Dissertação

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Juliara Bellina Hoffmann

ÉTICA E CONTROLE SOCIAL NO SUS:


PROBLEMAS VIVENCIADOS POR CONSELHEIROS
MUNICIPAIS DE SAÚDE

Orientadora: Prof.ª. Mirelle Finkler, Drª.

Florianópolis, 2015.
Juliara Bellina Hoffmann

ÉTICA E CONTROLE SOCIAL NO SUS:


PROBLEMAS VIVENCIADOS POR CONSELHEIROS
MUNICIPAIS DE SAÚDE

Dissertação submetida ao
Programa de Pós-graduação em
Odontologia, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em
Odontologia – Área de Concentração:
Odontologia em Saúde Coletiva,
Universidade Federal de Santa
Catarina.

Orientadora: Profa. Dra. Mirelle Finkler

Florianópolis, 2015.
Dedico essa Dissertação àqueles que, munidos de
críticas construtivas e do amor incondicional,
alimentam a esperança de um mundo melhor.
AGRADECIMENTOS

À UFSC, Universidade pública, gratuita e de qualidade, por


proporcionar a minha formação profissional e pessoal, principalmente ao
conceder espaços de formação transdisciplinar;
Às reitoras Roselane Neckel e Lúcia Helena Martins Pacheco, que,
não sem muitas dificuldades, militaram com fibra e doçura por uma UFSC
melhor;
Ao Programa de Pós-Graduação em Odontologia, que me apoiou
e incentivou tanto quanto possível. A coordenadora, Profª Drª Izabel
Cristina Santos Almeida, por mostrar todo o poder de transformação,
rigor e cuidado de que as mulheres são capazes. A secretária Ana Maria
Vieira Frandolozo, pelo ser sempre presente. E, especialmente, aos
professores da área de concentração de Odontologia em Saúde Coletiva,
por, desde a graduação, ampliarem tão lindamente os horizontes do meu
mundo;
À querida orientadora desta dissertação, Mirelle Finkler, por ter
me aceitado para sua orientação, introduzindo maravilhosamente os
caminhos da Bioética no meu estudo e na minha vida, por tecer junto
comigo cada novo passo, por dar asas às ideias e rigor às concretizações,
por seus incentivos contínuos ao meu aprimoramento e a minha
autonomia, pelas análises experientes acerca deste trabalho, por seu
cuidado, carinho e amizade e principalmente, por ser coerente com ela
mesma, exemplificando com mestria o que é uma atuação ética, e, como
não poderia ser diferente, o que é realmente ‘ser’ humano;
A todos os autores que referenciei neste estudo, que por meio da
palavra escrita inspiraram cada linha desta dissertação, e que de fato
transformaram quem eu sou e o meu papel neste mundo.
A CAPES, pelo financiamento deste estudo através de bolsa de
mestrado.
Às professoras Eliane Regina P. Nascimento e Mara Ambrosina de
Oliveira Vargas pelas pertinentes contribuições no processo de
construção desta dissertação, e aos professores que colaboraram com a
análise do instrumento empregado nesta pesquisa: Ana Lúcia S. Ferreira
de Mello e Marta Verdi.
Aos conselheiros municipais de saúde selecionados para a
pesquisa, por sua receptividade e abertura que favoreceram não só uma
adequada coleta de dados, mas também momentos de profunda
cumplicidade;
Aos colegas de mestrado e doutorado da turma de Odontologia em
Saúde Coletiva 2013, por serem companheiros nas alegrias e
incentivadores nas dificuldades, e acima de tudo, por serem modelos de
amor genuíno à saúde pública;
Às professoras Daniela Lemos Carcereri, Elma Lourdes Campos
Pavone Zoboli, Marta Verdi e Rita de Cássia Gabrielli Souza Lima por
aceitarem participar desta banca de defesa, dedicando seu trabalho e seu
tempo a esta dissertação, contribuindo nesta busca contínua por
excelência.
Aos meus amigos de coração, da Terra da Cebola e da Ilha da
Magia, que aguentaram, não sem se rebelar, todas as minhas ausências
nestes dois anos, mas que, sobretudo, torcem pelo meu sucesso e sonhos.
A vocês dedico todos os meus esforços por um mundo melhor;
Um agradecimento especial à minha irmã de coração Laís Miguel,
por seu incentivo integral, pela sua presença sempre, mesmo que
fisicamente distante e por me mostrar que a vida sempre pode ser mais
alegre do que já é;
A Aline, Fernanda, e Diego, por me proporcionarem um lar tão
amoroso, mesmo tão longe de casa;
Ao Dudu, por ser meu maior exemplo de amor incondicional, por
todo carinho, paciência e incentivo, pelos diálogos férteis sobre o tema
desse estudo e pela sua prática diária de transformação do mundo.
A Ani, Lice e Raphael, por serem os melhores irmãos que eu
poderia ter. Aos meus queridos pais Tania e Marcos, por serem
exatamente quem são, proporcionando-me ser exatamente quem eu sou.
E por tanto amor.
À humanidade, por enfrentar à barbárie diariamente, dando sentido
a minha missão neste mundo.
“O homem tem a capacidade de aprender não
apenas para se adaptar, mas, sobretudo, para
transformar a realidade.”
Paulo Freire
RESUMO

Este estudo abordou os problemas éticos dentro do espaço de


participação social no sistema público de saúde brasileiro, o SUS
(Sistema Único de Saúde). Seu objetivo foi compreender como os
problemas éticos vivenciados pelos conselheiros municipais de saúde
podem interferir no Controle Social do SUS. A identificação,
categorização e análise destes problemas auxiliaram a entender os fatores
que contribuem para a sua existência, bem como refletir sobre o papel da
Bioética no enfrentamento dessas dificuldades. Para tanto, o marco
teórico metodológico contou com os referenciais conceituais da
Cogestão, Deliberação Moral, Bioética Social e o modelo de Vazios
Paradigmáticos. Esta pesquisa foi realizada de forma qualitativa, em um
estudo de caso único. Na primeira etapa realizou-se a análise documental
de onze atas de um Conselho Municipal de Saúde (CMS) de uma cidade
de médio porte do sul do país. A segunda etapa contou com a observação
não-participante das reuniões deste mesmo CMS, com anotações no
Diário de Campo. A terceira etapa foi a de entrevistas com os conselheiros
municipais de saúde, contando com o auxílio de um Roteiro de Entrevista.
Os resultados desta triangulação de dados foram transcritos para o
software Atlas.ti® 7.1.8, que possibilitou a organização e codificação do
conteúdo. A análise dos dados se deu a partir da sua ordenação em três
supercategorias provindas do marco conceitual: os Vazios de
Responsabilidade Legal, o Vazio de Educação Permanente e o Vazio de
Consciência de Cidadania. Estes Vazios representam desafios que ao
serem enfrentados diminui-se a distância entre a teoria do que deveria ser
e a realidade do que realmente é. Os resultados evidenciaram a realidade
dos problemas e conflitos éticos vivenciados pelos conselheiros
municipais de saúde, confirmando a hipótese inicial de que os problemas
éticos podem interferir no Controle Social do SUS, dificultando a
consolidação e efetivação desses espaços de participação democrática. O
diálogo entre os dados coletados, os argumentos dos autores do marco
conceitual e as percepções da pesquisadora apontaram uma série de
desafios que precisam ser assumidos pelos conselheiros, pelo Estado e
pela própria sociedade na busca pela excelência do Controle Social e de
suas decisões eticamente comprometidas. As estratégias propostas estão
embasadas nos valores que fundamentam a construção coletiva, a
deliberação moral e a educação ética. Neste sentido, o estímulo a uma
cultura da cidadania torna-se imperioso para qualificar os espaços de
participação social, considerando as reflexões bioéticas como forma de
aumentar a capacidade crítica da população, estabelecendo um
instrumento social e político para a democracia.

Palavras-chave: Ética. Bioética. Problema ético. Deliberação


Moral. Controle Social. Conselho Municipal de Saúde. Participação
Social. SUS.
ABSTRACT

This study has addressed the ethical problems within the social
participation in the Brazilian system of public health, the Unified Health
System (SUS). Its goal was to comprehend how the ethical problems
experienced by the municipal health counsellors may interfere in the
Social Control of SUS. The identification, classification and analysis of
these problems have helped better understanding the factors that
contribute to their existence and also to think over the role of Bioethics
when facing these difficulties. Thus, the methodological theoretical
framework included the concepts of co-management, Moral Deliberation,
Social Bioethics and the model of Paradigmatic Emptiness. This research
was carried though a single case study, analyzed qualitatively. The first
stage was the documentary analysis of eleven meeting minutes of a
Municipal Health Council (CMS) from a medium city in the south of
Brazil. The second stage included non-participating observations of the
CMS meetings, with notes in the Field Journal. The third stage took place
in interviews with municipal health counsellors, with the aid of an
Interview Guide. The results of this data triangulation were transcribed to
the software Atlas.ti® 7.1.8, which supported the organization and
codification of the content. The data analysis was made through its
classification in three categories which were stemmed from the
conceptual framework: The Emptiness of Legal Responsibility, the
Emptiness of Continuing Education and the Emptiness of Consciousness
of Citizenship. Each “emptiness” represents a challenge understood as a
gap between a theoretical ideal and reality. The more the challenges are
faced, the more this gap decreases. The results showed the reality of
ethical problems and conflicts experienced by the municipal health
counselors, confirming the initial hypothesis that the ethical problems can
interfere in the Social Control of SUS, making it difficult to consolidate
these spaces for democratic participation. The dialogue between the
collected data, the arguments from authors of the conceptual framework
and the researcher’s perceptions pointed out a number of challenges that
need to be assumed by the counselors, by the State and by society itself
in the pursuit for excellence of Social Control and its ethically
compromised decisions. The proposed strategies are based on the values
that underlie the collective construction, the moral deliberation and
ethical education. In this sense, encouraging a culture of citizenship
becomes imperative to better develop (qualify) spaces for social
participation, considering the Bioethics thoughts and considerations in
order to increase the critical acumen, establishing a social and political
tool for democracy.

Keywords: Ethics. Bioethics. Ethical problem. Moral deliberation.


Social control. Municipal Health Council. Social Participation. SUS.
LISTA DE QUADROS:

Quadro 1 – Dimensão Pedagógica: O Vazio da Educação Permanente.


Capacitação: Clichês, Ingenuidade e Paternalismo................................70

Quadro 2 – Dimensão Pedagógica: O Vazio da Educação Permanente.


Linguagem, comunicação, diálogo, deliberação....................................71

Quadro 2 – Dimensão Pedagógica: O Vazio da Educação Permanente.


Linguagem, comunicação, diálogo, deliberação (continuação).............72

Quadro 3 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Concentração de Poder, Enfrentamento e Autonomia: A atual prática da
Cultura Política.......................................................................................73

Quadro 4 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Secretário - Presidente: Uma prática do Poder Instituído, um Conflito de
Interesse..................................................................................................74

Quadro 5 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Hierarquia: O Espírito Competitivo.......................................................75

Quadro 6 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Relação entre os Segmentos: O Pensar-Agir Dicotômico-Dilemático...76

Quadro 7 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Articulação versus a Imobilidade da Sociedade Civil............................77

Quadro 8 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Papel do Controle Social: Para Além do Pragmatismo Imediatista.......78

Quadro 9 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Profissionalização: Maior Legitimidade?...............................................78

Quadro 10 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Representação: A Aproximação de Valores...........................................79

Quadro 11 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Participação: Por uma “Re-valoração” dos Valores Democráticos........80
Quadro 12 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.
Visão do Coletivo: Saber-se e Se Sentir Cidadão..................................81

Quadro 13 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Saúde Pública: O Olhar da Colonialidade..............................................81

Quadro 14 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Eficiência: O CMS como Possibilidade de Transformação Social........82

Quadro 15 – Problemas Éticos encontrados na Supercategoria do Vazio


de Educação Permanente, e distribuídos nas suas respectivas categorias
..............................................................................................................114

Quadro 16 – Problemas Éticos encontrados na Supercategoria do Vazio


de Responsabilidade Legal com suas respectivas categorias...............168

Quadro 17 – Problemas Éticos encontrados na Supercategoria do Vazio


de Consciência de Cidadania e distribuídos nas suas respectivas
Categorias.............................................................................................196
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..........................................................................23

2 OBJETIVOS ................................................................................ 31
2.1 Objetivo Geral .....................................................................................31
2.2 Objetivos Específicos ............................................................................31

3 MARCO CONTEXTUAL ........................................................... 33


3.1 Dos Conselhos de Saúde e do Controle Social ......................................33

4 MARCO CONCEITUAL ............................................................ 39


4.1 Da Ética, da Moral e dos Valores. .....................................................39
4.2 Da Bioética e da Cidadania ................................................................43
4.3 Referencial de análise ...........................................................................49
Sobre humanização e cogestão ...........................................................49
Deliberação moral.................................................................................51
Bioética social ........................................................................................53
Vazios paradigmáticos .........................................................................55

5 ASPECTOS METODOLÓGICOS ..............................................59


5.1 Desenho do estudo ...............................................................................59
5.2 Participantes do estudo ........................................................................60
5.3 Cenário do estudo ................................................................................61
5.4 Coleta de dados ...................................................................................62
5.5 Organização dos dados ........................................................................63
5.6 Análise dos dados................................................................................64
5.7 Aspectos éticos .....................................................................................66

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO ..................................................69


