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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ODONTOLOGIA

Juliara Bellina Hoffmann

Dimensão ética da educação superior nos cursos de graduação da área da saúde:


construindo uma teoria fundamentada nos dados

Florianópolis
2021
Juliara Bellina Hoffmann

Dimensão ética da educação superior nos cursos de graduação da área da saúde:


construindo uma teoria fundamentada nos dados

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-


Graduação em Odontologia da Universidade Federal de Santa
Catarina, como requisito para a obtenção do título de Doutora
em Odontologia pelo Curso de Doutorado em Odontologia –
Área de Concentração: Odontologia em Saúde Coletiva.

Orientadora: Profa. Dra. Mirelle Finkler


Co-orientadora: Profa. Dra. Ana Lúcia Schaefer Ferreira de
Mello

Florianópolis
2021
JULIARA BELLINA HOFFMANN

DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NOS CURSOS DE GRADUAÇÃO


DA ÁREA DA SAÚDE:
CONSTRUINDO UMA TEORIA FUNDAMENTADA NOS DADOS

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:

Profª. Drª. Mirelle Finkler


Presidenta
Universidade Federal de Santa Catarina

Profª. Drª. Flávia Regina Souza Ramos


Universidade Federal de Santa Catarina

Profª. Drª. Suely Grosseman


Universidade Federal de Santa Catarina

Profª. Drª. Vania Regina Camargo Fontanella


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
adequado para obtenção do título de Doutora em Odontologia.

____________________________
Profª. Drª. Elena Riet Correa Rivero
Coordenadora do Programa

____________________________
Profª. Drª. Mirelle Finkler
Orientadora

Florianópolis, 2021
Dedico esta tese aos professores e professoras que
tive a alegria de compartilhar conhecimentos,
descobertas, anseios e, especialmente, sonhos.

“Un faro quieto nada sería


guía, mientras no deje de girar,
no es la luz lo que importa en verdad
son los 12 segundos de oscuridad”.

Jorge Drexler
AGRADECIMENTOS

À UFSC, universidade pública, gratuita e de qualidade, por me oportunizar todo seu


universo de descobertas, de mundo e de mim mesma, da graduação ao doutorado;

Ao Programa de Pós-Graduação em Odontologia que me deu a oportunidade de


construir-me profissional, especialmente, aos professores da área de concentração de
Odontologia em Saúde Coletiva, que me tornaram também uma cidadã defensora e apaixonada
pelo SUS;

À querida orientadora desta tese, Mirelle, por ter visto em mim alguém com potencial
de contribuir para a transformação do mundo, antes de mim mesma dar-me conta, por ter me
escolhido para sua orientação e por guiar-me de forma tão afetuosa e apaixonada pelos
caminhos da Ética, por seus incentivos contínuos ao meu aprimoramento e a minha autonomia,
pelas análises experientes acerca deste trabalho, por seu cuidado, carinho e, em especial, por
sua amizade;

À querida Ana Lúcia, co-orientadora desta tese, pela orientação dedicada desde a
concepção desta pesquisa, por sua generosidade em compartilhar comigo sua tranquilidade,
seus conhecimentos e seu precioso tempo, por tanta atenção, delicadeza e amizade;

Às filósofas, estudiosas e pensadoras do campo da Ética, por abrirem um mundo de


questionamentos e reflexões, por me conduzirem em cada leitura e encantarem com seus
conhecimentos valiosos, fazendo-me refletir que - tão importante como entender do que somos
feitos, é compreender quem somos e quem queremos ser;

Ao querido Maestro Francisco Esteban Bara por me receber, acolher e orientar no


doutorado sanduíche na Universidade de Barcelona, por seu cuidado, carinho e amizade.

Ao Grupo de Investigación en Educación Moral (GREM) e, especialmente aos


professores Xus Martín García, Montserrat Payà Sánchez e Miquel Martínez Marín por me
brindarem com seus ensinamentos e exemplos atitudinais na arte da maestria. A todos os
demais colegas do Máster de Educación en Valores y Ciudadanía 2019/2020, na UB, pela
acolhida, pelas agradáveis oportunidades de aprendizado e pelas vivências alegres na
belíssima Barcelona;
À CAPES, pelo financiamento da minha Bolsa de Doutorando, fundamental para o
exercício do ser cientista e pesquisadora no Brasil;

À Flavia Regina Souza Ramos, a José Luís Guedes dos Santos e à Ana Lúcia Ferreira
de Melo (que logo aceitaria - para a minha alegria, ser co-orientadora deste trabalho), pelas
pertinentes contribuições no processo de qualificação da tese;

Aos gestores, coordenadores, professores e estudantes participantes desta pesquisa,


por sua receptividade e abertura que favoreceram não só uma adequada coleta de dados, mas
também agradáveis momentos de investigação e descobertas;

Ao Prof. Daniel Silva que me ensinou, ainda na graduação, que o afeto e o rigor
científico não são contraditórios e aos queridos colegas de trabalho e amigos do Comitê
Facilitador da Sociedade Civil Catarinense para a Rio+20, para os quais jamais cansarei de
dizer que as vivências de valores que compartilhamos me fez “bifurcar”: sou o que sou porque
vocês são, exatamente, quem são;

Aos colegas de todas as militâncias, da educação e saúde pública gratuita e de


qualidade, das lutas feministas por igualdade e equidade, dos movimentos por uma pedagogia
da Transdisciplinaridade e dos ativismos ambientais por um mundo saudável e humanizado,
vocês me inspiram na busca constante por um mundo mais justo e solidário;

Às professoras que com muita disponibilidade aceitaram fazer parte da Banca


Examinadora desta tese, Vania Regina Camargo Fontanella, Suely Grosseman, Flávia Regina
Souza Ramos, Cristine Maria Warmling e Heloiza Maria Siqueira Rennó pelas contribuições
que visam enriquecer o interminável processo de construção do conhecimento;

Aos colegas de doutorado da turma de Odontologia em Saúde Coletiva 2016, pela


convivência e pelos bons momentos compartilhados e aos colegas de representação discente
durante meu mestrado e doutorado, por me mostrarem que a vivência política compartilhada
é sempre gratificante;

Aos professores e colegas do NUPEBISC pela convivência, carinho e trocas de


conhecimentos tão valiosos para esta Tese e para a construção de meus ideais científicos e
pessoais;
Ao amado Eduardo, pelo apoio incondicional a minha construção profissional e
pessoal, pelas férteis discussões sobre o tema desta tese, pela sua paciência e incentivo, pelas
alegrias diárias compartilhadas e, é claro, pela sua prática cotidiana de transformação do
mundo;

A minha família e aos meus amigos, pelo incentivo, pela torcida, pelo carinho e pela
compreensão das minhas ausências. E, em especial, a meus queridos pais Tania e Marcos por
me conduzirem constantemente (mesmo que inconscientemente) a um caminho de autonomia
moral. E por tanto amor.
“… a professora universitária (que há em mim) é
algo em que vou me tornando, e não uma espécie
de identidade já estruturada que levo comigo para
a aula”
(Bell Hooks, 2017, p. 177)
RESUMO

Este estudo objetivou a elaboração de uma teoria para compreender o fenômeno da dimensão
ética da educação superior em Saúde. Trata-se de pesquisa qualitativa, transversal e analítica,
com o referencial metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados (Grounded Theory), em
sua vertente construtivista. Após aprovação ética da pesquisa, a amostragem teórica foi
composta pelos dados de 30 entrevistas e oito documentos. Os grupos amostrais foram
constituídos por professores e estudantes de uma universidade pública e uma privada, de quatro
cursos da saúde: Enfermagem, Farmácia, Medicina e Odontologia. Também foram
entrevistados gestores da educação superior em Saúde. Os dados foram coletados por meio de
entrevista aberta, em profundidade. Os documentos analisados foram os Projetos Político
Pedagógicos e as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos citados. As etapas referentes à
codificação, amostragem e saturação teórica, ordenação e integração foram guiadas por análise
comparativa dos dados, sendo elaborados memorandos e diagramas para auxiliar na
composição da teoria. A teoria desenvolvida é de que a dimensão ética da educação superior
nos cursos de graduação em Saúde se realiza com a construção da personalidade moral dos
sujeitos nos diferentes âmbitos da vida universitária, forjando sua própria identidade. A
categoria central emergente corresponde ao processo de construção da identidade
fundamentada na aprendizagem ética: “Conscientizando-se sobre a importância da dimensão
ética da educação superior em Saúde na vida universitária”. Nele são identificadas cinco
categorias, cada uma relacionada a uma faceta identitária e a uma aprendizagem em especial: o
eu-pessoa se fundamenta em relações de reciprocidade e na diversidade que favorece a busca
por autonomia moral; o eu-acadêmico se constrói com o pertencimento à comunidade
acadêmica, em que a ressignificação dos papéis depende da assunção de um papel comum e
colaborativo do corpo acadêmico; o eu-profissional revelou a crucialidade do aprender a decidir
com autonomia moral, assim como as dificuldades dessa construção nos paradigmas
hegemônicos; o eu-trabalhador da saúde se embasa no aprender a cuidar, para o qual a
humanização, a integração ensino-serviço-comunidade e a educação interprofissional se
apresentam como elementos de influência positiva; o eu-cidadão se constrói com exercício da
responsabilidade social, assumindo-se o papel de agente de transformação do mundo e da
própria instituição universitária. De qualquer um destes ângulos identitários, pode-se perceber
a dimensão moral da construção dos sujeitos, que ao mesmo tempo em que configura uma
identidade moral própria, são por ela configurados. A identidade moral pode ser
propositadamente desenvolvida por meio da aprendizagem ética que promove vivência de
determinados valores e da autonomia moral dos envolvidos. A inseparabilidade da construção
moral e da vida universitária reforça a responsabilidade do corpo acadêmico em assumir o
ensino-aprendizagem ético como missão da Universidade.

Palavras-chave: Ética. Bioética. Educação Superior. Educação moral. Desenvolvimento


Moral. Teoria Fundamentada nos Dados.
ABSTRACT
This study aimed to elaborate a theory to understand the phenomenon of the ethical dimension
of education higher in Health. It is a qualitative, transversal and analytical research, with the
methodological framework of Grounded Theory, in its constructivist aspect. After ethical
approval of the research, the theoretical sample consisted of data from 30 interviews and eight
documents. The sample groups consisted of teachers and students from a public and a private
university, from four health courses: Nursing, Pharmacy, Medicine and Dentistry. Education
higher managers in health were also interviewed. The data were collected through an open, in-
depth interview. The documents analyzed were the Pedagogical Political Projects and the
National Curriculum Guidelines for the courses cited. The steps related to coding, sampling and
theoretical saturation, ordering and integration were guided by comparative data analysis, with
memos and diagrams being elaborated to assist in the composition of the theory. The theory
developed is that the ethical dimension of education higher in undergraduate courses in health
is accomplished with the construction of the moral personality of the subjects in the different
areas of university life, forging their own identity. The emerging central category corresponds
to the process of building an identity based on ethical learning: “Becoming aware of the
importance of the ethical dimension of higher education in health in university life”. In it, five
categories are identified, each related to an identity facet and to a particular learning: the self-
person is based on reciprocal relationships and on the diversity that favors the search for moral
autonomy; the self-academic is built with belonging to the academic community, in which the
redefinition of roles depends on the assumption of a common and collaborative role of the
academic body; the self-professional revealed the cruciality of learning to decide with moral
autonomy, as well as the difficulties of this construction in the hegemonic paradigms; the self-
health worker self is based on learning to care, for which humanization, teaching-service-
community integration and interprofessional education are elements of positive influence; the
self-citizen is built with the exercise of social responsibility, assuming the role of agent of
transformation of the world and of the university institution itself. From any of these identitarian
angles, one can perceive the moral dimension of the construction of the subjects, which, at the
same time that they configure their own moral identity, are configured by it. Moral identity can
be purposefully developed through ethical learning that promotes the experience of certain
values and the moral autonomy of those involved. The inseparability of moral construction and
university life reinforces the academic body's responsibility to assume ethical teaching-learning
as the mission of the University.
Keywords: Ethics. Bioethics. Education, Higher. Moral education. Moral Development.
Grounded Theory.
RESUMEN
Este estudio tuvo como objetivo elaborar una teoría para comprender el fenómeno de la
dimensión ética de la educación superior en Salud, se trata de una investigación cualitativa,
transversal y analítica, con el marco metodológico de la Teoría Fundamentada, en su vertiente
constructivista. Luego de la aprobación ética de la investigación, la muestra teórica estuvo
conformada por datos de 30 entrevistas y ocho documentos. Los grupos de muestra estuvieron
compuestos por profesores y estudiantes de una universidad pública y otra privada, de cuatro
carreras de salud: Enfermería, Farmacia, Medicina y Odontología. También se entrevistó a los
responsables de la educación superior en salud, cuyos datos se recogieron a través de una
entrevista abierta y en profundidad. Los documentos analizados fueron los Proyectos Políticos
Pedagógicos y los Lineamientos Curriculares Nacionales de los cursos citados. Los pasos
relacionados con la codificación, el muestreo y la saturación teórica, el ordenamiento y la
integración fueron guiados por análisis de datos comparativos, y se elaboraron memorandos y
diagramas para ayudar en la composición de la teoría. La teoría desarrollada es que la dimensión
ética de la educación superior en las carreras de grado en salud se logra con la construcción de
la personalidad moral de los sujetos en los diferentes ámbitos de la vida universitaria, forjando
su propia identidad. La categoría central emergente corresponde al proceso de construcción de
una identidad basada en el aprendizaje ético: “Tomar conciencia de la importancia de la
dimensión ética de la educación superior en salud en la vida universitaria”. En él se identifican
cinco categorías, cada una relacionada con una faceta identitaria y con un aprendizaje
particular: yo-persona se basa en las relaciones recíprocas y en la diversidad que favorece la
búsqueda de la autonomía moral; yo-académico se construye con la pertenencia a la comunidad
académica, en la que la redefinición de roles depende de la asunción de un rol común y
colaborativo del cuerpo académico; yo-profesional reveló la crucial importancia de aprender a
decidir con autonomía moral, así como las dificultades de esta construcción en los paradigmas
hegemónicos; yo-trabajador de salud se basa en el aprendizaje a cuidar, para lo cual la
humanización, la integración enseñanza-servicio-comunidad y la educación interprofesional
son elementos de influencia positiva; yo-ciudadano se construye con el ejercicio de la
responsabilidad social, asumiendo el papel de agente de transformación del mundo y de la
propia institución universitaria. Desde cualquiera de estos ángulos identitarios se percibe la
dimensión moral de la construcción de los sujetos, que, al mismo tiempo que configuran su
propia identidad moral, son configurados por ella. La identidad moral se puede desarrollar
intencionalmente a través del aprendizaje ético que promueve la experiencia de ciertos valores
y la autonomía moral de los involucrados. La inseparabilidad de la construcción moral y la vida
universitaria refuerza la responsabilidad del cuerpo académico de asumir la enseñanza-
aprendizaje ética como misión de la Universidad.
Palabras clave: Ética. Bioética. Educación universitaria. Educación moral. Desarrollo moral.
Teoría fundamentada.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Perfil da Personalidade Moral.................................................................................. 43


Figura 2 - Modelo conceitual dos fatores que influenciam a formação ética ........................... 49
Figura 3 - Mapa de posibles formaciones universitarias .......................................................... 64
Figura 4 - A construção identitária na vida acadêmica: Elementos comuns aos conceitos
sensibilizadores do marco conceitual ....................................................................................... 65
Figura 5 - Relação inicial entre as subcategorias ..................................................................... 80
Figura 6 - Construção dos conceitos teóricos a partir das categorias e subcategorias ............. 81

Figura 7 - Representação da teoria sobre a realização da dimensão ética da educação superior


em Saúde .................................................................................................................................. 84
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Características gerais contempladas no desenvolvimento da TFD ........................ 70


Quadro 2 - Fontes de pesquisa e período de coleta e análise dos dados................................... 71
Quadro 3 - Composição do primeiro e segundo grupo amostral – professores e estudantes ... 74
Quadro 4 - Identificação dos grupos amostrais ........................................................................ 74
Quadro 5 - Subcategorias e categorias desenvolvidas na construção da Teoria ...................... 87
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 16
2 MARCO CONCEITUAL ...................................................................................... 21
2.1 UNIVERSIDADE: QUAL O SEU SENTIDO? ...................................................... 22
2.2 AS CORRENTES TEÓRICAS DO LIBERALISMO E DO
COMUNITARISMO ............................................................................................... 28
2.3 UM MODELO DE APRENDIZAGEM ÉTICA PARA A UNIVERSIDADE ....... 35
2.4 A CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE MORAL .......................................... 40
2.5 A DIMENSÃO ÉTICA DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE........... 49
2.6 O PAPEL DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NA CONSTRUÇÃO
IDENTITÁRIA DOS SEUS MEMBROS ............................................................... 55
2.7 OS ELEMENTOS SENSIBILIZANTES PARA O PERCURSO
METODOLÓGICO ................................................................................................. 65
3 MÉTODO ............................................................................................................... 68
3.1 A TEORIA FUNDAMENTADA NOS DADOS NA VERTENTE
CONSTRUTIVISTA ............................................................................................... 69
3.2 COLETANDO DADOS .......................................................................................... 71
3.3 AMOSTRAGEM TEÓRICA ................................................................................... 72
3.4 PARTICIPANTES DO ESTUDO ........................................................................... 73
3.5 A ENTREVISTA INTENSIVA .............................................................................. 75
3.6 CODIFICAÇÃO E ANÁLISE ................................................................................ 76
3.7 REDIGINDO MEMORANDOS ............................................................................. 78
3.8 CONSTRUÇÃO DA TEORIA ................................................................................ 79
3.9 DETALHAMENTO ÉTICO ................................................................................... 82
4 RESULTADOS ...................................................................................................... 84
4.1 COMPREENDENDO A RELAÇÃO DIALÓGICA PERMEADA PELAS
DIVERSIDADES COMO ELEMENTO EXPERIENCIAL NECESSÁRIO
PARA A APRENDIZAGEM ÉTICA NA VIDA UNIVERSITÁRIA .................... 87
4.1.1 Pensando os espaços existentes na universidade para aprendizagem ética...... 88
4.1.2 Entendendo os modos relacionais que contribuem para a aprendizagem
ética ......................................................................................................................... 90
4.1.3 Percebendo a importância da diversidade cultural e do pluralismo moral
na construção da identidade ................................................................................. 94
4.1.4 Reconhecendo experiências que possibilitam a educação moral na
universidade ........................................................................................................... 99
4.1.5 A construção do eu-pessoa na realização do fenômeno da dimensão ética
da educação superior em Saúde ......................................................................... 106
4.2 RESSIGNIFICANDO PAPÉIS NA VIDA UNIVERSITÁRIA PARA
ELABORAR UM PAPEL COLABORATIVO PARA A COMUNIDADE
ACADÊMICA ....................................................................................................... 108
4.2.1 Reequilibrando os distintos papéis do docente na vida universitária ............. 108
4.2.2 Assumindo a responsabilidade sobre a sua própria trajetória acadêmica
estudantil .............................................................................................................. 119
4.2.3 Fomentando pertencimento à Universidade ..................................................... 122
4.2.4 A construção do eu-acadêmico como realização do fenômeno da dimensão
ética da educação superior em Saúde ................................................................ 127
4.3 EXPRESSANDO A DIFICULDADE DE TORNAR-SE PROFISSIONAL A
PARTIR DOS PARADIGMAS E RACIONALIDADES HEGEMÔNICOS
NA EDUCAÇÃO SUPERIOR EM SAÚDE ......................................................... 129
4.3.1 Refletindo sobre os paradigmas e objetivos da educação superior em
Saúde ..................................................................................................................... 129
4.3.2 Ponderando sobre a importância de educar para o processo decisório em
saúde...................................................................................................................... 134
4.3.3 A construção do eu-profissional como realização do fenômeno da dimensão
ética da educação superior em Saúde ................................................................ 141
4.4 SIGNIFICANDO A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO NA
CONSTRUÇÃO DO TRABALHADOR DA SAÚDE POR MEIO DO
CUIDADO HUMANIZADO, DA INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO-
COMUNIDADE E DA EDUCAÇÃO INTERPROFISSIONAL. ......................... 142
4.4.1 Humanizando os processos de cuidado ............................................................. 143
4.4.2 Tornando-se trabalhador-cidadão por meio da integração ensino-serviço-
comunidade .......................................................................................................... 146
4.4.3 Almejando a qualificação do trabalhador da saúde por meio da educação
interprofissional ................................................................................................... 153
4.4.4 A construção do eu-trabalhador da saúde como realização do fenômeno
da dimensão ética da educação superior em Saúde .......................................... 155
4.5 RESPONSABILIZANDO-SE PELOS RUMOS DA SOCIEDADE .................... 156
4.5.1 Reflexionando sobre a missão da Universidade ................................................ 157
4.5.2 Identificando a importância da responsabilização social na educação de
profissionais de saúde .......................................................................................... 164
4.5.3 A construção do eu-cidadão como realização do fenômeno da dimensão
ética da educação superior em Saúde ................................................................ 170
4.6 CONSCIENTIZANDO-SE SOBRE A IMPORTÂNCIA DO ENSINO-
APRENDIZAGEM ÉTICO NA VIVÊNCIA UNIVERSITÁRIA ........................ 171
4.6.1 Necessitando dialogar e compreender o significado de “ética” ....................... 171
4.6.2 Definindo valores para um ensino-aprendizagem ético ................................... 175
4.6.3 Desenvolvendo o ensino-aprendizagem ético nas disciplinas curriculares .... 180
4.6.4 Fomentando a aprendizagem ética para além das disciplinas......................... 189
4.6.5 A construção do identidade como realização do fenômeno da dimensão
ética da educação superior em Saúde ................................................................ 194
5 DISCUTINDO A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO SUPERIOR EM
SAÚDE A PARTIR DAS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DURANTE
A VIDA UNIVERSITÁRIA ................................................................................ 196
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 206
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 210
APÊNDICE A – Documento guia para operacionalização da análise das
DCN e PPP ............................................................................................................ 216
APÊNDICE B – Guia para condução de entrevista com professores ............. 218
APÊNDICE C - Guia para condução de entrevista com estudantes............... 219
APÊNDICE D - Guia para condução de entrevista com Gestores .................. 220
APÊNDICE E - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ...................... 221
ANEXO A - Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos sob o número 2.562.691 ...................................................................... 223
ANEXO B - Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos sob o número 2.648.119 ...................................................................... 226
16

1 INTRODUÇÃO

O fortalecimento das operações tecnológicas com objetivo lucrativo e valores de disputa


de mercado têm impulsionado frequentes e rápidas transformações sociais. Este caminhar, de
poucas restrições, vai se fortalecendo nos processos de globalização econômica, evidenciando
situações de pobreza, desigualdades e exclusão. São processos sociais que se desenrolam sob
aviltamento de direitos humanos fundamentais, que tem adentrado cada vez mais o âmbito da
educação em saúde, exigindo do processo educativo respostas cada vez mais complexas e
urgentes (KLEIN, 2008; FINKLER, 2009).
A chamada ao papel da educação enquanto instância relevante para a produção de um
mundo mais igualitário e justo tem depositado nestas instituições esperança por transformações
por vezes impraticáveis, ao menos nos moldes em que a educação vem sendo realizada. A
escola fragmentada em disciplinas e com metodologias de ensino-aprendizagem baseadas na
transmissão de conteúdos e repetição de ideias tem se mostrado pouco eficaz no estímulo a
pensamentos mais complexos, capazes de abordar com êxitos as atuais problemáticas sociais,
ambientais e éticas (BUXARRAIS, 2013). A influência das ideologias neoliberais sobre as
instituições de ensino superior tem levado à formação de jovens cada vez mais rápida, com
conhecimentos fragmentados e especializados, para que possam adentrar e suprir o mercado de
trabalho competitivo e globalizado (SILVA, 2012). Essa adaptação às demandas da sociedade
e, em especial, às demandas econômico-produtivistas, tem dominado a educação universitária,
enfraquecendo seu sentido humanístico e de desenvolvimento pessoal (ESTEBAN, 2019,
ESTEBAN; ROMÁN, 2016, HANSON, 2014).
Apesar da educação superior não ser capaz de resolver todos os problemas da sociedade
- pois uma nação se desenvolve de forma integrada na dependência de todos os seus setores -
os valores pelos quais se tem lutado nas últimas décadas –base da convivência harmoniosa e da
dignidade humana – são e devem ser objeto de reflexão e prática pedagógica (MARTÍNEZ;
ESTEBAN; BUXARRAIS, 2011).
A Universidade concentra, em grande parte, a classe de profissionais que serão os futuros
governantes da nação, razão pela qual, quando de seu surgimento, teve como objetivo não só a
formação técnica, mas também humanística. Profissionais devem ter consciência do poder
social que lhes é atribuído, e pelo qual devem assumir responsabilidade. Cabe à universidade
se colocar como vivência oportuna para o fomento da reflexão autônoma capaz de gerar (no
17

esforço criativo presente na luta contra problemas) as soluções viáveis, necessárias e prudentes.
Este é o papel da ética na universidade: à medida que convida o estudante a refletir de forma
autônoma sobre o a cultura da sociedade em que vive, ou seja, sobre suas crenças, valores e
sistemas de ideias, exige respostas traduzidas em ações de alta qualidade moral de seus futuros
profissionais e cidadãos (ORTEGA Y GASSET, 2001; GRACIA, 2007).
A sociedade necessita de cidadãos críticos, participativos e eticamente competentes, que
possam agir de forma responsável e prudente sendo capazes de vivenciar e de promover a
realização de valores humanizadores (FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2011). Apesar desta
premissa, grande parte das instituições acadêmicas tem dedicado seus esforços muito mais ao
desenvolvimento de habilidades técnico-científicas do futuro profissional, do que de suas
competências ético-sociais, como se fossem, entre si, excludentes (FINKLER, 2009).
Estes diferentes objetivos que movem a universidade acabam por confundi-la na busca
entre o que é urgente e o que é importante. É crucial que a educação universitária repense seus
estudantes para além da adaptação à realidade profissional, econômica e social, devendo
promover também sua dimensão ética por meio de uma educação em valores não apenas para
o âmbito profissional, mas também pessoal (ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004; FINKLER,
2009; BUXARRAIS, 2013; ESTEBAN, ROMÁN, 2016).
É sobre o sistema de ideias de uma nação e seu conjunto de valores que cada indivíduo
faz seus projetos de vida e, em função deles, toma suas grandes decisões. Apesar disto, sobre o
mundo dos valores morais, próprio da dimensão ética, pouco se estuda, pouco se discute, pouco
se reflete (GRACIA, 2007). De fato, poucos esforços têm sido travados dentro das instituições
de educação superior em Saúde na busca por compreender e desenvolver essa dimensão ética
da educação. Trata-se de um tema que permanece, assim, à margem do processo educativo
(FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012; FINKLER; RAMOS, 2017).
Faz-se necessário que o conhecimento próprio da educação superior seja trabalhado sobre
o olhar da ética capaz de auxiliar na construção moral do estudante. A aprendizagem ética,
pensada para toda a vida do estudante, deve buscar construir sua personalidade moral – gestada
em níveis anteriores do sistema educacional, mas que deve amadurecer na educação
universitária. O exercício profissional que negligencia seus aspectos éticos pode ser desastroso
para a comunidade e penoso para quem o exerce. Deste modo, a educação que permite exercer
uma profissão deve ser acompanhada da aprendizagem ética que permite o exercício da
cidadania (ESTEBAN, 2004; ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004, CORTINA, 1995).
Por ser universo há muito negligenciado, diferentes conceitos e concepções são
frequentemente tomados como sinônimos (como educação moral, ética profissional e dimensão
18

ética da educação), ignorando assim determinados fundamentos que os diferenciam. Ao


tratarmos da dimensão ética da educação, referimo-nos ao fazer pedagógico eticamente
comprometido em todas as situações em que o estudante tem a oportunidade de se desenvolver,
pois todo processo educativo invariavelmente opera na construção de um sujeito, acabando por
participar da construção moral de seus estudantes (FINKLER, 2009; BUXARRAIS, 2013). É
uma dimensão por ser transversal a tudo e a todos, o tempo todo, intencionalmente ou não,
envolvendo de forma complexa diferentes dispositivos capazes de gerar uma consciência moral
autônoma. É um processo educativo, pois, diferente da formação - focada na aquisição de
conhecimentos e conteúdos específicos/especializados - a educação, além de conteúdos, busca
a reflexão crítica e o agir autônomo, preocupando-se mais com as necessidades, desejos e
significados para as pessoas e os valores morais da realidade; e é um processo ético, pois trata
de reflexão sobre fatos, valores e deveres: os aspectos morais da realidade a partir do qual o
indivíduo constrói sua hierarquia de valores e sua personalidade moral (PUIG, 1998a;
FINKLER, 2009; ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Esta dimensão ética da educação deve convocar os alunos ao conhecer e ao autoconhecer,
a se aperfeiçoar, a buscar a excelência como alguém que se desafia permanentemente a se
superar, convocando-os a ser agentes de transformação social (ESTEBAN; ROMÁN, 2016). A
vivência universitária se coloca como uma oportunidade ímpar para a construção da
personalidade moral do estudante, que de fato, é essência da dimensão ética da educação.
A moral é um saber prático que busca orientar a ação e a vida humana. A experiência
moral remete à consciência que obriga a nós mesmos tomar determinadas atitudes. Obrigamo-
nos a ter determinadas atitudes por termos a capacidade de projetar ações e prever
consequências, essa previsão depende da capacidade de cada um de estimar, ou de valorar. Ao
valorarmos acabamos optando pela atitude que nos parece ter a melhor consequência, e assim
decidimos por uma determinada atitude em detrimento das outras. Tudo isto nos faz seres
intrinsicamente morais (FINKLER, 2009; FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012). As
vivências e experiências acadêmicas moldam uma maneira de ser de seu corpo acadêmico, uma
identidade moral que perpassa as distintas identidades universitárias construídas na vida
acadêmica e que compõem a identidade biográfica de seus indivíduos.
Para tanto, se faz necessário o planejamento e realização de situações capazes de propiciar
uma busca pela excelência, onde o estudante possa, independentemente do curso, vivenciar a
universidade, e não apenas passar por ela como se fosse uma corrida de obstáculos na busca de
um diploma profissional (ESTEBAN; ROMÁN, 2016). Este espaço de construção da
personalidade moral deve ser criticamente refletido e dialogado, e não ser uma questão de ‘boa
19

vontade’ daqueles envolvidos com a educação universitária (FINKLER, 2009). Há que se


compreender que determinadas estratégias e relações pedagógicas se fazem necessárias, que
momentos, vivências e conteúdos podem ser oportunidades de aprendizagem ética. Todos estes
componentes precisam ser analisados para que consigamos perceber o fenômeno da dimensão
ética da educação superior em Saúde. Esta compreensão se torna essencial na busca por
fortalecer a missão universitária e a possibilidade de a instituição educacional conseguir influir
nos rumos em que caminha a sociedade contemporânea.
Para esta investigação optou-se pela metodologia da Teoria Fundamentada nos Dados
(TFD), mais especificamente pela sua vertente construtivista. Nesta corrente são formulados
pressupostos contextuais e adotadas perspectivas capazes de sensibilizar as pesquisadoras,
fomentando suas ideias iniciais de pesquisa. Assim, destacam-se os conceitos sensibilizantes
apresentados nos marcos deste estudo: o sentido da Universidade e a compreensão das
ideologias e paradigmas que a influenciam, auxiliam a compreender o contexto atual da missão
universitária, evidenciando a necessidade de reforçar o papel universitário na busca pela
excelência humana (ESTEBAN; ROMAN, 2016); a compreensão da Universidade como
oportunidade de educação moral (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002) e o potencial
universitário de trabalhar a construção da personalidade moral (PUIG, 1998a) sensibilizam para
as questões gerais, e fundamentais, à construção moral de qualquer estudante. Destaca-se o
papel crucial do docente enquanto um tutor capaz de guiar o estudante na descoberta de si
mesmo; o modelo de fatores que influenciam a dimensão ética da formação profissional
(FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012) evidencia como atitudes, valores e ideologias de
modelos profissionais socialmente considerados prestigiosos podem influenciar a construção
moral do estudante, além dos elementos curriculares que influenciam as práticas pedagógicas e
experiências vivenciadas pelo estudante; e a por fim a perspectiva da identidade dos estudantes
na vida acadêmica, a partir de vivência de valores e da aprendizagem ética (GRACIA, 2020)
nos auxilia a compreender que a construção da personalidade moral ou identidade constitui uma
dimensão da construção biográfica dos indivíduos. Esta foi a estrutura que auxiliou no
delineamento da pesquisa, sendo a teoria resultado da análise dos dados coletados em campo,
juntamente com as ideias das pesquisadoras, sempre abertas a novos olhares e perspectivas que
surgiram ao longo do percurso metodológico.
Buscou-se com esta tese responder como a dimensão ética da educação superior nos
cursos de Saúde vem sendo desenvolvida na Universidade, tendo como objetivo geral
construir uma teoria sobre as expressões do fenômeno da dimensão ética da educação superior
em Saúde. Constituíram-se como objetivos específicos: conhecer o significado da dimensão
20

ética da educação superior em Saúde e construir uma teoria sobre esta dimensão educativa.
Tomam-se como pressupostos o fato de que esta dimensão da educação superior ainda é
negligenciada, realizada de forma não intencional e limitada à formação deontológica de seus
membros e que pode ser mais bem desenvolvida a fim de promover a construção de cidadãos-
profissionais eticamente competentes, capazes de promover as transformações socialmente
necessárias.
21

2 MARCO CONCEITUAL

O marco conceitual, enquanto base teórica para as diferentes etapas do estudo, é aqui
compreendido sob a perspectiva da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) pautada em
Charmaz (2009). A autora se embasa nas ideias de Blumer (1969 apud CHARMAZ, 2009)
sobre conceitos sensibilizadores: na medida em que a pesquisadora se aproxima de
determinadas teorias ou conceitos, dá forma às ideias iniciais a serem buscadas e se sensibiliza
para os questionamentos necessários ao seu objeto de pesquisa. Os conceitos escolhidos,
juntamente com os interesses orientadores e com as perspectivas disciplinares, são pontos de
partida (e não limitações) para conceber questões de entrevistas, observar os dados, ouvir os
entrevistados e pensar analiticamente sobre os dados, ao mesmo tempo em que deixam evidente
para os leitores como a pesquisadora considerou sua análise (CHARMAZ, 2009).
Os conceitos sensibilizadores escolhidos para esta pesquisa são apresentados a seguir,
sendo eles: o sentido da Universidade – apresentando sua missão e a crítica comunitarista às
influências das ideologias e paradigmas do Liberalismo nas instituições universitárias; o
modelo de aprendizagem ética – trazendo reflexões sobre os modos de promover a dimensão
ética da Universidade; a construção da personalidade moral – buscando entender a educação
moral como construção da identidade ou personalidade moral dos estudantes; a dimensão ética
da formação profissional em Saúde – que abarca os fatores que influenciam a formação ética
no contexto da educação superior em Saúde e, por fim, a construção identitária na vida
acadêmica – acerca do papel da educação superior na construção das identidades.
Para pensar o sentido da Universidade, sua missão e correntes ideológicas que a
influenciam, estes dois primeiros subcapítulos se embasam, principalmente, na obra ‘¿Quo
Vadis, Universidad?’ de Francisco Esteban Bara e Begoña Román. O livro é resultado da tese
de doutorado em Filosofia de Esteban, psicopedagogo e doutor em Pedagogia, professor do
Departamento de Teoria e História da Educação da Universidade de Barcelona. A obra foi
escrita em parceria com a professora Begoña Román, filósofa e doutora em Filosofia, docente
da Faculdade de Filosofia da mesma universidade.
O modelo de aprendizagem ética para a Universidade foi desenvolvido por Esteban
juntamente com Miquel Martínez Martín - doutor em Filosofia e Ciências da Educação e María
Rosa Buxarrais - doutora em Ciências da Educação, licenciada em Psicologia e professora
titular da Faculdade de Pedagogia da Universidade de Barcelona. Os autores são membros do
Grupo de Investigación en Educación Moral (GREM) da Universidade de Barcelona, que é
referência de excelência internacional há mais de três décadas nos estudos sobre educação
22

moral, e que recebeu a autora desta tese para estágio de doutorado no exterior, sob supervisão
do prof. Esteban.
O entendimento de educação moral como construção da personalidade está embasado
na obra de outro membro do GREM - Josep Maria Puig, professor de Teoria da Educação da
Universidad de Barcelona. Puig ministrou classes de Teoria da Educação e Educação em
Valores, sendo considerado autoridade em Educação Moral por diversos autores da Educação.
O modelo conceitual dos fatores que influenciam a formação ética de profissionais de
saúde é resultado da tese de doutorado de Mirelle Finkler, orientadora da presente tese, sob
orientação, por sua vez, dos professores Flávia Regina Souza Ramos e João Carlos Caetano, da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Já a construção identitária na vida acadêmica é resultado do estudo destas e de outras
obras dos autores já referidos e em diálogo com a literatura, principalmente com o último livro
de Diego Gracia - “Em busca da Identidade Perdida”, que é professor catedrático de História
da Medicina da Universidad Complutense de Madrid e importante bioeticista.
Reforça-se que estes conceitos foram tomados apenas como ponto de início do estudo,
permanecendo a pesquisadora aberta a todas as ideias e conceitos trazidos nas etapas da
pesquisa de campo.

2.1 UNIVERSIDADE: QUAL O SEU SENTIDO?

O estudo do processo de construção das instituições educacionais na história da


humanidade ocidental deixa evidente uma questão a ser respondida: ‘qual deve ser a relação
entre conhecimento e intervenção prática?’ Ou melhor, ‘nos moldes como esta relação se dá
hoje, tem sido possível responder à missão de uma universidade?’. E mais, ‘à que missão
estaríamos nos referindo?’. O entendimento da missão dessa instituição de ensino pode ser
encontrado no seu percurso histórico. Sua construção se dá sobre as constantes tensões de
correntes contrárias, por vezes opostas, que disputam força e espaço, e que acabam mantendo-
a pulsante (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, ESTEBAN, 2019).
A história da universidade nos remete a mais de um milênio atrás, na Antiguidade
Clássica. A educação aos moldes clássicos era aquela interessada no desenvolvimento da
excelência do ser humano, onde os saberes ensinados eram aqueles ‘de ordem superior’,
capazes de resgatar da ignorância e levar à verdade, ao bem e à beleza, sendo, portanto, saberes
que valiam por si só (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p.37). Mesmo sendo este o olhar na
23

concepção da Universidade, diferentes tensões surgem no seu caminhar. Enquanto correntes


filosóficas como a de Sócrates e Platão, buscavam como fim maior o autoconhecimento,
coexistiam aqueles que entendiam o desenvolvimento humano como um fim além de si mesmo,
uma utilidade social, como os sofistas (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
O desenvolvimento da excelência humana encontra no Renascimento um contexto
favorável ao desejo do intelectual por um espaço propício à busca do conhecimento. Assim
ocorre a institucionalização da atividade intelectual, reconhecendo-se a universidade como o
lugar onde o estudante buscará adquirir conhecimentos que possibilitem realizar “atividades de
interesse público” (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p.27). Tais atividades eram caracterizadas em
duas modalidades: as ditas liberais (ancoradas no entendimento clássico de busca da verdade,
perfeição e beleza, e de caráter contemplativo, teórico- capazes de aumentar a dignidade
humana), e as atividades mecânicas (de caráter prático, físico, e que necessitavam do
desenvolvimento de alguma habilidade). Como as atividades mecânicas eram desprestigiadas
para os intelectuais, eram os saberes liberais que ditavam a configuração da própria educação
(ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Durante os séculos XIV e XV, aplicou-se o que se conheceu como pedagogia
escolástica, baseada na leitura e discussão de textos a partir da memorização e repetição dos
mesmos. Também era o tutoramento de alunos por professores condição sine qua non para a
permanência do estudante dentro das instituições. Neste período, elas se dividiam entre aquelas
dirigidas por estudantes e voltadas para os seus interesses e àquelas comandadas por professores
e, portanto, atendendo suas conveniências. Interessa saber que, independente de qual fosse o
molde institucional, a Universidade era controlada, hora mais, hora menos, por poderes
externos a ela, poderes que se dividiam principalmente entre monarcas e a Igreja Católica. Estas
tensões de interesses levam alguns autores a destacar o momento de regulação legal das
instituições de ensino como o início do enfraquecimento da ideia de Universidade (ESTEBAN;
ROMÁN, 2016).
Com o surgimento do Humanismo tem início uma nova forma de enxergar a relação da
universidade com a comunidade. Ela deixa de ser um lugar de formação de professores e
clérigos e volta-se para a preocupação com a educação de pessoas para viverem e atuarem na
comunidade. A veneração, a contemplação e a repetição, bases do ensino dão lugar a busca do
aprendizado e do descobrimento (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Do início do séc. XV até o início do séc. XVIII a universidade volta-se para a busca de
resultados objetivos e suprime muito da experiência intelectual e moral almejada pelo
Humanismo – a universidade deixa de ensinar cultura e centra-se na formação da classe
24

dirigente. É com o Iluminismo do séc. XVIII que se fomenta um sentido individualista às


instituições, rompendo-se o clima de universalidade e intercâmbio de ideias. O ensino teórico
é substituído pelo ensino prático, e o intelectual é substituído pelo científico. Surgem assim as
faculdades de ensino profissional – muitas delas reduzidas à outorga de títulos. Neste período
afloram também as escolas de ensino público totalmente controladas pelo Estado. Assim o
modelo de universidade, compartilhada e universal, desdobra-se em diferentes modelos de
ensino (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Um desses modelos é o Humanista. Sua concepção é aquela apresentada anteriormente,
baseada na busca pela excelência humana, sendo a formação profissional um complemento.
Neste modelo, a universidade inspiraria a sociedade quanto aos rumos que deveria tomar. Outro
modelo é o progressista, baseado nas contínuas respostas da instituição às realidades e
circunstâncias de seu contexto, podendo este mudar o próprio sentido da universidade, na qual
o que vale é a utilidade das ideias e atividades acadêmicas (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
As tensões criadas entre estes opostos têm mantido viva estas instituições educacionais.
Tais forças não teriam necessariamente que entrar em conflito, uma vez que essenciais para o
desenvolvimento do estudante enquanto ser humano e enquanto profissional. Assim se
aprimora a constituição da universidade: a serviço da comunidade na medida em que se
aproxima de sua realidade comunitária, ao mesmo tempo em que está a serviço do ser humano,
da busca de sua excelência pessoal (ESTEBAN, 2019).
Em maior ou menor grau, tem-se concebido a educação universitária como “una
cuestión de orientación personal, como una educación integral o como un proceso formativo
que no debe dejarse en el tintero este tipo de cuestiones más personales, humanísticas y
culturales” (ROMÁN; ESTEBAN, 2012 apud ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p. 205). Acontece
que nos últimos anos esses objetivos diversos não têm encontrado estabilidade na sua
coexistência. A questão da utilidade e adaptação às demandas da sociedade tem dominado o
cenário das instituições universitárias, ao mesmo tempo em que se enfraquece seu objetivo de
desenvolvimento pessoal e humanístico (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Não se trata apenas da utilidade da universidade tomando as rédeas da educação, mas
da esfera de aceitação acrítica ao redor daquilo que tem utilidade, convertendo o “útil”
automaticamente em verdadeiro e benéfico: “no se duda de la bondade y veracidade de la
educación universitária si esta demuestra rentabilidade” (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p.206).
Neste sentido, mesmo as intenções de se buscar resposta aos problemas da sociedade acabam
esbarrando em interesses de mercado, comuns ao liberalismo e que acabam desviando ainda
mais a Universidade de sua responsabilidade na transformação da realidade social.
25

A partir destas realidades vivenciadas pela educação universitária, Esteban e Román


(2016) apostam em um modelo misto de universidade, que deve se preocupar tanto com a
excelência humana quanto com a eficácia das respostas práticas dadas às realidades da
sociedade em que se insere. Para tanto, os autores destacam algumas características
desenvolvidas pelas instituições de ensino ao longo de toda a sua história e que deveriam ser
mantidas.
Primeiro destaca-se a ideia de educação ao invés de formação. Para os seguidores do
modelo progressista a formação está ligada ao conhecimento de conteúdos específicos, de
estudos especializados. Neste sentido para os progressistas a prioridade da universidade é
buscar eficácia nas suas respostas à realidade. Já para os humanistas, o sentido da universidade
é muito mais de educação humana do que de formação profissional. A educação universitária
não é somente a busca de conteúdo, mas também de forma e de contexto, pois se preocupa com
a vontade da pessoa e os valores morais por ela vivenciados. A educação seria então o
fundamento da Universidade, a base sobre a qual, posteriormente, poderia germinar uma
formação profissional, pois esta também ajudaria a praticar a excelência humana. Para os
humanistas se só se formam profissionais, não se formam “homens livres” (ESTEBAN;
ROMÁN, 2016, p. 60), pois a educação deve ser voltada para o desenvolvimento da cultura,
que é o sistema vital de ideias de cada tempo que nos permite viver livremente. Neste sentido
a educação seria então voltada à cultura, enquanto a formação seria meio para alguma utilidade.
A segunda característica que deveria ser mantida no modelo universitário misto é a de
Universalidade. Na visão progressista o que mais valeria é a eficiência de responder à realidade
próxima, o que, além de uma galopante especialização das profissões, leva a um individualismo
do conhecimento. Para os humanistas, enquanto o desenvolvimento cultural une, as
profissionalizações separam. A questão é que não é possível desenvolver a ideia de
universalidade em um contexto universitário que tem como maior objetivo responder à
realidade cotidiana, pois suas soluções terão data de validade. De igual forma, a universidade
que se preocupa apenas com questões universais não é capaz de responder às questões concretas
da realidade. Assim, é na universidade mista que a ideia de universalidade pode ser realizada,
sem por isso deixar de se relacionar com as questões práticas da sociedade, sendo este ‘olhar
para a comunidade’ uma contribuição do modelo progressista (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Outra característica essencial à universidade é a de gremialidade entendida como a
potencialidade das instituições universitárias se organizarem enquanto verdadeiras
comunidades. Para os progressistas, respostas eficientes não necessariamente necessitam ser as
melhores, por isso suas agremiações podem isolar-se em uma disciplina onde suas produções
26

intelectuais não precisarão passar pelo crivo da interdisciplinaridade ou das humanidades. No


entendimento da corrente humanista, a busca da verdade nunca será autônoma se tiver atrelada
somente a interesses de comunidades locais. O problema é que, por vezes, há uma confusão
entre liberdade acadêmica e independência. A liberdade da busca pela verdade não autoriza
mudar a essência da universidade e da construção coletiva, do contrário cair-se-ia novamente
no erro de formar intelectuais incapazes de atuar na realidade política ou de especialistas com
respostas limitadas da realidade (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
A última característica essencial à manutenção da essência da Universidade é o seu
potencial de estimular a vida universitária. Esta ideia de viver a universidade exige das
instituições maior aproximação entre professores e estudantes, formando uma comunidade de
vivência e construção diária de autonomia (ESTEBAN, 2019). É muito mais do que se apropriar
de alguns saberes como exige o modelo progressista, mas também desenvolver caráter, hábitos
pessoais enraizados em práticas cotidianas com conteúdos oportunos ao desenvolvimento da
bagagem cultural (e que hoje estão limitados a disciplinas eletivas). Esteban e Román (2016)
atentam ao fato de que a Universidade deve ser uma comunidade unida, com objetivos, regras
e hábitos próprios capazes de manter um sentido no seu caminhar – sendo que este caminhar
deve levar a uma revolução existencial. Assim seríamos capazes de vivenciar as práticas
profissionais dentro da universidade, sem por isso abandonar as possibilidades de a instituição
proporcionar ao estudante vivências humanizadoras (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Estes diferentes aspectos desenvolvidos ao longo da história da universidade nos
revelam a crucialidade da relação entre o conhecimento e a realidade social. Diversos autores
atestam que a universidade, e em particular os cursos da área da saúde, têm voltado sua atenção
mais à formação de conhecimentos e habilidades profissionais do que ao desenvolvimento da
excelência pessoal e profissional. Os autores defendem que um ponto central a ser melhor
desenvolvido é o da competência ética do estudante, pois é a ética que exige excelência – a
busca do ótimo, que convida a refletir sobre a realidade, seus valores e conflitos, almejando
capacidade de crítica e autonomia moral (RAMOS, 2007; REGO; GOMES; SIQUEIRA-
BATISTA, 2008; AMORIM; ARAÚJO, 2013; BURGATTI et al., 2013, FINKLER; RAMOS,
2017).
Gracia (2012) evidencia que a autonomia adquiriu diferentes significados ao longo da
história: a autonomia política compreendida como a capacidade das cidades antigas e dos
Estados modernos de impor suas próprias leis; o sentido metafísico introduzido por Kant, no
qual a autonomia é entendida como uma característica intrínseca a todos os seres racionais; e
por último o sentido jurídico, no qual as ações são ditas autônomas quando realizadas com a
27

devida informação e competência e sem coerção, um sentido legal e não moral. Gracia (2012)
reforça a autonomia almejada pela educação deve ser a autonomia moral, um quarto sentido,
no qual os atos só podem ser chamados de morais quando dirigidos internamente e com
responsabilidade sobre suas consequências. O objetivo da educação ética seria, então, formar
seres humanos capazes de tomar decisões autônomas e responsáveis, é fazê-lo compreender
que suas atitudes provêm de seus deveres e não por qualquer outra motivação não moral, como
conforto, comodidade ou satisfação. O objetivo da educação deve ser essa autonomia moral.
De acordo com Ortega y Gasset (2001) a missão da Universidade deve, em primeiro
lugar ser o ensino dos saberes culturais presentes, aqueles que reúnem a interpretação da vida
e que, portanto, desenvolvem a pessoa culta. O ser humano culto é aquele que sabe caminhar
pela vida, porque conhece sua topografia, seus caminhos e métodos, ou seja, tem noção do
espaço e do tempo em que vive. A partir daí seria possível desenvolver os conhecimentos
específicos das ciências e da vida profissional. Engana-se a universidade que crê que a mera
aquisição de conhecimentos específicos é capaz de transformar a realidade. A educação
universitária deve ser a educação para a vida (ORTEGA y GASSET, 2001, ESTEBAN 2019).
Neste sentido, Esteban e Román (2016) apontam que a universidade deve buscar a
educação integral das pessoas e, portanto, se ocupar com a sua humanidade e valores morais.
Um conhecimento que desenvolva o intelecto e a moral, que encare a ciência como algo aberto
e não fechado em si mesmo, colocando a cultura como uma maneira de buscar este saber. Mas
o que poderia converter a educação universitária atual em uma educação para a vida?
A compreensão e valorização da dimensão ética da educação superior pode ser o
caminho a ser trilhado para unir realidade prática e conhecimento, onde os processos da
educação, da universalidade, da gremialidade e da vida universitária, fornecem elementos
capazes de possibilitar o desenvolvimento de cidadãos éticos, que atuem de forma prudente,
responsável e comprometida com valores humanizadores e saberes culturais, sem por isso
prescindir da competência profissional (FINKLER, 2009).
Conhecer as características desenvolvidas ao longo da história auxilia na compreensão
da Universidade que temos hoje e nos dá elementos para pensar a educação que nela
desenvolvemos. A ideia de Universidade, pensada enquanto uma educação para a vida coloca
a profissão, o caráter e a reflexão crítica como objetivos a serem perseguidos na vida
universitária. A partir deste resgate da missão de uma Universidade, exploraremos no próximo
subcapítulo outras críticas ao modelo universitário contemporâneo, buscando compreender
ainda melhor o contexto do objeto desta pesquisa.
28

2.2 AS CORRENTES TEÓRICAS DO LIBERALISMO E DO COMUNITARISMO

A compreensão do modelo universitário passa pela percepção da importância que existe


na influência de ideologias e paradigmas da atualidade dentro de instituições públicas e no
próprio imaginário social. Uma instituição educativa como a universidade “depende mucho más
del aire público en que integralmente flota que del aire pedagógico artificialmente producido
dentro de sus muros” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 2). Neste sentido a doutrina político-
econômica do Liberalismo, que teve origem com os pensadores iluministas e que ganha força
enquanto doutrina de Estado com o advento da globalização e com ela, do ‘neoliberalismo’
(KLEIN, 2007), passou a ganhar importância na análise dos estudiosos da Educação.
A doutrina filosófica do Liberalismo vem firmar o direito do indivíduo de formar suas
próprias crenças e expressá-las livremente e por isso seu direito de escolher a vida que deseja
levar (ESTEBAN; ROMÁN, 2016). O impacto dessas ideias no processo educativo,
principalmente aquelas embasadas na “Teoria da Justiça” do filosofo John Rawls (1997), pode
ser observado nas reformas educacionais como a realizada no Processo de Bolonha1 e que
assume a ideologia de “formar jovens em menos tempo, com economia de conhecimento, para
que possam ingressar rapidamente nas estratégias competitivas de um mercado globalizado”
(SILVA, 2012, p. 54).
Veremos a seguir a crítica comunitarista ao modelo liberal de Universidade, organizada
na obra de Francisco Esteban e Begõna Román (2016), em que se questiona a prioridade do
desenvolvimento da autonomia sob outros valores, gerando um individualismo exacerbado,
principalmente em relação à comunidade. Os postulados desenvolvidos por diferentes
pensadores comunitaristas, como Michael Sandel, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e
Michael Walzer fazem crítica ao liberalismo (e às ideias de autores como Immanuel Kant, John
Rawls e Stuart Mill) e influenciam a educação universitária, propondo modelos embasados no
processo de auto compreensão e auto realização humana. Estes postulados enriquecem a
definição da missão universitária além de ampliar e reforçar o sentido filosófico da educação,
enraizando-a no terreno da ética (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
O primeiro postulado tratado por estes pensadores é a constituição da identidade. Para
os liberais, os valores enraizados pelos indivíduos advêm de escolhas autônomas dos mesmos

1
O Processo de Bolonha deve o seu nome à chamada Declaração de Bolonha, que foi assinada em 19 de Junho de
1999, na cidade homônima italiana, pelos ministros responsáveis pelo ensino superior de 29 países europeus.
Trata-se de um processo de reforma intergovernamental que buscou rever as antigas tradições universitárias e
concretizar o Espaço Europeu de Ensino Superior – pensado para integração de alunos e professores dos diversos
países membros, transformando as instituições de ensino superior em centros, não só de modelo acadêmico, mas
também de gestão, tal qual ocorria no EUA.
29

– autônomas no sentido de independentes - não importando o meio social em que se inserem.


É como se os valores existissem a priori para serem escolhidos, não sendo extraídos de
processos relacionais ou práticos. Neste sentido, o que tornaria uma pessoa humana, de fato, é
a capacidade de fazer escolhas, independentemente dos valores em que se baseia ou,
consequentemente, das decisões que toma. É por isso que, para os adeptos do liberalismo, o
respeito à autonomia deve prevalecer sobre os demais, pois seria esta suposta autonomia que
vai garantiria a possibilidade de decidir livremente, independentemente e mesmo apesar dos
demais (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
A crítica dos comunitaristas é que a natureza humana tem uma finalidade, um telos que
possui uma dimensão moral e que, portanto, é concebido em sociedade, tornando o indivíduo
menos autônomo do que Rawls pretendeu assumir. Se o indivíduo pudesse se constituir fora
das experiências, fora da construção social das identidades, poder-se-ia abdicar de valores a
qualquer momento, como se os mesmos fossem meramente instrumentais e não nos exigissem
determinados deveres (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Se o indivíduo pudesse consolidar sua identidade de forma desvinculada do seu meio
social, ele só se uniria a grupos ou cooperaria com comunidades se isto lhe trouxesse benefícios
individuais. Portanto, o liberalismo não pregaria a autonomia, e sim um individualismo
‘asocial’. Não haveria então laços morais ou aprendizado moral. O eu seria independente e
desvinculado. Neste ponto, os comunitaristas dão ênfase à importância de um movimento
contrário, onde o indivíduo, na realidade, se constrói na dependência de sua relação
comunitária, sendo essencialmente um ser implicado e, portanto, necessariamente
(co)responsável por sua realidade (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
A crítica comunitarista assim exposta busca mostrar que a Universidade, enquanto
ambiente de vivências coletivas, consolida uma comunidade moral, e que esta influencia os
indivíduos que nela vivenciam relações sociais. Neste sentido, o segundo postulado da crítica
comunitarista trata das fontes da moral, os lugares onde experenciamos os princípios e valores
morais (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Diferente de correntes influenciadas por estudiosos como Stuart Mill, que afirmam que
as pessoas devem sozinhas construir seu sistema moral, Kant, que também defendia a
autonomia no lugar da heteronomia, entende que esta construção (apesar de autônoma) não
deve e nem pode ser realizada em isolamento à realidade social - pois é um imperativo
categórico que regras morais autônomas devem pressupor a possibilidade de serem universais
(ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
30

Rawls, enquanto liberalista, concorda com a autonomia kantiana no sentido de


identidade moral construída desde o indivíduo (e não por regras externas a ele), acolhendo
também a ideia de que pessoas autônomas devem buscar sim, uma sociedade mais justa -
baseadas na sua ideia de véu da ignorância. A principal consequência dessa junção de ideias,
evidenciada pelos comunitaristas, aloja-se no fato de que a pessoa que cria suas regras morais,
isolada do social, alimenta o problema do egocentrismo (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
A cultura liberal tem alimentado um ‘eu emotivista’, que não é capaz de discernir por si
mesmo o que é correto e o que é opinião pessoal. Este indivíduo, que decide sozinho sem
compartilhar, frequentemente confunde razão pessoal com a impessoal, motivada por emoções
momentâneas (MACINTYRE, 1984). Assim não haveria identificação com as perspectivas
morais que aparentemente foram adotadas. O indivíduo careceria de critérios racionais capazes
de justificá-las, o que leva a reduzir seu debate moral ao entendimento do outro como um meio
para os seus fins (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Para os comunitaristas, o papel da sociedade na construção moral do indivíduo é
profundo: as pessoas não elegem ‘isoladamente’ um sistema moral, mas se encontram inseridas
em sociedades morais que, invariavelmente, estabelecem concepções de bem e mal e que são
vinculadas, em maior ou menor grau, pelos indivíduos que a ela pertencem. Esta vinculação se
dá, na medida em que o indivíduo se identifica com os valores experenciados - e por ele
significados, em espaços morais comunitários (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).

[…] no se trata solo de una voz interior que determina las normas morales, sino de
una voz imbricada con el exterior, con la voz comunitaria que proviene del exterior
de la persona (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p. 168).

Assim, para fugir do “eu emotivista” do Liberalismo, faz-se necessário tratar do papel
social de ser humano e dos mistérios que há em ser pessoa. Ao buscar o sentido de humanidade,
é essencial tratar das virtudes - das práticas de excelência do caráter humano evidenciadas desde
Aristóteles - e hoje entendidas como valores morais, e que permitem ao indivíduo desempenhar
um papel social. A prática das virtudes não pode se realizar em separado da comunidade, pois
acontecem em papeis sociais incorporados pelos indivíduos, ou, dito de outra maneira, dentro
das práticas sociais, ou mesmo ofícios, assumidos (ESTEBAN; ROMÁN, 2016,
MACINTYRE, 1984).
A grande quantidade de práticas existentes faz com que as pessoas possam assumir mais
de uma delas, praticando assim diferentes e diversas virtudes morais. Nos possíveis momentos
em que esses valores entram em conflito, as pessoas podem fazer julgamentos morais a partir
31

de sua experiência de vida, de sua narrativa humana. Esta então assume um marco de referência
moral (ESTEBAN, ROMÁN; 2016).
A forma como cada indivíduo decide e busca seus ideais de vida boa é diferente
conforme a pessoa e a época, isso acontece não porque as circunstancias sociais são diferentes,
mas porque os indivíduos abordam essas circunstâncias incorporando uma determinada
identidade social (MACINTYRE, 1984). O que seria um ideal de vida boa tem de passar pelo
crivo da tradição, ou seja, é necessário desenvolver formas de decidir tendo conhecimento das
diferentes formas de criticar e valorar já existentes (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Para os comunitaristas, os indivíduos dispõem de recursos racionais para valorar e
decidir, e cabe às instituições educacionais como a Universidade buscar essa educação que
considera os diferentes valores necessários às diversas práticas sociais existentes, entendendo
a importância de sua relação com a comunidade e a construção de uma identidade moral
autêntica.
O último postulado desenvolvido pelos comunitaristas na sua crítica ao Liberalismo
trata da neutralidade moral exigida por estes últimos. De acordo com Rawls o Estado e suas
instituições, como a Universidade, devem incorporar uma neutralidade moral em relação às
suas ações. Diferentes formas de neutralidade foram idealizadas por pensadores liberais e por
eles mesmos criticadas. O próprio Rawls ao discorrer sobre uma possível ‘neutralidade de
propósitos’ na qual o Estado deve se abster de promover atividades que possam aludir a uma
determinada concepção de bem em detrimento de outra, afirma impraticável a imparcialidade
de efeitos e influências de uma instituição pública (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
A crítica realizada pelos comunitaristas afirma com mais abrangência essa
impossibilidade de neutralidade moral, seja pelo Estado ou por suas instituições. Segundo seus
autores mesmo que os liberalistas lutem por essa imparcialidade, sua própria defesa deve estar
embasada em algum fundamento onde “la própria neutralidade también puede ser vista como
una concepción de bien particular y concreta” (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p.183), o que leva
a ideia de neutralidade moral a fracassar desde sua concepção.
Os comunitaristas apostam em um espaço público que assume alguma concepção de
bem, de concepção moral, pois o Estado e suas instituições, e em destaque a Universidade,
devem facilitar o processo de ‘perfeição humana’, ou seja, de otimização moral das pessoas.
Como para esses autores, a identidade moral se forma a partir de uma comunidade de referência,
esta deve ativamente buscar orientar moralmente seus integrantes. Diversas críticas surgem a
partir dessa ideia comunitarista, pois como eleger determinados bens sobre outros? Como lidar
32

com o pluralismo moral? Estes questionamentos vêm sendo feitos e ainda não são
satisfatoriamente respondidos (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Sobre esta questão, destaca-se o pensamento de Michael Walzer ao afirmar que os
diferentes bens morais existem por possuírem diferentes razões de ser, sendo que muitos
problemas são criados em sociedade por que “se permutan bienes que tienen significados
diferentes” (ESTEBAN; ROMÁN, 2016, p.186). Segundo o autor em sociedades capitalistas
não é tanto a distribuição de dinheiro a maior injustiça, e sim os bens que vem associados a este
valor monetário, como saúde e educação. O acúmulo de dinheiro, e a saúde e educação são bens
que não pertencem à mesma esfera e não devem, portanto, estar associados. Neste sentido é que
se deveria fomentar o papel ativo do Estado em controlar as barreiras que separam esses
diferentes bens. Essa seria a maior neutralidade que as instituições públicas poderiam assumir
(ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Analisando o pressuposto da não-neutralidade nas instituições públicas brasileiras é
possível perceber o cerco das perspectivas liberais às instituições de ensino. Diferentes políticas
educacionais, concebidas para proteger e instrumentalizar as instituições de ensino superior
para que tenham meios de se qualificar para a missão universitária, podem, na realidade,
produzir efeitos negativos no próprio ethos da educação superior. Programas como o PROUNI
(Programa Universidade para Todos), de incentivo à propagação do EaD (Ensino à Distância),
e o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) que tem a perspectiva de realizar o direito social
à educação, podem, em alguma medida, também contribuir para a mercantilização da educação
ao trabalhar o aumento acelerado do número de cursos na rede privada de ensino. Essa
mercantilização da educação suprime a possibilidade de se implantar uma educação pública,
gratuita, laica e socialmente referenciada. As consequências à educação vão desde a oferta de
diplomas ‘vazios’ (devido, principalmente, às exigências de curto prazo e o abaixamento dos
padrões curriculares), até a precarização do trabalho docente com condições inadequadas à
permanência em regime integral. Estas políticas são resultado de um regime maior, que tem o
setor econômico e a própria Organização Mundial do Comércio (OMC) como protagonistas
(CHAUÍ, 2003; KLEIN, 2007; LISBOA, 2013; SCHUCH, 2013). A “esfera pública é
praticamente congelada e a ampliação da oferta de vagas em instituições privadas é estimulada
(já respondem por mais de 80%)” (SCHUCH, 2013, p.62).
Não há como considerar a relação entre Estado e sociedade como uma relação de
exterioridade. Para que determinadas concepções, como os ideais democráticos, se realizem no
interior da Universidade, é preciso que também se materializem na prática estatal. Porém, a
universidade não precisa ser determinada pela estrutura da sociedade e do Estado. Por ser uma
33

instituição social diferenciada e definida por sua autonomia intelectual pode conflitar com
ambas frentes de pensamento. Estas disputas muitas vezes a fragmenta (CHAUÍ, 2003, p.6)
como no caso analisado dos modelos humanista e progressista.
Mercantilizar a educação tem levado muitas instituições a se comportarem como
organizações sociais – julgam ter uma finalidade específica, uma prática social definida pela
sua instrumentalidade, assim prestam um serviço, mas sem discutir sua própria existência, seu
lugar nas transformações sociais possíveis. Já o comportamento enquanto instituição social é
imprescindível à universidade. Seu princípio, sua referência valorativa e normativa é a
sociedade, e, portanto, se pretende a encontrar um modo universalizável de existência quando
entram em conflito divisões sociais e políticas. Uma instituição de ensino que se comporta
enquanto organização social tem referência em si mesma, só se movimenta no sentido de
competir com as outras que possuem os mesmos objetivos particulares (CHAUÍ, 2003).
Este comportamento tem se infiltrado na universidade pública brasileira. A
característica fragmentadora do capitalismo tem refletido nestas instituições por meio de
inúmeras especializações, de pesquisas que ao invés de buscarem o conhecimento de algo se
delimitam como campos de intervenção e controle, inúmeros contratos de gestão, avaliação por
índices de produtividade, e de micro organizações que ocupam seus docentes e submetem os
estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual – é a heteronomia da universidade
autônoma (CHAUÍ, 2003).

Reduzida a uma organização, a universidade abandona a formação e a pesquisa para


lançar-se a fragmentação competitiva. Mas por que ela o faz? Porque está privatizada
e a maior parte de suas pesquisas é determinada pelas exigências de mercado,
impostas pelos financiadores (CHAUÍ, 2003, p.8).

Conhecimento e informação tornaram-se forças produtivas compondo o próprio capital.


