas com o polegar. Digby desceu do afloramento
primeiro. Depois, quando Elsie se inclinou para ele e apoiou as mãos
sobre seus ombros, ele a ergueu pela cintura num gesto vigoroso, como
se ela não pesasse mais do que uma pena… e então a abraçou com
força, puxou-a para si tomado de raiva, alívio, amor. Nunca deixarei
você cair, nunca deixarei você partir, não enquanto eu viver. Ela afundou
o rosto no peito dele, seus ombros tremendo enquanto ele a apertava
contra si, abafando os soluços terríveis e dolorosos.

No caminho de volta, sentiam-se livres de todo peso. Elsie, se você


deu as costas à morte, significa que escolheu viver. Se havia um corvo-do-
malabar, ele não procurou. A natureza já falara demais. Agora era a vez
de Digby Kilgour, e ele não podia se conter.
Ele contou da gravata escolar ferindo o pescoço da mãe. Quando
falou do amor pela cirurgia, era no idioma de um homem enlutado
pela morte de seu maior amor. Depois descreveu outra perda, a de sua
amante, Celeste, uma dor agonizante, morte pelo fogo. Quando
menino, ficava confuso que a palavra “confessor” se aplicasse tanto
àquele que ouvia quanto a quem admitia os pecados. Agora fazia
sentido, pois os dois eram um só, andando de mãos dadas, juntos, sem
necessidade de fitas de cabelo ou lápis de carvão. Mesmo quando a
trilha os forçava a caminhar em fila, nenhum dos dois largava a mão do
outro, e ele também não interrompia sua narração. Descreveu os meses
de desespero, as ocasiões em que a desesperança o assaltou novamente,
e o desejo de pôr fim a tudo, tal como ela desejara. “O que te
impediu?”, Elsie perguntou, falando pela primeira vez.
“Nada me impede. Dobro uma esquina e lá está de novo, a opção de
continuar ou não. Mas não estou convencido de que, pondo fim à vida,
ponho fim à dor. E o orgulho me impede de me retirar do mesmo
modo de minha mãe. Havia pessoas que a amavam, que precisavam
dela. Eu precisava dela!” As últimas palavras foram como uma
explosão.
Digby ficou em silêncio por alguns passos, até que parou de andar e
se virou para Elsie. Muitas vezes pensara nela; sabia que ela havia
crescido, casado, e no entanto a imagem inscrita em sua memória era a
da estudante de dez anos que destravou sua mão, a estudante cujo
talento artístico, cujo gênio, era evidente. A mulher adulta diante dele,
agora com seus vinte e cinco anos, órfã, separada tão cruelmente do
filho, parece-lhe alguém completamen­te diferente. Se essa é Elsie,
então ela apagou os dezessete anos que os separam. Talvez o sofrimento
compartilhado fizesse aquilo. “Elsie, aquele retrato que desenhamos no
bangalô de Rune, com nossas mãos enlaçadas? Aquela bela mulher era
ela. Era o rosto de minha mãe tal como eu precisava guardar na
memória. Ver a imagem que fizemos juntos no papel me libertou da
grotesca máscara da morte que eu levava havia tanto tempo na cabeça,
a última imagem que tive dela. Elsie, o que estou tentando dizer é que
você me recompôs. Estarei sempre em dívida com você.”
Ela apertou as duas mãos dele, aquelas garras ainda funcionais, que
faziam tudo que lhes era possível. Sondou a marca da cicatriz na mão
esquerda, a marca do Zorro, pressionando-a. Manipulou cada dedo
como uma médica, determinando os limites de extensibilidade — um
exame clínico, mas feito por uma artista. Então ergueu aquelas mãos,
primeiro uma, depois a outra, e beijou cada palma.

No dia seguinte Elsie dormiu até tarde, mas reapareceu com um ar


de quem havia descansado. Envergonhada, mostrou a Digby uma
bolha no calcanhar.
“Não deveria ter deixado você andar tudo aquilo de sandália.”
Digby cortou a pele da bolha com uma tesourinha, depois tratou a
ferida com sulfonamida. Ela observou tudo, interessada. “Dói?”, ele
perguntou. Elsie fez que não com a cabeça, e ele pôs uma gaze sobre a
ferida avermelhada.
“Digby, você não precisa ir para o encontro?”
Ele pensou no que responder. “Prefiro ficar com você”, disse, sem a
encarar. Era verdade. Ela não disse nada. Os dois agora tinham um
novo jeito de estar um com o outro.
Em vez de levá-la para uma caminhada, Digby guiou Elsie para seu
lugar favorito na casa: três terraços em semicírculo, talhados no declive,
como um anfiteatro ao ar livre, bem em frente ao bangalô. Um
perfume doce veio ao encontro de suas narinas. As amadas roseiras de
Digby haviam sido plantadas ao longo de cada terraço, como um
público colorido, contemplando o vale em roupas de domingo. Ele a
conduziu como se por uma guarda de honra, apresentando-a à paleta
de aromas, começando com os lírios, seus favoritos, cujo cheiro
lembrava o das violetas; depois, uma rosa com cheiro de cravo; por fim,
os nastúrcios. “Busco aromas mais do que cores.”
Sentaram-se. Elsie virou-se para apontar um obelisco de pedra no
extremo de um dos terraços. “O que é aquilo?”
“Ah, o Porteiro. Era para ser um dançarino. Mas a pedra quebrou.” A
presença de Elsie animava Digby, imprimindo significado àqueles
artefatos insignificantes de sua vida. “Michelangelo disse que toda
pedra tem uma figura aprisionada dentro dela. Esta aqui”, disse ele,
dando um tapinha no banco sobre o qual os dois estavam sentados,
olhando de novo para as rosas, “esta pedra, pensei que fosse um
elefante. Porém me enganei. Seu destino era ser um banco.”
Ela riu e se pôs de pé para examinar.
“Digby”, ela disse, e ele captou seu entusiasmo. “Onde você faz essas
peças?”

Antes galpão para curagem, seu ateliê guardava pilhas de molduras,


velhos equipamentos de soldagem e uma cortina corta-fogo, mas não
acetileno; em um cantinho bagunçado, o piso tinha rebordos e
manchas de respingos de concreto.
Em seu terceiro ano nos Gwendolyn Gardens, concluída a
construção da estrada de gate, Digby se viu possuído por uma profunda
melancolia. Era o tempo das grandes chuvas. Não conseguia sair da
cama. Cromwell decidiu agir e o obrigou a se levantar, vestir roupa de
chuva e marchar pelo campo sob intenso aguaceiro, até o outro
extremo da propriedade, onde um desabamento na encosta ameaçava o
dique de irrigação. Os dois cavaram valas de drenagem. “Cromwell me
pôs para trabalhar partindo lenha. ‘Seja útil’, ele dizia. Cortei lenha
para três monções. E a certa altura percebi que uma das lascas de
madeira tomou a forma de um soldadinho de brinquedo. Tentei refiná-
la e terminei com um palito de dente. Mas tudo bem. O que me
animava era usar as mãos. Rune citava a Bíblia: ‘Tudo que lhe vier à
mão para fazer, faça com vontade, pois, na sepultura, para onde vamos,
não há trabalho, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria
alguma’. Cromwell não conhece a Bíblia, mas descobriu o mesmo
princípio. Da madeira, passei à pedra calcária. Mas, sem paciência,
voltei às aquarelas.”
“Digby”, Elsie disse. “Desde a morte de Ninan, sinto vontade de usar
ferramentas grandes. Como uma marreta, uma escavadora… ou
dinamite.”
“Ainda estamos falando de arte?”
“Quero que minhas mãos façam coisas grandes. Como essa vista. Ou
maiores.”

Ele a deixou no ateliê. Virou-se para olhá-la da porta e gostou de ver


sua transformação. Ela estava com um avental de pintora, uma
bandana, óculos de proteção, postada diante de uma laje de calcário,
martelando com a mão direita enquanto a esquerda movia o cinzel. Os
golpes rapidamente tornaram-se decididos, abrindo um veio, deixando
um belo naco de pedra tombar. Em pouco tempo o topo da laje
ganhou a forma de um cilindro rústico. Elsie trabalhava animada, com
uma fúria controlada que Digby não previra.
Quando ele voltou do encontro dos fazendeiros ao final da tarde,
ouviu o martelo ainda repicando. De início ela não percebeu a
presença dele. Uma película de poeira polvilhava seu cabelo e cada
centímetro de sua pele. Assim que tirou o avental, os óculos e a
bandana, seu rosto era outro, liberto do terrível desânimo. Caminharam
juntos para casa.
Elsie contemplou suas mãos. “Digby, você pagou sua dívida.”
Nos dias seguintes ele participou do que restava da Semana dos
Fazendeiros, mas cabulou os eventos sociais noturnos.
Na véspera da partida dos hóspedes, Digby foi bater à porta de Franz
e Lena. Lena lhe disse que entrasse. O casal tinha se trocado para as
festividades noturnas e estava pronto para voltar ao clube. Franz estava
de pé, enquanto Lena, sentada na beirada da cama, estava às voltas
com uma pequena bol­sa. Seus rostos voltaram-se para ele, cheios de
expectativa. Vendo a expressão de Digby, esperaram, mudos.
Digby sentiu que enrubescia. “Lena? Franz? Se… Se Elsie quiser
ficar por aqui”, Digby gaguejou, “ficarei feliz em levá-la de volta,
quando ela estiver pronta. Para vocês. Ou para onde ela precisar ir.” Ele
tinha certeza de que seu rosto agora estava vermelho. “O caso é que…
Vocês podem ver a diferença que fez para ela. Esculpir, digo.”
“Pode ser mais do que esculpir, Digs”, Lena disse.
Marido e mulher trocaram um sinal. Franz se retirou com um
tapinha no ombro de Digby.
Lena falou: “Digby, você perguntou a Elsie o que ela quer?”. Ele fez
que não com a cabeça. Lena escolhia as palavras com cuidado. “Digs?
Não sei o que é melhor para ela. E, sim, eu vejo. É um milagre. Ela
encontrou uma razão para continuar.”
“Sim, Lena! O caso é que…”
“A razão pode ser você, Digs.”
Digby se jogou na cama, ao lado de Lena, os cotovelos cravados nos
joelhos, as mãos na cabeça. Lena o abraçou.
“Digby, você está apaixonado por ela?”
A pergunta o pegou de surpresa. Sua língua preparou-se para negar
de imediato. Mas aquela era Lena, sua “irmã de sangue”, como ela
dizia. Ele olhou para as próprias mãos, como se a resposta residisse ali.
Lentamente, aprumou-se e olhou a amiga nos olhos.
“Ah, Deus, Digs. Bem, talvez ela esteja apaixonada por você
também. Mas ela está tão frágil. E vulnerável. E não se esqueça de que
ela já é…”
“Lena”, ele interrompeu, sem querer ouvir a palavra que ela estava
prestes a pronunciar. “Mesmo que eu estivesse, mesmo que eu esteja…
Mesmo que eu a ame, que importa? Não espero que dê em nada.
Tenho quarenta e dois anos, Lena, sou um solteiro convicto. Dezessete
anos mais velho. Mas se ficar em Gwendolyn Gardens puder ajudar
Elsie a curar suas feridas, ao menos posso oferecer isso a ela. Ela está se
redescobrindo pelo trabalho. Pode ser sua salvação.” Lena apenas o
olhava, como se não ouvisse. “Lena, se você teme a possibilidade de eu
não me portar como um cavalheiro, prometo…”
“Ah, Digby, pare.” Os olhos dela estavam úmidos. Ela fez um
carinho no rosto dele, depois lhe deu um beijo suave e disse, com
doçura: “Não prometa. Seja você mesmo. Seja bom. Verdadeiro. E não
seja um cavalheiro”.