6.1 Dimensão Pedagógica: o vazio da educação permanente. .......................83
Capacitação: clichês, ingenuidade e paternalismo. ..........................84
Linguagem, comunicação, diálogo, deliberação: um processo
ascendente. 100
A valorização dos meios frente aos fins. ....................................... 114
6.2 Dimensão Política: o vazio da responsabilidade legal ......................... 115
Concentração de poder, enfrentamento e autonomia: a atual
prática da cultura política. .............................................................................. 115
Secretário - presidente: uma prática do poder instituído, um
conflito de interesses. ..................................................................................... 127
Hierarquia: o espírito competitivo .................................................. 133
Relação entre os segmentos: o pensar-agir dicotômico-dilemático
141
Articulação versus a imobilidade da sociedade civil ....................... 147
Papel do Controle Social: para além do pragmatismo imediatista.
155
Profissionalização: maior legitimidade? ......................................... 161
Democratização do poder. ............................................................... 167
6.3 Dimensão Cultural: o vazio da consciência de cidadania ................... 169
Representação: a aproximação de valores ..................................... 170
Participação: por uma “re-valoração” dos valores democráticos.
177
Visão do Coletivo: saber-se e se sentir cidadão. ........................... 184
Saúde Pública: o olhar da colonialidade. ........................................ 187
Eficiência: o CMS como possibilidade de transformação social 192
O bem comum na cultura da cidadania. ........................................ 195

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................... 199

8 REFERÊNCIAS ....................................................................... 205

APÊNDICES ....................................................................................... 214

ANEXOS ............................................................................................. 221


23

1 INTRODUÇÃO

O reconhecimento da saúde como um direito e um bem comum


culminou em uma mudança paradigmática da sociedade, onde a saúde da
população, coletiva ou individual, passou a ser questão de todos. A
participação dos atores sociais nesse processo fez de atores passivos,
atores ativos, e dos sujeitos individuais, atores coletivos. Foi dessa
movimentação social que os conselhos de saúde emergiram como esferas
de poder deliberativo sobre a agenda e as estratégias das políticas do
Sistema Único de Saúde (SUS), onde a relação entre sociedade e Estado
por meio do controle social passou a legitimar a democracia participativa
(BRASIL, 2006a).
O efetivo controle social dentro do SUS busca materializar o
modelo de gestão participativa da saúde, procurando minimizar as
situações de exclusão e desigualdades, dando oportunidade aos cidadãos
de se manifestarem e participarem das decisões políticas. Essa
característica peculiar dos conselhos de saúde efetua o direito da
sociedade civil de expressar seus interesses, pressionando, fiscalizando e
acompanhando as ações do Estado, empoderando esses atores sociais para
o exercício da cidadania. De acordo com Batagello et al. (2011, p.627) o
controle social se traduz pela
capacidade da sociedade civil de promover um
enfrentamento moral que permite uma ponderação
entre as decisões tecnicamente orientadas, as
juridicamente balizadas e as socialmente
desejadas.
Esse enfrentamento moral, traduzido pelo ato de desenvolver o
questionamento e a reflexão ética sobre os mais variados temas da
sociedade, tem sua importância melhor compreendida quando os
indivíduos envolvidos no conselho se sentem pertencentes a uma
comunidade. Quando os objetivos individuais daqueles que exercem sua
cidadania concordam com os objetivos da própria comunidade, a
necessidade de “ser moral” fica explícita (CORTINA, 2005b, p. 98).
Para os gregos ser “moral” era desenvolver sua capacidade política
de atuação, sintonizando suas atividades pessoais com as necessidades da
comunidade (CORTINA, 2005b, p. 98). O senso de pertencimento à
cidade era tão aflorado e ao mesmo tempo tão óbvio nessa sociedade que
seus cidadãos consideravam absurdo que seus negócios pessoais
atrapalhassem os negócios da coletividade. Pelo contrário, as formas de
negócios que pudessem contribuir para o bem comum eram procuradas,
24

e valorizadas, em primeira instância. Essa relação de essência entre lei e


liberdade de escolha, formou a primeira democracia livre, a democracia
dos gregos de Atenas. A obediência às leis escritas tinha igual
importância, ou até menos, que a obediência às leis não escritas, às “leis
morais”. Essa obediência às leis não escritas, das quais a transgressão não
acarretava sentenças em tribunais, era condição basal para os cidadãos de
Atenas se sentirem livres e pertencentes à comunidade. Assim, estes
homens acatavam a bondade, a compaixão o altruísmo e todos os valores,
que denominavam “virtudes”, como condições essenciais para a vida em
sociedade (HAMILTON, 2001, p. 17-18). Pareciam-lhes evidente que
para se ter um bom governo necessitavam-se como pré-requisito bons
homens, homens virtuosos.
Como a necessidade moral está embasada no sentido de
pertencimento comunitário, seu desenvolvimento ocorre concomitante ao
desenvolver das relações sociais, da dialógica e da reflexão ética, onde as
bases que fundamentam as tomadas de decisões deveriam estar claras para
aqueles que detêm esse poder. Segundo Batagello (2011, p. 633), “a
melhoria da qualidade de vida da população deveria ser considerada o
valor moral norteador”, questão que deveria ser central para aqueles que
detêm o poder decisório, como os conselheiros de saúde.
Assim, no momento em que a política democrática participativa
não consegue fazer com que o discurso de interesse público encontre
respaldo prático na realidade vivida pelos cidadãos, os conflitos morais
produzidos na condução das políticas públicas se aprofundam
(BATAGELLO, 2011). Para evitar este caminho, é necessário que o
controle social não se afirme somente na sua legalidade, mas que procure
se embasar nas “leis morais” da sociedade a qual pertence. Para tanto, os
“bons homens”, os virtuosos, que compõem esse controle precisam ter
seus objetivos individuais a serviço da coletividade.
Para se caminhar em direção a uma sociedade mais justa e
igualitária onde os interesses coletivos e individuais coincidam, ou ao
menos que os interesses individuais não se sobreponham aos coletivos,
deve-se ter a ética norteando os espaços de gestão social. De igual
maneira, clarifica-se a necessidade de aperfeiçoamento das reflexões
éticas desenvolvidas e estimuladas no meio político, principalmente no
que concerne à esfera de relação Estado-sociedade, objetivando a
ampliação do poder crítico-reflexivo dos atores envolvidos.
A reflexão ética é guiada pelos “valores” que um determinado
indivíduo ou sociedade assume como “corretos” ou “bons”. Vale dizer
que o conceito de “valor” é assumido pela ética como um modelo
orientador das ações individuais (HOFFE, 2004). O conjunto de valores
25

e crenças presentes dentro de uma sociedade constrói, em um


determinado contexto histórico, sua base moral. É sobre este olhar que se
afirma que uma reforma política e cultural efetiva só seria possível se os
valores de caráter competitivo, individualistas e autointeressados que
predominam na moralidade da atual sociedade ocidental fossem
substituídos por valores de solidariedade e cooperação (MENDES, 2001,
p. 35 - 56).
Esses valores, solidários ou não, emergem na atmosfera das
interações humanas, e não apenas do indivíduo em si. Deste modo os
valores não são “metas a serem alcanças” e sim bases conceituais que
podem ser desenvolvidas e valorizadas através de uma convivência mais
humanizadora (MARIOTTI, 2000, p. 165-166). Assim, numa atmosfera
social, de valores que se complementam, interagem e se reconstroem
podemos optar por aqueles valores que humanizam, que nos tornam
pessoas, e podemos decidir porque conquistamos certo grau de autonomia
(CORTINA, 2003), a tão conceituada “liberdade” do mundo grego.
É essencial, portanto, que os cidadãos que possuem essa liberdade
e que decidem em coletivo entendam o que é essa busca da qualidade de
vida da população. Clarear seus critérios tem sido o objetivo de alguns
estudiosos como a filósofa Adela Cortina. Suas reflexões apontam para a
ampliação do pertencimento comunitário local a uma sociedade global,
onde a busca dos mínimos de justiça é que seria o objetivo do Estado e
das políticas públicas, para que então, por si só, cada cidadão seja capaz
de buscar sua felicidade individual. Esses mínimos de justiça teriam
critérios bem definidos, como o valor da igualdade, da solidariedade, do
respeito ativo, da liberdade e do diálogo. Esses valores auxiliariam
aqueles que decidem em nome de muitos, pois são valores morais
universalizáveis e, portanto que fomentam uma necessidade coletiva, um
bem estar global (CORTINA, 2005b).
Mesmo quando se busca em conjunto uma comunidade
cosmopolita os valores que embasam a moral dessa sociedade vão sempre
emergir dos indivíduos e de suas relações humanas em cada local e
conforme estas evoluem, seja nas interações dos indivíduos entre si,
destes com o Estado e/ou ambos com o ambiente em que se encontram,
modificam-se também seu sistema de valores. Este fato, somado a rápida
dinâmica do modelo econômico-político-ambiental, acaba por acarretar
mudanças paradigmáticas sociais, de dimensão local e global (FINKLER,
2009).
Segundo Correia (2005), mudanças profundas nas bases sócio-
políticas ocorreram na década de 1980 no Brasil, com a redemocratização
do país, alimentadas pelos movimentos populares e culminando na
26

Constituição de 1988. Essas transformações, no entanto, sofreram um


retrocesso já na década de 1990 com o advento da globalização e do “voto
de mercado”. No fim das contas, o Estado investiu na “refilantropização”
da assistência, onde bens comuns como a saúde passaram a sofrer ainda
mais a lógica do livre mercado e as políticas sociais - dever do Estado -
criaram o terceiro setor. Esse modelo de relação Estado-sociedade
comandado pela lógica capitalista, acaba gerando uma “inversão de
valores”, onde relações participativas, cooperativas e de confiança, típicas
do antigo viver em comunidade, dão lugar a relações de
apropriação/expropriação, competitividade, autoritarismo e
desconfiança. Essas transformações se refletem no setor público e privado
da sociedade, levando a uma emergência de conflitos éticos
constantemente presentes.
Como estes valores que fundamentam a moral de diferentes
sociedades contemporâneas comumente são reafirmados no dia-a-dia de
suas instituições políticas, é na presença destes que se estruturam as
relações de poder, definidas e assimiladas (por vezes assumidas) pelos
indivíduos que deles tomam parte (SARMENTO, 2012). Deste modo,
percebe-se que as sociedades ditas democráticas têm dificuldade na
reforma de seus serviços públicos como o sistema de saúde,
principalmente pela rede complexa e paradoxal que se forma entre os
valores da sociedade e as normas adotadas para operacionalizar estes
valores (MENDES, 2001). Tal questão foi pensada quando se propôs a
Cogestão (CAMPOS, 2000) para superar as limitações da tradição
gerencial na implementação e consolidação de políticas públicas,
principalmente aquelas que buscam democratizar as instituições de saúde.
Neste sentido, indaga-se sobre a possibilidade das organizações sociais
produzirem liberdade e autonomia, superando o controle e a dominação
atual. É nessa dificuldade de realizar valores que surgem os problemas
éticos, quando da necessidade de se escolher entre diferentes valores que
embasarão determinadas ações. Conforme Gracia (2014, p. 232) o
problema ético se difere do conflito, pois os problemas vêm da
necessidade pontual de se escolher um curso de ação, já os conflitos vêm
do choque entre valores distintos, que não podem se realizar
concomitantemente sem se afetarem.
A análise desses problemas e conflitos éticos, sejam decorrentes de
fatos políticos, tecnológicos e/ou biológicos, são matéria de estudo da
Bioética, que oferece recursos metodológicos e procedimentais para o
manejo desses conflitos (OLIVEIRA, AYRES, ZOBOLI, 2011). De uma
maneira geral, as relações, condutas e desafios que envolvem questões
27