Nesse quadro, a universidade pública passa a ser produtora de um saber destinado à apropriação
privada. A produção do conhecimento acadêmico avaliado por critérios de eficácia e
competitividade passaram a ser mais um sinal da heteronomia da universidade pública (CHAUÍ,
2003).
Este contexto da Universidade brasileira não difere da realidade de outros países. Santos
(2020) afirma que as universidades vêm sofrendo intensamente, principalmente nos últimos 40
anos, de ataques provindos da consolidação do neoliberalismo como lógica dominante do
capitalismo global, resultando na concepção da Universidade como área de investimento
potencialmente lucrativo. Sob esta perspectiva permitiu-se e promoveu-se a criação de
universidades privadas com acesso a fundos públicos, ao mesmo tempo em que as crises
34

econômicas se tornam subterfúgios para o subfinanciamento das universidades públicas. Este


processo é acompanhado pela degradação dos salários de professores conduzindo a uma busca
pelo setor privado – uma forma de transferência de investimento público na formação de
professores para o setor privado. Outro resultado das práticas neoliberais nas instituições
educativas públicas é a introdução de gestões universitárias sob a lógica mercantil, o que reforça
o objetivo de formação para o mercado e precariza o estatuto de professor e pesquisador. Assim,
os estudantes passam a ser vistos como consumidores de um serviço. As consequências disto é
que as universidades públicas, mesmo antes da pandemia atual, já estavam bastante
desfiguradas, sem qualquer visão de sua missão social e mergulhadas em profundas crises
financeiras (SANTOS, 2020).
Outro ataque sofrido pelas modernas universidades públicas veio da ultradireita
ideológica, extremamente conservadora e, por vezes, fundamentada em termos religiosos. Esta
ultradireita adentrou ao governo de muitos países e já vinha, há muito, influenciando as políticas
universitárias. Suas principais consequências tem sido eliminar da Universidade qualquer
pensamento crítico, livre e independente. Transformando em ‘ideologia’ a ser combatida toda
reflexão e ação que não coincide com seu pensamento conservador (SANTOS, 2020).

Os dois ataques, apesar de diferentes na formulação e na base de sustentação, são


convergentes no mesmo objectivo: impedir que a UP continue a produzir
conhecimento crítico, livre, plural e independente (SANTOS, 2020, p.1).

As críticas anti-ideológicas se fundamentaram na crise financeira para reduzir o ensino


a matérias básicas, por serem estar ‘isentas de ideologia’ e mais úteis ao mercado de trabalho
(SANTOS, 2020). O resultado destes ataques tem levado a fragilização (e até a eliminação) de
departamentos de filosofia e ciências sociais, dificultando ainda mais o estímulo ao aprendizado
ético dentro das Universidades.
As concepções e as críticas apresentadas nestes dois subcapítulos nos auxiliam a
perceber o contexto em que se encontra a instituição universitária brasileira na busca por
compreender como sua missão tem sido assumida. Este cenário tem produzido o abandono de
um dos sentidos fundamentais do trabalho universitário, qual seja a educação para a vida,
voltada para construção de si a partir de perspectivas humanísticas e comunitárias. Para além
do que já foi até aqui exposto, parece-nos relevante, a fim de melhor contextualizar o objeto
desta pesquisa, apresentar seu “estado da arte”, ou seja, o que já se desenvolveu de
conhecimento sobre a dimensão ética da educação superior e, posteriormente, como esta
dimensão tem sido pensada na área da saúde.
35

2.3 UM MODELO DE APRENDIZAGEM ÉTICA PARA A UNIVERSIDADE

Compreendendo que ainda não exista uma teoria sobre o fenômeno da dimensão ética
da educação superior em saúde, buscaremos apresentar o que se conhece sobre a promoção
desta dimensão – mesmo que ainda pouco definida – na universidade. Este tópico se presta
então, a apresentar o segundo conceito sensibilizador deste marco: o modelo de aprendizagem
ética desenvolvido por Martínez, Buxarrais e Esteban (2002).
Sem dúvida, a questão da integração e fortalecimento da dimensão ética da educação
não é compartilhada por todas as esferas da sociedade, assim como não atinge igualmente a
comunidade universitária. Sensibilizar a academia exige transformações profundas na cultura
docente, especialmente no papel dos professores tanto em prática pedagógica como em
conteúdo ensinado. Promover a dimensão ética passa por transformações docentes e
institucionais - não somente importar-se, mas dedicar-se à educação moral dos estudantes, pois
se deseja formar bons profissionais e bons cidadãos (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN,
2002; ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004).
Se ao longo da história a universidade tem sido tensionada pela pressão para formar
especialistas e profissionais, é mais do que tempo de também voltar a se movimentar em direção
ao desenvolvimento de excelentes cidadãos, responsáveis e comprometidos com a sociedade
que os rodeia (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002). Para que se promova a
aprendizagem ética é essencial que a comunidade acadêmica pense o modelo de cidadão que
pretende oferecer à sociedade; que planeje processos de ensino-aprendizagem capazes de,
intencionalmente, gerar a reflexão ética do estudante; e por fim, se faz necessária a atuação
ético-pedagógica de toda a comunidade acadêmica. O ensino-aprendizagem ético é aquela que,
tanto em sua dimensão teórica como prática, objetiva a formação em valores no mundo
universitário. A dedicação ao desenvolvimento ético não é questão de boa vontade e sim de
excelência na Educação (ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004).
Para tanto Miquel Martínez Martín, María Rosa Buxarrais Estrada e Francisco Esteban
Bara (2002) desenvolveram o que chamaram de um Modelo de Aprendizagem Ética para que
instituições de ensino superior possam se reconstruir enquanto espaços de aprendizagem em
valores, que objetivem a construção de cidadania embasada em valores democráticos e fomente
uma sociedade mais equitativa. Os autores destacam cinco pontos a serem considerados, tanto
de forma teórica quando prática: o sentido e o alcance da aprendizagem ética; as dimensões de
desenvolvimento e construção da personalidade moral; conteúdos e saberes importantes para o
36

desenvolvimento cidadão; o compromisso moral docente com a instituição e com a


comunidade; e os cenários de práticas de ensino e aprendizagem.
Primeiramente, o sentido e o alcance da aprendizagem ética dizem respeito à
intencionalidade da educação universitária e sua busca por auxiliar na construção da
personalidade moral dos estudantes. Trata-se da tarefa pedagógica, do encontro entre os fins e
objetivos da aprendizagem ética e os meios e recursos disponíveis para sua realização.
Essa intencionalidade consiste em criar condições para o aprendizado ético, para a o
desenvolvimento individual (em relação a si) e cidadão (em relação com a comunidade). Tais
condições só podem ser alcançadas por meio de exemplos, boas práticas produzidas e
reproduzidas pelos membros acadêmicos e especialmente o corpo docente, criando certo clima
universitário. Para tanto, a intencionalidade da construção de uma identidade dos estudantes
não pode se limitar ao desenvolvimento da dimensão racional, mas sim, atingir também as
dimensões afetivas e de sentimentos e seus efeitos nas ações cotidianas (PUIG, 1995). Por isso
deve envolver o estudante enquanto sujeito que aprende, ao corpo docente, os conteúdos
estudados e a própria instituição. Faz-se necessário criar condições para que os estudantes
possam aprender sobre valores e vivenciá-los, podendo assim construir sua própria hierarquia
de valores, essa sim autônoma, mas consciente das diferentes morais sociais, principalmente
com base na justiça e equidade.
Este modelo de educação em valores, denominado de ‘aprendizagem ética’, tem como
objetivo congregar a construção da personalidade moral e o desenvolvimento de habilidades e
atitudes. O modelo não intenciona abster a instituição universitária de sua responsabilidade
social pelo contrário, busca discutir e compreender um conjunto de valores desejáveis
socialmente, por meio da prática reflexiva e da capacidade dialógica (MARTÍNEZ;
BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002). Não se trata de buscar um bem particular, mas também de
alcançar o bem comum: promover a aprendizagem de conhecimentos, habilidades e valores que
consolidem a democracia participativa (MARTÍNEZ; ESTEBAN; BUXARRAIS, 2011).
O modelo de aprendizagem ética proposto procura produzir, em maior ou menor grau,
transformações comportamentais provindas da melhora do julgamento moral e dos exemplos
vivenciados na instituição universitária (e não somente em sala de aula) e que só são possíveis
a partir de um maior entendimento e internalização da intencionalidade da educação
universitária.
O segundo elemento do modelo está relacionado ao desenvolvimento e a construção
da personalidade moral. A proposta dos autores é de que a universidade trabalhe de forma
nítida com os estudantes a percepção e a denúncia de valores negativos (desvalores), e a
37

realização de valores que seriam históricos e socialmente desejáveis em sociedades


democráticas, plurais e diversas.
A necessidade de se desenvolver nos indivíduos a habilidade de realizar valores, com
autonomia moral e a responsabilidade consciente sobre suas ações exigem o desenvolvimento
de diferentes dimensões da otimização humana. Interessam à universidade as dimensões
projectivas e introjectivas que auxiliam o estudante na construção de matrizes de valores e na
prática das ações correspondentes a eles. Cabe à dimensão projectiva a criação de padrões e sua
relação com o entorno, e à dimensão introjectiva a capacidade de consciência da relação do eu
com o mundo.
Apesar da proposta desde modelo de educação moral universitária não objetivar
transmitir um determinado sistema de valores, ou seja, uma determinada moral, mas promover
as dimensões introjectivas e projectivas para que cada indivíduo possa construir seu próprios
sistema de valores – sua moral, é importante que a universidade oriente essa construção
embasada em valores como justiça, igualdade, liberdade, solidariedade e diálogo. Seriam
valores-guia juntamente com a responsabilidade e a dignidade humana para que o
desenvolvimento ético do estudante promova, lado a lado, a construção do indivíduo e sua
felicidade juntamente com o bem comum da sociedade – a busca por uma sociedade mais
equitativa. Trata-se de gerar formas sistemáticas, com cenários de aprendizagem e conteúdos,
que possibilitem ao estudante expandir seus níveis de autoconhecimento, autonomia e auto
regulação; de estímulo ao diálogo, análise crítica e raciocínio moral com vistas a potencializar
a reflexão sociomoral. Esse é um dos grandes enfoques da aprendizagem ética: a construção da
personalidade moral dos estudantes (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002;
ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004).
O terceiro elemento trata da incorporação de conteúdos de natureza ética, ou seja,
que estimulem decisões mais criteriosas e responsáveis com a vida individual e comunitária.
Seriam aqueles capazes de gerar conhecimentos indispensáveis ao estudante e futuro
profissional enquanto membro de uma sociedade plural, contribuindo tanto para seu caráter
intelectual como para sua formação humanística.
Os conteúdos éticos a serem incorporados dependem das especificidades de cada campo
do conhecimento. Importante é que sejam aprendidos em contextos de ensino-aprendizagem no
qual valores como seriedade, o rigor da dúvida, a crítica e a autocrítica e a constante superação
das dificuldades pessoais de compreensão estejam presentes (MARTÍNEZ; BUXARRAIS;
ESTEBAN, 2002).
38

Existe um conjunto de conteúdos éticos que dificilmente seriam apreendidos se não se


fizessem presentes no ensino universitário, como o respeito e cultivo da autonomia do
estudante, o diálogo como única forma legítima de resolver conflitos e a consideração das
diferenças enquanto valor a ser realizado, distanciando-o das ideias de desigualdades. Estes
valores ao serem realizados auxiliam na construção da identidade do estudante, criando
condições para sua internalização e realização, como valores mínimos para a convivência
social.
O papel do docente também deve ser repensado e ressignificado na construção de uma
cultura de reflexão ética na universidade. O modelo proposto exige do professor muito mais
que ser ‘transmissor’ de conhecimento – as tecnologias hoje dão conta desta função. Docente é
quem se compromete moralmente com sua tarefa educadora. Encarregado de ensinar a aprender
a conhecer, o professor deve buscar criar cenários propícios de ensino e aprendizagem
oportunizando diferentes conteúdos de caráter ético, imprimindo maior profundidade ao seu
papel pedagógico. Por um lado, o professor responsabiliza-se por ensinar a aprender ciência,
ao mesmo tempo em que se torna modelo de atuação ética – principalmente em relação às
questões éticas de sua área de conhecimento (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002,
ESTEBAN, 2019).
Nos diferentes papéis que o professor assume – de caráter letivo; avaliador do
aprendizado e tutor na vida universitária, é essencial que sua posição seja a de considerar o
estudante como um fim em si mesmo. Deste modo, relações de domínio algum podem ser
exercidas sobre os estudantes, pois o que se espera no Modelo de Aprendizagem Ética é que se
promova a autonomia dos mesmos. O professor deve fazer perceber que seu ponto de vista não
é único e que os alunos devem buscar conhecer outras visões sobre o assunto tratado
(MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002; MARTÍNEZ; ESTEBAN; BUXARRAIS,
2011).
Existem diferentes formas de abordar questões que geram aprendizado ético e que
podem favorecer mais ou menos a construção da autonomia e do raciocínio valorativo. Por isso
a consciência de seu papel é essencial aos professores, pois sem ela pode-se assumir posições
contrárias ao enfoque da aprendizagem ética – como a obediência e dependência do estudante,
sem perspectiva crítica ou falta de interesse em conhecer outras formas de valoração.
Assim o modelo de aprendizagem proposto outorga “especial importancia a la manera
como se sitúan el estudiante, el docente y los contenidos proprios de ensenanza y aprendizaje
en el escenario educativo” (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002, p.37),
39

principalmente porque dependendo da relação em que se dão estas dimensões do ensino, criam-
se diferentes cenários educativos.
Estes cenários conformam o último elemento apontado como essencial para se pensar a
aprendizagem ética no ensino superior. Os autores indicam a busca por interatividade e
significado na relação docente-estudante, concedendo ao segundo, maior responsabilidade no
desenrolar do processo educativo – torna-se essencial entender o ‘como’ aprender tanto quanto
aprender conteúdos (COLL et al., 1992; MERCER, 2011 apud MARTÍNEZ, BUXARRAIS,
ESTEBAN, 2002).
Essas formas de atividades pedagógicas são adequadas e sensíveis à incorporação de
conteúdos de natureza ética e moral. Apesar do Modelo de Aprendizagem Ética propor uma
responsabilização universitária pela incorporação de valores mínimos para o desenvolvimento
ético, nem todas as formas de abordagem acadêmica são adequadas para sua incorporação.

Se aprende a estimar el respeto e la promoción de la autonomía, el valor del


diálogo y de la diferencia, y la consideración hacia ella como factor de
progreso individual e colectivo, cuando esas cualidades están presentes de
forma natural en los escenarios de enseñanza y aprendizaje, en los espacios de
participación y en el clima institucional de nuestras universidades
(MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002, p. 38).

Neste sentido os cenários de aprendizagem são os espaços de interação privilegiados


dentro da universidade, podendo acontecer ao nível de sala de aula, da instituição de ensino e
da comunidade externa. Portanto, não se trata de realizar grandes reformas curriculares, mas
incorporar nos planos de ensino conteúdos de natureza ética, observando seu caráter
procedimental e atitudinal – por isso a necessidade de transformação cultural de grande parte
dos docentes. A universidade então deve deixar de buscar somente a formação profissional e
incorporar também o ser cidadão capaz de melhorar as atuais condições do mundo
(MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002).
A experiência universitária deveria ser uma experiência de vida, propiciando um conjunto
de situações vividas e sentidas que influenciem enormemente a construção moral do estudante
enquanto se forma profissional e pessoalmente. Participar da universidade deveria conduzir à
uma transformação de vida de seus participantes (ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004,
ESTEBAN, 2019). Para tanto, é necessária a educação em valores como forma de reequilibrar
o sentido da universidade contemporânea, e como caminho para construção de cidadãos
críticos, capazes de enfrentar modelos sociais individualizantes e de pouco ou nenhum sentido
de comunidade.
40

Este subcapítulo tratou de apresentar o Modelo de Aprendizagem Ética entendido


enquanto um modelo para transformar a universidade acerca de sua intencionalidade
pedagógica na construção da personalidade moral dos estudantes, permitindo uma vivência
em valores; da busca por uma atuação docente que facilite processos de autonomia dos
estudantes; e da necessidade de conteúdos embasados em valores humanizadores e com
objetivos de natureza ética capazes de incentivar decisões mais criteriosas com a vida do
indivíduo e da comunidade; para tanto, docentes, estudantes e conteúdos devem atuar em
cenários de ensino-aprendizagem que assumam a maior proatividade do estudante no seu
aprendizado.
Os elementos expostos fornecem um primeiro quadro das relações e contextos
necessários à dimensão ética da educação superior. A partir deste panorama buscaremos no
próximo subcapítulo aprofundar a compreensão dos elementos intrínsecos ao indivíduo,
responsáveis pela construção de sua personalidade moral.

2.4 A CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE MORAL

Como visto, um dos focos ao se pensar a dimensão ética da educação superior se dá na


compreensão das relações de subjetividade do indivíduo com o mundo capaz de promover sua
consciência moral autônoma. Neste sentido, torna-se fundamental compreendermos o que
significa construir a personalidade moral do estudante e qual sua relação com a dimensão ética
da educação. Fundamentando-se nas ideias de Puig (1998), neste subcapítulo aprofundaremos
o conceito de educação moral enquanto um caminho para a construção da personalidade moral
de um indivíduo. Para seu constructo, o autor dialoga com diferentes paradigmas educacionais:
o da educação moral enquanto socialização, enquanto clarificação de valores, enquanto
desenvolvimento e como formação de hábitos virtuosos. Estas vertentes de pensamento serão
brevemente apresentadas aqui a fim de compreenderem-se as diferentes formas de construção
do conceito de educação moral e suas principais críticas que levaram à defesa da educação
moral como uma construção da personalidade moral.
O paradigma da educação moral enquanto socialização se fortaleceu no pensamento
de Durkheim (1947 apud PUIG, 1998a) que, no intento de fugir da submissão aos valores
impostos pela religião, acabou por centralizar na sociedade o papel de determinante das
escolhas morais individuais. A formação moral seria então um processo no qual ocorre a
adaptação dos individuos às regras sociais. Seria a sociedade que, de forma exclusiva,
41

forneceria o sistema de valores e normas vigentes. Não caberia ao indivíduo colaborar na


construção dessas normas morais, a sociedade seria o absoluto moral na construção individual:

las normas morales se definen como una obra colectiva que recibimos y adoptamos
en mayor o menor medida, y que no contribuimos a elaborar. Por lo tanto, la
responsabilidad del sujeto que se está formando queda muy limitada (PUIG, 1995,
p.104).

Puig (1998a) considera que a adaptação à sociedade é um elemento componente na


construção da personalidade moral, porém esta não é, e não deve ser, seu último horizonte. A
educação moral como construção além de passar por essa aquisição de pautas sociais também
é um processo de adaptação a si mesmo, onde o indivíduo considera seus desejos, posições,
pontos de vista e critérios pessoais ao decidir suas ações no seio da comunidade.
Embasado na obra de Raths, Harmin e Simon (1967 apud PUIG, 1998a), o segundo
paradigma estudado - a educação moral como clarificação de valores - coloca a capacidade
de resolução dos problemas morais unicamente como uma possibilidade subjetiva de cada
indivíduo, as soluções generalizáveis para os problemas morais não poderiam exisitir. O papel
da educação seria o de conduzir o individuo a descobrir quê valores carrega previamente e a se
comprometer com eles. Não haveria nada o que se ensinar sobre valores, tudo seria
possivelmente correto. Este processo levaria a um relativismo de valores, impedindo a
realização de um marco amplo capaz de justificar valores comuns.
Para Puig (1998) a construção da personalidade moral exige autonomia do indivíduo
para refletir sobre os valores e decidir criticamente sobre os mesmos, da mesma forma que este
processo não precinde de uma perspectiva social. Faz-se necessário o diálogo com o outro na
busca pela melhor solução, para que esse processo educativo não resulte em um individualismo
puro. A educação moral enquanto construção não deve ignorar a transmissão de elementos
culturais e de valores que possam ser considerados horizontes normativos desejáveis, como os
valores de justiça e solidariedade na convivência ou de propostas morais já construídas como a
Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos.
O terceiro paradigma analisado é o da educação moral como desenvolvimento
cognitivo e evolutivo. Um dos seus principais representantes foi Kohlberg (1992 apud PUIG,
1998a) com sua teoria de desenvolvimento do juízo moral fundamentada na capacidade
cognitiva do sujeito de avaliar, argumentar e refletir sobre aspectos morais. Kohlberg afirmava
a existência de seis níveis, ou estágios, de desenvolvimento moral, cabendo à educação auxiliar
o indivíduo a atingir níveis cada vez superiores. A principal crítica a esta corrente é de que a
educação moral não pode se restringir ao desenvolvimento das capacidades cognitivas. O juizo
42

moral não se resume à uma capacidade do intelecto, é também um espaço de sensibilidade, de


diálogo e de ação (PUIG, 1995).
Já a educação moral como formação de hábitos virtuosos vem refutar a ideia de que
uma pessoa pode se construir moralmente somente conhecendo o que seria o Bem e o Mal. Este
paradigma encontra autores desde os tempos de Aristóteles e entende a educação moral como
possível a partir de uma prática virtuosa, ou seja, uma prática diária que considere sempre o
bem e a felicidade de cada pessoa e de cada coletividade (PUIG, 1995). Assim se reconheceriam
os princípios morais essenciais que mereceriam ser compartilhados e exercitados. A educação
moral estaria simplificada a um processo de aquisição de valores e de facilitação de uma
conduta correta à custa de repetições, não sendo necessário ao educando ‘escolher’ ou mesmo
‘entender’ essa maneira de agir (PUIG, 1998a).
Compreendendo as coerências e fragilidades nestes quatro paradigmas, e principalmente
se apoiando em seus elementos válidos, Puig (1998) desenvolve sua teoria de educação moral
enquanto construção da personalidade moral de um indivíduo. Para o autor, a educação
moral deve ser um processo de contrução de si mesmo, contando com componentes culturais e
de personalidade sendo, necessariamente, dialógica (PUIG, 1995, PUIG, 1998a).
A construção moral, então, é muito mais que um simples processo de adaptação social
ou de aquisição valores e crenças, ela requer, antes de tudo, autonomia da pessoa. O processo
de reflexão autônoma torna possível a consciência crítica e criativa necessária para que os
elementos pessoais, sociais e culturais se complementem na moral de cada individuo. A moral
individual deve passar de heteronôma para autônoma, uma tarefa de construção e reconstrução
constante (PUIG, 1998a, PUIG, 1995, GRACIA, 2020).
A busca de autonomia moral exige trabalhar de forma contextualizada os conceitos de
valores e sua aplicação em situações concretas, fugindo do verbalismo e idealismos. Neste
sentido a educação moral como construção da personalidade moral deve trabalhar problemas
morais existentes na sociedade, utilizando-se de ferramentas de deliberação moral que o próprio
indivíduo vai desenvolvendo ao longo de suas experiências.
Diferentes momentos da educação moral são essenciais à construção da personalidade
moral. O primeiro seria aquele de aquisição de pautas sociais básicas para o convívio, mas esta
adaptação deve ser concomitante ao processo de compreensão do indivíduo sob suas
preferencias e desejos pessoais, de seus critérios valorativos. Um segundo momento seria sua
aproximação aos elementos culturais e de valor que podem não estar enraizados na sociedade,
mas que traduzem horizontes normativos desejáveis. Embora essas normativas possam auxiliar
na resolução de problemas morais ainda se faz necessário o desenvolvimento de ferramentas
43

procedimentais como o diálogo, a racionalidade e a sensibilidade moral que permitirão um


julgamento autônomo dos diferentes problemas morais que perpassam a vida. O último
momento seria o nível mais concreto e individual da construção da personalidade moral, quando
o indivíduo estabelece sua biografia enquanto uma cristalização dinâmica de valores, um espaço
de diferenciação e de criatividade, onde multiplicidades de opções morais legítimas são
traduzidas com base nas experiências vivenciadas ao longo da busca por formas de vida
satisfatórias.
A educação moral como construção personalidade moral requer o reconhecimento de
sua complexidade. Implica trabalhar a busca de uma consciência moral autônoma,
desenvolvendo capacidades ou procedimentos de reflexão e ação e elementos substantivos da
identidade moral de cada um. Estes aspectos compõem o perfil da personalidade moral de um
indivíduo segundo Puig (1998) e podem ser observados a seguir (Figura 1).

Figura 1 - Perfil da Personalidade Moral.

Fonte: Elaboração das autoras.

A consciência moral autônoma seria aquela capaz de definir o critério moral de


decisão, ou seja, sua justificativa moral, que guiará o indivíduo em momentos de conflitos,
conduzindo assim sua biografia. Esta consciência moral autonôma compõe um centro de
equilíbrio construído pelo indivíduo à medida que se expõe a meios sociais diversos e com
44

pautas contraditórias. Para Puig (1998), se o individuo encontrar relações sociais cooperativas
nestes diferentes meios, melhor desenvolverá sua autonomia. Já as experiências competitivas
tem maior tendência a gerarem heteronomia. Neste sentido sua formação exige condições do
meio social, além de práticas educativas reflexivas e dialógicas.
Os recursos de reflexão e ação, compostos pelo juízo moral, a compreensão e a auto-
regulação são necessários ao estímulo da consciência moral autônoma. O juízo moral é
estimulado por reflexões racionais sobre ‘o que dever ser’ a partir de ‘como as coisas são’.
Trabalhar a capacidade de juízo moral requer um período de desenvolvimento que permita
elaborar critérios de aplicação cotidiana destes julgamentos. A compreensão passa pela reflexão
sobre o que é singular, do contexto do concreto em cada situação, sendo ferramenta que auxilia
o indivíduo a não ser obstinado nas próprias ideias. Já a auto-regulação é o esforço diário de
cada ser humano em dirigir a si mesmo por meio de um diálogo interno. É o esforço de conduta
forjado entre o juízo e a ação moral capaz de formar o caráter de cada individúo (PUIG, 1998a).
Estes procedimentos morais devem estar carregados de conteúdos valorativos que
conformem a ‘identidade moral do indivíduo’. Para uma educação moral que busque a
construção de uma personalidade moral autônoma este conteúdo valorativo da identidade
deve trazer elementos universalizáveis do ethos democrático e das experiências de saber, poder
e ética, assimiladas reflexivamente, o que, sob nenhum aspecto, esgota a diversidade de
identidades morais. Assim a identidade ou a personalidade moral deve ser fruto da história do
que somos, do valor que lhe damos e do desejamos ser (PUIG, 1998a).
As inter-relações sociais auxiliam o indivíduo na busca de sua autonomia moral, um
diálogo interno e com o meio social. O espaço da educação moral no desenvolvimento das
percepções morais depende das experiências estimuladas e vividas por cada indivíduo,
experiências de sensibilidade e de diálogo: “Trata-se de ensinar a viver juntos no seio da
comunidade que há de ser viável no seu conjunto e convivencial para todos que a formam”
(PUIG, 1998a, p.150).
Os indivíduos pertencem, ao longo da vida, a varios meios diferentes (família, trabalho,
escola e em cada um deles tem experiencias morais específicas – as esperiencias com os irmãos
é diferente daquelas com os pais, que é diferente do colega de trabalho), além disso, o indivíduo
irá receber influência de muito meios do qual nem participa diretamente. Este conjunto de meios
e experiências é entendido como o ambiente ecológico-moral, sendo a construção da
personalidade moral dependente das relações entre os meios que se é capaz de perceber. Mesmo
que os meios existam objetivamente, sua influência depende da percepção que cada indivíduo
terá deles, dependendo de suas possibilidades, interesses e modo de ser. Ao longo das transições
45

ou mudanças de posição em seu ambiente ecológico-moral os sujeitos vão desenvolvendo seu


percurso ecológico-biográfico (PUIG, 1998a).
Assim, estratégias pedagógicas de educação moral necessitam levar tudo isto em
consideração. O meio de experiência, diferente de ser uma imposição heterônomica, é condição
da autonomia do sujeito, pois exerce influência da mesma forma que permite ser modificado.
Os meios apresentam diferentes problemas morais, sendo que a construção da personalidade
moral depende deste enfrentamento (PUIG, 1998a). Além deste enfrentamento nos campos de
experiências vividas, o processo educativo pode contar com os campos de problematização
moral, onde se expressam temáticas socialmente aceitas, recorrentes e moralmente conflitivas.
Neste sentido, as experências morais podem ser realizadas em contextos educativos formais ou
informais. Este constante atuar, seja de forma vivenciada ou tematizada, ajuda a aprimorar as
capacidades de reflexão ética dos sujeitos, dotando-o de certos guias de valor cultural (PUIG,
1995, PUIG, 1998a).
Além da preocupação com os meios de experiência moral e com os conteúdos dessas
experiências, a educação moral como construção da personalidade moral deve preocupar-se
com os recursos de enfrentamento dos problemas morais apresentados. Na medida em que as
sociedades humanas complexificaram seus meios de experiência moral, também se
desenvolveram os recursos capazes de enfrentar as diferentes problemáticas. Assim, o
indivíduo pode deixar de responder somente com sua natureza reacional emotiva para trabalhar
com procedimentos morais muito mais especializados, capazes de estimular os recursos de
reflexão e ação, como a capacidade de juízo moral, de compreensão e auto-regulação.
Concomitante aos procedimentos morais, a sociedade desenvolve também novos e mais
complexos guias de valor, como normas sociais e institucionais (PUIG, 1998a).
Estes produtos culturais, naturais e socio-históricos podem ser cristalizado pelos sujeitos
na sua personalidade moral. Da mesma forma que são cristalizados também são adaptados a
cada geração e a cada indivíduo capaz de inovar moralmente. Neste sentido é papel da educação
moral conhecer os procedimentos da cosciêncial moral, assim como os guias socioculturais de
valor capazes de influenciar as identidades biográficas dos indivíduos e auxiliar no
enfrentamento dos problemas morais vivenciados (PUIG, 1998a).
Os procedimentos da consciência moral são requeridos no enfrentamento das
experiências morais problemáticas. São determinados por um conjunto de funções ou
capacidades psicomorais que permitem analisar as situações de forma deliberativa, ponderando
a melhor ação possível. São procedimentos morais de conhecimento (que envolvem o auto-
conhecimento e o conhecimento dos outros), de pensamento (para juizo moral, compreensão
46

crítica e disposição para comunicação e diálogo), de sentimento (envolvendo capacidades


emocionais e de sensibilidade) e os de atuação (auto-regulação). Estes procedimentos estão
incorporados aos recursos essenciais à formação de uma consciência moral autônoma, os
anteriomente citados juizo moral, compreensão e autoregulação (PUIG, 1998a).
Os procedimentos da consciência moral trabalham conjuntamente com os componentes
socioculturais. Estes recursos culturais ou guias de valor auxiliam na mediação das ações
morais por serem realidades informativo-significativas que modelam as formas de vida e
convivência. Estes guias formam uma cultura moral que têm sido constantemente criada e
recriada pelas civilizações para adoção de formas de vida viáveis, felizes e justas (PUIG,
1998a).
Os guias oferecem objetivos que conduzem a vida humana sendo capazes de dar sentido.
Oferecem caminhos para alcançar esses objetivos, e ajudam a reformular condutas e modos de
viver. Fazem isso auxiliando a conduzir o processo de deliberação moral em busca da correção
e eficácia atingida quando a ação moral se aproxima com os objetivos considerados justos pelo
coletivo, em cada situação (PUIG, 1998a).
O conjunto de guias morais de uma sociedade forma sua cultura moral. Dentro dela o
individuo é constantemente convidado a escolher, discutir e refazer os guias de valor de acordo
com sua responsabilidade e ponto de vista. Estes guias culturais de valor foram classificados
por Puig (1998) como: os que representam ideias morais (conceitos e teorias éticas que
descrevem, explicam e projetam a moralidade humana, como a ideia de bem comum e as
máximas morais filosóficas); os denominados de tecnologias do eu (práticas realizadas sobre si
mesmo, capazes de gerar transformações pessoais, como o exame de consciência, a meditação,
etc); os modelos que são construções simbólicas que representam algum princípio ou
comportamento ético (como os trazidos em contos, filmes, personagens públicos, etc); as pautas
normativas enquanto construções simbólicas que a sociedade traz para ser aplicada por todos
os cidadãos com instuito de organizar a conduta humana, prescrevendo comportamentos e
transmitindo valores (como costumes sociais, normas, leis, acordos, etc); e as intituições sociais
capazes de pautar a atividade humana para alcançar, com maior facilidade, objetivos valiosos
(como empresas, escolas, família, igreja, etc). Mesmo que não se entenda totalmente o modo
de atuação dos guias de valor na construção da personalidade moral compreende-se que todos
eles são capazes de orientar, sem determinar, a ação sociomoral.
Todos esses elementos dos guias morais podem, e terão controvérsias entre eles e até
oposições. O papel da educação moral é buscar uma linha equilibrada de trabalho em torno dos
guias.
47

A educação moral como um processo de contrução da personalidade moral vai exigir


do individuo sensibilidade para as questões morais que se colocarem, o uso dos procedimentos
morais para trabalhar estas problemáticas e o auxilio dos guias de valor para mediar o uso das
ações sociomorais mais eficazes. Com base nestes elementos e dinamismos que intervem na
construção da personalidade moral podemos refletir o tipo de intervenção educativa de que esta
construção necessita (PUIG, 1998a).
Faz-se necessária uma pedagogia que, diferente de transmitir um saber acabado, auxilie
o educando a internalizar, por si mesmo, os recursos culturais de valor, ou seja, que trabalhe os
procedimentos da consciência moral e guias culturais para que o educando possa, de forma
ativa desenvolver suas ações socioculturais.
As tarefas a serem desenvolvidas por tutores e aprendizes são problemas morais
concretos, capazes de proporcionarem as experiências morais (reais ou simuladas) necessárias
e que irão exigir uma resolução baseada na conciência moral autônoma, acabando por ser
formativa. O educando deve se comprometer ativamente na resolução dos problemas morais e,
a medida que trabalha de forma criativa, livre e autônoma, estabelece modos de enfrentá-los,
desenvolvendo sua habilidade com os recursos morais. Aos tutores cabe o papel de trabalhar
seus saberes essenciais e úteis, sem ser beligerante ou neutro, para tanto, deve compreender que
existem valores desejáveis para todos, sob os quais deve ser comprometido, e valores que, em
nenhum caso são generalizáveis, sobre os quais cabe ser neutro. Os tutores exercem sua ajuda
envolvendo-se com os educandos nas tarefas formativas, seu maior conhecimento sobre as
experiências morais típicas, sobre o uso dos procedimentos da consciência moral e dos guias
culturais de valor, permite que ofereça o apoio necessário aos aprendizes (PUIG, 1998a).
O tutor explica, levanta problemas, critica, questiona, organiza e incentiva, respeitando
o aprendiz na construção autônoma de si mesmo. Seu apoio deve, portanto, ser realizado em
forma de diálogo reflexivo, jamais prescritivo. Se o tutor, além de saber e conhecer mais,
também assimilou pessoalmente essas capacidades torna-se um exemplo moral, o que melhora
sua efetividade formativa.
Esta relação entre tutores habilidosos e aprendizes de uma consciência moral autônoma
foi denominada por Puig (1998) de participação guiada:
Enquanto os aprendizes morais se esforçam por aprender a enfrentar os conflitos
apresentados pelas tarefas morais, os tutores os conduzem e ajudam com intensidade
diversa, de acordo com a natureza da tarefa e do domínio progressivo de capacidades
e guias morais alcançados por seus pupilos (PUIG, 1998a, p. 236).

A partipação guiada prevê que aprendizes e tutores assumam papéis complementares e


realizem tarefas entrelaçadas no objetivo de resolverem os problemas morais. Essa estruturação
48

da participação é um âmbito essencial do processo de educação moral, onde cada situação exige
organização e execução do que se entende por necessário para realizar a tarefa moral proposta.
O tutor auxilia o aprendiz nas formas de fazer, que é, propriamente, veículo de conteúdo moral,
mas também conteúdo em si mesmo. Além da estruturação da participação os processos
comunicativos entre turores e aprendizes e de educandos entre si, são essenciais para ampliação
de conhecimentos e capacidades morais. Criam-se zonas de desenvolvimento próximo que
permitem a troca de saberes, desenvolvimento de raciocínios e condutas impossíveis de serem
realizados isoladamente. O tutor introduz o aprendiz nas formas de fazer de sua cultura, e os
aprendizes, na medida em que participam constróem pontes entre os diferentes níveis de
compreensão do coletivo que participa do processo (PUIG, 1998a).
Este jogo combinado de apoio e desafio pode desencadear processos de trocas de
saberes, formação de capacidades morais e aquisição de guias de valor essenciais à construção
da personalidade moral. A personalidade moral se constrói nesse fazer articulado, na ação
comprometida, exigindo da educação um tutor que possa cooperar (no sentido de co-operar)
com o estudante, desempenhando um papel de guia na busca pelo caminhar autônomo (PUIG,
1998a).
Neste capítulo foram apresentados os diferentes paradigmas de educação moral que
ajudaram a fortalecer o conceito de educação moral como construção da personalidade moral:
sozialização, clarificação de valores, desenvolvimento cognitivo e hábitos virtuosos. Com estes
paradigmas apresentados, conceituou-se a educação moral como construção da
personalidade moral, entendida como um processo de construção de si, em que educando e
tutor co-operam na construção de uma consciência moral autônoma. Para tanto, faz-se
necessário que a educação moral reconheça a personalidade moral como componente de
elementos substantivos e de recursos de reflexão e ação, sendo que ambos sofrem influências
dos guias de valores culturais e dos procedimentos da consciência moral autônoma. Neste
sentido, o tutor pode lançar mão de diferentes recursos pedagógicos, como a presença do
diálogo e do protagonismo estudantil, desencadeados por meio da experienciação de
problemas morais concretos.
Qualificar os elementos que compõem o ambiente ecológico-moral de um indivíduo e
que são passíveis de serem trabalhado na universidade, auxilia-nos a melhor compreender como
a dimensão ética da educação superior pode promover a consciência moral autônoma de seus
estudantes.
49

2.5 A DIMENSÃO ÉTICA DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

No primeiro subítem deste capítulo compreendemos as transformações necessárias à


universidade para que esta, além de ser um local de formação profissional, também se construa
enquanto um espaço de desenvolvimento humanístico e cidadão, capaz de guiar a sociedade
nos rumos em que necessita. Já no segundo subcapítulo, adentramos nos componentes a serem
estimulados para o desenvolvimento de uma consciência moral autônoma e os elementos
pedagógicos capazes de auxiliar as experiências morais necessárias à construção da
personalidade moral do estudante. Agora nos concentraremos no espaço mais específico da
formação profissional em Saúde para compreender como estas ideias podem se articular neste
contexto. Para tanto será apresentado o modelo conceitual desenvolvido por Finkler, Caetano e
Ramos (2012) sobre os fatores que influenciam a formação ética2 na Saúde (Figura 2).

Figura 2 - Modelo conceitual dos fatores que influenciam a formação ética.

Fonte: Finkler; Caetano; Ramos, 2012.

2
Adotaremos neste trabalho o conceito de “formação ética” trazido pela autora como sendo um processo de
educação moral: uma educação em valores voltada para a construção da personalidade moral do estudante.
50

O modelo busca identificar processos que encadeados em diferentes níveis auxiliam na


compreensão da dimensão ética da educação superior. Inicialmente apresentaremos os
conceitos que fundamentaram estes diferentes níveis, partindo do menos específico: o conceito
de socialização primária. A partir dele entraremos no mundo da “profissão e do trabalho em
saúde” e da “formação em saúde”. Neste contexto ocorre a socialização secundária, ou
socialização profissional no caso deste modelo, que engloba as vivências do currículo formal e
do oculto, lócus da educação moral que processa a formação ética do estudante da Saúde. Após
entendermos este modelo veremos algumas proximidades com a proposta de construção da
personalidade moral de Puig (1998) e do Modelo de Aprendizagem Ética de Martínez,
Buxarrais e Esteban (2002).
A socialização tem como produto o fenômeno identitário, construído e reconstrído na
medida em que o indivíduo busca tornar-se ator das diferentes esferas de atividade em que
perpassa (sendo a profissional uma delas). O indivíduo desenvolve suas formas identitárias em
dois sentidos: na socialização das atividades – uma socialização "relacional" dos atores em
interação em um contexto de ação (identidades "para o outro") e na socialização dos indivíduos
– uma socialização "biográfica" dos atores engajados em uma trajetória social (as identidades
"para si"). Á medida que o indivíduo se socializa, constrói identidades a partir da reflexão
interna - um diálogo com o ‘eu’ - e da reflexão socializada como diálogo com os outros
(DUBAR, 2005).
Assim a socialização é vista como um processo de educação moral, pois é a partir dela
que a criança obtém seu sistema de justificação lógica e, aos poucos, autonomia moral
(FINKLER, 2009; FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012). A compreensão deste processo de
socialização inicial que leva a construção da primeira ‘identidade social’ é essencial, pois
implica a busca pela qualidade nas relações do indivíduo, não só familiares mas também
escolares (FINKLER, 2009; DUBAR, 2005).
No âmbito da profissão e do trabalho em saúde interessa à educação compreender suas
principais transformações e influências. Estas abarcam a relação entre o público e o privado; a
dimensão técnica do trabalho e sua super-especialização; os produtos da intervenção em saúde;
capacidade e alternativa para a participação da sociedade nas decisões sobre sua saúde; e as
relações entre trabalhador e usuário, principalmente frente à incorporação das tecnologias em
saúde (RAMOS; PADILHA, 2006 apud FINKLER, 2009). É preciso considerar que o processo
de profissionalização possui um contexto histórico-estrutural e que diferentes relações (entre
profissionais, sociedade, corporações e mercado) a influenciam e a modificam.
51

As profissões da saúde compartilham desafios semelhantes que vão desde as exigências


das Diretrizes Curriculares Nacionais às necessidades de efetividade e excelência na formação
de profissionais capazes de atuar de maneira socialmente relevante em um mundo onde
predomina a força das políticas neoliberais Neste contexto, a formação profissional em saúde
necessita de mudanças conceituais e estruturais nos cursos de graduação, além de alterações
nas práticas de poder da Universidade, nos serviços de saúde e no campo das políticas
(FINKLER et al., 2010; FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2011).
Estas transformações são desejadas na medida em que se reconhece a importância de
formar profissionais não só capazes de responder às demandas da sociedade, mas também de
atuar de forma humanizada. Humanizar a assistência à saúde exige perceber e incluir todos os
envolvidos nas decisões a serem tomadas, resgatando aspectos emocionais e valores que
possam orientar essas ações. É necessária uma participação ativa e democrática. Para tanto faz-
se essencial trabalhar a capacidade do estudante aprender a aprender, de trabalhar em equipe e
de dialogar, além de refletir criticamente (FINKLER, 2009).
O processo de humanização exige aquisição de determinados conhecimentos sobre o
amplo mundo dos valores, além do desenvolvimento de habilidades como comunicação e
escuta, autocontrole emocional e empatia. E por último, e mais complexo, se faz necessário o
aprimoramento das atitudes que só pode ser desenvolvido a partir da relação com os outros, da
vivência e da ‘com-vivência’ (GRACIA, 2004).
A dimensão ética da educação dos futuros profissionais da Saúde se desenvolve por
meio de trocas, nas quais participam diferentes discursos e práticas que nem sempre são
coerentes com as exigências de uma educação ética, humanizada e cidadã (FINKLER;
RAMOS, 2017).
Desta forma, a socialização profissional entra como um dos níveis necessários à
compreensão da dimensão ética da formação profissional. Esse processo de socialização
secundária é alcançado a partir das novas relações encontradas pelo estudante, e, por
conseguinte, essa socialização secundária pode gerar processos de ruptura em relação à primária
– quando os conteúdos da socialização secundária trazem realidades bastante distantes (ou mais
complexas) daquelas conhecidas durante a socialização primária. Por isso se faz necessário a
atenção de todo o aparelho de formação à criação da identidade profissional do estudante, já
que ela é um elemento fundamental ao êxito do processo de transformação social (DUBAR,
2005, FINKLER, 2009).
A formação ética alcançada no processo de socialização profissional depende do
conjunto de experiências vivenciadas pelos estudantes no ambiente escolar e das aprendizagens
52

individuais que serão geradas. Este conjunto de experiências e aprendizagem denomina-se


currículo. Neste sentido, a formação ética pode ser melhor compreendida na medida em que
exploramos os elementos de currículo que a influenciam (FINKLER; CAETANO; RAMOS,
2012)
O currículo tem experiências geradas por elementos manifestos/previstos, como aulas,
trabalhos práticos e avaliações, denominadas de currículo formal. Já as experiências expressas
de mensagens subliminares absorvidas nas diferentes relações sociais, são provenientes
especialmente do denominado currículo oculto. Capaz de desenvolver atitudes, valores e
ideologias, é no por meio do currículo oculto que o estudante incorpora a cultura
social/profissional, os atributos considerados de prestígio e organiza sua escala de valores.
Neste processo, o estudante é sujeito ativo de sua formação, onde seu desenvolvimento moral
é parte da construção identitária que realiza durante a socialização profissional (FINKLER;
CAETANO; RAMOS, 2012).
Importa perceber que os elementos podem ser facilmente e fortemente, influenciados
pela cultura dos movimentos hegemônicos na manutenção de um certo status quo. Esta
influência pode servir como mecanismo de controle sobre a sociedade, mantendo e gerando
desigualdades sociais. Os estudantes internalizam as normas sociais e os conhecimentos
científicos transmitidos como se fossem a única forma de agir e pensar, como se outra forma
ou visão fossem anti-naturais. Essas questões, além dos mecanismos de poder, os valores, e as
áreas de atuação de ‘maior status’, por estarem intimamente relacionadas com a capacidade
crítica e reflexiva no ambiente acadêmico, tornam-se essenciais para o entedimento da
dimensão ética da formação profissional (FINKLER, 2009). Para tanto, Finkler (2009)
menciona os elementos que conformam o currículo oculto: as relações intersubjetivas
relacionadas ao poder instituicional, às lideranças institucionais, aos relacionamentos entre
docentes e estudantes, entre docentes e pacientes, entre estudantes e pacientes, e estudantes
entre si; os modelos profissionais com os quais os estudantes se deparam; e as vivências
acadêmicas relacionadas à organização acadêmica, ao acolhimento na universidade, ao clima
universitárioe às atividades eletivas.
Já os elementos do currículo formal que influenciam à formação ética no referido
modelo são: o projeto político-pedagógico da IES a estruturação e o desenvolvimento
curricular; o processo de ensino-aprendizagem, incluindo concepções educativas, formação
docente, métodos, cenários e intencionalidades bem como as disciplinas mais afeitas às
questões éticas (Bioética, Ética, Humanidades e afins). Essa divisão nos diferentes fatores e
53

categorias do currículo oculto e formal é meramente didática segundo a autora, já que sua
atuação na formação ética ocorre de forma simultânea e recíproca (FINKLER, 2009, p.65).
Identificados os fatores curriculares presentes no processo de socialização profissional,
passaremos para o nível específico da formação ética dentro do modelo. Compreende-se que a
formação deontológica do estudante enquanto futuro profissional e do professor enquanto
docente também são formas de aproximação à dimensão ética da formação profissional. No
entanto é pouco provavel o alcance dessa ‘formação em deveres’ se com ela não se desenvolve
a autonomia em relação à construção de uma matriz de valores própria. Neste sentido, o cerne
a ser explorado neste nível é a melhora da dimensão ética do processo educativo, quanto à
reflexão crítica e autônoma sobre questões morais (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN,
2002).
Para que seja possível realizar a dimensão ética na vida universitária é importante
assumir um marco normativo e o estabelecimento de condições que, na medida em que
possibilitem a aprendizagem intelectual também impulsionem a aprendizagem ética. A
realização destes ideais está condicionada a objetivos éticos explícitos em cada graduação. Para
aprofundar esses pressupostos, Finkler (2009) também se apoia no Modelo de Aprendizagem
Ética na Universidade que destaca como anteriormente mencionado, a tarefa pedagógica, o
papel de docentes e estudantes, os conteúdos, e os cenários de ensino aprendizagem. Seus
autores consideram que o que realmente importa é a incorporação, em todos os planos de
ensino, de conteúdo e objetivos de natureza ética, além de mudanças específicas sobre os
procedimentos e atitudes dos sujeitos pedagógicos, principalmente dos docentes. Este olhar
menos curricular (no seu sentido formal) e mais relacional é especificamente o nível da
formação ética no Modelo Conceitual dos Fatores que Influenciam a Formação Ética
(FINKLER, 2009; FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012).
O último nível - o da educação moral - é o cerne da formação ética. Para fundamentar
seu constructo, Finkler (2009) lança mão de diferentes trabalhos dos espanhóis Diego Gracia e
Adela Cortina. Estes autores defendem ser, a educação moral, uma educação em valores. Para
eles, mais do que modelos morais – limitados à determinada época e lugar, a educação moral
necessita de ideias universalizáveis, as quais são encontradas ao se trabalhar com valores
morais.
Neste sentido, a educação moral deve buscar a reflexão e imaginação de diferentes
alternativas viáveis para os problemas reais (no contexto local e no contexto da humanidade),
e sobre cada decisão tomada, se faz essencial o estímulo à percepção das responsabilidades a
serem assumidas, com base no contexto vivido. Por fim, a educação moral passa por exercitar
54

a capacidade de julgar moralmente, buscando decisões prudentes (FINKLER, 2009; PUIG,


1998a, GRACIA, 2020).
Trabalhar o julgamento moral exige que a educação consiga trazer panoramas da
variabilidade moral existente no mundo ocidental. O conhecimento destes conteúdos auxilia a
fugir de dogmatismos (como se conteúdos morais fossem inquestionáveis), do particularismo
(como se não houvesse elementos morais comuns), e do relativismo (como se tudo fosse
somente cultural, não havendo nada universal). Para trabalhar esses diferentes conteúdos torna-
se essencial o diálogo como possível e necessário. O diálogo é um exercício do ser moral.
Interessa ao indivíduo dialogar para escolher entre diferentes possibilidades, não a partir de
regras dadas, mas a partir de um exercício de autonomia para que seja possível alinhavar os
interesses pessoais aos da comunidade (FINKLER, 2009; FINKLER; CAETANO; RAMOS,
2012).
É essencial que o processo educativo gere autonomia, onde se decide não pela simples
vontade individual, mas com base na realização de valores que humanizem. Para tanto o papel
do docente deve ser o de educador, e não de doutrinador. Educar enquanto objetivo da docência
exige do professor a busca por apresentar conteúdos novos e estimular o pensamento próprio
do educando (FINKLER, 2009).
Ao transformação o mundo que habitamos produzindo cultura, estimamos, valoramos e
julgamos. A cultura é a natureza humanizada, valorada. Assim como o ser humano está
mergulhado em valores, também está permeado por problemas morais. Quando diferentes
valores entram em conflito recorre-se aos métodos da ética para resolvê-los (FINKLER, 2009;
FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012). Um destes métodos é o deliberativo, trabalhado por
Gracia (2001) enquanto um método de racionalidade prática, no qual se trabalham fatos, valores
e deveres, e que exige determinadas condições como treinamento, diálogo e cooperação. Sendo
um processo de auto-educação, a deliberação é tomada no modelo conceitual dos fatores que
infleunciam a formação ética como “uma adequada e viável maneira de ensinar o manejo de
problemas éticos, de promover a educação moral e, também, a cidadania dos futuros
profissionais” (GRACIA, 2000, p.76).
Com o modelo conceitual dos fatores que influenciam a formação ética foi possível
perceber os diferentes níveis em que a educação moral do indivíduo acontece na formação em
Saúde. Já na socialização primária a criança constrói e reconstrói formas identitárias a partir
da reflexão interna e do diálogo com os outros. Esse processo se constitui mediante justificação
lógica do indivíduo sendo, portanto, um trabalho de autonomia moral. Na medida em que o
indivíduo se insere no mundo da profissão e do trabalho em saúde acaba se confrontando
55

com problemas morais específicos deste meio, sendo o processo de profissionalização um


momento de socialização secundária (DUBAR, 2005). Nele, os confrontos de visões de
mundo e de valores são desejados como oportinidades para desenvolver profissionais que atuem
de forma ativa, crítica e democrática: profissionais humanizados. A formação ética pode ser
alcançada na socialização profissional por meio das aprendizagens geradas pelas experiências
vivenciadas no ambiente universitário. Estas diferentes experiências e suas aprendizagens
foram identificadas no currículo formal e no oculto, é a partir delas que o estudante pode
reorganizar sua escala de valores morais. O currículo pode, e terá, influência de movimentos
hegemônicos capazes de frear o potencial universitário em propiciar a autonomia moral de seus
indivíduos. Neste sentido a universidade necessita de diferentes transformações para trabalhar
de forma consciente a dimensão ética da formação de seus estudantes. O nível mais central a
essa processo, o da educação moral, reforça a necessidade de uma educação pautada em
valores, que saiba identificá-los, conhecê-los, e refletir sobre eles. É necessário ao processo de
educação moral desenvolver a capacidade de julgar moralmente, e para tanto a deliberação
coloca-se como um métodos adequado para o exercicio desta capacidade ética (FINKLER,
2009).
O trabalho desenvolvido por Finkler, Caetano e Ramos (2012) além de auxiliar na
percepção de elementos capazes de promover a construção da personalidade moral do estudante
da Saúde que se processa durante a vida universitária ajuda a reafirmar a importância e a
possibilidade de se construir uma teoria do que significa a dimensão ética da educação superior
em Saúde.
A partir dos conceitos anteriormente trabalhados: o sentido da Universidade, o modelo
de aprendizagem ética e a construção da personalidade moral e a dimensão ética da formação
profissional em Saúde, percebeu-se a centralidade da construção identitária na Educação
Superior. Por tanto, apresentaremos o último conceito sensibilizador desta Tese: a construção
identitária na vida acadêmica.

2.6 O PAPEL DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DOS


SEUS MEMBROS

Diferentes experiências e aprendizagens da vida acadêmica fomentam a construção


moral do estudante. Estas vivências ao adquirirem bases reflexivas, dialógicas e deliberativas
próprias da educação moral, podem auxiliar os indivíduos a desenvolverem sua autonomia
56

moral, capacitando-os para refletir eticamente sobre os fatos, valores e deveres presentes nas
interações sociais.
Este construir-se em valores faz parte da conformação da identidade de cada indivíduo.
Construir identidades dignas de serem valorizadas é papel da educação superior que visa
também ser protagonista na melhoraria da realidade social, seja por meio das interações
construídas entre Universidade e sociedade, seja indiretamente, por meio do fomento da
excelência moral de seus egressos (ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
O conceito de identidade foi abordado neste trabalho a partir da crítica comunitarista ao
modelo liberal de Universidade. Para os teóricos desta corrente faz parte da missão da
Universidade pensar a constituição da identidade dos estudantes. A identidade é, então,
compreendida como dependente das relações comunitárias, fazendo parte da dimensão moral
do ser humano. Os indivíduos se vinculam menos ou mais com os valores experenciados em
sociedade, identificando-os e significando-os na construção de sua identidade moral
(ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Para Puig (1998) a autonomia moral dos indivíduos, sua consciência crítica e criativa,
são necessárias para a reflexão sobre os elementos pessoais, sociais e culturais que influenciam
sua personalidade moral. O autor concebe o processo de construção da personalidade moral
como de construção da biografia individual, estabelecida por meio de uma cristalização
dinâmica de valores. Desenvolver a consciência moral autônoma, a capacidade de reflexão e
ação, e a aquisição de elementos substantivos da identidade moral de cada um constroem a
personalidade moral.
As identidades morais são diversas pois são construídas pela vivência de valores
compartilhados em cada sociedade associados as formas de vida de cada pessoa. Neste sentido,
reforça-se a importância de experiências democráticas, de valores universalizáveis e da reflexão
crítica pois “a identidade é fruto da história do que somos, do valor que lhe damos e do que
desejamos ser’ (PUIG, 1998a, p.133). Para Martínez e Esteban (2018) a identidade é o conjunto
de características própria de um indivíduo ou de um coletivo que os identificam frente aos
demais. Em outras palavras, a identidade reúne elementos pessoais e elementos próprios da
comunidade a qual a pessoa pertence.
Como visto os conceitos de identidade moral e de personalidade moral são apresentados
pelos autores deste marco como dimensões do indivíduo que podem ser construídas
moralmente, sendo elementos a serem considerados na educação moral. Compreende-se que a
personalidade moral faz parte da identidade dos indivíduos, de sua construção biografia. Neste
57

trabalho adotamos os conceitos de identidade e de personalidade moral como processos de


construção de si que fazem parte da identidade biográfica dos indivíduos3.
Ademais dos autores tratados no marco conceitual desta tese, outros pensadores da
Sociologia, Psicologia e Filosofia trazem contribuições para a compreensão dos fenômenos que
constituem o sujeito. Na tentativa de entender como a identidade tem sido abordada no âmbito
da Educação, Faria e Souza (2011) admitem que não é possível oferecer definições conclusivas
sobre o que é identidade, visto seu aspecto complexo e multifatorial. Os autores analisaram as
contribuições de Antonio da Costa Ciampa, Claude Dubar, Zygmunt Bauman e Stuart Hall,
encontrando diferentes modos de conceber a identidade: como construída na formação inicial,
como processo contínuo, como trajetórias, como memórias, como visões e concepções, como
aspecto pessoal ou profissional.
Na Psicologia Social, Ciampa entende a identidade como metamorfose, na qual o sujeito
passa por constantes transformações, sendo a identidade resultado provisório da intersecção
entre a história da pessoa, seu contexto histórico e social e seus projetos pessoais. A identidade
teria um caráter dinâmico pressupondo que a pessoa a concebe por meio de personagens
incorporados pela vivência de papéis sociais (FARIA; SOUZA, 2011).
No âmbito da Sociologia, Dubar concebe a identidade como resultado do processo de
socialização que compreende vivências relacionais e biográficas (que tratam da história,
habilidades e projetos pessoais). A identificação de si seria correlata a identidade visualizada
pela outro. Deste modo, a identidade seria resultada de tensões criadas entre o que o sujeito
deseja para si e o que se espera que ele assuma. Dubar adota o termo de formações identitárias,
visto que seriam várias as identidades assumidas pelo indivíduo. O processo de constituição
identitária seria a identificação ou não das atribuições que viriam sempre do outro. A
socialização seria o processo de criação de identidade relacionais – identidade para o outro, e
identidades biográficas correspondentes à identidade para si, um processo dialético que culmina
na identidade social dos indivíduos (FINKLER, 2009, FARIA; SOUZA, 2011).
Dubar e Ciampa se aproximam na percepção da identidade como algo em constante
construção, sendo desenvolvida na e pela atividade do sujeito em relação. Ainda no âmbito da
Sociologia, embora com foco na pós-modernidade, Bauman define identidade como
autodeterminação. Para o autor a divergência entre as pessoas impõe a necessidade de fazer
escolhas continuadamente, cabendo ao sujeito construir sua identidade em meio às

3
Neste trabalho adotaremos o conceito de identidade e de personalidade moral como similares, compreendendo
que a construção moral do indivíduo influi e fundamenta sua personalidade moral, definindo, por fim, sua
própria identidade.
58

comunidades que as definem. As identidades seriam invenções, esforço, objetivo e construção,


associada a alguma atividade constantemente realizada. A modernidade líquida traria uma
infinidade de identidades à escolha, a depender dos vínculos que conectam as pessoas, sendo a
identidade uma construção em meio a experimentações também infindáveis. A concepção de
identidade em Bauman também adquire caráter de algo inconcluso, concordando, nesta
perspectiva, com Ciampa e Dubar (FARIA; SOUZA, 2011).
Hall, também sociólogo, apresenta o conceito de identidades culturais, como aspecto da
nossa identidade que surge do pertencimento a culturas étnicas, religiosas, linguísticas, raciais
e nacionais. Para Hall, a sociedade contemporânea rompeu os horizontes de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, alterando as identidades pessoais e resultando em uma
crise de identidade. As experiências de dúvida, de incerteza, de descentração dos sujeitos, como
define o autor, colocariam a identidade como uma questão a ser constantemente pensada
(FARIA; SOUZA, 2011).
Seriam três grandes definições de identidade ao logo da história: a identidade do sujeito
concebida pelo iluminismo, a qual nasceria com o sujeito - uma identidade individualizada e
que permaneceria constante e idêntica; a identidade do sujeito sociológico que reconhece que
este núcleo interior do sujeito é constituído em relações sociais e mediado pela cultura, em um
diálogo contínuo entre mundos interno e externo; e a identidade do sujeito pós-moderno em
que os indivíduos aderem a identidades diversas em diferentes contextos, podendo ser
contraditórios, fazendo com que sua identificação seja continuamente deslocada. Apesar desse
caráter de incerteza e imprevisibilidade da identidade do sujeito pós-moderno, para Hall essa
desestabilização de identidades anteriormente estáveis possibilita o desenvolvimento de novos
sujeitos. Segundo o autor, identidades correspondentes a um determinando mundo social estão
em declínio já que a sociedade moderna e globalizada é indeterminada. Sociedade, cultura e
identidade seriam inseparáveis exigindo formas altamente reflexivas de vida já que as práticas
sociais são constantemente avaliadas e transformadas, alterando suas características
constitutivas e, em consequência, as identidades em relação (FARIA; SOUZA, 2011).
Há uma aproximação da conceituação de identidade entre os autores destacados,
concebida como complexa, inacabada e resultado de tensões infindáveis entre o sujeito histórico
e suas condições materiais. Dentro das especificidades da concepção de cada autor, Ciampa
define a identidade enquanto conjunto das personagens advindas de papeis sociais, podendo
transformar-se, ou como um processo de construção identitária pela articulação entre igualdade
e diferença; Dubar focaliza a construção da identidade no trabalho definindo o papel das
instituições nesta constituição, sendo a identidade resultado da tensão permanente entre
59

indivíduo e sociedade. Bauman e Hall concebem a identidade na pós-modernidade, um


processo de incerteza e descentramento permanente, uma identidade sempre aberta a novas
sobreposições (FARIA; SOUZA, 2011).
No campo da Filosofia, e pode ser este o que mais interesse para esta tese, Gracia (2020)
compreende a identidade como um fenômeno de caráter recursivo, vivenciado precisamente na
relação que cada indivíduo tem com os outros. A identidade seria o resultado da personalidade
individual em interrelação com a realidade de cada um.
Gracia (2020) busca elucidar como a identidade se forma socialmente. Os atos humanos
objetivam valores. Os projetos humanos, pessoais, têm sempre um momento de estimação, de
valoração. O valor estimado do ato projetado é subjetivo, mas quando o projeto é realizado, os
valores são, então, objetivados ou realizados:

Todo acto humano añade valores o quita valores a las cosas. Velázquez creó valor
estético al pintar sus cuadros, y las guerras no hay duda de que destruyen valor. Los
valores se crean y se destryen a través de nuestros actos; es decir, se objetivan, tanto
positiva como negativamente (GRACIA, 2020, p.13).

Os valores que são objetivados pelos atos – e os próprios atos em si, fazem parte do que
chamamos cultura. A cultura seria este ‘depósito de valores’ de uma sociedade, construído
historicamente por cada geração anterior que vai objetivando valores com seus atos. Assim,
cada indivíduo ao nascer assimila este depósito de valores da sociedade a qual pertence. Mais
adiante, a pessoa pode refletir sobre quais valores deseja acrescentar neste depósito. O ser
humano vai introjetando valores de sua sociedade e como são estes mesmos valores que
constroem a identidade, resulta que a identidade é cobrada dos indivíduos por meio dessa
assimilação de valores. Esta reflexão concorda com a visão de Ciampa sobre a identidade ser
cobrada pelos demais (FARIA; SOUZA, 2011).
Como os depósitos de valores são diversos (familiares, profissionais, religiosos, locais,
nacionais entre outros), constroem-se também diferentes identidades individuais na medida em
que cada pessoa vai fazendo parte de coletivos distintos. A problemática maior ocorre quando
se segue o fluxo acriticamente, assumindo o depósito de valores heteronomamente: “Nuestra
identidad se limita a repetir la identidad común, la que proclaman y exigen los usos y
constumbres de nuestro medio” (GRACIA, 2020, p.17).
Em cada cultura há um valor que sobressai e quando absolutizado, produz fanatismos,
ou dito de outra forma, quando se assume apenas uma das identidades sobre as outras podem
se produzir incompatibilidades da vida em sociedade. A identidade se produz do refluxo do
meio sobre cada um, mas este não é necessariamente o modo como deve ser construída. A
60

identidade se constrói a partir dos depósitos de valores, mas cabe ao indivíduo, a partir de sua
autonomia moral, não absolutizar essas identidades de modo que não negue as demais. É
responsabilidade do indivíduo moralmente autônomo e eticamente competente, articular suas
identidades de forma razoável e prudente, pois ele se movimenta e existe em todas as suas
identidades (GRACIA, 2020).
A também filósofa Adela Cortina (1995) concorda com a importância da autonomia
moral na construção da identidade, destacando a importância do sentimento de pertencimento
as distintas comunidades que perpassam a vida de cada indivíduo. Sentir-se acolhido, apreciado
e valioso no seio de uma comunidade auxilia a construir uma ‘identidade psiquicamente
estável’. Portanto, participar de projetos comuns e envolver-se politicamente auxiliaria na
construção identitária (CORTINA, 1995).
A identidade tem que ser elaborada ativamente por cada uma partir dos depósitos de
valores. Por isso, investir na autonomia moral é essencial e a reflexão ética, que nos auxilia a
compreender o que devemos fazer, constrói-se precisamente por esta autonomia: “La ética, o
es autónoma, o no es ética” (GRACIA,2020, p.17). Assim, a ética é pessoal, mas possui uma
dimensão social: os depósitos de valores que desabam sobre os indivíduos, exigindo de cada
um gestioná-los e integrá-los em sua vida. A reflexão ética deve objetivar realizar todos os
valores, ou lesioná-los o mínimo possível, buscando posturas intermediárias. Gracia (2020)
afirma que a reflexão ética autônoma é a única que pode dotar os indivíduos de identidade -
uma identidade construída a partir das identidades ofertadas pelos depósitos de valores
objetivos, mas sem se confundir com eles. Desta forma, para o autor, a identidade pessoal não
é a mesma – ou, precisamente, não deve ser o mesmo, que identidades culturais.
Os autores aqui discutidos concordam que a identidade tem componentes sociais e que
a mesma é construída ao logo da vida biográfica dos indivíduos. Bauman e Hall (FARIA;
SOUZA, 2011) chamam atenção para a ‘crise de identidade’ do mundo moderno, uma
sociedade que produziu tantas identidades que a tornou extremamente dinâmica. A ampliação
dos conflitos identitários neste mundo sucedeu pelo aparecimento do chamado ‘pluralismo’:
em uma mesma matriz social coexistem sistemas de valores muito distintos que pedem e
exigem respeito, gerando conflitos morais. Não significa dizer que estes valores não estavam
presentes nas gerações anteriores. Os valores eram realizados e formavam identidades. Mas,
eram identidades bastantes marcadas, definidas, tanto que não se tomava tanta consciência das
mesmas. Os grupos sociais eram muito mais homogêneos, dotados de identidade própria, de
modo que os conflitos de identidade se davam, não internamente, mas com os demais grupos
sociais (GRACIA, 2020).
61

Las identidades las daban los credos religiosos, los sistemas culturales, los usos y
costumbres comunitarias, todos ellos de algún modo previos a los proprios individuos,
ya que estos se encontraban con ellos al nacer, de tal modo que constituían una
conditio sine qua non de su propria existencia (GRACIA, 2020, p. 20).