No dia seguinte, Elsie não saiu do ateliê. Ele não a solicitou. Nada
havia mudado. E tudo havia mudado. Os dois estavam sozinhos.
Ele esperou até quando pôde para chamá-la para o jantar. Ao se
aproximar do barracão, não ouviu o som das marteladas. Em pânico,
galgou os últimos metros correndo. Encontrou-a do lado de fora,
sentada no banco, olhando o céu que ficava rosa.
Sentou ao lado dela, sem fôlego, mas disfarçando. Elsie sorriu, mas
parecia triste. Que estupidez a minha. Por acaso uma escultura apagaria
a memória dela? Ela recostou a cabeça no ombro dele.
Depois de um jantar silencioso em que os dois apenas remexeram a
comida no prato, ele disse: “Antes de você dormir, quero te mostrar um
dos meus quadros favoritos”.
Do segundo andar passaram a uma água-furtada, depois subiram
uma escada até a cobertura, onde havia duas cadeiras reclináveis.
Digby lhe ofereceu um xale contra a brisa fria. O cozinheiro deixara
uma garrafa de chá quente, misturado com cardamomo e uísque.
Gradualmente, à medida que seus olhos se ajustavam, o manto escuro
da noite revelou as joias bordadas em seu tecido. Depois, passado mais
um tempo, estrelas menorzinhas apareciam, como crianças tímidas
espreitando por trás do vestido da mãe. Sobre os dois, Órion
empunhava seu arco. Ficaram em silêncio por um bom tempo. Ele a
viu traçar um desenho no céu com um dedo, como se a pluma
esvoaçante da Via Láctea fluísse da ponta de seu dedo. Ela parecia em
êxtase, olhando para o alto, muda.
Ele lhe entregou um copo e serviu o chá.
“Quando eu era menino em Glasgow”, ele disse, “subia no telhado
se o céu estivesse claro — o que não acontecia com muita frequência.
E eu conseguia ver a Estrela Polar. Isso me consolava. Meu ponto fixo.
Depois que minha mãe morreu, não consegui mais acreditar em Deus.
Mas as estrelas? Elas seguem ali. No mesmo lugar. Tornaram
irrelevante a ideia de Deus. Subo aqui no verão, quando as noites são
claras. Olho para cima por horas a fio. Às vezes me pergunto se essa
nossa vida não é um sonho. Talvez eu nem esteja neste mundo.”
“Se você não está aqui, então estou em seu sonho”, Elsie disse. E
acrescentou, baixinho: “Obrigada, Digby. Por tudo”.

Na manhã seguinte ele a encontrou de pernas cruzadas no carpete


da biblioteca, o sol entrando pelas janelas altas, dourando-lhe o cabelo.
Um de seus livros de arte in-fólio estava aberto, apoiado de pé diante
dela.
“Digby!”, ela disse, olhando para cima. O prazer em sua voz quase o
fez engasgar. Ele sentou ao lado dela, e juntos contemplaram a
fotografia do Êxtase de santa Teresa, de Bernini. “Veja o anjo e a santa.
Próximos mas separados. Porém tudo isso feito a partir de uma única
pedra. Vê o tecido esvoaçante, o movimento? Como é possível? Como
ele olhou para a pedra e imaginou isso?” Ela agora sussurrava. “Ele fez
essa escultura para um espaço na igreja onde o sol jorrava por uma
claraboia no domo. É magia pura. Ah, Digby, se eu pudesse ir a Roma
amanhã, eu iria.”
“Você pode, Elsie.” Vamos. Ela o encarou. Depois riu. Mas viu que
ele não sorria. Lentamente, lágrimas brotaram nos olhos de Elsie.
Digby se levantou e voltou com duas xícaras de café. Elsie disse:
“Ontem tentei corrigir o que era melhor ter deixado quieto, e um lado
da pedra de­sabou”.
“Ah, que pena!”
Ela sorri, achando graça da expressão de Digby. “Está tudo bem.
Seja lá que santo estivesse aprisionado naquela pedra, era diferente do
que eu tinha em mente. Temos que nos livrar dele. Eu é que lamento
desperdiçar uma pedra tão boa.”
“Não se preocupe. Vou guardá-la para mim. Quando você for ainda
mais famosa, todos vão querer sua primeira escultura. Mas não vou
vender. Por sinal, os Gwendolyn Gardens estão sentados sobre uma
montanha de calcário. Vamos à pedreira e você escolhe o que quiser.”

Elsie retomou o trabalho, agora com uma pedra maior e oblonga.


Digby só a viu no café da manhã e no jantar. O cozinheiro lhe enviou
um almoço, mas ela mal tocou na comida.
Depois do jantar, a rotina dos dois agora era subir para a cobertura e
ficar por lá até que o frio os expulsasse. Até quando as noites seguiriam
estreladas? Digby sempre insistia em tomar a dianteira para descer a
escada, ajudando-a a sair do último degrau, e então segurava sua mão
até que os dois chegassem à porta do quarto dela, quando ele lhe
desejava boa-noite. Toda noite, ao seguir para seu quarto, ele dizia a si
mesmo: Esteja preparado, Digby. A partida dela pode ser tão súbita
quanto a chegada. Esteja preparado.
Certa noite, a vista dos dois foi atrapalhada por tênues nuvens, às
quais se seguiram outras mais densas que obscureceram as estrelas. Não
desistiram, até serem expulsos por gotas de chuva. A escada estava
escorregadia. À porta do quarto de Elsie, Digby disse boa-noite, mas ela
não soltou sua mão. Caminhou para trás, conduzindo-o para dentro e
fechando a porta. Esteja preparado, Digby.
83. Amar os doentes

gwendolyn gardens, 1950

Mas ele não estava preparado para perdê-la. Não depois daquela
noite. Não quando a carta chegou, encaminhada da casa Thetanatt
para a casa dos Mylins e de lá para Digby, que sentiu um arrepio ao ver
o envelope. Ele fora agraciado com o período mais abençoado de sua
vida. Nunca diga que um homem é feliz antes de sua morte.
Quando Elsie terminou a carta, estava com o cenho franzido. “É
Bebê Mol. Está doente. Pode morrer.”
“De quê?”
“De coração partido, pelo que parece. Além dos problemas
pulmonares. Ela viu meu filho morrer, e depois eu parti… A carta é de
minha sogra. Amma­chi diz que ela se recusa a comer. E pergunta por
mim.”
Elsie não falou mais nada, e Digby não perguntou. Mas foi como se
um tonel de tinta nanquim tivesse sido vertido dentro do reservatório
de águas claras onde nadavam. Escureceu o espírito de Elsie. A névoa
tomava o céu toda noite, e agora fazia frio, ventos ameaçadores
chacoalhavam as janelas à noite. A cobertura estava fora de cogitação.
Quando os dois começaram a compartilhar a cama, muitas noites ele
percebia o corpo dela tremendo em silêncio ao lado do seu, e ele a
abraçava, procurando confortá-la. Certa ocasião, passado o choro, ela
disse: “Foi só por estar aqui, Digby, que senti minha raiva diminuir um
pouco. Meu ódio, até. Mas ele não se foi. A tristeza nunca passará. Sei
que ele amava nosso filho. E que sente tanta dor quanto eu. E uma
culpa maior, se é que é possível. Sei que não faz sentido culpá-lo, e ele
também não deve me culpar. Sei de tudo isso, porém saber dessas
coisas não resolve nada”. Mais tarde, Digby se perguntou se ela tentava
prepará-lo para sua partida. Não havia nada que pudesse fazer.
No dia em que a carta chegou, os dois sentaram perto da lareira e ele
compreendeu que ela havia tomado uma decisão. “Não posso deixar
Bebê Mol morrer por minha causa. Não, se pretendo continuar
vivendo.” Ele não disse nada, esperou. “Digs, não falamos a respeito do
futuro. Apenas vivemos um dia de cada vez. Aqui pude respirar, viver e
querer viver, sentir amor, quan­do já não achava ser possível. Sei que
não posso ficar em Parambil. São memórias demais, e muita raiva e
culpa. Tenho medo de voltar. Mesmo antes de Ninan morrer, mesmo
quando as intenções de Philipose eram as melhores, por alguma razão,
sempre que ele tentava fazer algo bom para mim, o resultado era o
oposto.” Ela suspira. “O que estou tentando dizer é que vou apenas
fazer uma visita. Se você me aceitar, voltarei. Não existe outro lugar,
outra pessoa com quem gostaria de estar.”
Digby desejara aquelas palavras ardentemente. E agora se esforçava
para acreditar nelas, pois ele era um especialista em decepções. A única
proteção possível contra elas era antecipá-las. Tentar segurar as pessoas
amadas era uma receita para a frustração. Nutrir qualquer tipo de raiva
por elas era igualmente inútil.
Ele não procurou embelezar seus pensamentos, falou com ela com a
mesma honestidade de sempre: “Não tenho voz em sua escolha, Elsie.
Se seus sentimentos mudarem quando estiver por lá, se resolver ficar,
aceitarei. Terei que aceitar. Então os sentimentos que expresso agora
não pretendem con­finar você. Eu… Bem, eu te amo. É isso. E digo
não para impor um fardo, mas para que você saiba. Sim, quero que
volte. Quero ver Roma e Florença com você. Quero passar o resto da
vida a seu lado”.
Ela cobriu o rosto com as mãos. O brilho do fogo brincou com o
dorso de seus dedos, reluzindo em seu cabelo. Ele agiu mal em dizer
aquelas coisas? Quando ela tirou as mãos do rosto, ele viu que era
justamente o oposto.
“Digs, preciso partir amanhã, antes que eu mude de ideia. E, assim
que Bebê Mol melhorar, eu volto… Se você tem certeza.”
“Se você voltar, talvez eu acredite que Deus existe.”
“Não existe, Digs. Existem as estrelas. A Via Láctea. Deus, não. Mas
voltarei. Nisso você pode acreditar.”

Digby a levou de carro pela estrada de gate, os ouvidos dos dois


tapados na descida. Depois seguiram para o sul pelo vale, passando por
Trichur e Cochim, vila após vila, parando várias vezes para comer e se
esticar, até que sete horas depois ele passou pelo Santa Brígida. Em
outra ocasião, talvez até fizesse uma visita, antes de levar Elsie para
casa. Contudo, muitos anos haviam se passado. O rebanho talvez fosse
outro… e seu coração estava pesado demais.
“Me deixe um pouco antes do portão”, ela disse, quando se
aproximaram da casa Thetanatt; o motorista dela a levaria dali para
Parambil.
Ela deslizou os dedos pelo assento para tocar os dele, acariciando-os
discretamente, ciente de que os dois podiam estar sendo observados.
Digby sentiu que tombava dentro de uma grande escuridão, incapaz de
ignorar a premonição de que, apesar de suas intenções, ela jamais ia
retornar.