éticas na preservação e no cuidado com a vida e, consequentemente, da


própria área da saúde são abordados pela Bioética.
Nascida nos Estados Unidos da América, na segunda metade do
século XX, a Bioética surge como um movimento cultural - aflorando em
um período de explosão dos movimentos sociais, pós-segunda guerra
mundial, com o objetivo de limitar as interferências que o rápido
desenvolvimento das ciências, poderia impor à vida humana e à natureza.
Os questionamentos constantes nesse terreno impulsionam o surgimento
da Bioética enquanto uma disciplina - derivada da ética aplicada aos
diversos campos, como o político, o ambiental e o da própria vida
(FORTES, ZOBOLI, 2003, p. 11).
No Brasil foi somente sob a influência da reforma sanitária no final
da década de 70, que a análise dos processos de saúde-doença incorporou
uma dimensão social. No contexto latino-americano a Bioética passou a
expressar essa preocupação (PORTO, GARRAFA, 2011). Esse enfoque
social da Bioética passou a ser consolidado organicamente a partir da
década de 1990, devido à necessidade de se considerar as diferentes
realidades culturais e sociais, além das diversas formas de interpretação
moral imbricadas nos problemas e conflitos éticos. Deste modo, o termo
“Bioética Social” foi cunhado para abranger a produção teórica na
Bioética voltada à saúde coletiva e à cidadania (HELLMANN, VERDI,
2012, p.52).
Se diretamente influenciado pelos estudos da Bioética Social ou
não, a questão é que o processo de redemocratização brasileira guiou o
país na direção da descentralização da gestão, onde os municípios
passaram a tentar desenvolver uma política mais inclusiva, que também
foi incorporada pelas políticas públicas de saúde. É alicerçada nessa
peculiaridade política que a sociedade se infiltra e consolida o seu acesso
ao processo de gestão da saúde, caracterizando a democracia participativa
(MOREIRA, ESCOREL, 2009; SARMENTO, 2012, p. 108-122). E é
nesse embricamento altamente complexo e necessário entre cidadania e
políticas públicas, que se contextualizam os Conselhos Gestores de
Saúde, instâncias colegiadas de controle social do setor saúde, cenário de
disputas de poder e de interesses, um meio propício para a emergência de
inúmeros conflitos éticos.
Correia (2005) sustenta que as barreiras existentes nos Conselhos
Gestores para se atingir uma democracia participativa são inúmeras, como
a falta de legitimidade na representação dos conselheiros, a desarticulação
com suas bases, a fragilidade da mobilização das organizações
representadas, a cooptação de lideranças em troca de favores, a pouca
transparência dos gestores no uso dos recursos, a pouca visibilidade social
28

das ações dos Conselhos, além do descumprimento das deliberações por


parte dos gestores. Estes apontamentos reforçam a necessidade inicial de
reflexões éticas, seja na gestão, seja na clínica dos serviços de saúde, para
que se possam superar os limites, reavaliar as atitudes e efetivamente
construir uma nova prática na atenção à saúde (BREHMER, VERDI,
2010).
Especialmente em se tratando dos Conselhos de Saúde,
Wendhausen e Cardoso (2007) concordam que, há ainda muito que
aprimorar, sendo a qualidade do processo decisório um destes aspectos.
Portanto, a busca de conhecimentos, habilidades e atitudes que promovam
a humanização da sociedade deveriam ser estimulados, através de
capacitação permanente fornecida aos representantes destes conselhos,
com o intuito de fomentar um processo decisório participativo,
empoderado e ético. Além da falta de capacitação dos conselheiros,
percebida no despreparo dos representantes do controle social, existem
dúvidas quanto à eficiência do processo participativo. Wendhausen e
Caponi (2002) demonstraram que o tipo de relação que se estabelece
dentro das reuniões dos conselhos, entre os que “detém o poder” e os que
parecem não detê-lo, praticamente não tem permitido a existência de
diálogo, aspecto fundamental para a deliberação nos processos decisórios:
Esses pontos de reflexão impõem-nos uma
retomada da ética. Ética que nos faz resgatar essas
situações cotidianas, aparentemente banais, como a
da falta de diálogo neste conselho, mas em cujo
espaço vão se repetindo pequenas violências, que
apequenam cada vez mais o que temos de humano,
impondo um “ethos” que nos leva apenas ao
comportamento, que nos condena à massificação,
que nos retira o agir, que é propriamente o que nos
diferencia como humanos (2002, p. 1627).
Por conseguinte, se a construção democrática parte da concepção
da igualdade e da participação coletiva nos processos decisórios que
concernem o âmbito das políticas públicas é necessária a soberania e a
participação de todos (SARMENTO, 2012, p. 108-122), ou seja, uma
verdadeira política, uma política socializada com o fortalecimento do
mecanismo deliberativo dos conselhos gestores. Este contexto indica uma
ineficiência em diferentes aspectos do processo participativo. O que se
propões neste estudo é descortinar as deficiências da dimensão ética
desses espaços político-institucionais.
Entende-se que propostas de aperfeiçoamento da qualidade
decisória das reuniões dos conselhos de saúde só podem ser construídas
29

na medida em que se conhecem os problemas que se apresentam aos


conselheiros, dentre os quais os de ordem moral, ainda pouco
explicitados. Por conta disto, a proposta do presente estudo é
compreender os problemas éticos vivenciados por conselheiros
municipais de saúde, identificando-os e analisando os fatores que
contribuem para a sua existência, bem como refletir sobre o papel da
Bioética no enfrentamento dessas dificuldades.
31

2 OBJETIVOS

2.1 OBJETIVO GERAL

Compreender como os problemas éticos vivenciados pelos


conselheiros de um Conselho Municipal de Saúde podem interferir no
Controle Social do SUS.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

1. Identificar os problemas éticos vivenciados pelos


conselheiros de um Conselho Municipal de Saúde.
2. Analisar os vazios pedagógico, cultural e político que
permitem a presença de problemas de caráter ético.
3. Refletir sobre o papel da Bioética no enfrentamento dos
problemas éticos analisados.
33

3 MARCO CONTEXTUAL

3.1 DOS CONSELHOS DE SAÚDE E DO CONTROLE SOCIAL

O eco da democracia grega presente nas sociedades


contemporâneas provém da antiguidade clássica, onde Atenas, apesar dos
seus mecanismos peculiares de organização social e política, valorizou o
componente educativo. Assim, na medida em que aqueles considerados
cidadãos participavam ativamente das decisões políticas, aprendiam a
dialogar publicamente sobre os interesses coletivos, e a respeitar as
decisões tomadas nas então chamadas assembleias (SILVA, 1996),
mantendo assim a ordem da polis.
Essa promoção do diálogo entre o poder público e a sociedade pode
não ser inédita na história das civilizações, mas é sem dúvida um passo
inovador e um grande desafio para a sociedade atual (BAPTISTA, 2008),
principalmente pela ampliação de seus horizontes participativos com a
cidadania sendo direito de todos.
No Brasil, esses espaços de diálogo se consolidam, dentre outros
como as Audiências Públicas, nos Conselhos Gestores, que emergem das
propostas de democratização e descentralização das políticas sociais
(CORREIA, 2005, p. 40). Alinhada com o resultado da 8ª Conferência
Nacional de Saúde, de 1986, juntamente com o Movimento Sanitário,
promulga-se, em 1988 a Constituição Federal, denominada “Constituição
Cidadã”, instituindo um novo, e peculiar, reordenamento do setor saúde,
alicerçado no SUS (BALSEMÃO, 2002, p.2). Universalizou-se o direito
à saúde e consagraram-se esses espaços de gestão democrática, com a
possibilidade de participação realizada por diferentes sujeitos sociais.
No final dos anos 1990 com o mecanismo de descentralização das
políticas públicas ocorreu uma reordenação da organização do SUS,
remodelando sua operacionalização em busca da democratização da
gestão e do acesso a bens, serviços e ações de saúde em todo o país
(AGUSTINI, NOGUEIRA, 2010). A Lei Orgânica da Saúde no 8.080/90
determinou que a gestão, as ações e os serviços do SUS seguissem os
princípios estruturantes e acordassem com as diretrizes previstas pela
Constituição Federal para a política de saúde. Em ambos os casos, figurou
a participação da sociedade. Regulamentando a Lei Orgânica de Saúde, a
Lei 8142, de 28 de dezembro de 1990, define as Conferências de Saúde e
os Conselhos de Saúde como instâncias mandatórias que, em nível
34

nacional, estadual e municipal, objetivam o controle social civil na gestão


do SUS (BRASIL, 2012a).
A participação de atores da comunidade nos processos de gestão
do SUS foi denominada de Controle Social. Nos Conselhos de Saúde o
controle social tem como atribuição a participação no processo de
formulação de estratégias e no acompanhamento da execução da política
de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. Para tanto, os
usuários do SUS, representados por entidades da sociedade civil que
detém 50% das vagas e os trabalhadores de saúde, prestadores de serviços
e gestores que, juntos, contam com os outros 50%, devem promover o
debate sobre a política de saúde, num processo de caráter deliberativo
(BRASIL, 2012a).
Criados em 5.563 municípios brasileiros (BRASIL, 2012b), os
Conselhos Municipais de Saúde, traduziram-se em pontes diretas entre a
gestão global e o poder do conhecimento local, representando um
importante passo para a democratização da política de saúde. Ceccim e
Feuerwerker (2004) enfatizam que a população próxima aos assentos das
instâncias máximas de tomada de decisões, é uma das características que
dá ao SUS singularidade histórica e internacional dando à sociedade o
direito e dever de participar do debate e da decisão sobre a formulação,
execução e avaliação das políticas de saúde.
As reuniões deliberativas dos Conselhos de Saúde, tanto no nível
federal e estadual, como no municipal, devem ocorrer ao menos uma vez
por mês, podendo intercorrer reuniões extraordinárias. Esses encontros
são presididos, na sua maioria, pelos gestores do SUS, sendo que apenas
alguns conselhos conseguem eleger internamente seus presidentes. Na
esfera federal, o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) é o
Ministro da Saúde, e nos estados, à exceção do Rio Grande do Sul, todos
são presididos pelos Secretários de Estado da Saúde. Já nos municípios
observa-se um avanço na questão da presidência dos conselhos, entrando
em debate o caráter democrático desse cargo, já que, quando o presidente
do conselho é o próprio gestor do SUS, ele torna-se fiscal de si mesmo,
homologando as resoluções que ele mesmo assina como presidente. Esse
impasse vem sendo debatido nas plenárias de Conselhos e Conferências
de Saúde, para que se legitime o caráter fiscalizador democrático dos
conselhos (BALSEMÃO, 2002, p.7-9).
A capacitação dos conselheiros de saúde também tem sido um
assunto constante nas pautas das Plenárias Nacionais, em especial a
capacitação do segmento dos usuários (BALSEMÃO, 2002, p.9-10),
solicitada pelos próprios conselheiros representantes desse segmento
(WENDHAUSEN, BARBOSA, BORBA, 2006; BOEIRA,
35

BUECKMANN, FERREIRA, 2007; MOREIRA, ESCOREL, 2009). De


acordo com Bravo e Correia (2012), um dos desafios posto à prova, após
a institucionalização do controle social, foi o cuidado para que este não
se torne um mero aparelho de consentimento do Estado, que não se impõe,
muito menos delibera, não contribuindo para alguma mudança nas
relações Estado-sociedade civil.
Em um estudo que analisou a resolutividade e a efetividade do
SUS, tendo como unidade de análise os participantes do Conselho
Municipal de Saúde de Florianópolis, evidenciou-se, a deficiência na
organização, composição e representatividade desse conselho; nos
encaminhamentos das deliberações dos mesmos; na definição do papel do
conselheiro e na sua relação com a entidade que ele representa; e uma
defasagem quanto aos fatores relativos ao referencial teórico
metodológico e ético que orienta as ações dos conselheiros. Por fim, o
estudo evidenciou que a participação popular e o controle social, que são
condições essenciais para a efetivação das propostas do SUS, parecem
ainda permanecer como expectativa e um grande desafio (GRISOTTI,
PATRICIO, SILVA, 2010).
A questão da qualidade do processo deliberativo também é
abordada no estudo de Wendhausen e Caponi (2002), onde as autoras
demonstram o que denominam de “estratégia de silenciamento”,
encontrada principalmente nas falas dos representantes do segmento
governamental. Este tipo de discurso que “inibe” a linguagem dialógica
nas reuniões é altamente prejudicial para um processo que se intitula
deliberativo.
Moreira e Escorel (2009) demonstraram que muitas das
problemáticas comuns aos CMS devem-se à dificuldade de se chegar a
um consenso quanto às questões em pauta nas reuniões, onde o debate
não alimenta a construção de um resultado em conjunto e sim tentativas
de sobrepujar as opiniões que sejam diferentes das suas. Os autores
concordam que apesar da essência democrática participativa da política
de controle social do SUS, ainda caminha-se lentamente para a plena
consolidação das instituições que tem como responsabilidade viabilizar a
participação efetiva deste setor. Mesmo com as dificuldades estruturais e
de gestão, os autores identificam que por institucionalizarem a
participação da sociedade organizada nesse processo decisório das
políticas sociais, os conselhos gestores ainda são os principais exemplos
de espaço de participação social nas políticas públicas.
Para que esses espaços não se reduzam a uma razão instrumental,
o processo de diálogo entre as três esferas que fundamentam o SUS,
trabalhadores, gestores e usuários torna-se peça primordial. Na busca pela
36

melhoria da qualidade institucional e no seu reflexo na vida da sociedade,


tanto o entendimento dessa necessidade dialógica quanto o próprio
desenvolvimento do processo de deliberação são desafios atuais dos
Conselhos de Saúde.
Pensando em todas essas dificuldades, principalmente voltadas
para a efetivação da implementação de políticas públicas, Campos (2000)
avaliou a necessidade de democratização institucional e de produção de
modos compartilhados de gestão. Batizada de Cogestão (Campos, 2000)
esta estratégia foi inicialmente pensada para diluir o poder e,
consequentemente, as capacidades assimétricas de decisão dentro das
instituições de saúde.
Essa forma de gestão horizontal tornou-se diretriz estruturante da
própria Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2006b)
como forma de incentivo à expansão da participação social para além das
instâncias formalizadas para o Controle Social, demonstrando a
necessidade de: horizontalizar as decisões e humanizar as relações. A
questão é entender que as próprias instâncias formalizadas, como os
Conselhos de Saúde, não estão imunes a essas necessidades e, que
também necessitam de valores que os norteiem assim como os próprios
valores de autonomia, protagonismo, corresponsabilidade entre os
sujeitos, e o estabelecimento de vínculos solidários consolidados na PNH
(BRASIL, 2006b).
A humanização, já antes citada no plano dos valores necessários à
democracia participativa, consolida sua necessidade emergente no plano
do Controle Social como forma de balizar as decisões tomadas nessas
instâncias de poderes e valores compartilhados, embasando o objetivo
maior do bem comum a toda sociedade.
Uma problemática dessa concepção de Cogestão, refletida
atualmente, é que essa forma de gestão horizontal foi pensada para
incorporar os trabalhadores e não propriamente os usuários nos espaços
coletivos em que se pretende intervir. Pensando nisso, concorda-se com
Guizardi e Cavalcanti (2010):
Na medida em que se limita à dinâmica interna das
equipes de trabalho (...) não se questiona
suficientemente o funcionamento institucional (...).
Sinalizamos, com isso, a necessidade de ampliar o
conceito de Cogestão (...) a fim de ultrapassar as
práticas de organização do trabalho, em direção à
articulação em rede das atividades de produção de
saúde no território (2010, p. 1251).
37