A crise identitária atual é então um momento oportuno para enfrentar e discutir esse
tema da identidade, já que, identidade não se pode viver. É essencial compreender que a
identidade não deve ser assumida acriticamente a partir da introjeção de valores do meio, mas
sim da reflexão autônoma do que cada um faz com esse legado (GRACIA, 2020).
Assumir identidades heteronomamente é o que acontece na maioria dos casos: “La
potência obediencial del ser humano es casi infinita” (GRACIA, 2020, p.23). a questão
premente é aprender a ser moralmente autônomo. Construir a identidade refletindo eticamente
é mais trabalhoso, porque o indivíduo vai conceber sua identidade em diálogo com o depósito
de valores da sociedade e indo além dele. Forjar a identidade de forma crítica consiste em dar
saltos, mesmo que pequenos, sobre a matriz recebida, sobre o que é heterônomo e herdado
(GRACIA, 2020).
A autonomia moral é o princípio e fundamento da vida moral. Buscá-la é uma forma de
construir uma identidade própria. Portanto, há de se aprender a refletir eticamente, uma
aprendizagem ética que encontra na vivência universitária um momento oportuno para ser
fomentada e realizada. Neste sentido, há que se questionar por que conhecemos tão pouco sobre
a dimensão ética da educação.
No contexto da Educação Superior, Hanson (2014) pensa a identidade como uma
coleção de memórias na qual a Universidade se torna parte desta história, influenciando
profundamente em quem são e em como agem os graduandos. Assim, durante o processo de
educação superior os alunos experenciam e constroem um senso de identidade, havendo a
chance de ressignificar ser si mesmo. Apesar da importância na vida de cada membro do corpo
acadêmico, a identidade não tem sido peça central nos esforços de compreender como a
educação superior lhes afeta.
Para o referido autor, existe uma série de razões que afastaram as Universidades de
buscarem o desenvolvimento da identidade de seus alunos, colocando o desenvolvimento
cognitivo como único resultado a ser avaliado na aprendizagem. Um dos motivos que dificulta
que estudiosos e pesquisadores façam uma avaliação mais ampla da experiência no ensino
superior é que a identidade não é um assunto possível de ser estudado/pesquisado com a ciência
positivista hegemônica. O advento da transformação das universidades ‘de ensino’ para
62

universidades ‘de pesquisa’ privilegiou os campos orientados da ciência e tecnologia, fazendo


com que os métodos experimentais se tornassem alternativas lucrativas frente às artes e às
letras. Os estudos que buscavam demonstrar como as universidades afetavam os estudantes
deram lugar as pesquisas das ‘ciências duras’ dominantes, em oposição às humanidades. Assim,
a psicologia cognitiva alinhou-se aos métodos das ciências naturais, fazendo com que a
psicometria se tornasse referência do desenvolvimento dos estudantes, abondando-se as
questões que buscavam responder sobre quem eles se tornariam (HANSON, 2014).
Em consequência disto, evidencia-se a segunda razão para que a identidade dos
estudantes deixasse de ser pensada na educação superior: as políticas avaliativas não incluem a
identidade como um dos desfechos do processo educativo. As Universidades desfrutam de uma
autonomia que não é completa, pois existem preferências políticas moldando a agenda de
pesquisa universitária. O autor afirma que há um papel estreito para as Universidade, defendido
por posições políticas conservadoras. Para estes, ensinar matérias e conferir habilidades,
garantindo ao graduando um estoque adequado de conhecimento, é o papel atribuído ao corpo
docente. Esta seria uma forma de proteger a Universidade das alusões de adentrar aos recintos
da política, moralidade e ética que não seriam de seu campo. Já para as posições políticas mais
progressistas a educação deve ser uma forma de enfrentar desigualdades. Esta última
preocupação leva a linhas de pesquisa sobre a construção de identidade na vida acadêmica, mas
uma identidade limitada em escopo, pois foca os estudos em populações consideradas
‘minorias’, especificamente em questões de raça, gênero e sexualidade. O clima político então,
conduz para estudos de diversidade por um lado e documentação de resultados cognitivos por
outro. Estudar identidades de pessoas com origens diversas e resultados cognitivos do processo
educativo constitui um trabalho importante e necessário para as instituições de ensino, mas a
ênfase nesses campos torna improvável o desenvolvimento de pesquisas voltadas à
compreensão do desenvolvimento da identidade na vida universitária (HANSON, 2014).
Este contexto resulta em que os processos de credenciamento destas instituições
busquem também mantê-las em padrões politicamente aceitáveis. As medidas avaliativas
diferem em relação as suas prioridades, mas são consistentes em duas medidas: espera-se que
as universidades avaliem a aprendizagem cognitiva e que se comprometam a garantir a
diversidade de seus funcionários, estudantes e professores. Mesmo que a missão da
Universidade seja também de fomentar certos tipos de pessoas - bons cidadãos, por exemplo -
não é exigido que a instituição tenha formas de avaliar este perfil de seus graduados (HANSON,
2014).
63

Esta realidade leva à terceira razão da exclusão da identidade como foco da construção
do conhecimento dentro da Universidade: a missão universitária entendida como formação
profissional, no sentido de desenvolvimento de "capital humano". A educação é pensada como
um preparo para a carreira profissional, um treinamento para a força de trabalho, fazendo com
que os graduados sejam visualizados como produtos a serem comercializados com os
empregadores (FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2011, ESTEBAN; ROMÁN, 2016). O
resultado disso é que as produções científicas se desinteressaram por questões mais amplas
sobre o caráter dos universitários. O terreno intelectual se restringe a perguntas voltadas para o
que os estudantes sabem ou como realizam as tarefas prescritas, perdendo de vista que a
Universidade permite que as pessoas forjem um novo eu (HANSON, 2014).
Se a Universidade deseja fazer algo pela sociedade (incluindo o mercado), seu foco deve
ser em preparar pessoas éticas, de “coração aberto” e intelectualmente curiosas. A experiência
educativa tem potencial de servir como marco de mudança de vida capaz de construir uma
identidade pessoal, cívica e profissional. Para Gracia (2007) faz parte da missão universitária
formar as mentes e personalidades dos estudantes, sendo de sua responsabilidade o tipo de
pessoas que os graduados serão e, portanto, também o tipo de sociedade que será construída.
Reitera-se a necessidade de converter a educação universitária em educação para a vida, na qual
a Universidade busque ocupar-se também da construção moral de seu corpo acadêmico
(ESTEBAN; ROMÁN, 2016).
Contribuir para a construção da identidade dos estudantes exige que o processo
educativo não contemple somente os fatos, mas também valores. O ato educativo deve ser um
ato implicado, vinculativo. Para tanto, a tarefa ético-pedagógica do professor deve ser a de
buscar no interior de cada estudante o que ele carrega de melhor, o que não pode ser feito de
forma impositiva ou meramente informativa, mas sim dialogando, raciocinando e deliberando
(GRACIA, 2007).
Esteban e Martínez (2018) reiteram que a Universidade é per se uma instituição
implicada com a formação pessoal. A realidade da instituição universitária no séc. XXI deve
ser a de garantir não somente a excelência profissional, mas também a competência ética e
cidadã de seus graduados e pós-graduados. Acontece que a vida universitária de hoje parece
adquirir uma forma reduzida do que poderia ser. Já não contempla entre seus principais
objetivos o cultivo da vida boa. Ao invés disto, está pensada para atender a coisas mais
necessárias e urgentes: é assim uma Universidade concebida como mínimo (ESTEBAN, 2019).
Para realizar a completude da missão universitária, deve-se centrar interesse na
perspectiva da construção identitária, uma identidade que possui uma dupla dimensão – pessoal
64

e comunitária. Compreende-se que a Universidade hoje está centrada na formação profissional,


com olhar para a adaptação da realidade, no qual a construção da identidade se dá no âmbito
do ‘eu profissional’ – uma formação dirigida às exigências socioeconômicas de cada momento
e lugar, e do ‘eu usuário’ – relacionada ao uso que o estudante faz da Universidade para atingir
bens externos a ela (ESTEBAN; MARTÍNEZ, 2018).
No entanto, a Universidade também possui uma dimensão de orientação ética e
humanística, na qual se constrói o estudante enquanto ‘eu pessoa e cidadão’ – uma formação
ética, emocional, humanística e cultural, e enquanto ‘eu membro da universidade’- de natureza
comunitária, a formação do estudante voltada a aquisição de bens internos resultantes da
experiência e da vida universitária (Figura 3).

Figura 3 - Mapa de posibles formaciones universitarias.

Fonte: Esteban e Martínez (2018).

Os anos passados no campus universitário são uma oportunidade para moldar uma
maneira de ser, para dar forma a uma identidade, chamada de universitária. Esta identidade
universitária é conformada por muitas identidades possíveis, tendo muitas delas características
que não são consideradas de uma identidade universitária saudável e benéfica: “la formación
universitaria no es cualquier cosa y que, por lo tanto, no admite cualquier modo de estar”
(ESTEBAN, 2019).
Neste sentido, é essencial assumir que os estudantes não entram na Universidade com
os modos de ser e fazer imutáveis (ESTEBAN, 2019; GRACIA, 2020; FINKLER; CAETANO;
65

RAMOS, 2012; PUIG, 1998a, MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002; ESTEBAN;


ROMÁN, 2016). Viver a Universidade deve ser um convite a deixar-se envolver por ela,
construir sua identidade frente as indicações que a vida universitária implica. Fazer parte de
uma comunidade acadêmica em busca do conhecer – mas o que vale a pena buscar e buscar de
determinada maneira; conceber-se enquanto um professor comprometido com o ensino-
aprendizagem, que encanta seus estudantes; reconhecer o outro e reconhecer-se no outro e
desejar fazer as coisas bem - da melhor maneira possível, são alguns das características de uma
vida universitária capaz de construir identidades dignas de serem vividas (ESTEBAN, 2019).

2.7 OS ELEMENTOS SENSIBILIZANTES PARA O PERCURSO METODOLÓGICO

Ao final deste capítulo é possível perceber que os estudos de Esteban e Román, (2016),
Martínez, Buxarrais e Esteban (2002), Puig (1998), Finkler, Caetano e Ramos (2012), Esteban
(2019) e Gracia (2020) convergem em pontos centrais, passíveis de auxiliar a reflexão da
pesquisadora sobre o que já se conhece da relação entre a construção identitária de um indivíduo
e o papel da educação universitária. Estes elementos em comum podem ser observados na figura
a seguir (Figura 4):

Figura 4 - A construção identitária na vida acadêmica: Elementos comuns aos conceitos


sensibilizadores do marco conceitual.

Fonte: As autoras
66

As primeiras duas concepções estudadas – o sentido da Universidade e a compreensão


das ideologias e paradigmas que a influenciam, auxiliam a compreender a missão
universitária, evidenciando a necessidade de reforçar o papel universitário na busca pela
excelência humana. Uma excelência a ser buscada por meio do estímulo a competência ética
dos estudantes, construindo sua identidade por meio de valores a serem estimulados nas suas
relações interpessoais e comunitárias.
A compreensão da Universidade como oportunidade de educação moral e sua
capacidade de trabalhar a construção da personalidade moral sensibilizam para as questões
gerais, e fundamentais, à construção moral de qualquer estudante. Os autores destacam o papel
crucial do docente enquanto um tutor capaz de guiar o estudante na descoberta de si mesmo.
Para tanto, os conteúdos de ensino-aprendizagem devem buscar uma vivência em valores onde
a reflexão e a ação são impulsionadas por meio das boas práticas já construídas, nos exemplos
docentes e no desenvolvimento de habilidades para julgamento moral. O sentido destes cenários
de ensino-aprendizagem deve ser uma construção entre conhecimentos, habilidades e atitudes
que levem à uma consciência moral autônoma do estudante.
Sob esta ótica, é possível encontrar no processo de socialização secundária vivido no
momento da Universidade – no momento em que ‘se vive’ a universidade, uma oportunidade
para a construção da personalidade moral do estudante da saúde. A aprendizagem ética deve
emergir das experiências vivenciadas no ambiente universitário, compreendendo que as
mesmas extrapolam a sala de aula e, seria possível dizer, que transbordam muito mais para os
outros espaços relacionais da academia – dos estudantes consigo mesmo, dos estudantes entre
si, dos estudantes com os docentes, e dos estudantes com o mundo. Todas estas experiências
têm de ser refletidas sob a percepção das diferentes culturas existentes, pois a diversidade de
vivências individuais combinadas ao conhecimento das experiências culturais é capaz de criar
o leque de problemas e valores morais necessários aos mecanismos de construção da
personalidade moral.
O modelo conceitual dos fatores que influenciam a formação ética evidencia como
atitudes, valores e ideologias de modelos profissionais socialmente considerados prestigiosos
podem influenciar a construção moral do estudante. Os elementos curriculares nos ajudam a
perceber essas influências sobre as práticas pedagógicas e experiências vivenciadas pelo
estudante. Possibilitar o exercício de autonomia, alinhavando interesses pessoais aos da
comunidade faz parte dos objetivos a serem trabalhado no ensino-aprendizagem-ético. A
construção destes cenários de ensino-aprendizagem é possível por meio de processo
67

deliberativos; com o conhecimento dos diferentes guias morais existentes na educação em


Saúde e com uma postura docente consciente de seu papel na educação moral de futuros
profissinais e cidadãos.
Estes conceitos sensibilizantes apresentados evidenciam a existência de uma dimensão
ética da educação superior capaz de construir a identidade de seus indivíduos. As vivências
e experiências acadêmicas moldam uma maneira de ser de seu corpo acadêmico, uma
identidade moral que perpassa as distintas identidades universitárias construídas na vida
acadêmica e que compõem a identidade biográfica de seus indivíduos.
Estas concepções e modelos apresentados constituíram elementos sensibilizantes do
percurso metodológico traçado apresentado no capítulo a seguir.
68

3 MÉTODO

A escolha do referencial metodológico deste estudo baseia-se em duas questões. A


primeira é que o objeto deste trabalho - o estudo da dimensão ética da educação superior em
Saúde é, per se, temática de estudos fenomenológicos e interpretacionistas, cuja explicação
surge da subjetividade humana e não de características exteriores e objetiváveis atreladas às
teorias positivistas e/ou de base quantitativa (SANTOS, 2016). A segunda relaciona-se ao
caminho a ser seguido ao longo da construção desta tese, o percurso metodológico. Deve-se, de
fato, saber por onde caminhar desde o início desta jornada, considerando a necessidade de se
implicar com a pesquisa, ser criativa em meio às diretrizes flexíveis, e não somente seguir
“receitas” metodológicas (CHARMAZ, 2009). O referencial escolhido é o que permite, então,
produzir esse caminho no próprio caminhar.
Para tanto, adotou-se a metodologia qualitativa de investigação denominada Teoria
Fundamentada em Dados, cujo objetivo é a construção de uma teoria a partir da extração de
aspectos significativos das experiências vivenciadas pelos atores sociais (GLASER;
STRAUSS, 1967).
A TFD tem por princípio o estudo de processos sociais dentro de seu contexto de
ambiente social ou mesmo de uma determinada experiência (GLASER; STRAUSS, 1967). É
um metodo, então, apropriado para análise de processos advindos de interações sociais ou
experiências humanas. Estas experiências passadas constituem sequências temporais que
podem ter início e fim identificáveis e, principalmente, podem se relacionar compondo uma
totalidade mais ampla. O presente que queremos entender, advém do passado, modificando-se
em eventos de relações processuais. É neste sentido que nem os dados e nem as teorias podem
ser descobertos, mas sim co-construídos no envolvimento e nas interações entre as pessoas, na
teoria que se aprende e na prática que se realiza (CHARMAZ, 2009).
É precisamente por isso, que a pesquisa baseada neste referencial metodológico
dispensou hipóteses iniciais. A pesquisadora iniciou o estudo por meio (e em meio) aos dados.
Estes dados são construídos a partir da abertura e da percepção ao que ocorre nas cenas
estudadas, das observações presenciadas, das interações ocorridas e dos materiais reunidos
sobre o tema em análise. É a partir de uma criativa, detalhada e cuidadosa análise destes dados
que vai emergir a teoria. Assim, a investigação começa com uma temática de estudo e permite
que a teoria vá surgindo com os dados (CHARMAZ, 2009).
A teoria a ser desenvolvida deve ter a capacidade de explicar os fenômenos estudados,
ou seja, precisa dar conta de proporcionar “uma interpretação racional, articulada, sistemática
69

e densa, capaz de unir teoria e realidade” (TORRES et al., 2014, p.490). Este é um potencial
das teorias fundamentadas: por serem baseadas em dados, tendem a oferecer maior
discernimento, aumentando o espectro de compreensão, podendo tornar-se um guia importante
para a ação (TAROZZI, 2011).
Os dados empíricos são agrupados e classificados por meio de um processo qualitativo
de codificação. Os códigos interpretados indicarão as áreas a serem investigadas nas coletas
subsequentes. Ao realizarem-se numerosas comparações, a compreensão dos dados começa a
ganhar forma (CHARMAZ, 2009). Trata-se, portanto de um método indutivo (indo do
específico para o amplo, do dado para a visão geral) e dedutivo (indo do mais amplo para o
específico, gerando hipóteses a partir da análise dos dados) (CRESWELL, 2014).

3.1 A TEORIA FUNDAMENTADA NOS DADOS NA VERTENTE CONSTRUTIVISTA

A TFD foi originalmente desenvolvida pelos sociólogos norte-americanos Barney G.


Glaser e Anselm L. Strauss, como uma alternativa à tradição hipotético-dedutiva da época. Seu
constructo foi publicado no livro ‘The discovery of Grounded Theory’, em 1967. A Grounded
Theory foi traduzida para o português como Teoria Fundamentada nos Dados. Seu diferencial
foi justamente o processo contínuo e sistemático de coleta e análise de dados, sobre os quais se
realizava uma verificação contínua para geração de resultados (SANTOS et al., 2016).
A partir dos anos 2000, a autora Kathy Charmaz entra em cena, ganhando destaque ao
fundamentar uma vertente do método denominada de construtivista, principalmente por frisar
que a teoria não é uma cópia fiel da realidade, e sim uma perspectiva desta, construída no cerne
da interação entre o pesquisador e os participantes da pesquisa (CHARMAZ, 2009).
A popularização das diferentes vertentes da TFD levou os pesquisadores a, por vezes,
confundi-las e misturá-las em seus trabalhos, ignorando muitas das suas características centrais
divergentes. Essas confusões sobre a utilização da TFD levaram Tarozzi (2011) a destacar quais
características gerais são, de fato, contempladas no desenvolvimento de qualquer TFD (Quadro
1).
70

Quadro 1 - Características gerais contempladas no desenvolvimento da TFD.

Característica Descrição
A partir da linguagem e dos significados busca-se uma regularidade conceitual entre
Explorar processos os fenômenos a serem analisados. Explora processos sociais e psicológicos para
descobrir os fenômenos.
A amostra não se forma a priori, mas no decorrer da pesquisa. As amostras se
Amostragem teórica formam a partir das lacunas emergentes, na busca por saturar as categorias
analisadas.
Simultaneidade entre A reflexão analítica é acompanhada por retornos ao campo onde o processo de
coleta e análise dos recolhimento dos dados é guiado pela reflexão analítica sobre as categorias
dados emergentes.
Uso do método da Confrontação constantemente dos dados entre si. Busca apresentar sempre perguntas
constante aos dados, nos vários níveis de análise. Essas perguntas buscam nexos entre dados e
comparação em todos conceitos, favorecendo o progresso da compreensão conceitual dos fenômenos
os níveis de análise estudados.
Codificação por meio A codificação gradual e progressiva é necessária para manter a evidência e os traços
dos dados do percurso que irá gerar os conceitos que irão fundamentar a teoria.
Elaboração de
Busca a elaboração conceitual e não a descrição.
conceitos
Produção de Anotações sobre o processo de pesquisa e diagramas, como mapas
memorandos e conceituais, auxiliam a elaboração da teoria, ajudando a acompanhar a constante
diagramas comparação entre as categorias e as macro categorias já bastante abstratas.
Fonte: Adaptado de Tarozzi (2011, p. 21-28).

A opção pela corrente metodológica de Charmaz (2009) se deu por esta se apoiar no
paradigma epistemológico do construtivismo, permitindo uma condução da investigação e
desenvolvimento da teoria a partir da co-construção (entre pesquisadores e participantes) e da
assunção da subjetividade do próprio investigador. Na abordagem construtivista são
formulados pressupostos contextuais e adotadas perspectivas disciplinares, culminando no que
a autora denomina de conceitos sensibilizantes: interesses pessoais e disciplinares que
sensibilizam pesquisadores e fomentam as ideias iniciais da pesquisa (CHARMAZ, 2009).
Neste sentido, destacam-se as perspectivas apresentadas nos marcos deste estudo: a
crítica comunitarista às instituições universitárias (ESTEBAN; ROMAN, 2016), como os
pressupostos contextuais desta pesquisa; o modelo de fatores que influenciam a dimensão ética
da formação profissional (FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2012) como conceito
sensibilizante capaz de estruturar as ideias iniciais a serem buscadas; e, como perspectiva
71

disciplinar, pontuam-se as ideias da construção da personalidade moral (PUIG, 1998a) e o


modelo de aprendizagem ética na universidade (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN,
2002).
Esta estrutura auxiliou na construção dos conceitos gerais que conferiram um
constructo, inicial e ainda indefinido, do ponto de partida desta pesquisa, servindo para
conceber questões de entrevistas e pensar analiticamente sobre os dados. A teoria foi construída
a partir do estudo dos dados coletados em campo juntamente com o exame contínuo das ideias
da pesquisadora, sempre aberta aos novos olhares e perspectivas que surgiram por meio dos
níveis sucessivos de análise (CHARMAZ, 2009). O processo de codificação teórica indicou a
necessidade de outros referenciais que foram incorporados ao estudo.
Assim, este percurso metodológico buscou conduzir a compreensão sobre os processos
relacionais e interativos referentes à dimensão ética da educação em cursos da área da saúde, a
partir das experiências e vivências daqueles que atuam neste contexto. Entender o que, de fato,
significa a dimensão ética da educação para estes sujeitos foi a lacuna de conhecimento
identificada na literatura.

3.2 COLETANDO DADOS

A pesquisadora foi a campo, então, ciente destas perspectivas privilegiadas (da crítica
comunitarista às instituições universitárias, do modelo de fatores que influenciam a dimensão
ética da formação profissional, da construção da personalidade moral e do modelo de
aprendizagem ética na universidade), estando vigilante em relação às mesmas para que a teoria
possa ser desenvolvida a partir dos processos emergentes em seus dados. O processo
metodológico da TFD levou à coleta de dados e à descrição e análise concomitante desses
dados. As fontes de dados e os períodos de coleta e análise são apresentadas no quadro a seguir
(quadro 2).
Quadro 2 - Fontes de pesquisa e período de coleta e análise dos dados.
Fontes Período de coleta e análise
PPP da Farmácia; Odontologia;
Novembro de 2018 a
Enfermagem e
Janeiro de 2019
Medicina
Fontes
Documentais DCN da Medicina; Odontologia;
Janeiro de 2019 a Abril de
Enfermagem
2019
e Farmácia
Participantes Fevereiro de 2019 a Agosto
Professores
de Pesquisa de 2019
72

Agosto de 2019 a Janeiro


Estudantes
de 2020
Janeiro de 2020 a Fevereiro
Gestores
de 2020

As fontes documentais que foram incluídas, codificadas e analisadas foram as Diretrizes


Curriculares Nacionais (DCN) e os Projetos Político-Pedagógicos (PPP) dos cursos da saúde
das áreas de Medicina, Enfermagem, Odontologia e Farmácia elencados para o estudo. A
escolha destes se deu por serem os mais antigos na história da profissionalização da saúde,
sendo cursos já consolidados nas Universidades elencadas.
Após a análise destas fontes documentais iniciou-se as entrevistas em profundidade. A
qualidade e a credibilidade do estudo dependem da profundidade e do alcance dos dados
coletados. Assim, elencou-se o tipo de dado e de fonte que traria maior utilidade para o
desenvolvimento das categorias centrais do estudo, além dos critérios de adequação e
suficiência na representação dos eventos empíricos (CHARMAZ, 2009).
Além dos dados transcritos a partir das entrevistas, foram redigidas notas de campo
provenientes das observações e incorporado conteúdo de fontes documentais que se revelarem
necessárias.
A TFD admite incorporar múltiplas fontes como estratégia para reconstruir de forma
mais fidedigna a experiência dos participantes (SANTOS et al., 2016). Neste estudo, a
entrevista foi a principal estratégia para obtenção de dados. A perspectiva construtivista adverte
que o foco da entrevista, bem como das perguntas de pesquisa, concentra-se na busca de
informações sobre cronologia, ambientes e comportamentos. Buscou-se revelar não só
opiniões, mas sentimentos, intenções e ações dos participantes. Para tanto, priorizou-se o uso
de entrevistas abertas e em profundidade, também chamadas de entrevistas intensivas
(CHARMAZ, 2009).

3.3 AMOSTRAGEM TEÓRICA

A seleção de participantes foi realizada intencionalmente, pela composição de grupos.


O primeiro grupo compôs a amostra inicial do estudo e a partir das propriedades das categorias
de análise foi-se definindo os participantes seguintes. A este critério denomina-se Amostragem
Teórica (CHARMAZ, 2009).
Neste estudo, a amostragem teórica iniciou-se pela análise das DCNs e PPPs dos cursos
da saúde de Medicina, Enfermagem, Odontologia e Farmácia, identificado nos dados como
Grupo Amostral 1 (GA1). Somente os PPPs da instituição pública foram analisados por estarem
73

disponíveis ao público no seu sítio eletrônico. A instituição privada, apesar de ter o estudo
aprovado por sua comissão de ética em pesquisa, não autorizou a análise de seus PPPs. Logo,
o primeiro grupo amostral totalizou 8 documentos analisados (GA1).
A partir destes dados o próximo grupo de interesse investigado foi composto por
professores dos cursos referidos. A opção por seguir primeiramente com o grupo amostral de
docentes vem de seu papel nevrálgico no processo de educação moral indicado no marco
conceitual do estudo e nos documentos analisados.
A seleção destes professores foi intencional, de modo a contemplar professores que
foram reconhecidos pelos pares como possíveis informantes-chave sobre “ética e educação em
saúde”. As indicações dos informantes-chave incluíram professores e coordenadores (GA2).
A partir dos dados coletados com o primeiro grupo, definiu-se que o próximo grupo de
interesse seria de estudantes (GA3). A opção de seguir com o grupo de estudantes se deu pela
hipótese de que a dimensão ética da educação superior em Saúde ocorre também na vivência
do currículo oculto, no qual os professores nem sempre estão presentes.
Os primeiros estudantes entrevistados foram indicados por professores do primeiro
grupo de interesse e a partir destes, os estudantes indicavam seus colegas. Estas indicações
também buscavam identificar estudantes que poderiam ter proximidade com a temática “ética
e educação em saúde” (uma proximidade que poderia ser da prática e não, necessariamente, da
teoria).
A amostragem teórica se completou com o último grupo entrevistado, caracterizado por
gestores da educação a nível nacional (GA4), elencados pelas pesquisadoras. Esta escolha se
deu pela hipótese de que a participação de macro gestores na formulação de políticas públicas
influencia diretamente o fazer universitário, repercutindo na educação moral do corpo
acadêmico.

3.4 PARTICIPANTES DO ESTUDO

Para compor o segundo e terceiro grupo amostral, optou-se por entrevistar docentes e
discentes de graduação de uma instituição de ensino superior (IES) de natureza pública e uma
de natureza privada, dos quatro cursos anteriormente mencionados: Medicina, Enfermagem,
Odontologia e Farmácia (Quadro 2). Cabe ressaltar que a IES privada não possuía o curso de
Farmácia. Como critério de inclusão, optou-se por professores com um período de experiência
na IES igual ou superior a dois anos e discentes que houvessem cursado ao menos o primeiro
semestre da graduação. Não houve critérios de exclusão.
74

Ressalta-se que apenas um dos possíveis entrevistados convidados recusou-se a


participar da pesquisa alegando indisponibilidade de tempo devido suas atividades acadêmicas.

Quadro 3 - Composição do primeiro e segundo grupo amostral – professores e estudantes

Medicina Enfermagem Odontologia Farmácia Total


Cursos
Docentes Estudantes Docentes Estudantes Docentes Estudantes Docentes Estudantes

IES
2 2 4 2 3 2 2 2 19
Pública
IES
2 0 1 0 2 2 0 0 7
Privada
Total 6 7 9 4 26

O G4 formado por macrogestões da educação, foi composto por 4 entrevistados,


escolhidos pelas pesquisadoras por sua experiência na formulação de políticas públicas de
educação. Este último grupo foi o único onde se desenvolveu a entrevista de forma remota,
devido a impossibilidade de deslocamento da pesquisadora principal até os estados e cidades
destes participantes, visto que os mesmos não era professores das IES elegidas. Cada um dos
participantes indicou o melhor local para a entrevista, sendo seu local de trabalho; salas
disponíveis dentro das IES ou a casa do participante. Todas as entrevistas foram realizadas
somente com a presença da pesquisadora principal e do participante, com autorização para a
gravação de áudio que foi transcrito ipsis litteris para o programa de Word pela própria
pesquisadora principal. O tempo de cada entrevista variou conforme o participante, sendo a
mais curta de vinte e oito minutos e a mais longa de duas horas e 21 minutos.
Portanto, a amostragem teórica foi composta pelos dados da análise de 30 entrevistas e
8 documentos, sendo sua identificação realizada conforme o quadro abaixo (Quadro 4):

Quadro 4 - Identificação dos grupos amostrais.

GA1 - Documentos GA2 – Docentes GA3 - Estudantes GA4 - Gestores


GA1D1 GA2P1 GA3E1 GA4G1
GA1D2 GA2P2 GA3E2 GA4G2
GA1D3 GA2P3 GA3E3 GA4G3
GA1D4 GA2P4 GA3E4 GA3G4
GA1D5 GA2P5 GA3E5
GA1D6 GA2P6 GA3E6
GA1D7 GA2P7 GA3E7
GA1D8 GA2P8 GA3E8
75

GA2P9 GA3E9
GA2P10 GA3E10
GA2P11
GA2P12
GA2P13
GA2P14
GA2P15
GA2P16

A análise dos documentos ocorreu de novembro de 2018 a fevereiro de 2019. As


entrevistas e sua codificação e análise ocorreram de fevereiro de 2019 a janeiro de 2020.
Destaca-se que não houveram repetições de entrevistas, os questionamentos levantados
ao longo da codificação e análise dos dados foram expostos aos novos entrevistados. Ao final
do G4 constatou-se a saturação teórica da amostra, percebendo-se que os dados já eram capazes
de responder às questões de pesquisa construídas ao longo da análise.

3.5 A ENTREVISTA INTENSIVA

Fundamentalmente, a entrevista é uma conversa orientada. A entrevista intensiva


permite a exploração aprofundada de um tópico em particular, elucidando a interpretação de
cada participante sobre sua própria experiência. É a compreensão da realidade a partir da
percepção ou significado que certo contexto ou objeto tem para o indivíduo (DANTAS et al.,
2009).
A entrevista foi iniciada com perguntas amplas e abertas, para depois adentrar em
questões específicas - de questionamentos gerais acerca do tema, seguindo para
questionamentos que implicam o participante no mesmo. As questões iniciais referiram-se às
práticas coletivas; as intermediárias à participação do entrevistado nestas práticas e; por fim, a
opinião e reflexão dos mesmos sobre as práticas e experiências vividas. Neste sentido, criou-se
um ambiente confortável, favorável à abertura do participante às questões mais profundas
quanto as suas experiências. O objetivo era conseguir gerar dados que identificassem o que
acontece e o que esses acontecimentos significam para os participantes (CHARMAZ, 2009).
Apesar da entrevista em profundidade não exigir um roteiro de questões a serem
abordadas, foi importante refletir previamente sobre as mesmas antes de ir a campo. Neste
sentido, foram formuladas algumas questões compondo um guia para condução da entrevista.
Assim, construiu-se um guia para análise dos documentos selecionados (Apêndice A) e
três guias de entrevista, um para o grupo de professores (Apêndice B) um para o grupo de
estudantes (Apêndice C) e um para o grupo de gestores (Apêndice D). A utilização destes guias
76

foi flexível, orientada para as experiências e significações de cada participante. Como os


professores foram o primeiro grupo a ser entrevistado as perguntas que compuseram este guia
foram enviadas previamente para dois experts para sua qualificação.
A coleta e análise contínuas permitiu a criação de novas questões de pesquisa que se
colocaram necessárias, na busca constante de compreender os dados. Questões que não faziam
parte do guia inicial foram introduzidas ao longo das entrevistas como: ‘Tem algum momento
da sua trajetória acadêmica que você se percebeu vivenciando uma aprendizagem ética?’ e
‘Você percebe que há uma intencionalidade da Universidade em trabalhar a dimensão ética da
educação?’.
A entrevista intensiva permitiu interrupções para explorar um determinado tópico,
buscando ir além do que poderia aparentar em um primeiro momento as experiências descritas,
solicitando detalhamentos e questionamentos sobre as ideias, sentimentos e ações. A estratégia
de reformular e narrar uma ideia emitida pelo participante para checar a sua precisão também
foi utilizada, além de alterar tópicos abordados conforme as experiências trazidas. O respeito e
a estima pela cooperação do participante também foram manifestados.
A atenção a como os participantes percebiam e validavam a pesquisadora também
esteve presente. A forma como os participantes colocavam suas percepções iniciais sobre
“ética” era cuidadosa, por atribuírem uma identidade de expert à pesquisadora. Para que essa
identidade atribuída influenciasse o mínimo possível no caráter e no conteúdo da interação,
estimulou-se às percepções próprias dos participantes. Palavras e denominações construídas
por eles eram utilizadas pela entrevistadora e as percepções equivocadas ou superficiais não
eram corrigidas, embora, ao longo da entrevista, os significados teóricos eram introduzidos a
fim de ‘validar’ os dados obtidos com determinados participantes, além de compreendê-los
mais profundamente.
Importante ressaltar que algum dos entrevistados conheciam a pesquisadora por
trabalharem em áreas afins. De todo modo, a pesquisadora principal se apresentou
profissionalmente no início das entrevistas evidenciando seu interesse pela temática e as razões
que a conduziam para esta pesquisa. Ressalta-se que as suposições iniciais das pesquisadoras
não eram reveladas com objetivo de não influenciar as reflexões dos entrevistados.

3.6 CODIFICAÇÃO E ANÁLISE

A codificação é a primeira parte analítica da TFD, momento no qual são questionados


e conceituados os dados coletados. Os códigos não foram preconcebidos ou definidos a priori,
77

mas sim criados a partir da análise minuciosa dos dados. Estes códigos auxiliaram na
evidenciação da ação e do processo relatado, dando sustentação à análise do fenômeno. Esta
foi a estrutura sobre a qual se ergueu a teoria: definiu-se o que ocorre nos dados e iniciou-se o
debate para obtenção do seu significado (CHARMAZ, 2009).
Para facilitar este processo de codificação dos dados utilizou-se o recurso tecnológico
do software de análise qualitativa ATLAS.ti®. O software auxilia na organização dos dados e
seu armazenamento cabendo à pesquisadora desenvolver a análise.
Essa codificação constitui-se em duas etapas: a codificação inicial e a codificação
focalizada. Na codificação inicial, os dados foram sistematicamente estudados e denominados
de acordo com as ideias iniciais da pesquisadora. Esta codificação foi realizada linha a linha
(GLASER, 1978) e auxiliou a pesquisadora a ver o que já conhecia sob uma nova perspectiva.
Ao comparar dados com dados, a pesquisadora pode começar a compreender o que os
participantes buscaram expressar. Perguntas básicas eram levantadas nesta análise: “O que os
dados sugerem? Do ponto de vista de quem? Qual categoria teórica este dado específico
indica?”.
Na busca por aprofundar ao máximo a capacidade analítica da pesquisadora durante a
codificação, algumas orientações metodológicas foram seguidas, conforme recomendado por
Charmaz (2009): Criou-se códigos que remetessem a uma ação; codificou-se cada linha dos
dados escritos, de forma aberta, sem código pré-concebidos; tomou-se palavras e expressões
dos participantes como ponto de partida para a criação dos códigos.
Os códigos criados sempre remeteram a uma ação como uma forma de evitar “saltos
conceituais” – a construção de teorias antes da análise minuciosa do processo (CHARMAZ,
2009, p.74). Essa codificação com a utilização de gerúndios além de auxiliar na detecção do
processo, manteve a análise ainda próxima aos dados – a abstração venho nas etapas
subsequentes (GLASER, 1978).
Os códigos iniciais foram comparativos e provisórios, a partir deles a pesquisadora
identificou lacunas ou furos, podendo localizar novas fontes de dados e coletá-los. Foi possível
então, corrigir percursos e reformular códigos já nas primeiras etapas da pesquisa, melhorando
a capacidade de os códigos condensarem os significados e as ações.
A codificação inicial gerou 228 códigos, a partir destes iniciou-se a etapa de codificação
focalizada, na qual realizou-se a organização dos dados com base nos códigos mais
significativos e/ou frequentes, a partir da identificação de propriedades e dimensões do
fenômeno da aprendizagem ética na educação superior (SANTOS et al., 2016). Neste momento
78

foram analisados minuciosamente segmentos maiores de dados, o que auxiliou no


descobrimento de padrões analíticos.
Ao se comparar dados com dados desenvolvem-se 18 Códigos Focais. A codificação
focalizada exigiu da pesquisadora a constante comparação entre os dados, e dos dados com os
códigos. Ao longo desse processo, os códigos foram alterados ganhando novas perspectivas,
gerando categorias de análise que deram início à teoria substantiva.
A análise da incidência desses códigos focais, fez com que os mesmos fossem
reagrupados, gerando 6 categoriais. A comparação dos códigos com os dados e dos códigos
entre si auxiliou a perceber quando um incidente específico ajudava a esclarecer outro código
permitindo criar categorias.
Deste modo, o principal objetivo da codificação inicial foi a permanente abertura da
pesquisadora a todas as direções e caminhos que foram indicados pelos dados. Na etapa da
codificação focalizada o objetivo foi uma integração teórica por meio da detecção dos códigos
que mais se destacam na quantidade de dados gerados. As categorias criadas foram, então,
trabalhadas e desenvolvidas nas etapas analíticas subsequentes (CHARMAZ, 2009).
Após a codificação focalizada a pesquisadora pode seguir as próprias indicações dos
dados empíricos para desenvolver as seis categorias, nascidas a partir da interpretação da
pesquisadora sobre as experiências que estas categorias representam. Essas codificações
demonstram o modo como a pesquisadora compreende os dados, cabendo a ela desenvolver e
demonstrar as conexões existentes entre as categorias e subcategorias conforme suas
percepções sobre os dados empíricos.

3.7 REDIGINDO MEMORANDOS

Na busca por fortalecer o processo analítico, a metodologia da TFD pressupõe a


constante redação de memorandos. Os memorandos são anotações analíticas informais que
projetam, registram e detalham a principal fase da construção da teoria. Sua redação inicia com
as percepções advindas dos dados e códigos e dali para as categorias focais até o
desenvolvimento das categorias conceituais (CHARMAZ, 2009).
Os memorandos auxiliaram na atenção cuidadosa com os dados, sendo essencial na
busca por compreender as atitudes e os relatos, os cenários e as emoções, as histórias e os
silêncios registrados. A redação dos memorandos ocorreu pela interação constante e repetitiva
da pesquisadora com os dados, por meio da problematização e do exame dos pressupostos
79

ocultos da linguagem, tornando explícito os processos fundamentais e visíveis, as suposições


ocultas.
Os memorandos conformaram o espaço para comparar dados com dados, dados e
códigos, códigos e categorias, e categorias e conceitos, lugar para articular conjecturas sobre
essas comparações elevando o nível de abstração das ideias que alimentaram a teoria. Estes
memorandos armazenaram pensamentos da pesquisadora, comparações e conexões,
consolidando as questões e as direções a serem buscadas.
A pesquisadora anotava rapidamente tudo que vinha à mente sobre a categoria, os
códigos e os dados durante a imersão nos mesmos, registrava entonações, linguagem corporal
e suposições não declaradas dos entrevistados. Os memorandos eram relidos, reescritos e
retificados conforme se avançava na análise.
Os memorandos foram redigidos desde o início da coleta dos dados. Inicialmente
traziam registros do que ocorriam com os dados, construindo a análise dos códigos que
ajudaram a enfocar as novas coletas. Estes memorandos auxiliaram na percepção das relações
entre os dados observados e as categorias emergentes. Já os memorandos avançados auxiliaram
a categorizar os dados explicando suas propriedades ou características. Estes também
permitiram comparações situando os dados dentro da argumentação e comparando a análise
total à bibliografia existente e ideias predominantes ao longo da construção da análise.
Os memorandos foram divididos entre memorandos metodológicos – que auxiliavam
nas percepções e insights sobre os novos grupos amostrais, e memorandos analíticos que
registravam os insights conceituais da pesquisadora ao longo da análise dos dados. A releitura,
reescrita e redação de novos memorandos ocorreu até a etapa de finalização da teoria.

3.8 CONSTRUÇÃO DA TEORIA

Com a saturação teórica iniciou-se a etapa de classificação teórica, representação gráfica


e integração dos memorandos que auxiliou no desenvolvimento da teoria. A classificação dos
memorandos passou pela comparação e integração entre os mesmos. Esse processo se deu pela
classificação dos memorandos pelo título de cada categoria, pela comparação destas categorias,
reordenação conforme a experiência estudada.
Quando essa classificação pareceu promissora, a pesquisadora buscou representa-la
esquematicamente em um diagrama inicial (Figura 5).
80

Figura 5 - Relação inicial entre as subcategorias.

Fonte: Elaboração das autoras.

A representação gráfica a partir dos memorandos proporcionou uma explanação visual


das subcategorias e suas relações, bem como o poder relativo, o alcance e a direção das
categorias durante a análise.
Este incentivo à experimentação da pesquisadora frente ao que emergiu dos
memorandos fez parte do processo de teorização, ou seja, da prática de construir compreensões
abstratas sobre o fenômeno com base nas diretrizes teóricas de interpretação fornecidas pela
TFD (CHARMAZ, 2009).
O processo de teorização considerou que a teoria gerada não dependeu somente dos
fatos, mas também dos valores presentes em todos os fatos, em tudo que se vê e que não se vê.
Assim promoveu-se a reflexividade da pesquisadora em relação às suas próprias interpretações,
assim como às interpretações dos participantes da pesquisa.
81

Para teorizar foi necessário ir além da descrição das categorias evidenciadas nos
memorandos, buscando por aprofundar os significados e processos implícitos, reunindo-os e
interpretando-os. Mais do que descobrir uma ordem dentro dos dados, buscou-se uma
explicação, uma organização e apresentação dos mesmos.
Buscou definir e conceituar as relações existentes entre as experiências e o fenômeno
da dimensão ética da educação superior em Saúde, identificando como as categorias se
relacionavam com a construção da personalidade moral ou da identidade dos sujeitos na vida
universitária.
Neste processo de teorização identificou-se os conceitos que emergiram e deram
significado aos dados e geraram uma estrutura interpretativa e compreensões abstratas das
relações existentes no fenômeno da dimensão ética da educação superior em Saúde. Estes
conceitos que emergem da teorização são as facetas identitárias: eu-pessoa; eu-acadêmico; eu-
profissional; eu trabalhador da saúde e o eu-cidadão (figura 6).

Figura 6 - Construção dos conceitos teóricos a partir das categorias e subcategorias.

Fonte: Elaboração das autoras.

Este diagrama fez parte do processo metodológico de teorização e ao serem


constantemente analisados em diálogo com os resultados fundamentaram a construção do
diagrama final da teoria apresentada no capítulo de resultados da tese.
82

3.9 DETALHAMENTO ÉTICO

Reforçar-se a importância de as investigadoras estarem atentas aos seus valores e


crenças enquanto pesquisadoras/observadoras, entendendo que esses influenciam o que se
consegue enxergar dos dados. De modo algum os cientistas podem ser neutros à sua pesquisa
(CHARMAZ, 2009). Deste modo foi importante para as pesquisadoras conscientizarem-se de
seus valores morais e visões de mundo, pois só assim se pôde almejar uma análise o mais
completa possível. Diferente dos participantes, a pesquisadora principal objetivou
constantemente refletir sobre aquilo que levava ao cenário da pesquisa, aquilo que percebia e
como percebia.
Historicamente, pode se afirmar que a TFD, principalmente na corrente glaseriana, que
tudo são dados, porém foi de fundamental importância entender que todos os dados são
produzidos por alguém com determinado propósito, em determinado contexto histórico, social
e situacional (CHARMAZ, 2009). Novamente, reforça-se a reflexão sobre a impossibilidade da
neutralidade em valores do ser humano que é sempre um ser moralmente construído e
autoconstruído ao mesmo tempo. Por isso, as pesquisadoras foram a campo com consciência
de seu interesse inicial pela pesquisa (desde os conceitos sensibilizantes) atentando ao cuidado
para que não ocorresse nenhum ‘forçamento’ dos dados, de forma consciente ou inconsciente.
Outro componente ético desta pesquisa diz respeito ao cumprimento da Resolução Nº
510, de 07 de abril de 2016 que trata da pesquisa em ciências humanas e sociais. Como esta
pesquisa empregou procedimentos metodológicos que envolveram a utilização de dados
diretamente obtidos com os participantes, o projeto foi submetido à apreciação ética via
Plataforma Brasil (CAAE: 82125918.9.3001.5369), sendo aprovado pelos Comitês de Ética em
Pesquisa designados para esta avaliação, sob os números 2.562.691 (Anexo A) e nº2.648.119
(Anexo B), ambos após qualificação do projeto de pesquisa por banca examinadora.
Considerando os princípios éticos definidos na resolução, as pesquisadoras se
comprometeram a respeitar a liberdade e autonomia dos participantes, bem como seus valores
culturais, sociais, morais e religiosos; além de respeitar a diversidade garantindo a participação
de grupos vulneráveis e discriminados. Também, assumiu-se o compromisso de propiciar
assistência a eventuais danos materiais e imateriais, decorrentes da participação na pesquisa.
83

A pesquisa não previu riscos à saúde dos participantes, contudo, poderiam ocorrer ao
longo da coleta de dados possíveis desconfortos morais dos participantes decorrente da
presença da pesquisadora em campo e da apresentação pública das informações coletadas e seus
resultados. Neste sentido as pesquisadoras se comprometeram com: a confidencialidade das
informações obtidas e com a proteção da identidade, inclusive do uso de imagem e voz dos
participantes; com a garantia da não utilização das informações obtidas em pesquisa em
prejuízo dos seus participantes; e com o consentimento dos participantes das pesquisas,
esclarecidos sobre seu sentido e implicações (BRASIL, 2016).
O processo de consentimento, sigilo e anonimato dos participantes seguiu o descrito no
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice E) que foi assinado pelos mesmos.
Além disso, os participantes do estudo foram orientados verbalmente quanto aos objetivos e
procedimentos do estudo, forma de participação, importância do estudo, garantia de respeito e
sigilo das informações, da disponibilidade dos dados e informações pessoais, assim como, da
liberdade de participação e desistência ao longo de qualquer fase do processo sem haver
prejuízo para si. A participação seguiu caráter voluntário, sem qualquer forma de remuneração.
Além do consentimento dos participantes da pesquisa, as IES foram contatadas quanto
ao interesse do estudo. Como já citado os processos normativos referentes ao consentimento de
cada uma das instituições foram respeitados.
As pesquisadoras julgaram este estudo como sendo socialmente relevante e asseguraram
a inexistência de conflitos de interesse entre pesquisadoras e participantes da pesquisa. Além
disso, também foi assegurado por parte das mesmas o compromisso em divulgar e publicar
quaisquer que fossem os resultados encontrados neste estudo, resguardando, no entanto, os
interesses dos sujeitos envolvidos.
84

4 RESULTADOS

A dimensão ética da educação superior nos cursos de graduação em Saúde se realiza


com a construção da personalidade moral dos sujeitos em diferentes âmbitos da vida
universitária, forjando assim sua própria identidade. Essa elaboração identitária que se processa
durante a formação profissional revela o âmbito ético da educação universitária, o que pode ser
melhor compreendido a partir da representação gráfica da TFD desenvolvida nesta pesquisa
(Figura 7).

Figura 7 - Representação da teoria sobre a realização da dimensão ética da educação superior em


Saúde.

Fonte: Elaboração das autoras.

Como mostrado na figura 7, a construção identitária se dá em várias facetas: eu-pessoa,


eu-acadêmico/a, eu-profissional, eu-trabalhador/a da saúde, eu-cidadão/ã. Cada uma delas está
relacionada a um aprendizado em especial e a uma categoria da Teoria. A união de todas estas
facetas resulta na construção da identidade na vida universitária, por sua vez, relacionada ao
aprendizado da ética e à categoria central “Conscientizando-se sobre a importância da dimensão
ética da educação superior em Saúde durante a vida universitária”.
A aprendizagem ética na construção do eu-pessoa depende do fortalecimento das
relações de reciprocidade, que são relações dialógicas na qual a aprendizagem mútua é inerente.
85

O ensino-aprendizagem ético exige reciprocidade, onde as decisões tomadas demandam


deveres para com os outros e responsabilidades sobre as próprias atitudes. Vivenciar práticas
profissionais contextualizadas com a sociedade e com os serviços de saúde, e práticas de
cidadania a partir de espaços democráticos e deliberativos influenciam a construção ética do
eu-pessoa desde que estejam fundamentadas em relações recíprocas. Estas vivências de
mutualidade nos contextos de pluralismo moral presente nas interações acadêmicas, necessitam
de reflexão ética para fomentar a autonomia moral dos indivíduos, objetivo maior de um
processo de educação superior.
A construção do eu-acadêmico que se sente pertencente a uma comunidade de
buscadores de conhecimento é uma das facetas identitárias pouco fomentada. Os docentes têm
seu tempo ocupado com as demandas acadêmicas e científicas-produtivistas e os estudantes
com as demandas curriculares e profissionalizantes. Interações que busquem refletir o papel de
cada um em uma comunidade acadêmica e suas potencialidades criativas e transformativas
tornam-se pontuais ou inexistentes, reduzindo a vida acadêmica à realização de demandas
universitárias.
Como os currículos da saúde são fortemente influenciados pelos paradigmas
tecnificantes e biologicistas, a construção do eu-profissional ocorre mais por experiências de
absorção e reprodução de conhecimentos do que por experiências reflexivas e de co-construção
de saberes. A racionalidade decisória no cuidado em saúde é influenciada pelo poder de
dominar determinadas técnicas e especializações. Neste contexto, o olhar sobre as questões
contextuais, morais e políticas do processo saúde-doença é limitado. O cuidado e o
conhecimento não são fins da construção do eu-profissional, mas meios para a aplicação de
uma técnica ou de um saber protocolar. O potencial de influir na realidade sanitária do país é
insuficientemente trabalhado, fazendo com que a reflexão ética e a capacidade crítica não sejam
aprendizagens sentidas como necessárias, já que há uma tecnificação das relações na educação
diminuídas à formação profissional.
As relações de cuidado em saúde reduzidas ao ato técnico limitam as concepções de
saúde-doença, dificultando a sensibilização do corpo acadêmico para as questões ético-estético-
políticas do eu-trabalhador da saúde. A reflexão ética e a atuação política são necessárias
quando se compreende a saúde como um direito de cidadania e a responsabilidade social como
um dever do trabalhador da saúde. A insuficiência de reflexões sobre si, sobre estar no mundo
e, portanto, sobre sua ação nele, minimiza as possibilidades de construir-se enquanto um ser da
práxis.
86

A capacidade de atuar, operar, refletir eticamente sobre a realidade e transformá-la tem


sido fomentada no ensino-serviço-comunidade, um processo educativo que incute meio e
sentido dessa construção do profissional-cidadão. A educação interprofissional apresenta-se
como o método pedagógico para a construção de trabalhadores que saibam atuar com práticas
de cuidado embasadas em atitudes dialógicas com a equipe de saúde e com
indivíduos/famílias/comunidades. A construção da identidade de trabalhador da saúde também
tem demonstrado a importância da humanização na prestação de serviços de saúde, embora o
cuidado humanizado carece de sentido e de vivência quando as relações pedagógicas se
apresentam desumanizadas.
A construção do eu-pessoa, do eu-acadêmico, do eu-profissional e do eu-trabalhador da
saúde tem a responsabilidade social como elemento comum e capaz de ampliar o sentido da
vida universitária. Dentre as distintas facetas identitárias, o fomento do eu-cidadão tem sido a
mais fragilizada. Ela depende da compreensão da missão da Universidade para além do preparo
de profissionais para o mercado de trabalho, com papel de influir nos rumos da sociedade. Para
tanto, o ensino-aprendizagem ético é essencial na condução das práticas da saúde e da educação.
Assim se fomenta a capacidade crítica e a responsabilidade com a vida em sociedade, fazendo
com que o eu-cidadão assuma seu papel como agente de transformação do mundo e da própria
instituição universitária.
Assumir a missão universitária em toda sua amplitude favorece o pertencimento à
comunidade acadêmica e à sociedade, auxiliando na conscientização sobre a dimensão ética da
educação superior em Saúde. A vida universitária é um percurso de vivência de valores que
embasam a formação pessoal, profissional e cidadã. Este percurso nem sempre tem construindo
moralidades consonantes com o cuidado em saúde e com a responsabilidade social. Viver a
Universidade autenticamente significa percorrer a trajetória acadêmica, almejando autonomia
moral para construir-se como pessoa no sentido mais pleno possível. Assumir a missão da
Universidade e a responsabilização social são doadores de sentido às escolhas e vivências
universitárias. Em não sendo assim, a educação superior em Saúde acaba encolhida, restrita a
percursos individualistas e solitários no qual o papel da Universidade fica subsumido e
instrumentalizado.

As diferentes facetas identitárias que compõem a identidade que se vai construindo


durante a vida universitária - e que revelam a dimensão ética da educação superior em Saúde -
puderam ser identificadas por meio da análise das categorias e subcategorias que compõem a
87

TFD desenvolvida. As categorias e subcategorias são apresentadas no Quadro 5 e discutidas a


seguir.

Quadro 5 - Subcategorias e categorias desenvolvidas na construção da Teoria.

Subcategorias Categorias

Pensando os espaços existentes na universidade para


aprendizagem ética
Entendendo os modos relacionais que contribuem para Compreendendo a relação dialógica
a aprendizagem ética permeada pelas diversidades como elemento
Percebendo a importância da diversidade cultural e do experiencial necessário para a aprendizagem
pluralismo moral na construção da identidade ética na vida acadêmica
Reconhecendo experiências que possibilitam a educação
moral na universidade
Reequilibrando os distintos papéis do docente na vida
universitária
Ressignificando papéis da vida universitária
Assumindo a responsabilidade sobre a sua própria para elaborar um papel colaborativo para a
trajetória acadêmica estudantil comunidade acadêmica
Fomentando pertencimento à Universidade
Refletindo sobre os paradigmas e objetivos da educação
superior em Saúde Expressando a dificuldade de tornar-se
profissional a partir dos paradigmas e
Ponderando sobre a importância de educar para o racionalidades hegemônicos na educação
processo decisório em saúde superior em Saúde

Humanizando o processo de trabalho em saúde


Significando a dimensão ética na construção
Tornando-se trabalhador-cidadão por meio da do trabalhador da saúde por meio do cuidado
integração ensino-serviço-comunidade humanizado, da integração ensino-serviço-
Almejando a qualificação do trabalhador da saúde por comunidade e da educação interprofissional.
meio da educação interprofissional
Reflexionando sobre a missão da Universidade
Responsabilizando-se pelos os rumos da
Identificando as potencialidades da responsabilização sociedade
social na Educação Superior em Saúde
Necessitando dialogar e compreender o significado de
“ética”
Definindo valores para um ensino-aprendizagem ético Conscientizando-se sobre a importância da
Desenvolvendo o ensino-aprendizagem ético nas dimensão ética da educação superior em
disciplinas curriculares Saúde na vida universitária
Fomentando o ensino-aprendizagem ético para além das
disciplinas
88

4.1 COMPREENDENDO A RELAÇÃO DIALÓGICA PERMEADA PELAS


DIVERSIDADES COMO ELEMENTO EXPERIENCIAL NECESSÁRIO À AUTONOMIA
MORAL NA VIDA UNIVERSITÁRIA

Esta categoria se constrói a partir da percepção de quais espaços acadêmicos são


evidenciados como potenciais para a aprendizagem ética, uma aprendizagem que visa a busca
por autonomia moral dos educandos. A sala de aula, a aprendizagem teórica, as práticas
pedagógicas intra e extra-muros da Universidade e os espaços extra-curriculares demostram
influências de distintas intensidades e possibilidades sobre a construção moral de estudantes e
professores. O potencial destes espaços para a aprendizagem ética se apresenta condicionado
às formas de relações interpessoais que serão desenvolvidas. A busca por maior horizontalidade
no exercicio de poderes, as oportunidades de diálogo e afeto possibilitam relações dialógicas,
consideradas fundamentais para a aprendizagem ética.
A diversidade cultural e o pluralismo moral também são percebidos como facilitadores
das possibilidades de reflexão eticamente comprometida. Estas diversidades tensionam o
diálogo e a crítica à modelos hegemônicos assim como aos discursos e às práticas
homogeneizadoras, ampliando significativamente a aprendizagem ética. As experiências
democráticas, de cooperação, de autonomia moral, de exemplos atitudinais e de desafios
sensibilizam para a dimensão ética da Educação Superior e auxiliam a construção da
personalidade moral dos membros do corpo acadêmico.

4.1.1 Pensando os espaços existentes na universidade para aprendizagem ética

Os espaços de vivência que compreendem o currículo formal e oculto configuram


possibilidades distintas para a aprendizagem ética. Identificados como espaços de relações
pedagógicas -teóricas e práticas do se tornar profissional da saúde, e espaços de prática do ser
cidadão.
Apesar da construção moral ser inerente as vivências acadêmicas, os espaços de ensino-
aprendizagem teórica são considerados de menor potência para a construção eticamente
comprometida da identidade dos estudantes. Essa compreensão é resultante do pouco fomento
ao ensino-aprendizagem ético nos espaços de aula teórica, pois esta aprendizagem necessita da
‘sensibilidade’ do docente ao tema e conhecer profundamente seu conteúdo.
89

Os espaços das aulas práticas são, então, apontados como os momentos mais propícios
para o ensino-aprendizagem ético, havendo o reconhecimento da ética enquanto uma reflexão
sobre a prática. Ao mesmo tempo que se tem dificuldade de compreender o que é a dimensão
ética da Educação, esta acaba sendo relacionada à ação diária, com exemplos e atitudes. As
atividades práticas na construção profissional têm sua potência de ensino-aprendizagem ético a
partir das atitudes do professor e em como ele lida com a aplicação dos seus conhecimentos e
o poder relacionado a profissão de saúde. Essas práticas pedagógicas, ao mesmo tempo em que
visualizadas como essenciais para o ensino-aprendizagem ético também são apontadas como
subutilizadas para esse propósito.

[...] o aluno vai desde cedo para os campos de prática, o tempo inteiro ele está nos
campos de prática e quando e quê problemas e questões éticas são discutidas? nem ali
isso acontece! (GA2P8)

É necessário que se tenha uma intencionalidade para o ensino-aprendizagem ético, pois


essa prática pode ter um direcionamento em que o estudante não é ensinado a decidir, ser
autônomo, criativo, ele pode acabar reproduzindo respostas, sem reflexão ética, mesmo na
prática.

[...] e a gente sabe que alguns só recebem supervisão desse jeito mesmo: - ‘é qual o
medicamento, o medicamento tá correto, o documento que tem que preencher ou que
tem que colocar no sistema’... absolutamente operacional, e eu estou com o paciente
real na minha frente [...] situação real, e não significa grande coisa. (GA2P3)

Outros espaços identificados como potenciais para a aprendizagem ética são os espaços
da prática do ser cidadão – relacionada ao participar de extensões comunitárias, atividades
culturais e movimentos estudantis e são visualizados como importantes, majoritariamente, por
estudantes. Alguns espaços institucionais para além da especificidade de cada curso (como
políticas de ações afirmativas e de inclusão de diversidades) são citados como possibilidades
de dar força a aprendizagem ética, mas não são suficientes por si só. A vivência de estudantes
e professores nestes outros espaços que não somente os de relação pedagógica formalizada,
como espaços de gestão, por exemplo, auxilia a conhecer outros contextos e realidades.
Apesar do ensino-aprendizagem ético ser apontado como uma ideia muito mais presente
no discurso do que na realidade cotidiana, os dados apontam que o espaço onde ‘a ética
acontece’ (interpretado como espaços potenciais para a aprendizagem ética) é percebido
principalmente no eixo da extensão universitária e nas vivências fundamentadas no arcabouço
teórico-prático da Saúde Coletiva – destacadas as experiencias comunitárias, pois é onde se
90

conhece a realidade das desigualdades sociais e se potencializa a construção de um profissional


mais humanizado.

Eu acho que não tem um momento especifico onde eles tentam mudar a sua cabeça.
Eu acho que talvez [...] na parte que tem os ensaios de SUS que a gente faz aqui
mesmo, mas simula o SUS e são pacientes um pouco mais precários. [...] Eu acho que
essas são as mais voltadas para a humanização, porque os outros não tem isso.
(GA3E10)

Neste sentido, parece que os momentos de ensino-aprendizagem das aulas teóricas não
são percebidos como significativos para a aprendizagem ética, assim como as práticas
pedagógicas intramuros.
Pensar os espaços existentes do currículo oculto concomitantemente com os espaços da
estrutura formal se faz necessário para que a dimensão ética da educação universitária possa ser
compreendida, tanto na inevitabilidade da aprendizagem moral como na necessidade do ensino-
aprendizagem ético, de forma mais consciente.

Do currículo oculto, do currículo informal, que cultura que o aluno tá vivendo, no que
ele está inserido, que valores são esses, que possibilidade de crítica ele tá tendo no
cotidiano pedagógico, em todos os momentos também [...] porque se as vezes nem o
professor percebe isso, que são nas relações, que são compartilhados os valores, essas
ideias, que vai se consolidando uma ideia do que é essa profissão, de que requisitos
ele precisa ter, que atuação... se as vezes nem pro professor isso está claro, ou ele acha
que não é preciso ler e estudar sobre isso... aí fica mais complicado: “95% do tempo
passando conteúdo e poucas vezes – e muito pouco do que eu acho que deveria ser,
tu ficas falando sobre humanidades. (GA2P10)

A instituição universitária é colocada como um “espaço com potência de trocas


incríveis” (GA3E4) sendo necessárias determinadas formas de relacionamento para que a
aprendizagem ética seja possível. Essas maneiras de relação são apresentadas na subcategoria
a seguir.

4.1.2 Entendendo os modos relacionais que contribuem para a aprendizagem ética

A relação interpessoal considerada horizontal, ou seja, dialógica e não autoritária, é


apontada como uma condição necessária para que a aprendizagem ética seja possível, dada a
necessidade de uma sensação de liberdade e segurança para compartilhar pensamentos e poder
confrontá-los com compreensões alternativas.

[...] o meu desenvolvimento moral, aquilo que eu penso, como eu ajo no meu íntimo
vai repercutir na bolha em que eu estou inserido. Muitas vezes eu não consigo, porque
eu não posso em determinados lugares falar o que eu penso. (GA2P2)
91

A inerente hierarquia institucional e a construção social que se tem do professor, podem


estar mais ou menos presentes nessas relações interpessoais a depender, principalmente, da
maior ou menor abertura do professor ao diálogo, aos conhecimentos e ideias dos outros
professores e estudantes.

Estabelecer ou desenvolver essa relação um pouco mais, digamos assim, equilibrada.


Porque no final das contas a gente tem que traduzir em nota, em um conceito [...] é
um pouco isso, como lidar com esse poder que a gente tem. (GA2P15)

Que ele não seja só uma questão presente no discurso, mas que seja efetivamente
colocado na relação professor-aluno, no respeito mútuo, numa relação horizontal
dialógica. Porque a gente ouve muito dos estudantes ainda, a falta dessa relação.
(GA2P16)

Em sala de aula, esta relação hierárquica aparece de forma acentuada, seja pela presença
de um coletivo que pode inibir o professor de ‘dar abertura’ ou o estudante de ‘se expor a falar’,
seja pelas características individuais dos envolvidos.

Eu acho que vai muito do perfil do professor [...] tem professores que são bem
abertos... [...] o que também vai variar se o representante é ativo ou não [...] se o
acadêmico é ativo ou não é, se é mais acanhado ou não é. Tem acadêmicos que
levantam a mão e colocam que não concordam com algo da aula, e tem acadêmicos
que não, que tudo que o professor fala é ‘amém’. E não dá para ser assim, né? Tem
professores que gostam justamente desses alunos. (GA3E4)

A disposição ao diálogo depende mais do professor no sentido de compartilhar poder,


embora a conduta participativa do estudante, sua capacidade de crítica também influencia nessa
convivência. Para que haja possibilidade de aprendizagem ética no contato professor estudante
as relações horizontais devem estar em seu fundamento. É necessário que o estudante deixe de
enxergar o professor como alguém inacessível a ele.

Então o professor ele amedronta o aluno pela exposição do conhecimento


especializado que ele tem, mas ele não tenta argumentar [...] porque na argumentação
ele tinha que perguntar como que ele pensa isso [...] não é pra ficar elaborando
respostas porque não é prova, diga o que você pensa, com tuas palavras, e isso que eu
converso com eles quando eles estão fazendo ações coletivas: mas porque você tá
fazendo dessa maneira?. (GA2P11)

É tentar fazer com que as relações sejam poliárquicas e não hierárquicas. Porque um
professor que já começa a sua ambientação em sala de aula como aquele que tá numa
posição socialmente definida como superior ao aluno, você quebra possibilidades de
relação de confiança e isso consequentemente vai desfazer um vínculo que pode ser
um vínculo educativo. (GA2P12)

O distanciamento, a falta de confiança e construções de vínculos afetivos que resultam


destas relações hierárquicas, paralisam, impedem o estudante de questionar e de aprender: - “é
92

o jeito que ele fala que gera medo, a falta de humildade, o desprezo pela dúvida simples”
(GA3E10). Estes relacionamentos pouco vinculativos são visualizados como experiências que
não motivam o participar, apenas são suportadas, fomentando o desejo de que acabe logo a
disciplina, o curso de graduação. São momentos de reprodução e obediência, ou mesmo de
sofrimento. Neste sentido, as oportunidades de aproximação, de construção de afetos, de
momentos de maior horizontalidade com os professores, mesmo que menos presentes, são
motivadores de aprendizagem e potencializadores da identidade por meio da vivência de
valores como respeito, diálogo e autonomia.