Pela primeira semana, pela segunda, e depois por boa parte da


monção interminável, ele manteve a esperança. As linhas telegráficas
caíram, tre­chos da estrada foram devastados. Mesmo se ela o
convocasse, ele não poderia buscá-la. No entanto, Digby sentia que
Elsie de alguma forma tentava alcançá-lo. Ela o chamava à noite. A
destruição que assaltava Travancore, Cochim e Malabar era de
proporções bíblicas. Mas não duraria para sempre. E não durou. Um
dia o sol apareceu e as linhas telegráficas foram restauradas. Os
deslizamentos foram contornados. Por fim, o correio retomou a
normalidade. A monção havia acabado. Semanas, depois meses,
passaram. Ela não voltará. E dei minha bênção para que ela fizesse isso.
Digby mergulhou num abismo, numa tristeza profunda. Estava vivo,
porém era como se a vida tivesse acabado. Procurou lembrar que
aquelas montanhas já o haviam salvado uma vez. Exteriormente, era o
mesmo de sempre, chegava até a ir ao clube vez por outra. Mas novos
ferimentos o machucavam. A felicidade advinda do amor era, por
natureza, passageira, evanescente. Nada durava, exceto a terra — o solo
—, que sobreviveria a todos eles.

Oito meses e três dias depois da partida de Elsie, Cromwell partia a


cavalo para entregar uma carta a Digby nos campos de café. Sem saber
ler em inglês, ele de alguma forma intuiu que aquela mensagem, ao
contrário das outras, era a carta tão esperada, ainda que Digby já não
tivesse esperanças. Àquela altura Digby estava convencido de que não
voltaria a ter notícias dela. Até se sentia grato pela amputação cirúrgica,
encerrando tudo sem explicações, sem súplicas ou correspondências
delicadas, que só prolongariam a tortura. Ver a caligrafia dela o irritou.
Por que ela destruiria o equilíbrio que ele buscara tão dolorosamente?
Um homem mais altivo talvez deitasse fora a carta, pois aquele trem já
zarpara havia muito tempo. Mas ele não.

Querido Digs,
Sinto muito não ter escrito. Ficará claro para você quando eu o
encontrar. Se eu o encontrar. Escrevo às pressas. Não pude escrever
antes, pois, como você sabe, as inundações nos ilharam. Digby, a
razão pela qual permaneci aqui mesmo depois da monção é também o
motivo pelo qual de­vo partir agora. Acabei de ter uma filha, Digby.
Quero mais do que tudo alimentar, segurar, criar e amar essa criança.
Mas, por ela, preciso partir agora. Contarei tudo pessoalmente. Ela
corre risco, se eu ficar. Estará mais segura com a avó, e com aqueles
aqui que a amarão, embora eu a ame mais do que todos eles seriam
capazes. No entanto, minha permanência a expõe a um perigo.

Digby precisou estender a mão e buscar apoio em Cromwell, que


continuava a seu lado. É minha criança, minha filha! Só pode ser. Mas
por que ela corria perigo, se Elsie ficasse? Isso significava que a própria
Elsie estava em perigo. Queria pular no carro e acelerar até ela.
Continuou lendo, ainda apoiado em Cromwell, que seguia ali,
paciente.
Não tente vir aqui ou me escrever. Por favor, confie em mim. Explicarei
quando nos encontrarmos. Pretendo partir dia 8 de março, às sete da
noite, pelo entardecer. Entrarei no rio e flutuarei até o entroncamento
em Chalakura, nas redondezas do vilarejo. Me espere no lado norte da
ponte. Não há lojas nem casas naquele trecho, e à noite deve estar
deserto. Cruzarei essa ponte, no mais tardar, às oito. Torço para ver
seu carro. Por favor, traga roupas secas. Se vier, explicarei tudo. Se não
aparecer, entenderei. Você não me deve nada.
Com amor,
Elsie

Oito de março era o dia seguinte. Ele partiu em menos de uma hora,
dirigindo sozinho, contra as extenuantes objeções de Cromwell, a
quem Dig­by relatara tudo.
Uma criança. Sua criança. Na primeira vez que fizeram amor
estavam envolvidos demais para pensar numa gravidez. Depois disso,
procuraram ser cuidadosos. Mas também foram embalados por certa
complacência, como se, na bolha mágica dos Gwendolyn Gardens,
nada que se opusesse à vontade deles jamais fosse acontecer.
Mas por que Elsie não voltou tão logo as estradas foram liberadas?
Um atraso de dois, até três meses, era compreensível, mas por que oito?
Ela esteve em cativeiro? Por que não traria o bebê? Por que uma fuga
tão perigosa? Os porquês não paravam de cruzar sua mente. Em algum
momento terão de retornar para buscar a filha. Por favor, confie em
mim. Ele tinha que confiar.

Digby alcançou a ponte naquela noite, parou e examinou as


redondezas. Depois se alojou no bangalô estatal a oito quilômetros dali
e tentou dormir. Retornou no dia seguinte, ao entardecer. De um lado,
a cidade de Chalakura estava recolhida, de luzes apagadas, tal como na
noite anterior. Do outro, tudo estava escuro e deserto. O rio fluía alto,
movendo-se lenta e majestosamente. Digby estacionou o carro o mais
rente possível dos arbustos e caniços. Um trabalhador cabisbaixo,
esforçando-se para puxar uma carroça abarrotada, passou pela estrada,
tão concentrado em seu esforço que não chegou a ver nem o carro nem
Digby, oculto à sombra do pilar que sustentava a ponte.
Digby não tinha ideia exata de onde ela entraria na água na fuga de
Parambil, tampouco conseguia pensar em entrar naquele rio à noite.
Esperou, com os olhos colados na correnteza, até que, passados quinze
minutos, avistou um objeto flutuante, uma Ofélia ressurreta, no meio
do rio, depois um vislumbre de um braço em movimento — Elsie
angulando na direção da mar­gem. E então, nada. Minutos se passaram.
Por fim, na outra margem, uma silhueta se distinguiu da massa pesada
e ameaçadora da ponte. Pela silhueta parecia ser uma camponesa de
blusa e saia. Quando ela se aproximou, ele viu que era Elsie,
encharcada, as roupas coladas ao corpo. Digby correu e a envolveu
numa grande toalha, guiando-a para o carro. Elsie estava pálida de frio,
os dentes batendo, o corpo tremendo, o cabelo enlameado, impregnada
do cheiro daquelas águas. Recostando-se no veículo, ela tirou a saia e a
blusa, secou-se rapidamente, depois vestiu a saia e o mundu que Digby
trouxera. Ele a acomodou no banco e a cobriu com um cobertor,
chocado com seu aspecto sob a luz interna do carro: um fantasma
pálido, emoldurado pelo couro preto dos assentos. Trazia no rosto um
cansaço inacreditável, como se oito anos e não oito meses tivessem se
passado. “Obrigado por estar aqui, Digs. Vamos, por favor. Rápido.”
Ao dar partida, ele não viu ninguém pelo retrovisor. Elsie bebeu avi‐­
damente da garrafa d’água, e também da habitual garrafa térmica com
chá-uísque quente. Os pés dela sangravam da escalada pela margem do
rio.
“Estão procurando você?”, ele perguntou.
Ela balançou a cabeça, mordendo o lábio inferior. “Ainda não.
Deixei meu chinelo e minha toalha na margem do rio.” Elsie lançou-
lhe um olhar. “Eles vão encontrar. E então começarão as buscas. Mas
um corpo pode ser levado por muitos quilômetros.” As palavras de Elsie
o assustavam. Ele imaginou essa outra realidade em que ela havia, de
fato, se afogado e não estava ali, uma realidade em que seu corpo estava
a caminho do mar.
“E a bebê?”
Ela fechou os olhos, encolhendo-se no banco, afundando num
cobertor, o retrato do cansaço, da dor, da perda. “Digby, eu imploro.
Contarei tudo quando chegarmos em casa.” Ele buscou sua mão por
baixo do cobertor; os dedos de Elsie lhe pareceram rígidos e ásperos do
frio, engelhados da longa imersão. Ele os apertou, mas ela não
respondeu. E então ouviu um “Digby” abafado, como se seu carinho a
ferisse, e ela o alertasse. Em um piscar de olhos Elsie caiu no sono
profundo de quem não dormia havia muitos dias.

Às três da manhã ele deixava para trás o último trecho, finalizando


aquela aflitiva subida pela estrada de gate à noite — nunca a percorrera
antes, dada a presença de elefantes selvagens, um perigo real. Só
quando estacionou em frente ao bangalô reparou que seus ombros
tremiam, os dedos estavam colados ao volante como caramujos e o
pescoço doía. Digby desligou o motor; o silêncio profundo não a
despertou.
Uma figura assomou das sombras da casa. Cromwell. Esperava
sentado ali fora, enrolado num cobertor. Ajudou-o a sair do carro,
servindo-lhe de apoio. “Muita preocupação, chefe. Demais.” Seus
olhos estavam vermelhos e pesados de sono.
Digby pôs as mãos nos antebraços de Cromwell. “Eu sei. Desculpe.”
Cromwell observou a figura adormecida de Elsie, dissimulando a
impressão que lhe causou a aparência da jovem. “A senhorita está
bem.” Era tanto uma pergunta quanto uma afirmação esperançosa.
“Não sei. Ela foi ao inferno e voltou.” Um inferno que Digby não
compreendia.
Elsie acordou quando ele abriu a porta do passageiro. Assim que
percebeu onde estavam, voltou-se para Digby com uma expressão de
alívio tão intensa que pela primeira vez ele pressentiu a profundidade
do horror que ela sofrera. “Ah, Digby, o ar é tão rarefeito aqui”, ela
disse, respirando profundamente e estremecendo em seguida.
Sorriu, fatigada, para Cromwell; cambaleou ao tentar caminhar e
agarrou-se ao pescoço de Digby quando ele a tomou nos braços.
“Obrigado, meu amigo, por esperar”, ele disse a Cromwell. “Agora vá
para casa, por favor. Sua família não vai me perdoar se eu continuar te
dando todo esse trabalho.”