Trabalhar a ideia de uma gestão horizontalizada, com práticas


dialógicas e fortemente fundamentada nos valores de humanização parece
ser uma forma de ampliar a ideia de cogestão para todo o território,
incluindo assim usuários (GUIZARDI, CAVALCANTI, 2010). Desta
forma a Cogestão por si deve permear todos os espaços institucionais do
SUS, incluindo os próprios conselhos de saúde, onde a proteção
normativa já exige essa deliberação horizontal entre os segmentos,
cabendo aos conselhos explicitarem os valores que os embasam enquanto
esfera decisória.
Deste modo, o Controle Social já estabelecido no SUS, não foge
às necessidades visualizadas pela PNH e a Cogestão, principalmente no
enfrentamento cotidiano de problemas éticos relacionados aos diferentes
valores necessários as tomadas de decisões, problemas estes que, se não
dialogados, podem interferir na qualidade e efetividades das decisões
tomadas.
39

4 MARCO CONCEITUAL

4.1 DA ÉTICA, DA MORAL E DOS VALORES.

A palavra ética refere-se aos costumes, condutas e


comportamentos de um indivíduo dentro de uma sociedade. É o
conhecimento, obtido por meio da dialógica reflexiva, que pretende
orientar a formação de um caráter justo, íntegro e humanizado.
Etimologicamente as palavras “ética” e “moral” têm significados
semelhantes, sendo comum o emprego de uma pela outra (CORTINA,
2003, p.15). Contudo, ética trata-se de um saber filosófico que se utiliza
da reflexão sobre o caráter, sendo um fenômeno abrangente, universal e
generalizável. Já a moral, se refere à formação do caráter na vida
cotidiana, relacionada a fenômenos culturais específicos, envolvendo os
valores de cada grupo social (GARRAFA, PORTO, 2002, p.9). Enquanto
a moral tenta conduzir as ações práticas dos indivíduos, tentando orientar
para uma sociedade justa e feliz, as teorias éticas tentam responder
questões mais filosóficas que deem conta de explicar e entender o
fenômeno da moralidade (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 51).
Como parte da Filosofia, a Ética é um tipo de saber
que se tenta construir racionalmente, utilizando
para tanto o rigor conceptual e os métodos de
análise e explicação próprios da Filosofia. Como
reflexão sobre as questões morais, a Ética pretende
desdobrar os conceitos e argumentos que permitam
compreender a dimensão moral (2005, p. 09).
Desde sua origem na filosofia grega, a ética trata de um saber
normativo, ou seja, um saber que pretende orientar a conduta humana,
que considera a moral uma conduta a ser recomendada (CORTINA,
NAVARRO, 2005a, p. 104).
Quando em sociedade adjetivamos alguém de “pessoa ética”, na
realidade estamos denominando o que conhecemos da sua conduta moral,
estamos querendo demonstrar que tal pessoa possui uma conduta
reflexiva diante das suas tomadas de decisões, reflexões que o permitirão
ponderar qual a melhor conduta a ser seguida em determinado contexto
de problema ético. A ética seria assim “um chamamento para o humano,
uma forma de contraponto à violência da desigualdade”, seria uma
“referência valorativa da centralidade do homem” no mundo
40

(SARMENTO, 2012, p. 112), da centralidade dos valores na moral, e da


centralidade da moral na humanidade do próprio homem.
Toda reflexão ética implica uma análise entre a moral da
sociedade e a moral própria, para que um “juízo moral” se estabeleça
sobre determinado assunto. Essa reflexão dialógica (moral do
indivíduo/moral da sociedade) que constitui em si a própria ética é
fundamental à sociedade que objetiva a justiça social, pois nem sempre
os valores mais valorizados, mais estimados, mais caros a uma sociedade
são valores “humanizadores”.
Apesar do caráter polissêmico do termo “humanização”, podemos
entendê-lo como um conceito transversal, que vem se consolidando no
plano institucional das políticas de saúde e na própria organização do
SUS. O conceito de humanização se afirma na criação de espaços de
diálogo e de troca de saberes entre usuários, trabalhadores e gestores de
saúde. Diferente da concepção cristã de caridade anterior à década de
1980, que acabou dando suporte e justificando políticas paternalistas, o
conceito de humanização procura consolidar a ética da reflexão sobre os
modos de agir e pertencer ao coletivo, buscando sempre fazer “com o
outro” e não “pelo outro”, na busca de alternativas adequadas às
necessidades individuais e coletivas (BENEVIDES, PASSOS, 2005;
SOUZA, MENDES, 2009).
Enxergando a humanização sob esta ótica de diálogo e construção
coletiva, percebe-se que determinadas concepções morais, podem não ter
passado por reflexões filosóficas, construídas solidamente através de
inúmeros argumentos para se chegar numa determinada doutrina moral.
Ou seja, a moral vigente pode ter sido construída sem passar pelo crivo
da ética (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p.10).
(...) consolidamos valores diferenciados, onde a
justiça, a igualdade e a equidade veem sendo
suplantadas por um totalitarismo mercantil (onde a
competição, a segmentação e a seletividade são os
traços que o definem), ou melhor, uma nova
expressão ético-valorativa da sociedade
contemporânea, muitas vezes encoberta pela
generalização positiva de uma sociedade global
(SARMENTO, 2012, p. 111).
Mas afinal de onde vêm esses valores? Que “bem” é esse que
pretende guiá-los? Pensadores como Gracia (2011) afirmam que valorar
determinados conceitos, modos de pensar e agir sempre foram uma
necessidade biológica humana:
41

Cuando las cosas son complejas, y no hay duda de


que esto del valor lo es, nada mejor que tomarlas
desde el principio, unico modo de verlas em
perspectiva. En el caso de los valores eso nos
obliga a retornas hasta los mismos orígenes de la
especie humana. La valoración es en el ser humano
una necesidad natural, um fenômeno biológico. Sin
valorar, nuestra vida sería imposible. Y ello por
razones de estricta supervivência (GRACIA, 2011,
p. 9).
De acordo com Gracia (2011), toda vez que o homem modifica o
meio em que vive, humanizando-o, ou seja, transformando natureza em
cultura, ele obrigatoriamente passa por um momento de projeção e de
valoração, pois ele modifica algo para melhorar sua vida, para acrescentar
valor a determinadas ações ou coisas.
De hecho, la realización del proyecto no tiene otro
objeto que el de añadir valor a las cosas. La
cultura es ese depósito de valor. De ahí, concluye
Zubiri, que el ser humano no se halle “ajustado”
al medio, como el animal, sino que tenga que
hacer, a através del proyecto, su propio
ajustamiento. Es decir, tiene que “justi-ficarse”.
Por eso, concluye Zubiri, el ser humano no es una
realidad “natural” sino “moral” (GRACIA, 2011,
p. 11).
Se, ainda de acordo com Gracia (2011), toda cultura humana se
fundamentou sobre processos de valoração é de se esperar que o conteúdo
desses valores já tenha há muito, sido analisados pela Filosofia, embora
com outros nomes, como as chamadas “virtudes” da filosofia clássica.
Para os filósofos da antiguidade clássica, as virtudes (o hábito de
se exercitar/vivenciar determinados valores) eram qualidades “puras”,
verdadeiras, transcendentes. Pensadores como Sócrates apostavam na
busca pela verdade através da introspecção e do diálogo, onde cada ser
humano encontraria dentro de si o “bem” que guiaria suas ações e
moldaria suas virtudes. Para Platão e seu discípulo Aristóteles, a busca
da eudaimonia (por vezes traduzida como felicidade) é que embasaria as
virtudes ideais dentro de uma sociedade. Aristóteles acreditava que existe
moral porque os seres humanos buscam a felicidade, e que para encontrá-
la precisam das orientações morais, que trariam o entendimento de que
virtudes qualificariam um caráter adequado para essa finalidade
42

(HAMILTHON, 2001, p. 88-91; CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 51-


60).
As virtudes foram definidas por Aristóteles como “uma disposição
de caráter a qual se distingue em duas “espécies”: intelectual, dada por
meio do ensino, e moral, adquirida pelo hábito” (ARISTÓTELES, 1979).
Estas reflexões iniciadas pelos filósofos gregos compõem hoje um dos
grandes campos da Ética ou “Filosofia Moral”. Atualmente entendemos
as virtudes como valores - qualidades que possuem profundo conteúdo
(CORTINA, NAVARRO, 2005a, p.74), e que irão compor a “qualidade
moral” de uma determinada população. Assim, conforme a sociedade
opta (de forma consciente, ou não) por priorizar determinados valores, ela
faz com que a moral vigente “balance” para uma determinada direção.
Podendo a moral então “pender” para uma direção mais ou menos
humanizadora, dependendo de quais valores essa comunidade assume ou
“capta” como justificativa de suas ações.
É interessante destacar da filosofia ateniense, a sua concepção de
não existência de realização individual separada da convivência em
sociedade. Para aqueles gregos, a “polis” (cidade) ideal, só poderia ser
alcançada por meio de uma comunidade que entende esse entrelaçamento
entre individual (pré-determinado pela posição social) e coletivo e que
serve a sua cidade de acordo com todos os valores de que ela necessita
para seu pleno bem comum. Esse entendimento de doar o melhor de si
para “servir” a comunidade fez com que alguns gregos - aqueles pré-
determinados - fossem os primeiros verdadeiros “cidadãos” da história1.
Estes homens eram assim chamados por participar ativamente da política
de sua polis, entendendo que não haveria plenitude para um único cidadão
se o bem comum de toda a comunidade não fosse antes atingido
(HAMILTON, 2001, p. 24).
Foi sob esse fundamento que a Grécia investiu na educação,
entendendo esta como sendo o sentido de todo o esforço humano. Assim,
a educação era pensada como parte ativa do desenvolvimento da
sociedade, sendo a formação do homem grego, a Paidéia, parte
indissociável da vida comunitária em todos os seus aspectos, político,
econômico, social, e moral (JAEGER, 1994):
(...) uma vez que o desenvolvimento social depende
da consciência dos valores que regem a vida

1
Não aceitando a descriminação social e de gênero presente na época, mas
focando na concepção da responsabilidade daqueles que eram considerados
cidadãos.
43

humana, a história da educação está essencialmente


condicionada pela transformação dos valores
válidos para cada sociedade. À estabilidade das
normas válidas corresponde a solidez dos
fundamentos da educação (1994, p.5).
Sob esse olhar, percebe-se que a sociedade grega não enxergava de
forma desconectada os valores morais e políticos. Essa permeabilidade
dos valores morais da sociedade para dentro das instituições políticas
pode ser observada atualmente por meio das políticas de participação
social, onde muitas vezes podemos observar conflitos na reaproximação
desses valores (sociais e institucionais), principalmente pelo próprio
distanciamento histórico entre os desejos da sociedade e as decisões
públicas.
Essa ontologia de conceitos que se enlaçam e se aprimoram, deve
ser compreendida para que se perceba a necessidade do desenvolvimento
moral desses cidadãos que participam, para que os mesmos possam
colaborar nas tomadas de decisões políticas e públicas de forma ética,
com base em valores apropriados para a melhoria da qualidade de vida,
principalmente pelo provimento dos mínimos de justiça a toda população.

4.2 DA BIOÉTICA E DA CIDADANIA

A resolução das questões advindas da distância entre o conteúdo


teórico da lei e a realidade prática da gestão do SUS, é um dos problemas
concretos desse sistema de saúde altamente complexo e inclusivo. A
própria deliberação acerca da consolidação de um sistema de saúde
qualificado e empoderador da sociedade, capaz de lidar com os conflitos
éticos decorrentes dos problemas sociais e econômicos persistentes,
mostra-se como uma metodologia orientadora para o estabelecimento de
um sistema equânime e promotor de justiça social.
(...) os conceitos de ética e política, democracia e
cidadania, bem privado e bem público não são
conceitos que se opõem, mas que se
complementam. Nesse sentido, é possível afirmar
que a ética e a política se fundem em um único
propósito, ou seja, o de promover o bem comum ou
o bem público (BAPTISTA, 2008, p. 14).
Consolidar esse bem comum igualmente impulsiona a relação
entre a ética (enquanto reflexão sobre a moral) e a própria vida, sendo esta
44

interface um campo fecundo para o surgimento da Bioética na América


Latina, onde a qualidade de vida, envolvendo toda a complexidade das
relações indivíduo, sociedade e ambiente, torna-se o “bem comum” maior
do enfoque bioético.
Da mesma forma que a saúde pública vem agregando ao longo dos
anos o conhecimento de diversas áreas das ciências, a Bioética repete essa
trajetória transdisciplinar, fortalecendo-se no propósito de transformação
social, descrevendo, analisando e buscando soluções aos “impasses éticos
que se antepõem à saúde, na acepção ampla de qualidade de vida”
(PORTO, GARRAFA, 2011, p. 721).
Um pouco diferente do que se transformou nos moldes latinos, a
Bioética nascida no começo da década de 1970 nos Estados Unidos, teve
sentido de “ética da sobrevivência”, tendo o médico oncologista Van
Rensselaer Potter reconhecido como o criador desse termo na língua
inglesa. Preocupado com a relação entre a qualidade de vida e os avanços
do conhecimento humano, Potter pretendia fundar uma ciência que unisse
“valores éticos e fatos biológicos”, entendendo seus limites “a fim de
fazer recomendações no campo das políticas públicas” (POTTER, 1970,
apud SCHRAMM, 1997, p. 127-131).
Outro grande contribuinte para o desenvolvimento da Bioética foi
André Hellegers (REICH, 1978; 1994; 1995; 1996, apud SCHRAMM,
1997), que se preocupou em institucionalizar esse novo campo da ética
(uma ética menos holística do que a de Potter), considerada uma ética
aplicada ao ramo acadêmico-disciplinar (SCHRAMM, 1997).
Independente das bases que fundamentam cada um dos ramos de
surgimento da Bioética, tanto as motivações de Potter como as de
Hellegers foram influenciadas pelo contexto histórico do pós Segunda
Guerra Mundial, onde a preocupação com os Direitos Humanos aflorava
nas mesas de debates dos cientistas e políticos internacionais e agregava
forças para o desenvolvimento do conceito. A preocupação com o avanço
das ciências, principalmente as ciências biomédicas fez com que a
Comissão Nacional para Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa
Biomédica e Comportamental, estabelecida em 1974 pelo congresso
Norte-Americano, delimitasse critérios para nortear as pesquisas que
envolvessem a vida humana. O relatório publicado pela comissão
determinou os princípios éticos fundamentais para direcionar condutas
consideradas aceitáveis nos estudos científicos: o princípio da autonomia,
da beneficência e de justiça. O quarto princípio da não maleficência, foi
incorporado posteriormente, formando um “pacote" que se denominou
Bioética Principialista, (CARNEIRO et al., 2010; PORTO, GARRAFA,
2011).
45

