A Cabeça Do Santo

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A CABEÇA DO SANTO

Eram exatamente cinco horas da manhã quando Samuel começou a acordar, atormentado, confuso. Ouvia
vozes de mulheres, várias, falando ao mesmo tempo. Falando, falando, falando. Parecia reza, briga, conversa, tudo
ao mesmo tempo. Talvez fosse pesadelo, pareciam as mulheres do Horto. Sentou-se, assustado, acordado, mas as
vozes não paravam. Mais alto, mais forte e, sim, era reza. Parecia a voz das carpideiras amigas de Mariinha, tirando
o terço quando morria gente. Samuel saiu correndo daquela gruta maldita sem lembrar que a perna estava ferida
com a mordida do cão, que estava fraco, faminto, cansado, e caiuno chão poucos metros depois. Não tinha mulher
nenhuma rezando ali, não havia ninguém por perto, nem os cachorros da noite. Do lado de fora, só mato, chuva fina
e silêncio, não se ouvia nenhuma voz, nem o sol fazia nenhum barulho para acordar.
Quando se virou para observar o lugar onde estava, com a ajuda da pouca luz do sol encoberto, Samuel
percebeu que a gruta onde passou a noite era, na verdade, uma cabeça gigante, oca e assustadora. Uma cabeça de
santo. Mesmo coberta de plantas, via-se que o nariz era grotesco, dois buracos enormes, boca pra cima, lábios
grossos, fechados, olhos esbugalhados, expressão séria. O globo ocular era o mais assustador: um par de bolas de
concreto presas por fios de aço nos olhos vazados. Não era uma cabeça maciça, mas feita de peças simétricas e
numeradas com tinta branca. Samuel levantou-se com dificuldade e chegou mais perto.
Aquilo era delírio, ele pensava. Mordida de cachorro louco, enlouquecera também. O dia estava cada vez mais
claro e era possível ver a gruta estranha, onde Samuel cabia em pé. Do pescoço ao topo era quase do tamanho da
casinha onde vivia com Mariinha. Era, sim, uma cabeça de santo, oca, gigantesca, assustadora, coberta de mato na
cidade de Candeia. Um santo degolado era o seu único abrigo no mundo, e foi pra lá que ele voltou.
[...]Já perto do fim da tarde adormeceu novamente, e só despertou às cinco horas em ponto, com as mesmas
vozes de mulheres atormentando o que restava do seu juízo. Não tinha relógio, não sabia que eram cinco horas. De
novo: não havia ninguém do lado de fora. Samuel colou o ouvido no concreto e conseguiu ouvir uma das vozes de
forma mais nítida. Era uma reza, muito clara, um pedido para santo Antônio.
O fato é que as orações das mulheres reverberavam dentro da cabeça do santo e, por algum motivo, Samuel
conseguia ouvir. No dia seguinte ele comeu goiaba, folhas, bebeu água da chuva e percebeu que as orações
aconteciam de manhã e à tarde. Nem sempre todas as vozes, nem sempre as mesmas palavras, mantinha-se
apenas o pedido: elas amavam e queriam casar.

A CABEÇA DO SANTO

Eram exatamente cinco horas da manhã quando Samuel começou a acordar, atormentado, confuso. Ouvia
vozes de mulheres, várias, falando ao mesmo tempo. Falando, falando, falando. Parecia reza, briga, conversa, tudo
ao mesmo tempo. Talvez fosse pesadelo, pareciam as mulheres do Horto. Sentou-se, assustado, acordado, mas as
vozes não paravam. Mais alto, mais forte e, sim, era reza. Parecia a voz das carpideiras amigas de Mariinha, tirando
o terço quando morria gente. Samuel saiu correndo daquela gruta maldita sem lembrar que a perna estava ferida
com a mordida do cão, que estava fraco, faminto, cansado, e caiuno chão poucos metros depois. Não tinha mulher
nenhuma rezando ali, não havia ninguém por perto, nem os cachorros da noite. Do lado de fora, só mato, chuva fina
e silêncio, não se ouvia nenhuma voz, nem o sol fazia nenhum barulho para acordar.
Quando se virou para observar o lugar onde estava, com a ajuda da pouca luz do sol encoberto, Samuel
percebeu que a gruta onde passou a noite era, na verdade, uma cabeça gigante, oca e assustadora. Uma cabeça de
santo. Mesmo coberta de plantas, via-se que o nariz era grotesco, dois buracos enormes, boca pra cima, lábios
grossos, fechados, olhos esbugalhados, expressão séria. O globo ocular era o mais assustador: um par de bolas de
concreto presas por fios de aço nos olhos vazados. Não era uma cabeça maciça, mas feita de peças simétricas e
numeradas com tinta branca. Samuel levantou-se com dificuldade e chegou mais perto.
Aquilo era delírio, ele pensava. Mordida de cachorro louco, enlouquecera também. O dia estava cada vez mais
claro e era possível ver a gruta estranha, onde Samuel cabia em pé. Do pescoço ao topo era quase do tamanho da
casinha onde vivia com Mariinha. Era, sim, uma cabeça de santo, oca, gigantesca, assustadora, coberta de mato na
cidade de Candeia. Um santo degolado era o seu único abrigo no mundo, e foi pra lá que ele voltou.
[...]Já perto do fim da tarde adormeceu novamente, e só despertou às cinco horas em ponto, com as mesmas
vozes de mulheres atormentando o que restava do seu juízo. Não tinha relógio, não sabia que eram cinco horas. De
novo: não havia ninguém do lado de fora. Samuel colou o ouvido no concreto e conseguiu ouvir uma das vozes de
forma mais nítida. Era uma reza, muito clara, um pedido para santo Antônio.
O fato é que as orações das mulheres reverberavam dentro da cabeça do santo e, por algum motivo, Samuel
conseguia ouvir. No dia seguinte ele comeu goiaba, folhas, bebeu água da chuva e percebeu que as orações
aconteciam de manhã e à tarde. Nem sempre todas as vozes, nem sempre as mesmas palavras, mantinha-se
apenas o pedido: elas amavam e queriam casar.

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