Digby trouxe chá quente e sanduíches de frango que o cozinheiro


havia preparado. Enquanto Elsie comia, ele encheu a banheira.
Ajudou-a a se despir. Os braços dela estavam manchados, com nacos
empalidecidos, parecendo um mapa antigo. Ele reparou em seu
estômago afundado e enrugado, em contraste com os peitos inchados,
as aréolas formando discos escuros. Sentou num banco ao lado dela,
que entrou na banheira e deixou o corpo afundar, desaparecendo
completamente debaixo da água, com exceção dos pés. Digby viu
sangue escorrendo na base de seu dedão direito e se aproximou. Os pés
dela estavam tomados por bolhas. Digby acariciou-lhe a mão, que lhe
pareceu enrugada, com uma textura de couro. Estudou os dedos de
Elsie: tinham fissuras, como se ela andasse trabalhando com arame
farpado. Ela retirou a mão.
Agora era Digby que se sentia afundar.
As mãos de Elsie, os pés cheios de bolhas, os nacos de pele
embranquecida — ele conhecia aquilo. Estivera tempo demais com
Rune para não reconhecer aqueles sinais. Ele quis gritar, quebrar o
espelho, protestar contra a injustiça da vida, que dava com uma mão
apenas para subtrair, em maior medida, com a outra.
Elsie observava tudo, de olhos arregalados, assistindo como a
compreensão de tudo chegava a ele, vendo-o agarrar-se à borda da
banheira e balançar o corpo. Ela não ousou dizer uma única palavra.
Aos poucos, ele se recompôs. Buscou a mão de Elsie na água mais uma
vez, depois levou os dedos dela aos lábios.
“Não!”, ela gritou, tentando se soltar, mas ele não deixava.
“É tarde demais”, ele disse numa voz abafada, pressionando a palma
da mão dela contra seu rosto, pois o amor que sentia era um sentimento
à parte da terrível realidade que se apresentava.
“Eu te proíbo”, ela disse, pondo os pés para dentro da banheira.
“Proíbo você de me proibir”, ele disse, pondo-se de joelhos,
mergulhando os braços na água para rodear o corpo dela, puxá-la para
perto dele, essa mulher sem a qual ele não tinha razão para continuar
vivendo. “Não há nada que você possa fazer para se ver livre de mim”,
ele chorava, apertando o corpo molhado de Elsie contra o dele. Digby
buscou-lhe a boca, enquanto ela se esquivava, até que a encontrou, os
lábios e as lágrimas misturadas dos dois, quando ela então cedeu, aos
soluços, deixando-o beijá-la e beijando-o. Colada à roupa molhada de
Digby, ela chorou, desafogando o que havia repri­mido por tanto tempo,
compartilhando por fim o fardo terrível que vinha carregando sozinha.
Ele a abraçou com força. O que os humanos tinham em seu arsenal
para momentos como aquele? Nada, a não ser gemidos patéticos e
lágrimas e soluços que de nada serviam, nada mudavam. A água
escorria por sobre o piso: água preciosa, água abundante, água que
podia varrer fluidos de bolhas, sangue, lágrimas e, se você tivesse fé,
pecados, mas que nunca varreria o estigma da lepra, não durante a vida
dos dois, pois eles não tinham Eliseu que lhes dissesse “Vai lavar-te sete
vezes no Jordão e tua carne te será restituída e ficará limpa”, nem um
filho de Deus que tocasse as feridas da lepra, extinguindo-as.
A carta de Elsie fazia sentido. Ele entendeu por que ela deixara a
filha. A razão estava ali, nos dedos dela, o início da transformação da
mão em garra. Sabia bem que a gravidez enfraquecia as defesas do
corpo, permitindo que certas doenças que já estavam presentes no
organismo, como a lepra ou a tuberculose, se deflagrassem. Elsie
também sabia, tendo tido Rune como vizinho e amigo; sabia o que os
leigos não sabiam: um recém-nascido corria grande risco de contrair
lepra da mãe.
“Você entende agora?” Ele assentiu. Os dois choravam. “Não nasci
para ter filhos.”
“Não diga isso.”
“Eu queria nosso bebê, Digs! Assim que soube que estava grávida,
quis voltar. Mas fiquei presa. Não tinha como enviar uma carta. E,
durante aquelas chuvas terríveis, minhas mãos e meus pés… Foi tudo
tão rápido. Não sabia o que era. E então me vi incapaz de segurar uma
caneta. E entendi.” Ela contemplou as rachaduras na ponta dos dedos.
“Quase morri no parto, Dig­by. Talvez tivesse sido melhor assim. Tive
uma convulsão, e não lembro de nada que aconteceu depois,
felizmente. A bebê estava de cabeça para baixo. Tive uma hemorragia
severa. Mas de alguma forma nós duas sobrevivemos. Mariamma. Esse
é seu nome, em homenagem à minha sogra. Uma bebê linda.
Passaram-se dias até que eu pudesse erguer a cabeça e olhar para ela.
Queria segurá-la, mas não podia. Rune me contou por que eles nunca
deixavam bebês entrarem no Santa Brígida.”
Digby tentou imaginar a criança, sua filha, a filha deles. Mariamma.
E quis tê-la nos braços. “Posso criá-la aqui, Elsie. Tomarei conta de
você separadamente. E…”
“Não, Digby, não podemos. Você não pode. Ela está melhor sem
mãe do que como filha de uma leprosa.” Foi a primeira vez que aquela
palavra foi dita desde que Digby foi buscar Elsie. O termo demorou-se
no ar, não ia embora. Ela o encarou. “Sim, uma leprosa, Digby. É o
que sou. Ninguém mantém uma leprosa dentro de casa. Ninguém é
capaz de guardar esse segredo.” Ela se inclinou para ele. “Acredite, ela
não poderia ter uma infância mais feliz do que com minha sogra.
Grande Ammachi é o amor em pessoa. E ela terá Bebê Mol e Anna
Chedethi.”
“E seu marido?”
Ela balançou a cabeça. “Ele está mal. Tomou ópio para os tornozelos
quebrados depois não parou mais. Agora o ópio é todo o seu mundo.”
Elsie respira fundo e olha para Digby. “Ele acha que a filha é dele,
Digby. E tem razão de achar. Uma única razão, uma única vez. Ele
estava tomado de ópio. Não o repeli. Poderia ter repelido, mas não.
Quando soube que eu estava grávida, ele se convenceu de que era
Ninan renascido. Que era Deus pedindo perdão. Quando veio uma
menina, afundou-se ainda mais no ópio.”
O único som era a água gotejando na torneira.
Elsie disse: “A única saída para mim era pensarem que eu tinha
morrido. Por que impor um tormento com aquela doença? Se eu
contasse à Grande Ammachi, ela ia querer que eu ficasse. Teria me
abraçado. Como você. Mas eu destruiria a família inteira. Mancharia o
nome deles. Arruinaria a vida de minha filha. Sofri muito por não
poder contar a verdade para Grande Ammachi. Era melhor ela pensar
que eu havia me afogado”.
“E, se minha Mariamma viver aqui conosco, mas separada…”
“Não, Digby”, ela disse, áspera, sentando. “Me escute! Sabe quantas
noites eu passei acordada pensando sobre isso? Eu morri para que
minha filha possa viver uma vida normal. Você entende? Isso significa
que preciso ir para um lugar onde nunca possam me encontrar. Nunca!
Preciso ficar onde ninguém pense em me procurar, onde ninguém tope
comigo nem ouça qualquer rumor sobre mim. Minha filha jamais
poderá saber que estou viva. El­sie se afogou. Os Gwendolyn Gardens
não são esse lugar.” A agitação de Elsie, e a determinação em seu rosto,
silenciavam-no. “A única outra opção é me lançar daquele Trono da
Deusa. Mas não estou pronta para isso. Não enquanto ainda puder
trabalhar. Quero criar até quando aguentar. Posso fazer isso no Santa
Brígida.”

Ele a ajudou a sair da banheira e a secou. Ela dobrou uma toalha e


passou-a entre as coxas, amarrando um mundu para prendê-la. Uma vez
na cama, Digby trouxe seu kit para tratar as bolhas.
Lembrou da bolha depois da primeira caminhada dos dois. Ela não
sentiu dor. Era um primeiro sinal do qual ele não se deu conta? Por
vezes bolhas se formavam quando ela esculpia, mas aquilo era normal
— só que Elsie mal as notava. Agora poderia pisar em um carpete ou
em um prego e não sentiria a diferença.
“Queria que você não tocasse neles”, ela disse, observando-o cuidar
de seus pés.
“Não posso tratar sem tocar.”
Ela riu, com amargura. “É o que Rune dizia. Mas, Digs, eu peguei.
Como? Por crescer do lado de um leprosário? Por causa das visitas de
Rune? Como?”
“Todos somos expostos em algum momento. Certas pessoas são mais
suscetíveis.”
“E se você for suscetível?”
Ele não respondeu e voltou ao curativo. “Elsie, o que você teria feito
se eu não tivesse recebido a carta? Se eu não tivesse ido buscá-la?”
“Caminharia até o Santa Brígida”, ela disse, sem hesitação. “Se você
viesse, meu plano era te fazer me levar direto para lá. No entanto, eu
estava cansada demais. E sabia que precisávamos de tempo para
conversar. Eu tinha que explicar. Te devia isso.”

Ele se despiu, enxaguou-se e voltou para Elsie, seu cansaço agora se


fazendo sentir. Ao se abaixar para deitar na cama, ela tentou expulsá-lo.
“Você não pode dormir comigo. Por que está fazendo isso, Digby?”
Sem responder, ele cobriu seu corpo nu com o lençol,
aconchegando-se perto dela. As pálpebras de Elsie estavam inchadas
das lágrimas, da provação, do alívio, ainda que temporário. Ele ouviu
um “eu te proíbo” abafado, e, um segundo depois, ela adormeceu. E
ele contemplou aquela figura adormecida, o rosto branco como a
fronha. Embora cansado, seus pensamentos continuavam a mil, o sono
lhe escapava.
Uma hora depois, seguia desperto, o braço adormecido sob o peso da
cabeça de Elsie. Por ele, o braço podia cair. Já não era possível se
separar do sofrimento dela. A doença que a afligia era agora também
dele. Não podia mais permanecer numa fazenda que não necessitava
dele, sabendo que seu grande amor estava em outro lugar. Elsie morreu
para o mundo em prol da filha deles. Ela não podia fazer esse sacrifício
sozinha. Estava mais do que claro o que ele precisava fazer. Este é o fim
de uma vida. E o começo de outra que jamais imaginei. Não tenho
escolha, o que é sempre a melhor escolha.

Ela despertou com a luz do sol inundando o quarto pela janela,


desorientada, sem saber bem onde estava. Até que se compreendeu nos
braços de Digby — ele já de olhos abertos, observando-a com ternura.
Lá fora se podia ouvir a conversa dos trabalhadores, alguém gritando
ordens. Os sons dos Gwen­dolyn Gardens. Apenas mais um dia. Ela
ergueu a cabeça para olhar em vol­t a. Digby recolheu o braço, e ela
estudou seu rosto. Ele parecia em paz. Então lhe vieram as lágrimas,
obscurecendo mais uma vez os olhos dela.
“Digby. Não posso ficar aqui. Nem mesmo por uma noite.”
“Eu sei.”
“Por que está sorrindo?”
“Se o Santa Brígida é o único lugar onde ninguém encontrará você,
então meu destino está selado. Aonde quer que você vá, tudo que lhe
acontecer acontecerá comigo. Não discuta, Elsie. Está claro para mim.
Nada poderia ser mais simples. Eu sempre, sempre estarei com você.
Até o fim.”
84. O mundo conhecido

santa brígida, 1977

Mariamma sente algo lhe queimar os dedos. O chá. Larga a xícara,


que tomba no carpete, intacta. O líquido quente ensopa sua roupa e
escalda suas coxas.
A dor não tem passado nem futuro, apenas o agora. Ela salta para
longe da janela, pinçando o sári e a saia para proteger sua pele.
“Nossa!”, diz Digby. “Você está bem?”
Ela não está nem um pouco bem. Do outro lado das janelas
francesas, a mulher — a mãe que nunca conheceu em seus vinte e seis
anos de vida — está sentada no gramado, esquecida de tudo, separando
sementes na palma da mão. Algo lhe diz que a mulher até agora não
piscou. Uma vida inteira transcorre até que Mariamma recupere a voz.
“Há quanto tempo ela…?”
“Ela está aqui há quase vinte e seis anos…”
Os sinais conflitivos em seu cérebro se digladiam. Em Parambil, há
uma fotografia da mãe que ela leva na mente: aqueles olhos
acinzentados a seguiram pelo quarto durante toda a sua infância —
tinham, inclusive, observado sua filha se vestir, preparando-se para
confrontar o homem que a gerou. Aquela mãe continuou jovem, bem
composta, bonita e elegante, os lábios fechados reprimindo uma risada
— alguma piada do fotógrafo. Era o rosto de uma mãe a quem uma
filha pode se abrir. Como reconciliar essa mãe há tanto tempo morta
com aquela aparição viva no gramado?
“Preciso de ar”, ela diz, dando as costas à janela e retirando-se do
aposento.