A bioética latino-americana evoluiu num processo que durou cerca


de 30 anos e envolveu a recepção, assimilação e a própria recriação do
conceito de Bioética, originalmente provinda dos Estados Unidos. O
resultado disso, o modelo bioético latino-americano obteve uma
identidade ética regional distinta (MAINETTI, PEREZ, 2007).
O modelo latino-americano enfatiza um bios
humano e um ethos comunitário. Isso porque a
Bioética é agora mais um movimento político ou de
reforma social do que uma disciplina acadêmica
limitada ao campo dos cuidados de saúde. Na
Bioética latino-americana, os princípios de
solidariedade e de justiça desempenham o papel
central que a autonomia tem na Bioética norte-
americana (MAINETTI, PEREZ, 2007, p. 41).
Os pioneiros na América Latina entendiam que não poderiam
simplesmente refletir o modelo norte-americano (ou europeu) pelo fato
desse ser totalmente alheio à realidade de seus países, assim acabaram
integrando essa aproximação das humanidades com as ciências
adaptando-a aos seus próprios contextos socioeconômicos (LEGARDA,
2007, p. 333).
Para que se enfrente de modo mais adequado toda
essa gama de questões, ao invés de simplesmente
importar referenciais éticos procedentes de outras
realidades, é mais adequado que cada país ou
região do mundo interprete e atue em seus
problemas ou situações moralmente conflitivas de
acordo com seus próprios contextos sociais,
culturais, econômicos, biológicos (GARRAFA,
2012, p. 37).
Garrafa (2000, p. 722) aponta que o Brasil demorou mais de vinte
anos para incorporar formalmente a Bioética como um campo de estudos
e mais outros tantos para começar a rever e adaptar as propostas discutidas
mundialmente ao contexto do país: "a Bioética brasileira é tardia, tendo
surgido de forma orgânica somente nos anos 1990". De qualquer forma,
Garrafa, Kottow e Saada (2006) defendem que a discussão voltada para a
Bioética, vem para contribuir com a busca de respostas equilibradas para
as questões biomédicas e sanitárias, no campo de atenção pública à saúde.
Apesar da demora da Bioética em se consolidar como campo de
estudos no Brasil, a saúde pública brasileira se destacou no cenário global,
principalmente devido à efervescência política que a caracterizou, durante
46

o Movimento da Reforma Sanitária, e que levou à união de movimentos


sociais, intelectuais e políticos em prol da mudança do modelo ‘médico-
assistencial privatista’ para um sistema nacional de saúde universal,
público, participativo, descentralizado e de qualidade (MENDES, 1994).
Com a Reforma, tornou-se imprescindível que a ética e a Bioética fossem
incorporadas objetivamente na construção de políticas públicas de saúde,
principalmente dentro do próprio funcionamento do SUS (VERDI, 2010).
De maneira geral, pode-se dizer que esses esforços para
contextualizar e sistematizar o referencial bioético no Brasil partiam de
uma ponderação entre não se adotar de maneira irrestrita e irreflexiva as
perspectivas principialistas ao mesmo tempo em que se introduzem
conceitos da saúde coletiva, buscando assim responder aos seus conflitos
locais, muitos dos quais emergiam da nova forma de atenção proposta
pelo SUS. Assim, questionava-se a perspectiva individualista do modelo
norte-americano, que deixava de “perceber, admitir ou ponderar sobre a
ética e os juízos morais em saúde na dimensão coletiva” (PORTO,
GARRAFA, 2011, p 724).
Desta maneira desenvolve-se nos países latino-americanos, mais
especificamente no Brasil, a Bioética Social, surgida do campo fecundo
de necessidades, tal como o é, os países em desenvolvimento. Esse
enfoque social faz parte da ampliação do campo teórico da Bioética, onde
a realidade social e cultural local das regiões estudadas, levando em conta
a justiça social, a cidadania, a equidade e o reconhecimento da finitude
dos recursos naturais, passou a ter valor inequívoco para entender as
diferentes formas de interpretação moral presentes nos conflitos éticos
estudados (GARRAFA, 2005a apud HELLMANN, VERDI, 2012).
A Bioética Social é um agrupamento de referenciais de análise
composto por autores que reconhecem a importância do cunho social em
seus discursos e a necessidade de transformar a prática, no qual a saúde
coletiva se embasa no conceito de saúde integral, entendida como a plena
capacidade individual e coletiva de realizar o potencial humano,
permitindo o acesso de todos aos bens gerados em sociedade:
A Bioética Social apoia-se em um discurso crítico
e comprometido, caracterizando-se não apenas
enquanto instrumento de análise e exploração da
realidade, mas também meio que tem por dever
oferecer formas de intervenção, e apontar
caminhos para que todos tenham acesso aos
benefícios do desenvolvimento (HELLMANN,
VERDI, 2012, p. 53).
47

Dentre os diferentes referenciais teóricos que inspiram a Bioética


Social encontram-se a Bioética Cotidiana, a Bioética da Intervenção e a
Bioética da Proteção (HELLMANN, VERDI, 2012). Essa ampliação da
Bioética permitiu incorporar nos seus estudos situações cada vez menos
individuais e mais coletivas, introduzindo questões da saúde e das
políticas públicas, e integrando os próprios sistemas de saúde a essas
discussões.
Segundo Garrafa (2012), os conflitos éticos que se apresentam aos
administradores de saúde são cada vez mais frequentes, e vão desde a
prioridade na distribuição de recursos (muitas vezes insuficientes), até
problemas gerados pela aplicação universal de tecnologia de ponta.
Em uma pesquisa realizada em um município de Santa Catarina,
foram entrevistados gestores e trabalhadores da saúde quanto à prática do
acolhimento dentro da atenção à saúde, demonstrando que existem
contradições e distanciamentos entre a teoria dessa prática e sua real
aplicação nas situações concretas diárias. Segundo as autoras, a reflexão
ética das situações problemas do cotidiano nos serviços de saúde torna-se
essencial para superar os limites, reavaliar as atitudes e efetivamente
construir uma nova prática na atenção à saúde (BREHMER, VERDI,
2010). Este estudo aponta um despreparo por parte dos profissionais
frente aos conflitos éticos vivenciados nas unidades básicas de saúde, o
que pode sugerir a repetição deste mesmo despreparo também na tomada
de decisão nas esferas de gestão do sistema.
Wendhausen (2007) defende que há uma deformação da realidade
quando se acredita que o saber técnico é o único fator responsável e capaz
de melhorar os níveis de saúde e qualidade de vida. A ocupação dos
espaços de controle social pela sociedade civil organizada é
imprescindível para a construção de políticas de saúde humanitárias e
acessíveis, cada vez mais engajadas nas necessidades sociais.
Para o bioeticista Fermin Schramm a utilidade pública da Bioética
para a resolução de dilemas morais, relativos à saúde e ao bem-estar
humano já está mais do que reconhecida (SCHRAMM, 1997). Essa
pertinência da necessidade de reflexão ética no sistema de saúde pública
vem sendo cada vez mais evidenciado nos estudos que tratam da
avaliação das reuniões dos conselhos de saúde.
De acordo com AGUDELO (2006), p.144, apud SARMENTO,
2012):
Não se trata apenas de compreender e ampliar os
fundamentos acerca da Bioética (campo do saber),
mas também situá-la como campo específico de
48

atuação na saúde pública, quando nos coloca em


frente aos atores e suas interações políticas, jogos
de poder, prioridades e transparência (2012, p.
117).
Para que a democracia participativa seja efetivada na gestão do
SUS, é necessária a igualdade de poder, com soberania e participação de
todos levando a uma socialização real da política. Essa socialização
política exige reflexão e ponderação sobre os valores que fundamentam
as tomadas de decisão pelos conselheiros incumbidos dessa
responsabilidade, desse “responder com habilidade”. Gracia (2001a),
pensando na deliberação para tomada de decisões clínicas, reforça:
El proceso de deliberación exige la escucha atenta
(...) el análisis de los valores implicados, la
argumentación racional sobre os cursos de acción
posibles y los cursos óptimos, la aclaración del
marco legal, el consejo no directivo y la ayuda aun
en el caso de que la opción elegida por quien tiene
el derecho y el deber de tomarla no coincida con
la que el profesional considera correcta, o la
derivación a otro profesional en caso contrário
(2001a, p.20).
Segundo Oliveira, Ayres e Zoboli, (2011) as decisões éticas devem
ser concretas, partindo de diálogos cuidadosos que levem em conta as
circunstâncias do fato e suas consequências. Ainda de acordo com os
autores “a fundamentação chega ao nível dos fatos, mas a argumentação
é feita no âmbito dos valores”.
Para tanto, a habilidade de tomar decisões frente aos problemas
éticos que emergem das situações cotidianas é essencial para que a
atenção à saúde mereça o qualificativo de excelente, não bastando a
exatidão técnica, mas também a correta tomada de decisão ética, tanto por
parte dos profissionais dentro das unidades de saúde, quanto dos gestores
nas reuniões dos CMS (ZOBOLI, FORTES, 2004).
Garrafa (1995) reforça que a introdução da sociedade na gestão da
saúde, remete à reflexão de que a implementação do SUS, em verdade,
configura um processo que requer uma reviravolta ética, pois implica em
um contexto social de mudança histórica que exige dos profissionais de
saúde envolvidos, dos gestores e dos usuários transformações atitudinais
e culturais.
Com essa perspectiva é substancial a educação para a ética nas
relações entre as pessoas, sem a qual não é possível realizar a reflexão
49

crítica necessária para confronto dos princípios institucionais com os


próprios valores, modo de ser, pensar e agir. Esses valores refletidos na
dimensão institucional, são fundamentais para pautar a atitude
profissional em diretrizes éticas que expressem o que, coletivamente, se
considera bom e justo (RIOS, 2009).
Apesar de se reconhecer que a efetivação do SUS implica um
processo de mudança atitudinal dos diversos atores envolvidos, ainda são
poucos os trabalhos no campo da saúde pública acerca dos papéis e das
responsabilidades éticas de cada um dos atores dentro dos Conselhos
Municipais de Saúde (GARRAFA, 1995). De igual forma, são escassos
os estudos que evidenciam a intensidade dos conflitos éticos nos
conselhos gestores e a forma como os conselheiros lidam com os mesmos.

4.3 REFERENCIAL DE ANÁLISE

Munido de criatividade e devidamente amparado por conceitos já


publicados por pesquisas anteriores (ou parte deles), o pesquisador
constrói seu marco conceitual, o seu “modelo teórico logicamente
organizado”, o chamado marco teórico. Este modelo servirá de guia para
orientar a rede de teorias e de dados coletados pelo pesquisador, focando
tanto a investigação como a análise dos resultados, e ajudando a mostrar
os “caminhos” para as possíveis soluções ao problema central da pesquisa
(NEVES, GONÇALVES, 1984 apud FINKLER, 2009).
O objeto deste estudo, os problemas éticos vivenciados pelos
conselheiros gestores de um Conselho Municipal de Saúde, foi analisado
a partir da construção desse marco conceitual, que contemplou quatro
conceitos/referenciais: a Cogestão (CAMPOS, 2000), a Deliberação
Moral (GRACIA, 2000; 2014), a Bioética Social (HELLMANN, VERDI,
2012; GARRAFA, 2005; VIDAL, 2008) e o modelo de Vazios
Paradigmáticos construído por Silva (2006).