Imagina se a gente almoçasse com os professores! Ia começar a sair umas coisas


loucas! Talvez projetos novos, talvez aulas melhores, talvez relações melhores, mais
saudáveis e um entendimento de conhecimento completamente diferente [...]. Cara
para mim, reunir pessoas e comida, sem livros e coisas que remetam à sala de aula,
mas mesmo assim aprendendo, é tipo assim, eu acho que de muita formação, mesmo,
mesmo, mesmo! É que eu já almoço com alguns professores e é muito divertido, a
gente começa a discutir sobre os pacientes, os casos clínicos, e se for ver bem, colocar
dentro do meio acadêmico, é realmente uma discussão de caso clinico, só que a gente
não tem um projetor com fotos passando e não sei o que, sabe? E a gente desenvolve
rápido! Sendo que dentro de sala de aula dá aquela taquicardia e a gente fica nervoso
e trava tudo... e aí a pessoa se sente incapaz porque ela travou e aí ela vai pensar que
quando for para ela aplicar na clínica ela também vai travar e vai ser incapaz, e começa
aquela bola de neve de autodestruição né, que não precisava! (GA3E1)

Frente às dificuldades de uma maior vinculação afetiva com os professores, os


momentos em que estes estão ausentes são destacadas pelos estudantes como espaços não-
hierárquicos em que há a possibilidade de aprendizagem ética, como as discussões dentro de
centros acadêmicos, por exemplo, por permitir maior liberdade de expor pensamentos e
contestar posicionamentos e ideias.
O trato entre estudante e paciente também é influenciado por esses modos de relacionar-
se que o estudante aprende com o professor, que o constrói enquanto pessoa e profissional. Se
o estudante aprende a relacionar-se de modo hierárquico, na qual um sabe tudo e o outro
obedece, ele pode reproduzir essa relação com o paciente.

Porque as pessoas acham que se você se portar de determinada forma com o paciente
você tá mostrando que você sabe alguma coisa[...] e daí começa aquela coisa de botar
barreiras que você se perde ali dentro [...]. E daí o paciente sente esse gelo, essa ‘placa
de vidro’ na frente, acaba sendo grosso com o aluno e daí o aluno diz ‘ah, o meu
paciente é difícil’, cara, não! Olha pro teu paciente! [...] um amigo meu chegou pra
mim e perguntou: ‘porque o meu paciente deu certo contigo?’, e eu falei: - ‘é, você
sabe que o nome da mãe dele é esse e que ela tá passando por esse momento tal, e por
isso que ele vem com tanto esforço e chega sempre atrasado?’, então já começa a
saber porque ele era tão ríspido contigo [...] então é isso sabe? É muito disso assim,
aí falta [...] falta amor sabe?”. (GA3E1)
93

Estas interações, nas quais alguém detém todo o conhecimento e o saber do outro não é
considerado, resultam em um sentimento de desumanização. A postura do professor,
apresentando-se com mais transparência, valorizando as dúvidas, anseios e reconhecendo suas
limitações, favorece uma convivência afetuosa, com construção de vínculos e a realização de
valores humanizadores, tanto no processo pedagógico quanto na assistência à saúde.

[...] eu tenho feito essa aposta, por exemplo, falar da minha orientação sexual, dos
meus sofrimentos é algo que eu entendo que talvez seja um caminho para construir
horizontalidade com os alunos. (GA2P2)

Nas relações mais horizontalizadas é possível a construção compartilhada do


conhecimento e das decisões na assistência em Saúde tornando possível a corresponsabilização
estudante-professor para com o paciente. Essa corresponsabilização dificulta que no momento
do erro, da falha, a reação seja a de responsabilizar unicamente o outro - um processo que pode
ensinar o próprio valor da responsabilidade na vida acadêmica e profissional.
As possibilidades de aprendizagem ética, seja na reflexão sobre a dimensão ética da
educação superior em Saúde, seja por meio da vivência de valores que possibilitam o vínculo e
a responsabilidade, parecem estar condicionadas às possibilidades de relações dialógicas, ainda
escassas no meio universitário.

A gente tá numa arena em que todo mundo se julga o tempo inteiro, e se eu sou
julgado, a minha defesa é julgar pior e mais severamente o outro e aí isso envenena o
diálogo. Eu sinto que a gente está vivendo relações dentro da Universidade neste
sentido assim, envenenadas para o diálogo. Porque elas já estão sempre partindo de
uma atitude de defensiva, de fechamento para o outro, de intolerância e não
humildade. E um alimenta o outro, porque o que acontece, parece que a pessoa está
para uma disposição para o diálogo, querendo assumir: - ‘tá bom, eu não sei tudo’, aí
vem uma resposta do outro e a pessoa: - ‘ah, se é assim então você vai levar na mesma
moeda’. Então a gente está assim (GA2P8)

Uma das consequências destas dificuldades de relacionamentos presentes na


Universidade é a redução dos espaços compartilhados. Os professores trabalham em suas
respectivas áreas disciplinares e os estudantes aprendem a reconhecer essas fragmentações e se
sentem convidados a identificarem-se com alguma delas. Assim, “faz parte da cultura não
dialogar, acompanha a tendência moderna de cada vez termos menos encontros” (GA4G3).
Neste sentido, há uma percepção da necessidade de diálogo e afetos na Universidade. Os
moldes como se dão as relações interpessoais, sejam cotidianas ou pedagógicas, influem na
forma como todo o corpo acadêmico constrói sua identidade e, por consequência, seu
relacionamento com o mundo, em todos os espaços.
94

4.1.3 Percebendo a importância da diversidade cultural e do pluralismo moral na


construção da identidade

Além de indicar quais espaços e formas relacionais têm potencial de favorecer a


aprendizagem ética, os dados revelam que a Universidade pode se apresentar como um universo
de moralidades distintas em interação. A possibilidade dessa multiplicidade de vivências amplia
as oportunidades de reflexão e vivência de valores que participam da construção da identidade
dos estudantes e professores.

Porque cada espaço que a pessoa vai passando, elas vão carregando um pouco daquilo
para si ou discordando e trazendo essa discordância para outros espaços também.
(GA3E3)

Onde cada um acredita que pode chegar, o seu sucesso pessoal, tem a ver com a
realidade em que vive. Viajar, a experiência religiosa, a experiência comunitária. Tem
várias distâncias entre essas pessoas, por isso que eu insisto na coisa experiencial, eu
vou ver o meu mundo a partir das experiências que eu tenho [...]. (GA2P2)

As DCN se apoiam em políticas públicas para defender a inclusão dos contextos de


diversidade social na educação superior em Saúde. Um processo que deve ocorrer sem
privilégios nem preconceitos de qualquer espécie, garantindo uma discriminação positiva –
inclusiva - no ensino, na pesquisa, na extensão e na administração universitária. Indicam
também que deve haver uma transversalidade das temáticas relativas à diversidade no ensino,
sendo as atividades pedagógicas conduzidas de forma contextualizada com o pluralismo moral
e com as diversidades.

O graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade


biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica,
política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da
diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social. (GA1D4)

O conhecimento da diversidade cultural e o reconhecimento dos pluralismos morais


tensionam a vida universitária para a construção de habilidades relacionais e sociais mais
inclusivas. Pré-conceber as relações como moralmente homogêneas ou ignorar as diversidades
na busca por homogeneizar as relações acadêmicas dificulta a realização de valores distintos
daqueles que compõem uma identidade. A vivência de valores diversos auxilia na reflexão
sobre os mesmos e na construção autônoma de si. Não homogeneizar artificialmente as relações
permite significar o cuidado em saúde considerando as influências desses distintos contextos
relacionais, sensibilizando o corpo acadêmico e possibilitando a compreensão dos
determinantes sociais da saúde.
95

No próprio atendimento ao paciente é essencial a compreensão de que as pessoas são


moralmente plurais, porque qualifica o exercício profissional e amplia as possibilidades de
enfrentar desafios próprios da profissão. Como as diferentes áreas da saúde e suas
especialidades se posicionam diante do aprender sobre e com a diversidade também influi nessa
aprendizagem ética na Universidade.

A maneira de fazer atendimento, as pessoas que não vão aceitar aquilo ou como você
deve aceitar aquilo também né? Por que eu acho que é uma coisa importante no
atendimento de saúde onde vai aparecer milhares de pessoas diferentes. (GA3E7)

Isso é uma baita de uma mudança pra nós, porque senão o cenário era só hospital, e
aí o hospital reproduz o modelo [...] agora não, agora temos bastante gente que vai
para medicina de família, e os bons alunos, sabe? Na minha ótica, na minha ética, as
duas coisas que mudaram a Universidade para uma maneira positiva - menos
tecnicista, mais comprometida, mais engajada: foram as cotas, pela mudança do perfil
de quem vai prestar o serviço, e a medicina de família. (GA2P10)

Neste sentido, a Saúde Coletiva volta a ser evocada como a área disciplinar que
possibilita trabalhar as questões das diversidades, já que promove a interface entre saberes e
práticas biologicistas e sociais, entre Universidade e o sistema público de saúde, cenários e
situações de ensino-aprendizado que oportunizam distintas vivências morais. Há a necessidade
então que essas vivências sejam oportunidades de problematização e reflexão ética para que o
discurso e a prática acadêmica combatam a exclusão social, fundamentados nos princípios de
democracia e igualdade social.

Porque eu comecei a mostrar o olhar da Saúde Coletiva, que seria olhar aquele
indivíduo como um todo e de que a desigualdade vivenciada por ele se reflete na
utilização do serviço e o quanto ele precisa ser respeitado na dimensão do que ele
vive, e que não é simplesmente indicar uma escova dental muito cara achando que ele
vai comprar porque a saúde bucal é importante [...] entende? Então eu já passava por
esses desafios éticos eu diria, principalmente de valores durante a instituição da minha
disciplina, e não foi só com os alunos, foi também com os professores [...] esses
desafios de formação perpassam a gente que vive a Saúde Coletiva, porque a gente
quer mostrar muito além, né? (GA2P13)

A presença da diversidade na Universidade evidencia a complexidade do mundo social


auxiliando na capacidade de compreensão e decisão na medida que ampliam o leque de
reflexões possíveis sobre cada situação. Ampliar a visão de mundo na academia pela presença
e reconhecimento da diversidade cultural e suas pluralidades morais possibilita uma maior
compreensão da realidade na medida em que a problematização e a reflexão crítica são
fomentadas.
96

[...] eu acho que uma pessoa muito encerrada num grupo social único, talvez ele tenha
menos possibilidades de experimentar outros tipos de relações né, e talvez isso limite
[...] agora, eu pertenço a vários coletivos, com linguagens absolutamente diferente,
com papos totalmente distintos, muda a linguagem, muda a abordagem discursiva, é
completamente diferente [...]. (GA2P12)

A multiplicidade de relações com diferentes grupos sociais incrementa o aprendizado


relacional porque a convivência com morais distintas amplia nossa compreensão sobre os
demais , “como você olha o outro, remove a estranheza” (GA2P2) do diferente, melhora o
discurso por ampliar o domínio de linguagem, transforma a relação em possibilidade de
aprendizagem ética. Para tanto aponta-se a necessidade do “estar presente, problematizar tudo”
(GA2P1), um processo de compartilhamentos e questionamentos.
A diversidade na academia, resultado de políticas afirmativas e lutas sociais dos grupos
historicamente excluídos da Universidade é importante também porque mostra que este espaço
conquistado é um direito e que deve ser ocupado. É a aprendizagem dos privilegiados
ampliando a visão da sua pequena ‘bolha elitizada’ e a resistência e ocupação de espaço
daqueles que sempre foram excluídos.

Está sendo bem legal, tanto que, até conversando no CA, a gente se admira em
perceber que todos os presidentes dos centros acadêmicos, todos são LGBTs e como
isso foi importante para desenvolver debates ali dentro que a gente nunca imaginava
que teria ter [...] a gente falar sobre PEC, sobre SUS, usar camisa do SUS sabe, vestir
a camisa mesmo e falar que a nossa política é pública, é gratuita e nós estamos dando
qualidade a ela. (GA3E1)

Hoje eu brinco que eu tenho o Brasil na minha frente, eu tenho de um tudo, e o mudou
o espirito porque quando era só ‘filhinho de papai’, ‘riquinho’, tinha uma coisa de
elite [...] do carro, do ipad, iphone [...] e hoje tu não vê mais isso no curso... até deve
ter entre eles mas não é uma coisa ostensiva, então mudou muito [...] e ao contrário
do que se imaginava, o nível do curso não baixou, não foi isso que se observou. E o
‘pessoal da cota’ entra e ele dá conta, com exceções [...] foi uma mudança radical de
perfil do curso [...] e positiva eu acho”. (GA2P10)

Ocorre um tensionamento importante para que a comunidade acadêmica, anteriormente


composta somente por representantes de uma pequena parcela da sociedade, passe a enxergar
outras realidades, transformando-se e tornando-se capaz de transformar, porque aprende
perspectivas diversas e a reconhecer e enfrentar os problemas morais cotidianamente.

Um dos grandes desafios da Universidade, de dez anos pra cá, foi a gente trabalhar
com a ideia de pessoas diferentes, né? Que foi através das ações afirmativas, isso eu
acho que foi um grande desafio e que tá só no início [...] E que propiciou construir
novos valores, aproximou, e provavelmente, a partir do choque de realidade mesmo
que fez as pessoas, minimamente, pensarem sobre aquilo, começar a pensar sobre
aquilo, refletir. (GA2P9)
97

As ações afirmativas, como as cotas raciais, étnicas e socioeconômicas, ampliaram as


discussões e vivências nos cursos da saúde, além de produzir transformações do trabalho em
saúde, pois, aqueles que sempre foram apenas pacientes passaram também a vir a ser
profissionais de saúde:

São mudanças em todos os sentidos, de colocar junto pessoas de idade jovem, tem
índios, tem negros, quilombolas, mas que trazem essa diversidade para dentro [...]
com todas as dificuldades que eles vivem inclusive no atendimento, porque a própria
população que é muito conservadora, ela não está esperando que vai ser atendido [...]
antes nem pensava que podia ser atendido por mulher né? Agora pode ser negra! Então
esse papel na discussão de conflitos é interessantíssimo, é só enriquecedor. (GA4G2)

A diversidade cultural e o pluralismo moral podem impulsionar o empoderamento dos


estudantes pois trazem para a Universidade indivíduos que podem ter maior experiência de
enfrentamento moral, e até uma maior sensibilidade para a percepção das violências morais
cotidianas – violências que podem aumentar com a própria presença destas diversidades,
gerando desafios que terão de ser enfrentados para a própria permanência destes indivíduos
nestes espaços.
A vivência dessas pluralidades morais e as possibilidades de reflexão ética sobre as
mesmas, tensionam os discursos e as práticas homogeneizadoras que desprezam as
singularidades e as pluralidades existentes entre os diferentes sujeitos presentes no cotidiano
acadêmico.

80% de mulheres dentro e ele ainda é um curso machista, que professor assedia aluna
e professoras o defendem [...] gente! E aí entra as ‘sapatão’, as feministas, as negras
e aí falam assim: - ‘não, meu amor, aqui não funciona assim, aqui vai ter denuncia e
no meu box, se você vacilar eu vou espalhar um monte de cartaz do 180 lá, pra lembrar
todas que passarem por aqui, que isso aqui é crime’. Então de um curso que era um
silencio, a gente tá fazendo um pouco de barulho aqui dentro. Então está sendo bem
legal, tanto que, até conversando no CA, a gente se admira em perceber que todos os
presidentes dos centros acadêmicos, todos são LGBTs e como isso foi importante para
desenvolver debates ali dentro que a gente nunca imaginava que teria ter [...] a gente
falar sobre PEC, sobre SUS! (GA3E1)

A presença dessas problematizações evidenciou a importância da diversidade na


Universidade, onde ainda se faz necessário, conjuntamente, fundamentar com uma
intencionalidade ética o diálogo entre moralidades, a aceitação, as trocas culturais. Qualificar a
indignação que emerge dos conflitos, das injustiças, intensificando a percepção dos
pluralismos, permitindo não somente compreender o direito de respeito à diversidade, mas
valorizando-a como fonte de intercâmbio, inovação e criatividade.
98

[...] fez as pessoas, minimamente, pensarem sobre aquilo [...] refletir. Mas só isso não
basta, né? A gente precisa também alimentar com diálogos mais fortificados, com
novas teorias, com novos conhecimentos, com novas experiencias né. (GA2P9)

As trocas entre moralidades distintas também resultam no questionar-se e conhecer-se


melhor. Os pluralismos morais com as quais se pode entrar em contato na vida universitária são
elementos que potencializam o processo de amadurecimento individual dos estudantes, parte
intrínseca ao processo verdadeiramente educativo.

[...] tem várias coisas hoje que a sociedade foi segregada, que o aluno que chega aqui
é aluno de condomínio... meu deus eu ouvi de uma aluna, ‘mas onde está essa pobreza
que a senhora fala e que eu não vejo?’. Mas onde que ela ia ver também, eu perguntei
qual trajeto que ela fazia e ela morava na beira mar e vinha pra UFSC de carro.
(GA2P4)

Este conhecer-se exige perceber falhas, dificuldades, limitações e receios. É um


processo de autoconhecimento e de decisão sobre sua própria educação e não somente seguir
um modelo único de profissional, de cidadão e de forma acrítica. Muito do que impede de
experenciar o novo, tem a ver com os modelos que estão construídos como ‘melhores’. Importa
conhecer outras realidades, outras moralidades para conseguir ampliar as possibilidades de
refletir sobre si mesmo: “porque não dá é pra gente ficar perdido, perdido a gente vai para
qualquer lugar, qualquer lugar serve” (GA3E1).

Eu acho que o modelo ele serve pra que a gente lide com as inseguranças que a gente
tem. Você se apoia no modelo porque você não consegue, por você, se desenvolver.
Então acho que é justamente por não lidar com o feio, com aquilo que dá errado, com
o falho, com as necessidades que é o que a sociedade ensina, né: Você tem que ser
estável [...] as pessoas se pegam nesses modelos. (GA2P2)

Conhecer as realidades do mundo, compreender a diversidade das pessoas, perceber que


o humano é falho, que tem problemas, é difícil para uma pessoa que está construída sob um
modelo único, de pessoa ‘estável’, ‘inteligente’, ‘de sucesso’. Tomar o profissional da saúde
como um herói, sem medos ou possibilidade de erros pode tornar-se um obstáculo para que a
comunidade acadêmica se arrisque e aprenda com o novo e diverso. Reconhecer as próprias
limitações, vulnerabilidades e fortalezas faz com que se construa um olhar mais empático com
o outro que também é vulnerável. O modelo de estudante ideal – centrado somente na avaliação
por nota, também pode ser ruim para os alunos que querem conhecer outros espaços e ter
experiências alternativas para além das oferecidas no seu curso:

O que mais impacta os estudantes de modo geral de terem essa epifania da importância
de circular, de transitar, de buscar novos conhecimentos é um dos entraves
99

institucionais que eu falei, porque a gente tem uma carga horaria muito extensa.
(GA3E2)

Eu nunca tinha pensando nisso, mas talvez a questão do desenvolvimento moral tenha
a ver com isso né, com a capacidade de você incluir diversidades nas tuas formas de
relação [...] e aí se eu tenho um modelo único não tem como. (GA2P2)

Visibilizar a pluralidade moral existente em nossa sociedade, vivenciá-la, refletir


criticamente sobre ela e aprender a respeitá-la consiste em uma importante aprendizagem ética
e que auxilia a recusar as homogeneizações sutis, mas constantemente presentes quando a
academia é subordinada a um modelo único ou a uma dimensão educativa predominante.

4.1.4 Reconhecendo experiências que possibilitam a educação moral na universidade

Os dados revelaram que a aprendizagem ética na Universidade depende de relações


interpessoais dialógicas nos diferentes espaços de teoria e prática do processo educativo e de
convivência acadêmica. Quando ocupados pelas diversidades e pluralismos, estes espaços
potencializam a realização da dimensão ética da educação superior em Saúde.
As subcategorias já apresentadas alicerçam distintas experiências indicadas por
professores e estudantes como vivências de aprendizagem ética, ou seja, de experiências
promovedoras de educação moral, são elas: experiências democráticas, cooperativas, de
autonomia moral, de exemplos atitudinais e desafiadoras.
As experiências democráticas são aquelas orientadas para tomada de decisões
conjuntas. A estrutura e o processo institucional democráticos, com participação de professores
e estudantes em órgãos colegiados deliberativos possibilita à comunidade acadêmica “dizer o
que a gente pensa, de defender com argumentos, se o estudante se sentir lesado de alguma
maneira ele pode pedir para participar, para se defender” (GA2P4). Embora a existência de
espaços com garantia legal de direitos e de possibilidade de vocalização permitam pensar a
Universidade como eticamente comprometida, para que essas experiências democráticas se
convertam também em aprendizagem ética, faz-se necessário uma participação qualificada.

[...] o estudante tem o direito de reclamar, mas tem que aprender a reclamar direito,
que é uma aprendizagem também. Então essa coisa de criar o espaço, e qualificar o
espaço [...] eu acho que pode ser por aí. (GA2P4)

Quando há limitações ou inexistência deste tipo de vivências parece ser incoerente


dialogar sobre ética na educação superior: “nem reunião de departamento não tem, então é meio
abstrato pensar que vamos discutir essas coisas [ética] no nosso departamento” (GA2P3). As
100

condições próprias da democracia, como a transparência nas decisões, garantia de direitos e


possibilidade de participação aparecem nas formas de expressar uma instituição embasada em
valores eticamente justificáveis.

[...] o autoritarismo, a falta de transparência nos processos de avaliação, trazem essas


questões, essas discussões, mas precisa que o estudante se manifeste, vá em busca dos
seus direitos. [...] nós passamos gestões autoritárias. As pessoas se afastam, as pessoas
nem vão lá, ficam sofrendo [...] as que conseguem reagir judicializam. (GA2P4)

O participar do estudante nestes espaços democráticos é recomendado pelas DCN,


visualizado como necessário e algo a ser incentivado, buscando fomentar um perfil de egresso
que saiba liderar, gerenciar e executar ações pautadas pela interação, participação e diálogo
(GA1D5; GA1D6; GA1D7; GA1D8). Além dos espaços formalizados, relações cotidianas
participativas também estimulam e preparam o indivíduo para contribuir nesses momentos
democráticos.

[...] é difícil você questionar o conhecimento dele e a autoridade dele dentro da sala
de aula, né? Mas isso para mim só vem a ressaltar ainda mais a importância de você
estar participando desses espaços do currículo oculto, porque é nesses espaços que, às
vezes, você se empodera de conhecimento e de confiança para estar questionando o
professor. (GA3E6)

Estas experiências participativas têm o potencial de encorajar o questionamento,


colocado como atributo essencial ao processo de aprendizagem ética: “o aluno pode chegar lá
e te dar uma resposta que não abre para discussão sabe, mas se abre, melhor a possibilidade de
você incorporar a dimensão ética na discussão” (GA2P7).

O que a gente tem feito é tentando provocar os estudantes a levarem questionamentos


éticos – que eu acho que é meio redundante porque eu acho que a ética é esse
questionamento propriamente, o questionar já é uma dimensão ética. (GA2P3)

A participação nas atividades pedagógicas e nos coletivos colegiados, ou seja, a


participação na vida universitária, são experiências de participação política cotidiana que
ensinam a dialogar, a construir com o outro e a compreender a multiplicidade dos pontos de
vista. São elementos fundamentais para a aprendizagem ética e construção da personalidade
moral. Participar democraticamente também traz experiências cooperativas que auxiliam a
construir atitudes mais dialógicas.

Eu sofro porque em alguns momentos ali tu tens que decidir sozinha e em um segundo,
não tem nem tempo de refletir o que o outro pensa, então eu sofro nesse caso. Porque
eu tenho muito prazer e muita paciência de construir uma solução [...] eu acredito na
solução construída, pactuada e que depois ela pode ser revista, mas naquele momento
[...] era aquilo. (GA2P4)
101

[...] esse caminho de construção coletiva, a partir da reflexão, da crítica, do estudo, do


compartilhamento teórico, do compartilhamento dos afetos, do compartilhamento das
práticas, das dúvidas das incertezas que nos impulsionou a sermos pessoas diferentes
hoje. (GA2P9)

A cooperação fundamenta-se na “necessidade de uma educação que propicie o diálogo


comunicativo e que problematize dialeticamente o educando e o educado” (GA1D2). Este
construir colaborativamente, fundamentando a busca por respostas comuns, permite a reflexão
sobre os próprios limites de respostas individuais a problemas coletivos.

[...] é um aspecto bastante importante quando nós pensamos nas questões éticas, a
questão do diálogo, da equidade, do respeito às posições, as colocações do outro, a
perspectiva de uma atuação que seja justa, que considere os aspectos todos que estão
envolvidos nas questões. (GA2P16)

[...] criar cenários pra que seja efetivamente, ou cada vez mais efetivamente, processos
colaborativos e, portanto, éticos. Porque no colaborativo é que vão aparecer os limites
né, vão aparecer as fragilidades... porque pensando no termo colaborativo, pra mim
vai ser onde eu preciso de ajuda, não onde eu tenho tanta competência como você, ou
eu tenho mais competência e tudo fica centralizado em mim, mas é onde eu consigo
ter tantas falhas que você e a gente juntos, juntas, chegue em algum lugar. (GA2P2)

A experiência que se torna estéril para a aprendizagem ética pode ser potente para a
manutenção de poderes, para a imposição de ‘verdades’. Para a cooperação necessita-se saber
onde se quer chegar, devendo este caminho ser orientado para um resultado coletivamente
benéfico e não a interesses particulares. Quando cada área da saúde trabalha sozinha, quando a
própria concepção da saúde não possibilita essas trocas nem entre as áreas de uma mesma
profissão as experiências cooperativas se tornam limitadas na realidade do corpo acadêmico.

Pouco mudou do perfil do que se almeja, mas em termos de como fazer, mudou
bastante, então nós vamos precisar nos integrar mais, porque vai ser uma formação
por agravos, não por doença, por técnica, por ciclos de vidas [...] só aí então a gente
vai ter grandes discussões. (GA2P4)

A construção coletiva cooperativa auxilia o desenvolvimento de vínculos a partir da


valorização do outro e da decisão conjunta - elementos importantes para o futuro profissional
de saúde. O construir junto qualificaria as decisões na medida em que possibilitaria ampliar o
olhar sobre um problema, uma temática, sobre a realidade e corresponsabilizar os envolvidos
na decisão compartilhada. A corresponsabilização é essencial para a construção de
experiências de autonomia moral, tornar-se consciente e responsável pelos resultados das
suas ações, seja sobre a saúde do paciente, da sociedade, seja pelo próprio processo de ensino-
aprendizado.
102

Tem algumas questões que nós optamos sempre por trabalhar com comissões para
discutir e encaminhar dificuldades ou mesmo as coisas cotidianas. A gente tem muitas
dúvidas, por exemplo, em relação as questões de equidade, de justiça na distribuição
das bolsas, de como se faz. Então estamos sempre discutindo critérios e tentando
aperfeiçoar o processo, envolvemos os estudantes, pra poder contribuir, trazer o seu
olhar. (GA2P16)

A autonomia acadêmica curricular deverá estar centrada nestes princípios de


autodeterminação e permitir ao discente a busca de novos saberes e de outros fazeres
para organizar e ampliar a sua formação profissional. Neste contexto, o projeto
pedagógico deve promover o desenvolvimento da autonomia discente, para que os
alunos aprendam e continuem a aprender por conta própria e por toda a vida.
(GA1D2).

O estímulo a experiências de autonomia moral é, em última análise, o objetivo da


aprendizagem ética, pois ensina a buscar justificativas para a tomada de decisão e possibilidades
de aprender com as mesmas, é a construção da identidade: “Nós sempre faremos escolhas,
sempre, em todas as situações e é a depender das nossas escolhas, nós vamos estar
hierarquizando os nossos valores de um modo diferente” (GA2P9).
Propiciar experiências de desenvolvimento da autonomia moral é conceber a educação
para além de um simples processo de obediência e reprodução acrítica de técnicas,
conhecimentos ou atitudes, sem questionamento que pode levar a decisões solitárias e que, por
vezes, eximem de reflexões profundas sobre as distintas realidades, dificultando o questionar-
se, o transformar a realidade que são próprios da ética.

[...] eu sofro quando eu dou oportunidade às pessoas e as pessoas me dizem: eu só


quero que tu me digas o que eu tenho que fazer. Pra mim é o fim da linha como
educadora. E eu ouvir isso de um colega [...] seria assim pra mim uma dificuldade,
que eu não teria tanta liberdade como eu tenho com o aluno. (GA2P4)

Para o estudante, o processo de tornar-se autônomo passa por libertar-se de uma


memória educativa e também familiar que pode estar pouco pensada para a tomada de decisão
autônoma, um caminho de construção moral que passa das normas individuais heterônomas
àquelas mais autônomos: “tem aquela coisa: o quanto também esses estudantes e essas
estudantes estão preparados para ter autonomia e maturidade para lidar com isso (GA2P2). Para
o professor parece pesar mais o pensar a relação de autonomia e poder, buscando atitudes que
contemplem os envolvidos no processo decisório.

A condição que a gente tem, mais possível, eu acho que é do professor ainda [...]
porque o professor tem bastante autonomia. Então assim, pode ter uma normativa e
tal, pode ser [...] mas o professor vai fazer, na prática, o método de ensino que ele bote
em prática a sua postura [...] é que realmente aparece. (GA2P3)
103

Torna-se essencial desenvolver a capacidade de lidar com situações novas, ou perceber


que cada situação pode ser nova, pois traz pessoas diferentes, contextos distintos, nos quais a
experiência decisória que considera essas conjunturas distintas, fortalece a autonomia moral e
auxilia a construir uma consciência mais crítico-reflexiva. As DCN dão indicações do modelo
educacional ao qual a Universidade deve estar embasada, e traz as atitudes como uma dimensão
das competências profissionais que deve estar mais presente, auxiliando o processo de aprender
a aprender.

O objetivo de uma formação para o futuro não deve estar fundamentado na aquisição
de determinadas habilidades, mas sim na capacidade de adaptação a situações não
prognosticáveis. (GA1D2)

[...] habilidade para tomar decisões, comunicar-se e desempenhar as ações de forma


efetiva e eficaz, mediada pela interação, participação e diálogo, tendo em vista o bem-
estar da comunidade. (GA1D4)

A observação dos estudantes sobre as atitudes dos professores é também uma


possibilidade de aprendizagem ética: “não adianta só falar, tu tens que que fazer. Então eu
sempre digo assim, que o discurso e a prática eles têm que ser alinhados” (GA2P1). Essa
consciência das atitudes enquanto meio de ensino reforça a importância da autonomia moral,
para buscar refletir sobre os exemplos, sobre o que embasa determinadas atitudes, sobre a
importância das normas, dos códigos de conduta, mas também sobre a reflexão sobre a própria
norma.

A ideia que me parece que está subjacente é que o professor será o exemplo moral de
condutas adequadas, né? E de certa forma, mesmo que não se queira, você tem que
ter condutas éticas, né? Para colocar uma disciplina [...] com regras iniciais que você
tem que cumprir, tem compromissos assumidos. (GA2P7)

Estas experiências de exemplos atitudinais necessitam da reflexão crítica do


observador pois “a gente aprende com o que é certo e com o que é errado... a gente tá ali para
aprender” (GA2P1). Inclusive no procedimento técnico em si, na construção da habilidade
profissional, as atitudes também estão sendo ensinadas. Neste sentido, a percepção desta
dimensão do ensino é fundamental para se promover uma aprendizagem ética consciente e
intencional.

[...] se eu não levo em consideração a história pessoal daquela pessoa, o pudor que ele
tem, as percepções que ele tem daquilo que está acontecendo... isso ensina mais ética
do que todos os semestres tendo aula de ética. Então eu digo que é o modelo de sala
de aula, é o modelo da prática cotidiana que acaba trabalhando questões éticas com o
paciente, é a pratica é o fazer cotidiano em sala de aula. (GA2P12)
104

As experiências de exemplos atitudinais podem ensinar a como se comportar inclusive


diante do erro, o que fomenta a responsabilidade pelas próprias ações. O exemplo também
fundamenta a reciprocidade exigida pela relação ética, se é desejável que determinadas ações
sejam realizadas, espera-se que essas ações sejam praticadas cotidianamente.

[...] tinha acabado de chegar da clínica uma resina vencida [...] eu disse ‘chama o
paciente e refaz!’[...] é o vivenciado, porque a vida é assim, né? Você aprende muito
mais pelo que o teu mentor faz do que pelo que ele fala (GA2P5).

[...] eu bato de frente até com professores. Eu acompanho as redes sociais e vejo
professores colocando cirurgias ao vivo, expondo de uma maneira sabe [...] que me
assusta! Porque se o professor que é aquele que tá formado para ensinar o aluno [...]
a formação de um profissional com toda a dimensão ética, como é que esse professor
[...] ele não está sendo um exemplo! Então como eu vou exigir do aluno? (GA2P13)

Os exemplos que partem do professor, da professora, e dos gestores, conformam a


instituição: “são todas relações éticas que estão dentro da própria instituição, se você é tolerante
com essas coisas, você começa a ensinar que eticamente você pode flexibilizá-la quando te
interessa” (GA2P7).
As experiências desafiadoras também são percebidas como boas oportunidades para a
aprendizagem ética. Os diálogos e tomadas de decisão em momentos desafiadores podem ser
momentos de educação moral pois exigem reflexão sobre a tomada de decisão e o repensar as
próprias construções morais.

E o adolescente que chega hoje na Universidade viveu muito pouco [...] então sabe,
eu acho que tem muitas coisas que quando tu vais se cercando, protegendo a sociedade
dos desafios a gente acaba dando com a cabeça. (GA2P4)

Acompanhadas de curiosidade, tais experiências buscam novas soluções, novas


aprendizagens que auxiliam a construir uma comunidade acadêmica, sendo tal processo tão
importante quanto seu resultado. Ter experiências de abertura ao novo, desafiar-se,
reconhecendo suas próprias limitações auxilia na busca por novas aprendizagens.

[...] sempre me encantou o desafio, o novo ao invés de me desencorajar, ao contrário...


então aquilo que eu não dominava, e não domino, talvez fosse o mais fascinante de
buscar [...] (GA2P9)

Os referenciais pedagógicos ao quais o professor se apropria para ensinar também pode


facilitar essa aprendizagem ética, principalmente quando estas pedagogias já pensem
experiências para essa aprendizagem. Trazer a reflexão sobre a moralidade para o coletivo, para
a sala de aula, são desafios do cotidiano e são desafios da Universidade também, já que a mesma
deve estar orientada para ensinar a refletir e a questionar.
105

Com esses grupos muito grandes, eles não querem se arriscar [...] é bem isso, eles são
fechados [...] eles nem falam... entende... por que? Porque eles só querem se expor, se
estiver certo e isso é muito sofrido. (GA2P14)

Eu estou trabalhando com eles da mesma forma que eu trabalhava com os alunos. Não
é diferente, é problematizando, não dando a resposta, aí eu vejo a necessidade de o
professor ter suporte pedagógico. (GA2P4)

Neste sentido, as experiências não importam somente pelos resultados esperados,


porque é a vivência, a abertura, a aprendizagem na adversidade, os caminhos e decisões que se
toma e a reponsabilidade sobre elas que consolidam a aprendizagem ética no enfrentamento
desses desafios. Encarar as transformações circunstâncias por meio da reflexão sobre valores
distintos da própria construção moral sensibiliza o corpo acadêmico na tomada de decisão
eticamente comprometida.

[...] na minha graduação eu tinha uma turma de 70, a gente teve que negociar tudo
dentro dessa Universidade, eu fui líder de turma, eu fazia as negociações para a turma,
eu fui do centro acadêmico, eu que conversava com o chefe de departamento, eu fui
sempre isso, eu aprendi eu acho dessa memorias [...]. Então eu acho que a diferença
ela vai ajudar, eu acho que essas lutas a gente tem que bancar. (GA2P4)

Então assim, lidar com essa postura que o estudante já trazia, para mim sempre foi um
desafio, então qual é o argumento, ou quais são os argumentos que eu posso colocar
em aula, em que eu posso entender porque ele coloca a homeopatia num nível de que
se acredita ou não se acredita né, como uma crença, então respeitando esse ponto de
vista, mas quais são os mecanismos, os instrumentos, as ferramentas que eu vou ter
que utilizar durante o semestre para... eu não sei se é convencer mas, minimamente,
mostrar o que é a homeopatia e ai ele faz o que ele quiser com isso que eu estou
trazendo. (GA2P15)

A forma de encarar estes desafios faz diferença nas possibilidades de trilhar um caminho
de ensino-aprendizado ético. Encará-los baseando-se apenas em normativas pode ser uma
experiencia limitada, pois a normativa nem sempre inclui toda a realidade e não dispensa o
pensamento próprio.

Até pode dar uma abertura, mas eu acredito que a riqueza está no momento que a
gente se coloca e escuta, até o próprio desafio que é o diálogo num contexto de pessoas
que você nunca conversou [...] então a ideia do desafio também é importante, porque
como você encara esse desafio né: você pode encarar achando que você sabe tudo,
você encara com humildade de escutar primeiro para depois compreender [...] Já
começa com o fato de que se você encara o desafio achando que você sabe tudo daí
já não tem desafio nenhum, daí não tem aprendizado, né?. (GA2P12)

Enxergar os desafios como uma oportunidade de trabalhar com o espaço do que ‘não
está bem’ pode ser uma maneira de fomentar a aprendizagem ética na resolução dos problemas
cotidianos, ao mesmo tempo em que se pode aumentar a resolubilidade desses problemas.
106

[...] o espaço do que não está bem também pode ser produtivo [...] os espaços
problemáticos talvez sejam até mais frutíferos, mais abundantes, mais produtivos para
isso. Só que tem que ter o mínimo de condição, que é as pessoas se colocarem no
lugar de refletir, e refletir não é só eu dizer minha verdade, é partilhar, se solidarizar...
então eu acho que tudo acontece nas relações e eu acho que as relações não vão bem.
(GA2P8)

As diferentes experiências democráticas, de cooperação, de autonomia moral, de


exemplos atitudinais e desafiadoras sensibilizam para a percepção da dimensão ética da
educação superior em Saúde. Devem ser pedagogicamente vividas com intencionalidade ética
na educação de um profissional de saúde que também seja um cidadão capaz de atuar com
consciência dessa dimensão ética cotidianamente.

4.1.5 A construção do eu-pessoa na realização do fenômeno da dimensão ética da educação


superior em Saúde

O fenômeno da dimensão ética da educação superior em Saúde pôde ser percebido na


categoria ‘Compreendendo a relação dialógica permeada pelas diversidades como elemento
experiencial necessário à autonomia moral na vida universitária’ a partir das possibilidades
de aprendizagem ética em espaços concretos e por meio de experiências específicas, valendo-
se da presença do pluralismo moral e determinadas formas de relacionamento para que a
aprendizagem ética aconteça.
As experiências de aprendizagem ética foram didaticamente percebidas sob dois
espaços principais: aqueles relacionados às práticas profissionais e aqueles relacionados às
práticas participativas, de cidadania. Não significa que essas práticas não possam ocorrer
simultaneamente, em realidade, estes dois cenários de prática profissional e prática de cidadania
compõem a dimensão ética da educação superior em Saúde e serão aprofundados nas categorias
que tratam da construção das facetas da identidade do eu-trabalhador da saúde e eu-cidadão,
respectivamente.
Os espaços identificados como de maior potencial para a aprendizagem ética são
relacionados com a extensão universitária e com o constructo teórico-prático da Saúde Coletiva
por criarem cenários de interlocução com a realidade, com a sociedade e a rede de serviços de
saúde. Nestes espaços, professores e estudantes podem dialogar sobre os aprendizados trazidos
por experiências reais da prática profissional.
A aprendizagem ética relacionada a prática de cidadania é mais visualizada na extensão
ou fora do currículo, onde as experiências democráticas ensinam o estudante a atuar
politicamente e refletir sobre a sua própria vida universitária. Chama atenção que a
107

aprendizagem ética a partir de disciplinas e conteúdos teóricos é visualizado como pouco


potente, ao mesmo tempo em que pesa a falta de conhecimento teórico para o ensino-
aprendizagem ético, questão que será melhor explorada na última categoria que trata da
importância da conscientização sobre o a dimensão ética da educação superior em Saúde.
O pluralismo moral tanto nos conteúdos pedagógicos como nas relações interpessoais é
referenciado como potencializador de uma construção de conhecimento mais ampliada e que
reflete tanto no campo da saúde - auxiliando na melhor compreensão do processo saúde-doença,
como nas relações cotidianas - permitindo perceber melhor a complexidade do mundo.
Relacionar-se com pessoas diversas, ou seja, cultural e moralmente distintas estimula a reflexão
e aprendizagem ética porque o contato contínuo com o novo, o diferente, traz experiências que
podem ser moralmente desafiadoras, estimulando a refletir sobre a própria moralidade e
construção de si.
O ‘modelo único e pronto’ do ser profissional – na saúde, hegemonicamente o modelo
biomédico, acaba reduzindo a educação superior a formação profissionalizante, limitando a
possibilidade da diversidade, de descoberta e construção de uma identidade pessoal que
contemple também outras facetas identitárias, como o ser cidadão capaz de transformar o status
quo. A aprendizagem ética por meio de exemplos atitudinais é enriquecida com relações com
outras fases do curso, outros cursos, experiências participativas e vivências culturais, exemplos
dessa diversidade relacional e que contribuem na construção da autonomia moral, essencial a
construção da identidade.
A aprendizagem ética apresenta-se condicionada pela possibilidade de diálogo e
horizontalidade nas relações interpessoais, permitindo também construir espaços de afeto, de
trocas e de dúvidas que facilitam este ensino-aprendizagem pois diminuem o receio do
questionamento nesta relação. Neste sentido, diminuir a hierarquia entre professores e
estudantes, aumentar os espaços compartilhados pelo corpo acadêmico e compreender as
conexões entre saber e poder auxiliam na humanização dos cursos e são elementos essências
para a realização de experiências cooperativas e democráticas. Este construir junto diante dos
desafios permite a corresponsabilização na elaboração de respostas à problemas morais e que
ainda são pouco trabalhadas com intencionalidade ética na Universidade.
A relação dialógica e a aprendizagem mútua tornam-se elementos centrais para relações
que podem fomentar aprendizagem ética. Essas relações, quando permeadas pela pluralidade
moral, ganham potência para a promoção da dimensão ética da educação na vida universitária
ao gerar experiências pedagógicas cotidianas capazes de fomentar a construção da identidade
de estudantes, professores e gestores.
108

Esta categoria reuniu elementos de espaços, relações, diversidades e de experiências


que, ao influírem na construção do eu-pessoa, realizam a dimensão ética da educação superior
em saúde. Estas vivências têm um maior potencial de trazer a aprendizagem ética para a vida
universitária principalmente por meio da realização de valores que fomentam a reciprocidade
nas relações, construindo uma identidade pessoal fundamentada no dever para com o outro.
Esta identidade se fortalece na medida em que a dimensão ética da educação superior em Saúde
fomenta a construção de outras facetas identitárias, a serem discutidas nas categorias a seguir.

4.2 RESSIGNIFICANDO PAPÉIS NA VIDA UNIVERSITÁRIA PARA ELABORAR UM


PAPEL COLABORATIVO PARA A COMUNIDADE ACADÊMICA

Nesta categoria serão apresentados os diferentes papéis assumidos pelo corpo


acadêmico na vida universitária. O ser docente assume papéis de transmissão de conhecimento,
de referência moral, de tutoria, de pesquisador, de trabalhador da saúde, de trabalhador
universitário e de gestor. Facetas da sua trajetoria acadêmica que influem na construção da
identidade dos docente e dos estudantes e que necessitam ser melhor equilibradas. Um dos
caminhos para equilibrar este papéis é construir o pertencimento à comunidade acadêmica, um
pertencer que possibilita maior consciência e compromisso com a dimensão ética da educação
em Saúde.
O papel atribuído ao estudante universitário ainda parece reduzido à um cumprimento
de tarefas relacionadas à sua construção profissional. Assumir maior responsabilidade sobre a
sua trajetória acadêmica exige enfrentar conflitos institucionais e de relação com os docentes.
Ampliar o que lhes é requerido na vida universitária torna-se uma busca por maior autonomia
moral dos estudantes, permitindo viver a Universidade em toda sua potência de construção da
sua identidade enquanto acadêmico.

4.2.1 Reequilibrando os distintos papéis do docente na vida universitária

O papel do professor universitário envolve as várias facetas do ser docente. Quais são
essas facetas e como elas se relacionam com a dimensão ética da educação é o tema a ser tratado
nessa subcategoria.
A dimensão ética da educação superior em Saúde não tem sido visibilizada e trabalhada
de forma intencional. Não há uma sistematização da educação moral na instituição, fazendo
com que sua relação com os diferentes papéis docente não seja consensual. Esta dimensão da
109

educação fica atomizada, sendo dependente de dois aspectos principais: a sensibilidade de cada
professor às questões éticas e a sua percepção do que é o processo de educar.
A sensibilização do saber-fazer docente à dimensão ética da educação superior em
Saúde depende de como se deu a construção da sua personalidade moral previamente a sua
inserção como professor universitário, mas também de suas experiências ao longo da docência.
A percepção do processo de ensinar está relacionado às formas como o professor concebe a sua
atuação como educador. Existe uma dificuldade de enxergar a amplitude do seu papel no
processo educativo, principalmente porque a dimensão ética do fazer pedagógico é pouco
considerada, não somente, enquanto interveniente na construção da identidade dos estudantes,
mas também nas construções entre pares.
Dialogando com estes dois aspectos da vida docente, o papel de transmissor de
conhecimento aparece como central, no qual a concepção teórica e metodológica do professor
influencia no processo de ensino-aprendizado de seus estudantes.

Educação é baseada muito em professor né [...] por mais que a gente tenha uma grade,
uma ementa que a gente tem que cumprir... na ementa vai tá lá: lei de genérico, é
obrigatório [...] né, ok [...] como que você dá aula de lei de genérico? Daí o professor
faz da sua experiência e da sua concepção sobre ela. Então se a concepção é técnica,
a abordagem é técnica e ponto. E aí a formação é técnica e o raciocínio é técnico. E aí
a capacidade de questionar aquilo [...] porque se a gente não questiona a gente não vai
mudar, não tem capacidade de evoluir se não questiona, né? (GA2P3)

Focado em uma das dimensões do ensino, o papel de transmissor acaba por reduzir o
processo educativo. O foco na dimensão técnica converte o papel docente em um papel de
detentor de todo o saber, um papel de ‘dono da verdade’ no qual a relação pedagógica deixa de
admitir erros, questionamentos, o construir junto. Não ter a resposta para tudo, ser humilde,
podem ser vistos como fraqueza. Estes elementos reforçam a existência das relações
hierárquicas já discutidas na categoria anterior.

[...] relação educativa começa com respeito, e esse respeito não é enviesado como na
ótica de muitos professores em que o respeito começa com: - ‘tem que me respeitar
porque eu sou professor Fulano, eu sou doutor Fulano’, é o contrário, o respeito vai
de que somos iguais. Existe uma pequena diferença entre a gente e a diferença é de
que o nosso papel aqui tá um pouco melhor definido que é o de que: - ‘eu tenho um
pouco mais de experiencia que você, eu tenho um conhecimento que conseguiu ser
sistematizado e reformulado a partir da ótica da ciência mais do que o seu, mas você
também tem conhecimento. E o teu conhecimento tem valor para mim’. (GA2P12)

O papel docente reduzido a um papel de transmissor de saber pode levar à pouca


abertura para a construção de conhecimentos. É necessário compreender o que significa o erro
e o acerto na relação que se pretende pedagógica, saber “apontar o erro amorosamente”
(GA2P14). A posição de detentor do conhecimento não possibilita ao docente despir-se de uma
110

postura de ‘juiz da verdade’, associação que parece gerar uma sensação de segurança para o
docente.

É claro que depende do aluno, mas o professor tem que oportunizar isso, se você vai
lá na sua disciplina e vai tratar no sentido de ‘ser assim porque é’, ‘a técnica é essa,
tem que fazer assim’, o ‘método é esse’ e pá e pá... qual é a oportunidade desse
estudante que tem experiência real, de trazer a sua percepção da realidade para a sala
de aula, ele não tem oportunidade. Então, no final, mesmo com os alunos ou sem os
alunos, quem propicia ou não, também é o professor. (GA2P3)

[...] a gente está tão preocupado com conteúdo, a gente tem mais medo dos alunos do
que os alunos da gente, porque tu tem medo de errar, de falar errado, de não saber
responder, tu não enxerga aqueles alunos [...] então se ele vai ser justo, se ele vai ouvir
bem [...] eu acredito que não seja isso a primeira preocupação. (GA2P4)

Há uma relação entre deter conhecimento e deter poder que pode ser visualizada como
uma forma de obter ‘respeito’ nas relações universitárias. Esta postura resulta em relações de
obediência por temor não condizentes com o papel de educador que constrói cooperativamente,
a partir de um conhecimento prévio, mas também valorizando o educando na construção do seu
próprio saber.

Se eu tenho um colega que tem uma visão mais colaborativa e consegue colocar o
outro na sua vida, e que não precisa impor a sua vontade para existir no mundo, é
maravilhoso, porque é isso [...] me parece insegurança [...] a docência ela tem que se
desprender disso, ela admite o erro, ela admite um equívoco, ela admite um foco em
outro aspecto naquele momento que não aquele que o professor está exigindo naquele
instante. (GA2P4)

Porque se é pra ser professor pra exigir que escreva a resposta com a mesma virgula
que eu coloquei no slide, isso pra mim é o fim, é antítese do que a gente está
conversando. Isso existe? Existe! Mas não é o que nos identifica, não penso assim [...]
(GA2P4)

Autoritarismos asfixiam possibilidades de construção da identidade, pois tolhem a


autonomia, a criatividade e até o caminho de encantamento com a descoberta que o aluno
poderia traçar. Aponta-se que para construir um papel de educador – e não somente de
transmissor, necessita-se incorporar uma maior responsabilidade com a educação do estudante,
com o resultado do processo pedagógico e o que se espera da formação profissional e cidadã.
No outro extremo, os professores propensos ao diálogo, a construir e pensar
possibilidades em conjunto para as questões que surgem no dia a dia, também enfrentam
dificuldades para construir uma relação pedagógica que traga maior responsabilidade ao
estudante.

Tem que ter uma dose de generosidade e compreensão, sem ser rotulada de mãezona
[...] que isso que é o problema maior, num curso que tem maioria de mulheres e de
professoras, mas se tu tens uma conduta dessa, tu ganha um rótulo, ela é mãezona,
111

com ela tudo pode, com ela tudo [...] não, com ela tem um espaço, não é que tudo
pode, quantos nãos, muitos, mas sabendo porque o não, e não porque eu não deixo, e
não porque eu não quero. (GA2P4)

Pensar essas concepções do papel de educador leva a questionamentos sobre a formação


pedagógica do professor na Saúde, percebida como insuficiente e com fundamentação pouco
compartilhada.
Talvez essa não seja a primeira preocupação quando ele pisa na sala de aula. O nosso
processo de trabalho [...] a gente está tão preocupado com conteúdo [...] tu não
enxergas aqueles alunos... então se ele vai ser justo, se ele vai ouvir bem... eu acredito
que não seja isso a primeira preocupação, um fator limitante. (GA2P4)

[...] conteúdo eles têm, como eles dão esse conteúdo pra gente, de certa forma é o que
pra mim faz um bom ou um mal professor, sabe? [...] e daí ela sentou, conversou com
o paciente e tal e quando ela virou pra gente, ela se tornou a professora novamente e
usou o vocabulário com a gente que a gente entende né, e deu muito de ver a diferença
e eu pensei: ‘que demais!’, poxa sabe [...] deu uma coisa boa assim, e você vê que tem
gente que não é assim, chega lá e tipo ‘ah tira mais ali do lado e depois eu volto’ [...]
e daí tá né, esse teu conhecimento não me serviu de nada! Eu acho que é mais ou
menos isso [...]. (GA3E1)

A sensibilidade do professor à dimensão ética do seu trabalho influencia a forma como


ele conduz os saberes-fazeres profissionais, pois pode ou não problematizá-los, conjecturar
sobre conflitos de interesses, sobre os valores que constroem e motivam determinadas regras e
protocolos, sobre as relações morais na atuação profissional e as possibilidades de atuação
cidadã, política e de transformação possível.
A indissociabilidade do papel de educador e da dimensão ética do ensino-aprendizagem
é reforçada pelo papel de referência moral do docente no qual, para além da relação
pedagógica, suas palavras e atitudes influenciam a construção moral do estudante. Este papel
refere-se à aprendizagem ética por meio do exemplo atitudinal, explanado na categoria anterior.
A construção moral proveniente dos exemplos atitudinais do professor pode ser refletida
eticamente, ou não, a depender da sensibilidade ética e também da formação pedagógica deste
docente, se essa é mais aberta, mais inclusiva, mais dialógica.

[...] já vi um colega dizendo isso [para um aluno]: - ‘vem aqui, já, quero você em 30
segundos na minha sala’. Eu acho que foi uma das minhas piores experiencias de
asfixia de formação ética, e que daí, como eu sou muito de realmente ter uma visão
mais transformadora [...] eu digo que é a pedagogia da indignação, onde o aluno
aprende de tão indignado que ele ficou com a postura daquele professor. (GA2P4)

O papel de referência moral é visto como fundamental, mas criticado quando fica na
responsabilidade individual, sem uma reflexão coletiva, mesmo porque esse isolamento pode
fortalecer referências morais que não sejam as mais desejadas, ou mesmo atuações morais
irrefletidas que se tornam modelos acríticos para os estudantes.
112

Na verdade, eu fico pensando que tem que pôr a mão na massa, concretizar mais, não
pode ficar só na ideia, tem que fazer essas construções se tornarem mais frequentes
né, mais consequentes [...] nosso comportamento, o nosso exemplo de sermos justos,
tentar fazer o bem, são logicas principialistas né? Que fazem com que os jovens
tenham um mínimo de modelagem, de referência. (GA2P7)

A susceptibilidade dos estudantes à influência moral do corpo docente traz a


possibilidade e a necessidade de professores trabalharem a construção da identidade do
estudante assumindo um papel de tutor. Um papel relacionado ao estreitamento da relação, no
qual o professor tem a intencionalidade de auxiliar o estudante a construir sua trajetória
acadêmica e também a pensar sua vida universitária. É uma relação que deve ser de construção
moral refletida eticamente.

Eu sempre tive essa sensação que o aluno deve ter um amigo, entre aspas né [...] que
cada aluno deveria ter um professor que fosse uma espécie de guia, um professor mais
próximo, e aí é claro, entrar numa lógica de nos dividir [...] porque essa discussão
mais subjetiva, dos dramas que esse aluno deve ter ao longo do curso [...] ele não tem
para quem discutir [...] (GA2P7)

O papel de referência moral por meio da observação de atitudes e o papel de tutoria


comporiam o ensino ético a partir do docente, elementos de sua tarefa ético-pedagógica, para
além da relação colocada pela grade curricular. Este papel de tutor é sugerido a partir da
observação de relações de orientação em Trabalhos de Conclusão de Curso, supervisão em
estágios e trabalhos de iniciação científica, as quais possibilitam uma maior aproximação entre
professor e estudante e que, a depender de como o professor conduz essa relação pedagógica –
e também de como o estudante a encara, podem trazer experiências de aprendizagem ética.
Diferente do papel de tutor, um papel do professor já consciente e incorporado na
instituição acadêmica é o de pesquisador. A pesquisa, apesar de compor um dos três eixos
universitários, é relatada como uma das forças mais centrais na vida do professor, por conta de
sua influência na progressão da carreira acadêmica.

[...] a pesquisa, como fator essencial na qualificação docente, permitindo a ascensão


funcional do professor, e a pesquisa de rotina, como parte das tarefas docentes.
(GA1D2)

A necessidade de produtividade por meio da pesquisa exige do professor uma parte de


seu tempo que, por vezes, dificulta a dedicação à relação pedagógica, ainda mais uma relação
pensada para o ensino-aprendizagem ético. Este papel de pesquisador, quando centrado no
produtivismo científico pode ser uma das causas da formação docente ter pouco foco na
filosofia pedagógica e na própria aprendizagem e sensibilização ética do futuro professor.
Materializar a dimensão ética da educação no exercício do ser pesquisador implica não somente
em como o professor é ensinado a incorporar este papel de pesquisador, mas também as
113

influências dos problemas éticos que estão institucionalizados no cotidiano da pesquisa


científica acadêmica e que também são pouco trabalhados.

[...] a gente tá sempre lutando para alcançar o critério que a CAPES preconiza para nossa
área [...] o fator de impacto para a nossas revistas é mais alto que a maioria das áreas da
saúde. Então a gente tá sempre com a corda no pescoço [...] eles foram formados em
programas de doutorado que cobraram isso deles, não cobraram outras coisas. Eles
aprenderam a ser professor assim: fazer uma boa linha de pesquisa produtiva, o seu foco, a
sua energia, o seu tempo é pra isso, qualquer outra coisa [...] as coisas desse tipo [relacionadas
à ética] são vistas como desviar a atenção, roubar tempo de coisas como estar no laboratório
(GA2P3).

[...] para se manter no doutorado é número de publicação né, e que a gente sabe que isso é
uma máfia da publicação, que é nome de pessoas sendo colocado sem terem contribuído
nada... mas é isso que dá credito para você se manter ali, não é o aspecto da ética em pesquisa
com seres humanos, da ética do teu nome estar porque você realmente participou. Isso fica
de lado [...] essa questão ética. (GA2P6)

O papel de pesquisador deve valorizar os resultados do seu trabalho, mas também o


processo da pesquisa, a busca do conhecimento, um caminho de formulação de perguntas e
busca pela verdade, uma verdade que estará sempre sendo questionada, refletida, pesquisada.
Este papel, assim incorporado auxiliaria a construir um estudante questionador, reflexivo e
crítico, com maior possibilidade de refletir eticamente sobre a construção de sua identidade
acadêmica.
O professor universitário da área da Saúde também desempenha o papel de
trabalhador da saúde, o que lhe permite traduzir um constructo teórico em uma prática, uma
realidade profissional. Contudo, esse papel é questionado quando assume o protagonismo em
detrimento dos outros papéis docentes, a fragilidade da formação pedagógica e ética, do papel
de educador, parecem ser componentes que reforçam essa hegemonia.

[...] não são professores na essência da palavra porque nós não fizemos o curso de pedagogia,
nós estamos professores por uma quantidade de conhecimento que nós temos, e enfrentamos
um concurso e somos chamados pra fazer então à docência. Então por nós não termos em
nenhum momento da nossa vida nos dedicado a essa formação de ser professor, nós não
sabemos o que é dimensão ética, nós não sabemos, infelizmente. (GA2P11)

A questão de enxergar-se para além de um trabalhador da saúde passa pelos objetivos


da educação superior em Saúde, principalmente na pós-graduação, mas também pelo objetivo
de tornar-se docente, de como o professor e a comunidade acadêmica visualizam o que é ser
um docente qualificado.

[...] eu me preparei um ano [...] ali sim você aprende a técnica, a pedagogia, os
aspectos éticos do ensinar..., mas não é assim que acontece, hoje o ensino está como
um bico. Você é dentista então você vai lá, para ter um emprego fixo, e aí você vai
ser professor também [...] muita gente querendo dar aula por status, né? E não
pensando no curso... na pós-graduação eu apresento o plano de ensino e pergunto:
‘quanto tempo você levou para se formar médico? E quantos anos de formação para
114

ser professor?’ e muita gente, no último dia de aula, repete isso, porque isso marca
tanto pra eles [...] Então como é que um indivíduo vai ensinar aspectos éticos, aspectos
morais, aspectos da cidadania, se ele vem aqui porque ele foi convidado porque ele
era um bom técnico?. (GA2P6)

Eu acho que a formação seria uma chance, mas que está sendo desperdiçada
infelizmente. A formação de professores, eu acho que a gente está perdendo uma
chance importante. Por conta disso, não é mais o viés técnico, da técnica pela técnica,
é viés da profissão. (GA2P4)

Esse desequilíbrio entre papéis reforça o ensino profissionalizante, embasado no


conteúdo e nas especialidades da saúde, no qual o professor fundamenta seu ensino na escolha
de uma técnica que ele conhece e elege como sendo a melhor para ensinar aos alunos. Por vezes,
essa situação pode trazer conflitos na aprendizagem dos estudantes quando os professores
discordam entre técnicas distintas para um mesmo caso clínico.

Então a Universidade está muito preocupada em formar indivíduo técnico, isso é


desde os primórdios né, desde o século XVIII, quando se começou a pensar a
educação com a vinda do Don Joao, família real para cá, e precisava formar pessoas
para o trabalho e iniciou a formação de uma forma técnica e hoje eu vejo que ainda
tem um pouco desse ranço lá de trás... então eu vejo que o ‘x da questão’ para formar
um indivíduo completo, do ponto de vista do saber fazer, do saber ser, do saber
conviver, é a formação e a capacitação do indivíduo, porque você dorme dentista e no
outro dia você é professor, né? (GA2P6)

O pobre aluno que já tinha o viés da formação técnica, aí ele tem que ser um bom
professor de endodontia, ele tem que saber um monte de endodontia e um monte de
pedagogia, mas o que está sendo cobrado dele é a endodontia e a produção. (GA2P4)

Não somente a formação docente, mas também a seleção dos professores universitários
reforça o predomínio do papel de trabalhador da saúde e de pesquisador sobre os papéis de
referência moral e de educador. Essa primazia do papel de trabalhador da saúde sobre as outras
facetas do ser professor, pode reforçar características atitudinais do docente no seu cotidiano,
características de um profissional que pode não estar habituado a trabalhar em equipe, de
construir no coletivo soluções compartilhadas.

Principalmente na nossa área da saúde, você não é convidado a ser professor aqui
porque você é só ética, você foi convidado porque é um bom profissional [...] e aí
mistura [...] a pessoa muitas vezes, não corresponde ao que poderia ser em outras
dimensões que não foram devidamente avaliadas quando ele foi escolhido. (GA2P7)

O que eu digo são as pegadas, que caminho faz [...] ah ele acorda cedo, entra num
centro cirúrgico, opera, opera, opera, depois ele vai para o consultório e vê os retornos,
e vem duas vezes por semana dar aula aqui. Aí vou discutir SUS? Claro, ele trabalha
em hospital público e nunca fez uma reflexão! Agora esse cara que vai de casa pro
centro cirúrgico, do centro cirúrgico para casa, encurta a amplitude dele para os
problemas universitários, não tá na cesta dele o problema universitário, ele traz para
cá as tomadas de decisões que ele pratica na pegada dele [...] não é assim, isso aqui é
uma universidade pública, mas esse cara ele decide tudo sozinho na vida dele! [...]
buscou a profissão para ser autônomo, liberal, para decidir a sua vida [...] e é isso que
o sujeito traz, só que daí você tem que dizer: você tem dupla face, aqui você é
115

funcionário público e aqui funciona assim e assim... só que daí ele não manda, não
acerta o plano, não tá nem aí [...] ele cria suas próprias regras [...] (GA2P4)

Essa dificuldade de decidir em coletivo, de incorporar as especificidades da vida


universitária são conflitos que emanam, principalmente, quando o papel de trabalhador
universitário também fica subsumido na vida docente. Este papel está relacionado com o
sentir-se parte da instituição, de conhecer sua história, aprender com suas memórias e trabalhar
em conjunto.

Eu tenho essa coisa do vínculo com a instituição, eu tenho noção do que é ser
professora daqui e quanto que isso me engrandece [...] e o quanto que isso me traz de
responsabilidades. E eu digo sempre, tu és agora professor da Universidade, e temos
que nos interessar pela memória, pela história [...] eu argumento que tem
determinados professores que fizeram muita diferença aqui, e as pessoas contra
argumentam com o lattes dele [...] nem tudo é lattes! Como que você se relaciona com
a professora decana? Algumas coisas naturalmente a gente não consegue mais
acompanhar com pessoas mais velhas, aí você desqualifica e manda embora ou
aprende o que essa pessoa tem de bom? Um ensina o outro? Não é pra competir com
essa pessoa, que isso é uma tolice (GA2P4)

Eu acho que eu tenho uma maneira de trato direto com os alunos, então eu tenho uma
relação muito boa com os alunos [...] agora que eu me dou muito bem com todos os
meus colegas professores também, mas quando eu vim pra cá eu vinha de uma outra
formação ideológica e eu briguei muito com os meus colegas, com os professores da
época, com o passar dos anos eu melhorei, então deixei de ser tão arrogante ou
impositivo, comecei a perceber as questões históricas e culturais do lugar e daí vai
mudando o perfil. (GA2P10)

A incorporação do papel de trabalhador universitário sentindo-se parte da equipe, do


corpo institucional depende da construção de um sentimento de pertencimento à instituição. A
equipe docente tem muitas memórias de formações em instituições distintas, o que pode ser
rico para a diversidade de olhares, mas também exige uma abertura do docente para reconhecer
a história, a cultura docente ao qual passa a fazer parte.

A gente tá com professor que vem cada um de um canto né, eles têm umas memórias
[...] Não viu que aqui é diferente e já toma uma atitude preventiva. Daí a pessoa fica
fazendo coisas que você não entende [...] mas é porque ela foi tão massacrada que ela
está com medo. Já tive pessoas que não vinham conversar comigo quando tinham
opinião diferente porque tinham experiencias ruins com seus antigos chefes. Por isso
que eu digo que a gente tem que dar voz ao professor. (GA2P4)

Esta construção de vínculo com a instituição e o aprender a construir em coletivo


apresentam-se como características necessárias ao papel de trabalhador universitário e que, por
vezes, limitam-se por interesses relacionados à carreira, mas que deveriam estar em
consonância com este papel. Há uma carência do cooperar tendo um objetivo ampliado de
qualificar a Universidade. Uma questão que parece limitar a motivação docente aos interesses
coletivos da Universidade é a de não ser um funcionário com regime de dedicação exclusiva.
116

Agora é o salve-se quem puder, cada um de seu jeito [...] o que há é o controle, você
tem que produzir, produzir, produzir, agora como você faz [...] que se vire! E há uma
certa descrença, até os professores, eu não sei até que ponto eles estão acreditando
nessas estratégias coletivas: vamos reunir, olha o currículo, eles já vêm assim: - ‘olha,
vou lá para defender o meu, o meu pedaço, a minha disciplina’. Coisas que antes eu
via um envolvimento [...] aquilo era, que momento importante, era o mais importante,
agora não, aquilo é mais uma coisa a encher a minha agenda, vou fazer para ficar livre,
mas vou chegar mais tarde, sair cedo e ficar, de preferência, levando alguma coisa
para fazer no meio, no celular e tal. (GA2P8)

No meu curso nós temos um gravíssimo problema que nenhum dos professores
trabalha no regime de dedicação exclusiva, da área básica sim, mas quem é só da
medicina é muito pouco a dedicação exclusiva. Então aí, já fica tudo muito difícil,
sabe? O professor vem, dá sua aula, supervisiona [...] e ele não troca com os outros
colegas, porque isso tem que ser um trabalho coletivo, não pode ser uma ação
esporádica de um professor, teria que ter planejamento... na medicina qualquer coisa
que tu queira falar, e não é só humanidades, a dificuldades da medicina é espaço para
discutir e criar um pensamento coletivo. (GA2P10)

Assumir o papel de trabalhador universitário torna-se relevante pois auxilia a trazer a


perspectiva coletiva, de busca por transformações em conjunto. Uma perspectiva necessária
para fazer com que a dimensão ética da educação superior e Saúde também faça parte dos
compromissos reconhecidos por toda a equipe docente, na qual as estratégias de atuação podem
ser traçadas em conjunto.
Essas experiências auxiliam o professor, a professora, a lidarem com o seu poder
institucional na vida docente e também constrói formas mais dialógicas de se relacionar, de se
abrir. Isso contribui para a sua construção ética, uma identidade de eu-acadêmico, e para uma
possível atuação em um papel de gestor que ele possa vir assumir na sua trajetória
universitária.