Ela corre por um caminho ladeado por tijolos, afastando-se do


aglomerado principal de casas; passa por um pomar, por uma
enfermaria e alcança o muro dos fundos, onde encontra um pequeno
portão que ela escancara, descendo às pressas por degraus de pedra
musgosa, até parar. Diante dela está a água lenta e serena de um canal
que faz uma curva para se juntar a um rio que ela pode ouvir, mas não
consegue ver. Seus pés submergem quando ela pisa no último degrau.
Cada fibra de seu corpo, cada célula, quer mergulhar, deixar-se levar
pela corrente para bem longe dali.
Ela fica parada naquela junção de terra e água, sem fôlego, o coração
acelerado, mas agora consegue respirar. Na superfície verde da água, vê
seu reflexo fragmentado, ondeando. Chegou ali em frangalhos; veio
confrontar o homem que a gerou, mas que não era seu pai. Em vez
disso, encontrou a mãe, que, de alguma forma, vive. Que sempre esteve
viva. Por todos os anos em que Mariamma sofreu por ela, rezando para
que retornasse do mundo dos mortos.
O canal segue fluindo, encharcando a bainha de seu sári, sem se
deter diante de sua angústia, daquilo de que acabou de se inteirar. Ela é
indiferente, essa água que conecta todos os canais, água que está no rio
adiante, e nos remansos, nos mares e oceanos — um só corpo de água.
Essa mesma água passou pela casa Thetanatt onde sua mãe aprendeu a
nadar; trouxe Rune até aqui, para que ele recuperasse o velho lazareto;
e trouxe Philipose, que salvou o bebê moribundo, as mãos coladas às de
Digby; a mesma água levou Elsie para a morte e a libertou, renascida,
nos braços do homem que a amava mais do que à própria vida — e que
engendrou a única filha de Elsie, Mariamma.
E naquele momento essa filha está ali, parada na beira da água que
conecta todos eles no tempo e no espaço, como sempre o fez. A água
em que ela pisou minutos atrás já se foi, e no entanto continua lá,
passado, presente e futuro enlaçados de modo inexorável, como o
tempo corporificado. Este é o pacto da água: todos estão
inescapavelmente conectados, por missão e omissão, e ninguém está só.
Ela fica ali, escutando o mantra murmurante, o cântico que nunca
cessa, repetindo sua mensagem: todos são um só. O que ela pensava ser
sua vida não passava de maya, tudo ilusão, porém uma ilusão
compartilhada. E só lhe resta seguir em frente.

Mariamma se recompõe e retorna, caminhando lentamente.


Imagina Elsie crescendo ali perto, sem mãe — tinham isso em comum.
Seja lá o que a jovem Elsie tenha imaginado, certamente não pensou
que ela fosse terminar lá. A mãe não escolheu ser leprosa. Com tudo
que Elsie tinha a oferecer ao mundo, como é cruel que este seja seu
destino: viver enclausurada em um leprosário, um lugar tão apartado
que bem poderia ser outro planeta. E, durante todo esse tempo, uma
bactéria imemorial, carcomendo seus nervos lentamente, arrebatou
todas as suas sensações, tirou-lhe a visão, roubou-lhe aos poucos a
capacidade de fazer aquilo que nasceu para fazer. Mariamma
estremece quando compreende também isto: por todo aquele tempo, a
mente da mãe esteve intacta, a artista forçada a testemunhar a ruína
paulatina do corpo antes tão belo, a diminuição progressiva de sua
capacidade de criar sua arte. Ela não consegue imaginar tamanho
sofrimento.