Sobre humanização e cogestão

De acordo com Campos (2000), um dos grandes desafios da


concretização das políticas públicas é a não atualização do modelo
tradicional de gestão, historicamente herdado pelo SUS, principalmente
quando um dos seus horizontes é a transformação democrática dessa
instituição. O conceito de Cogestão prevê a construção do compromisso
e da solidariedade ao bem comum, contando portanto com a capacidade
50

reflexiva e autonomia dos sujeitos na tarefa da gestão coletiva


(GUIZARDI, CAVALCANTI, 2010). Para que se trabalhe com bens que
são comuns a toda sociedade, como o é a própria saúde, torna-se
necessário que a satisfação de interesses e necessidades sociais seja a
grande finalidade dessas organizações. Mais do que imperar na
legislação, o bem comum deve estar presente nos valores daqueles que
decidem em conjunto dando a possibilidade de que essas organizações
produzam liberdade e autonomia ao invés de controle e dominação
(CAMPOS, 2000).
O desafio da transformação democrática institucional do SUS
perpassa a própria transformação das práticas de administração
tradicionais baseadas no capital monopolista e que tem sua racionalidade
gerencial hegemônica marcada pelo exercício do controle e da disciplina.
Esse cotidiano gerencial que separa a concepção da execução das
atividades limita a concretização das políticas públicas. Muito dessa
resistência na concretização se dá na própria dificuldade de trabalhadores
e gestores em assumirem um compromisso com o interesse público,
trabalhando com solidariedade à população e entre si, além do próprio
entrave de se assumirem enquanto seres autônomos nas suas capacidades
reflexivas (GUIZARDI, CAVALCANTI, 2010).
Mesmo com o referencial da Cogestão sendo pensado para além
das esferas institucionais do Controle Social, observa-se nestas os
mesmos impasses visualizados por Campos ao propor uma gestão
horizontal com relações humanizadas. Portanto buscar essas relações
dentro da esfera dos Conselhos de Saúde pode ser mais uma forma de
enfrentamento dos problemas éticos que persistem nesses espaços de
participação social.
Evidencia-se assim a própria dimensão coletiva da tarefa da gestão,
onde existe valorização do interesse e dos objetivos dos envolvidos no
processo sem desconsiderar o diálogo com as necessidades sociais,
auxiliando na aproximação entre ambos. Essa mediação envolve, na
dimensão prática de sua concretização inúmeros problemas éticos, onde
os valores morais daqueles que decidem, refletirão nas decisões tomadas.
Nesta direção, se o método da cogestão puder ser incorporado
institucionalmente no SUS, sendo assim, também internalizado pelos
conselhos de saúde a própria necessidade da reflexão ética, consolida-se
como primordial ao avanço da Cogestão, principalmente por esta dar voz
ao pluralismo moral.
O referencial da humanização, vinculado à Cogestão, propõe uma
nova síntese onde o foco principal se dá na interação entre sujeitos que
constituem o sistema de saúde e que ao serem mobilizados são capazes
51

de transformar realidades e a si próprios (BENEVIDES, PASSOS, 2005).


Portanto, trabalhar com os sujeitos envolvidos na tomada de decisão nos
Conselhos de Saúde, enquanto representantes de desejos e valores morais
e institucionais, e participantes de um processo que necessita
horizontalizar o poder e humanizar as relações, foi um dos desafios deste
estudo, principalmente ao se tentar entender o quanto há de Cogestão nas
reuniões do Conselho.
Apesar de o autor ter concebido a Cogestão (método da Roda ou
Paidéia) como forma de democratizar as instituições do SUS que lidam
diretamente com o contexto do trabalho em saúde e o gerenciamento
dessas unidades, sua análise foi adaptada para ser aplicada nos espaços
públicos de poder, como os colegiados do CMS, pois, como o próprio
autor sugere, seu método pode ser aplicado em qualquer espaço coletivo
que se trabalhe com produções de necessidades sociais (CAMPOS, 2000).

Deliberação moral

Se o referencial da Cogestão auxiliou no entendimento das


relações institucionais entre os sujeitos que participam das decisões, o
segundo referencial, o da Deliberação Moral, auxiliou na compreensão
das reuniões com foco nas suas metodologias, principalmente no nível
dos valores individuais. Para Gracia (2014) não é evidente que os
problemas morais tenham sempre soluções, logo preocupar-se com
metodologias de deliberação que nos elucidam o caminho, o processo de
construção reflexiva, mais que encontrar soluções de problemas morais,
torna-se a grande questão do desenvolvimento da Deliberação Moral.
Dilemáticas éticas estão preocupadas em tomar decisões morais, a
partir da escolha entre dois valores contraditórios. Já os problemas éticos
voltam-se basicamente para o processo deliberativo, não interessados em
encontrar soluções globais, mas sim o que no momento seria considerada
a ação mais razoável e prudente. Neste sentido, o papel da Bioética não é
o de resolutor de problemas ou de oráculos que mostram quais os cursos
de ação são os moralmente corretos, mas sim o de questionador, de
instigador de diálogos cooperativos nos quais todos os participantes
aprendem (GRACIA, 2014).
De acordo com Gracia (2014), ser ético exige reflexões sábias e
prudentes, porém não infalíveis, pois ninguém possui a verdade absoluta.
Daí a necessidade da deliberação coletiva. A incerteza intelectual não é
incompatível com a responsabilidade moral, pelo contrário, as incertezas
são características típicas da responsabilidade moral. Daí o profundo
52

enraizamento da necessidade do diálogo na deliberação, pois os outros


“podem ensinar-me mesmo que não pensem como eu, ou precisamente
porque não pensam como eu”, neste sentido a deliberação se mostra como
um processo “radicalmente democrático”, não sendo, portanto,
prerrogativa dos filósofos, mas também dos políticos (GRACIA, 2001b,
p. 31).
Nos Conselhos de Saúde, onde a deliberação é o procedimento
mais apropriado para o desenvolvimento das políticas públicas
participativas (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 35), deve-se investir
em formas de aprimoramento do processo decisório, do próprio processo
de diálogo. Situações que envolvem valores e normas sociais conflitantes
estão presentes no cotidiano desses espaços e são evidenciadas pela
dificuldade de se produzirem respostas baseando-se exclusivamente em
protocolos ou outro recurso apriorístico que oriente a ação (OLIVEIRA,
AYRES, ZOBOLI, 2011).
O trabalho em saúde exige dos sujeitos mais do que
competências técnicas. Frequentemente, é
necessário lançar mão de uma sabedoria prática
capaz de orientar as ações de modo prudente,
combinando excelência técnica com correção ética
(OLIVEIRA, AYRES, ZOBOLI, 2011).
Quando os problemas enfrentados pelos conselheiros não estão no
nível das normas, mas em um nível de ordem moral (GRACIA, 2001a),
torna-se necessário o diálogo entre os conselheiros, norteado pela
reflexão. Para Gracia (2001a) conflitos e problemas morais devem ser
“resolvidos”, ou melhor, manejados, através do método da deliberação
moral.
A deliberação moral de Gracia (2014) trabalha com pelo menos
três níveis da realidade: a deliberação sobre os fatos, a deliberação sobre
os valores e a deliberação sobre os deveres. O primeiro nível trata da
exposição e análise intensa de todos os fatos que envolvem o surgimento
de determinado problema moral a ser dialogado. O segundo nível trata de
encontrar os valores que estão em conflito no interior desse problema.
Para tanto, identificam-se os problemas éticos, e neste ponto o autor deixa
claro que os problemas éticos serão todos os problemas que os envolvidos
acharem que são problemas éticos. O próximo passo é identificar os
valores em cada um dos problemas éticos encontrados, um por um. O
último nível trata de encontrar os cursos de ações possíveis, focados no
que se deveria fazer (embasados nos valores que queremos realizar e que,
portanto, fundamentam esses deveres) e o que é possível de se realizar.
53

Pois nem sempre o que se deve fazer é o que se consegue fazer. Disto se
trata grande parte dos problemas morais. Essa visualização simplificada
dos passos ajuda-nos a entender a importância do rigor metodológico para
uma deliberação moral que nos aproxima da decisão mais prudente em
cada caso estudado, pois a ausência ou descaso com cada um dos passos
acaba impossibilitando o nível seguinte, impedindo assim de se chegar ao
melhor resultado (GRACIA, 2014).
A deliberação moral se baliza no dever ético de realizar valores,
“nesse sentido, o conflito se coloca quando há uma situação em que
realizar um determinado valor pode implicar abrir mão de outro valor, o
que não seria desejável” (GRACIA, 2009 apud OLIVEIRA, AYRES,
ZOBOLI, 2011, p.365). A deliberação moral pretende facilitar a
resolução de conflitos éticos, posto que não há respostas certas ou erradas.
Deste modo, deliberar auxilia a ponderar e equilibrar, tentando chegar a
decisões razoáveis e prudentes, buscando encontrar a “justa medida” para
promover o máximo de valores envolvidos no conflito (ZOBOLI, 2003).
Por vezes os problemas da saúde implicam em conflitos morais
devendo ser refletidos nas reuniões dos Conselhos de Saúde, seja por
meio da representação dos usuários legitimando sua cidadania, seja por
meio da dialógica entre os diferentes valores exprimidos pelas três esferas
representativas do Conselho, ou numa menor escala, pelo próprio
indivíduo na sua singularidade. Como não existem respostas prontas a
priori para a resolução desses problemas, a obrigação moral dos
conselheiros é a de tomar decisões prudentes onde, de acordo com Gracia
(2014), a responsabilidade ética é a de aprender ferramentas para a
tomada de decisão. A deliberação moral é um método bioético para este
processo, pois possibilita estabelecer passos que visem à análise crítica
das situações, permitindo compreender e considerar os fatos, os valores e
os deveres envolvidos (GRACIA, 2014), auxiliando na resolução dos
problemas bioéticos, e a decisão entre seus vários percursos de ação
possíveis.
É a partir deste enfoque da Deliberação Moral que se realizou a
busca pelos possíveis problemas éticos dentro do CMS, que é, na ordem
legal, um conselho deliberativo, ou seja, suas decisões tem poder legal o
que não significa que esse processo decisório seja moralmente
deliberativo. A visualização dos problemas encontrados se deu no âmbito
das deliberações serem mais ou menos pautadas em reflexões éticas.

Bioética social
54

O terceiro referencial que embasa este trabalho é o da Bioética


Social. Esta foi a lente que ampliou as percepções e interpretações do
pesquisador sobre o seu foco de pesquisa, os problemas éticos. A Bioética
ajudou a conduzir as reflexões éticas deste trabalho alicerçadas em um
olhar socialmente comprometido (GARRAFA, 2005), de forma que as
interpretações bioéticas não se limitem a análises reducionistas, mas que
tragam a defesa dos direitos humanos e sociais como compromisso na
produção do conhecimento.
Essa Bioética socialmente comprometida traz a compreensão da
Bioética não apenas como uma disciplina acadêmica, mas sim como um
projeto de reforma da sociedade, sendo compreendida como uma forma
de reflexão crítica sobre os conflitos éticos que emergem da vida e da
saúde humana (VIDAL, 2008, 2010 apud HELMANN, VERDI, 2012).
O termo “Bioética Social” refere-se à produção
teórica na Bioética, produzida por autores que
pensam esse movimento através da inclusão de
discursos com teor social, especialmente voltados
à saúde coletiva (HELMANN, VERDI, 2012, p.
52).
As reflexões de pensadores como Volnei Garrafa e Suzana Vidal
são insistentemente alimentadas pela necessidade da Bioética na América
Latina se contextualizar com as especificidades locais, muito diferentes
da sociedade anglo-americana. Assim, uma Bioética voltada para o nível
macro (em termos de sociedade) deve ser pensada como alternativa da
Bioética focada no micro - frequentemente limitada à resolução de casos
clínicos (PESSINI, BARCHIFONTAINE, 2007),
a bioética sumarizada num bios de alta tecnologia
e num ethos individualista (privacidade,
autonomia, consentimento informado) precisa ser
complementada na América Latina por um bios
humanista e um ethos comunitário (solidariedade,
equidade, o outro) (PESSINI,
BARCHIFONTAINE, 2007, p.371).
As constantes revisões da Bioética na América culminaram na
incorporação de novas pautas para a atuação da Bioética, incluindo temas
como prioridades de alocação de recursos, justiça social e cidadania,
finitude dos recursos naturais, discriminação, entre outros (GARRAFA,
KOTOW, SAADA, 2006).
O olhar dessa Bioética justifica-se pelas questões de desigualdades
sociais que se vivem na América Latina e também em nível global. Assim,
55

este referencial se apoia na necessidade de trazer os bioeticistas,


profissionais e estudantes da saúde a pensarem não só de forma crítica,
mas comprometidos em utilizar a Bioética como um instrumento de
análise e exploração da realidade, que tem como dever oferecer formas
de intervenção, apontando caminhos para que todos tenham acesso aos
benefícios do desenvolvimento (HELLMANN, VERDI, 2012).