Muito trabalho, muita responsabilidade, muito conhecimento da profissão, muita habilidade


política, relacional [...] tudo, né? E paciência histórica, porque o povo que rema contra tá aí
né [...] mas até isso você tem que ter habilidade. Mas a formação do professor não contempla,
isso você aprende acontecendo... tu vais participando, tu vais aprendendo. Assim que a gente
tem que cuidar um do outro, é injusto pegar aquele que chegou ontem e colocar na chefia do
departamento. (GA2P4)

O papel de educador, de referência moral, de tutor, de pesquisador, de profissional da


saúde, de funcionário universitário e de gestor fazem parte da vida docente e são facetas que
devem estar em equilíbrio para que o docente cumpra sua missão na Universidade. A harmonia
entre esses papéis passa por enxergar um corpo teórico e cognitivo que contemple a educação
do estudante nos seus aspectos profissionais, mas também morais. Aspectos que construam uma
identidade acadêmica que inclua a educação de um profissional humanizado e um cidadão
responsável.
117

A formação docente, a educação continuada e as experiências e relações cotidianas na


carreira universitária são aspectos que influem na possibilidade de equilibrar esses papéis. Neste
sentido, a formação pedagógica do professor que traga essa sensibilização, essa aprendizagem
para a docência seria um dos caminhos necessários para a qualificação do docente.

É educação permanente e esses espaços de colegiado, e formação pedagógica. Então


acho que a gente peca de não utilizar como deveria [...] tem formação continuada, é
aberto a todo professor, a gente tem profissionais exemplares no centro de educação,
eu posso ir lá e ver uma conferência. (GA2P4)

A sensibilização ética dos professores também pode acontecer ao largo da sua trajetória
acadêmica, nos espaços que transita, dependendo da diversidade de suas relações, da
participação nos espaços de gestão, de discussões e reflexões que podem oportunizar momentos
de aprendizagem ética.

[...] ter grandes discussões [...] eu acho que é a competência técnica, ética e a política.
Aí quando você vai fazer um seminário integrador essas dimensões vão aparecer mais
fortemente, e um professor vai aprender com o outro, porque a formação tem uma
grande força, e uma grande responsabilidade, eu não acho que seja tudo, mas tem.
(GA2P4)

Porque os poucos que tiveram discutindo ética ali, naquela mesa linda, aquilo
capilariza... aquela pessoa ganha força [...] se empoderaram ali [...] então é um espaço
precioso. Então eu fico pensando, a saída de uma pessoa que pensa assim vai significar
o fim? (GA2P4)

As limitações do suporte pedagógico e da conscientização sobre a dimensão ética da


educação superior em Saúde tornam as possibilidades de equilíbrio entre os papéis de vida
docente muito dependentes das características e trajetórias individuais de cada professor. Este
reequilibrar-se no sentido da sua docência é necessário pois as mudanças visualizadas como
possíveis na Universidade são compreendidas como transformações que dependem destes
mesmos professores.

Eu acho que deveria ter mais discussão sobre ética e dando mais importância a isso
junto aos professores. Eu acho que a forma que a gente tem para mudar isso seria
através dos professore. (GA2P1)

O problema está em quem são os atores que levam o currículo adiante? Que levam a
proposta pedagógica adiante... se esse corpo docente, esse grupo de pessoas não tem
clareza da dimensão ética estar presente em todas as situações, em todos os espaços,
se perde rapidamente. (GA2P9)

Neste sentido, as responsabilidades e as demandas diárias da vida docente podem levar


a professora, o professor, a limitarem-se a responder às suas obrigações formais fragilizando
ainda mais a reflexão sobre a dimensão ética da educação superior em Saúde. A sobrecarga de
118

trabalho aliada à falta de suporte institucional pode tornar o processo de trabalho extenuante,
levando à desumanização da relação pedagógica.

Meu Deus do céu! O professor [...] eu sempre olho por um olhar mais compreensivo
pro professor de uma maneira geral... não sei, o professor está num processo de
trabalho tão cruel também, digamos que eu percebo que algumas situações são
complexas para ele mesmo [...] eu e a outra professora que acompanhou este caso de
depressão ficávamos estarrecidas, ela disse que teve final de semana que ficou
trocando musiquinha, vídeo não sei o que com a estudante porque no fundo ela queria
saber se a menina estava viva! Qual o professor que está preparado para isso?
Entendeu? (GA2P4)

Nesta perspectiva, a responsabilidade da gestão também é questionada, no sentido de


que o ensino-aprendizagem ético seja mais discutido na academia, de que se reflitam os modos
de fazer e pensar a dimensão ética da educação superior em Saúde. A gestão universitária
precisa dar espaço para que o professor se coloque, para que a construção coletiva seja
incorporada, para que o professor sinta que ele contribui e pertence a uma comunidade
acadêmica, com problemas e desequilíbrios em comum que necessitam ser trabalhados.

Se tu for parar e filosofar, a UFSC exige esse olhar, mas na prática acho que é
totalmente dependente do professor [...] da formação ou do temperamento. (GA2P10)

Eu acho que são os processos pedagógicos, a formação, os objetivos da formação de


professores [...] está sobrando tudo para o professor, porque é impossível[...] a gente
é um ser humano, e o ensino superior também está sentindo isso, do professor, do
papel de tutor, no sentido de acompanhar aquele estudante. E isso é tempo e
dedicação. São esses dois caminhos. (GA4G3)

Porque aquilo que ele aprendeu ele tem que praticar, então se ele aprendeu tudo aquilo
e encontra uma gestão que ele não tem espaço [...] Acho que agora os próximos passos
são fazer a discussão da filosofia pedagógica e discutir novamente o perfil do egresso
[...] o que significa para cada um, e daí sim, qual é a minha responsabilidade como
professor, qual é a minha contribuição aqui. E daí pode aparecer mais concretamente
[...] para além da técnica”. (GA2P4)

Trabalhar a educação com consciência da influência da sua dimensão ética pode auxiliar
no equilíbrio dos diferentes papéis da vida docente na medida em que pode fortalecer a
passagem de ensino profissionalizante para uma educação superior, onde os papéis de educador,
de referência moral e de tutor podem ser melhor assumidos. Os papéis de pesquisador e de
profissional da saúde são hegemônicos e, juntamente, com os papéis de gestor e trabalhador
universitário, necessitam maior associação com seu sentido coletivo na vida Universitária.
Equilibrar as facetas do ser docente exige suporte coletivo e institucional para que a resistência
a trabalhar a dimensão ética do ensino-aprendizagem não se fortaleça pela simples resistência
à mudança, visualizada como uma maior sobrecarga de trabalho para o docente.
119

4.2.2 Assumindo a responsabilidade sobre a sua própria trajetória acadêmica estudantil

O papel assumido pelo estudante na vida universitária tem relação direta com o que é
esperado da sua trajetória acadêmica. Há uma hegemonia de sua educação ainda no sentido de
formação profissional, na qual pesam os critérios de avaliação acadêmica, baseada
predominantemente em conhecimento e habilidades, do que em atitudes. O estudante enxerga
possibilidades de ampliar a vida universitária a partir do momento em que deixa de se limitar
ao que lhe é exigido e começa a buscar mais autonomia em sua trajetória.

[...] consegue, mas com prejuízo das atividades de vida dele, de sono, de lazer, de
alimentação saudável, porque assim, de algum lugar você vai ter que abrir mão assim
[...] é sempre uma escolha. Eu acho que o currículo tem esse direcionamento mais [...]
não gosto muito dessa palavra ‘cientificista’ porque parece que ciência é só biologia,
e não é, eu acho que é uma parada realmente técnica, acho que é essa palavra mesmo
[...] e que é muito importante, é fundamental, mas ela não pode ser desprovida de
crítica, a gente não critica nem a própria técnica, a gente só aceita o argumento de
autoridade do professor. (GA3E2)

Ao assumir trajetórias distintas do esperado, o estudante, a estudante, enfrentam as


dificuldades de conciliar as novas possibilidades de construir-se eticamente, de construir sua
identidade pertencente a uma comunidade acadêmica, diante da carga (por vezes sobrecarga)
curricular.

O que mais impacta os estudantes de modo geral de terem essa epifania da importância
de circular, de transitar, de buscar novos conhecimentos é um dos entraves
institucionais que eu falei porque a gente tem uma carga horária muito extensa, a gente
tem que ter 75% de presença, depois no internato isso sobre para 95%, então a galera
de modo geral acha que faltar é errado, e também não estou dizendo que não é, não se
trata de uma questão de certo ou errado. Eu abri mão dos meus 25% de presença esse
ano para ir buscar outras coisas e hoje eu posso dizer que eu, finalmente, acredito que
isso não prejudicou a minha formação... de abrir mão de manhã de ir para aula para
ficar dormindo, ou para ir para reunião de centro acadêmico, ou participar de um
projeto ou não sei o que. Então eu abri mão de parte dessa carga horária que é extensa,
é extenuante, que adoece as pessoas e vivi em conflito, mas fui. (GA3E2)

Na medida em que o estudante busca uma maior autonomia na sua trajetória, passa a
viver sua vida universitária em conflito com o que lhe é exigido pela instituição. Neste sentido,
faz-se necessário que as relações institucionais não sejam somente de controle sobre índices de
aproveitamento acadêmico do estudante, mas que também estimulem e possibilitem outras
aprendizagens a serem assumidas na vida universitária. De todo modo, enfrentar os mecanismos
instituídos que estimulam um determinado papel esperado do estudante pode ser uma tarefa
mais ou menos árdua a depender das posturas docentes na interface dessa relação estudante-
universidade.
120

E os alunos são acompanhados pela coordenação até no aproveitamento deles, então


se tem uma disciplina que eles não estão indo bem, então o aluno é chamado para
conversar, saber o que está acontecendo, então coisas aparecem aí também[...] dessa
relação do professor-aluno. (GA2P6)

[...] eu tenho vários colegas que até hoje não conseguem faltar, não conseguem sair,
porque há uma relação de poder né. E tem professores, e aí entra o papel do professor,
que eles aplicam terrorismo em cima de: -‘ah se você não vier nessa aula você vai
matar o paciente, se você não souber fazer isso você vai matar o paciente’. (GA3E2)

Então pode ver, tem um fator do estudante, de querer buscar e de saber que não dá de
fazer tudo na vida, tem o papel do professor, de fazer ou não esse terrorismo, de ser
mais flexível nas faltas, ou de ser extremamente rígido como a gente tem professor
que se você não chegas as sete e meia, você perde a chamada. E tem o papel da
instituição né, que mantem essa carga horaria altíssima e que, enfim nos pune né, se
a gente tentar buscar outras coisas. (GA3E2)

A relação com o professor tem bastante significado nessa busca do estudante por
construir sua identidade acadêmica pois o professor, além de ser uma referência moral, também
é uma projeção da profissão ao qual o estudante se prepara para encarar. A depender de como
se portam os professores, a construção do significado de ser estudante da saúde pode ser
limitada.
Quando o professor busca despir-se do seu poder institucionalmente inerente, e
aproxima o estudante das decisões acadêmicas há uma motivação maior do estudante em se
descobrir no seu processo educativo, a buscar o que deseja da sua trajetória. Os momentos de
aproximação dos professores à realidade de dúvidas e dificuldades dos estudantes são
percebidos como “espaços de humanidade dentro do curso” (GA3E1).

Não acho que é só a temática da ética nesse caso, eu acho que isso é muito mais amplo
que um aspecto, mas com toda certeza se eu permito que o aluno me enxergue
enquanto ser humano, e me enxergar como ser humano é me enxergar nas minhas
falhas, eu acredito que ele também vá passar a ser mais humanizado, e provavelmente
também vai mostrar isso nas suas relações a posteriori. (GA2P2)

Nas relações mais dialógicas entre professores e estudantes, o perfil de estudante que
contesta, que participa, é estimulado. Quando o professor não abre a relação para o diálogo ou
a construção de novas possibilidades de conhecimento e ações, interage com estes estudantes
participativos, há uma maior disputa de poderes. O estudante é visualizado como ‘rebelde’,
‘não obediente’ e o professor um ‘carrasco’, ‘sem humildade’. Nesta relação professor-
estudante o estímulo a autonomia moral do estudante é essencial a construção do eu-acadêmico,
uma identidade que não se constrói com relações de exclusão e de obediência acrítica.

E a gente sabe que tem situações em que há, entre aspas, uma perseguição né, são
humanos, ficam chateados, ficam com o ego ferido, também. : -‘Como que esse aluno,
tá ali oh, na quinta fase, começou a ler artigo ontem, vai querer contestar a mim, que
tenho pós-doutorado?!’ Pois sim! Irei. E você, com o seu pós-doutorado ou vai me
fazer entender a sua visão, e vamos juntas compreender [...] porque não pode ser:
121

‘nossa saiu o artigo novo, que interessante! Nossa, nem vi, me manda! Oh pessoal,
vou colocar no Moodle esse artigo, leiam e vamos discutir!’ Seria ótimo! Mas a gente
sabe que não é assim. (GA3E4)

Para além do currículo, das relações com os professores e a instituição, o estudante


também aprende a construir sua trajetória acadêmica, a refletir sobre o que deseja ser, a partir
das relações com os seus colegas. O contato com estudantes participativos, críticos, que
contestam e tomam atitudes sobre sua própria vida acadêmica também é capaz de estimular os
estudantes a, minimamente, repensar seu perfil, suas vivências e escolhas. Neste sentido, não
somente a sala de aula, mas vivenciar outros espaços estudantis podem auxiliar no
empoderamento dos estudantes, oportunizando experiências de atividades decisórias, políticas,
participativas e coletivas, espaços que auxiliam a pensar o papel acadêmico do estudante e que
também exigem dedicação e responsabilidade.

[...] depende também do CA se fazer presente, depende daqueles acadêmicos que


foram escolhidos pelo curso para mostrar aos iniciados o que eles têm de direitos, o
que não têm, se mostrar disponíveis porque isso também é papel do CA – por isso que
muitos fogem né, porque é uma demanda a mais. Eu já tive casos de chegar meia noite
e um colega da graduação bater na minha porta por uma crise de ansiedade e a gente
ficar até as duas e meia da manhã conversando. (GA3E4)

Não se sentir sozinho na vida acadêmica, ter diferentes espaços de relação, também
influenciam na construção do estudante, na forma como ele passa a encarar o seu papel dentro
da Universidade. A maturidade, as experiências anteriores são componentes que também
influenciam suas escolhas na construção do seu percurso acadêmico.

Tem aluno que nega essa dimensão ética e não tem jeito, não se interessa, talvez nem
perceba, não é só não querer, talvez não perceba que isso é uma coisa que afeta o
desempenho dele ou que vá balizar as condutas profissionais no futuro [...] alguns não
tem essa percepção. Mas tem gente que tem, e muita. Então tu tens alunos que você
percebe que vão ser médicos em todas as dimensões possíveis né, bons profissionais,
boas habilidades, e a dimensão comportamental mais bem definida, postura
amadurecida, equilibrada [...] é isso que eu acho. Mas é como eu te falei, a minha
visão é de crianças, entendesse? São muito jovens, eu agora dei aula na disciplina da
quarta fase, as pessoas estão terminando o segundo ano da medicina e tem gente que
não tem 20 anos ainda. (GA2P7)

A construção da trajetória do estudante, de responsabilidade em assumir as


consequências dos próprios atos e da competência em fazer a crítica à dominação do professor
e à estrutura institucional pode ser potencializada uma vez que o estudante se permite
experimentar a vida universitária, relacionar-se com a Universidade a partir de escolhas
autônomas mas não limitadas a interesses unicamente individualizados. Conhecer a
Universidade, a sua história os espaços existentes para compreender-se pertencente à instituição
são ações que auxiliam a autonomia do estudante sobre seu percurso educativo.
122

Como a pessoa se construiu até chegar nessa linha de pensamento, nessa estrutura de
pensamento, nesse julgamento moral que ela tem agora, por exemplo, a enfermagem
tem esse panorama de ser mais política, porque ela nasceu assim né, ela nasceu com
uma mulher no tempo de guerra confrontando uma estrutura biomédica, então ela
nasceu de um confronto digamos assim, e isso é uma coisa que traz bastante da própria
enfermagem, inclusive professores que a gente tem hoje, como nosso coordenador de
curso, eles eram do centro acadêmico, e ai ele foi veterano da coordenadora de curso
que também foi do CA. (GA3E3)

Desprender-se do currículo e compreender que seu papel de estudante Universitário


pode ser distinto da sua trajetória estudantil prévia - com mais autonomia na sua própria
educação e no que deseja para si - é uma percepção que ainda depende muito das oportunidades
de aprendizagem ética que possibilitem a construção de autonomia moral no seu percurso
acadêmico. São possibilidades que, por concentrarem-se principalmente para além do currículo
acabam não sendo vivenciadas por grande parte dos estudantes.

4.2.3 Fomentando pertencimento à Universidade

A concepção de Universidade e as possibilidades institucionalmente oferecidas ainda


limitam as relações a serem construídas autonomamente neste espaço. Conceber um novo olhar
sobre a Universidade ao longo do percurso acadêmico torna-se importante, pois o que se espera
da instituição conforma as relações que serão buscadas. Relações mais intensas, mais
responsáveis com a Universidade, exigem aprender a conhecer a instituição, além de visualizar
funções menos individualistas e individualizadas para a vida acadêmica.

Ah, não sei [...] é que antes assim, eu ficava focada em: - ‘eu tenho que estudar, eu
tenho que passar nas matérias e é isso’. Eu não via assim, o a mais [...] e que na
verdade eu preciso e eu não tinha nem noção de movimento estudantil e de como as
coisas funcionam de verdade e que você nem enxerga. (GA3E7)

O dinamismo social e científico deve ser observado no corpo acadêmico, uma


comunidade de formuladores de perguntas e buscadores de respostas, onde a curiosidade deve
ser estimulada. Aprender de forma cooperativa auxilia a percepção do indivíduo como
pertencente a uma comunidade acadêmica, uma comunidade que tem o intuito de buscar o
conhecimento em todas as suas dimensões, um clima que pode alimentar valores de inclusão e
construção coletiva, necessários a aprendizagem ética.

O que acontece também, que é prejudicial, além da questão do autoritarismo, é a


questão do ego né, a disputa de poder... essa coisa dos ‘phdeuses’ né, isso é muito
complicado. Porque tu tens uma posição que não tem essa visão de que pode levar
todos para baixo. Então a disputa é muito grande nos departamentos, no nosso
principalmente... que não tem um senso de crescer todos, que é também uma história
da memória da fragmentação [...] das especialidades” sujeito? (GA2P4)
123

Para que a comunidade acadêmica seja estimulada também a construir um processo de


vivência de mundo e construção de si, diferentes espaços devem ser estabelecidos na
Universidade, capazes de proporcionar caminhos de descoberta, em que seus membros
percebam que podem criar, responder e influenciar as ações a serem desenvolvidas de formas
cooperativa e diversa e ainda produzir bons resultados.

Ninguém vai abrir a cabeça do indivíduo e forçar ele a entender aquilo, mas eu acho
que os espaços têm que estar presentes sim, e a Universidade deve garantir isso. Ela
deve garantir espaços, ela deve garantir facilitadores, não para mudar a opinião, mas
proporcionar discussões com relação a isso. (GA3E4)

As relações institucionais citadas como potenciais para a construção cidadã e ética, ou


seja, que favorecem a educação moral e, portanto, a construção identitária são aquelas
percebidas como relações democráticas, de participação de todos os afetados pelas regras
institucionais. A reciprocidade nas relações construídas institucionalmente na Universidade
amplia o interesse por relacionar-se em espaços distintos dos exigidos no currículo e até por
conhecer e refletir sobre as políticas educacionais.

[...] o grande desafio é isso, é você ser ético na tempestade, porque quando as coisas
estão boas, estão boas... a linha está bonitinha estabelecida e vai longe, mas quando
essa linha não está definida, e quando a própria instituição tende a fechar o olho [...]
‘tá, como é que eu vou cobrar se a própria instituição não está cumprindo’. (GA2P5)

O conhecer a Universidade, participar da construção de suas políticas e ações também


ensina determinadas atitudes ao corpo acadêmico. Faz-se essencial que o corpo acadêmico se
perceba como parte constituinte da Universidade, na qual valores e princípios compreendidos
como algo a ser fomentado institucionalmente, por um ente dissociado, devem em realidade,
ser explicitados e compartilhados nas relações acadêmicas, na busca por compreendê-los e
transformá-los, se necessário.

A Universidade precisa ter valores e princípios que ela considere relevantes e deve
proporcionar condições para que esses princípios sejam valorizados, por exemplo,
desde as questões mais simples como a participação do aluno no processo de avaliação
da própria Universidade para que o aluno possa ser protagonista do seu processo de
ensino-aprendizagem, para que o aluno possa ser protagonista na sua própria vida.
(GA4G1)

Quando a comunidade acadêmica se percebe influindo e construindo em diferentes


espaços, conhecendo a Universidade, sentindo-se responsável por seus processos e podendo
transformá-los, também pode aprender a buscar um maior protagonismo sobre sua própria vida
e sobre as contingencias que a conformam. A Universidade não deve ser visualizada como algo
imposto ao corpo acadêmico, mas uma construção coletiva, fruto de disputas de visões, valores
124

e interesses. Mais do que relacionar-se com a Universidade é compreender-se como


constituindo-a, influindo nas forças internas e externas que exercem pressão sobre a missão da
Universidade, compondo-a e transformando-a.

Não tem como acontecer isso lá na frente se aqui não tem uma estrutura bem formada,
bem feita... então eu penso que a instituição tem uma grande responsabilidade, mais
do que o professor sabe, mais do que o aluno. Eu acho que aqui, tem que estudar o
PDI e pensar em como colocar em prática, e precisamos formar, formar professores
sob diversos aspectos. (GA2P6)

Por mais que as políticas sejam ‘democráticas’, ‘horizontais’, o ‘ente’ Universidade é


constantemente associado à figura do gestor ou do professor. A Universidade é horizontal, é
respeitosa, é dada oportunidade ao diálogo, na medida em que professores e gestores assumem
essas atitudes. Essa rede de relações construída com a Universidade ainda é vivenciada como
uma responsabilização de um ser institucionalizado no outro. É atribuída à Universidade a
responsabilidade de ter esses espaços de orientação de construção de um estudante que exerça
sua cidadania, mas pouco se assume a necessidade destes estudantes aprenderem a buscar seus
direitos e compreender seus deveres, a perceber-se como ator ativo nas engrenagens
universitárias.
Os protagonismos, quando assumidos, auxiliam na construção da personalidade moral
dos indivíduos, permitindo uma maior conscientização sobre os poderes, as ideologias, os
interesses e valores que influem na educação superior, e que constroem a Universidade.

[...] desde que eu entrei na Universidade e comecei a participar das aulas e fui
conhecer outros colegas, me associar a centros acadêmicos e grupos, eu percebo que
a instituição tem sim uma responsabilidade muito grande, muito no sentido de que
tudo aquilo que a gente estuda, e mesmo o que a gente deixa de estudar, é uma decisão
política, os nossos currículos são ditos neutros, são anti-ideologia mas na verdade eles
seguem uma ideologia que é a ideologia que foi escolhida por um colegiado né,
estudantes, professores. (GA3E2)

Na medida em que os estudantes se compreendem como parte da Universidade, os


direitos e deveres que estão colocados, tendem a buscar compartilhar esses caminhos com os
seus colegas, com a sua turma, com a comunidade ao qual sentem-se pertencentes. É um
perceber possibilidades distintas das vivências comumente experenciadas na Universidade e
querer compartilhá-las, pois são compreendidas como essenciais a educação no seu sentido
pleno de desenvolvimento pessoal.

Essa Universidade enorme que tem tudo para dar o amparo, mas se eu não sei como
chegar, eu não sei se existe, não me foi apresentado [...] o que não deixa de ser uma
oportunidade dos Centros Acadêmicos, que são um espaço não da Universidade, mas
vinculados a ela, que proporcionam todos esses links, então eu creio que sim, que não
125

deixa de ser o papel da Universidade também. Porque tem o CA ali para fazer, mas
alguns nem sabem que existe. (GA3E4)

Assimilar os mecanismos da instituição, por meio de representação discente, vivências


em centros acadêmicos, faz com que o estudante se compreenda como uma parte importante
desses dispositivos e que tem, portanto, poder também de alterá-los. Conhecer os processos
históricos e políticos que compõem uma Universidade amplia as possibilidades e interesses de
seus membros em se comprometer e influir nos mecanismos institucionais, fazendo com que a
comunidade acadêmica se sinta corresponsável pela Universidade.

[...] uma sensação que eu acho que é fundamental da gente perceber aqui dentro da
Universidade pública é isso de que ‘o que é público não é de ninguém’, o brasileiro tem essa
ideia, não é: ‘público é de todo mundo, vamos cuidar’ [...] então é tratado como se não fosse
de ninguém. A universidade também é tratada assim eu acho, como se não fosse de ninguém,
o espaço público é como se a gente não tivesse responsabilidade sobre isso: - ‘o governo que
administra’[...] o governo é só uma ideia, o Estado é só uma ideia, a gente que faz parte da
composição dele [...] ou tem gente que tenta se convencer de que não faz parte, né? (GA3E5)

Pensar a Universidade deve ser mais do que visualizar uma articulação entre diferentes
- ‘eu’ e a Universidade - mas sentir-se pertencente a ela, constituindo-a. Compreender-se como
parte de um bem público, um bem da sociedade, é uma percepção necessária para reconhecer
as possibilidades de atuação dentro da Universidade conectadas com o processo de construção
de cidadania, de um pertencimento a uma comunidade acadêmica. Fomentar o eu-acadêmico,
que participa ativamente, é também desenvolver-se na sua dimensão política, atuando nas
relações que constroem a sociedade, conhecendo-as para poder também modificá-las,
transformações que ocorrem dentro da Universidade e que podem estimular o olhar da
comunidade acadêmica sobre si mesmo e sobre a sociedade, uma atuação contextualizada.

A atual conjuntura política do país limita muito essas questões, então quando você
priva, quando você tem a ideia de que você merece mais por causa da sua cor, por
causa da sua família, do seu sobrenome, porque estudou nos melhores colégios: - ‘ok
[...] massa! Ótimo que os seus pais conseguiram dar isso para você’ [...]. Eu não quero
tirar isso deles, mas eu quero que as minhas filhas tenham o mesmo direito. Então é
mais ou menos por aí, eu acho que esse contexto político, em que pessoas
despolitizadas - o sentido partidário mesmo, no sentido de não conhecer a história
partidária do pais, dos movimentos sociais [...] de serem contra os movimentos
sociais... começam a ter essa visão de barrar, de acharem que a Universidade é para
uma elite intelectual. (GA3E4)

Relacionar-se com a Universidade situando-a como um local que por ‘sua própria
natureza, congrega a elite de profissionais” (GA1D2), uma elite altamente especializada e, por
vezes, apartada de um senso de comunidade, dificulta a construção de relações cujo objetivo
não é ser o melhor profissional frente aos outros, mas a busca da excelência frente a si mesmo,
uma excelência profissional, cidadã e ética. As relações da comunidade acadêmica com a
126

Universidade não necessitam estar circunscritas à somente a busca de direitos e deveres


garantidos pelo Estado, mas uma relação de vínculo histórico, afetivo, de pertencimento. Este
sentir-se parte da Universidade pode ampliar o olhar sobre a finalidade que os membros
acadêmicos têm sobre a instituição.
A busca por relacionar-se na Universidade para além das grades curriculares pode ser
uma possibilidade de fortalecer também a articulação entre os diferentes cursos e centros
educacionais. Isso estimula o desenvolvimento pessoal para além da formação profissional,
uma perspectiva que ainda se mostra distante da realidade acadêmica, mas que possibilita
ampliar as possibilidades de reflexão crítica porque amplifica a diversidade das interações e dos
objetivos sobre a construção de si dentro da Universidade.

Assim, se tu perguntares no curso o que tem de preocupação com o meio ambiente, por
exemplo, não existe! Só não é zero porque os caras são inteligentes e tão tendo algum senso
crítico, mas tu podes pensar na nossa sociedade hoje em dia, ela se preocupa com o meio
ambiente? Então eu acho que deveria ter uma questão ideológica, filosófica nas questões
sociais e nas questões ambientais... são outras dimensões, e a Universidade tem que ter todas
[...] teria que ter esses espaços e preocupação, mas fica muito focado em transmissão de
conhecimento e saber técnico. (GA2P10)

Focar o ensino somente na dimensão técnica limita o que se espera e o que se oferece
dentro do espaço institucional, diminuindo as possibilidades de interação com a Universidade,
de se sentir pertencente. O sentimento de pertencimento ocorre não somente em um curso, mas
em toda a instituição que permite ser transformada e que também pode transformar, seja a
comunidade acadêmica ou a própria sociedade a qual se insere.
Estes protagonismos políticos e a autonomia sobre a construção do seu percurso
educativo, estimulando o eu-acadêmico, auxiliam a deixar de observar a Universidade como
uma finalidade instrumental, como uma ponte de projeção pessoal somente, mas como um
espaço capaz de ampliar suas possibilidades de perceber e agir no mundo.

[...] no sentido de que ele passe a ver a Universidade mais como uma ferramenta para
a sociedade, do que como uma ferramenta para ele, entende? Porque quando eu penso
nesse ensino técnico e tudo mais, eu penso que talvez a pessoa tenha percebido a
Universidade como uma ferramenta para adquirir conhecimento técnico para exercer
uma profissão. (GA3E6)

A construção deste pertencer à Universidade, o olhar que se tem sobre ela, da sua
capacidade de construir cidadania também se evidencia no quanto a comunidade acadêmica se
sente chamada a defender a Universidade frente às ameaças a sua funcionalidade e missão.

[...] eu espero pelo menos, que a partir de todas essas mobilizações tenha uma
mudança drástica em como o estudante enxerga uma Universidade e como a sociedade
enxerga a Universidade também. Porque ao longo das últimas semanas, uma coisa
que... eu não sei bem se eu percebi ou se eu fui levado a perceber isso, mas parece que
127

a sociedade, talvez, não enxerga a importância da Universidade e o que ela faz. Parte
disso também recai sobre os estudantes que compõem essa Universidade e que não se
sentem fazendo alguma coisa e que, de fato, às vezes, não fazem, né? Eu acho que
esse momento que a gente tá vivendo agora vai ser crucial para mudar essa visão,
tanto da sociedade quanto do aluno. (GA3E6)

Na medida em que o sentimento de pertencimento à Universidade é estimulado pode


criar espaços de transformação e construção cidadã, fundamentando relações de cuidado e
defesa da Universidade. São interações que estimulam a aprendizagem ética, pois trazem
desafios morais, desafios em termos de repensar a sociedade, pensar o papel das ciências da
saúde e da cidadania na vida da comunidade acadêmica.

[...] a gente acabou ouvindo que vários cursos estão discutindo sobre qual é a
Universidade que eu quero, qual é a aula que eu quero, qual é a formação que eu quero
ter mais pra frente e todos eles seguindo em direção de ter um discernimento crítico
das coisas que acontecem e qual é o papel da pessoa formada numa Universidade
pública de qualidade dentro da sociedade. (GA3E6)

Neste sentido, cabe a necessidade também de que se produza análises sobre o tipo de
indivíduo que está ajudando a construir, mas não somente na vida profissional, também na sua
atuação cidadã: “A universidade deveria compreender como estão os seus egressos, para o
professor saber que tipo de profissional de fato ele tá ajudando a formar” (GA2P11).
Relacionar-se com a Universidade para além de um processo de obtenção de diploma
profissional requer que o estudante – e também o docente, conheçam a instituição, seus direitos
e deveres, a história dessa instituição, seus mecanismos, os interesses existentes, a missão da
Universidade, construindo uma vida acadêmica de forma autônoma, uma autonomia que
necessita de relações para além da exigida na grade curricular. A relação com a universidade
passa por esses conhecimentos, capazes de estimular a busca por espaços participativos dentro
da Universidade, um participar que gera um sentimento de ‘fazer parte’, de pertencer a uma
comunidade capaz de produzir transformações. Essas transformações são visualizadas como
uma atribuição da dimensão ética da educação superior em Saúde quando buscam a excelência
ética da comunidade acadêmica, uma comunidade que experencia ações de responsabilidades
e deveres uns com os outros e com a sociedade que desejam construir.

4.2.4 A construção do eu-acadêmico como realização do fenômeno da dimensão ética da


educação superior em Saúde

Os distintos papéis assumidos pelo professor universitário estão mais conformados para
as obrigatoriedades acadêmico-produtivistas do que aos interesses comuns da vida acadêmica.
Os modos de operar da instituição universitária e a formação docente tem grande influência
128

sobre o equilíbrio entre as facetas do ser professor universitário. Os sentidos de ser e de atuar
do corpo estudantil parecem influenciar pouco nos papéis docentes.
Por sua vez, o papel do estudante na vida Universitária é limitado ao que se espera do
seu perfil profissionalizante, fomentado a partir do currículo. O estudante que busca expandir
esse papel, incluir outras dimensões da educação superior na sua trajetória acadêmica, esbarra
nas dificuldades de responder ao perfil profissional esperado. O estudante internaliza o olhar
do professor para definir seu papel na vida acadêmica, os modos como os professores encaram
este perfil estudantil podem auxiliar ou limitar ainda mais essa busca por autonomia moral do
estudante.
A construção de papéis na vida universitária necessita de novos significados do ser
docente e do ser estudante, mas principalmente da construção de um papel que seja coletivo e
colaborativo à comunidade acadêmica. A vida universitária é reduzida a demandas cotidianas
ao mesmo tempo em que essa redução traz sobrecargas e afastam estudantes, professores e
gestores. Os papéis assumidos a partir do que é exigido pela instituição universitária atomizam
a vida acadêmica, dificultando que as dimensões ética – da escuta, reflexão e transformação;
estética - de invenção de percursos; e política - de relações de poder e democratização
institucional, da educação superior em Saúde sejam trabalhadas com maior profundidade e
intencionalidade pois são dimensões que exigem diálogo, reflexão e construção cooperativa.
As facetas do ser docente, de transmissão do conhecimento, de referência moral, de
tutoria, de pesquisador, de trabalhador da saúde, de trabalhador universitário e de gestor e a
busca por autonomia moral estudantil para assumir maior responsabilidade pela sua trajetória
acadêmica, compõem a construção do eu-acadêmico. Essa identidade é realizada na medida em
que a condução destes papéis da vida acadêmica também é uma vivência da dimensão ética da
educação superior em Saúde. Para construir essa identidade - individual, mas que se constrói
coletivamente, do ser universitário faz-se necessário estimular o sentimento de pertencimento
à uma comunidade acadêmica. Um pertencimento que fundamenta um papel compartilhado por
toda a comunidade acadêmica, um papel de buscadores de conhecimento e de excelência
humana que possa contemplar os papéis de cada agente institucional, conectando-os à própria
missão da Universidade.
129

4.3 EXPRESSANDO A DIFICULDADE DE TORNAR-SE PROFISSIONAL A PARTIR


DOS PARADIGMAS E RACIONALIDADES HEGEMÔNICOS NA EDUCAÇÃO
SUPERIOR EM SAÚDE

A educação superior em Saúde apresenta-se limitada aos paradigmas biologicista e


positivista nos quais a aprendizagem está fragmentada por especialidades, com objetivo de
reprodução técnica. A tomada de decisão nos cuidados de saúde, por vezes, não passa nem por
considerar mais de uma técnica. O aluno aprende a técnica considerada ideal e a replica
continuamente. Evidencia-se que essa especialização precoce/tecnificação ensina o estudante
(e futuro professor) a construir uma racionalidade dilemática, na qual as decisões limitam-se
em aplicar ou não uma determinada técnica.
Dentre os objetivos do ensino deve estar o aprender a decidir, incluindo o outro e o
contexto sociopolítico nesta decisão. Na realidade essa decisão complexificada pode auxiliar a
discernir até a melhor técnica para cada ação de cuidado. Se o professor ensina a decorar,
reproduzir somente, é difícil esperar algo distinto disso na vida profissional e pessoal do
estudante. Esta é uma dificuldade do pensamento dilemático: compreender que nem sempre
existe uma resposta pronta, protocolar.
A necessidade de transformações paradigmáticas na construção do profissional de saúde
e a importância de se educar para uma racionalidade problematizadora, capaz de agregar
distintas possibilidades decisórias serão apresentadas e discutidas nas duas subcategorias a
seguir.

4.3.1 Refletindo sobre os paradigmas e objetivos da educação superior em Saúde

As práticas do ensino em Saúde demostram uma hegemonia da aprendizagem baseada


na reprodução técnica, fragmentada por especialidades, com foco em paradigmas biologicistas
e positivistas. Os estudantes não são educados para buscar o conhecimento, aprender a
conhecer, mas para reproduzir. O ensino-aprendizagem ético é excluído desse processo, do
construir-se profissional da saúde, como se fosse possível ser um profissional qualificado
somente considerando o ponto de vista técnico. O ensino torna-se um processo de transmissão:
o conteúdo a ser repassado é técnico e o seu objetivo é a reprodução da técnica na prática.

[...] essa coisa técnica da profissão, todas as profissões [...] isso nos atrapalha [...] essa
formação com a preocupação mais forte com o mercado, com o trabalho técnico, daí
ela é o que é, muito forte. (GA2P4)
130

Essa realidade percebida nos dados choca-se com a visão de ensino colocada pelas DCN
e nos PPP dos cursos de graduação:

[...] processo de ensino-aprendizagem direcionado para metodologias de ensino, de


pesquisa e de extensão construtivistas, sociologicamente orientados, que disponibilize
um corpo docente mediador do conhecimento, promotor de desafios e de reflexões
para serem superados com autonomia pelos discentes. Em outras palavras, estas
metodologias de ensino deverão ultrapassar o instrucionismo da didática medieval de
mera reprodução do conhecimento. (GA1D2)

As diretrizes firmam a necessidade da aprendizagem da “arte do aprender” (GA1D1;


GA1D8), um ensino atento à própria educação, ao conhecer e permitir ao estudante trabalhar
vocações (embora na prática esse permitir não significa estímulos ou mesmo condições para
essa busca autônoma). Ao mesmo tempo, as DCN trazem a necessidade de construir uma matriz
curricular totalmente voltada para a profissão. Parece haver uma dificuldade de compreender o
que é técnica, o que é ciência, arte, ética e cultura, termos citados, mas não aprofundados em
seu papel na educação superior em Saúde. As DCN trazem citações como ‘valorização do
paciente’ (GA1D2), ‘cuidado tecnicamente competente, seguro e humanizado’ (GA1D3),
‘formação dinâmica e aberta a diversidade’ (GA1D3), ‘ciências humanas e sociais como eixo
transversal’ (GA1D5), ‘formação pautada em princípios éticos (humanísticos, sanitários e da
economia da saúde)’ (GA1D4), ‘princípios éticos e científicos’ (GA1D8), colocações que são
citadas com pouca ou nenhuma definição ou contextualização.
Há uma confusão de termos entre o que é ciência e o que é ética, como se a ética não
possuísse fundamentação teórica. A ciência apresenta-se reduzida ao que pode ser comprovado
nos moldes do paradigma positivista: “só vale o que é comprovado cientificamente” (GA2P1).
Discorre-se sobre conhecimentos, habilidades e atitudes (mesmo que com uma certa confusão
entre eles), e sendo assim, ciência e atitudes mostram-se desconectadas.
O saber conhecer é delimitado pela carga de conhecimento teórico que parece subsumir
os outros saberes do cotidiano acadêmico. O saber fazer resume-se à prática clínica. O saber
ser e saber conviver aparecem quando a ética é trazida nos dados, são valorados e vistos como
algo a ser melhor introduzido na vida universitária, embora também pareçam igualmente pouco
compreendidos.
O aprender a conhecer opera submetido a uma determinada hierarquização do
conhecimento. A dúvida e a argumentação do estudante são subjugadas na disputa com o
discurso técnico do professor. É a institucionalização das relações que subtrai a possibilidade
de desenvolvimento moral: “nos tornamos docilizados, corpos dóceis a serviço do capital”
(GA2P2).
131

Eu acho que eles se tornam muito mais técnicos, no sentido inclusive de performance
social e de relações. Então nesse sentido pra mim é emblemático: falar só de
odontologia e não mais de ser humano entendeu [...] por isso é muito difícil enxergar
qualquer outra coisa que não seja boca e dente porque você foi domesticado. (GA2P2)

O objetivo do educar reduzidos ao conhecimento biológico, técnico, especializado


também seleciona e privilegia determinados perfis de professores. O docente pode ser
‘espetacular tecnicamente, mas emocionalmente, em termos de conduta ética, um fracasso’
(GA2P1). Seria um ato técnico em si cujo resultado seria avaliado somente em termos
biológicos. A aprendizagem transfigura-se para a reprodução acrítica de determinados
conteúdos selecionados como os melhores por um professor que detém um saber que não deve
ser questionado.

Porque eu posso explicar bem a matéria, mas se ele não entender que ele, que ele pode
mudar aquilo ali de diversas formas, que ele tem essa autonomia para fazer, ele vai se
frustrar porque ele vai achar que não domina essa técnica. Mas ele resolve o problema
do paciente e ele resolve bem, ele não é especialista, ele é generalista. E aí tem muito
especialista que faz pior que o generalista. (GA2P11)

Se o papel do professor é reduzido ao repasse de protocolos e técnicas, em uma


formação prescritiva e paternalista, a Universidade reduz muito do seu sentido de ser: “Eu tenho
certeza que o professor trabalha uma medicina baseada em evidência, mas ele não trabalha com
educação baseada em evidência” (GA2P12). A hegemonia de determinados paradigmas da
ciência e da saúde na educação superior é reforçado pela pouca discussão sobre o significado
do educar em saúde.
A ainda persistente fragmentação do ensino que produz reflexos na forma do professor
ensinar (por especialidades, sem uma visão integral do ser humano) e do estudante compreender
o que é o processo saúde-doença. As decisões sobre conteúdos e formas de trabalhá-los revelam
a importância do perfil de professores que congregam a instituição acadêmica.

Eu não dou aula conceitual somente [...] vou trazendo a situação, descrevendo a
criança, a mãe, o local de onde vem e vou perguntando o que eles acham que pode
ser, e aí eu já vou valorizando esse conhecimento que o aluno traz. E o diálogo
começa a partir de uma situação real, a aprendizagem vai ter que ser significativa [...]
o que nós estamos discutindo tem que fazer sentido para o aluno. Segundo, o aluno
tem conhecimento sobre isso, é um conhecimento menos elaborado que o meu, mas é
um conhecimento, para tornar esse conhecimento mais elaborado nós temos um
processo, um diálogo [...] então eu começo com o diálogo para trazer o conhecimento
que é dele para a gente introduzir um novo conhecimento, uma nova percepção do
fenômeno que está acontecendo, mas daí já é uma nova percepção, não é só biológica,
é humana, é biográfica, é social [...]. (GA2P12)

A educação superior em Saúde ainda persisti em um ensino descontextualizado das


condições sociais da população cujo perfil profissional almejado ainda desconsidera o Sistema
Único de Saúde como uma parte fundamental dessa aprendizagem.
132

E o aluno quer estar pronto quando ele se formar, ele não tem a concepção de que ele
é generalista. Eles vêm apavorados perguntando como vão conseguir fazer prótese
fixa, e eu digo pra eles que não é esse o foco[...] eu não boto a culpa nos alunos porque
eles são frutos do modelo de deformação entende? Que é o da memorização, avaliação
através de prova, de teste, e o professor no teste ele aperta, ele pega sempre as
entrelinhas para dificultar mais ainda. (GA2P11)

A percepção da missão da Universidade, construída sobre o tensionamento permanente


dos paradigmas aos quais está inserida, o humanista e o tecnológico, tem evidenciado o
desequilíbrio entre essas forças. Essas assimetrias resultam em uma educação debilitada que
não constrói com propriedade nem um perfil generalista e nem um perfil especialista: “Os
currículos [...] são altamente especializados e mesmo assim eles não saem preparados para o
que vão precisar” (GA2P2), essa especialização aplicada nos conteúdos disciplinares tem
afastado a possibilidade de que um estudante seja capaz de alcançar o que lhe é exigido
institucionalmente, quando menos uma educação que contemple outras dimensões humanas
que não a biológica.

[...] eu acho realmente tem gente abusando desse papel, desse discurso, de que o
discurso de formar cidadão sirva para formar um pessoal técnico muito ruim [...] eu
não consegui ainda ver boas experiências no sentido de equilibrar essas duas coisas
entendeu? (GA2P2)

Vincular a aprendizagem ética ao ensino tem sido uma forma de ampliar a educação
superior em Saúde. Porém a própria dimensão ética da educação superior em Saúde tem sido
reduzida a uma aplicação teórica em disciplinas, ou mesmo pensada em momentos pontuais,
sem continuidade, do processo formativo, assim, “de vez em quando eles convidam para falar
de ética nessas disciplinas” (GA2P1). Além da necessidade de compreender a
indissociabilidade da construção moral e do processo de ensino-aprendizagem, há uma
necessidade de transformações paradigmáticas que incluam o contexto das relações sociais e
humanas nas suas concepções, e com elas os valores e interesses, que lhes são inerentes, para
serem trabalhados conscientemente. É a realização desta dimensão ética da educação superior
em Saúde que permite a construção da faceta identitária do eu-profissional.
Mesmo no ensino técnico há possibilidades de aprendizagem ética sempre que caibam
questionamentos e reflexões, mas essa percepção depende dos sujeitos, para que essa processo
não seja absolutamente operacional.

A professora falou que pegou a lei, a última versão da lei, e foi discutir tecnicamente
o que é bioequivalência, como que faz [...] Então eu coloquei que seria bom lembrar
do porquê que se chegou nessa lei, porque ela é assim, porque a gente tem essa lei?
Porque temos genéricos adotados porque a gente tem genérico no Brasil, porque antes
não tinha? Quem ganhou com isso? Existe alguma outra forma de fazer
bioequivalência? Algum outro país adotou? Existe evidência de que esse é melhor?
Por que esse e não outro? [...] Mesmo na técnica propriamente dita, tem sempre uma
133

dimensão que cabe questionar, que é diferente do aprendizado técnico [...] Veja, isso
é técnico pra mim, no meu entendimento isso é conhecimento técnico, e isso um
técnico tem que saber. Um profissional de saúde tem que ter uma compreensão um
pouco mais crítica sobre aquilo, até para poder desenvolver a capacidade de mudar
aquela técnica, repensar, melhorar, simplificar, ampliar a capacidade de alcance,
sabe? Melhorar o impacto daquilo tudo na sociedade. (GA2P3)

Além da forma de refletir e trabalhar os conteúdos e práxis profissional, o modelo de


ensino técnico-especializado compartilha um certo conjunto de valores para os futuros
profissionais, por meio de um processo de socialização profissional que pode não ser
intencional e nem socialmente contextualizado.

[...] se a gente continuar com um modelo tecnicista, que tem outros valores e que vai
menosprezar a dimensão ética, ou melhor dizendo, vai construir a dimensão ética de uma
outra forma, que não a que a gente valoriza, vai criar outros valores que não aqueles que a
gente imagina que sejam os de melhores profissionais para a realidade que a gente vive. Então
essa é uma questão, que é do ponto de vista da concepção de mundo mesmo. (GA2P9)

O ensino de valores sem reflexão sobre os mesmos é uma aprendizagem moral sem
reflexão ética, uma aprendizagem que não objetiva transformações de realidade ou a busca por
uma autonomia moral dos estudantes. A especialização/tecnificação ao longo do curso reduz a
ética aos sistemas de regras profissionais e legais, uma ética deontológica, muitas vezes
utilizada para assustar ou para punir o estudante e não para fazê-lo refletir. Trabalhar o ensino-
aprendizagem ético nos mesmos moldes do ensino técnico, na reprodução demonstra não
funcionar, os paradigmas educacionais hegemônicos dificultam trabalhar para além da
dimensão técnica, biológica da saúde.

Me parece ás vezes que a ética ela vai ser evocada na discussão quando tem algum
problema ético muito aparente ou quando se quer punir o aluno e aí se evoca esse
conteúdo ético como uma forma de justificativa muitas vezes de questões técnicas [...]
vão dizer: - ‘olha não é ético que se trate o aluno ou o paciente dessa e dessa forma’,
mas no fim não é a ética, eles tão avaliando o preparo cavitário, a técnica. (GA2P2)

Como eu consigo fugir de uma perspectiva técnica, ou exclusivamente técnica? [...]


eu consigo trabalhar por exemplo o desenvolvimento moral do estudante? Consigo.
Mas seu eu não tiver tempo reservado para trabalhar aqueles conteúdos, e que não são
poucos, eu vou ficar como o cara ‘enrolão’, o cara que não tá dando aula. (GA2P2)

A forma de encarar os paradigmas e objetivos da educação superior em Saúde tem


relação com a forma como se enxerga a Universidade. Se a Universidade é visualizada somente
como um local que vai produzir profissionais qualificados para competir por trabalho (seja no
mercado, seja no serviço público), a educação em saúde é reduzida a uma formação profissional
tecnificada e altamente especializada. Neste sentido, a dimensão ética do ensino-aprendizagem
também é enfraquecida pois essa educação não busca transformar o indivíduo e nem a
sociedade.
134

As tentativas de ampliar a educação profissional, incluir a educação cidadã sem mudar


os valores, os paradigmas sobre os quais o corpo acadêmico se fundamenta parece não alcançar
resultados efetivos. A transformação das clínicas-escola por especialidades em clínicas
integradas, onde o professor se apresenta como especialista e a produção técnica continua sendo
o foco é uma estratégia pedagógica que, na impossibilidade de mudar paradigmas, acaba
limitando-se na obediência e na reprodução, uma busca por alcançar metas, diminuindo as
possibilidades de um fazer em Saúde crítico, contextualizado, socialmente e humanamente
comprometidos.

[...] mas eu acho que quando a gente tem meta a gente procura só fazer aquilo ali [...] e a
gente acaba esquecendo do paciente, como um todo [...] se não tivesse meta, com certeza,
fluiria mais. Eu tiro uma base pela clínica de saúde bucal coletiva. É muito leve, a gente que
se auto avalia, claro o professor avalia ali também, e a gente não tem aquela meta de tantas
restaurações [...] E vai fluindo, tu não ficas uma clínica parada! E já as outras clínicas tudo
tem meta, sabe? Professor muito arrogante [...] eles botam como se eles fossem os
‘bambambã’ e eles avaliam a gente como se já tivéssemos que saber tudo, eu não entendo
por que eles não avaliam a gente como um aluno. (GA3E9)

As áreas da saúde que se realizam a dimensão ética da educação superior em Saúde são
aquelas que também pensam a educação para a cidadania. As áreas voltadas para o paradigma
da saúde coletiva são citadas como o campo que traz o olhar sobre o cuidado, empatia, cidadania
e sociedade. O interesse por essas áreas também depende da compreensão que se tem de
Universidade e dos objetivos da educação profissional.

Eu acho muito que muito do ensino aqui é técnico. Muito. Até acho que essa coisa da
formação mais ampliada existe, mas ela é até vista de uma forma meio ‘boring’ sabe,
pelas pessoas aqui, meio como ‘ai, que saco’. (GA3E8)

As disputas entre a educação de profissionais que pense as relações de mercado e a


educação de profissionais pensada para o trabalho em saúde coletiva, colocam esses campos
como contraditórios e excludentes, como se as bases formativas para atuar no serviço privado
e no público fossem distantes e incompatíveis.
Os dados apontam que para se atingir o sentido da Universidade deve-se valorizar todas
as suas dimensões (sociais, ambientais, filosóficas), contudo sua dimensão ética ainda prevalece
como uma das mais débeis nesta disputa de forças.

4.3.2 Ponderando sobre a importância de educar para o processo decisório em saúde

O ensinar reduzido ao conhecimento técnico, especializado, biologicizado, com objetivo


no mercado e pautado na ciência positivista corrobora a predominância do pensamento
135

dilemático, no qual a especialidade como protagonista do ato tecnificado dita o caminho a ser
seguido como o verdadeiro, o correto. Este apreender embasado em reproduzir respostas
prontas, protocolares, pode desconsiderar as dimensões sociais e morais dos sujeitos, não
estimulando a reflexão crítica e compartilhada com o paciente/família/comunidade e, portanto,
não fomentando uma atuação ética, problematizadora e inclusiva.
A separação entre ciências e humanidades, permitiu considerar que é possível tomar
decisões ótimas sem a reflexão ética, a área da saúde tem passado a substituir a decisão humana
por programas de computadores que tomam decisões baseadas em critérios também
desvinculados de valores morais. A tecnificação potencializada pela automação tende a
complexificar ainda mais a situação:

[...] vai piorar com o incremento da tecnificação, ou seja, há um crescimento da


utilização das tecnologias de informação modernas [...] e tudo isso leva a uma
automação na tomada de decisão e isso é tirar exatamente a qualidade humana das
decisões que são tomadas e eles acham que isso é positivo! (GA4G1)

A tomada de decisão fica limitada à reprodução sem diálogo ou construções


compartilhadas. O estudante aprende mais a retórica com o objetivo de vencer, aprende mais
com o discurso que vence ou convence. O papel do professor fica subsumido, pois passa a ter
dificuldade de compreender a sua responsabilidade em mostrar que existem diversas
possibilidades no cuidado em saúde e que o estudante precisa ser ensinado a aprender a decidir,
compreendendo que suas decisões também são embasadas em valores morais. Fomentar o
pensamento problematizador, questionador e inclusivo é necessário na relação pedagógica que
objetiva também o ensino-aprendizagem ético e a construção da autonomia moral: “Então eles
veem que eu estou ali para ajudar [...] e é problematizando, não dando a resposta pronta”
(GA2P4).

[...] eu fico bem feliz, por exemplo, quando existe professor que dá abertura pra gente
falar, discutir, colocar algumas questões [...] enfim, problematizar algumas coisas.
(GA3E5)

Este aprender a decidir deve considerar que podem não existir respostas certas,
universais, nas relações em saúde, e que importa conhecer as subjetividades e contextos de cada
paciente para trilhar um caminho que seja compartilhado com o mesmo e com a equipe de
cuidadores. Aprender a decidir também ensina a considerar a decisão do outro nas relações.

[...] ele pegava o capítulo do livro, resumia aquele capítulo e jogava na tela [quadro],
e nunca nos fez uma pergunta, nunca nos questionou. Nós íamos para a prática e a
gente fazia exatamente o que estava descrito ali, mas como modelo! E não pode ser
um modelo, cada paciente tem uma particularidade, não pode aplicar da mesma forma,
e por isso, muitas vezes o insucesso na própria técnica. (GA2P11)
136

O estudante precisa perceber que ele, sozinho, não precisa deter todas as respostas
prontas e o professor precisa entender que essa aprendizagem passa também por suas atitudes
nas relações pedagógicas. Quando o professor se apresenta como o detentor de todo o
conhecimento o estudante tem dificuldades de compreender que o construir soluções em saúde
passa pelo compartilhamento de saberes.

A gente tenta entrar, a gente tem discutido muito sobre o processo de tomada de
decisão medica [...] não é uma questão de consentimento, é uma questão da decisão
ser tomada pelo interessado e você auxiliar ele, de fato, a você tomar a melhor
decisão para o indivíduo, para ele [...] isso é um processo com procedimentos bem
definidos para que você assegure que o sujeito, efetivamente, foi bem esclarecido e
que ele vai tomar a melhor decisão, claro que é sempre difícil, né? (GA4G1)

Evidencia-se que diante da pouca experiência de contextos democráticos no ensino


aprendizagem, no qual a busca por saber tudo, de forma isolada torna-se hegemônica, admitir
que se necessita do olhar do outro é uma memória pouco vivenciada na Educação em Saúde:
“eu fui aprender a dizer ‘não sei’ na residência! eu fui criada para dizer ‘eu sei tudo’ (GA2P4).
A forma que se enxerga o processo saúde-doença alijando a dimensão social da saúde, o
componente humano e sua realidade complexa, e neste sentido, quando a relação pedagógica
fecha-se à construção coletiva, ao diálogo, não há o que questionar poia a resposta ‘certa’ já
existe, já está pronta. Ressignificar o conhecimento e aprender a construir respostas em
conjunto são processos que demandam também aprendizagens emocionais pois implicam a
construção de novas atitudes.

Estar sempre problematizando, estar sempre muito presente, ter muito presente que o
processo é um processo de idas e vindas, se ele é de compartilhamento, eu também estou
aprendendo né.[...] o meu aprendizado disso, ele foi muito mais um aprendizado psíquico-
emocional [...] não que não tenha havido um aprendizado de conteúdo também, mas eu acho
que foi muito mais afetivo, emocional. (GA2P15)

Pensar o “ensino baseado no problema e a prática baseada em evidências” (GA1D2) é


uma orientação dos documentos analisados, sendo que os mesmos também colocam a
importância de que as decisões com base cientifica também sejam analisadas criticamente,
decisões que devem estar embasadas “em opções políticas e técnicas que corresponda aos
valores e princípios coletivamente eleitos e à possibilidade de autodeterminação dos sujeitos
individuais” (GA1D3).
Considerar valores evidencia-se como importante na tomada de decisão em Saúde, uma
decisão que não cabe somente ao profissional, mas também considera a autonomia dos
pacientes e a responsabilidade com a comunidade ao qual se insere. Neste sentido, convém
ampliar as possibilidades de reflexão crítica no ensino para que o futuro profissional aprenda a
137

considerar as dimensões humanas, sociais e éticas na tomada de decisão, além das políticas e
programas de saúde vigentes:

[...] a qualidade na atenção à saúde, pautando seu pensamento crítico, que conduz o
seu fazer, nas melhores evidências científicas, na escuta ativa e singular de cada
pessoa, família, grupos e comunidades e nas políticas públicas, programas, ações
estratégicas e diretrizes vigentes. (GA1D4)

Neste sentido, a evidência científica para a tomada de decisão não deve estar limitada
às produções positivistas da ciência. A compreensão sobre o processo de adoecer, o respeito às
necessidades e desejos do paciente, a compreensão sobre o cuidado, e a identificação dos
objetivos e responsabilidades comuns entre profissionais de saúde e usuários são elementos
essenciais a serem considerados, assim como os elementos culturais e de diversidade moral de
cada sujeito, em cada contexto.

[...] como você vai tratar um caso, por exemplo, vai atender uma pessoa trans, pessoas
religiosas [...] tipo maneira de fazer atendimento a pessoas que não vão aceitar aquilo ou
como você deve aceitar aquilo também né? Que eu acho que é uma coisa importante no
atendimento de saúde onde vai aparecer milhares de pessoas diferentes. (GA3E7)

As decisões em saúde necessitam de interação, participação e diálogo, para que o


gerenciamento e execução de ações não sejam definidos somente pelo profissional. Há uma
necessidade de aprender a tomar a decisão incluindo os envolvidos, aprender a oferecer opções
de cuidado compartilhado como uma forma de também melhorar a qualidade do serviço.
A importância de se ampliar os paradigmas teóricos para capacitar e qualificar o
estudante na tomada de decisão também passa pela necessidade de pensar a construção humana
e cidadã destes indivíduos. Independentemente da capacitação técnica, o estudante vai tomar
decisões, com base também nos valores que carrega.

Pra ele saber tomar decisões ele vai ter que recorrer aos seus valores, aos seus
princípios, quais princípios? Os que ele aprendeu ali também, entendeu? (GA2P4)

[...] é claro que ele tem que ter uma boa habilidade clínica, porque ele vai fazer muita
clinica mesmo, mas ele tem que ter discernimento das propostas que ele vai fazer para
o paciente que necessita daquele tipo de tratamento, então, muitas vezes, há um
desvirtuamento porque você pode introduzir a necessidade de uma técnica mais
refinada e que vai te trazer mais ganho, do que uma outra técnica, então eu acho que
esses espaços são importante. (GA2P11)

Decisões qualificadas, responsáveis e prudentes, necessitam de reflexão ética, reflexão


problematizadora, capaz de introduzir os distintos elementos e dimensões presentes no processo
de cuidar, o que é favorecido quando as análises são coletivas. Neste sentido, estar consciente
e vivenciar a dimensão ética do processo educativo se faz necessário, pois o dinamismo dos
contextos, a diversidade moral presente, exige um estado de alerta constante. O estudante, o
138

professor, o futuro profissional corre sempre o risco de decidir pelo outro, de tomar decisões
paternalistas que não sejam as melhores para o paciente, e esse processo pode ser inconsciente.

[...] não é que eles não sejam éticos, é que eles acabam ficando com o olhar muito
especializado [...] a visão um pouco restrita dessa questão do olhar integrado para a
pessoa e aí essas questões como o aspecto de autonomia, ou corresponsabilização, ou
que promove e permeia a ética são deixados de lado. (GA2P14)

A consciência da importância da tomada de decisão no processo de cuidado passa pela


compreensão profissional do que é a dimensão moral das relações humanas, a sensibilidade
para enxergar questões morais e possíveis problemas éticos: “Por que quantas vezes a gente
tem um problema ético de tomada de decisão que aquilo vai interferir totalmente na qualidade
de vida da pessoa, da família?” (GA2P1).

Que é a ideia de que a competência moral seja aquela competência... a capacidade do


indivíduo de realizar avaliações sobre problemas morais, tomar decisões e agir em
conformidade com os seus valores próprios, seus valores internos, ou seja,
basicamente exercer essa decisão autonomamente. Então, a rigor, principalmente na
área da saúde, eu tenho visto uma grande preocupação na capacitação técnica e a
ilusão de que essa técnica vai te dar sempre as soluções corretas do ponto de vista
moral – e em geral não vêem problema moral. (GA4G1)

A reflexão sobre os valores e crenças do paciente - sua moral e cultura - devem dialogar
com os conhecimentos do profissional. Estes conhecimentos, que nem sempre vão muito além
de questões procedimentais, deveriam possibilitar uma tomada de decisão conjunta, com
responsabilidades, portanto, compartilhadas. Neste sentido, nem o profissional e nem o paciente
tem sempre ‘a razão’. A saúde não deve ser racionalizada como uma mercadoria a ser vendida
a todo custo.

[...] os professores deixaram bem claro para o aluno que o que a paciente pede, hoje
ela pede, mas amanhã ela se arrepende. Então nós, que temos o conhecimento da
ciência, a gente tem que se posicionar e, às vezes, a posição significa perder o
paciente. (GA2P5)

A consciência da dimensão ética da educação de futuros profissionais de saúde traz a


consciência da responsabilidade sobre a tomada de decisão, uma responsabilidade que não é
limitada a pessoa sob cuidado, mas que adquire dimensões políticas, incluindo possibilidades
de transformação do mundo. O estudante tem que aprender a decidir não somente como
profissional, mas como cidadão capaz de influir politicamente nas estruturas das quais faz parte.
Um compromisso do processo ensino-aprendizagem de que a identidade seja fomentada em
todas as suas facetas identitárias.

[...] isso que eu acho que é a dimensão ética, é você se dar conta disso [...] de não
descolar a dimensão ética da dimensão política, da nossa formação como pessoas. Nós
139

sempre faremos escolhas, sempre, em todas as situações e é a depender das nossas


escolhas, nós vamos estar hierarquizando os nossos valores de um modo diferente.
(GA2P9)

Esse processo de decidir com consciência de todas as dimensões envolvidas e da


responsabilidade sobre as ações a serem tomadas, busca a autonomia moral dos estudantes, para
que ele possa responder aos problemas e dilemas de sua vida acadêmica, construindo sua
identidade.

Aqui a questão da produção técnica também entra como uma problemática visível: ‘O
aluno tem que fazer um retratamento, é meta dele fazer um retratamento, mas se o
paciente não quiser fazer diante das circunstâncias que a gente coloca a vontade do
paciente tem que ser respeitada. (GA2P5)

Essa busca por autonomia para tomada de decisão depende da superação do ambiente
acadêmico hierarquizado, no qual o estudante aprende a considerar mais as decisões do
professor do que fazer a crítica, questionar.

[...] os professores entenderem que eles não estão ali para dar a resposta certa, porque
os alunos vivem perguntando qual é a resposta certa e tem muitos professores de
Bioética que tem as respostas, ele tem resposta para tudo, e isso, seguramente, não
promove a competência do indivíduo pensar a questão moral para tomar uma decisão
autônoma sobre esse problema. (GA4G1)

Sem autonomia moral o indivíduo vai buscar algo que dite o que deve ser feito no
momento de dúvida. O pensamento dilemático, com base no certo e no errado e que não
consegue ampliar o olhar para as várias dimensões da saúde e do cuidado, e a falta de autonomia
moral para construir soluções coletivamente, podem limitar decisões a bases normativas como
são as legislações e os códigos deontológicos.
A construção da tomada de decisão ao longo de toda vida acadêmica deve ser pensada
para buscar a reflexão crítica e autônoma, incluindo os envolvidos na tomada de decisão e com
sensibilidade às diversas dimensões da saúde e das relações humanas. Acontece que, em grande
parte das vezes, o estudante aprende a decidir de forma heterônoma, embasado em
conhecimento técnico e especializado, em alguma pessoa - geralmente o professor, que seja
referência moral ou em bases normativas e legais. Uma decisão embasada em elementos
externos e acrítica, uma forma também de sentir-se menos responsável com os resultados da
decisão.

Isso é difícil, mas as vezes o próprio colega tá com tanta pressa que ele não quer
pensar sobre aquilo, ele quer que alguém diga o que fazer para que ele possa dizer: -
‘fiz porque ela fez’. E eu sou muito difícil pra esse colega, porque eu não sou essa
pessoa, tu vais fazer o que tu decidisses, e o que tu entendesses que deveria ser feito
dentro dessa lei. E eu digo, olha tem esse caminho, tem esse e esse [...] e a tua situação
é complicada aqui e ali [...] eu acho que deves considerar esses aspectos, dá pra
140

encaminhar, dá pra fazer? Dá sim, a vida não é assim, tem mil caminhos, mil soluções.
(GA2P4)

Quando a responsabilidade e a autonomia moral não são vivenciadas o processo


decisório pode ser extremamente difícil. A resposta mais comum é aquela à qual o estudante, e
também o professor, estão mais condicionados: a obediência. E é difícil quando não há o que
obedecer, o que seguir.