Digby está à janela: continua contemplando a figura no gramado


com uma expressão desarmada que revela tristeza e amor, os dois
sentimentos fundidos em um só, como uma segunda pele. Esse homem
cheio de cicatrizes permaneceu ao lado de sua mãe ao longo de todos
aqueles anos, testemunhando seu sofrimento e sofrendo também,
vendo a deterioração dela.
A mudança na expressão de Digby ao ver Mariamma, sua transição
de volta para o presente, a faz pensar no pai: muitas vezes, quando ela
ia até Philipose, sentia que o conjurava, resgatava-o de algum lugar
insondável. Os dois homens tinham isso em comum: amavam sua mãe.
Ela para ao lado de Dig­by; os dois olham através do vidro.
Digby fala como se Mariamma jamais tivesse saído do escritório.
“Sua mãe toma sol aqui nesse horário.” Sua voz é suave, melancólica.
“Chega pela portinhola e conta cinco passos para o centro do gramado.
Plantei essas rosas só para ela. Seu olfato está intacto, graças a Deus.
Consegue nomear trinta espécies só pelo perfume.” Digby fala como
um pai orgulhoso da nova habilidade de uma filha. “Quando cansa do
sol, dá sete passos para a janela e espalma ambas as mãos no vidro,
ficando assim por quase um minuto, esteja eu presente ou não.” Ele
sorri, timidamente. “É um pequeno ritual dela. Ou nosso. Ela nunca
me explicou. Acho que é como uma bênção, uma oração que ela me
dirige no meio do dia, para me dizer que me ama e se sente grata.” Ele
sorri, sonhador. “Se estou aqui, ponho as mãos no vidro, sobre as dela.
Acho que ela sabe quando faço isso. Depois, não importa se estou aqui
ou não, ela parte.”
“Ela sabe que estou aqui?”
“Não!”, ele responde, de imediato. “Não. Quando você veio ver
Lênin, não contei. Foi a única vez em vinte e cinco anos que escondi
alguma coisa dela.”
“Por quê?”
Ele suspira e fecha os olhos. Demora para responder. “Porque ela
empenhou toda a sua vida a manter esse segredo. Tente se pôr no lugar
dela, Mariamma. Imagine como ela se sentiu logo depois da horrenda
morte de Ninan. Philipose… Seu pai… põe a culpa nela, e ela põe a
culpa nele. Depois do funeral, ela vai embora de Parambil. Em seguida
Chandy morre. Amigos, preocupados com seu estado mental, levam a
pobrezinha para as montanhas, na esperança de que se distraia. Ela está
cheia de raiva e tristeza, tentada a tirar a própria vida. Por puro acaso
descobre minhas tentativas artísticas, minhas ferramentas de escultura.
Com martelo e cinzel ela aplaca sua raiva, e penso que isso a salva. Ela
continua aqui comigo depois que os amigos partem. Ficamos muito
próximos… nos apaixonamos. Ela recebe a notícia de que Bebê Mol
está muito doente e por essa única razão vai visitar Parambil por alguns
dias. Fica ilhada lá por uma monção histórica. Durante esse tempo, ela
compreende duas coisas: está grávida. E a lepra se revela, torna-se
explosiva — você sabe como isso pode acontecer durante a gravidez.
Seu pai, àquela altura… não estava nas melhores condições. Ópio. Ela
não vê como prosseguir, não há nenhuma saída. Voltando para mim ou
permanecendo em Parambil, não poderá ficar perto de você — ela sabe
disso por ter crescido ao lado do Santa Brígida, de Rune. Essa
alternativa poria você em perigo. Ela e seu pai se mantêm distantes. No
entanto, certa noite ele a vê numa angústia insuportável e,
confortando-a, acaba por se excitar. Ela não o repele. Quan­do a
gravidez se torna óbvia, Philipose, em seu estado alterado, acha que a
criança é dele. Elsie toma uma decisão: depois do parto, precisa
desaparecer. Deve morrer. Todos vocês devem pensar que ela está
morta, para não prejudicar você ou Parambil. Seu único consolo é
saber que não há melhor opção do que te deixar sob os cuidados de
Grande Ammachi.”
“Mas, se meu pai ou Grande Ammachi ficassem sabendo, teriam
cuidado dela, eles…”
Digby balança a cabeça, negativamente. “Quanto tempo levaria para
que a vendedora de peixe já não aparecesse com sua cesta de peixes, ou
para que seus parentes começassem a evitar sua casa? O que essa
doença faz com a carne é ruim, mas o medo do contágio destrói
famílias. Toda semana acolhemos mães expulsas pelos maridos. Pais
rejeitados, apedrejados pelos próprios filhos. Só aqui todos eles
encontram um lar.”
Mariamma quer argumentar, protestar. Mas, na verdade, se ela não
fosse médica, será que estaria ali, dentro do Santa Brígida? Ela é
médica, uma discípula de Hansen; ela é alguém que dissecou tecidos
leprosos; conhece o inimigo… e, ainda assim, sua primeira reação ao
ver a mãe foi de horror e repulsa. Digby diz: “Ponha-se no lugar dela”,
mas ela não consegue ver a si mesma naquelas sandálias de sola dura,
feitas de borracha de pneu; é impossível se imaginar vivendo o pesadelo
que a mãe viveu e que continua vivendo. Quando Elsie volta o rosto
cego para o sol, Mariamma estremece.
Digby continua: “Essa doença ostraciza crianças inocentes, e ela não
queria que você crescesse maculada pelo rótulo que ela carrega.
Melhor que a imaginasse morta do que assim. Estar aqui é como estar
morto”, ele diz, amargamente. “Seus entes queridos não voltarão a ver
você. Não querem. Nun­ca recebemos visitas de parentes. Nunca. Você
talvez seja a primeira. Ela encenou seu afogamento e me fez ir buscá-la
na margem do rio. Eu queria mantê-la em minha fazenda, ela se
recusou. Para manter seu segredo só havia um local seguro. Aqui.
Quanto a mim, eu não tinha escolha. Eu não a perderia de novo.”
“Quem mais sabe?”
“Só Cromwell. E agora você. Cromwell é um irmão para mim. Ele
tornou nossa vida possível aqui. Já administrava a propriedade, e agora
ela é toda dele. Meus amigos fazendeiros acham que encontrei Jesus e
é por isso que estou aqui. No fim, descobri que o Santa Brígida
precisava de mim. A Missão Sueca teve dificuldade de encontrar
médicos e enfermeiras dispostos a trabalhar no leprosário por muito
tempo. O preconceito era grande demais. Mas eu já estava
familiarizado. As coisas se deterioraram depois da morte de Rune.
Havia muito a fazer.
“O pior golpe foi quando a visão de sua mãe falhou. Agora leio para
ela todas as noites. Quando ficamos sabendo da morte de seu pai, ela
ficou arrasada. Parou de trabalhar. Ficou de luto por dias a fio, chorava
por ele. Por você. Vive e respira culpa todo dia, mas, tão logo você
ficou órfã, a dor alcançou novos píncaros. É o único tipo de dor que
sua mãe pode sentir agora, a dor da alma. A agonia de ter desaparecido
da face da terra para proteger as pessoas que ama. Toda sua arte revolve
em torno de você, Mariamma, em torno da dor de abrir mão de sua
criação. Sua pobre mãe só pôde expressar o amor por meio do próprio
apagamento, tornando-se uma figura sem rosto, anônima, desconhecida
da própria filha. Vejo isso nas esculturas dela, na forma como
expressam a dor de ter de esconder o rosto, que jamais podem mostrar,
e se fingindo de morta para que você possa viver.”
Mariamma chora. Teve todo o amor maternal e todos os beijos que
poderia ter de Grande Ammachi, do pai, de Anna Chedethi e de Bebê
Mol. Cobriam-na de amor. No entanto, ela chora pois sentia falta de
sua verdadeira mãe, que estava ali todo esse tempo. Sim, sente falta
daquela mulher no gramado, da mãe que Elsie poderia ter sido, não
fosse a lepra. Há uma lacuna em minha vida, uma lacuna de todos esses
anos passados, nossas vidas separadas.
Digby lhe entrega um lenço imaculado. Ela aceita, agradecida.
Recompõe-se como pode e estuda esse homem que a engendrou, que
veio para cá junto com a mulher que amava.
“Você precisou abrir mão do mundo também, Digby.”
“Do mundo? Ha!” A risada amarga não combina com ele. Volta-se
para ela. “Não, não. Abri mão de algo muito maior, Mariamma. Abri
mão de você. Abri mão da chance de conhecer minha única filha. Meu
coração doía de vontade de te conhecer. Essa ferida não é só dela. É
minha também.”
Mariamma fica abalada com a intensidade da emoção de Digby,
pela raiva e pela dor em sua voz. Ela não consegue sustentar o olhar
dele.
“A única coisa que mitigou a dor de não termos você conosco é
termos um ao outro. E me vi cirurgião de novo, de certa forma — e
também estava retribuindo o que Rune fez por mim. Elsie, por sua vez,
nunca deixou de ser artista. Sua mãe e eu tivemos um quarto de século
juntos! Quando viemos para cá, ela ainda era uma mulher bonita. E
tão forte! A força de sua mente, a qualidade de seu trabalho… Eu
queria que você tivesse conhecido ela no auge. Veja o que o tempo e a
maldita doença de Hansen fizeram”, diz, com amargor. “Porém, à
noite, nos braços um do outro, tentamos esquecer. É tudo que temos,
mas aceito de bom grado, Mariamma.”
Ela não sabe o que dizer sobre esse tipo de amor. Sente inveja.
“Quando seu pai finalmente retomou as colunas de jornal, cheias de
sabedoria e humor — e dor —, ela entendeu que ele havia superado o
vício. Arrisco dizer que ela era a leitora mais ávida do Homem Comum.
Traduzia os textos para mim. Antes de ficar cega, claro. A partir de
então outros tinham de ler a coluna para ela.”
“Ela sabe alguma coisa da minha vida?”
“E como!”, ele sorri. “Tanto quanto pudemos descobrir. Quando o
editor do jornal escreveu aquele artigo explicando o mistério da
Condição, a autópsia… ela só pensava nisso. Lamentou que o
conhecimento tivesse chegado tarde demais para o pai, tarde demais
para Ninan. Sentia que foi injusta quando culpou Philipose da morte
de Ninan — no luto, eles se voltaram um contra o outro. Quando ele
se livrou do ópio, a Elsie de Parambil já estava morta havia muito
tempo. Ela nunca pôde se desculpar.”
A luz que entra pela janela ressalta os traços de Digby; Mariamma
detecta uma tristeza profunda em sua expressão, exagerada pela cicatriz
em seu rosto. Reconhece algo de si naquele homem de quase setenta
anos. Apoia-se em seu ombro. Hesitante, ele põe o braço em volta dela,
este outro pai, abraçando a filha, os dois juntos, contemplando a mãe.
Ame os doentes, cada um deles, como se fossem gente sua. Seu pai
copiara aquela citação para ela; Mariamma ainda hoje a guarda — está
na folha de rosto de A anatomia de Gray de sua mãe.
Appa, devo amar essa mulher que se recusou a participar da minha
vida? Uma mulher que encenou a própria morte, para que eu jamais
pensasse em buscá-la? Posso entender, mas consigo perdoar? Pode haver
razão suficiente para abandonar a filha?
Abruptamente, seu corpo se enrijece. Ela empurra Digby.
“Digby, eu conheço essa mulher! Sim, leprosos se parecem. Mas eu
conheço essa mulher. É a mendiga que vinha sempre antes da
Convenção de Maramon. Ela caminhava até lá e esperava, imóvel.
Digby, eu botava moeda na latinha dela!”
A expressão culpada de Digby confirma.
“Ela morria de vontade de te ver, Mariamma. Nós dois. Eu não
podia, pois sou branco, não passaria despercebido. Mas todos os anos eu
levava Elsie de carro o mais perto possível de você. Ela se vestia de
mendiga e esperava horas a fio até te avistar e se aproximar. Eu também
queria ver você e ela me enchia de inveja sempre que conseguia. Ficou
mais difícil com o passar dos anos. Assim que ficou cega, acabou. Num
desses anos foi Anna quem pôs moedas na latinha. Elsie voltou para o
carro destroçada. Por impulso, passamos de automóvel em frente à casa.
Vi você pela primeira vez… Você vinha pela estrada. Ainda hoje
guardo essa imagem. Queria tanto te conhecer… mas você tinha seu
pai. Ele era um homem melhor, um pai melhor do que eu jamais…”
“Sim, ele era”, ela diz, asperamente. E quase acrescenta: Jamais se
esqueça disso! Estava na ponta da língua, mas não teve coragem. Todos
já sofreram demais.
“Digby, com tudo que você sabe sobre lepra, não conseguiu
preservar a visão dela? Ou as mãos?”
Ele a encara, incrédulo. “Você acha que não tentei?”, ele desabafa,
com um sotaque escocês carregado. “Ela é minha pior paciente! A
lepra ativa se foi, graças à dapsona e a outros tratamentos, mas os nervos
— uma vez mortos, não voltam mais! Elsie foi espoliada do dom da
dor. Se eu pudesse protegê-la do trauma repetido, ela não teria esse
aspecto!” Mariamma se espanta com a indignação de Digby, a raiva em
sua voz, suas faces enrubescidas. É a primeira vez que ouve seu
sotaque. “No entanto, a única coisa que importava para ela era sua
maldita arte. Toda manhã eu fazia curativos em suas mãos, mas, se a
proteção atrapalhasse, ela tirava. E o mesmo ocorreu com os olhos, ela
não precisava estar cega, só que, quando seu nervo facial foi afetado e
sua córnea começou a ressecar, eu tapava seu olho para que a córnea
pudesse se curar, e ela arrancava o curativo! Brigávamos muito por
causa dessas coisas. Ainda brigamos. Ela diz que só me falta pedir que
ela não respire. Diz que, se parar de trabalhar, não terá vida… Isso me
dói. Acho que quero ouvir que eu sou a vida dela. Porque vivo para ela.”
Digby contempla suas mãos, como se o fracasso residisse nelas.
Mariamma se pergunta se seu próprio desejo de ser médica, de se
tornar cirurgiã, propondo-se a reparar o mundo, veio desse homem, de
seus genes.
Ele diz, mais recomposto: “Bem… Sempre soube que estava na
presença de uma mente brilhante. Um tipo de talento que só aparece
de tempos em tempos. A arte dela é maior do que eu, do que ela, ou do
que essa doença maldita. Temos dificuldade em entender sua
compulsão. Acredite ou não, ela segue produzindo. Quando a visão
dela se deteriorou, ela se lançou num frenesi, com pressa de terminar
projetos inacabados, lesionando ainda mais as mãos. Às vezes ela me
faz amarrar um lápis de carvão a seu punho, e então enlaço minha mão
sobre a dela, e desenhamos”. Ele ri, pesarosamente. “Fechamos o
círculo!” Mariamma não entende. “No escuro, em nosso bangalô, ela
trabalha com argila macia. Tudo que tem são suas palmas. Encosta a
argila no rosto, ou mesmo nos lábios, para sentir a forma. Mesmo sem
visão, ela já criou centenas de criaturas de argila únicas, o bastante para
povoar todo um mundo em miniatura. A confiança dela é
impressionante. Ela sabe o valor do que produz. Sempre soube.”
“Quem pode ver essas obras?”
“Só eu. Ninguém mais. Elsie queria que seu trabalho fosse visto,
desde que não revelasse quem ela era. Eu queria que ele fosse visto.
Anos atrás, tentamos. Enviei várias peças para um agente em Madras,
um antigo paciente. Falei que era o trabalho de uma artista que
desejava ficar anônima. Foi rapidamente vendido numa exposição,
quatro das sete peças foram para o exterior. Então um artigo sobre essa
artista foi publicado numa revista alemã. As pessoas ficaram curiosas, e
ela se aterrorizou com a possibilidade de seu nome vir a público.
Nunca mais tentamos algo do tipo. Tenho dois barracões cheio de
obras. Algum dia o mundo vai vê-las? Para ela, mais importante do que
a arte é que o mundo pense que ela se afogou, que não se descubra que
vive aqui, como uma leprosa. Quer que seu segredo morra com ela,
mesmo que implique a morte de sua arte.”
Mariamma pensa em seu pai, que morreu com seu segredo, sem
jamais saber que a esposa estava viva. Ou será que sabia? Foi isso que
deflagrou sua súbita viagem a Madras? Alguma informação nova
chegou a ele?
Mariamma rompe o silêncio. “Digby… Agora que eu sei, agora que
o segredo foi revelado, acha que ela gostaria de falar comigo?”
Ele suspira. “Não sei. Ela desapareceu para que você acreditasse que
estava morta. Ela — nós — investimos uma vida inteira nisso. Ela acha
que con­seguiu. Eu também achava — até você aparecer na sala de
operação hoje. En­t ão… se ela gostaria de falar com você? Devemos dar
um fim à ilusão que ela lutou tanto para criar? Não sei.”
Mariamma pensa em suas ilusões perdidas. Deve agradecer ou
amaldiçoar a Condição e Lênin por levá-la até ali? A Condição tira
muita coisa, mas também dá o que não sabemos se desejamos. De
repente, uma saudade de Lênin a atravessa.
A médica estuda aquela mulher que descansa no gramado — Elsie.
Sua mãe. Ela parece estranhamente apaziguada naquele corpo
desfigurado, partido. Será uma projeção esperançosa da filha? Tudo o
que a mãe tem do que antes a definia é o pensamento… Isso e o que
sobrou de um corpo que mal consegue se locomover, porém que ainda
se esforça para criar arte. E tem esse homem que a ama, ainda que ela
desapareça sempre mais.
“Mariamma”, Digby diz, baixinho, “você quer falar com ela?”
A pergunta faz seu coração bater acelerado e sua garganta ressecar.
Não!, diz uma voz dentro dela, prontamente. Não estou preparada.
Contudo, outra voz, a de uma garotinha, a voz da filha, discorda: Sim,
pois há muita coisa que você precisa saber sobre mim. E sobre meu pai
— você não chegou a conhecer o homem que ele se tornou, como ele
ainda amava você. Ele foi o melhor pai que uma filha podia ter.
A voz que finalmente se faz ouvir diz: “Digby… Ainda não sei dizer”.
Ela lembra das palavras de Aniyan: Toda família tem segredos, mas
nem todos os segredos pretendem ludibriar. O segredo da família de
Parambil, que mal era um segredo, era a Condição. No entanto, seu
pai guardava outro segredo: que a amada filha não era sua. Se Grande
Ammachi sabia, ela manteve sigilo. E o segredo compartilhado por
Elsie e Digby era que Elsie seguia vivendo, que nunca se afogou e
tinha lepra. Esses pactos secretos mantidos pelos adultos da vida de
Mariamma tinham por objetivo protegê-la. O casamenteiro também
disse: O que define uma família não é o sangue, mas os segredos que seus
membros compartilham. Segredos que podem uni-los ou fazê-los se
ajoelhar, quando revelados. E agora é Mariamma, que não tomava
parte em nenhum segredo, quem sabe de tudo; eis aí uma bela família.