Vazios paradigmáticos

O comprometimento com as formas de intervenção e


direcionamento traz a necessidade do último referencial teórico deste
marco conceitual: o modelo de Vazios Paradigmáticos de Silva (2006). A
adesão deste modelo tem o intuito de auxiliar na categorização dos
problemas éticos dentro de três dimensões: a do Vazio Político, a do
Vazio Pedagógico e a do Vazio Cultural. A partir dessa identificação
pretende-se, futuramente, propor soluções práticas eficientes para a
transposição dos diferentes problemas encontrados.
De acordo com Silva (2006) estes “vazios” são identificados como
desafios sociais, que à medida que são preenchidos diminuem a distância
entre a teoria do que “deveria ser” e a prática do que “realmente é”. Neste
trabalho se utilizou a teoria proposta por Silva (2006) e desenvolvida por
Fernandes Neto (2010) como guia para identificação dos vazios existentes
na reunião do CMS.
O modelo foi proposto originalmente por Daniel Silva (2006) a
partir da sua reflexão sobre o distanciamento entre a Gestão Integrada de
Bacias Hidrográficas - GIBH, e a realidade de abandono e degradação
local vivida pelas comunidades de bacias no Brasil e na América Latina.
A partir da sua análise local, percebendo a distância entre o ideal e o real,
o autor propõe a governança participativa como um novo paradigma
contextualizador dos desafios sociais, e traz o tripé pedagogia - cultura -
política como os “vazios grávidos de potencialidades” para a transição de
uma gestão ineficaz, para o modelo de gestão participativa efetiva e
empoderada.
Essa divisão em três vazios ou três desafios, foi uma forma de
tentar atingir a realidade dos problemas na sua prática diária, dividindo
pra poder visualizar, mas sem perder a visão do todo complexo. O vazio
político a partir das aproximações legais à realidade local, e sua discussão
em profundidade para a atualização de ambas. O vazio pedagógico como
o componente educacional, este sempre presente no homem, que por ser
“inacabado” está sempre pronto para se aperfeiçoar e conscientizar. O
56

vazio cultural onde entende-se a cultura como tudo que é criado e recriado
pelo homem, e que portanto acontece nas relações entre eles, obviamente
com componentes de todos os níveis interferindo e se entrelaçando, mas
enquanto vazio grávido, olharemos as possibilidades de mudanças destas
produções e signos humanos que teriam potencial de auxiliar
positivamente as relações e ações deste CMS, tanto dentro como ‘fora’
deste. A divisão tem o potencial de auxiliar também em futuras
intervenções que poderiam preencher esses vazios.
Fernandes Neto (2010) propôs uma metodologia de governança
participativa como uma resposta mediata para suprir essas lacunas
pedagógicas, políticas e culturais. Como os Conselhos de Saúde já se
apropriaram de um modelo democrático participativo, fez-se uma
avaliação a partir dos “Vazios” de Silva (2006) como forma de
identificação e categorização dos problemas que persistem neste modo de
gestão participativa. Para tanto, adaptou-se o modelo, onde as super-
categorias analíticas dos três vazios originais foram renomeados
empiricamente como: Vazio da Responsabilidade Legal, Vazio da
Educação Permanente e Vazio da Consciência de Cidadania.
O Vazio da Responsabilidade Legal: “abraçou” todos os
problemas éticos vivenciados pelos conselheiros de saúde que
envolveram desafios de caráter normativo-institucional dado pelo
conjunto de leis e normas regulatórias do CMS em questão, e que
acompanham ou não os valores da sociedade a qual se dirigem. Além dos
problemas de caráter institucional, também se observaram aqui os
problemas éticos ‘instituídos’ nas relações existentes entre os
conselheiros, e que pela força da centralização do poder capturam os
processos de subjetivação singulares e bloqueiam possíveis
transformações. Os problemas categorizados neste Vazio foram aqueles
marcados pela “atual prática de poder das culturas políticas, impregnada
pelo espírito competitivo, pela exclusão de conhecimentos e pela
imobilização dos contraditórios”, diversos (SILVA, 2006, p. 7). Depois
de categorizados no Vazio de Responsabilidade Legal, qualquer
estratégia que venha a ser sugerida, a posteriori, para dar aporte a este
vazio se encontrará na dimensão política.
O Vazio da Educação Permanente: nesta supercategoria
concentraram-se os problemas éticos vivenciados pelos gestores que
dizem respeito às dificuldades de comunicação e entendimento. Estas
dificuldades provêm principalmente do mundo do subjetivo, dado pelas
diversas culturas, saberes e interesses dos participantes que precisam
aprender a dialogar no mesmo nível linguístico. As soluções que venham
57

a ser propostas para os conflitos aqui analisados estarão dentro da


dimensão das estratégias pedagógicas.
O Vazio da Consciência de Cidadania: abarcou os problemas
éticos vivenciados pelos conselheiros frente as dificuldades de coesão
social, a partir da falta de sentimento de pertença à comunidade, levando
os participantes do conselho de saúde a terem dificuldades na adesão a
projetos de interesse comum. Esta supercategoria pertence à dimensão
chamada de cultural, que traz suas propostas de soluções entrelaçadas
com a necessidade de concretude ao conceito de cidadania que constitui
a razão de ser da civilidade (CORTINA, NAVARRO, 2005a, p. 21).
A construção do objeto de estudo dessa pesquisa se deu na
interface dessas supercategorias, onde cada vazio, na sua abrangência,
contribuiu para determinar os problemas éticos vivenciados pelos
conselheiros municipais de saúde. Um melhor entendimento desse objeto
pode ser obtido pela observação da Figura 1.

Figura 1 – Representação gráfica do marco conceitual.


Fonte: autoral, 2015.

Os referenciais teórico-metodológicos da Deliberação Moral e da


Cogestão ajudaram a entender as distancias e aproximações que existiam
entre a realidade das relações que se dão no CMS e a teoria do que deveria
acontecer nesses locais de decisão. Por auxiliarem a evidenciar os
problemas éticos a partir desses distanciamentos teoria-prática os
58

referenciais de Gracia (2014) e Campos (2000) foram trabalhados no


espaço dos três vazios paradigmáticos, ou seja, como referenciais na
análise da realidade local.
Já a Bioética Social, por ser um referencial transversal a todas as
ações que sustentam o CMS, dentro e fora desse espaço, como um local
de Controle Social legítimo, foi pensada como sendo pertinente à toda a
estrutura que suporta o CMS. Por ser necessária à todas as proposições de
melhoria que possam ser tomadas futuramente a partir da evidenciação
desses problemas, o referencial da Bioética foi visualizado como sendo
um guia de nível macro, no presente da atual análise e no futuro de
qualquer ação que se possa pensar referente ao Controle Social.
59

5 ASPECTOS METODOLÓGICOS

5.1 DESENHO DO ESTUDO

A questão norteadora deste estudo almejou conhecer e analisar


problemas éticos vivenciados por usuários, trabalhadores e gestores que
atuam no Conselho Municipal de um município do sul do Brasil. A partir
desse conhecimento buscou-se compreender em que medida esses
problemas de caráter ético dificultam o exercício do Controle Social pelos
conselheiros. A teoria já existente de metodologias que trabalham o
enfrentamento desse tipo de problema moral auxiliou na percepção da
existência dos problemas éticos no CMS.
Com a compreensão desse recorte empírico procurou-se identificar
quais os vazios de suporte pedagógico, cultural e político que permitem a
presença desses problemas de caráter ético, traçando, sob essa
perspectiva, qual seria o papel da Bioética no enfrentamento dessas
dificuldades.
Nessa perspectiva, tratou-se de um estudo de abordagem
qualitativa, pois considera o interesse em desnudar o significado dos
fenômenos de conteúdo ético, provindo das relações sociais que ocorrem
entre os conselheiros de saúde, o que requer uma abordagem dialética que
compreende para transformar (MINAYO, 2004). Segundo Minayo (2004)
o interesse neste tipo de pesquisa é o que se volta para a busca dentro do
universo de significado das coisas, das motivações, das ações, crenças e
valores, pois estes têm papel organizador nos seres humanos e nas
estruturas sociais, além de buscar compreender o espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que transitam na realidade
social.
O delineamento metodológico adotado foi o Estudo de Caso.
Segundo Yin (2010) nos estudos de caso deseja-se compreender
fenômenos complexos, abrangendo suas características holísticas
inerentes à vida real. Como método de pesquisa contribui para a
construção do conhecimento de fenômenos individuais, grupais,
organizacionais, sociais, e políticos, cujos limites não são claramente
definidos. Um estudo pode conter mais de um único caso. Estudos de
Caso Único ou Múltiplos são variantes de uma mesma estrutura
metodológica, sendo que nesta pesquisa optou-se pelo estudo do caso
único de um conselho municipal de saúde do sul do país.
60

O caso escolhido para este estudo refere-se a um conselho fundado


na década de 80, sendo composto por 26 representações, totalizando 52
conselheiros dentre titulares e suplentes. Suas representações se dividem
entre sindicatos, associações, centros comunitários, secretarias
municipais e estaduais, conselhos profissionais e pastorais. Cada
representação é eleita em assembleia aberta ao público e tem mandato por
dois anos, podendo ser reeleita. Existem conselheiros que participam
deste CMS desde a sua fundação.
As reuniões da plenária acontecem uma vez por mês, assim como
as reuniões da câmara técnica e da mesa diretora. A plenária do CMS é o
fórum de deliberação plena e conclusiva, ocorrendo de forma ordinária
ou extraordinária convocadas pelo presidente ou requeridas por 2/3 das
entidades-membro, conforme estabelecido pelo Regimento Interno do
CMS. A Mesa Diretora é eleita em plenária, formada por três conselheiros
titulares com mandato de dois anos, sendo permitida reeleições. Cabe a
Mesa Diretora e ao presidente a responsabilidade por toda a condução dos
processos administrativos e políticos a serem deliberados pela Plenária.
Já a Câmara Técnica funciona como um órgão de assessoria da
Plenária deste CMS em matérias cuja especificidade, importância ou
urgência assim o justifiquem. É formada paritariamente por oito
conselheiros titulares, embora funcione de forma ‘ampliada’ sendo aberta
a todos os conselheiros que queiram participar. Também são formadas
Comissões para assuntos específicos que sejam deliberados como
necessários ao CMS. Estas comissões também prestam assessoria à
Plenária.

5.2 PARTICIPANTES DO ESTUDO

A população escolhida para este estudo foi a dos membros do


órgão colegiado, permanente e deliberativo de um CMS de uma cidade
de médio porte no sul do Brasil, composto por representantes de gestores,
prestadoras de serviço, trabalhadores da saúde e usuários do SUS.
Portanto, a amostragem deste estudo foi composta por indivíduos que
vivenciam o problema em questão e/ou tem conhecimento sobre ele.
A escolha dessa amostra realizou-se de forma aleatória a partir da
lista de conselheiros cadastrados no site do Conselho Municipal de Saúde
da Prefeitura Municipal de Saúde, priorizando-se a seleção
numericamente equitativa de participantes mulheres e homens. O critério
de inclusão foi de todos os sujeitos participantes do colegiado do CMS,
61

sendo critério de exclusão aqueles que não estiveram acessíveis,


disponíveis ou que não tiveram interesse em participar da pesquisa. Sendo
assim, todos os conselheiros receberam um convite via e-mail, sendo
selecionados aqueles que manifestaram interesse em participar. Dos 52
conselheiros convidados apenas 8 manifestaram interesse via e-mail,
sendo que mais 8 conselheiros foram convidados pessoalmente durante a
reunião da plenária. Destes últimos, 2 se recusaram a participar da
pesquisa e outros 2 tiveram suas entrevistas descartadas pela dificuldade
que estes conselheiros tiveram em responder as questões, principalmente
pela pressa destes.
Por ser esta uma pesquisa de caráter qualitativo, o critério de
representatividade da amostra não foi o numérico, e sim a variabilidade
que permitiu abranger a totalidade do problema investigado em suas
múltiplas dimensões e profundidades, até a completa saturação dos dados.
Para tanto, obtiveram-se 12 entrevistas, seguindo apenas o critério de
proporção numérica da amostra equivalente à distribuição entre os três
eixos de representações, usuários (50% das representações),
trabalhadores (25%) e gestores e prestadores de serviço (25%), ficando a
distribuição dos três grupos da seguinte maneira: 6 conselheiros
representantes de usuários, 3 de profissionais da saúde e 3 gestores e
prestadores de serviço.

5.3 CENÁRIO DO ESTUDO

O cenário da pesquisa, a realidade contextual da cidade onde atuam


os conselheiros municipais de saúde, não teve sua identificação revelada
como forma de manter o sigilo prometido ao CMS e a prefeitura
municipal, sendo caracterizado como um município de médio porte do sul
do Brasil. Este é o ambiente natural dos sujeitos, concordando assim com
Turato (2005) que afirma que o campo onde o pesquisador irá adentrar
para a observação e coleta de dados deve ser o ambiente em que
naturalmente se encontram os sujeitos. Seguindo esse pensamento a
entrada no campo de estudo se deu inicialmente pela observação não
participante, em que a pesquisadora observou a reunião da Plenária do
CMS como qualquer outro cidadão, embora fazendo suas anotações no
Diário de Campo.
A etapa, das entrevistas, ocorreu em dia e local sugerido pelo
próprio conselheiro, caso o mesmo não tivesse um ambiente particular
para indicar a pesquisadora designou um local reservado e silencioso.
62

A entrada da pesquisadora no campo de estudo se deu por meio de


apresentação formal da pesquisa em mesa da plenária do CMS, onde os
conselheiros ficaram cientes da presença da pesquisadora na observação
das reuniões e de seu possível convite às entrevistas individuais.