[...] é confortável existir um código de leis e que basta você seguir sem pensar muito,
acho que existe um certo conforto em preencher esse espaço com uma coisa
determinista assim, sem precisar entrar no conflito. (GA3E2)

A consciência da decisão é importante porque atrela a ela à responsabilidade do


profissional e do cidadão em construção. Quando a responsabilidade moral sobre os atos não é
trabalhada com consciência, a normativa se torna o horizonte, algo a ser buscado, e por vezes,
não por considerar a importância desse construto normativo para a profissão e para a cidadania,
mas por medo das consequências por não o seguir.

[...] eles tem até uma alegoria que é o ‘homem da capa preta’, teoricamente, pelo que
eu entendo, é uma metáfora do medo da judicialização né, do processo [...] mas que
isso não acontece né, tem vários estudos sobre isso também, se existe uma criação de
um vínculo, se existe a nossa ética ao explicar o que está acontecendo ou o que vai
acontecer ou porque isso está acontecendo, porque que tá fazendo exame, como é que
o exame vai acontecer né, o que que é para acontecer num exame ginecológico por
exemplo. Isso não é falado, isso é passado como ‘ah isso vocês já sabem, né? (GA3E5)

O diálogo, o respeito ao paciente, a transparência, parecem melhorar até as


possibilidades de resolução técnica, mas mesmo assim não são estimulados o quanto deveriam,
resultando em obediência preponderante à autonomia e à responsabilidade moral sobre as
decisões. O foco apresenta-se mais sobre as penalidades de uma ação do que na
responsabilidade moral sobre as mesmas, nesta pedagogia do medo, o paciente vira um inimigo
do qual se deve defender.

É muito na base da chantagem, do medo, do terrorismo e o tempo inteiro esse


argumento é evocado em dilemas éticos, parece que a ética dentro dessa lógica é
basicamente você se precaver do processo, então é você se salvaguardar a todo custo
– e existe até um termo pra isso já que é a medicina defensiva [...] e chamar isso de
ética é muito errado. (GA3E2)

O corpo acadêmico deve exercer a obediência às regras institucionais e profissionais,


além de refleti-las eticamente. A deontologia deve estar presente e ser compreendida como
necessária à regulação da profissão. Mas estas regras não se aplicam da mesma forma na
construção das atitudes, ela é o mínimo necessário, mas não são o máximo esperado para o
processo educativo. Definem condutas legais, mas não necessariamente éticas.
141

[...] claro que você tem que praticar, tem que ter prática clínica, a chamada produção,
mas se ele não faz nenhuma porque ele não fez? Se isso não interessa, se a resposta é:
- ‘tem que fazer e ponto!’. Aí já complica. (GA2P4)

As decisões em saúde quando não pensadas a partir de uma perspectiva ética, quando
não refletidas nas relações morais envolvidas acabam dando abertura à uma ‘tecnificação das
relações’ em que pese homogeneizá-las. Esse modelo educativo dificulta autonomia e a
possibilidade de construção da personalidade moral. Se tudo é igual não há confronto; se tudo
é limitado a protocolo e obediência, não há questionamento. O questionamento, o diálogo, são
apontados como ferramentas essenciais para a ética, pois ética é questionar a prática, refleti-la
e transformá-la. Ética é divergência permitida e não reprodução acrítica de ações.
Quando as decisões em saúde estão condicionadas pelo pensamento dilemático só é
possível enxergar opções de ações limitadas às práticas clínicas, embasadas nos paradigmas
educacionais ensinados como únicos, os melhores, sob a influência da técnica única, das
especialidades e do pensamento produtivista. O pensamento dilemático dificulta a compreensão
de que as respostas em saúde não devem ser únicas, universais, necessitam da inclusão do
contexto, da diversidade moral e da compreensão ampliada do significado da saúde, de sua
dependência das relações humanas. Ampliar a reflexão para além da dimensão técnica,
vivenciar as dimensões ética e política da educação em Saúde possibilita experiencias de
autonomia moral fomentando a construção da identidade.

4.3.3 A construção do eu-profissional como realização do fenômeno da dimensão ética da


educação superior em Saúde

As racionalidades vivenciadas e aprendidas no processo de ensino-aprendizagem


conformam os modos decisórios e as atitudes do indivíduo, fomentando sua identidade.
Trabalhar de forma consciente e vivenciando a dimensão ética da educação superior em Saúde
amplia o potencial decisório para além do dilematismo do sim / não, certo / errado. O espaço
institucional superespecializado restringe as possibilidades de considerar a diversidade de
olhares, podendo tornar-se bastante hierárquico, pois aquele que detém o conhecimento técnico
passa a deter o poder de decisão. Reduzir as decisões de cuidado em saúde à dimensão técnica,
biologista pode homogeneizar as relações, construindo profissionais com olhar limitado para
as questões contextuais, morais e políticas do processo saúde-doença.
A racionalidade aprendida baseia-se em uma instrumentalização do conhecimento, na
qual o mesmo não é fim em si, mas a internalização de um determinado saber hegemônico. A
reciprocidade fica à margem das relações de cuidado, alijando as dimensões morais e políticas
142

dessa construção, na qual o cuidado com o paciente não é um fim das práticas de ensino, mas
um meio para a reprodução de um protocolo, uma técnica, um saber especializado apreendido
como o melhor.
Educar profissionais de saúde capazes de problematizar suas decisões e ações,
incluindo os envolvidos no cuidado, com consciência dos valores e interesses presentes nas
relações sociais e humanas e sensibilidade aos problemas morais pode ser uma forma de
também melhorar a qualidade dos serviços de saúde, auxiliando uma corresponsabilização dos
mesmos. A construção do eu-profissional, portanto, deve incluir o ensino-aprendizagem ético
e a reflexão crítica possibilitando o desenvolvimento de sua autonomia moral e fomentando o
sentimento de dever e responsabilidade moral por suas decisões e atitudes. Pensar a construção
da personalidade moral a partir da identidade profissional passa por repensar o sentido da
Universidade e seu potencial de preparar cidadãos capazes de influir e transformar a realidade
sanitária do país.

4.4 SIGNIFICANDO A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DO


TRABALHADOR DA SAÚDE POR MEIO DO CUIDADO HUMANIZADO, DA
INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO-COMUNIDADE E DA EDUCAÇÃO
INTERPROFISSIONAL.

Pensar a dimensão ética do processo educativo é pensar sobre como favorecer a


passagem da situação de heteronomia moral com que o estudante chega na Universidade para
uma capacidade de autonomia moral. Este caminhar é paralelo ao construir-se cidadão no
contexto da Universidade, no qual a responsabilidade social deve ser também incorporada.
Ambos os percursos, de decisões autônomas e de cidadania, apresentam-se nos dados como
missão da Universidade e se fortalecem com a conscientização da dimensão ética da educação.
Deste processo transcende um campo de aprendizagem que objetiva construir um trabalhador
da saúde, fundamentado no aprender a cuidar do outro e da comunidade, específico da
Educação Superior em Saúde. O modo como vem se construindo este trabalhador e as
possibilidades para que esta construção esteja fundamentada no ensino-aprendizagem ético por
meio das estratégias de humanização da educação e do serviço em Saúde, do ensino-serviço-
comunidade e da educação interprofissional, são aspectos apresentados nas subcategorias a
seguir.
143

4.4.1 Humanizando os processos de cuidado

Aprender a cuidar do outro parece condicionado pela presença de um ensino-


aprendizagem que considere a humanização das relações (sejam elas as do âmbito educativo,
sejam elas do âmbito assistencial). Uma educação que seja “promotora de saúde e voltada para
o cuidado humanizado e integral dos indivíduos, da sua família e da sua sociedade” (GA1D2).
Esta busca por uma humanização do trabalho em saúde apresenta-se fundamentado na
aprendizagem de determinados valores que embasem as decisões e ações de cuidado, fazendo
com que a humanização seja evocada como uma forma de construção moral intencional dos
indivíduos.
O cuidado humanizado passa por conseguir compreender o outro também na sua
dimensão moral, conseguir enxergar as questões morais e sociais presentes, um cuidado
também embasado na compreensão de mundo do cuidador e nas experiências próprias de
cuidado.

Eu acho que se a Universidade estimulasse mais eu acho que tiraria isso, tanto de você
se impactar negativamente, de se assustar com o que vê [...] geraria uma empatia. [...]
eu acho que falta uma compreensão de ‘poxa, mas ela não pode trazer os filhos
juntos?’, ‘vamos tentar ver isso’, mas é tipo: ‘ah a paciente faltou porque não tem
dinheiro para passagem, que saco!’, poxa, então não sei [...] será que não tem como
conseguir uma carona, ou vamos tentar pensar em algo [...] eu acho que se a pessoa
se colocasse no lugar, sabe? (GA3E10)

Refletir sobre os modos de pertencer à Universidade, as relações construídas, assim


como os saberes e atitudes e suas implicações no plano institucional fazem parte do processo
de pensar a humanização dentro da academia e que refletem na identidade a ser fomentada. Os
modos de ser e de fazer em grupo são questões a serem trabalhadas no cotidiano acadêmico e
que constroem a humanização nestes espaços, uma humanização que não deve prescindir da
reflexão ética.
Na realidade universitária a humanização tem sido pensada na relação profissional-
paciente, na qual o estudante é “ensinado a atender bem, o que não significa que ele perceba o
problema ético quando aparece” (GA2P1), o que pode ser um resultado histórico do não
trabalhar a dimensão ética da educação em Saúde de forma consciente, e cujo próprio
significado de humanizar fica pouco compreendido.

[...] deveria ser parte inerente do exercício profissional [...] que é a capacidade de se
comunicar, a capacidade de compreender o outro, de empatia. O que as pessoas tem
hoje, de uma maneira geral [...] é a total objetificação dos teus pacientes [...] sobre os
quais ele deve fazer alguns procedimentos etc. e tal [...] e sem valorizar, sem
compreender a experiencia do humano, ou seja, tem que dar uma solução técnica para
o problema e eu acho que isso leva a um exercício ruim, eu não compreender que nem
144

sempre uma solução tecnicamente apropriada seja efetivamente a melhor para o


paciente. (GA4G1)

O trabalho desumanizado em saúde tem, dentre seus condicionantes, a redução da


importância da reflexão ética no trabalho em saúde, o que pode resultar em ações que perdem
a essência do cuidado, reduzidas às competências técnicas do profissional.

[...] eu acho que a primeira coisa tu tens que se sensibilizar para aquilo, aquilo tem
que fazer parte da tua atuação profissional. Porque senão eu chego lá, passo uma sonda
vesical perfeitamente, o paciente não contamina, ele vai responder bem clinicamente,
mas posso mal e mal olhar para a cara da pessoa [...] é problemático, são atitudes que
tu tens que desenvolver. (GA2P1)

Este processo pode ser reforçado pela visão de ‘sucesso profissional’ fomentada no
Ensino Superior e reforçada pelo corpo acadêmico, uma visão de futuro profissional que se
constrói no imaginário do estudante. Há contradições que entram em evidência ao pensar no
perfil profissional almejado pela Universidade. Os perfis profissionais são colocados como
modelos e existe uma hegemonia de qual modelo deve sobressair-se:

[...] tem uma clareza da maioria dos professores de que o objetivo aqui é formar o
farmacêutico pesquisador, e que o farmacêutico que sai daqui para trabalhar na
farmácia, que é a realidade, é fracasso. (GA2P3).

As atitudes a serem fomentadas na socialização profissional são apreendidas por meio


dos paradigmas e racionalidades vivenciadas na academia, mas principalmente nos modelos
profissionais que influenciam os estudantes neste percurso. As dificuldades de incorporação da
reflexão ética aparecem nestas aprendizagens, nas quais a compreensão do processo saúde-
doença conduz a práticas de ‘não-cuidado’, práticas identificadas como fonte de problemas
éticos, podendo conduzir a construções morais disjuntas da reflexão ética.

Eu sempre brinco que aqui não deveria se chamar Centro de Ciências da Saúde,
deveria se chamar centro de ciências de doença, porque aqui ninguém ensina saúde,
você ensina a doença na verdade, não é nem prevenção [...] tu não ensina nada de
humanidades, tu não ensina como tratar com as pessoas e tu dá um caminhão de
doenças para as pessoas decorarem, tu entendes, essa é a tônica. (GA2P10)

Uma educação que almeja a autonomia do indivíduo a ser cuidado, acaba também
conduzindo a relações com a equipe profissional, com a família e comunidade. A
transversalidade da humanização que deve operar nos coletivos, com fluxos materiais e
imateriais da rede de assistência à saúde também se fortalece ao ser pensada nos processos
pedagógicos e cotidianos da Universidade.

Como que você discute que você é profissional da saúde, formado, cheio de
conhecimentos e tal [...] tem que ouvir o que o teu paciente semianalfabeto espera,
expectativa dele, e que a opinião dele também é importante para definir o processo de
145

atenção à saúde dele. Não adianta você dizer isso para o seu aluno se o seu aluno tem
como base de valor de que ele vale mais do que o outro. A maioria das coisas são
muito difíceis de trabalhar. (GA2P3)

Uma das formas de fomentar o cuidado humanizado na educação dos futuros


trabalhadores da saúde é compreender que o estudante precisa vivenciar este cuidado durante
seu percurso acadêmico. As relações pedagógicas precisam também serem relações
humanizadas. Evidencia-se que o estudante reconhece muitos dos espaços acadêmicos como
violentos e os espaços de humanização são pontuais.

[...] porque se tu for olhar o nosso curso, nós temos disciplina que é desenvolvida
numa sala, que eles sentam no chão, ela é toda colorida, e lá eles colocam os
problemas deles, os professores dão subsídios e dão apoio os problemas deles que eles
vivenciam no dia a dia, que eles enfrentam na formação. Nós temos disciplina de
saúde, sociedade e violência, sexualidade, a gente tem várias disciplinas que elas [...]
por isso que a maioria dos professores tem essa visão humanizada essa visão da
importância da subjetividade. (GA2P1)

As relações que valorizam as subjetividades do outro e constroem possibilidades de


atuação mais individualizadas e contextualizadas também são necessárias ao corpo docente. O
ensino-aprendizagem do ato de cuidar necessita vir acompanhado da vivência do ser cuidado
em uma perspectiva de atenção e disponibilidade, escuta e apoio, reconhecendo que o bem estar
na vida acadêmica é condição e também prerrogativa do fazer docente.

[...] é o tipo de professor que diz que: - ‘se o aluno está com problema não pode fazer
nada, porque isso aqui não é clínica, não é terapêutica [...] aqui eu preciso de pessoas
que estejam bem, se não tiver bem não venha’! Eu ouvi tudo isso, eu presenciei
atitudes impensáveis, mas elas foram tão pontuais e quando eu fui conversar, essa
pessoa tinha filho com problema [...] ela estava num processo assim ‘com o meu filho
eu tenho que me virar, então o aluno que se vire’ [...] mas assim, é o que eu consigo
ver. (GA2P4)

O cuidado humanizado depende da vivência de valores que gerem atitudes embasadas


na compreensão das diferentes dimensões do humano. Essas atitudes para serem fomentadas
em todas as relações e âmbitos universitárias necessitam da tomada de consciência da dimensão
moral das relações e do processo pedagógico.

Você percebe que talvez essa relação social seja mais evidente dentro de algumas
especialidades técnicas, deixando algumas especialidades mais conservadoras que
outras [...] eu acho que entra extrato econômico e entra esse fazer, o que a pessoa faz,
o quanto ela lida com esses elementos do ser humano vai interferir moralmente [...]
o estudante, a estudante está se desenvolvendo moralmente independente do
professor. (GA2P2)
146

O processo de se tornar trabalhador da saúde tem, de forma generalizada, levado a uma


dessensibilização em relação às dimensões sociais, entre as quais a moral, visto que o perfil
profissional almejado não é o que prioriza o outro no processo de cuidado.

De uma maneira geral há uma negligência no aspecto da formação mais [...] mais
humana do indivíduo. [...] já vi professor falando maravilhado que na recepção dos
pacientes de determinado hospital, que, agora, se tem tudo automatizado, ‘livre do
viés humano’! Eu acho que ‘é fria’. (GA4G1)

A tomada de consciência social e política no trabalho em saúde, o reconhecimento da


cidadania nesse conhecer a realidade social e da rede de atenção à saúde são formas também de
trazer a humanização para dentro da Universidade. Um percurso de construção das facetas da
identidade.

Por exemplo, eu posso estar falando em desigualdade social o quanto for, que é
diferente deles fazerem aquela atividade que eu peço na primeira fase deles irem
entrevistar pessoas de margens sociais, e aí eu acho que é chave: o contato com o
humano é algo que humaniza. (GA2P2)

Pensar a humanização do trabalho em saúde também é pensar práticas de cidadania, nas


quais o trabalhador da saúde deve ser atuante na contingência do seu trabalho e da própria
construção da sociedade. A humanização do cuidado é apresentada como uma interface da
educação em valores na Saúde, na qual a construção cidadã e a responsabilidade sobre a
autonomia e participação de todos os envolvidos no processo de cuidar e ser cuidado são
valorizadas. O potencial da humanização pode ser melhor explorado na medida em que também
se considera a dimensão ética do ensino-aprendizagem e suas aplicações no ato de cuidar do
outro.

4.4.2 Tornando-se trabalhador-cidadão por meio da integração ensino-serviço-


comunidade

Há uma percepção que o ensino-aprendizagem ético em Saúde necessita da construção


democrática e da compreensão da saúde como um direito. Os valores que constroem as ações
participativas, de inclusão do outro no processo decisório e fundamentam o direito à saúde
como constitutivo e irredutível da identidade cidadã reforçam-se na aprendizagem e vivência
do ideário do sistema público de saúde brasileiro. Neste sentido, o SUS e os paradigmas da
Saúde Coletiva que fundamentam a integração ensino-serviço-comunidade são percebidos
como meio e sentido do ensino-aprendizagem ético em Saúde, mas ainda pouco valorizados.
147

Então eu sinto falta, mas com essas disciplinas da Saúde Coletiva eu sinto que existe
esse olhar mais sobre a comunidade, sobre o olhar sobre o outro, o cuidado, a empatia
e os projetos de extensão, mas tem que partir de ti assim, de se envolver nisso para
que você tenha essa olhar. (GA3E8)

A dimensão ética da educação superior em Saúde passa então pela aprendizagem que se
tem a partir da dimensão social da Educação e que ganha fundamentação e vivência nas
Ciências da Saúde Coletiva. Quando o corpo acadêmico reflete sobre sua construção moral e
ética os constructos da Saúde Coletiva são visualizados como capazes de articular a relação
entre saúde, comunidade e a dimensão moral da sociedade.

[...] um professor da Saúde Coletiva, a gente já tem essa valoração porque a gente foi
formado assim, a gente estuda demais para entender o indivíduo muito além da boca,
da carie dentaria, é saber porque ele chegou ali, entender o que determinou a vida
dele, o que ele dá de valoração, é um outro olhar. (GA2P13)

[...] não tem como, se você não tem valor, se você não sabe compreender as relações
em sociedade e você não entender o que é isso, acho muito complicado você ser um
bom profissional, você vai ser técnico. (GA2P13)

Os valores morais que embasam as ideologias de cunho neoliberal disputam priorização


com os valores da Saúde Coletiva, que considera a saúde um direito de cidadania. Tais conflitos
éticos se refletem na construção do caráter do estudante e, portanto, em sua identidade,
particularmente no âmbito do eu-cidadão e eu-trabalhador da saúde.

É que a gente tem que perceber que o capitalismo não é o modo de produção mais
ético que a gente conhece né, para essa produção desenfreada, para essa lógica de
lucros, de ter que ganhar a qualquer custo, ser o melhor [...] toda essa lógica que deriva
né, dessa condição [...] na verdade tu produz uma sociedade com, o que eu chamo de,
flexibilidade ética [...] funciona para mim, mas não funciona para ti, e tu gera uma
lógica totalmente capenga para ti justificar quando tem coisas injustificáveis.
(GA2P7)

Atualmente tenho muita resistência à generalização, quando a gente fala Universidade


de uma maneira geral a gente está responsabilizando à todos que estão dentro da
Universidade, o que faz com que a gente desonere de culpa as forças que estão dentro
da Universidade, que estão na sociedade e que são hegemônicas, no sentido de resistir
a esse chamado. E, ao mesmo tempo, onere forças que, às vezes, estão lutando para
que isso aconteça. Você tem as forças atuando para os dois lados, e aí para que lado a
gente vai tem muito a ver com o que acontece nos micros espaços políticos, tanto de
uma consulta quanto de uma sala de aula. (GA3G4)

A conexão entre o perfil profissional almejado à construção de um profissional-cidadão


é tensionada pelas disputas construídas ao redor da missão da educação superior em Saúde,
onde as demandas do mercado de trabalho têm um papel hegemônico: “A análise reflexiva do
panorama atual aponta, como alvo preferencial o mercado de trabalho [...] e deve servir de
indicador para as alterações que se fazem necessárias” (GA1D2). Este sentido da educação
superior conduz as possibilidades educativas à uma finalidade mercantilista.
148

O não trabalhar conscientemente com a dimensão ética da educação superior em Saúde


fragiliza as possibilidades de percepção, diálogo e de transformação dos objetivos e práticas na
construção de trabalhadores da saúde. Isso limita as possibilidades de transformação à esfera
normativa, com pouco resultado no cotidiano das relações e tomadas de decisões.

Antigamente as nossas diretrizes eras completamente embasadas nos métodos


biológicos e curativistas né, agora, essa hoje, se volta para a atenção primária, de
promoção, de prevenção em saúde sabe [...] mas isso ai também não é uma coisa [...]
de que é porque a diretriz mudou que as coisas vão mudar né, nós temos um longo
tempo pela frente ainda, o mesmo acontece com a forma de ensino né, a forma de
ensino começa com a transmissão e ainda hoje a gente sabe que tem muito ainda dessa
transmissão né [...] e a gente quer um estudante com participação ativa nesse processo.
(GA2P6)

Neste contexto de reducionismo da missão universitária, o ensino com objetivo de


atender os ditames do mercado não necessita fomentar indivíduos que saibam pensar
autonomamente e que tenham capacidade de reflexão ética. Essa disjunção é presente e a
incorporação da aprendizagem ética neste tipo de ensino passa a ser justificada também pela
racionalidade da finalidade de resposta ao mercado de trabalho. Este papel reduzido da
Universidade posiciona a dimensão política, a transformação social, os conhecimentos
provindos da Universidade, como percursos de menor valor quando não trabalham na lógica
das relações capitalistas.

A exigência do mercado mudou, e hoje a gente não precisa, não quer só, o indivíduo
puramente técnico até no mercado né [...] porque a inovação, as mudanças são tão
grandes, que você precisa ter alguém que saiba pensar.... porque passar por dentro da
Universidade e não aprender a pensar é um caos, mas isso acontece. Então você
precisa aprender a ser crítico, reflexivo e ético para se deparar com essas situações de
inovação, de mudanças que são acontecimentos constantes na nossa sociedade.
(GA2P6)

[...] eles têm muito financiamento da indústria farmacêutica local, eles formam para
um perfil de farmacêutico industrial e pesquisador. Falar que o farmacêutico vai
trabalhar no SUS – um pouco de farmácia hospitalar eles ainda respeitam, mas assim,
no SUS, atenção básica ou trabalhar em farmácia comercial [...] eles não formam para
isso. (GA2P3)

Hoje a gente tem uma quantidade grande de bons alunos que vão fazer medicina da
família, o perfil está mudando [...] antigamente quem ia fazer essa área de saúde
pública, ou era ideologicamente comprometido – pessoas de ‘esquerda’ ou eram os
alunos que não tinham passado na residência [...] a medicina tinha, então, um
preconceito com quem trabalhava na prefeitura, tipo assim, era o pior emprego de
todos... e era um preconceito dos dois lados: porque ou era o pessoal da esquerda ou
era o pessoal que não estudava [...] tu entendes? (GA2P10)

Responder às demandas do mercado torna-se o propósito maior, excluindo a


legitimidade de se pensar o próprio sistema público de saúde brasileiro, gerando mais
contradições do que complementariedades educativas. Na ausência de se discutir coletivamente
149

o papel social da Universidade, os interesses que lhe atravessam e seus correspondentes


modelos educativos têm traduzido a busca da educação superior em Saúde a uma escolha entre
ser trabalhador do setor público ou privado. É a instrumentalização desse processo, que acaba
sobrepondo-se ao objetivo de aprender a cuidar.

[...] ele falou assim: - ‘Não, professor, eu vou discordar do senhor. Eu tenho que
ensinar para eles o que existe de melhor, qual é a ponta do conhecimento, isso que eu
estou ensinando-os a prescrever. Se vai estar disponível no SUS, se eles vão poder
comprar, se eles vão roubar para conseguir, isso não é problema meu. O meu problema
é prescrever o que existe de mais avançado’. E aí, mais uma vez, eu falo que essa é
uma triste compreensão da atuação como médico, e pior, passa para os seus alunos.
Porque o ato profissional se esgota simplesmente no prescrever alguma coisa.
(GA4G1)

Por outro lado, a gente tem que pensar também, que a construção desses modelos, no
âmbito da saúde, ela se dá em outras esferas, não só o mercado. O mercado dita,
porém, as corporações também têm suas regras, e as corporações nessa
retroalimentação com o mercado é que acaba definindo os modelos. Mesmo com toda
a intervenção do Estado, digamos, sobre as profissões, ainda assim a gente não
consegue, por exemplo, ter hoje um modelo de formação profissional para o SUS,
primeiro porque a gente ainda está num modelo não só biomédico, mas é um modelo
médico-centrado, ainda a profissão médica com as suas especificidades dá as normas
de como se estrutura todo o sistema de saúde, mesmo no SUS. (GA2P9)

Estas contradições são mais visíveis na disparidade de abordagens de cuidados que o


estudante se percebe aprendendo dentro e fora da Universidade. Quando o paciente é atendido
na clínica escola da Universidade, a depender do professor que atua, sua dimensão social é
excluída do processo de cuidado em saúde. Quando é o estudante que vai à comunidade, essa
aproximação ao contexto fica facilitada.
[...] de ter contato direto com a comunidade e a partir disso a gente começa a ter na
clínica né... da nona para frente. Mas é diferente, se a gente quiser continuar atendendo
um paciente na clínica, a gente consegue, não necessariamente a gente tem esse olhar
tão zeloso, tão cuidadoso com ele, até porque é uma coisa que os professores não [...]
não necessariamente todos, colocam, de ‘vamos sentar’, ‘vamos conversar’, ‘vamos
entender aonde esse paciente está inserido, de onde que ele vem’. (GA3E8)

[...] acha que vai deixar de comprar comida para comprar uma escova de dente! Isso
é a realidade hoje em dia, mas não é, na realidade deles, algo que seja possível. É
muito fora do nosso alcance. Então eu acho que se tivesse mais inclusão nossa, nesses
aspectos, de choque de realidade, de chegar e tu ver que tem esgoto a céu aberto, de
gente que tem buracos de bala nas janelas, eu acho que isso dá aquele choque, sabe?
De ver o que acontece fora daqui. (GA2P9)

Trazer a dimensão social e moral para o processo de construir-se trabalhador da saúde


também auxilia no desenvolvimento da qualidade de trabalho em saúde, haja vista que o
cuidado é percebido para além da dimensão biológica.

Independentemente da especialidade escolhida pelo indivíduo, os alunos que


passaram pela aprendizagem baseada em comunidade tinham uma maior capacidade
diagnóstica, solicitavam menos exames, eram educadores na consulta e se colocavam
no papel de cuidadores e não só de prescritores. [...] E o que mudou: mudou que você
150

deu uma dimensão a mais para o paciente, que é a dimensão social dele. (GA2P12)

Considerar a sociedade nas decisões de cuidado em saúde tem o potencial de


aprendizagem ética na medida em que também possibilita trazer a responsabilidade social para
o trabalho em saúde. Assim, a relação entre o sistema de educação superior e o sistema púbico
de saúde promove uma aproximação da Universidade com a sociedade e da construção do
trabalhador da saúde como agente de cidadania.

Porque eu acho que ainda se consegue fazer aqui uma conscientização social pelo
menos, não de todo mundo, obvio que não [...] mas existe enquanto estudante pelo
menos, um compromisso social...[...] tu parte do princípio que essa é uma sociedade
injusta, onde tem gente que morre de fome [...] e isso deveria ser inconcebível, como
é que tu aceita? Eu estou numa área que a minha profissão é salvar a vida dos outros,
mas eu aceito que as pessoas passem fome, então é uma contradição, deveria ter uma
consciência social. (GA2P10)

[...] acho que faltam professores que tenham essa consciência de que a gente é
responsável por esse serviço e por atender pessoas que não têm e não vão ter esse
acesso, e mesmo que a gente não atenda exclusivamente essas pessoas, mas que a
gente vá ter um dia [...] e de responsabilidade social, porque é isso, falta essa
integração. (GA3E5)

A aproximação entre a educação superior em Saúde e a realidade social traz a


necessidade de reflexões sobre os valores e moralidades presentes na sociedade. O ensino-
aprendizagem ético possibilita que essa reflexão resulte não em conformações, mas em
transformações sociais e políticas.

Quando a gente pensa, tudo está acontecendo e a educação ética está acontecendo, a
formação... então, até que ponto ela é crítica, tá sendo embasada, fundamentada,
discutida como um desejo coletivo, com alguns princípios né, uma formação para
cidadania, para a civilidade? Não, mas porque eu acho que retrata a sociedade.
(GA2P8)

A ponte entre Universidade e sociedade é compreendida como uma forma de ampliar


a educação tecnicista: “Eu também penso muito nos projetos de extensão, acho muito que eles
vêm para agregar nesse sentido, porque a minha formação, em si, tem sido muito técnica”
(GA3E8).
O próprio papel da Universidade em pensar os rumos da sociedade pode ser
contemplado quando se constrói uma educação que seja promotora de saúde, voltada para
realidade da população brasileira, capaz de trazer a reflexão crítica sobre os problemas da
sociedade e buscar soluções para os mesmos. Conhecer e intervir no processo de viver, ser
saudável, adoecer e morrer, individual e coletivo, trazem a necessidade de responsabilidade e
compromisso com as transformações socioambientais, com os direitos humanos, a cidadania e
a promoção da saúde.
151

[...] em primeiro lugar uma visão ampliada do processo saúde-doença, dos


determinantes sociais, então aí já traz toda uma sensibilidade para a questão da
comunidade, do aspecto da família, da cultura, aonde a saúde e doença se produzem.
A questão do processo mais fortemente estabelecido de integração ensino serviço, dos
cenários de prática, de levar os estudantes cada vez mais cedo para dentro dos serviços
de saúde e fazer uma formação e uma vivência que não seja só do aspecto biológico,
do patológico, mas muito mais amplo de como funciona o sistema de saúde, a gestão
do sistema. (GA3G4)

Neste sentido, a potência da educação de trabalhadores da saúde para a transformação


social passa pela “expansão do objeto do ensino, que não deve ser apenas a doença já instalada,
mas a produção social da saúde como síntese de qualidade de vida” (GA1D2).

Quando você dá a dimensão social para o paciente você também tá dando uma
perspectiva epistemológica de concepção de saúde-doença modificada. Então muda
tudo: concepção de doença, de homem e de sociedade e de mundo, então muda isso
tudo no estudante. Porque muda minha concepção de saúde-doença quando eu
começo a mudar a minha concepção de mundo. (GA2P12)

As concepções de saúde trabalhadas ao longo do curso e que fundamentam as ações de


cuidado são o cerne de como o estudante e o professor vão construir os significados da
profissão, as possibilidades de encarar o seu papel como agente transformador. Trabalhar com
a dimensão ética da educação exige um processo contextualizado, de forma a evitar a
“esquizofrenia, do ponto de vista da realidade, que alguns professores tem” (GA2P3) e que
podem pensar a construção de trabalhadores da saúde de forma disjunta do trabalho que ele
poderá prestar à sociedade.

[...] eles se abstêm, se dão ao luxo de se abster das questões sociais. Acham que a
filosofia, a antropologia, a sociologia não são da nossa alçada. A gente tem que tratar
de órgãos e é isso... o que, para mim, é a resposta para a nossa falha enquanto
profissionais de saúde com tudo: com indicadores, crescimento exponencial de
doenças crônicas, enfim [...] acho que é isso. É não fazer essa associação com o estilo
de vida ou como escolhemos nos organizar em sociedade e o que isso impacta na
saúde. Quais são os determinantes para a saúde da pessoa que a gente está atendendo.
Não existe essa noção. (GA3E5)

[...] tem um descolamento com a realidade da sociedade. Às vezes eu enxergo isso.


Os professores até para discutirem uma dimensão ética, social, tem uma dificuldade
porque tem um descolamento do que é a própria realidade do farmacêutico [...] no
geral, se você pegar o conjunto das atividades que os alunos estão expostos, que eles
precisam cumprir e tudo mais, eu diria que não é voltado nem para a formação do
profissional, esse que precisa ser formado para a realidade social aí, isso falando das
redes farmácias, comerciais [...] SUS aí mesmo que nem pensar [...] ou dos hospitais
[...] é muito focado na indústria – que é uma minoria absoluta que vai conseguir vaga,
[...] então é completamente fora da realidade. (GA2P3)

Este descolamento da realidade também se reflete na conformação da estrutura


universitária, até da extensão, que, originariamente deveria ser o ‘centro’ dessa relação com a
sociedade. Relacionar-se com a sociedade por meio do sistema público de saúde faz parte das
atribuições da educação superior em Saúde: “A Universidade vem assim se revendo, e
152

atualizando respondendo de modo eficiente às demandas sociais do setor Saúde, e participando


de maneira construtiva, consequente e solidária do SUS” (GA1D2), de modo que as construções
das ações educativas devem estar embasadas “em Políticas Nacionais para a qualidade da
formação e integração com o SUS” (GA1D3). A questão é tornar essa atribuição que é instituída
na Universidade um objetivo cotidiano da construção profissional. A dimensão ética da
educação dá sentido a essa atribuição na medida em que exige também a construção cidadã de
seu corpo acadêmico.

Eu acho que a noção de cidadania, de direitos – que todo mundo têm direitos, a
equidade... acho muito difícil trabalhar a equidade, por exemplo, na sociedade atual
[...] porque contradiz a meritocracia que tá muito forte [...] e esses valores são
basilares assim, se você acredita que tudo é meritocracia na vida, como você discute
direito à saúde? (GA2P3)

Essa construção de cidadania que também fundamenta o trabalho em saúde encontra no


contexto do SUS a participação política encorajada por meio da participação das “estruturas
consultivas e deliberativas do sistema de saúde” (GA1D7). O próprio SUS e sua estrutura
democrática é ferramenta essencial para a construção de cidadania participativa: “Construção
participativa do sistema de saúde, de modo a compreender o papel dos cidadãos, gestores,
trabalhadores e instâncias do controle social na elaboração da política de saúde brasileira”
(GA1D5).

A nossa escola é o SUS né, a gente aprende como é o serviço de saúde com o SUS
[...] claro, não é que ele não possa ter um consultório particular, ele pode ter, tem
direito de ter, mas não existe essa preocupação de se perceber parte da formação desse
sistema público e da convivência. (GA3E5)

O desenvolvimento da cidadania por meio do serviço de saúde constrói o caráter do


corpo acadêmico, uma construção moral cotidiana, capaz de fomentar cidadãos responsáveis
com a sociedade e com a própria Universidade.

Que nem agora assim, será que agora vamos perder a Universidade pública? Com
tudo tão pronto [...] a gente vê colegas defendendo a privatização da gestão! Quem
que vai defender essa Universidade Pública? Mas de repente começa uma
movimentação aqui e ali e a gente resiste! Eu não sei te dizer como que faz o
desenvolvimento moral, mas eu acredito na mudança da sociedade. (GA2P4)

[...] a resistência é muito importante, faz parte do nosso mandato porque nós somos
funcionários públicos, não é do governo, nós somos funcionários do Estado e na
Medicina e na Odonto, principalmente, ela tá ligada umbilicalmente ao Sistema de
Saúde que também está sendo destruído. Então tudo isso daí é parte, acho que é
obrigação e claro que nós vamos de forma resiliente e com resistência manter dessa
maneira. (GA4G2)
153

O processo de construir-se trabalhador da saúde por meio da integração ensino-serviço-


comunidade parece dar meio e sentido para a educação de indivíduos que assumam sua
responsabilidade social. Uma construção capaz de estimular a reflexão sobre a realidade social
e sobre as possibilidades de compreender a saúde como um direito, um processo que envolve
reflexão crítica e ensino-aprendizagem ético na medida em que estimula uma atuação
consciente sobre a responsabilidade profissional e cidadã. Neste sentido, a integração ensino-
serviço-comunidade é um meio propício para uma vivência de valores que constroem a
identidade do estudante.

4.4.3 Almejando a qualificação do trabalhador da saúde por meio da educação


interprofissional

O desenvolvimento do “eu-trabalhador da saúde” exige a compreensão da sociedade e da


cidadania para que o mesmo atue em prol da melhoria da qualidade de vida da comunidade.
Essa faceta identitária também demanda que o processo pedagógico não ocorra de forma
isolada, em que o aprender a cuidar desenvolve-se com pouca ou nenhuma troca entre as
diferentes profissões da saúde.

Porque eu sinto que a Universidade ainda é muito departamentalizada [...] se você vai
para qualquer hospital, para qualquer UBS, você vai atender qualquer pessoa, você
vai ter um milhão de profissões diferentes e todas elas tentando prestar um serviço
parecido, ou semelhante, e você não sabe como conversar com os outros profissionais,
não sabe o que eles aprenderam [...] eu acho que é a coisa que talvez mais falte em
qualquer Universidade, é essa interdisciplinaridade. (GA3E6)

A educação interprofissional é uma estratégia pedagógica que implica no aprendizado


para o trabalho colaborativo entre distintas profissões da Saúde. Uma atuação mediada pelo
respeito ao papel de cada um dos profissionais envolvidos e pelo diálogo que colaboração na
equipe e que auxilia no ensino-aprendizagem ético, na busca do melhor cuidado possível para
os usuários e para a comunidade

A educação interprofissional eu entendo como uma ferramenta que possa alimentar


esse espaço da dimensão ética do ponto de vista mais metodológico, não do ponto de
vista só teórico, ele é teórico metodológico né, vai te dar ferramentas também para
mexer nesse espaço, transformar o espaço de educação num espaço diferente, onde os
muros podem ser derrubados ou devem ser derrubados, onde o diálogo precisa existir,
onde os espaços se constroem a partir de determinados consensos e não de lutas de
vencidos e vencedores, onde a construção se faz compartilhada, e essa não é uma
realidade que a gente vive hoje, mas é um potencial que temos para criar essas brechas
para mudar a educação. (GA2P9)
154

Além da qualificação do processo educativo, observa-se a possibilidade de que a


educação interprofissional também auxilie na formação de trabalhadores da saúde com um
olhar mais integral sobre o indivíduo/família/comunidade a serem cuidados.

Então continuamos ainda formando pessoas que só enxergam aquilo que entendem
como seu núcleo de trabalho e a gente esquece que a saúde é um grande campo de
conhecimentos, de práticas e que esse trânsito deveria ser muito mais fluido entre as
profissões e isso me parece que a ferramenta da educação interprofissional poderia
ajudar. (GA2P9)

A principal intenção da educação interprofissional é a melhoria da qualidade da


prestação de cuidados de saúde, em que o uso otimizado das habilidades e conhecimentos de
todos os profissionais de saúde, trabalhando colaborativamente em equipe, fornece cuidados
integrados sobre os quais o paciente mantém o controle.

Atuação interprofissional de certa forma amplia a capacidade resolutiva dos


profissionais, só desse ponto de vista ela já serve como um elemento indutor de uma
formação ética porque rompe um pouco a questão da formação por partes – aí
imaginando o indivíduo como uma sequência ou uma somatória de partes, o que ele
não é, e coloca o indivíduo como um todo como objetivo de formação. Então só esse
aspecto já dá uma enorme contribuição no processo de informação desse aluno.
(GA4G3)

A potencialidade da educação interprofissional de melhorar o sistema e o cuidado em


saúde não se limita à ampliação da percepção do indivíduo não fragmentado por especialidades
da Saúde. A diversidade presente pelas diferentes profissões e pela pluralidade moral de cada
profissional é propícia para o trabalho da ética e da cidadania na educação de profissionais de
saúde.

Eu gostaria muito de poder experimentar, de poder ver no Centro de Ciências da


Saúde, algumas áreas, algumas disciplinas da formação, a ética é uma delas. Eu acho
que seria muito rico conseguirmos trabalhar uma disciplina interprofissional para os
estudantes de todo o Centro, de ética... já pensamos até nas estratégias assim, uma
simulação sobre os dilemas éticos seria ótima! Ou cine debate, enfim, tem várias.
(GA2P16)

Olha, pensando no Centro de Ciências da Saúde eu acho que assim [...] uma disciplina
interdisciplinar sobre ética, saúde e cidadania. Teria que ter, obrigatoriamente, uma
turma com os cinco cursos e tendo a mesma aula todos eles juntos, não precisaria ser
uma turma grande, mas teria que ter os cinco cursos pra discutir justamente isso sabe?
Qual é o papel do Agente de Saúde na sociedade, o que a sociedade espera da gente,
ou o que a gente pode realmente, o que não pode fazer, as questões éticas e morais
que implicam nisso, discutir também o SUS e como ele se arranja. (GA2P9)

A ética e os valores envolvidos nas relações e nas tomadas de decisão compõem uma
das competências colaborativas essenciais almejadas pela educação interprofissional,
juntamente com as demais: papéis e responsabilidades; comunicação interprofissional; e
155

equipe e trabalho em equipes. Tais competências implicam pensar o cuidado centrado no


paciente e orientado para a comunidade, fundamentando um senso de propósito compartilhado
para apoiar o bem comum nos cuidados de saúde e que fundamentam o compromisso com o
sistema de saúde e sua qualidade. Para tanto, a educação interprofissional precisa ser
incorporada à educação dos profissionais de saúde para que o ensino-aprendizagem ético seja
fortalecido.
Construir percursos que busquem a educação interprofissional também é uma forma de
vivenciar a Universidade para além do que se é exigido nos cursos de Saúde, transcendendo
outros campos de conhecimento e potencializando a formação de si na medida em que se
estimula a autonomia moral por meio de relações também moralmente diversas. A reflexão
crítica compartilhada entre as diferentes áreas da saúde tem o potencial de fomentar a melhoria
da qualidade dos serviços da saúde, corroborando para o desenvolvimento de competências
profissionais, de conhecimentos, habilidades e atitudes, que qualificam a relação entre as
diferentes especialidades da saúde, além de auxiliar na resolução de problemas éticos no
cotidiano do trabalho em saúde.

4.4.4 A construção do eu-trabalhador da saúde como realização do fenômeno da dimensão


ética da educação superior em Saúde

A humanização evidenciada como uma forma de educação moral dos indivíduos pode
auxiliar nos modos de ser e fazer em grupo estimulando atitudes que corroborem para
transformações institucionais, políticas, sociais e morais, e que, para tanto, não pode estar
alijada da reflexão ética intencional do corpo acadêmico. Pensar o cuidado humanizado não
pode prescindir da humanização também das relações pedagógicas e cotidianas na
Universidade, pois a academia tem o potencial de preparar o trabalhador da saúde para operar
nos coletivos e nos fluxos da rede de assistência em saúde, criando e transformando-a.
Os significados da profissão e as possibilidades de incorporar o papel de agente
transformador dependem das concepções de saúde trabalhadas no percurso acadêmico. As
separações entre pessoas e meio, doente e doença, técnicas e valores, ciências e política têm
levado à dessensibilização do eu-trabalhador da saúde limitando sua capacidade de considerar
as dimensões ética, estética e política na promoção da saúde.
A vivência e consciência da dimensão ética da educação superior em Saúde auxilia o
fomento de um profissional-cidadão, na qual a compreensão da saúde como um direito e a
responsabilização social ganham força nos tensionamentos com a finalidade da educação
voltada para o mercado profissional. O SUS e os paradigmas da Saúde Coletiva que
156

fundamentam a integração ensino-serviço-comunidade articulam a relação entre saúde,


comunidade e dimensão moral da sociedade proporcionando meio e sentido do ensino-
aprendizagem ético na educação superior em Saúde.
Assim como a aproximação com a realidade da comunidade e do trabalho em saúde
potencializa a construção da identidade, a educação interprofissional apresenta-se como uma
estratégia pedagógica que possibilita o ensino-aprendizagem ético por meio do diálogo e do
processo colaborativo entre as diferentes especialidades da saúde. Essa interação entre
diferentes áreas das ciências da saúde é fundamentada no bem comum do indivíduo, da família
e da comunidade, qualificando o olhar integral para o cuidado e a possibilidade de
aprendizagem ética por meio das diversidades colocadas. Aprender a trabalhar
cooperativamente, com pluralismo moral e posições de poderes é um desafio importante para
o ensino-aprendizagem ético, que busca construir trabalhadores que saibam atuar com práticas
de cuidado embasadas em atitudes dialógicas com a equipe de saúde e com o
indivíduo/família/comunidade. Construir esses vínculos por meio de atitudes cooperativas pode
facilitar também as relações com os serviços de saúde, construindo pertencimento que
potencializa o desejo de melhorias da qualidade da assistência em Saúde.
A humanização da educação e dos serviços de saúde, as estratégias de ensino-serviço-
comunidade e a educação interprofissional se mostram como vivências da dimensão ética da
educação superior em Saúde. A responsabilidade com a sociedade e com a assistência está
fundamentada no direito à saúde e na participação qualificada dos trabalhadores enquanto
agentes de transformação política, social e moral que também fundamentam o cuidado em
Saúde.

4.5 RESPONSABILIZANDO-SE PELOS RUMOS DA SOCIEDADE

As distintas formas de se relacionar e de se perceber como parte da Universidade


influem na construção da identidade do corpo acadêmico. O papel atribuído à Universidade, os
valores e princípios que a estimulam e a atuação política do corpo acadêmico podem contribuir
para que a Universidade se torne um espaço de ensino-aprendizagem ético. A vivência da
dimensão ética da educação superior em Saúde contribui para a realização do potencial de
desenvolvimento humano e de responsabilização social da Universidade.
As relações que são fundamentadas pela compreensão e a incorporação da missão da
Universidade e a vivência da responsabilidade social contribuem para a construção da faceta
identitária do eu-cidadão.
157

4.5.1 Reflexionando sobre a missão da Universidade

A compreensão da missão da Universidade aparece dissociada entre buscar o


desenvolvimento humano e de cidadania e a formação técnica. A busca por excelência humana
apresenta-se como imagem-objetivo que ainda necessita ser estimulada na concepção que se
constrói da Universidade. A visão hegemônica do ensino superior restrita a uma formação
técnica dificulta o trabalhar a dimensão ética da educação em Saúde.

[...] tu falar de humanidades para as pessoas que tem uma atitude mais humanística
não é difícil, mas a maioria não tem essa atitude entende? Passa a ser muito difícil
você trabalhar, a menos que fosse uma filosofia do curso, um curso voltado a formar
pessoas. (GA2P10)

A representação social sobre o êxito pessoal alcançado por meio da Educação Superior,
influi na forma de compreendê-la: “a ética não parece ser um valor muito considerado para o
sucesso de uma pessoa” (GA2P7). Os estudantes reconhecem sua relação com a Universidade
a partir de uma representação social, construída antes de tornarem-se acadêmicos, uma imagem
da Universidade que reflete uma promessa de profissionalização.

[...] eu não sei se a Universidade deve ser responsabilizada por esse percurso enquanto
ser humano, enquanto indivíduo, separado da formação. Porque a gente entra na
Universidade para formação profissional, eu não sei se o aluno tem essa visão de que
aqui ele vai se transformar também enquanto indivíduo. (GA2P13)

[...] porque o aluno não presta o vestibular, e a sociedade não quer, ou pelo menos não
mostra, que ele quer esse tipo de pessoa sendo formada... ela quer um bom técnico. E
o aluno vai pra Universidade pra ter emprego, pra ter sucesso, pra ter dinheiro, ele
nem pensa que ele vai ver algo do ser humano. (GA2P2)

O papel da instituição não é evidente nem para os professores e gestores, os métodos e


estratégias de se atingir a missão universitária são, por vezes, confundidos com as próprias
formas de atuação e de inserção na comunidade.

“A missão da Universidade eu acredito – não só acredito como isso está nas


normativas da Universidade, de uma instituição de ensino que se organiza como uma
Universidade, de ela fazer ensino, pesquisa e cultura e extensão, as três dimensões né, e a
gestão acadêmica por consequência, de uma maneira integrada e articulada” (GA3G4).

A aparente ausência de discussão sobre a missão da Universidade leva a uma


compreensão individualizada de seus objetivos, relacionada com os interesses pessoais de cada
um. Grande parte dos indivíduos percebem a vida universitária como um processo de superação
de obstáculos, como uma etapa de passagem, que só interessa chegar ao fim.

[...] eu conheço estudantes que tem ainda esse perfil e não são eles participando dos
espaços e definindo a Universidade. Eu acho que esse tipo de ensino técnico te
158

distancia um pouco mais da Universidade, faz ver ela apenas como uma ferramenta,
como algo a ser utilizado e não como uma parte de você. Porque os estudantes que eu
encontrei nos espaços participativos, a grande maioria deles, são estudantes que eu sei
que se envolvem em projetos de extensão, ou que participaram, que tão dentro de uma
pesquisa interessante, são pessoas que foram cativadas e sensibilizadas, as vezes, a
sentirem a Universidade como parte do desenvolvimento cívico, de cidadãos deles e
entender também a importância da Universidade dentro da sociedade. (GA3E6)

Como se articulam as ações desenvolvidas nas estruturas da Universidade auxilia a


demonstrar os objetivos da Educação Superior, objetivos que não se limitam ao preparo
operacional para as exigências do trabalho, mas que assumam a formação do indivíduo e
cidadão: “eu falo assim que é civilizatório, a preocupação é tentar fazer com que as pessoas
saiam um pouco mais civilizadas da Universidade” (GA4G1).
A defesa da cidadania e do direito à saúde são citados como guias para que a
comunidade acadêmica construa as práticas institucionais da área da saúde, transformando-as
se necessário. O corpo acadêmico deve visualizar seu compromisso com a sociedade que
conforma, comprometendo-se com uma educação que construa ‘responsabilidade social’ e que
‘promova a saúde integral do ser humano’ (GA1D4, GA1D8 e GA1D7), capacitando-os para
atuar na busca por uma sociedade em que a qualidade de vida de todos os seus membros seja
considerada.

Favorecer a formação de um profissional apto a desenvolver ações de prevenção, de


promoção, de proteção e de reabilitação da saúde, em nível individual e coletivo, a
tomar decisões, a manter o aspecto confidencial das informações a eles confiadas
durante o exercício profissional, a assumir posições de liderança, sempre tendo em
vista o bem estar da comunidade e, finalmente, a aprender a aprender e a ter
responsabilidade e compromisso com a sua educação e a formação das futuras
gerações de profissionais. (GA1D2)

Neste sentido, aponta-se um avanço das DCN e PPP quando os mesmos saem de um
currículo mínimo para buscar uma educação ampliada, que pense não somente a dimensão do
conhecimento especializado, ou da qualidade técnica aplicada à cada área, mas também a
construção de um indivíduo com competências gerais, que se construa enquanto ser humano,
que trabalhe sua dimensão ética, política, cultural e social.

É justamente esse pensamento mais amplo sobre a formação, porque daí surgiram
competências gerais, competências especificas [...] na época (de construção das
diretrizes curriculares) o pessoal viu que precisava e lutou por diretrizes mais
amplas... então formar um cidadão crítico-reflexivo, capaz de desenvolver promoção-
prevenção e tal, e com ética, e essa responsabilidade social que é o que tá lá nas
diretrizes, então esse é um avanço. (GA2P4)

Buscar uma educação que desenvolva o ser humano em todas as suas dimensões e influir
nos rumos da sociedade são objetivos do papel da Universidade que ainda não estão
completamente assumidos pela comunidade acadêmica.
159

Eu entendo que hoje, a nossa educação no âmbito profissional, ela é absolutamente


disciplinar, em primeiro lugar e em segundo lugar ela repete, ela é simplesmente uma
ferramenta do mercado, ela repete aquilo que o mercado demanda pra ela, ou seja, não
tem a capacidade de pensar como podemos construir espaços de educação ou
formação profissional que pensem a sociedade de uma maneira diferente. Então, não
é a Universidade que está construindo um modelo de educação para a sociedade, está
sendo o inverso, o mercado está ditando para a Universidade como ela deve formar
os seus profissionais para atender as demandas especificas, ou seja, é manter não só
o status quo mas é manter o modelo de um ponto de vista socioeconômico a gente vai
pensar que é um modelo baseado no neoliberalismo, com certeza, para atender as
regras do mercado, e aí é o mercado de trabalho. (GA2P9)

Buscar, por meio da Universidade, a construção não somente profissional, mas também
ética, exige a compreensão do papel político da missão universitária. Fomentar a cidadania é
contribuir no desenvolvimento de pessoas que reflitam criticamente e assumam seu papel de
agentes de transformação social. As forças e interesses dos campos tecnicista e especializado a
serviço do mercado parece estar alijando a construção cidadã, ética e, portanto, com ensejos
também políticos da educação universitária.
As DCN e PPP refletem as contradições existentes na educação superior em Saúde,
mostrando avanços com colocações contraditórias. Há uma mistura de percepção de educação
construtivista com a formação de profissionais para o mercado, retratando as disputas de
concepções, interesses e paradigmas. Essas dificuldades de consenso na realidade e nos
próprios documentos analisados são produzidas e também são resultados da falta de uma
compreensão pactuada sobre o papel da Universidade: “eu até hoje não sei se nós formamos
para o mercado ou o mercado é que exige a nossa formação, eu não tenho essa clareza”
(GA2P11).
As disputas sobre o papel da Universidade, e dentro dela, da Educação Superior em
Saúde perpassam os três pilares do ensino superior. O eixo da educação ainda repercute o
histórico tecnicista da profissão, focado na doença e nos interesses de mercado; o eixo da
pesquisa tem um viés ainda forte da pesquisa positivista; e o eixo da extensão acaba sendo o
menos valorizado, onde as relações e transformações da sociedade tem espaço reduzido nas
ações do corpo acadêmico.

Uma outra concorrência também, foi a própria pós-graduação, que pra gente poder
estar entre os tops da produção cientifica internacional houve uma política muito forte
para que o professor fizesse esse percurso, e isso também tirou algumas pessoas da
cena reflexiva na questão pedagógica docente. (GA2P4)

Os desequilíbrios de forças entre os três pilares da Educação Superior, as dificuldades


de concepção do papel da Universidade reforçam as dúvidas do corpo acadêmico sobre seus
papéis. Dentre as disputas existentes dentro da Universidade pensar a responsabilidade sobre a
160

dimensão ética do ensino superior traz dificuldades que vão desde a implementação de
disciplinas relacionadas à Ética até as discussões filosóficas sobre educação superior.
Quando se pensa uma educação universitária que não se limite pela formação técnica,
foca-se a atenção às atitudes dos estudantes, embora essa preocupação não seja trazida ao se
pensar o corpo docente e gestores. Apesar da universidade fazer a mediação entre o estudante
e o diploma no final, ela tem a obrigação de trazer um mínimo de modelagem, de referência
sobre a conduta de todo o corpo acadêmico, que não é só com atitudes do âmbito profissional,
mas cidadão também.

A sensação que eu tenho é que a Universidade tem um papel importantíssimo né,


porque ela tem que contextualizar a ética no âmbito da profissão que cada um vai ter.
Não é uma questão abstrata, sem nexo, isso que eu acho que é o papel da Universidade,
não é uma discussão teológica, é uma discussão contextualizada, ou seja, é a ética no
âmbito dessas relação que é mediada pela Universidade, sem a Universidade a pessoa
não recebe o certificado necessário para exercer a profissão. Então, a sensação que eu
tenho é que a Universidade se obriga a ter essa dimensão mais explícita, no sentido
que não existe hoje, entendeu? (GA2P7)

A intenção da Universidade em trabalhar as questões de natureza ética é colocada como


possível, existente, mas que na prática não se concretiza na amplitude que deveria.
Determinados conteúdos obrigatórios ocupam a maioria da grade curricular e acabam tornando
a educação bastante técnica, explicitando a dificuldade de compreender até que ponto existe
uma intenção da Universidade em trabalhar uma educação integral, composta e explicitamente
dedicada, também, ao ensino-aprendizagem ético.
A intencionalidade em trabalhar a dimensão ética da educação superior é importante
porque está permanentemente presente, influenciando a construção da personalidade moral de
forma consciente ou não, e essa é uma questão central na construção identitária durante a vida
universitária que a Universidade deseja estimular:

Eu não vejo só uma potência, eu acho que é uma responsabilidade. Por ela ter essa
potência, ela deveria ser muito responsável em fazer isso. Não podia ser feito isso de
qualquer jeito, sem reflexão, sem articulação dessas diferentes experiencias. (GA2P8)

Eu acho fundamental. Por que qual é o outro caminho? [...] se eu não tiver ideais, se
eu não tiver um horizonte para me mobilizar, principalmente para fazer a função
questionadora – que eu acho que exercer a função questionadora talvez seja o mais
importante destes ideais, seja um ideal médico, seja moral, eu naturalizo e sou só
pragmático: ‘ah então vamos ser só técnico”. (GA2P2)

A dificuldade de visualizar que a Universidade tem um papel ético e que cada membro
deve reconhecer suas implicações e deveres perante este compromisso torna este trabalho ainda
inicial e descontínuo: “Se a pessoa não está afim de sair da sua zona de conforto, qual é o meu
direito de querer que ela saia? É muito delicado.” (GA2P2). A construção da faceta identitária
161

do eu-acadêmico, que assume responsabilidades enquanto comunidade é uma forma de facilitar


o diálogo e a percepção dos deveres com a missão universitária.
A dificuldade de posicionar a ética como um compromisso assumido e incorporado, está
relacionada na sua ausência de percepção como papel da Universidade, diferente da
obrigatoriedade do conteúdo técnico facilmente aceito. Parece haver uma relação de exclusão,
e não de complementariedade, entre a formação técnica e ética dentro da Universidade.

Eu não consegui ainda ver boas experiências no sentido de equilibrar essas duas coisas
entendeu? Eu não digo nem em termos de carga horária, mas que muitas vezes me
parece que a formação técnica não fala com a formação cidadã, mas a formação cidadã
também nega a técnica. (GA2P2)

Eu acho que de uma maneira geral as Universidades estão cada vez mais preocupadas
em habilitar ou capacitar os indivíduos do ponto de vista técnico, dar uma formação
técnica para eles. De uma maneira geral há uma negligencia no aspecto da formação
mais humana do indivíduo. (GA4G1)

A dimensão ética da educação superior em Saúde é associada e reforçada pela


necessidade de trabalhar sua dimensão cidadã, humanística e com compromisso social da
Universidade, e mesmo assim, ainda aparenta não conseguir tensionar o suficiente o espaço da
formação profissional restrita à técnica.
De igual forma, não é possível pensar a missão da Universidade sem discutir a realidade
da sociedade e a realidade profissional. Compreender que o mercado, os interesses das
indústrias, a indústria farmacêutica, o investimento privado na pesquisa, influenciam o tipo de
conhecimento que vai ser trabalhado na Universidade, que é anterior a escolha do professor, é
essencial. Há muitos caminhos para se pensar a formação, caminhos inclusivos e excludentes:
voltada para o SUS, o mercado, a patente, a questão laboratorial e técnica, a relação profissional
com pessoas, se estas relações ainda são pouco trabalhadas pelo professor, tampouco tornam-
se facilmente nítidas para os estudantes. A concepção de saúde e de ensino são componentes
altamente interligados e dentre suas diversas correntes teóricas se pode montar inúmeras formas
de educar e ser educado em saúde. Neste sentido, a reflexão crítica, associada à competência
ética e compartilhada coletivamente torna-se essencial para essa conscientização.

[...] porque eu penso a Universidade como também formadora de cidadãos, talvez a


parte mais importante de você ter entrado aqui é justamente para desenvolver
raciocínio crítico sobre as coisas, o discernimento, a capacidade de pensar por si só,
certo? E pra eu desenvolver ética, e moral, e cidadania é justamente você se questionar
das coisas. (GA3E6)

Os tensionamentos entre os campos de conhecimento poderiam estimular o


desenvolvimento entre os mesmos, mantendo a Universidade dinâmica, respondendo a
sociedade, mas também pensando em transformá-la, auxiliando na construção de sua missão
162

em toda sua amplitude. Evidencia-se uma necessidade de conscientização sobre os próprios


tensionamentos existentes, sendo necessário visualizá-los e discuti-los no intuito de equilibrá-
los.

Eu vou me utilizar um pouco da Constituição Federal Brasileira que estabelece um


pouco a missão da Universidade e do entendimento da LDB que diz que a missão do
ensino superior não é apenas de formar pessoas tecnicamente para o exercício de uma
profissão, mas, principalmente, de formar cidadãos em condições [...] aptos a atuarem
em melhoria da sociedade como um todo, do crescimento dessa sociedade. Então a
LDB já coloca muito claramente essa visão mais ampla do que seria o ensino superior
inserido dentro da Universidade [...] e a ideia de que a Universidade deve estar
baseada no tripé pesquisa, ensino e extensão tem sido bastante ampliada como o papel
da Universidade um pouco como protagonista do futuro das sociedades e isso amplia,
e muito, o olhar para além das questões mais formais de formação, de ensino, de
pesquisa e extensão. Então, a missão da Universidade como um agente transformador
da sociedade. (GA4G3)

Se transformar a sociedade faz parte do papel da Universidade, para tanto o estímulo à


curiosidade e a inovação, à reflexão e à crítica se torna fundamental, do contrário ela não cria
nada novo, só é capaz de reproduzir.
O ensino reflexivo, do aprender a questionar o conhecimento, a prática da saúde, a
realidade social, também ensina a questionar tudo, inclusive o status quo. Se o questionamento
é uma essência da Universidade, então a ética faz parte incondicional da Universidade. Para
tanto, o papel da Universidade de responder e transformar a sociedade também não pode ser
uma responsabilidade restrita à educação do estudante, mas necessita ser vivenciada em todos
os espaços da viva acadêmica. Para tanto a Universidade precisa ter bem definido os valores
que deseja estimular, pois estes também definem a sociedade a qual deseja construir.

[...] na formação profissional porque mesmo que tenhamos, e ai a gente pode trazer a
ética para esse âmbito, a gente tem uma normativa, mas nós não mudamos valores,
então ficou no papel, é uma norma que não conseguimos seguir porque não mudamos,
nós pessoas, não mudamos os valores, permanecemos com os valores antigos e
alimentando, de uma certa forma, o modelo hegemônico. (GA2P9)

A gente vê inúmeros comportamentos da Universidade que são comportamentos


completamente antiéticos, do ponto de vista de respeito ao ser humano, de respeito à
valores universais, a gente vê isso em sala de aula! Então é uma fragilidade, agora é
claro que a formação se dá, é claro que a defesa de valores universais pela
Universidade é parte da missão dela. E de uma forma ou de outra ela acaba tendo um
importante papel no conjunto, no que ela permite de diversidade, no que ela permite
de troca nesse movimento. (GA4G3)

A responsabilidade ética da educação superior ainda é pouco trabalhada de forma


consciente e restrita ao âmbito do ensino profissional. O como trabalhar a educação cidadã, a
formação docente para essa competência é ainda menos explorada.
163

A Universidade vai ter que repensar o perfil do professor, e aquela história de fazer
concurso para trazer um cara que entende muito, que tem muito currículo, não é isso...
qual a afinidade que ele tem com o ensino aprendizagem, qual a disponibilidade que
ele tem de abertura, de vamos aprender juntos? [...] o acesso à informação está a dois
cliques, agora o acesso a valores [...] se tem uma coisa que o facebook não ensina é
valor [...] pelo contrário, eu estou bastante chocado como que eu tenho visto. Esse
país aqui está indo para uma situação que não é de valor. (GA2P12)

O sentido e o papel da Universidade dialogam com a capacidade da comunidade


acadêmica de interpretar as transformações do mundo para gerar conhecimento. As novas
possibilidades de acesso à informação necessitam de cidadãos capazes de interpretá-la, criticá-
la. Neste sentido, a construção em valores, o embasamento teórico para a crítica, tornam-se
ainda mais essenciais para uma Universidade que também pretende influir nos rumos da
sociedade.

Um erro cometido pela Universidade é supor que se alguém entende bem um


determinado assunto ele vai ser um bom professor para aquele assunto. É um erro, o
conhecimento se constrói, agora o mais difícil é o caráter, as questões éticas, isso é
mais difícil, porque o conhecimento está a dois cliques da pessoa, a minha
preocupação é ensinar a debater essa informação, ser crítico [...] então a Universidade
tem que modernizar, não é o conhecimento por si, se a universidade continuar se
baseando em conhecimento nós vamos ter problema de formação de pessoas, porque
veja quando eu formo um médico para atuar eu estou formando um cidadão, o
conhecimento não forma cidadania, nesse aspecto que eu estou falando. Claro que o
conhecimento auxilia na cidadania, um cidadão com acesso a conhecimento ele tem
mais possibilidades de exercício de cidadania. Não é isso que eu estou falando, eu
quero te dizer que eu posso ter um ótimo cirurgião, fantástico com o bisturi, só que
com o mérito das suas relações ele é desrespeitoso, nesse sentido. (GA2P12)

O papel da Universidade passa, então, por educar cidadãos que tenham também uma
qualificação profissional para garantir a sustentação e condução da sociedade. A construção do
eu-cidadão comporta então a reflexividade, a conduta eticamente responsável. Estes espaços de
construção cidadã apresentam-se permitidos (embora não estimulados), principalmente no
currículo oculto. A busca por trazer a missão da Universidade para todos os seus espaços passa
pela conscientização de seus membros e também por políticas institucionais, políticas que não
sejam somente de controle, mas que possam também avaliar o desempenho da Universidade
em todos os âmbitos do seu papel.