Elsie, mãe de Mariamma, apruma-se e se levanta devagarinho. Sua


postu­ra é altiva, o queixo para a frente como a de um visionário, a
cabeça traçando pequenos arcos, como fazem os cegos. Vira-se com
passos curtos e rígidos, como uma criança aprendendo a caminhar, até
se pôr de frente para as janelas francesas. Com a palma das mãos e os
dedos que lhe restam, ela ajusta trabalhosamente o pallu do sári branco
sobre o ombro esquerdo e dá o primeiro passo, contando.
Mariamma sente sua curta vida na terra comprimindo-se naquele
momento, aquele momento singular, mais pesado que a soma de todos
os que vieram antes.
A mãe ergue as mãos diante de si à altura do ombro — aqueles
estranhos instrumentos, agora diminuídos, entregando-se como
oferendas. Aproxima-se com os punhos arqueados, as palmas
apontando para a frente, os braços estendidos numa atitude infantil
desoladora, à espera das janelas francesas. Aquela aproximação trágica e
corajosa transforma as feições de Digby; enquanto a observa, um sorriso
amoroso e indulgente desenha-se em seu rosto. Elsie se aproxima cada
vez mais, até que, por fim, toca com as duas palmas o vidro da janela,
que interrompe seu avanço. As palmas de Elsie descansam ali por um
momento. Digby está prestes a colocar as mãos na vidraça, por dentro,
sobrepondo-as às de Elsie… Mas então ele para e olha para a filha, suas
sobrancelhas erguendo-se, inquisitivas.
Sem pensar, sem ter que pensar, Mariamma sente-se impelida.
Espalma as mãos no vidro, pressionando e sobrepondo-se às mãos de
sua mãe, de modo que, naquele momento, tudo se faz uno, e nada
separa os dois mundos.
Agradecimentos

Em 1998, minha jovem sobrinha Deia Mariam Verghese perguntou


à avó: “Ammachi, como era a vida quando você era menina?”.
Qualquer resposta oral seria insuficiente, então minha mãe — Mariam
Verghese — encheu 157 páginas de um caderno espiral com memórias
da infância, escritas numa letra cursiva elegante e determinada. Como
era uma artista talentosa, também interpôs uma série de desenhos
rápidos ao texto. Seus três filhos conheciam bem as anedotas registradas
ali, embora os detalhes mudassem a cada narração.
Minha mãe morreu em 2016 aos 93 anos, mas, mesmo em seus
últimos meses, enquanto eu escrevia este livro, ela me telefonava para
contar alguma lembrança que acabara de lhe ocorrer — como quando
um primo seu, que nunca passava de ano no primário, foi finalmente
aprovado, só porque, muito pesado, quebrou o assento da cadeira e
acabou rolando para as carteiras da série mais adiantada — era uma
escola de sala única. Em O pacto da água, me aproveitei de vários casos
que minha mãe nos contou; contudo, para mim o mais precioso era sua
voz e o clima que emanava de suas palavras, que complementei com
minhas próprias recordações de verões com meus avós em Kerala e de
minhas visitas posteriores como estudante de medicina. Meu primo
Thomas Varghese é um artista talentoso (além de engenheiro), um dos
prediletos de minha mãe. Fico grato e orgulhoso por seus desenhos
evocativos presentes nesta obra, que captam tão bem a atmosfera do
romance. Mamãe ficaria contente.
Para uma história que envolve três gerações, dois continentes e várias
localizações geográficas, amparei-me em diversos parentes, amigos,
especialistas e fontes. Se alguém se sentiu esquecido, saiba, por favor,
que não foi proposital.
Kerala: devo profundamente à escritora Lathika George (autora de
The Kerala Kitchen, Hippocrene Books, 2023), minha guia em
Cochim, que compartilhou com tanta generosidade histórias de sua
infância, sendo uma fon­­te para tudo que se refere à comida; os e-mails
longos e cheios de informações de Mary Ganguli refletem sua segunda
vocação (além da psiquiatria), a escrita, verdadeiro tesouro de
informações, histórias relacionadas à medicina e insights psicológicos;
minha prima Susan Duraisamy relembrou detalhes impressionantes da
casa de minha avó paterna e das pessoas ao redor; minha alma gêmea
Eliamma Rao me levou para conhecer os fundadores de Soukya, Isaac
e Suja Mathai, que me deram um novo entendimento da cura; Eliam
também me levou ao lar de Sanjay e Anjali Cherian, em Calicute, e à
propriedade deles em Wayanad, onde Sanjay muito generosamente me
mostrou o funcionamento de uma fazenda da região. Jacob Mathew,
meu contemporâneo no Madras Christian College, é o editor-chefe do
Malayala Manorama; ele e Ammu me acolheram em seu lar e
puseram todos os recursos à minha disposição. Espero que ele me
perdoe a liberdade de imaginar o “Homem Comum” como
colaborador do Manorama; tomara que possa constatar minha
admiração por seu lendário jornal. Os livros e escritos de Susan Visva‐­
nathan (especialmente The Christians of Kerala: History, Belief and
Ritual among the Yakoba, Oxford University Press, 1993) foram
essenciais. Meu obrigado ao Taj Malabar Resort & Spa, que tornou
minha estadia em Cochim tão memorável; sou grato a Premi e Roy
John; meu colega de universidade, Cherian K. George; Arun e
Poornima Kumar; C. Balagopal e Vinita; e ao brilhante arquiteto Tony
Joseph. Catherine Thankamma, destacada tradutora do malaiala para o
inglês, debruçou-se sobre o manuscrito e fez muitas sugestões. Entre
meus muitos parentes que compartilharam suas histórias, agradeço a
Jacob (Rajan) e Laila Mathew; Meenu Jacob e George (Figie) Jacob;
Thomas Kailath e Anuradha Maitra; e, em especial, a meus padrinhos,
Pan e Anna Varghese. Meu pai, George Verghese, senhor de 95 anos
que faz esteira duas vezes por dia, respondeu às minhas muitas
perguntas e compartilhou suas memórias. Todos os erros referentes à
Kerala são inteiramente de minha responsabilidade.
Faculdade de medicina: entre os extremamente prestativos colegas do
Madras Medical College, incluem-se C. V. Kannaki Utharaj,
ginecologista habilidoso cujos e-mails longos e hilários sobre o trabalho
de parto eram um verdadeiro tesouro; Anand e Madhu Karnad, amigos
mais antigos e queridos que compartilharam memórias urbanas de
hotéis, salas de aula e clínicas de Madras e responderam a incontáveis
perguntas, além de inúmeras vezes me abrigar e me alimentar;
agradeço também aos estudantes do Christian Medical College de
Vellore, Nissi e Ajit Varki, Samson e Anida Jesudass, Arjun e Renu
Mohandas, Bobby Cherayil e meu colega de Stanford Rishi Raj. David
Yohannan (Johny) e sua mulher, Betty, me receberam, e Johny
compartilhou memórias detalhadas de Calicute e de sua prática
médica em Kerala.
Questões cirúrgicas: agradeço a Moshe Schein, Matt Oliver, John
Thanakumar, Robert Jackler, Yasser El-Sayed, Jayant Menon, Richard
Holt, Serena Hu, Rick Hodes e Amy Ladd. Os generosos ensinamentos
neurocirúrgicos de Sunil Pandya foram de muita ajuda. James Chang,
meu colega de Stanford, brilhante cirurgião de mãos, me doou muito
de seu tempo, lendo várias versões e me ensinando sobre esse tipo de
operação.
Glasgow e Escócia: meus queridos amigos Andrew e Ann Elder
fizeram de tudo para me ajudar a compreender a história e o dialeto
escocês, levaram-me de novo a Glasgow e leram o manuscrito muitas
vezes. Obrigado também a Stephen McEwen. Mais uma vez, qualquer
erro é de minha responsabilidade.
Manuscrito: colegas e amigos que me ajudaram com a pesquisa ou
de­­t a­lhes do original, ou que me deixaram tempo livre para escrever,
incluem Shei­la Lehajani, Mia Bruch, Olivia Santiago, Shubha
Raghvendra, Katie Allan, Kelly Anderson, Pornprang Plangsrisakul,
Jody Jospeh, Talia Ochoa, Erika Brady, Dona Obeid e Nancy D’Amico.
Stuart Levitz, Eric Steel e John Burnhan Schwartz leram o manuscrito
completo e me ofereceram comentários de grande valia; John é diretor
literário na Sun Valley Writers’ Confer­ence, que para mim é o evento
anual que renova minha fé na alegria e no poder da palavra escrita.
Peggy Goldwyn leu versões iniciais e me deu sábios conselhos; a
escritora e editora Kate Jerome leu incontáveis esboços e deu a mim e a
meus filhos amor e apoio incondicionais nos piores momentos. Kate,
você tem meu amor eterno e minha gratidão. Dois colegas de meu
tempo no Iowa Writers’ Workshop firmaram-se como amigos íntimos e
confidentes: Irene Connelly leu e revisou todos os meus livros; Tom
Grimes devotou inúmeras horas a O pacto na reta final — aos dois
envio toda gratidão.
Escritores não são nada sem editores, e os editores certos fazem toda
a diferença. Tive muita sorte de ser editado por Peter Blackstock. Ele
deu forma ao livro e o fez com confiança, precisão, bom humor e
humildade. Minha agente Mary Evans me encontrou em Iowa em
1990 e tem me representado desde então. Minha carreira literária deve
muito a ela, em especial por encontrar um lar para este livro junto a
Peter e a equipe incrível da Grove Atlantic. Tive a assistência editorial
prévia de Courtney Hodell, em versões iniciais, que me atendeu com
paciência incomum, sabedoria e astúcia; a ela e a Nathan Rostron, que
leu e me deu muitos conselhos úteis, minha gratidão imensa.
O ato da escrita é solitário, porém, pelo menos para este escritor, não
pode acontecer sem amor, indulgência, apoio e perdão da parte de
amigos e familiares. Dos meus três filhos queridos — Steven, Jacob e
Tristan —, só meu caçula, Tristan, esteve comigo durante os anos de
escrita deste livro. Éramos os únicos ocupantes da casa. Sua tolerância,
equanimidade e amor silencioso mas profundo me sustentaram nos
altos e baixos. Meu irmão mais novo, Philipe, transcreveu
amorosamente as páginas escritas à mão por minha mãe e fez cópias
encadernadas para a família. Meu irmão mais velho, George, é a pedra
de sustentação em minha vida, meu norte verdadeiro; ele é não apenas
um amado professor do mit, mas também um revisor brilhante e leitor
arguto. Por duas décadas, toda quarta de manhã me encontro pessoal
ou virtualmente com meus “irmãos” de San Antonio: Jack Willome,
Drew Cauthorn, Randy Townsend, Guy Boline, Olivier Nadal e o
falecido Baker Duncan. O grupo foi formado para que apoiássemos e
cobrássemos uns aos outros; o amor incondicional desses irmãos é um
presente imensurável; e Randy e Jan­ice me emprestaram seu refúgio
em Big Island num momento crucial da escrita deste romance.
A Universidade Stanford tem sido um lar maravilhoso para mim
desde 2007. Sou profundamente grato a Bob Harrington, meu amigo e
presidente do Departamento de Medicina de Stanford, por seu
comprometimento inabalável para com seu heterodoxo vice-presidente.
Agradeço a Ralph Horwitz por me trazer a Stanford. Lloyd Minor,
reitor da Stanford School of Med­­i­cine, apoiou meu trabalho; ele e
Priya Singh catalisaram o centro que condu­zo, presence: The Art and
Science of Human Connection. Sonoo Thadaney é a feiticeira e
maestrina por trás do presence, BedMed e todos os meus demais
esforços em Stanford. Considero-a, junto com Errol Ozdalga, John
Kugler, Jeff Chi, Donna Zulman e todos os membros da equipe
BedMed e pres­ence, minha família estendida. Muitos outros colegas
de Stanford — tantos que não posso listar — têm garantido meu
constante aprendizado e crescimento; agradeço a todos. A cátedra
Linda R. Meier e Joan F. Lane Provostial, que ocupo, me dá liberdade
para ir atrás de interesses que atravessam todas as faculdades do
campus. Cuidar dos doentes e ensinar medicina ao pé do leito
continuam sendo minhas principais paixões, e sou grato a pacientes,
estudantes, funcionários e residentes em Stanford, bem como a todas as
outras instituições onde trabalhei que me mantêm humilde,
preservando intacta minha vocação até hoje.
Por fim, não posso imaginar este livro ou minha vida sem Cari
Costanzo. Ela nunca deixou de acreditar em mim durante meus altos e
baixos; leu cada linha incontáveis vezes, alimentando meu corpo e
minha alma, sem deixar de ser uma atarefada acadêmica de Stanford e
mãe maravilhosa de Kai e Alekos. Conhecer seu filho mais velho,
Alekos, foi um presente especial nesses últimos anos. Embora este
romance seja dedicado à minha mãe, ele deve sua existência a você,
Cari. Omnia vincit amor: et nos cedamus amori.
Notas

Esta história é inteiramente ficcional, como ficcionais são todas as


personagens principais e secundárias, mas tentei ser fiel aos
acontecimentos reais da época. O bombardeio de Madras pelos
japoneses foi verdadeiro; as personagens do vice-rei, seu primeiro-
secretário e o governador de Bombaim são imaginadas e não guardam
nenhuma semelhança com os indivíduos que ocupavam de fato esses
postos. O Longmere Hospital é ficcional; tenho orgulho de ter
estudado no Madras Medical College e visitado o Christian Medical
College várias vezes, contudo, os eventos e personagens relacionados a
essas instituições são fictícios. A Convenção de Maramon é lendária, e
desejo muito participar dela em algum momento; a cena do Senhor
Melhorias na convenção é ficcional; o Triplo Yem não existe nem se
assemelha a nenhum hospital que eu conheça. Os sacerdotes com que
tive contato na infância, assim como o bispo — Mar Paulos Gregorios
(nascido Paul Varghese), amigo de nossa família —, foram seres
humanos maravilhosos e inspiradores. As descrições da igreja e de seus
ofícios são completamente ficcionais.
O verso “a respiração do pai já era apenas ar” foi extraído de “Caelica
83”, de Baron Brooke Fulke Greville. O material sobre especiarias e
Vasco da Gama apoia-se no maravilhoso livro Holy War (Harper, 2011),
de Nigel Cliff, e em Spice, de Jack Turner (Vintage, 2005). Os
pensamentos de Grande Am­ma­chi e de Koshy Saar sobre histórias
baseiam-se em comentários de Dor­othy Allison e em máximas da
excelente obra Story (ReganBooks, 1997), de Robert McKee. A maioria
dos versículos da Bíblia aparece em itálico e são da versão do rei Jaime
[na ed. bras., as citações são da Bíblia Pastoral]; as orações formais são
do Livro de Orações Noturnas dos cristãos de São Tomé ou de versões
on-line das liturgias dos cristãos de São Tomé. Os pensamentos da
enfermeira-chefe sobre escolas públicas são inspirados no
documentário Em­pire, da bbc. “Abrir mão das necessidades, mas não
dos luxos” parafraseia uma citação similar atribuída a Frank Lloyd
Wright ou Oscar Wilde. A descrição de Celeste sobre Londres
parafraseia o relato de M. M. Kaye em The Sun in the Morning (Viking,
1990) e também Empire Families (Oxford University Press, 2004), de
Elizabeth Buettner. O dito de Honorine de que as rosas não passariam
de mato se nunca murchassem e morressem é uma ideia de Wal­lace
Stevens: “A morte é a mãe da beleza. Só o perecível pode ser belo”. Os
versos de Veritas para o The Mail sobre os garotos de La Matinière são
uma paráfrase de Paper Boats in the Monsoon (Trafford, 2007), de
Owen Thorpe. Os comentários do missivista sobre o fracasso dos
brâmanes quando admitidos nos mais altos escalões vem de A People’s
Collector in the British Raj: Arthur Galleti (Readworthy Publications,
2011). “O segredo para cuidar bem de um paciente é se importar com
o paciente” é uma frase famosa de Francis Pea­body, bem conhecida de
todos os médicos (jama, 1927; 88:877). A observação de Celeste sobre a
civilidade exterior do marido, a despeito dos verdadeiros sentimentos, é
inspirada no personagem George Smiley, de John le Carré, que diz: “O
inglês educado em escolas particulares é o maior dissimulado do
mundo”, em The Secret Pilgrim (Knopf, 1990). Quando Rune dá más
notícias a Grande Ammachi, ela o agradece, “por força do hábito”;
essas palavras vêm do poema de Raymond Carver “What the Doctor
Said”, em New Path to the Waterfall (Atlantic Monthly Press, 1990). As
observações de Rune sobre o polegar são atribuídas a Isaac Newton em
All The Year Round, de Charles Dickens (1864, v. 10, p. 346), mais
tarde encontradas em The Book of the Hand (Samp­son Low, Son &
Marston, 1867), de A. R. Craig: “Na falta de provas, o polegar me
convenceria da existência de um Deus”. A recitação de Koshy Saar é
do poema de 1854 de Tennyson, “The Charge of the Light Brigade”. A
inscrição de Digby no exemplar de A anatomia de Gray de Elsie é de
“Death and Doctor Hornbook” (1785), de Robert Burns. A família com
o matiz azul no branco dos olhos e ossos frágeis sofre de osteogênese
imperfeita. A mulher na clínica com crescimento exofítico nas narinas
sofre de rinosporidiose. Antes de 1985, ainda existia muita confusão
sobre as duas formas de neurofibromatose; vários pacientes com o que
hoje se chama de neurofibromatose tipo 2 ou nf2 — a “Condição”,
neste romance — eram diagnosticados com a neurofibromatose tipo 1
ou nf1 — a doença de Von Recklinghausen na versão clássica, cuja
marca são nódulos na e sob a pele. Atualmente é evidente que são
doenças genéticas separadas, com expressões clínicas diferentes,
envolvendo cromossomos distintos (cromossomo 17 para a nf1 e
cromossomo 22 para a nf2). A “Condição” baseia-se na descrição de
uma grande parentela na Pennsylvania (jama, 1970; v. 214, n. 2, pp.
347-53). O material sobre a fome vem de fontes públicas. Os versos da
peça que Philipose ouve no rádio são do Ato 5 de Hamlet. Os versos de
Philipose “Sorte de poder julgar a si mesmo nessa água” e, depois,
“Sorte de poder purificar-se sempre e sempre” são do poema “Lucky
Life”, de 1977, do falecido poeta (amigo pessoal e meu professor em
Iowa) Gerald Stern. O grau “mrvr” depois do nome do médico de
verrugas é baseado numa anedota em Evolution of Modern Medicine in
Kerala, de K. Rajasekharan Nair (tbs Publishers’ Distributors, 2001). O
verso que referencia “o mundo redondo e seus quatro cantos
imaginados” vem do Soneto Sagrado 7, de John Donne. O pecado do
tradutor desastrado que precedeu o Senhor Melhorias é inspirado pelas
palavras de Jorge Luis Borges no ensaio “On William Beckford’s
‘Vathek’”, em Selected Non-Fictions (Viking, 1999): “O original trai a
tradução”. As palavras de Cowper — “Felicidade e paz duradouras são
daqueles que escolhem este estudo por seu próprio valor, sem esperar
qualquer recompensa” — é um princípio dos ensinamentos do
zoroastrismo. “Viver a dúvida” é extraído de Letters to a Young Poet
(Norton, 1993), de Rilke, e é um conselho que dou a muitos dos que
buscam minha mentoria. “Em uma época de mentiras, dizer a verdade
é um ato revolucionário” é uma frase que muitas vezes se atribui a
George Orwell. A fuga de Lênin e Arikkad depois dos ataques
fracassados em Wayanad é imaginada, mas os naxalitas eram (e ainda
são) reais, assim como a execução de Arikkad “Naxal” Varghese (1938-
70), que lutou pelos adivasis em Wayanad. Em 1998, o oficial P.
Ramachandran Nair admitiu que atirou em Varghese por ordens de K.
Lakshana, subcomissário. Em 2010, uma corte considerou Lakshmana
culpado de compelir Nair a atirar; ele foi sentenciado à prisão perpétua
e a uma multa de 10 mil rupias. O esculacho da vendedora de peixe
em relação aos comprimidos do vaidyan é inspirado no discurso de
Oliver Wendell Holmes à Sociedade Médica de Massachusetts, em 30
de maio de 1860: “[…] se toda a materia medica como usada hoje
desaparecesse no fundo do oceano, seria muito melhor para a
humanidade — e muito pior para os peixes”. No capítulo “O cão do
paraíso”, Philipose se baseia no poema homônimo de Francis
Thompson, de 1890. A carta de Philipose dizendo que a verdadeira
viagem de descoberta consiste não em buscar novas paisagens, mas em
conquistar um novo olhar é uma paráfrase de um pensamento similar
de Proust em À la Recherche du temps perdu (Gallimard, 1919-27), no
volume 5. Quanto ao dito “Marque a data!”, do casamenteiro Aniyan,
devo a meu colega da faculdade de administração de Stanford Baba
Shiv, que compartilhou essa memorável anedota em suas palestras
brilhantes sobre tomar decisões. Obrigado, Baba! O dito do
casamenteiro Aniyan sobre segredos é uma citação de Sissela Bok em
Secrets: On the Ethics of Concealment and Revelation (Vintage Reissue,
1989). As observações de Digby enquanto executa uma transferência
tendínea se baseiam nas palavras do cirurgião pioneiro Paul Brand: “O
cirurgião deve praticar a paciência de uma minhoca que avança aos
poucos entre raízes e pedras; não deve forçar uma passagem através de
estruturas rígidas, caso contrário o túnel não será ladeado por material
maleável”, em The Journal of Bone and Joint Surgery, British Volume,
43-B, n. 3, 1961. “Nunca diga que um homem é feliz antes de sua
morte” são as palavras de Sólon para Creso, em The Histories, de
Heródoto (Penguin Classics, 2003); “aonde quer que você vá, tudo que
lhe acontecer acontecerá comigo” é um verso de “i carry your heart
with me”, de e. e. cummings (Complete Poems, Liveright, 1991).
jason henry

abraham verghese nasceu em Adis Abeba, em 1955. Formou-se no Iowa


Writers’ Workshop e é autor de livros como Minha terra: História de um
médico nos tempos da aids e O décimo primeiro mandamento, que passou
mais de dois anos na lista dos mais vendidos do New York Times. É médico e
vive em Stanford, na Califórnia, onde também é professor e vice-presidente
do Departamento de Medicina da Universidade Stanford.
Copyright © 2023 by Abraham Verghese
Copyright das ilustrações © 2023 by Thomas Verghese

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Nesta edição, foram utilizadas as traduções de Lawrence Flores Pereira para Hamlet (São
Paulo: Penguin-Companhia, 2015) e Paulo Henriques Britto para Grandes esperanças (São
Paulo: Penguin-Companhia, 2012).

Título original
The Covenant of Water

Capa
Victor Burton

Imagem de capa
Sem título, de Amadeo Luciano Lorenzato, c. 1980. Óleo sobre placa, 59 × 52 cm.
Coleção particular. Reprodução de Mario Grisolli. Agradecimentos: Thiago Gomide.

Mapa
© Martin Lubikowski, ml Design, Londres

Preparação
Gabriele Fernandes
Maria Emilia Bender

Revisão
Huendel Viana
Ingrid Romão

Versão digital
Rafael Alt

isbn 978-85-3593-762-6

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s.a.
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