A missão e os valores que são dados, no sentido amplo da palavra, eles são exercidos
nas pontas, como quase tudo na vida né? O Ministério da Saúde não atua em nada,
quem atua é o município e é semelhante ao que acontece na Universidade, então essa
história do controle, como é que essa missão chega na ponta? (GA4G2)

A comunidade acadêmica enxerga que o papel da Universidade tem relação com o perfil
do egresso desejado, com o perfil de professor/pesquisador que é estimulado, com as
normativas empregadas. É como se o papel da Universidade estivesse sendo definida por esses
164

micros papéis, mas eles somados como peças desarticuladas não contemplam a missão da
Universidade, de um pertencimento a uma comunidade de buscadores de conhecimento que
podem (em conjunto) produzir novos rumos para a sociedade.
Identificar quais percepções o corpo acadêmico tem sobre a missão da Universidade
auxilia a compreender como essa comunidade desenvolve suas relações dentro da instituição.
As formas de pertencer a Universidade e suas interlocuções com responsabilidade ética da
educação superior em Saúde, serão tratadas na categoria a seguir.

4.5.2 Identificando a importância da responsabilização social na educação de profissionais


de saúde

Esta subcategoria apresenta os modos como o compromisso ético universitário é


percebida nas relações construídas entre Universidade e sociedade. Sentir-se pertencente à uma
Universidade que deve estar a serviço da transformação da sociedade, também auxilia a sentir-
se pertencente à sociedade à qual conforma, fomentando a corresponsabilização por essa
comunidade: “a hora que ele percebe que ele faz parte da Universidade e que a Universidade
muda a sociedade, ele se sente mudando a sociedade também” (GA3E6).
A responsabilidade social atrelada ao exercício profissional é a relação com a sociedade
mais presente nos PPP e DCN da Saúde, onde a profissão é compreendida como uma forma de
participação e contribuição social. Neste sentido, se faz necessário repensar se uma “matriz
curricular totalmente voltada para a profissão” (GA1D2), também significa uma construção de
cidadania.

[...] eu penso que talvez a pessoa tenha percebido a Universidade como uma
ferramenta para adquirir conhecimento técnico para exercer uma profissão quando na
verdade a Universidade, é em parte isso, uma pequena parte dela é isso, mas ela é
muito mais uma ferramenta de desenvolvimento para a sociedade na qual ela se
encontra. (GA3E6)

De acordo com as DCN e PPP nos cursos da Saúde o eixo didático-pedagógico foi
reformulado para ser sociologicamente orientado, já que o cuidado em saúde deve ser pautado
no indivíduo, na família e na comunidade e em consonância com a realidade epidemiológica,
socioeconômica, cultural e profissional. O desenvolvimento científico e social produzido na
Universidade, deve estar fundamentado na ‘compreensão da realidade social brasileira, cultural
e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício
da sociedade’ (GA1D1), onde “a formação generalista é aquela que está atenta às
transformações da sociedade e da produção do conhecimento” (GA1D3). Apesar de haver uma
165

orientação da educação em conformidade com as demandas sociais, estas são focadas em


exigências do mercado de trabalho, não havendo uma diferenciação entre a necessidade de
transformações sociais e as respostas, principalmente, ao mercado.
Sentir-se pertencente a sociedade, refletir criticamente sobre suas estruturas, auxilia na
compreensão e incorporação do papel da instituição pública universitária, significando a
dimensão ética da Educação na medida em que amplia o olhar sobre o potencial da
Universidade para além da profissionalização ou da própria responsabilidade profissional no
seu sentido restrito, de direitos e deveres deontológicos.
A Universidade deve ser local de análise dos problemas da sociedade e de proposições
de soluções sobre os mesmos, não somente no sentido de suprir necessidades urgentes, mas
refletir sobre questões estruturais e crônicas como elementos que ampliam a relação do corpo
acadêmico com o mundo: “Não faz muito sentido a gente formar um profissional que não tenha
a mínima reflexão sobre o seu papel no mundo, sobre as suas relações sociais” (GA2P7).
A responsabilidade da Universidade com a sociedade também se dá no âmbito de buscar
uma educação que pense novos rumos para a sociedade, e isso passa por pensar sua
responsabilidade na construção de profissionais com competência ética, desenvolvendo uma
capacidade crítico-reflexiva, uma construção humanizada, de futuros cidadãos capazes de atuar
com princípios e diretrizes que fundamentem e justifiquem suas atitudes.

[...] acho que não é só uma dimensão, acho que tem que ter mais dimensões em um
professor quando ele se propõe a trabalhar a formação com profissionais que vão atuar
na sociedade. Acho que a gente tem um compromisso com a sociedade, acho que isso
é importante. (GA2P1)

A extensão universitária é a via direta de comunicação e intervenção na sociedade, no


entanto, evidencia-se que as relações com a sociedade promovidas a partir desse eixo nem
sempre adquirem um caráter de responsabilidade e de reciprocidade com a sociedade, refletindo
os modos como o compromisso social da Universidade tem sido trabalhado.

[...] quando a gente fala de cultura e extensão eu acho importante porque essa
dimensão tem uma abrangência e uma compreensão que vai muito além do que a
gente, às vezes, na saúde contabiliza ou enxerga como cultura e extensão. Porque a
gente fala muito em cursos e prestação de serviços da saúde como atividades de
cultura e extensão. Cultura e extensão é a face da Universidade voltada para a
sociedade, tudo aquilo que tem relevância social e que é contribuição da Universidade
– que transforma esse conhecimento em um conhecimento que gera impacto social, é
a face da cultura e extensão e isso também que articula ela com as outras dimensões
que é a da pesquisa e do ensino. (GA3G4)

Pensar a responsabilidade social restrita a prestação de serviço de saúde (atendimento


clínico/tratamento) limita as possibilidades de relação com a sociedade, reforçando a
166

hegemonia da profissionalização sobre a educação superior. Esta concepção também está


associada aos modos como a comunidade acadêmica pensa sua relação com a sociedade: uma
relação de retribuição fundamentada no mercantilismo.

A prestação de serviços à comunidade deve ser encarada como um elemento de


elevada importância nos objetivos do Curso. É a suprema retribuição que o Curso faz
à comunidade, pois é ela que o sustenta através do pagamento de impostos e tributos.
Este fator dá aos membros da sociedade legítimos direitos de serem atendidos e de
terem os seus problemas de saúde solucionados. (GA1D2)

Essa relação restrita a retribuição financeira pode não ser capaz de sustentar atitudes
cotidianas, eticamente justificadas. Para que o compromisso com a sociedade possa ser
incorporado como um dos sentidos da educação superior em Saúde, é preciso atuar também no
ensino-aprendizagem ético do corpo acadêmico, auxiliando a refletir sobre que racionalidade
se atribui aos projetos, aos conteúdos, às ações que serão aplicadas. Isso para que, por exemplo,
as ações de Extensão Acadêmica auxiliem o estudante e a comunidade a compreender a relação
da Universidade com a sociedade, no sentido de ampliar as possibilidade de construção de si e
de concepção do mundo: “É muito nítido... assim, a pessoa que participa de um projeto de
extensão, que gosta dele, ela nunca mais vai ser a mesma pessoa, nunca mais!” (GA3E6).
A extensão universitária deve estar articulada com o ensino profissional, a produção do
conhecimento científico, para que a Universidade trabalhe suas influências na comunidade em
função do que seja socialmente melhor para todos. A necessidade de maior reflexão ética sobre
a concepção da missão da Universidade - restrita ao atendimento das demandas da sociedade,
especialmente às demandas de mercado, é central para que a inserção social da Universidade
seja também de construções identitárias e de transformações eticamente orientadas.

Eu já tinha uma noção – primeiro da diferença entre uma Universidade e uma


faculdade, justamente a extensão, o serviço à sociedade, então eu sabia que a partir do
momento que eu estivesse entrando numa Universidade eu estaria a serviço de uma
comunidade também, mas eu não vou poder te dizer, com certeza, se todo aluno que
egressa nos primeiros semestres tem essa noção. (GA3E6)

A relação da Universidade com a sociedade não deve se restringir a um meio para atingir
a construção do estudante, mas um compromisso assumido de todo o corpo acadêmico na
construção de atitudes que evidenciem ações socialmente responsáveis.

[...] particularmente, acho que a Universidade não tá muito preocupada com isso. Não
só a Universidade assim, eu acho que a sensação geral das pessoas não é de se
perceberem enquanto agente políticos, sociais, cidadãos responsáveis pelo espaço
comum ou pela convivência, o que implica, naturalmente, que a gente seja muito
antiético, em geral. (GA3E5)
167

O sentimento de pertencimento à Universidade aliado a práticas que condizem com sua


missão em toda sua amplitude, auxilia o corpo acadêmico a assumir responsabilidade como
agente de transformação sócio-política. Construir o caráter de estudantes e professores passa
por realizar a dimensão ética da Educação dando oportunidades contínuas para que a
responsabilidade social seja vivenciada cotidianamente nas relações universitárias.

Quando ela percebe a sua responsabilidade perante... a sociedade. Então, estratégias


que proporcionem para as pessoas a capacidade de perceber, compreender,
internalizar a sua responsabilidade perante os outros. Agora, as estratégias elas têm
que ser muitas [...] Acho que tem que ter um conjunto de provocações, oportunidades,
práticas, ir e voltar da realidade, pra construir essa capacidade. (GA2P3)

O ensino-aprendizagem ético pode orientar a relação entre Universidade e sociedade, já


que o mesmo deve ser construído em prol de uma sociedade melhor para todos, em todas as
possibilidades de atuação cidadã. São valores e deveres que fundamentam o compromisso
social que precisam ser vivenciados para serem refletidos nas atividades acadêmicas.

[...] quando eu coloco a Universidade como um compromisso, com um papel na


sociedade, esse papel não é destituído de valores, ou seja, é a produção do
conhecimento para todos, para ser usufruído por todos, é a transformação da sociedade
para uma sociedade mais justa. (GA4G3)

Essa dimensão da educação, que passa pela construção da personalidade moral do


indivíduo conecta-o com a necessidade de compreender o mundo, refletir sobre os fatos, a vida
real. Reflexionar sobre a sociedade e suas relações pode auxiliar a perceber a importância de
um ensino integrado em saúde, mostrando que as disjunções atrapalham a compreensão da
realidade. Incluir a dimensão social e a realidade complexa e interconectada qualifica a
construção cidadã, e a própria construção profissional.

Eu acho que sim, porque a vida real não é só técnica. Então eu não vejo porque o
nosso ensino aqui dentro deva ser só técnico e eu acho que a cultura, a arte, a política
como um todo está tudo interligado na vida real, e aqui dentro parece que está tudo
descolado, a gente vive dentro de uma bolha onde a gente só pensa em chegar lá e
conseguir o diploma, e parece que não existe um momento de discutir, de colocar
ideias e de criticar a maneira como as coisas estão colocadas. A gente vive numa bolha
aqui dentro, a gente aprende super cirurgias plásticas e sei lá o que e daí chega lá
fora... a gente teve mais aula de cirurgia de cabeça e pescoço que é uma parada super
rara do que de depressão. (GA3E2)

Repensar o que significa saúde, ampliar o papel do profissional de saúde qualifica a


atuação do corpo acadêmico com a sociedade, podendo também melhorar a forma como a
sociedade enxerga a Universidade, pois isto também influi no que se busca na Universidade
enquanto comunidade acadêmica.
168

[...] sempre tem aquelas pessoas que falam: - ‘ah, tu tais te envolvendo muito nesse
âmbito social’ ou - ‘cuidado que você tem que se formar’, ‘não pode pensar nisso’,
como se isso não fizesse parte da formação e não vai te acrescentar em nada. Mas eu
acho que não é uma competição entre os dois, mas as pessoas de fora enxergam assim
[...] tipo a minha mãe é assim, enxerga que a formação é técnica. (GA3E7)

A importância de se refletir e transformar os modos como a Universidade é significada


pela sociedade torna-se premente na contemporaneidade de projetos políticos de governo que
incutam o desmonte da educação superior pública. As relações construídas entre Universidade
e sociedade, a construção cidadã, os valores de responsabilidade social e de qualidade de vida
para todos não são condizentes com projetos políticos autoritários e de manutenção do status
quo.

A Universidade tem sido atacada e ultimamente [...] são os militares né, são os
conservadores e os religiosos que estão ali [...] a Universidade é demonificada como
um lugar que subverte esses meninos e meninas [...] e aí eu fico pensando: alunos que
são extremamente conservadores, não são conservadores per si, são conservadores por
causa da estrutura social que nos circunda, a estrutura familiar, histórico de vida,
trajetória né? E a Universidade... quando você olha, você fala: - ‘cara, mas a gente faz
tão pouco!’, mas esse pouco é promovido aí né, e é promovido porque existem essas
discussões. (GA2P2)

Refletir sobre as pluralidades morais, a história e a cultura do país, é essencial a uma


educação universitária que busque possibilidades de transformação social e de si mesma: “são
espaços instituintes, porque são de modificação, são de desestabilização da realidade, são
possibilidades de transformação” (GA2P9). Uma comunidade acadêmica que reflete
criticamente sobre os fatos de seu contexto, sobre os valores que os fundamentam tem maior
possiblidade de construir seus deveres fundamentados na responsabilidade social. Um corpo
acadêmico que não está à deriva de forças políticas, mas que resiste e a transforma.

[...] os projetos de extensão e de pesquisa estão tendo uma visibilidade muito maior
dentro da Universidade, tá tendo um esforço muito grande de você mostrar a
importância e mostrar a necessidade da extensão e da pesquisa, e isso tá atingindo não
só a população fora da Universidade mas a população dentro da Universidade
também, que as vezes se mantinha alheia a isso justamente por estar tão focada dentro
da sua própria formação [...] formação no sentido de ‘eu quero o meu diploma’.
(GA3E1)

O conhecer e interagir com a sociedade, compreender a realidade social também se


mostra importante no momento em que a Universidade passa a lidar com a diversidade social
adentrando seus espaços, numa perspectiva de deselitizar a Universidade, aproximá-la da
sociedade. Para tanto, faz-se essencial refletir eticamente, pensar a moralidade que nos constrói
e como podemos torna-la mais inclusiva.

Pessoas que são dos movimentos sociais e que estão fazendo serviço social e falam
assim: ‘essa burguesada que me dá aula, mesmo marxista, continua sendo um bando
169

de mulher branca, casada, heterossexual e burguesa”, então o estudante aponta isso.


[...] Tem várias distâncias entre essas pessoas, por isso que eu insisto na coisa
experiencial, eu vou ver o meu mundo a partir das experiências que eu tenho, e por
isso que eu acho que a discussão [...] trazer, tornar visível a invisibilidade social, as
outras experiencias que não se tem, é algo fundamental. (GA2P2)

Trazer sentido e significado dessas relações da Universidade com a sociedade faz parte
da dimensão ética da educação superior, passando por compreender em qual contexto social e
moral a Universidade se encontra em cada momento. Por mais que as DCN e PPP prezem uma
determinada responsabilidade social, as atitudes ‘na ponta’ dependem dessa moralidade,
atitudes que influenciam as tomadas de decisão e que constroem identidade.

[...] quando a gente pensa, tudo está acontecendo e a educação ética está acontecendo,
a formação... até que ponto ela é crítica, tá sendo embasada, fundamentada, discutida
como um desejo coletivo, como alguns princípios né, uma formação para cidadania,
para a civilidade... não, mas porque eu acho que retrata a sociedade. Nós estamos em
uma sociedade que as cisões parecem assim, tudo passa a ser [...] como eu vou te
dizer, até coisas básicas que a gente achava que as pessoas não iam duvidar, de
respeito pelo outro, de respeito à diferença, até isso passa a ser aceitável [...] eu recuar,
retroceder, posso falar tudo, não importa [...] quer dizer, até a regra mínima de
educação e civilidade é posta em cheque, eu acho que é claro que nessa sociedade,
não poderia ficar de fora a Universidade. Isso também está acontecendo dentro da
Universidade. (GA2P8)

Compreender as conexões existentes e possíveis entre a Universidade e a sociedade


como forma de intervir nos rumos da sociedade passa pela capacidade da Universidade em
trabalhar a construção cidadão de seus membros. Esse fomento à cidadania necessita ter uma
intencionalidade ética na sua construção em valores, que possa justificar o tipo de sociedade
que pretende auxiliar a construir. Neste sentido, pensar a relação da Universidade com a
sociedade é também pensar a consciência política da comunidade acadêmica, uma consciência
que auxilia a fundamentar a educação em Saúde para fomentar as facetas identitárias do ser
profissional e cidadão. A educação superior necessita, minimamente, do reconhecimento da
cidadania como categoria de todo ser humano para poder se propor a transformar a sociedade.
Reconhecer a cidadania do outro auxilia na construção da própria cidadania, e vice-versa, um
reconhecimento do seu papel social em todos os eixos da Educação Superior.

Como é que você usa o processo político, educacional e de saúde para reequilibrar as
forças na sociedade para corrigir as inequidades que estão presentes e que são injustas
[...] e como é que você busca a justiça social em tudo isso que a gente está construindo
e fazendo. (GA3G4)

Porque eu acho isso assim, a gente acaba colocando essa missão para os políticos, por
exemplo, ou para os administradores públicos em geral, sejam institucionais ou a nível
de Estado assim. Eu acho que essa percepção nossa falta muito, e isso só acontece se
a gente falar sobre isso né, se isso é trazido o tempo inteiro, se a gente é lembrado o
tempo inteiro de que a gente é parte responsável também disso tudo. (GA2P10)
170

A consciência política auxilia na efetividade da própria prática profissional em saúde,


uma consciência que necessita ser coletiva para que tenha possibilidade de transformar
estruturas da sociedade. As relações da Universidade com a sociedade não ocorrem só no
âmbito dos cidadãos comuns, mas também nos âmbitos das organizações cidadãs e políticas
que existem nessa sociedade. É necessário que a comunidade acadêmica assuma conjuntamente
o compromisso de prepara o estudante para participar das estruturas políticas, na negociação e
avaliação de metas para os planos de intervenção, sabendo considerar as políticas de saúde
vigentes, os colegiados de gestão e de controle social (GA1D5), com objetivo de buscar superar
a exclusão social e as perspectivas econômicas de dependência.

[...] quem tem que buscar é a gente, a gente que tem consciência, inclusive eu acho
que isso é um compromisso ético, isso para mim é um compromisso ético. Se eu sei,
se eu tenho consciência que a pessoa não tem acesso, ela não tem como reivindicar
esse acesso, tá numa situação de vulnerabilidade[...] a gente é obrigado a lutar por
isso, a gente é obrigado eticamente a lutar por isso, e as pessoas não se vem nesse
lugar, quem que ele acha que vai dar, por exemplo, a rede de saúde mental? O governo
em algum momento vai dar de presente pra gente? (GA3E5)

Os interesses da sociedade não se limitam à ação de cuidado em saúde, mas abrangem


o pensar a qualificação desse cuidado tanto na dimensão da saúde como da educação, pois
ambas se relacionam no espaço da Universidade.
Perceber que a sociedade constrói a Universidade e que a Universidade também deve
influir e pensar a sociedade a qual deseja construir é uma forma de realizar a dimensão ética da
educação superior em Saúde. Incorporar as vivências de responsabilidade profissional e cidadã.
Para tanto, a responsabilidade social deve ser pensada cotidianamente na vida universitária,
refletida com intencionalidade ética, uma construção que passa por vivenciar valores que
tornem o pensar a sociedade uma responsabilidade coletiva, assumida por todo o corpo
acadêmico.

4.5.3 A construção do eu-cidadão como realização do fenômeno da dimensão ética da


educação superior em Saúde

Uma educação que assuma o desenvolvimento humano, fomentando também sua faceta
identitária de eu-cidadão, se faz necessário para uma Universidade que se proponha a pensar os
rumos da sociedade. Para tanto, importa fortalecer o estímulo à capacidade crítica no cotidiano
do corpo acadêmico, onde se reflitam o contexto social, político e cultural do país (e do mundo).
A criticidade associada a reflexão ética possibilita a conscientização sobre os valores e
deveres que fomentam as decisões e práticas da Saúde e da Educação tornando possível
incorporar a construção de cidadania na educação superior em Saúde. É a aprendizagem ética
171

que torna viável incorporar a responsabilidade social como compromisso do corpo acadêmico,
ampliando o papel de construção e transformação social a ser assumido pela Universidade.
A ausência de reflexão crítica e coletiva sobre a missão da Universidade tem levado a
concepções individuais e individualistas do percurso acadêmico, geralmente atreladas a uma
finalidade reduzida ao possível sucesso financeiro do título profissional.
Os tensionamentos entre os campos de conhecimento, especializado e generalista,
profissional e cidadão, mantém a Universidade dinâmica, respondendo a sociedade e também
orientando-a. A ausência de reflexão ética sobre estes tensionamentos e o resultante
desequilíbrio entre os mesmos tem alijado a construção do eu-cidadão nos cursos da Saúde.
A missão da Universidade, incorporada em toda sua amplitude, objetivando a educação
de cidadãos e profissionais com compromisso ético, estimula a participação cidadã do corpo
acadêmico, fomentado pela vivência de mundo e construção de si. Sentir-se parte de uma
comunidade acadêmica, capazes de assumir sua responsabilidade social, constrói afetos que
movem politicamente, produzindo cada um, e em conjunto, novos rumos para a sociedade e
para a própria Universidade.

4.6 CONSCIENTIZANDO-SE SOBRE A IMPORTÂNCIA DO ENSINO-APRENDIZAGEM


ÉTICO NA VIVÊNCIA UNIVERSITÁRIA

A realização do ensino-aprendizagem ético na educação superior exige a


conscientização sobre sua indissociabilidade da dimensão ética universitária. Esta
conscientização do corpo acadêmico e seu potencial para interferir nas estruturas institucionais
carece da melhor compreensão do campo conceitual e metodológico da ética. Como vem sendo
vivenciada, compreendida e trabalhada e as suas reais possibilidades de construção intencional
da identidade é sobre o que discorrem as subcategorias a seguir.

4.6.1 Necessitando dialogar e compreender o significado de “ética”

As DCN e PPP dos cursos analisados não definem os conceitos de ética e bioética,
apenas citam a necessidade de estarem presentes nas atividades desenvolvidas pelos cursos. Os
entrevistados trazem distintas visualizações do que compreendem pelo termo “ética”,
interpretações embasadas em distintos aspectos teóricos e práticos associados ao conceito. As
correlações principais atribuídas ao ensino-aprendizagem ético na Educação Superior em Saúde
172

envolvem a aprendizagem de regras e normativas formalizadas socialmente e a concepção de


ética enquanto um estímulo a reflexões críticas, principalmente sobre aspectos das relações e
construções humanas no mundo.

Pensar o ensino-aprendizagem ético dentro da Universidade constrói narrativas que


evidenciam as ausências de diálogo sobre este âmbito e a consequente compreensão
individualizada e pouco refletida dos seus significados.

Eu acho que é complicado fechar num termo e eu acho que existe um ‘politicamente
correto’ no uso do termo ético. Não que eu ache que todo mundo faça isso, mas
geralmente eu vejo uma mobilização muito religiosa do termo. Eu acho que se tornou
uma palavra complicada de usar porque parece que quando você usa você está
atrelando o teu discurso à alguns setores muito conservadores às vezes. Eu acho que
a ideia da ética, como ela tem sido utilizada tá muito atrelado a ideia de bons costumes.
(GA2P2)

A compreensão de ética enquanto algo inerente a cada indivíduo desresponsabiliza a


Universidade sobre a construção da personalidade moral de seu corpo acadêmico, atribuindo
ao fenômeno ético um sentido de conservadorismo moral, de “manter as coisas harmônicas na
sociedade, um status quo” (GA2P2). Sob este prisma, a construção moral fica restrita aos
estudantes e passa a ser traduzida como episódios de aprendizagem de normativas e regras
morais. Esta perspectiva atrelada à narrativa profissionalizante dos cursos da Saúde alicerça a
aprendizagem, em termos teóricos, não sobre regras com intuitos de universalidade ou da
compreensão situacional que conformam as delimitações das justificações éticas, mas a códigos
deontológicos profissionais. Já em termos práticos, o ensino de atitudes foca-se na construção
de indivíduos obedientes e temerários a punições.

[...] você tem que ter condutas éticas né, para colocar uma disciplina [...] com regras
iniciais que você tem que cumprir, tem compromissos assumidos né, tacitamente ou
de até mais formalmente [...] mas você tem certas logicas de relacionamento, de
responsabilização dos alunos com relação à resultados etc. [...] Por exemplo, se você
pede um determinado trabalho e o aluno copia o trabalho descaradamente, sem definir
autoria etc., você é obrigado a ter uma posição de identificar, de punir o aluno entre
aspas, pelo menos desvalorizar aquela atitude e se obrigar a uma conversa com o aluno
sobre o que significa isso né? (GA2P7)

Esta compreensão de ética enquanto um campo deontológico apresenta-se como a


narrativa hegemônica institucionalizada, que parece subtrair o potencial do campo da ética
aplicada de estímulo à reflexão, da construção do pensamento crítico e da capacidade de
questionamento, inclusive das próprias regras e normativas ensinadas/aprendidas. Sendo assim,
a percepção da intencionalidade de trabalhar a ética no Ensino é limitada ao discurso, não sendo
compreendida suficientemente no seu potencial de desenvolvimento humano e social:
173

[...] a decisão deles foi forçá-los a assistir uma palestra de uma hora sobre ética [...] é
brincadeira, né?! Sim, isso chama atenção para a pouca compreensão que se tem de
ética e a gente não consegue trabalhar uma educação moral efetiva [...] sobram as
soluções purpurinas. (GA4G1)

Esta não compreensão resulta em aplicações teóricas e metodológicas insuficientes e


ineficientes, resultando em uma moralidade do discurso na qual a ética é reduzida à uma
compreensão de atitudes corretas em relação à uma determinada normativa.

Eu acho assim, que no discurso a maioria esmagadora dos colegas e das colegas vai
falar que é importante e se você provoca a pergunta o raciocínio vem carregado de
uma moralidade que faz com que essas pessoas respondam que é importante. (GA2P2)

Apesar disso, a compreensão de ética embasada no senso comum ainda permite a


complexificação da realidade deste fenômeno em que a necessidade de se definir um mínimo
de regras comuns para a convivência em sociedade não descarta a possibilidade de reflexão
contextualizada sobre cada situação, uma dialógica que auxilia na construção de uma sociedade
que seja inclusiva e democrática.

[...] então eu acho que existem universos éticos, que cada um é individual, mas a gente
conflui para uma mesma [...] digamos assim, a gente não é solto né [...] então todo
mundo conflui para uma mesma corda ética em que os fiapos são as individualidades,
acho que eu entendo mais ou menos assim. (GA3E1)

A falta de compreensão da ética, ou mesmo da Bioética no campo da Saúde, parecem


ser permitidas e reforçadas pelo pouco diálogo que se tem nos cursos sobre as definições
conceituais e, consequentemente, as possibilidades de operacionalização deste campo do
conhecimento.

[...] é a coisa mais difícil de tu transmitir [...] mesmo porque a gente trabalha pouco,
conhece pouco [...] vamos dizer que tu és só a segunda pessoa que conversa comigo
[...] uma vez só os alunos me chamaram para conversar uma coisa parecida [...] mas
a gente não conversa, a gente não fala esses assuntos [...] então é bem isso, contigo eu
estou fazendo um livre exercício de botar as coisas para fora, mas não é de uma
maneira organizada, sistematizada porque a gente nunca fala sobre isso. (GA2P10)

Trabalhar intencionalmente com esta dimensão da Educação torna-se difícil quando a


compreensão de ética é individualizada e também condicionada pela percepção reduzida do
próprio papel da Universidade. A não compreensão de ética e da potencialidade da educação
moral enfraquece os tensionamentos necessários para a manutenção e fortalecimento da
realização desta dimensão dentro da educação superior.

A dificuldade vem quando essa compreensão é individual do professor e não é


institucional, do corpo docente e em especial dos docentes que estão nas posições de
gestão e de coordenação dos processos, ou quando eles, eventualmente, tem a
174

compreensão mas se negam a incorporar essa dimensão na formação [...] também por
um posicionamento político, né? (GA3G4)

A separação das ciências humanas dos demais campos científicos e sua desvalorização
em função do paradigma científico vigente fragilizam as possibilidades de que a educação
moral nos cursos da saúde seja discutida e assumida como responsabilidade institucional: “Eu
acho que pela tradição cientifica da área [...] e discutir ética nunca foi considerado ciência, não
é?” (GA2P14). Se compreende muito de Biologia e quase nada de ética, sendo que as duas são
dimensões essenciais ao cuidado, onde os estudantes se surpreendem ao compreender a ética
na sua prática clínica e o quanto isso impacta no cuidado em saúde.
Sendo assim, consolidam-se dificuldades em se trabalhar as questões morais presentes
no trabalho em saúde e do próprio cotidiano educacional. O discurso sobre a necessidade de
“dialogar sem julgar” (GA3E4, GA3E10, GA2P10, GA2P14) evidencia a dificuldade de
compreender a própria moralidade, pormenorizando o diálogo sobre pensamentos e ideias que
deveriam ser discutidas e melhor compreendidas. O silenciamento pelo ‘não-compreendido’ –
que se apresenta como uma vivência comum da Educação Superior em Saúde atrapalhando o
processo de aprender a decidir, também tira o potencial da reflexão ética em auxiliar a
compreender o mundo.

O que a gente tem feito é tentando provocar os estudantes a levarem questionamentos


éticos – que eu acho que é meio redundante porque eu acho que a ética é esse
questionamento propriamente, o questionar já é uma dimensão ética [...] (GA2P3)

Há uma associação entre o significado de ética e aprender a questionar, na qual o papel


da ética é compreendido como a construção de uma reflexão própria, capaz de ampliar e
contextualizar os aprendizados teóricos. Outras correlações bastante presentes ocorrem entre
ética, humanização e cidadania. Neste sentido os dados agregam os processos de aprendizagem
ética aos conteúdos e práticas da Saúde Coletiva, os quais parecem facilitar o que se
compreende por ensino-aprendizagem ético.

[...] acaba que a maioria tem essa visão, mas as vezes não trabalham muito essa
questão ética, não do sentido da humanização, de atender bem... isso tudo bem, se
trabalha bem [...] a maioria dos professores tem essa visão humanizada essa visão da
importância da subjetividade. Então para mim o que falta seria assim uma discussão,
uma organização, uma instrumentalização, até ética, em alguns determinados temas,
pra que isso fosse realmente trabalhado até o final, o desenvolvimento da competência
ética. (GA2P1)

A correlação entre as temáticas pode facilitar a aproximação ao campo da ética, mas


também afasta a busca por um maior aprofundamento nas suas especificidades. A própria
compreensão de Educação e de Universidade evidenciam as dificuldades de trabalhar com o
175

campo da subjetividade e da construção de atitudes, pormenorizando, por vezes, a dimensão


ética do ensino-aprendizado e suprimindo as possibilidades de operacionalizá-la.

[...] é um indicador claro de uma fragilidade que o ensino superior tem porque quando
você não sabe como avaliar é porque você não sabe, exatamente, o que você está
buscando. (GA4G3)

É, essa é a questão né, como a gente avalia ou incorpora a lógica do aprendizado de


atitudes né, de comportamentos, de modo de ser, então é muito complicado. (GA2P7)

Neste sentido, o pouco conhecimento de ética, associado à ausência de diálogo sobre


suas potencialidades tem inviabilizado uma educação intencional e organizada para o ensino-
aprendizagem ético, fragmentando e individualizando as possibilidades dessa aprendizagem na
Educação em Saúde, como veremos nas subcategorias a seguir.

4.6.2 Definindo valores para um ensino-aprendizagem ético

Trabalhar intencionalmente a dimensão ética da educação superior em Saúde necessita


de uma compreensão dos valores que vão fundamentar o processo de ensino-aprendizagem,
pois os mesmos não definem somente conteúdos, mas também as práticas pedagógicas e as
atitudes a serem fomentadas. Saber quais valores se desejam estimular na educação superior
em Saúde é fundamental.

Então, você não nasce ético, você precisa desenvolver as virtudes para tornar-se um
sujeito ético, então eu acho que a gente tem que estimular o desenvolvimento dessas
virtudes, de valores para que lá no final as pessoas possam agir dessa forma. (GA2P1)

[...] ele tem que saber tomar decisões. Pra ele saber tomar decisões ele vai ter que
recorrer aos seus valores, aos seus princípios [...] Quais princípios? Os que ele
aprendeu ali também, entendeu? (GA2P4)

Os valores necessários ao processo educativo ético são aqueles que auxiliam a busca
por uma maior autonomia moral do indivíduo, podendo gerar responsabilidade e compromisso
com a sua educação e a do coletivo.

Pelo princípio da autonomia pressupõe-se que os sujeitos destas práticas são


indivíduos que interrogam, refletem e deliberam com liberdade e responsabilidade,
numa permanente capacitação para se representar na vida social, responder a novos
problemas e fortalecer-se como indivíduo ativo e capaz de solidarizar-se com os
demais. (GA1D3)

Fomentar a autonomia não prescinde da necessidade de desenvolver a capacidade


relacional, exigindo que o valor do respeito esteja internalizado possibilitando que relações
dialógicas aconteçam, relações consideradas facilitadoras do ensino-aprendizagem ético. As
176

relações dialógicas fomentam valores que permitem o diálogo e o questionamento


possibilitando a construção de uma consciência crítica.

Eu sempre procuro trabalhar na perspectiva de uma relação pautada no diálogo, acho


que é um aspecto bastante importante quando nós pensamos nas questões éticas, a
questão do diálogo, da equidade, do respeito às posições, às colocações do outro, a
perspectiva de uma atuação que seja justa, que considere os aspectos todos que estão
envolvidos nas questões. (GA2P16)

A gente vê inúmeros comportamentos da Universidade que são comportamentos


completamente antiéticos, do ponto de vista de respeito ao ser humano, de respeito à
valores universais, a gente vê isso em sala de aula. (GA4G3)

Vivenciar relações respeitosas está no cerne da necessidade de horizontalidade e


reciprocidade, essenciais no processo educativo. Atribui-se ao papel do professor a carência do
valor da humildade frente aos conhecimentos acumulados. A necessidade deste valor está
associada à possibilidade de reduzir os distanciamentos entre estudantes e professores, uma
humildade que também ensina o futuro profissional a se portar diante do paciente.

[...] acho que existe uma coisa muito importante em qualquer pessoa, em qualquer
profissional de todas as áreas, que é humildade, é você entender que, okay, ele tem
um conhecimento muito bom, ele fez um doutorado extremamente bom, agora,
entender que nós somos estudantes, que a gente não chegou até lá ainda, que a gente
tá aqui penando para chegar lá em algum momento e que está tudo bem se a gente
tiver alguma dúvida. (GA3E10)

Tu tens que ter essa humildade, essa generosidade. Mas ao mesmo tempo na ação com
o estudante o professor não abre mão, é muito difícil pra mim, porque eu sinto que eu
preciso, em alguns momentos, exercer uma autoridade, o aluno está precisando
daquilo, e eu tenho dificuldades. (GA2P4)

Estes valores necessitam ser vivenciados para a construção da identidade do corpo


acadêmico. Reflexionar sobre os mesmos também permite compreender o papel da autoridade
na relação pedagógica e no cuidado em saúde, uma autoridade decorrente do conhecimento,
mas que não prescinde do respeito e do diálogo com o outro, valorizando as “diversas formas
de saber e buscando a superação da discriminação, da exclusão e do autoritarismo” (GA1D3).
A busca por reciprocidade nas relações auxilia a aprendizagem a partir do exemplo, mas
também por mobilizar afetos e um ‘sentir-se bem’ dentro da universidade. Estes valores
parecem fundamentar o que o corpo acadêmico visualiza como vivência humanizadora, que
permite o sentir-se incluído, pertencente à um grupo que compartilha acertos e erros e,
principalmente, dúvidas. Já nos espaços em que essas relações são de opressão há a necessidade
de o estudante/professor ter alguma sensibilidade para compreender o dever de enfrentamento.
O estímulo à autonomia moral é necessário para que a construção moral não aconteça na lógica
177

do valor da obediência – que leva à reprodução, por vezes, de ações de opressão, seja com os
pares, seja com os sujeitos da assistência à saúde.
Neste sentido, os valores que mobilizam afetos na aprendizagem aparentam qualificar
este processo, como um elemento potencializador nas possibilidades de ensino-aprendizagem
ético.

[...] a outra professora não entendeu essa dimensão, porque ela vivenciou outra coisa,
mas aquela turma, na hora que apresentou e todo mundo conversou, foi muito bom,
porque eu acho que atingiu mais, e me emocionou demais [...] foi a primeira vez que
eu tive essa reação, eu não consegui segurar a emoção de ver uma fala que foi muito
além de ir ali tampar o buraquinho da ART, foi incrível. Essa mudança, esse desafio,
foi muito bom até com o ser professor. (GA2P13)

O aluno deve desenvolver competências afetivas, ou seja, habilidades relativas à


comunicação, relacionamentos interpessoais, trabalho em equipe, ética, cidadania,
autoconfiança. (GA1D1)

O trabalhar com a consciência desse conjunto de valores que potencializam o ensino-


aprendizagem ético auxilia o professor a compreender o seu papel como educador, e também
auxiliam as práticas decisórias de todo o corpo acadêmico nas construções compartilhadas e
inclusivas.

[...] tem a questão de valores pessoais, por exemplo, nós temos um professor de
ginecologia que dá aula sobre aborto e ele fala contra o aborto em sala de aula, duvido
que seja uma atitude correta sabe... ele deveria mostrar os dois lados pelo menos [...]
mas é difícil essas pessoas se despirem dos seus valores pessoais. (GA2P10)

A busca por trabalhar com valores que fomentem o ensino-aprendizagem ético no


espaço universitário passa por todas as interações sociais, transcendendo a sala de aula. Discutir
sobre os valores desejáveis torna-se essencial pois é a vivência dos mesmos, de forma
consciente ou não, que conformam todas as atitudes do corpo acadêmico, construindo sua
personalidade moral. A instituição universitária procura estabelecer os valores que a
fundamentam onde o “respeito à pluralidade e à diversidade cultural é requisito fundamental
para processo de formação que se quer aberto, flexível, cidadão” (GA1D3). A Universidade
coloca-se como um espaço de convivência com o diverso, reconhecendo as múltiplas
expressões da vida social e cultural, locais e globais (GA1D3). Para que a construção moral do
corpo acadêmico ocorra com responsabilidade ética, os modos de ensinar e aprender devem ser
compatíveis com essa perspectiva.

[...] a instituição é responsável pela formação ética das pessoas também. Qual é o tipo
de virtude das pessoas que se formam aqui? [...] eu posso te dizer que não são virtudes
que eu considere boas para a convivência, são virtudes muito excludentes,
individualistas, egoístas, ambiciosas, competitivas e extremamente biologicistas e
burras [...] na minha visão são burras, porque são ineficientes. (GA3E5)
178

Compreender a Universidade como responsável pela educação moral e construção da


identidade de seus indivíduos se faz necessário. Cabe ao corpo acadêmico realizar valores que
busquem uma maior responsabilização com o coletivo, desenvolvendo formas mais potentes de
trabalhar com a dimensão ética da Educação: “eu acho que a partir da cidadania a gente pode
trabalhar alguns aspectos que permeiam a questão moral, questão ética” (GA2P14). A
Universidade enquanto uma instituição democrática e de direito possibilita e fundamenta que
as relações vivenciadas neste espaço estejam embasadas em valores necessários ao ensino-
aprendizagem ético.

[...] aqui dentro você deve entender que você deve respeitar os seus colegas negros,
você tem que respeitar, você vai respeitar! Isso não é uma opção, aqui dentro da
comunidade Universitária, o respeito vai ser frisado e vai ser cobrado. Porque,
teoricamente, dentro de uma Universidade você deve proporcionar igualdade a todos,
e o respeito, oportunidades. (GA3E4)

Nos cursos da Saúde, a construção de cidadania deve ser fortalecida na compreensão do


direito à saúde, na busca por uma sociedade em que a qualidade de vida seja acessível a todos.
A aprendizagem desses valores contribui para a educação de um profissional que seja também
um cidadão comprometido.

[...] acho muito difícil trabalhar a equidade, por exemplo, na sociedade atual porque
contradiz a meritocracia que tá muito forte... e esses valores são basilares assim, se
você acredita que tudo é meritocracia na vida, como você discute direito à saúde?
(GA2P3)

[...] a gente trabalha com a premissa de cidadania [...] de colocar o sujeito como autor
do processo dele de saúde-doença, a gente trabalha com o respeito às sabedorias
populares [...] a gente trabalha com a questão da sustentabilidade, do meio ambiente,
com o uso adequado dos recursos naturais. (GA2P14)

A vivência de valores na educação superior em Saúde, a reflexão ética sobre os mesmos,


também inclui a consciência e a criticidade quanto aos valores envolvidos nas relações que
compõem a sociedade. Trabalhar com os valores de autonomia, respeito e responsabilidade
associados a construção de uma cidadania embasada na saúde como um bem coletivo
fundamenta o ensino-aprendizagem ético na educação superior em Saúde. A motivação e
percepção do cuidado e responsabilidade com o coletivo evidencia a necessidade de
experiencias de relações empáticas, pois a empatia permite a busca por compreender o outro,
aproximar-se com a realidade do mundo do outro, premissas consideradas essenciais no
trabalho em saúde e na construção cidadã.

Eu acho que empatia é muito importante, muito importante, a humildade, se colocar


no lugar do outro e entender [...] porque o que muito falta, é como eu disse, aqui é
179

uma Universidade privada então muita gente nasceu em berço de ouro, não passou
por dificuldade e não entende a dificuldade do próximo. (GA3E10)

[...] quando o aluno entende a dimensão da desigualdade, quando ele entende a


dimensão do que é a desigualdade, e esse entender significa até vivenciar, porque
quando o aluno sai para estágios extra muro ele vivência e isso faz ele crescer.
(GA2P13)

A construção cidadã do trabalhador da saúde passam por esses valores do cuidado, da


responsabilidade de incluir a família e a comunidade nas decisões em saúde, do respeito, do
diálogo e da empatia, valores que sustentam a aplicabilidade dos próprios princípios do SUS.

[...] tem muito a acesso à pessoa, ao corpo da pessoa. Acaba tendo acesso até a
intimidade da pessoa, então assim tem muitos valores envolvidos, a questão da
privacidade, da individualidade, de não expor a pessoa, então é um campo riquíssimo
em valores que a própria relação com o outro [...] por isso que eu digo que, às vezes,
transversalmente, você tem que trabalhar a ética por causa disso. (GA2P1)

Este cuidar do outro, pensar o bem coletivo como inerente ao processo de cuidado em
saúde, parece ter valores em comum ao construir a dimensão cidadã da vida, do sentir-se parte
e atuar em prol da coletividade. São relações vistas como necessárias à contemporaneidade.

Beira a falta de civilização, é como se a gente tivesse anos atrás no processo


civilizatório né [...] como se ainda não tivéssemos a carta dos direitos humanos, como
se ainda acreditássemos que existem humanos de diferentes categorias. (GA2P16)

[...] o que a gente tem vivido nos últimos anos e principalmente agora [...] porque eu
acho que é perseguição mesmo, é não aceitar a diversidade, a igualdade, porque isso
está muito mais presente, e que não era anos atrás [...] e acho que a gente pode falar
de liberdades, eu acho que hoje nós temos menos [...] houve momentos em que
minimamente você conseguia estabelecer ao menos um contexto de argumentar e
contra argumentar e hoje em dia você não tem mais espaço para isso. (GA2P15)

Existem alguns valores necessários na vivência e ensino-aprendizagem ético que já são


reconhecidos pelo corpo acadêmico, sendo valores também presentes nos princípios da Bioética
e dos códigos profissionais. Torna-se importante a compreensão e pactuação coletiva dos
valores que devem ser priorizados e vivenciados de forma compartilhada, além do diálogo sobre
como trazê-los para a educação superior em Saúde, como vivenciá-los e sentir-se responsáveis
por sua realização.

[...] o que eu tenho dito, o que eu tenho, escrito, que eu tenho defendido é que,
primeiro, a Universidade precisa ter valores e princípios que ela considere relevantes
e deve proporcionar condições para que esses princípios sejam valorizados. (GA4G1)

O desafio de se promover a dimensão ética da educação superior em Saúde implica na


compreensão do campo das ciências sociais e filosóficas onde a subjetividade precisa ser
trabalhada e traduzida em pedagogias, incluindo métodos avaliativos. As compreensões,
ideologias e interesses particulares do corpo acadêmico somam-se a dificuldades operacionais
180

e institucionais, dificultando que o corpo acadêmico trabalhe de forma consciente e coletiva a


questão ética na educação em Saúde. Estas dificuldades serão evidenciadas nas próximas duas
subcategorias a seguir.

4.6.3 Desenvolvendo o ensino-aprendizagem ético nas disciplinas curriculares

As experiências de trabalhar intencionalmente o ensino-aprendizagem ético dentro da


Universidade aparecem vinculadas às disciplinas de ética e bioética dentro dos cursos, quando
presentes no currículo. Além da admissão da relevância de disciplinas focadas no ensino-
aprendizagem ético, há uma consciência da importância de que esse ensino-aprendizagem se
dê também de forma transversal ao currículo para que esse ensino se efetive ao longo do curso.

Principalmente num sentido transversal à todo o currículo, que fosse pensada


articulada entre as disciplinas, num crescente de complexidade, para que o estudante
chegasse ao final do curso com a competência ética desenvolvida [...] Os professores
trabalham alguns aspectos éticos, mas parece assim que é uma coisa muito isolada,
não tá integrado num crescente de discussão até chegar na formação. Então eu tenho
essa avaliação, a intenção existe, mas na realidade isso ainda não é uma coisa que
realmente está estruturada. (GA2P1)

[...] eu entendo que é importante que existam espaços específicos de discussão sobre
o tema, mas para mim, do ponto de vista estratégico é tão importante, ou mais, que
essa discussão entre nos espaços já estabelecidos. (GA4G3)

A transversalidade do ensino-aprendizagem ético requer um preparo de todo o corpo


docente, seja na educação continuada, seja um preparo prévio, durante a formação docente.

Para trabalhar com ética você precisa ter algumas ferramentas, alguns subsídios, se
não fica aquela coisa só do valor do professor. Então muitas vezes o valor do professor
entra em choque com o valor do aluno e aí fica por isso mesmo. (GA2P1)

Pensar a qualificação dos professores para trabalharem com o ensino-aprendizagem


ético de forma transversal ao currículo é um anseio distante da realidade já que nem do professor
das disciplinas especificas de ética e bioética é exigido alguma preparação específica na
temática.

[...] que preparo o professor tem pra isso, que sensibilidade, até formação mesmo,
porque eles acham que para dar ética não precisa de formação [...] aquela coisa que
ética vem do berço e eu sou professor, portanto eu sei falar da ética no campo da
minha profissão [...] e não é assim, é como se não requeresse estudos e tudo mais.
(GA2P8)

Deste modo, tornar o ensino-aprendizagem ético transversal às disciplinas passa pela


dificuldade da própria compreensão do significado, e por consequência, da importância, da ética
na educação superior em Saúde: “porque se a gente vive um tempo em que a filosofia é alijada
181

da construção da sociedade então a dimensão ética está sendo afetada diretamente, ela está
sendo espoliada” (GA2P9). A educação moral não é percebida como um papel do professor
universitário, ficando dependente da intencionalidade e sensibilidade do docente de cada
disciplina às questões morais.

Porque ficou muito no desejo e nas condições de cada grupo de professor, em cada
fase, em cada semestre entenderem essa importância e realmente inserir e articular as
temáticas da ética e da bioética com seu campo. (GA2P8)

Não vou dizer que eles não trabalham, muitos professores trabalham, tem muita
discussão ética, mas eu tenho um pouco de receio que não esteja sendo trabalhada de
uma forma efetiva. (GA2P1)

A descontinuidade do processo de construção intencional da identidade estudantil pode


prejudicar a vivência e a internalização dos valores considerados importantes para a construção
de suas facetas identitárias. O modo de compreender a ética a posiciona em uma situação de
quase invisibilidade, de insuficiente valorização para se efetivar na prática, dificultando um
interesse compartilhado para trabalhar nesta dimensão educativa.

[...] algo que a gente pudesse começar a oferecer... e estimular... porque eu acho que
as vezes as pessoas precisam de um direcionamento [...] no sentido de ter uma visão,
estimular uma visão, uma valorização daquilo... porque é isso que precisa, porque no
dia a dia a gente não enxerga e não trabalha [...] Podia ser até uma disciplina para área
da saúde toda, não precisa ser só um curso, eu já pensei nisso. (GA2P1)

Pensar o ensino-aprendizagem ético dentro do currículo também exige um apoio de base


institucional, pois os interesses pessoais e as concepções sobre ética e educação superior em
Saúde podem trazer pressões sobre as práticas, conteúdos e processos educativos: “o currículo
não trata de humanidades, o currículo trata de conteúdo, não trata de ter que ensinar a postura
do médico, né?” (GA2P10). Apesar da área de humanidades fazer parte do conteúdo curricular
e a postura do profissional de Saúde ser trabalhada tradicionalmente nas disciplinas
deontológicas e, num caráter mais reflexivo, nas disciplinas de bioética, são perspectivas
educativas que se mostram sub-representadas, menos presentes na grade curricular. A
desvalorização destas áreas, especialmente importantes para a construção da personalidade
moral estudantil, é causa, e também resultado, do ainda incipiente interesse na dimensão ética
da Educação.
Há uma necessidade de que haja um compromisso institucional com a dimensão ética
da Educação, assumidas pelas DCN, como uma forma de estimular um trabalho compartilhado
de todo o corpo acadêmico, que possibilite pensar uma estruturação e operacionalização deste
ensino. Ao mesmo tempo, compreende-se que a instituição educativa é o coletivo de gestores,
professores e estudantes cabendo aos mesmos a valorização desta dimensão. Há, portanto uma
182

necessidade de simultaneidade e reforço de ações e valorizações, para que o trabalho com o


ensino-aprendizagem ético se torne presente e contínuo.

Nós fomos obrigados a pegar cada disciplina e transformar nesse novo modelo que
(as DCN) querem ter [...] tu desconstruir o conteúdo da disciplina e colocar na lógica
do conhecimento, das atitudes [...] cognitivo, procedimental e ético. E é interessante
porque tu começas a perceber que tem um montão de coisa que está na lógica ética e
que desaparece do conteúdo, entendesse? Mas se você for forçado... tem uma
dimensão ética na legislação, na prática, na anamnese, no exame físico. Eu acho que
a gente deveria exercitar mais essa desconstrução do conteúdo para chegar a uma
expressão mais formal daquele conteúdo que nós temos que abordar, se não for muito
estruturado, mas pelo menos é um conteúdo que você não vai deixar desaparecer né...
pela pressão da técnica ou da habilidade da técnica que você vai ter que exercer [...].
Seria expressar isso num plano de ensino, de uma forma concreta, quais seriam as
estratégias para fazer esse conteúdo que agora ele descobriu que está lá no campo da
ética, que estratégia você vai utilizar né, pedagógica. (GA2P7)

Neste sentido, o encantamento com a técnica reforçado durante o percurso acadêmico,


traz desafios para as disciplinas que buscam trabalhar outras dimensões da educação superior:
“[...] quando você está tecnificando você está, num certo sentido, subtraindo a possibilidade do
desenvolvimento humano, e aí o desenvolvimento moral vem junto” (GA2P2). São desafios de
despertar o interesse, o diálogo, repensar o significado de educação como promotora de
questionamentos e reflexões: “[..] então como discutir, como trabalhar o conteúdo de uma
forma que fosse interessante para o estudante e que, minimamente, permitisse que eles
pensassem, refletissem” (GA2P15).
As dificuldades de pactuação sobre a fundamentação teórico-filosófica do processo
educativo nos cursos da Saúde também ampliam os impasses nas possibilidades de
operacionalização da educação moral em todo o percurso educativo.

[...] a gente não tem uma discussão que diga que nós vamos seguir tal linha
pedagógica, não existe. A nossa linha pedagógica é a tradicional, é a expositiva, é a
memorização [...] e isso dificulta a cola da dimensão ética na formação, porque se não
tem reflexão não tem problema, não tem dúvida! (GA2P4)

Trazer o ensino-aprendizagem ético para dentro da sala de aula exige o enfrentamento


dos paradigmas e racionalidades hegemônicas na educação profissional em saúde, ensejando
abertura, novas estratégias e reformulações.

[...] e da maneira como foi aprimorada a disciplina – porque daí teve que fazer uma
mudança metodológica, porque sem isso também como que tu vais ensinar um
conteúdo com aulas expositivas e prova... então ela é uma disciplina muito
desafiadora, tem que ter um preparo, as professoras mesmo pra ministrar essa
disciplina. (GA2P4)

[...] até tu fazer uma prova sobre isso é muito mais difícil [...] por exemplo, eu dou
uma aula de icterícia e uma de vínculo afetivo: tu fazer a prova sobre icterícia é
facílimo, tu tem um milhão de perguntas e o que tu quiser, agora falar sobre vínculo
183

e fazer uma boa questão sobre vínculo afetivo é muito difícil [...] fazer múltipla
escolha pra vínculo afetivo não combina tu entendes? Ah tem que fazer discursiva [...]
eu faço [...] mas é muito trabalho! Eu sou um dos únicos que fazem discursiva tu
entendes? (GA2P10)

As estruturas e métodos conformados pelas racionalidades de ensino hegemônicas


aparentam não ser condizentes às necessidades de uma Educação pensada para a construção da
identidade.

[...] tu consegues quando tu da aula prática num pequeno grupo você consegue
transmitir isso [...] eu defendo a tese que a gente não pode deixar mais do que 4 alunos
[...] pelo menos não na pratica. Porque tu vais ensinar essas questões de atitude com
ele vendo você fazer, e não só ele olhando, mas tu tentando se dar conta se ele
conseguiu ver e perceber. (GA2P10)

[...] acho que a gente teve um desenvolvimento superinteressante enquanto ser


humano mesmo, numa relação um pouco mais horizontal, mas quantos deles ficaram
de fora da relação? Eu lembro de uns dez ou doze, mas a turma tinha 60, e os outros
45? (GA2P2)

As dificuldades operacionais, a capacitação de professores e seus entendimentos sobre


Educação Superior e sobre o papel da Universidade aparentam reduzir a realidade da educação
moral à uma educação deontológica.

[...] eu vejo a dimensão ética muito, na verdade, focada – pelo menos em questão de
ementa e distribuição do curso, muito focada no sentido de estudar o código de ética,
ou então difusas na lógica de que o exemplo do professor que vai gerar um
comportamento mais ético [...] então a ideia do curso aqui não é muito clara, ou seja,
no fundo você não assume muito a dimensão ética numa logica materializada durante
o curso. Essa é a grande verdade. A minha avaliação é de que nós simplificamos a
ética no sentido mais profundo e transformamos em deontologia, numa lógica mais
cientifica, entendes? (GA2P7)

As dificuldades teóricas contribuem para que os métodos e as temáticas elencados não


consigam trabalhar o ensino-aprendizagem ético, e muito menos trazê-la para a vida cotidiana.
Os professores percebem uma ausência de instrumentos para este ensino, porém os usos desses
instrumentos dependem da base teórica e da própria sensibilização às questões morais para que,
por exemplo, as temáticas não sejam reduzidas às questões de vida ou morte e os métodos,
reproduzidos de forma disjunta ao seu sentido pedagógico.

Pra mim é bem crítico isso [...] grupos que utilizam metodologias ativas, a
metodologia parte do docente, ela não é uma opção dos estudantes, das estudantes [...]
então assim o que é a tal da metodologia ativa [...] e isso pensando que metodologia
ativa ainda é um dos caminhos mais horizontais que a gente tem hoje há disposição,
então não acho [...] em termos de desenvolvimento moral é complicado pensar nisso”.
(GA2P2)

Neste sentido, reforça-se a importância de assumir quais valores serão escolhidos como
essenciais ao ensino-aprendizagem ético, pois estes também fundamentam as escolhas
184

pedagógicas e atitudes do corpo docente no ensino. Desse modo, o estímulo ao questionamento


e a reflexão crítica podem potencializar esse ensino-aprendizagem em qualquer disciplina.

Eu acho que todas as disciplinas, todas, eu não vejo uma disciplina que não pudesse
incluir na sua programação, no seu programa, a discussão da dimensão ética dentro
daquela questão específica. Tem que ser um pensamento cotidiano, tem que ser uma
prática cotidiana, a prática do questionamento, de perguntar por que é assim, a quem
serve, porque impacta, qual é a nossa responsabilidade nisso... pra qualquer coisa. Eu
acho que é um raciocínio que cabe, que seria meio que desenvolver uma lógica
constante, uma prática cotidiana de questionar, de discutir o porquê é assim, pra que
é assim, né? (GA2P3)

Assim, as escolhas pedagógicas sobre as temáticas a serem trabalhadas, ou sobre o foco


e ênfase que se dará às temáticas elencadas, também são dependentes dos interesses e valores
de cada professor ou grupo docente, em que pese a necessidade de haver uma intencionalidade
ética presente e discutida em coletivo.

[...] a transversalidade seria o grande contribuidor, por exemplo, você vai dar uma
aula de gestão, você tem inúmeras formas de escolher como você vai fazer isso, então
é óbvio que eu vou escolher trabalhar com gestão participativa, cogestão, gestão
humanizada, então isso já é uma escolha a partir desse olhar, e não foi o modelo
teórico que me fez fazer essa escolha, foi uma grande contribuição de juntar a
dimensão teórica que eu venho trabalhando, que eu venho me construindo com a
dimensão ética que também venho me construindo, e eu fazer a escolha daí nesse
sentido. Então eu tenho clareza de que para algumas pessoas, alguns professores, vão
entender isso como uma distorção do currículo, do meu ponto de vista é uma forma
de você garantir que a dimensão política esteja presente, a dimensão ética esteja
presente e a dimensão teórica também esteja presente, né [...] de você fazer escolhas
deliberadamente e não só porque tem um rol de conteúdo a ser dado eu simplesmente
olhá-los sem fazer a crítica, não, eu tenho que olhá-los, fazer a crítica e ver que há
diferentes possibilidades de construir aquele mesmo conteúdo. Então é sair do comum
né? (GA2P9)

Sobre os conteúdos pensados para trabalhar o ensino-aprendizagem ético, destaca-se a


importância de não se estagnar nas temáticas dilemáticas que envolvem o campo da saúde.
Reforça-se a importância de trazer o questionamento, a reflexão para o cotidiano.

[...] a discussão é intensa e no nosso campo ela é fértil até para atrair gente porque os
dilemas éticos dos profissionais da saúde são muito intensos e você pode usar aquilo
como mote né, você tem um caso gravíssimo, que é complicadíssimo e você pode usa
aquilo para dizer: - ‘e o bom senso lá como que fica?. [...] não importa o caso, mas
chamam muito mais atenção, evidentemente, aqueles que são mais... como aborto,
transfusão de sangue, final de vida, qualquer que seja esse tema, ele pode nos trazer a
chance de expandir dentro dele [...] e acho que esse pode ser um caminho que a gente
deve seguir para que a discussão não seja apenas estanque em um curso como o nosso,
para que não seja pontual. (GA4G2)

Neste contexto, o ensino-aprendizagem ético dentro da sala de aula vem sendo


trabalhada de distintas formas, condizentes com a compreensão e valorização que cada
professor tem de ética. Os modos de compreendê-la refletem nas dificuldades do ensino de
185

atitudes, um ensino sub-representado na educação superior: “é muito fácil tu ensinar conteúdos,


agora tu ensinar atitudes é dificílimo!” (GA2P10). A indissociabilidade do ensino-
aprendizagem ético e atitudinal leva a um consenso com relação à necessidade de que a
educação moral não esteja estagnada em disciplinas teóricas, mas também referenciadas com
as práticas do curso da saúde.
Ele não tem grandes experiencias clínicas, então ele está se encontrando com o que,
futuramente, lhe será exigido profissionalmente. Então pode ser que essa condição me
dê um olhar diferente [...] pode ser que alguém que esteja no hospital [...] as
obrigações éticas do aluno dentro de um hospital são muito grandes né, sigilo, as
relações que ele tem com o staff, com os outros profissionais de saúde, como aluno
né e com os próprios professores é bastante... ou seja, me parece que ali você tem a
oportunidade mais palpável, mais próxima da discussão da ética, já que tu vai
trabalhar diretamente com o paciente né. (GA2P7)

Assim, a articulação entre teoria e prática, fundamental na educação cidadã e


profissional, também se faz indispensável ao ensino-aprendizagem ético. Conectar a
aprendizagem teórica às atividades práticas, tem sido defendido como uma forma de fazer com
que o estudante experencie as questões éticas, e pratique atitudes, possibilitando uma
sensibilização às questões morais da área da saúde: “[...] numa atividade mais prática, o aluno
é obrigado a se expor, a produzir alguma coisa que te demostra que ele, de fato, estão
compreendendo, evoluindo de alguma forma” (GA2P7).

[...] pelo menos nas turmas das nossas orientações e as orientações com os professores,
a gente tenta resgatar bastante das experiências que eles vão passando durante a
semana – a gente discute uma vez por semana, trazendo muito essa dimensão
humanizada do serviço. A responsabilidade que a gente tem sobre isso, sobre as
pessoas, né... a questão das necessidades delas [...] que eu acho que é uma dimensão
ética do trabalho. (GA2P3)

As atividades práticas são valorizadas como ambientes em que o contexto se aproxima


à realidade, nas quais as diferentes moralidades presentes podem entrar em conflito e gerar
questões ou problemas éticos. Estes podem, e devem, ser dialogados e refletidos: “identificar
que aquilo é um problema ético e trabalhar com o aluno é o que, às vezes, não acontece, porque
isso vai contribuir com a formação do aluno e do professor também” (GA2P1). O trabalhar com
problemas éticos tem sido uma estratégia utilizada para reflexão e sensibilização dos estudantes
às questões morais.

[...] um estímulo aos alunos para que eles tivessem desenvolvido essa sensibilidade
para identificar que aquele é um problema e que esse problema é ético, e que esse
problema ético pode interferir sim nesse desenvolvimento, essa evolução clínica do
paciente. (GA2P1)
186

Percebe-se que o ensino-aprendizagem ético, independentemente da disciplina em que


ocorra, necessita de reflexão contextualizada. Além disso, necessita ser trabalhada por meio de
processos colaborativos e reflexões coletivas onde o envolvimento do estudante, sua
participação em sala de aula, é essencial neste processo

Quais são as estratégias que eu consigo criar de vínculos e de experiências? Eu volto


a insistir, porque pra mim, se não é experenciado, não passa pelo plano do racional e
isso não constitui ser humano, então quanto que eu consigo criar experiencias, criar
settings, criar cenários pra que seja efetivamente, ou cada vez mais efetivamente,
processos colaborativos e portanto éticos. (GA2P2)

[...] a gente que se ancora em alguns grupos dentro da sala de aula que viabilizam que
a gente trabalhe essas coisas um pouco, se não [...] se a gente, também, não
conseguisse ancorar nada na sala de aula fica muito frágil a situação do professor. É
uma fala inócua né, não reverbera, não tem jeito. (GA2P3)

A aprendizagem ética depende então de qual sentido o estudante dá para seu percurso
educativo, para que se interesse por compartilhar percepções, refletir e modificar atitudes, mas
especialmente do professor entender como sua essa tarefa ético-pedagógica. Assumir a
aprendizagem ética como parte da missão universitária é fundamental para que o docente
oportunize e se interesse por essa abertura com o estudante, por compreender que não necessita
e nem deve deter todas as respostas. Neste sentido o papel de educador, as posturas que o
docente assume também influi nas possibilidades de aprendizagem ética.

[...] eu fico bem feliz, por exemplo, quando existe professor que dá abertura pra gente
falar, discutir, colocar algumas questões [...] enfim, problematizar algumas coisas.
Isso eu acho que é uma mudança bem importante e é algo que não precisa de nada,
não precisa mudar o professor, não precisa mudar a hora/aula, não precisa mudar as
regras do jogo, não precisa mudar nada, a gente vai estar fazendo as mesmas coisas
que a gente fez só que com uma visão diferente. (GA3E5)

A transversalidade da aprendizagem ética no currículo não necessita partir somente do


interesse do professor ou da instituição, os próprios estudantes, as organizações estudantis, tem
colocado como essencial a aprendizagem em valores dentro da Universidade, principalmente
valores que incentivem a sua construção humanizada e cidadã. Parece que quando há algum
incentivo, alguma experiência com a aprendizagem ética, há um interesse dos estudantes por
esse campo de conhecimento.

[...] conversamos com as professoras da disciplina [...] e elas cederam uma manhã pra
gente. Então nessa manhã a gente convidou cinco coletivos para virem, para cada um
ir lá e trazer a sua experiencia, trazendo um espaço institucional, então era uma aula,
eles iam lá, tinha presença, eles iam num horário e tudo mais, toda a estrutura de aula,
dentro da disciplina, só que o grande mote era que as próprias pessoas que passam por
isso fossem lá tratar desses assuntos com os calouros. Como eu falei, é como se fosse
‘ah um tema transversal’ tem que tratar a ética, a diversidade e tudo mais, então foi
uma sensibilização, um espaço lá no início, mas que a gente espera que já traga
algum... ampliar um pouco o debate futuro né? E é uma grande mesa redonda né, a
187

gente vai, senta todo mundo e vamos conversar quais são as dificuldades, quais as
possibilidades. (GA3E3)

[...] os professores estavam se queixando dos alunos terem que fazer a disciplina
obrigatória de Bioética e o coordenador falava assim: ‘você já conversou com os seus
alunos, antes e depois da disciplina? invariavelmente eles saem de lá adorando a
disciplina’, porque é um lugar onde eles têm uma discussão que eles não têm, em
geral, em outros lugares e é isso que eles precisam ter, também, em outros lugares.
(GA4G)

[...] porque é justamente esse discernimento crítico que eles estão tendo que levou a
essa discussão, e a pessoa quando tem [...] quando ela começa a perceber isso é difícil
ela querer menos, ela sempre vai querer mais! Depois que você enxerga o que tem
além sabe, não tem mais volta, você vai querer sempre ir pra frente, discutir mais e
entender mais e querer participar mais. (GA3E6)

Esse olhar reforça as reflexões sobre a necessidade do comprometimento com a


aprendizagem ética dentro no currículo, pois “o estudante também, se não quiser se envolver
nos temas éticos não precisa, porque não é isso que é exigido dele no curso” (GA3E2). Trazer
então a aprendizagem ética para o ensino formal poderia ser um estímulo inicial à inserção das
reflexões sobre a dimensão ética na vida acadêmica: “eu acho que quando você oferta, a pessoa
aprende” (GA2P4).

[...] nós até tentamos, acho que fizemos duas ou três edições de cine debate no fim da
tarde, mas também o público era bastante reduzido e acabamos não tendo mais
estimulo de continuar... eu acho que teria que ser mesmo como uma disciplina que
fosse obrigatória, para começar pelo menos, para que as pessoas pudessem perceber
o que está ali. (GA2P16)

É fundamental que o ensino de ética não seja colocado à margem do currículo, mas que
seja incorporado como disciplina curricular, o que não diminui a necessidade de que a
aprendizagem ética esteja implicada em todo o processo educativo. Um comprometimento com
a própria indissociabilidade da dimensão ética da Educação e do ensino-aprendizagem. É
importante que os professores e estudantes também percebam que a construção moral acontece
ao longo de toda a vida, reconheçam os elementos que interferem nas suas decisões e atitudes,
sua própria moralidade.
Neste sentido, desenvolver a aprendizagem ética na Educação Superior também
encontra dificuldade por ser considerada, por vezes, um momento tardio para a construção
moral dos indivíduos.

[...] então acho que se pode aprender, mas eu acho que é um pouco tarde, no ensino
superior [...] tem algumas coisas que ele já deveria estar proficiente né. Mas como a
gente vive no Brasil, a educação em si também tem suas dificuldades, então chega à
pessoa no ensino superior que nunca teve oportunidade de uma discussão, talvez
nunca tenha participado de uma representação discente no colégio [...]. (GA2P4)
188

Com a aprendizagem ética compreendida como possível e assumida como


responsabilidade do corpo docente, torna-se viável o diálogo e a construção compartilhada
sobre o que se espera do estudante em relação à aprendizagem ética, uma discussão necessária
para também se definir as possibilidades de atuação do corpo docente. Trabalhar os constructos
teóricos, metodológicos e avaliativos que sejam condizentes com esta dimensão da educação.

Ter mais claro o que a gente espera efetivamente como comportamento atitudinal do
estudante na área da saúde. Então eu elencaria essas três: (1) a necessidade de
comunicação para dentro e para fora da área de conhecimento -que envolve, além do
diálogo, um pouco mais de clareza, por exemplo, do que é então o corpo teórico
necessário para a formação desse estudante; (2) a necessidade de estabelecimento de
um corpo teórico que seja referência para todos; e (3) a necessidade de estabelecer
estratégias de avaliação que pudessem, efetivamente, dar indicativos de que essa
formação teria ocorrido ou não [...]. E a gente vê com muita fragilidade no caso da
formação em saúde a avaliação da dimensão ética do trabalho, ela fica, muitas vezes
não só as questões éticas, mas todas as questões atitudinais do estudante, ficam meio
que subjetivas ou de forma subliminar. (GA4G3)

A avaliação atitudinal é um caminho necessário para fomentar a intencionalidade ética


no processo de ensino-aprendizagem, mas também uma forma de fazer com que se busque
compreender melhor do que se trata.

Então a gente decidiu que seria transversal, mas com todos os cuidados. O nosso
instrumento de avaliação garante [...] garante é uma palavra forte, mas ele prevê que
cada preceptor cada tutor, cada residente enxergue essa dimensão ética em cada um
dos critérios que a gente avalia: pontualidade, assiduidade [...] foi impossível para
aquele grupo pensar algo do tipo ‘essa pessoa respeita os princípios éticos: marco aqui
sim ou não’, como que tu vai fazer isso? Então a gente tinha esse compromisso que o
residente que sai dali era um cidadão com princípios éticos. (GA2P4)

Até porque, pensando em Universidade, o sistema de cobrança e avaliação


universitário tanto para aluno como para o professor, ele não capta essa dimensão
ética, ele é traduzido em números para serem mais fáceis de analisar, então é um
processo cíclico de dificuldades. (GA4G1)

[...] que encontre um jeito de isso ser controlado no senso mais amplo possível, até
por via perguntas no final de cada curso que o aluno possa responder, perguntas não
é nada agressivo ao docente, mas perguntas sobre ética, que atividades ele teve, como
ele estruturou, teve alguma resposta, teve algum caso polêmico, algum dilema que foi
decidido? Com isso você pode ter ideia de como as coisas estão. (GA4G2)

Fomentar a aprendizagem ética curricular requer uma maior compreensão do


significado da dimensão ética da Educação, para que os métodos pedagógicos, metodológicos
e avaliativos possam ser elaborados e aplicados neste percurso. Quando se questiona sobre as
possibilidades de reflexão ética, questiona-se também os paradigmas educacionais
hegemônicos na academia e sua possibilidade de incluir a criticidade no seu processo educativo.
Aprender os constructos teóricos, ganhar habilidades também práticas, com
metodologias e ferramentas de reflexão, devem fazer parte da preparação docente. A atuação
189

deliberada na construção do caráter estudantil também depende dos valores e interesses do


corpo docente, neste sentido, trabalhar com a educação moral inclui um olhar para a
aprendizagem ética do próprio docente.
Na última subcategoria serão discutidas as possibilidades de se compreender a
aprendizagem ética para além do currículo, compreendendo que a dimensão ética da educação
superior ocorre em todos os espaços e momentos do currículo real.

4.6.4 Fomentando a aprendizagem ética para além das disciplinas

Ao não se assumir a construção intencional da identidade como papel da Universidade


e, portanto, de todo o corpo acadêmico, dificulta-se sua consolidação: “eu não sei se o aluno
[...] percebe a importância dessas bases ou se isso fica assim na dependência da vontade”
(GA2P8), faltando uma maior integração dessas ações:

[...] então eu fico mais em paz quando eu vejo que tem muita gente fazendo o seu
pedaço, que tem iniciativas de integração, mas eu acho que a gente ainda está muito
disperso. (GA2P8)

O ensino-aprendizagem ético é considerado importante, mas sua aplicação restrita a


disciplinas específicas e muitas vezes fundamentadas em concepções equivocadas de ética leva
a reflexões e experiências pontuais, que tem um potencial reduzido de influenciar a construção
da personalidade moral dos estudantes.

O aluno tem que entender, no começo do curso, o que o professor vai discutir com ele
lá na frente, a Universidade precisa construir conhecimento, então tem que ter essa
construção bem solidificada. Solidificar a ciência da ética e daí ela ser praticada,
vivenciar, não dá pra deixá-la esquecida na discussão de um vídeo, numa disciplina
isolada. E o professor precisa aprender a importância da formação desse ser
profissional com valor. (GA2P13)

Assim, a percepção e o trabalho intencional com a dimensão ética da educação superior


é compreendida como possível e necessária, no entanto, o ensino-aprendizagem ético, além de
transversal ao currículo também deve ser acompanhada por um trabalho coeso a todo o percurso
acadêmico nos cursos da saúde: “não tem outro modo a não ser você juntar a aprendizagem
com a parte informal, que são as atividades do dia a dia né” (GA4G2).

[...] não precisa ser mudança drástica nenhuma, acho que a gente pode mudar é o
pensamento das pessoas, e que, claro, é radical né, mas não é uma coisa do tipo: -
‘precisamos construir mais prédios, precisamos mudar as nossas leis, as nossas
regras’, não é isso, é mudar o que é prioridade. (GA3E5)
190

Neste sentido, há uma necessidade de construção de uma cultura de ensino-


aprendizagem ético nos espaços universitários, capaz de gerar um fluxo de aprendizagem
contínuo para todo o corpo acadêmico.

Sem dúvida, a formação ética é estruturante né? ela que dá a cara, o tom do resto,
inclusive quando você faz tudo, quando você faz ensino, quando você faz pesquisa e
quando você faz cultura e extensão né [...] eu acredito que a formação ética que está
por trás, explicita ou implicitamente, ela vai ser determinante nas escolhas [...] que
os docentes fazem, como eles ensinam e como eles fazem pesquisa e em como eles
constroem as atividades de cultura e extensão. (GA3G4)

Os resultados indicam uma percepção de uma intencionalidade ética por parte da


instituição universitária, mas que falta uma operacionalização desse trabalho, uma estratégia
global da Universidade capaz de promover a dimensão ética da Educação, falta valorização
(que passa pela compreensão), sistematização e instrumentalização.

Então para mim o que falta seria assim uma discussão, uma organização, uma
instrumentalização, até ética, em alguns determinados temas, pra que isso fosse
realmente trabalhado até o final, o desenvolvimento da competência ética. (GA2P1)

Compreende-se que a construção da personalidade moral acontece independente da


intencionalidade ética, por isso importa apreender de forma coletiva o que significa e o que se
espera dessa construção: “E eu vejo também assim, que quando a gente está diante de um
autoritarismo, quando tu vives num ambiente repleto de injustiça tu ensina a pessoa a ser
injusta” (GA2P4). A não consideração da dimensão ética da educação parece construir
moralidades que não condizem com uma visão de cuidado e, ainda menos, de construção de
cidadania.

A gente percebe uma dessensibilização constante, progressiva, crescente ao longo do


curso. Você entra de uma maneira e sai formado para outra maneira, sai com uma
visão muito mais da doença, do órgão, do tecido, da disfunção, do que enxergar no
indivíduo e é muito mais difícil você construir a moral em cima de doenças né, e não
de pessoas. (GA3E5)

Pensar criticamente sobre as questões morais deve estar incorporado nas práticas diárias
da vida acadêmica para que as falas transcendam a incorporação de uma determinada percepção
de moralidade comum (um ‘politicamente correto’) e passem a condizer com as atitudes, para
tanto, se faz necessário vivenciar a dimensão ética da educação superior em Saúde
cotidianamente, experiências que possam também ser refletidas eticamente.

Eu acho que a gente tem que discutir, mas a minha dúvida é se esse indivíduo
vivenciando uma discussão ética, moral, ele vai reproduzir isso fora daqui e de que
forma ele vai conseguir mudar [...] eu tenho essa preocupação, porque eu vejo o aluno
muito diferente [...] o aluno que eu converso em sala de aula é um aluno diferente de
quando ele tá no barzinho, entende? É como se ele tivesse ali mantendo uma aparência
191

do que ele precisa ser em sala e de repente fora dali ele mostra quem é [...] e aí eu
tenho muito essa dúvida de que se o que foi dito realmente foi compreendido, se ele
passa a ter atitudes diferentes. (GA2P13)

Faz-se necessário construir experiências capazes de sensibilizar para as questões morais,


para que a intencionalidade ética passe de diretrizes políticas e institucionais a práticas, e de
reflexões individuais a atitudes coletivas e compartilhadas.

Eu acho que a primeira coisa é valorizar aquilo como uma situação que exige a tua
intervenção né [...] nem que seja só para falar alguma coisa. Mas assim, que ele tenha
a capacidade de identificar aquilo ali, porque as vezes o que acontece: - ‘aquilo ali pra
mim pode ser um problema muito sério e tu pode achar que pra ti não é porque não
tens essa sensibilidade’, que é o que acontece. (GA2P1)

Para tanto, indica-se a necessidade de espaços coletivos onde o corpo acadêmico possa
refletir eticamente sobre os conteúdos técnico-biológico-sociais, mas também sobre questões
morais cotidianas: “eu acho que a gente precisa melhorar muito os espaços de discussão, a ética
é muito maior que uma formação técnica-prática” (GA2P13).

[...] nós precisamos ainda ter espaços de formação ética tanto de professores como de
estudantes, onde se possa debater, discutir, dar voz a ambas as posições, questionado,
problematizando as experiencias [...] porque eu percebo que, muitas vezes, o professor
não se percebe como sendo antiético ou sendo violento, tendo uma relação radical-
autoritária. (GA2P16)

Apesar das dificuldades quanto aos conhecimentos de significado e práticas para a


aprendizagem ética, a sensibilização às questões morais, como o exemplo de trabalhar
problemas éticos cotidianos, é uma oportunidade de construir também essas percepções junto
às discussões teóricas, seja na prática profissional, seja na formação cidadã: “Então o respeito
que você desenvolve, essa questão atitudinal, tudo isso são aspectos importantíssimos do
processo de formação e que podem ou não estar presentes [...]” (GA3G4).

É como eu te falo, que pela contingência do nosso trabalho, e a relação com o outro
acaba tu tendo que transversalmente trabalhar ética, mas, às vezes, não é uma
prioridade do professor incluir aquela discussão. Mas a situação está ali. (GA2P1)

Você pode passar pelo curso sem ter essa oportunidade né, as coisas foram
acontecendo e não emergiu o problema como um tema que pode ser trabalhado, onde
obrigatoriamente você vai ter que encarar. (GA2P7)

Os problemas éticos do cotidiano quando não identificados e trabalhados podem tornar


o ambiente pouco afetuoso, desagradável ao trabalho em coletivo. Neste sentido, o acolhimento
ao problema, sua evidenciação e discussão pode ser também uma forma de melhorar o ambiente
acadêmico. Fomenta-se a construção da identidade do corpo acadêmico na medida em que
192

também trabalha suas questões morais cotidianas, melhorando as relações acadêmicas e


processos institucionais.

Porque como que eu vou chegar para um colega de trabalho e dizer que o outro falou
dele? Não dá [...] agora, eu também não posso dizer que essa pessoa é fofoqueira, é
dedo-duro [...] não, ela estava num sofrimento profundo que eu acolhi. E essa é a
complexidade. (GA2P4)

Este trabalhar a dimensão moral das relações também passa por aprender a mediar, a
ponderar decisões, um processo que inclui o coletivo, um aprender a tomar decisões que auxilia
no ensino-aprendizagem ético.

[...] um caminho pra ele se desafiar a discutir e a ponderar [...] então aprender a
ponderar, aprender a ouvir o outro, aprender a vida universitária [...] a diferença, a
verdade que tá sempre suspensa, que vem outra e derruba. Então essa coisa do dia-a-
dia, da ciência da saúde, das relações [...] é importante ter um espaço de que a pessoa
possa aprender a fazer essas ponderações. (GA2P4)

O ensino-aprendizagem ético no cotidiano da vida universitária passa pelas relações e


exemplos atitudinais, na qual a vivência de relações dialógicas, identificadas como essências a
este ensino-aprendizagem permite demonstrar erros, dúvidas, incertezas. Isso possibilita a
reflexão ética na medida em que também consolida o corpo acadêmico como uma comunidade
de buscadores de conhecimento, assim, as pessoas podem mostrar suas fragilidades e
potencialidades. Essa construção coletiva fundamentada em uma educação dialógica mostra-se
coerente com o ambiente propicio ao ensino-aprendizagem ético.

[...] eu acho que é as pessoas se mostrarem mais humanas [...] Tipo assim, eu posso
errar, eu posso consertar meu erro, voltar atrás, conversar com as pessoas e pedir
desculpa, eu posso ter dias ruins, posso ser fraco... sabe? E quando as pessoas
começam a trabalhar isso consigo, o outro já começa a ser visto diferente, porque se
eu posso, ele também pode. (GA3E1)

Compreender a Universidade como uma comunidade em busca do conhecer e do


aprender, auxilia a vivência de relações inclusivas e capazes de ensinar com os erros e acertos,
um espaço de diálogo e reflexão eticamente comprometidos. Construir identidades que sejam
contextualizadas com a pluralidade moral do país e inclusivas, condizentes com os valores de
construção de cidadania que devem permear os espaços acadêmicos.

Eu acho que uma das coisas é lidar com experiências que desestabilizem algumas
certezas sociais que esses estudantes, essas estudantes, tem [...] que por exemplo, eles
perceberem que pobreza não tá atrelada à empregada doméstica da casa dele, que o
mundo dos homens heterossexuais não é o mundo das mulheres heterossexuais e
quem dirá das pessoas LGBT, e aí você tem que mostrar o feio, experenciar o feio,
experenciar o desvio, experenciar o efeito negativo de algumas moralidades muito
arraigadas na religião principalmente, é algo que eu acredito [...] mas tem que ser na
experiencia eu acho que não é algo teórico. (GA2P2)
193

Essas oportunidades de diálogo e reflexão crítica parecem suprir a necessidade de que


a academia ensine a refletir, uma reflexão que busque autonomia como forma de contrapor a
cultura da obediência, aprender com o exemplo de forma crítica. Neste sentido, explicitar os
valores, as crenças, as ideologias por meio do diálogo são essenciais.

As forças estão aí, puxando para os dois lados, que opção eu faço? Pelo que eu luto?
Que mundo eu mostro para eles tem a ver com o meu papel nesse latifúndio e o que
eu quero ajudar a construir? (GA3G4)

Tem que conseguir trazer de uma forma mais clara. Uma ideia que a gente teve foi
realmente trabalhar a questão política, não explicar como tu deve fazer política mas o
grande foco é ter debates, onde tu vai levar temas e as pessoas vão debater aqueles
temas sem, necessariamente, ter um fim, sem que elas tenham que concluir algo com
aquilo, ou que todas tenham que ter a mesma conclusão quanto aquilo, mas que elas
se estimulem a pensar diferente um do outro e ver que o outro tem uma visão diferente
da minha e como que eu vou – se o meu argumento tem uma validade realmente, e do
outro também, então como que eu vou fazer, o que está se chocando aqui? Então, as
pessoas começarem a construir através não de um fim sabe – todo mundo concluindo
a mesma coisa, mas algo que estimule esse debate, eu acho que gerar debate dentro
do espaço institucional mesmo é uma coisa que é necessária. (GA3E3)

Há uma percepção de que o diálogo, a construção da reflexão, da argumentação e da


fundamentação embasada nos valores considerados importantes para o ensino-aprendizagem
ético na Universidade são experiencias cuja finalidade é o próprio processo reflexivo. O ensino-
aprendizagem ético fundamenta-se na possibilidade de reflexão coletiva para a construção das
personalidades morais individuais. Parece que a questão é poder discutir cada situação para
saber até onde se pode chegar, onde não, uma construção de respostas que devem valer tanto
quanto a resposta em si.

[...] na verdade a ideia é que você tenha espaços em que as pessoas apresentem seus
pontos de vista e se acostumem a defender seus pontos de vista com argumentos não
por maioria, não por imposição ao outro, mas que você reserve e garanta espaços
dentro da sala de aula para que essas discussões possam acontecer fomentando um
ambiente mais apropriado. (GA4G1)

Chegou no final, o meu amigo direitassa chegou pra mim e falou: - ‘cara, sabe porque
que eu te amo? porque tu me respeita’, mesmo a gente tendo opiniões políticas
completamente diferentes eu me sinto confortável de virar para você e falar: ‘eu sou
um homem de direita’, e cara eu ganhei meu dia! Mas é isso que a vida tem que ser,
sabe? Só que as pessoas não são assim porque elas não conversam sobre [...] e sabe
aquelas coisas assim que uma vai puxando a outra? Não converso sobre, aí por isso
eu não me formo, não me informo, daí vai puxando tudo pro negativo, que é o que a
gente vive hoje, a lei de quem grita mais alto. (GA3E1)

A dimensão ética da educação superior em Saúde faz pensar a necessidade de se ater


também aos processos, ao cotidiano relacional que constrói moralidades, uma educação que
não é imediatista e que, portanto, deve fazer parte da construção da vida universitária:
194

Porque ter essa noção de coletividade, essa noção de refletir sobre ética e filosofia em
geral, da vida, é algo que demanda tempo, demanda vivencia, experiencia de vida,
então é aos poucos mesmo. (GA3E5)

As possibilidades de espaços de reflexão ética são sentidas como essenciais, seja sobre
a reflexão das experiências curriculares, seja no cotidiano acadêmico. Estimular a reflexão ética
configura uma responsabilidade da instituição com o perfil de sociedade desejada. A
consciência desse perfil é necessária pois o ensino-aprendizagem ético não acontece dissociado
do contexto social. Assim, o contexto tensiona a construção da personalidade moral e trazer
essa aprendizagem de forma intencional e com horizonte de valores é o que pode conduzir o
ensino-aprendizagem ético na Universidade: “Embora a gente sabe que o valor vem de casa, a
gente vai tentar o nosso papel, porque faz parte do nosso papel” (GA2P13). Esse papel da
Universidade torna-se ainda mais crucial quando os valores hegemônicos parecem contrários a
realização do ensino-aprendizagem ético.

[...] a nossa sociedade cada vez mais tende a negar inclusive, essa responsabilidade
coletiva, essa responsabilidade pelo outro. Tá muito claro isso, as pessoas, cada vez
mais, pela lógica da meritocracia e do valor individual, da disputa e tudo mais, isso tá
cada vez mais claro, essa é a lógica da sociedade. Então, o sistema educacional não
está fora da sociedade, ele reflete isso. Que é a dimensão de ética que eu entendo, que
é essa [...] e ela é cada vez mais difícil por isso, porque a própria sociedade tem levado
à essa construção dos indivíduos. E é esses indivíduos que estão aqui, como
professores e como alunos. Se você não tiver nenhum estimulo específico para isso,
eu vejo cada vez mais difícil assim, sabe? (GA2P3)

Eu não vejo só uma potência, eu acho que é uma responsabilidade. Por ela ter essa
potência, ela deveria ser muito responsável em fazer isso. Não podia ser feito isso de
qualquer jeito, sem reflexão, sem articulação dessas diferentes experiencias. (GA2P8)

Neste sentido, trabalhar a dimensão ética da educação superior em Saúde passa por
experiencias vividas diariamente capazes de construir uma cultura de reflexão e aprendizagem
ética, um desafio que exige repensar o papel da educação superior em Saúde e seu próprio
sentido de produtivismo, finalidade e imediatismo.

4.6.5 A construção do identidade como realização do fenômeno da dimensão ética da


educação superior em Saúde

A inseparabilidade da construção moral na vida universitária reforça a responsabilidade


do corpo acadêmico em assumir o ensino-aprendizagem ético como parte da missão da
Universidade. Vivenciar a dimensão ética da educação superior com responsabilidade sobre o
ensino-aprendizagem ético potencializa a construção da identidade do corpo acadêmico. Para
tanto, conhecer e dialogar sobre o significado de ética na educação superior em Saúde
195

possibilita uma atuação conjunta do corpo acadêmico, definindo instrumentos, estratégias


operacionais e fundamentos filosóficos que possibilitem o ensino-aprendizagem ético.
Para que os instrumentos e estratégias que objetivam o ensino-aprendizagem ético
tenham efeito na vida universitária, os interesses e ideologias particulares e a pluralidade moral
devem ter espaço de discussão. Definir os valores a serem fomentados e os objetivos do ensino-
aprendizagem ético, que embasam a construção da personalidade moral, é essencial para que o
corpo acadêmico trabalhe de forma mais consciente e coletiva.
O ensino-aprendizagem ético na vida acadêmica depende da vivência cotidiana dos
valores de respeito, autonomia e diálogo, mas também das suas possibilidades de mobilização
de afetos. A vida universitária é um momento específico da vida do indivíduo que é oportuno
para a construção de conhecimento científico com consciência crítica, de unir efetividade e
afetividade, de construir profissionais-cidadãos que tenham autonomia moral, mas que também
entendam a importância da construção compartilhada. A construção da identidade do corpo
acadêmico depende, antes de tudo, de compreender, dialogar e refletir eticamente sobre as
moralidades e interesses já existentes nas vivencias universitárias, afim de construir e fomentar
moralidades que coincidem com uma visão de cuidado e de responsabilidade cidadã.
A aprendizagem ética é um meio de construção da autonomia moral dos indivíduos, esta
autonomia é necessária para que a construção das facetas identitárias do eu-pessoa, eu-
acadêmico, eu-profissional, eu-trabalhador da saúde e eu-cidadão sejam refletidas
cotidianamente, conduzindo as decisões e ações de cada indivíduo e coletivo. Construir-se de
forma moralmente autônoma possibilita realizar estas facetas identitárias, fazendo com que a
identidade dos indivíduos não seja uma mera incorporação acrítica das representações sociais
disponíveis nas sociedades. A dimensão ética da educação em Saúde e seu potencial de dotar
identidade ao corpo acadêmico é discutida a seguir.
196

5 DISCUTINDO A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO SUPERIOR EM SAÚDE A


PARTIR DAS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DURANTE A VIDA
UNIVERSITÁRIA

A teoria defendida nesta tese é de que a dimensão ética da educação superior em Saúde
se realiza na construção da identidade do estudante durante sua vida universitária. Esse processo
pode ser melhor compreendido a partir de suas complementares facetas: eu-pessoa, eu-
acadêmico, eu-profissional, eu-trabalhador da saúde e eu-cidadão. De qualquer um destes
ângulos identitários, pode-se perceber a dimensão moral da construção identitária, que ao
mesmo tempo em que configura uma identidade moral própria, é por ela configurada. Ademais,
defende-se que a identidade moral pode ser propositadamente desenvolvida por meio da
aprendizagem ética que promove a vivência de determinados valores e a autonomia moral dos
envolvidos, e que este é um dever da educação superior em Saúde.
Os pressupostos iniciais de que a dimensão ética da educação superior em Saúde é
negligenciada, realizada de forma não intencional e pontual, se confirmam, podendo ser
analisados sobre duas perspectivas. Primeiro, em se tratando da formação curricular percebe-
se que existem iniciativas e interesses, mesmo que pontuais, por parte do corpo docente para
que o ensino-aprendizagem ético se estabeleça de forma transversal ao currículo. A
importância da transversalidade deste ensino – e também sua aplicação junto ao campo da
bioética – têm sido amplamente reportadas na (WARMLING et al., 2016; AMORIM;
ARAÚJO, 2013; RAMOS et al., 2013; GERBER; ZAGONEL, 2013; FINKLER; CAETANO;
RAMOS, 2011; REGO; GOMES; SIQUEIRA-BATISTA, 2008; FERREIRA; RAMOS, 2006)
reforçando o fato de que o ensino-aprendizagem ético deve ser vivenciado ao longo da vida
acadêmica. Estas experiências contínuas produzem efeitos mais significativos na construção da
identidade dos sujeitos (ESTEBAN; MARTÍNEZ, 2018; RAMOS; DO Ó, 2009; PUIG, 1998b),
principalmente ao incluir os campos social, político e humanístico nesses processos. Corrobora-
se com a literatura, sobre a importância de uma educação pautada em valores, a qual permita
identificá-los, conhecê-los, e refletir sobre eles (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN,
2002; PUIG, 1998; FINKLER, 2009). Este fortalecimento e qualificação da aprendizagem ética
ao longo de distintas disciplinas teóricas e práticas e em projetos de extensão é evidenciado
como significativo para que a construção identitária se expanda para outras facetas, além da
profissional.
Apesar deste entendimento, o compromisso ético-pedagógico docente ainda é
dependente das compreensões e interesses dos professores sobre suas práticas universitárias.
197

De qualquer forma, o ensino deontológico não se mostrou como expressão da aprendizagem


ética na Universidade, diferente do pressuposto inicial desta tese, revelando a compreensão
qualificada dos participantes desta pesquisa de que deontologia não é o mesmo que ética, menos
ainda que aprendizagem ética.
Neste sentido, confirma-se o pressuposto de que dimensão ética da educação superior
em Saúde pode ser melhor desenvolvida na vida universitária, a fim de favorecer a educação
de indivíduos eticamente competentes e capazes de promover transformações sociais
necessárias (MARQUES, 2018; FINKLER; RAMOS, 2017; RENNÓ; RAMOS; BRITO, 2016;
RAMOS, 2013; REGO; GOMES; SIQUEIRA-BATISTA, 2008). Esta constatação leva a
segunda perspectiva a ser analisada: os dados demonstram que a construção identitária é
percebida muito mais no âmbito extracurricular e nas aprendizagens do currículo oculto,
concordando com o modelo conceitual dos fatores que influenciam a formação ética dos
estudantes, apresentado no marco conceitual do estudo (FINKLER; CAETANO; RAMOS,
2012). A construção da personalidade moral dos estudantes nestes ambientes, apesar de
fundamental, demonstrou ser realizada de forma não intencional e dependente dos interesses e
oportunidades que se apresentam. Neste sentido, a aprendizagem ética não pode ser somente
extracurricular ou mesmo estar a margem do currículo, devendo ser motivada pelo corpo
acadêmico e buscadas cotidianamente (MARTÍNEZ, BUXARRAIS, ESTEBAN, 2002; PUIG,
1998b). Esta perspectiva concorda com diferentes estudiosos: a dedicação à competência ética
é essencial à excelência da educação (ESTEBAN, 2019; FINKLER, 2017; ESTEBAN;
BUXARRAIS, 2004; GRACIA, 2007b). Assim, reforça-se um dos achados deste estudo:
realizar o potencial da dimensão ética da educação superior em saúde depende da maior
conscientização, compreensão e responsabilização do corpo acadêmico para com a mesma.
O objetivo deste trabalho de conhecer e compreender o significado da dimensão ética
da educação superior em Saúde demandou entender as formas de construção identitária
vivenciadas na Universidade. Aprender a refletir e se responsabilizar pelo que se faz, pelas
decisões e atitudes tomadas constroem nossa identidade moral. Como discutido no marco
conceitual desta tese, a identidade não é definida pelo que se recebe do meio em que se nasce e
cresce, mas vai sendo constituída a partir daquilo que se faz com as aprendizagens elaboradas
neste meio (GRACIA, 2020). Esta realização se dá por diferentes experiências já citadas, mas
com uma finalidade em comum: a busca por autonomia moral.
Compreende-se que na educação superior em Saúde, a perspectiva de uma dimensão
ética ainda tem sido pouco pesquisada (FINKLER; RAMOS, 2017). Já a construção identitária
tem sido abordada por diferentes estudos (SANTOS et al., 2020; NEVES et al., 2019; TRAD;
198

MOTA; LÓPEZ, 2019; FARIA; SILVA, 2016; CUBAS et al., 2015; CARVALHO, 2013;
SANTOS, 2011; RENOVATO et al., 2009; SISSON, 2009) nos quais é predominantemente
compreendida e trabalhada no âmbito da socialização profissional (DUBAR, 2005). A questão
da identidade docente também é tratada, principalmente a partir de suas práticas na vida
acadêmica (PENTEADO; SOUZA NETO, 2019; COSTA, 2007; LOGUERCIO; DEL PINO,
2003). Embora estes estudos tratem da construção identitária durante a vida acadêmica, não
discorrem sobre sua relação com a realização da dimensão ética da educação superior, estando
a mesma às margens ou ausente.
Apesar do foco deste trabalho não ter sido a identidade docente especificamente, os
dados revelam que a dimensão ética da educação Superior não implica somente a perspectiva
da construção da identidade moral dos estudantes. Parece incoerente e até mesmo irreal pensar
um ensino-aprendizagem ético sem incluir a construção identitária dos docentes. A qualificação
da educação moral de professores é essencial, tanto em termos de conteúdo e metodologia,
quanto de vivências em valores, haja vista que a identidade do educador também influencia a
personalidade moral de seus educandos (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002;
ESTEBAN; BUXARRAIS, 2004, PUIG, 1998a).
A questão da construção identitária dos futuros profissionais da saúde também é
abordada na literatura a partir das influências das questões de diversidade de gênero e
sexualidade (COSTA; COELHO, 2013; SIQUEIRA et al., 2012), corroborando com os
resultados desta pesquisa de que a diversidade cultural e pluralidade moral presentes na
academia podem potencializar a construção identitária de seus membros.
Os achados desta tese em relação a influência da interdisciplinaridade, da
interprofissionalidade e Saúde Coletiva na construção da identidade dos estudantes é discutido
na literatura. A construção da identidade profissional é especificamente tratada na perspectiva
da Educação Interprofissional em Saúde, a partir das competências colaborativas que precisam
ser desenvolvidas na educação superior (ROSSIT et al., 2018; NUTO, et al., 2017; SOUTO;
BATISTA, BATISTA, 2014). As práticas colaborativas interprofissionais aparecem como
aspectos relevantes na construção e reforço da identidade, embora a questão da autonomia
moral não seja explicitamente abordada.
Estes estudos atestam que identidade é algo a ser constantemente construído na
Universidade, resultante da interação do percurso biográfico do indivíduo com a sociedade,
concordando com os achados desta tese e com os autores citados no marco conceitual
(GRACIA, 2020; HANSON, 2014; FARIA; SOUZA, 2011; DUBAR, 2005), especialmente
199

com Dubar (2005) para quem a construção da identidade no trabalho define o papel das
instituições.
Ramos e Do Ó (2009) discutem a importância da bioética como discurso que penetra e
produz reflexividade, participando da relação do trabalhador da saúde com seu trabalho e
consigo mesmo. A bioética é considerada um sistema abstrato que ordena a experiência e o
projeto de identidade subjetiva do trabalhador da saúde. Já a formação ética é identificada como
elemento essencial de dispositivos pedagógicos que auxiliam a construção do ser trabalhador
da saúde. Assim como apontam os autores, a teoria defendida nesta tese reforça a importância
da compreensão e responsabilização do corpo acadêmico com a dimensão ética da educação
superior em Saúde.
Afirma-se então que o desenvolvimento da dimensão ética da educação superior faz
parte da missão universitária (HANSON, 2014; ESTEBAN; MARTÍNEZ, 2018; ESTEBAN,
2019; FINKLER; RAMOS, 2017; GRACIA, 2007b). A construção das facetas identitárias de
estudantes de graduação em Saúde, como constatado, reforça a importância de se qualificar e
valorizar a educação moral na Universidade, fazendo com que o ensino-aprendizagem ético
seja objetivo do corpo docente e que as experiências morais sejam discutidas pelo corpo
acadêmico (MARTÍNEZ; BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002; FINKLER, 2009). Estas
apresentam-se como condições para que a construção identitária não se dê pela simples
reprodução de identidades ou papéis socialmente aceitos (GRACIA, 2020; SIQUEIRA et al.,
2012).
Evidenciou-se que a construção do eu-profissional se dá de forma distante ou mesmo
alijada do que Esteban e Martínez (2018) compreendem como papel de orientação ético-
humanística da Universidade, parecendo limitar-se a reproduzir uma ‘identidade comumente
aceita’ (GRACIA, 2020). Este sobrevalorizar uma faceta identitária sobre as demais limita os
esforços do corpo acadêmico na busca por desenvolver diferentes aspectos morais e práticas
atitudinais responsáveis com a sociedade que deseja construir (HOOKS, 2017; ESTEBAN;
ROMÁN, 2016; CORTINA, 1995).
A construção do eu-pessoa evidencia a importância de que a vida universitária não deve
ser uma busca solitária pelo conhecimento, pois a construção identitária é um processo de
socialização (DUBAR, 2005). Para Puig (1998a) essa adaptação à sociedade é um componente
da construção da personalidade moral, porém, não deve ser seu único horizonte. A sociedade
fornece sistemas de valores e regras vigentes, mas cabe ao indivíduo também colaborar na
construção das mesmas. Neste sentido, a educação que pretende construir a identidade moral
dos sujeitos deve ser necessariamente dialógica (PUIG, 1995; PUIG, 1998a). Reforça-se então
200

um dos achados desta tese: de que as relações de reciprocidade são essenciais à aprendizagem
ética. A construção da identidade se dá no âmbito das relações, não podendo, por tanto, abdicar
de valores e da reflexão sobre deveres (GRACIA, 2020; ESTEBAN; ROMÁN, 2016). Neste
sentido, as relações nas quais o indivíduo pode expor suas ideias e construir-se a partir do
diálogo com o outro potencializam a construção de uma identidade moralmente autônoma
(PUIG, 1998).
Constatou-se que diversidade cultural e o pluralismo moral vivenciados por meio de
relações embasadas no respeito e na reflexão conjunta são caminho potencial de construção da
identidade moral. Para tanto, faz-se necessário que professores se apropriem de estratégias para
lidar com os antagonismos e conflitos de valores existentes, para que as discordâncias morais
sejam ensejo para a reflexão ética e não a razão de um recuo coletivo, motivado pela impotência
(HOOKS, 2017; RENNÓ; RAMOS; BRITO, 2016).
Não se trata de estabelecer uma educação moral doutrinária, mas assumir o
compromisso ético-pedagógico com o processo de conhecer o outro e a si mesmo. A
constituição da identidade não se dá por fatos, mas por valores. Aprender a conhecer, vivenciar
e dialogar sobre valores - valores que deixam de ser subjetivos e se objetivam nas atitudes
humanas, é imprescindível para criar uma atmosfera pedagógica e cultural em que preconceitos
possam ser questionados e modificados (GRACIA, 2020; HOOKS, 2017). O docente deve ser
fonte de atitudes éticas capaz de conduzir a reflexão sobre os conflitos morais cotidianos -
condução que não é beligerante ou neutra (PUIG, 1998a), mas mediadora, uma forma também
de resistir ao sofrimento – muitas vezes sofrimento moral, na vida acadêmica (RENNÓ;
RAMOS; BRITO, 2016; OLIVEIRA, 2016), um sofrimento que pode ser causa e consequência
das dificuldades de construção da personalidade moral.
A construção do eu-acadêmico se dá a partir de uma comunidade de referência. As
concepções de bem e mal vinculadas pelos indivíduos nestes espaços morais comunitários não
são definidas isoladamente, mas a partir da identificação com valores e sistemas morais
experenciados (GRACIA, 2007). Assim, é responsabilidade das instituições educacionais
buscar essa educação que considera os valores existentes nas práticas sociais, evidenciando sua
importância na construção da identidade moral. Trata-se de criar condições para a vivência de
valores mínimos para a convivência social (PUIG, 1998ª; MARTÍNEZ; BUXARRAIS;
ESTEBAN, 2002; ESTEBAN; ROMÁN, 2016; GRACIA, 2001). É construir um fazer
acadêmico ampliado dentro dos muros da Universidade que também afeta os modos de ser fora
dela. Unir a vontade de saber com a de vir a ser (GRACIA, 2020).
201

Evidenciou-se que o sentimento de pertencimento à comunidade universitária auxilia os


indivíduos a interessarem-se uns pelos outros, com entusiasmo de aprender uns com os outros,
ouvindo a voz dos demais. Estabelece-se um esforço coletivo pela aprendizagem de cada um e
de toda a comunidade acadêmica (ESTEBAN; ROMÁN, 2016; HOOKS, 2017). Este pertencer
se reforça no ensino-aprendizagem por meio de projetos assumidos como comuns, sejam eles
locais ou globais. Um construir-se politicamente que exige a reflexão ética e seu
compartilhamento para que as melhorias pensadas tenham um sentido de bem comum, de
combater desigualdades e exclusões (CORTINA, 1995).
Reconhece-se que a experiência do diálogo e da ação realizada em situações
democráticas, ou seja, em situações em que seja possível decidir sobre o que se deseja falar,
recordar sua história, expor pontos de vista, buscar acordos, entendimentos e construir a si
mesmo, oportunizam vivências onde se é possível unir projetos pessoais com construção de
formas de vida desejáveis. Seriam espaços onde ‘torna-se possível o aparecimento simultâneo
de esboços de identidade moral e de projetos políticos” (PUIG, 1998a, p.135), no qual indivíduo
e comunidade podem, em alguma medida se encontrar. Espaços em que cada pessoa constrói
pessoal e coletivamente sua identidade ao mesmo tempo em que desenvolve uma forma
institucional que expresse um compromisso de valores, de justiça, cooperação, solidariedade,
responsabilidade cívica e maior igualdade (ARANTES; ARAÚJO; SILVA, 2019; PUIG,
1998a).
Os desafios diante do novo, de estranhos morais ou mesmo em situações de conflito
moral podem ser positivos para o “desenvolvimento e melhoria da sensibilidade moral,
identidade pessoal e competências ético-morais de cada pessoa”, podendo acarretar também na
educação política destes indivíduos (RENNÓ; RAMOS; BRITO, 2016, p.6). A dimensão
política na construção identitária foi identificada como fundamental, na qual a emancipação dos
sujeitos não se dá pela mera inserção em contextos sociais - pois pode manter determinadas
estruturas reprodutoras de estigmas. Exige-se do indivíduo e do coletivo lutas e resistências,
que permitam a satisfação psicológica básica de pertencimento, reconhecimento e construção
de si (WAGNER et al., 2020). Reforça-se a necessidade de valorização da dimensão política
da educação superior em Saúde, em que o ensino-aprendizagem estimule “a vivência e a
formação política dos estudantes” (FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2014, p. 351). A
educação como oportunidade de viver valores morais de forma real, como práticas de cidadania
(ARANTES; ARAÚJO; SILVA, 2019) assumindo o compromisso de uma postura educativa
coerente com as ideias de diversidade, autonomia, diferença, pluralidade que se apresentam
como pilares da contemporaneidade (LEFEVRE; LEFEVRE; CAVALCANTI, 2015).
202

Estas experiências políticas devem ser buscadas pelos sujeitos - vivências que não são
exigidas ou esperadas na rota curricular, estando associada à maior liberdade do educando sobre
o próprio percurso universitário. As tentativas de manter as práticas pedagógicas universitárias
focadas em ensinar conteúdos e desenvolver habilidades técnicas e dissociá-las do âmbito
político e moral (HANSON, 2014) reforçam a dominação sobre a vida acadêmica, uma vida de
tensão, em que o questionamento e a crítica capazes de resistir à obediência têm pouco espaço.
Neste sentido teoria e prática seguem separadas e o ensino é considerado um aspecto mais
enfadonho e menos valorizado da vida acadêmica (HOOKS, 2017).
A construção do eu-profissional indica a premência de que o ensino-aprendizagem
esteja embasado na busca pelo conhecimento científico e pelo desenvolvimento de atitudes
eticamente justificáveis. Superar a formação eminentemente técnica, incorporando aspectos
políticos, sociais e éticos é necessário à educação superior em Saúde (BURGATTI;
BRACIALLI; OLIVEIRA, 2013; FINKLER, 2009; RENOVATO et al., 2009) para que a
mesma não se limite a mera formação profissional. Os estudantes devem ser participantes de
sua construção e não consumidores passivos (HANSON, 2014). Viver a Universidade com
consciência e responsabilidade sobre a dimensão ética da vida universitária é uma forma de
enfrentar a apatia e a tensão da vida acadêmica. Construir comunidades abertas de
aprendizagem configura fazeres pedagógicos criativos resistindo às práticas tradicionais e
conservadoras (HOOKS, 2017).
A seriedade da busca pelo conhecimento não é ameaçada pela aprendizagem que
estimula a descoberta de si, uma aprendizagem que considera os contextos e diversidades de
cada grupo e se reinventa. Pelo contrário, o aprender movido pelo entusiasmo, pela descoberta
gera responsabilidade pelo seu processo e resultado (HOOKS, 2017). Demonstrou-se que a vida
acadêmica individualista, competitiva e tecnificada desumaniza as relações universitárias.
Aprender a conhecer fundamentando-se na educação integral das pessoas e, portanto, da sua
humanidade (ESTEBÁN; ROMÁN, 2016) exige novas atitudes via aprendizagens emocionais
na vida acadêmica (HOOKS, 2017). A humanização do ensino busca o desenvolvimento de
habilidades pessoais, como a comunicação interpessoal, o autocontrole emocional, a habilidade
de escuta, de empatia e o aprimoramento de atitudes e traços de caráter (GRACIA, 2004;
RENNÓ; RAMOS; BRITO, 2016), aspectos sempre contemplados aos se promover a dimensão
ética da educação superior em Saúde.
Os paradigmas biologicista e positivista, hegemônicos da educação superior em Saúde,
precisam ser repensados para que se reverta a fragmentação do ensino e sua
descontextualização. A corresponsabilização com o indivíduo, a família e a comunidade exigem
203

que as decisões em saúde sejam compartilhadas, participativas e dialógicas, na qual as respostas


técnicas considerem a subjetividade humana. A problematização das decisões em saúde permite
o questionamento e o compartilhamento de saberes, a sensibilização sobre as questões morais
e a corresponsabilização na construção de soluções responsáveis e prudentes. Educar pessoas
capazes de tomar decisões ótimas passa também por ensiná-los a refletir sobre os valores que a
embasam (GRACIA, 2001; MARQUES, 2018). A construção identitária sempre incorpora
elementos sociais, históricos e culturais, porém, é a busca pela autonomia moral que possibilita
ir além dos mesmos, por meio do fomento à crítica, à criatividade e à consciência de si
(GRACIA, 2020; PUIG, 1995).
Os significados, concepções e sistemas morais vinculados ao cuidado e a saúde exercem
papel fundamental na construção eu-trabalhador da saúde. Aprender sobre valores e vivenciá-
los, consciente das diferentes morais sociais, embasando-se na justiça social por meio da
equidade é um caminho na construção da própria hierarquia de valores, com autonomia moral,
não se tratando de alcançar um bem particular, mas um bem comum (MARTÍNEZ;
BUXARRAIS; ESTEBAN, 2002; CORTINA, 1995). Ramos e Do Ó (2009) atentam para a
importância da bioética para a reflexividade e da identidade do profissional da saúde. Seus
constructos teóricos e de aplicação prática auxiliam não somente como base para ação
moralmente prudente, mas também como sistema abstrato participante da constituição dos
sujeitos. A bioética seria “pauta e instrumento, fim e meio, mesmo que diluída, disfarçada ou
revestida por matérias diversas” (RAMOS; DO Ó, 2009, p.262).
A construção do eu-trabalhador da saúde demonstrou ter como essência o cuidado com
o outro (que tem outros valores e crenças) evidenciando a necessidade de construção da
personalidade moral, na qual o respeito, diálogo e vínculo são parte dos saberes necessários à
produção da saúde (MARQUES, 2018; BURGATTI; BRACIALLI; OLIVEIRA, 2013). A
humanização das relações profissionais e pedagógicas também fundamenta as práticas de
cidadania: um aprender a atuar na contingência dos serviços de saúde e na construção da
sociedade. Estes objetivos embasam a construção de um sentido coletivo do ser trabalhador da
saúde, pertinente à vida universitária.
A construção do eu-cidadão perpassa todas as identidades da vida acadêmica nos cursos
da Saúde. Cortina (1995, p. 51) atesta que o exercício de cidadania é crucial para a construção
identitária, ajudando a cultivar a mediação e a conciliação responsável de interesses em
conflitos, porque “la ciudadanía subyace a las otras identidades”.
A concepção de saúde como um direito apresenta-se como um marco de referência
moral na construção da identidade do corpo acadêmico. Esta referência moral dialoga com a
204

construção da faceta identitária do eu-acadêmico, em que a educação moral auxilia a estabelecer


mínimos morais, a partir dos quais o indivíduo moralmente autônomo pode buscar seus ideais
máximos. A educação superior em Saúde tem estes mínimos indicados pela bioética, a qual
busca estabelecer quais serviços sanitários devem ser prestados para estabelecer justiça social
(GRACIA, 2001). Não se trata de tomar um sistema moral como absoluto, mas de assumir a
bioética como “sistema abstrato que produz nexos entre problemas e soluções, valores e
alternativas” (RAMOS; DO Ó, 2009, p.262).
A aprendizagem ética torna possível a incorporação da responsabilidade social como
dever do corpo acadêmico, um dever moral que constitui sua identidade e movimenta sua vida
acadêmica em um sentido menos individualista. Essa construção de profissionais competentes
e compromissados, cidadãos engajados na construção de um mundo mais digno e justo, auxilia
no pertencimento à Universidade e à sociedade, possibilitando engajamento político e, portanto,
tornando a educação moral fundamental (MARQUES, 2018; CORTINA, 1995).
Neste contexto, a integração do ensino-serviço-comunidade torna-se meio e sentido
educativo propício a essa responsabilização com a dimensão ética e política na construção
identitária, permitindo reflexão crítica sobre a prática profissional (BURGATTI; BRACIALLI;
OLIVEIRA, 2013). Aprender a cuidar necessita da compreensão sobre a sociedade e da
responsabilidade com o ser profissional-cidadão. Implica assumir a cooperação como um meio
e o direito a saúde como um fim.
Pode-se perceber a influência do ensino-aprendizagem imbricado com a realidade social
para a construção identitária. Os sujeitos de pesquisa associam a dimensão ética da educação
superior em Saúde com disciplinas e conteúdos vinculados à Saúde Coletiva e às práticas de
ensino-serviço-comunidade. As experiências de vida estão intrinsicamente ligadas à teorização,
um processo de aprendizagem crítica e reflexiva, na qual a aprendizagem ética é capaz de
conectar teoria e prática, conformando realidades informativo-significativas que modelam as
formas de vida e convivência (PUIG, 1998a).
A educação moral deve partir da realidade conhecida pelo indivíduo e estimular
a conhecê-la cada vez mais, buscando a reflexão e a imaginação de diferentes alternativas
viáveis para os problemas reais (FINKLER, 2009; PUIG, 1998a). Neste sentido reforça-se a
relevância de que o ensino-aprendizagem esteja implicado em cenários concretos de integração
educação-trabalho e fundamentando tecnologias (de prática e de educação) que constituem o
ser trabalhador da saúde (RAMOS; DO Ó, 2009).
Vivenciar a Universidade é construir um percurso próprio, que responde ao currículo,
mas não se limita a ele. É uma obediência às normativas com criticidade, consciente da
205

responsabilidade individual de cada membro do corpo acadêmico e da necessidade de


cooperação entre os mesmos. A busca por autonomia moral é objetivo da aprendizagem ética
que encontra no percurso de construir-se profissional um momento oportuno e necessário para
ser vivenciada. Tornar-se profissional e trabalhador da saúde é parte da educação superior em
Saúde e deve estar conectado ao sentido da vida acadêmica, ao papel da Universidade. Um
sentido de responder, construir e transformar a sociedade. Do contrário, o percurso acadêmico
se reduz a uma corrida de obstáculos profissionalizante, individualizado, fomentado pela
reprodução acrítica e à deriva dos interesses econômicos e políticos hegemônicos, conformando
uma vida universitária apática (HOOKS, 2017; ESTEBAN, 2019).
A educação superior em Saúde faz parte de um processo civilizatório que demanda
consciência do corpo acadêmico sobre a sociedade que deseja construir (CORTINA, 1995).
Uma educação que não busca a construção cidadã, embasada na reflexão ética, é uma educação
que perde seu fundamento, torna-se ingênua e passível de ser instrumentalizada.
Evidenciar que a educação superior não tem sido compreendida como promotora de
questionamentos e reflexão crítica demonstra o quanto a Universidade tem se distanciado do
compromisso com sua dimensão ética. Esta realidade é reforçada pelas avaliações dos
estudantes embasadas na psicometria, tendo como foco unicamente o desenvolvimento
cognitivo, em um contexto em que a centralidade da ciência positivista dificulta que as políticas
avaliativas incluam a identidade como desfecho do processo avaliativo (HANSON, 2014).
Preparar docentes para o ensino da ética, qualificar e fortalecer a bioética no ensino-
aprendizagem, conectar teoria e prática, refletir sobre a missão universitária, os constructos
teóricos, metodológicos e avaliativos que incluem o ensino de atitudes condizentes com o
aprender a cuidar e exercer cidadania são urgências da educação superior (HANSON, 2014,
ESTEBAN; ROMÁN, 2016). A aprendizagem ética pode tornar a vida universitária uma
vivência transformadora, de construção da identidade moral de estudantes e também de
docentes, uma construção intencional, consciente e compartilhada.
206

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa foi iniciada com o propósito de compreender a dimensão ética da


educação superior em Saúde. Ao longo da investigação nos defrontamos com a centralidade da
construção identitária nos cenários em que a aprendizagem ética foi relatada. Buscamos então
entender a relação entre a construção identitária e a dimensão ética do processo educativo, que
se alinham na educação moral do estudante universitário.
Compreendeu-se que a construção identitária na vida universitária é um momento
singular de construção biográfica, em que a identidade elaborada na socialização primária –
familiar/escolar, passa a interagir com novos elementos das comunidades acadêmicas. Daí a
importância da reflexão sobre guias morais e pluralidade no ensino-aprendizagem ético. Esta
prerrogativa da educação superior é uma forma de resistir aos apelos da moralidade
conservadora do mundo moderno sobre a centralidade e exclusividade dos ‘valores familiares’
na construção dos indivíduos.
De igual forma, cabe destacar que a construção identitária não se trata de um processo
de realocação de fontes de identificação social, ou seja, a simples identificação moral com
determinados grupos acadêmicos não constitui uma construção identitária autônoma. O
pertencimento sem reflexão ética, sem diálogo e na ausência de pluralismo moral pode levar a
absolutismos morais em que a identificação com determinados grupos pode se ativar pela
exclusão dos demais. Desta forma, reforça-se a importância da valorização das diferentes
facetas identitárias, para que não tornemos uma identidade absoluta sobre as demais. A
identidade não pode ser movida unicamente por paixões, ou, dito de outra forma, por
absolutismos de valores.
A potencialidade de se construir identidades fundamentadas na aprendizagem ética
também revela a necessidade da autocrítica do campo da Ética, como área do conhecimento
ainda distante (e distanciada) da vida cotidiana. A construção da identidade com reflexividade
não necessita da expertise dos campos de conhecimento da Ética ou da Bioética, mas a
aproximação aos seus constructos e ferramentas pode facilitar esse processo, especialmente no
que concerne ao desenvolvimento da autonomia moral dos sujeitos. Outra reflexão que cumpre
fazer é de que o ensino-aprendizagem universitário tem de estar relacionado com a reflexão-
ação sobre a realidade social, suas pluralidades e diversidades, uma forma também de não
perpetuar o elitismo de classe.
A compreensão sobre a dimensão ética da educação superior em Saúde e a
intencionalidade em trabalhá-la podem auxiliar o corpo acadêmico a dialogar e resolver de
207

forma responsável e prudente os problemas éticos presentes no cotidiano universitário. Tornar


o ambiente educativo um local afetivo, que desperte a curiosidade e interesse, e dialogar sobre
os sofrimentos morais que acometem o corpo acadêmico também qualifica o ensino-
aprendizagem, preparando profissionais eticamente competentes para atuarem com as
problemáticas morais existentes nos serviços de saúde.
Neste sentido, nos parece importante pontuarmos a contribuição da Bioética da
Responsabilidade e o estímulo ao raciocínio embasado no problematismo como constructos
teórico-metodológicos capazes de aperfeiçoar o sentido moral de educandos e professores. A
busca por juízos prudentes nas decisões tomadas diante de conflitos morais, proposta pelo
método da Deliberação Moral de Gracia (2000) pode ser um suporte adequado para o ensino
eticamente comprometido. Uma proposta capaz de orientar o trabalho docente no sentido de
promover o desenvolvimento moral dos estudantes. Este pode ser um suporte teórico-
metodológico importante diante das dificuldades práticas do ensino-aprendizagem ético
percebidas pelo corpo docente, sem deixar de lembrarmos que a promoção da dimensão ética
da educação superior deve ocorrer transversalmente, acompanhando os estudantes durante toda
a sua vida acadêmica (FINKLER, 2009).
Dentre as limitações deste trabalho, destacam-se as possíveis lacunas em relação ao
instrumento de coleta de dados elaborado de acordo com os critérios das pesquisadoras, e
também as lacunas inerentes às subjetividades interpretativas no decorrer do processo analítico.
Cabe acrescentar algumas questões que suscitaram cuidados em relação ao uso da metodologia:
a análise de dados subjetiva exigiu das pesquisadoras o exercício de criticar a possibilidade de
seu próprio viés de observação; os resultados, apesar de evidenciarem tendências, não podem
ser generalizados. Destaca-se a ausência da etapa de validação dos dados neste trabalho e
afirma-se a importância de que a mesma seja realizada no futuro, para determinar como a
abstração se ajusta aos dados brutos e também se algo importante foi omitido do esquema
teórico.
Há que se considerar também que os participantes deste estudo – docentes e discentes –
não compuseram um corpo amostral diverso em termos sociais, tendo em conta, por exemplo,
a ausência de pessoas negras ou de etnias diversas. Esta realidade foi coerente com o quadro
docente das universidades trabalhadas, cuja presença de professores pretos e pardos ainda é
pouco representativo da realidade brasileira. Apesar desta condição, a representação destes
grupos tem aumentado, mesmo que lentamente, na última década, fato que pôde ser, de alguma
forma, observado na maior heterogeneidade entre o grupo de estudantes entrevistados.
208

Ainda sobre os participantes deste estudo, cabe considerar que os dados coletados
possivelmente teriam sido muito diferentes se os docentes participantes não tivessem sido
selecionados por possuírem alguma proximidade com a temática de ética e educação.
Como sugestão para novos estudos, recomenda-se a aplicação da teoria aqui formulada
em outras realidades, com vista a ampliar sua adaptabilidade e capacidade de generalização
teórica. De igual forma, é importante que sejam realizados estudos que correlacionem a
diversidade cultural e o pluralismo moral existentes e suas influencias na construção identitária
durante a vida acadêmica, haja vista que os poucos estudos da área da saúde sobre esta temática
se concentram especificamente na diversidade de gênero e sexualidade.
Também se recomendam estudos futuros que busquem analisar as influências
psicológicas provenientes da presença constante de novas tecnologias da informação e
telecomunicação na vida dos estudantes, que modificam sua autonomia, liberdade e privacidade
(NICOLACI-DA-COSTA, 2004). A fluidez de subjetividades promovidas pela Internet pode
ser impactante também na construção identitária, dada sua característica moderna de
inconstância. Apesar de reconhecermos a importância do pertencimento à grupos para a
construção da identidade, questionamo-nos sobre o potencial de diferentes redes sociais em
desenvolver algoritmos que limitam a percepção dos pluralismos morais existentes na
sociedade, podendo construir identidades pouco reflexivas ou mesmo absolutistas.
Para finalizar este trabalho, vale deixar emergir de suas entrelinhas a veracidade e
esperança que esta teoria traz para a vida da autora. Uma estudante de Odontologia que sentiu
- durante grande parte de sua graduação, uma incompletude de sentido na futuridade de sua
vida e carreia. Foi de seu encontro com a aprendizagem ética em vivências extracurriculares,
com professoras e professores encantadores e comprometidos com a missão universitária, que
a futura profissional da saúde pôde construir outras facetas de sua identidade. Uma identidade
que hoje é completamente comprometida com a esperança, embasada no desejo e na ação de
uma educação que possa contemplar sua função plenamente: a de transformar vidas por meio
da descoberta do mundo e de si mesmo.
Espera-se que esta tese contribua para a qualificação da educação superior em Saúde
evidenciando sua crucialidade na construção e nos rumos da sociedade. Na realidade atual,
nacional e internacional, em que a Universidade perpassa um momento de grande crise com
relação a sua missão - resultado de décadas de constante ataque de iniciativas e projetos
neoliberais, e aprofundada pela realidade da pandemia - que acometeu as nações forçando as
instituições educacionais a fecharem seus campi e adotarem o ensino remoto, percebe-se uma
fragilização ainda maior da dimensão ética da educação superior. Uma fragilidade em um
209

momento em que a construção da autonomia moral é essencial para a resistência e


fortalecimento da educação pública, gratuita e de qualidade bem como para a construção de
uma sociedade mais inclusiva e justa.
210

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216

APÊNDICE A – Documento guia para operacionalização da análise das DCN e PPP

1. Qual a missão da universidade?


2. A universidade discute sua própria existência enquanto possível mecanismo de
transformação social?
3. É perceptível a influência de mercado, política, religião, ideologia? Há um equilíbrio
nestas influências?
4. É incentivado os espaços de busca da excelência humana? (fomento de questões
morais e éticas)?
5. Qual o conceito de educação?
6. Qual o conceito de saúde?
7. A universidade é compreendida como um local de intercâmbio de ideias? A
gremialidade está presente?
8. Percebe-se uma preocupação com o estabelecimento de meios sociais diversos
cooperativos? (Preocupação com um ensinar a viver junto)
9. Qual o papel do conhecimento e da informação?
Há menção à responsabilidade com o conhecimento? E com a profissão?
Que tipo de produto se quer obter em relação à saúde?
10. Como é trabalhada a relação trabalhador-usuário?
E entre a equipe de trabalho?
A humanização da assistência é contemplada?
11. É dada ênfase à participação da sociedade/paciente nas decisões sobre sua saúde?
12. Há uma preocupação com o tipo de resposta que se quer dar aos problemas da
sociedade (curto e/ou longo prazo)?
Há uma universalidade nas respostas almejadas pela academia?
13. Há uma preocupação com o pertencimento à comunidade? O papel da sociedade
aparece? A importância da comunidade aparece na construção dos saberes?
14. Percebe-se um estimulo a viver a universidade? Um estimulo além da apropriação de
saberes?
Quais as atividades extracurriculares que são estimuladas?
A comunidade moral universitária é valorada como local de construção de saberes?
15. A universidade tem alguma orientação em relação a construção da personalidade
moral?
Quais valores são percebidos como essenciais? (são valores importantes em
sociedades democráticas, plurais e diversas?)
16. Há uma preocupação em desenvolver nos indivíduos a habilidade de realizar valores
como justiça, igualdade, liberdade, solidariedade e diálogo? Há uma preocupação da
universidade com a responsabilidade do estudante e a dignidade humana?
17. Valores necessários às diversas práticas sociais são considerados? (valores morais
que permitem exercer seu papel social)
18. Que identidade estudantil se quer construir? A identidade cidadã é estimulada?
19. Qual o tipo e perfil profissional se quer fomentar?
20. Como aparece a relação com a tecnologia e a superespecialização?
217

21. Qual a relação dada entre ensino e aprendizagem? O que se espera da relação
instituição-professor-estudante?
22. Percebe-se algum modelo profissional explícito?
23. Percebe-se um estimulo ao docente além da apropriação de saberes? (Cuidados com
a dimensão afetiva e de sentimentos?).
24. Qual o papel atribuído ao estudante? É percebido no estudante um papel ativo na sua
aprendizagem?
25. Como a ética está inserida no currículo formal?
26. Como as aulas estão estruturadas?
Tem estímulo ao trabalho prático? (reflexão/ação).
Qual o método avaliativo preconizado?
27. Há uma preocupação com a gremialidade na construção do conhecimento em sala?
28. Existe estímulo a práticas reflexivas e dialógicas?
E ao desenvolvimento de habilidades éticas?
Trabalha-se problemas morais, de forma dialógica? Em que momento (sala de aula
somente?)
29. Os conteúdos trabalhados em sala buscam excelência humana ou utilidade prática?
Existe uma preocupação com os saberes culturais? (noção de tempo e espaço em que
se vive?)
Existe uma preocupação com a competência ética do estudante? E do professor?
Há incorporação de conteúdos de natureza ética? (que estimulem decisões mais
criteriosas e responsáveis com a vida individual e da comunidade?)
Valores como o rigor da dúvida, da crítica e da autocrítica e superação pessoal estão
presentes?
Existe uma preocupação com guias de valor?
Existe estímulo à experiencias morais (reais ou simuladas)? Quais?
30. Problemas morais são aplicados e trabalhados de forma concreta? Existe estímulo à
consciência crítica? Na universidade, em alguma disciplina? (ou é um simples
processo de adaptação aos valores sociais?)
31. A deliberação aparece como método de manejo dos problemas éticos, de
desenvolvimento moral e promoção de cidadania?
Como se desenvolve o julgamento moral?
218

APÊNDICE B – Guia para condução de entrevista com professores

Perfil do/a entrevistado/a:


Curso:
Tempo de atuação:
Formas de atuação:
Idade:
Gênero:
Algum trabalho mais vinculado a ética ou bioética (ensino, pesquisa ou ensino)? Qual:

Questões abertas iniciais – práticas coletivas:


1. Professor/a, como você sabe, meu tema de pesquisa é a dimensão ética da
educação dos futuros profissionais de saúde. Sobre isso, gostaria de lhe
perguntar se, ao seu ver, existe uma intencionalidade, por parte desta instituição
universitária como um todo? Em caso afirmativo, poderia me explicar como a
percebe? Como se manifesta?
2. E em relação aos docentes, particularmente os dos cursos da área da saúde, é
possível perceber essa intencionalidade? Como? Em que medida? Em que
situações?
3. A ética se faz presente de alguma maneira no(s) curso(s) que você atua? Como?
4. Como ocorre a aprendizagem e a vivência de valores na universidade?
5. Quais saberes e conteúdos devem (ou deveriam) ser trabalhados para
“formarmos” profissionais eticamente competentes?
6. Que elementos entende que sejam importantes para que os cenários de ensino-
aprendizagem fomentem a “formação ética” dos estudantes?
7. Como você compreende o papel dos docentes nesse processo de uma “formação
ética”?
Questões intermediárias – participação nas práticas:
8. Como você contribui para o desenvolvimento da dimensão ética na educação
desses futuros profissionais de saúde?
9. Há formas de contribuir que você ainda não teve a oportunidade, mas que
gostaria de poder realizar? Como seriam?
Questões finais – opinião e reflexão sobre as práticas:
10. Como você entende o desenvolvimento moral do ser humano ao longo da vida?
(provavelmente ele já terá revelado isso ao responder as questões anteriores)
11. Novamente em relação à dimensão ética da educação dos futuros profissionais,
quais são as principais dificuldades enfrentadas por você e por seus colegas?
12. E quais são as potencialidades que podem ser reconhecidas (em docentes, nos
cursos e na instituição como um todo)?
Você teria alguém para indicar como possível participante desta pesquisa?
Alguém que tenha alguma proximidade com essa temática?
219

APÊNDICE C - Guia para condução de entrevista com estudantes

Perfil do/a entrevistado/a:


Curso:
Semestre
Idade:
Gênero:
Questões abertas iniciais – práticas coletivas:

1. Conta pra mim como tu achas que a Universidade faz para formar profissionais
que sejam também bons cidadãos e boas pessoas?
2. Tem intencionalidade de alguma parte – instituição, professores – nesse
processo?
3. Quais saberes devem ser trabalhados para que esta formação ocorra?
4. Como você compreende o papel dos docentes nesse processo?

Questões intermediárias – participação nas práticas:

5. Como a ética se faz presente na sua formação?


6. Como é para você a vivência de valores na universidade? (como e quais)

Questões finais – opinião e reflexão sobre as práticas:

7. Como você entende o desenvolvimento moral do ser humano ao longo da vida?


8. Novamente em relação à formação ética profissional, quais são as principais
dificuldades enfrentadas por você e por seus colegas?
9. E quais são as potencialidades que podem ser reconhecidas (em docentes, nos
cursos e na instituição como um todo) nesse mesmo sentido?
Você teria alguém para indicar como possível participante desta pesquisa?
Alguém que tenha alguma proximidade com essa temática?
220

APÊNDICE D - Guia para condução de entrevista com Gestores

Perfil do/a entrevistado/a:

Cargo:
Idade:
Gênero:
Algum trabalho mais vinculado a ética ou bioética (ensino, pesquisa ou ensino)? Qual:

Questões de opinião e reflexão sobre as práticas:


Como você sabe, meu tema de pesquisa é a dimensão ética da educação dos futuros
profissionais de saúde. Sobre isso, gostaria de lhe perguntar:

1. Para você, qual é a missão, ou as missões, da formação universitária?

2. Qual sua opinião sobre a função, o sentido, o porquê da dimensão ética na


formação de profissionais da saúde?

3. Como você percebe a intenção dos (macro) gestores da educação superior em


saúde em promover esta dimensão dentro das instituições universitárias? Como
essas intenções se manifestam (ou não se manifestam)?

4. Tendo como foco a promoção da dimensão ética, quais ações seriam mais
relevantes para se qualificar a formação do profissional da saúde?

5. Dos programas e políticas para educação superior nos cursos da saúde, algum
contribui mais diretamente para a promoção da dimensão ética na formação
profissional em saúde? Porque?

6. Quais obstáculos podem ter hoje em dia o professor que deseja formar
eticamente os seus estudantes?

7. Tem alguma questão que eu não perguntei e que você percebe como relevante
ou complementar para se pensar este tema da dimensão ética da educação
superior em saúde?
221

APÊNDICE E - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


222
223

ANEXO A - Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob o


número 2.562.691
224
225
226

ANEXO B - Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sob o


número 2.648.119
227
228

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