5.4 COLETA DE DADOS

Os dados desta pesquisa foram coletados através do método de


triangulação de dados por meio de: fontes documentais, através da análise
de Atas do CMS; da observação não participante da pesquisadora nas
reuniões deliberativas mensais que são abertas à comunidade; e também
por meio de entrevistas com os conselheiros de saúde.
Deste modo, a coleta se deu em três momentos, que embora aqui
separados didaticamente, existiu na realidade uma sobreposição entre eles
em alguma medida, o que foi positivo para a própria triangulação de
dados. A sequência inicial para a coleta dos dados foi a seguinte:
Momento I: Análise documental das Atas das reuniões do CMS, e
dos documentos relacionados a legislação dos Conselhos de Saúde, bem
como o regimento interno do CMS em questão. As atas são de domínio
público e são disponibilizadas pela secretaria de saúde, no site da
prefeitura, da mesma forma que a legislação. Foram analisadas um ano de
atas do Conselho (11 atas), a contar da data de início da Observação não-
participantes para trás, portanto nem todas as Atas se referiam à atual
gestão, sendo possível, em alguma medida, um comparativo entre as duas
(embora varios conselheiros tenham permanecido). A análise documental
ocorreu do início ao fim de toda a coleta dos dados, principalmente a
análise dos documentos regimentais, afim de sanar dúvidas que vieram a
surgir. A legislação analisada foi: a Constituição Federal de 1988, artigo
196 ao 200; Lei Federal n° 8.080, de 19 de setembro de 1990; Lei Federal
n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990; Decreto n° 7508, de 28 de junho
de 2011; Lei Complementar 101, de 04 de maio de 2000; Lei
Complementar 141, de 13 de janeiro de 2012; Resolução CNS 333 de 04
de novembro de 2003 e o Regimento Interno do CMS analisado.
Com a análise documental, mais especificamente a partir da análise
das Atas das reuniões do CMS, foi construído um Roteiro de Entrevista.
Este Roteiro de Entrevista contou com a avaliação de dois especialistas
em metodologias qualitativas. A entrevista piloto não foi descartada pela
pesquisadora, mas serviu para aperfeiçoamento do Roteiro, momento em
que se acrescentou uma narração hipotética de uma reunião de Conselho
63

(Apêndice 1). Este breve texto conteve problemáticas éticas inspiradas


das próprias Atas do CMS e que serviram para que a pesquisadora
percebesse o nível de compreensão dos conselheiros quanto a esse tipo de
questão. Caso o conselheiro não demonstrasse entendimento do que é um
problema ético o mesmo era explanado pela pesquisadora no decorrer da
entrevista.
Momento II: Nesta segunda etapa a pesquisadora observou os
sujeitos da pesquisa e registrou seus apontamentos no seu Diário de
Campo. Este diário conteve todas as informações que não o registro das
entrevistas formais, ou seja, informações sobre conversas informais,
comportamentos, cerimônias, gestos e expressões que se relacionaram ao
tema da pesquisa (MINAYO, 2004). Foram observadas 5 reuniões da
Plenária do CMS e 1 reunião da Câmara Técnica deste CMS, todas
acompanhadas em sua sequência mensal e com duração de 4 horas cada.
A reunião da Câmara Técnica foi incluída na observação devido as
constantes referências a essa reunião, durante as entrevistas com os
conselheiros, também pelo convite dos próprios conselheiros, que
sinalizaram ser positivo a observação também desse ambiente de Controle
Social.
Momento III: Esta terceira etapa consistiu propriamente nas
entrevistas, e contou com o Roteiro de Entrevista, utilizado visando
apreender o ponto de vista dos conselheiros de saúde, contando assim com
poucas questões, servindo de instrumento para orientar uma “conversa
com finalidade”, ampliando e aprofundando a comunicação (MINAYO,
2004).
Este momento da entrevista contou com os órgãos dos sentidos do
pesquisador que buscou interpretar as relações de significados dos
fenômenos referidos pelos sujeitos da pesquisa. Segundo Turato (2005)
este método possui um grande rigor na validade dos dados coletados, pois
a observação dos sujeitos juntamente com a escuta em entrevista, por
serem acuradas e de grande profundidade, levam o pesquisador bem
próximo à essência da questão em estudo.
As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas pela
própria pesquisadora.

5.5 ORGANIZAÇÃO DOS DADOS

O registro dos dados coletados por equipamento digital na etapa de


entrevistas permitiu a transcrição de seu conteúdo para uma adequada
64

categorização das informações colhidas. As anotações realizadas no


Diário de Campo, durante a observação não participante também foram
digitalizadas.
Como forma de resguardar os nomes dos conselheiros e
instituições envolvidas optou-se por transcrever as falas, essenciais a este
trabalho, com a identificação das representações por meio de letras: G
(gestores), P (prestadoras de serviço), T (trabalhadores da saúde) e U
(usuários), seguida de um número como indicador quantitativo das falas.
De acordo com Polit, Beck e Hungler (2011) uma das primeiras
tarefas no processo de análise é a elaboração, pelo pesquisador de um
esquema de codificação. A codificação pode utilizar-se de diferentes
procedimentos para alcançar o significado profundo das comunicações,
sendo que a escolha depende do material a ser analisado, dos objetivos da
pesquisa e da posição do analisador. A organização dos dados desta
pesquisa coletados nos três momentos, contou com o auxílio do software
Atlas.ti® 7.1.8. Este software foi escolhido pela facilitação da
organização e codificação do conteúdo a ser analisado posteriormente
pela pesquisadora. As etapas de organização dos dados serão melhor
exploradas no tópico seguinte.

5.6 ANÁLISE DOS DADOS

A análise dos dados levantados utilizou a Análise de Conteúdo


pautada em Minayo (2004), onde optou-se pela técnica da Análise
Temática. Não se visou à generalização de resultados ou o
estabelecimento de causa-efeito, e sim a revisão dos pressupostos iniciais,
a percepção e compreensão através da reflexão do pesquisador sobre os
elementos levantados a partir do problema, visando à construção de
conhecimentos originais que poderão trazer nova luz ao interminável
processo de produção de conhecimento.
A primeira etapa da Análise Temática consistiu na pré-análise
onde a leitura flutuante permitiu o contato exaustivo com o material de
análise concedendo melhor clareza na identificação dos dados. Este
momento levou à definição da hipótese inicial desta pesquisa: os
problemas éticos existentes no CMS interferem no Controle Social do
SUS. Esta etapa foi realizada no ambiente do software a partir da criação
de um arquivo próprio para a realização da análise neste ambiente
65

(Unidade Hermenêutica2) e a partir da inclusão das atas e das entrevistas


transcritas (documentos primários*) e da transcrição das anotações do
Diário de Campo (memos*) neste arquivo.
A segunda etapa da análise de conteúdo consistiu na exploração do
material, codificando os dados em análise. Para tanto, foram realizados
recortes no corpo do texto que eram unidades de registro (citações*) aos
quais foram atribuídas unidades de contexto ou pré-categorias (códigos*).
Estas poderiam ser uma palavra, uma frase ou uma explicação, cujo
significado buscasse trazer à luz as questões levantadas pela pesquisa.
Durante esse processo todas as questões que emergiam como ideias,
questionamentos ou impressões e que complementavam de alguma forma
as pré-categorias encontradas, eram mencionadas em notas* (associadas
aos códigos identificados) ou registrados em memos* quando mais
genéricos (FRIESE, 2012). No total 94 pré-categorias foram criadas de
forma indutiva à medida que se realizava a exploração do material.
Na etapa seguinte, de reordenação dos dados, as pré-categorias
foram agrupadas em quatorze categorias (famílias*), algumas dadas a
priori pelo referencial teórico: Autonomia, Capacitação, Diálogo,
Hierarquia, Participação, Relação entre os Segmentos, Visão do Coletivo
e outras elaboradas a posteriori, pelos sentidos que emergiram dos dados:
Articulação, Saúde Pública, Efetividade, Papel do Controle Social,
Profissionalização, Representação, Secretário de Saúde como Presidente.
A última etapa de categorização e análise dos dados consistiu no
reagrupamento dessas quatorze categorias em três supercategorias
(superfamílias*), que são as categorias analíticas dadas pelo referencial
teórico dos três vazios: Vazio de Educação Permanente, Vazio de
Responsabilidade Legal e Vazio de Consciência de Cidadania.
Esta etapa de tratamento dos resultados obtidos e interpretação não
se baseou em análises estatísticas simples ou complexas, mas sim
interpretações dos temas em cima das unidades de registro e suas
correspondências com as unidades de contexto.

2 * Nomes atribuídos pelo software.


66

5.7 ASPECTOS ÉTICOS

Este estudo foi submetido à avaliação da prefeitura municipal


responsável pelo CMS estudado, onde a mesma recebeu uma cópia do
projeto dessa dissertação, bem como um documento solicitando a
autorização oficial (Anexo 1) da instituição para a coleta de dados.
Esta pesquisa também foi avaliada e aprovada pelo Comitê de
Ética e Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da Universidade Federal
de Santa Catarina, sob o número 539.891/2014, respeitando-se assim a
Resolução nº 466/12 do CNS que regulamenta as diretrizes e normas para
a realização de pesquisas envolvendo seres humanos, a fim de assegurar
os direitos e deveres dos participantes da pesquisa, da comunidade
científica e do Estado.
Todos os sujeitos entrevistados e todas as falas utilizadas a partir
das Atas analisadas tiveram suas identidades mantidas em sigilo.
O processo de Consentimento Livre e Esclarecido foi contemplado
neste estudo, onde todos os conselheiros de saúde foram orientados
quanto aos objetivos e procedimentos do estudo, forma de participação,
importância do estudo, garantia de respeito e sigilo das informações, da
disponibilidade dos dados e informações pessoais, assim como, da
liberdade de participação e desistência ao longo de qualquer fase do
processo sem haver prejuízo para si. Após essa etapa de esclarecimento
verbal, foi solicitado aos entrevistados a leitura e a assinatura do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice 2). A participação foi
de caráter voluntário, sendo que os envolvidos não obtiveram qualquer
forma de remuneração.
Tão logo, entrou-se em contato pessoalmente ou por telefone com
os sujeitos para convidá-los e, mediante a aceitação/interesse dos mesmos
na participação na pesquisa, foi formalizado o convite, conforme
preconiza os aspectos éticos.
Julgando esta pesquisa como sendo socialmente relevante e
assegurando não haver nenhum tipo de conflito de interesses entre
pesquisadores e participantes da pesquisa, firmou-se o compromisso de
divulgar e publicar os resultados deste estudo, resguardando, sob todos os
aspectos, os sujeitos envolvidos. De igual forma, os pesquisadores
comprometem-se a divulgar os resultados diretamente ao CMS
participante, em reunião formal da Câmara Técnica, conforme solicitado
pelos mesmos.
Os resultados desta pesquisa podem ser considerados benéficos aos
sujeitos, pois buscam o aumento da consciência sobre a importância das
67

questões éticas dentro de órgãos colegiados e deliberativos. Essa reflexão


não se aplica somente aos conselheiros envolvidos, mas se estende
também aos órgãos responsáveis por fomentar e apoiar esses espaços.
Para além, os conselhos de saúde, por decidirem sobre políticas públicas,
necessariamente respondem a interesses diversos, sendo a reflexão sobre
a moral uma forma de apoio a essas tomadas de decisões, ajudando a
torna-las éticas, portanto responsáveis e prudentes.
69

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para melhor visualização os resultados encontrados foram


agrupados e ordenados conforme a triangulação dos dados (Quadros 1 a
14).
70

Quadro 1 – Dimensão Pedagógica: O Vazio da Educação Permanente.


Capacitação: Clichês, Ingenuidade e Paternalismo

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS participante das reuniões
conselheiros de saúde
mensais
Conselheiros se mostram
A conselheira coloca que está irritados quando são ...Por isso que aquele dia eu
Exigir uma tomada de sentido a falta de interrompidos para apressar a fiquei quietinha [...] como é
decisão sem o comunicação (Ata02; U04) decisão – “questão de que eu vou entender aquilo
compartilhamento de ordem” (DC3) lá?(U3)
conhecimentos ...isso que eu te falo, a gente
minimamente ...preocupou-se quando irá Alguns conselheiros se consegue ser mais pontual e
necessários construir o parecer, preocupa- distraem quando os diálogos ser mais firme quando a
se em ter que aprovar sem ter se estendem (DC1) gente tem esse conhecimento
analisado antes (Ata03; T4) prévio [...] (G3)
A capacitação deve ter a
Exigência e concepção visão de todos [...], este é um Alguns conselheiros Primeira coisa que eles
de um processo dos pontos pela falta de simplesmente parecem não reclamam é capacitação, mas
pedagógico que não presença [...] (Ata02; P01) estarem interessados nas faz uma capacitação agora
inclui seus sujeitos ...houve menção de que a discussões – ficam no celular [...]. Parece que a frequência
capacitação é de acordo com ou, por vezes, dormindo maior foi seis numa
a visão do gestor (Ata02;G05) (DC1) capacitação [...] (U5)
...a conselheira quer sempre
trazer para a reunião é a saúde Pouco envolvimento do ...não tem um espaço pra
mental no município [...] se coletivo, parecem ser sempre formação, a gente vai pro
Condicionar a for colocar cada item do os mesmos a falarem (DC2) conselho bem cru mesmo, e
aprendizagem de um município ficariam 24 horas depende muito da iniciativa
grupo altamente falando somente sobre isso dos conselheiros [...] (U3)
diverso unicamente à (Ata05;G3)
capacidade individual Sugere que [...] ocorra uma
de cada sujeito reunião do Conselho, não Impressão de que um ou dois ...assim a participação vai
sendo em caráter deliberativo, conselheiros leem os muito da articulação da
mas sim para que possam se documentos exigidos e os pessoa. Então tem uns que
conhecer e saber o que cada outros já se posicionam na ficam mais quietos (G2)
um faz, o que é, o que espera da fala destes (DC1)
representa, para poderem
planejar algumas ações
(Ata02;U3)
O conselheiro concorda que
Supervalorizar o enquanto conselheiro tem a O conceito “técnico da área” ...o conselho vai ter que abrir
conhecimento técnico necessidade de uma parece gerar um uma forma para que o nível
em detrimento dos capacitação [...] e pede para silenciamento nas opiniões de conhecimento [...]
demais conhecimentos que quando houver [...] que diferentes deste saber (DC4) principalmente da
todos os conselheiros representação social, esteja
compareçam (Ata05; T02) no mesmo nível dos técnicos
(U3)
...coloca que [...] realmente é frequente, um conselheiro
criticar o trabalho de uma não compreender um dado
determinada entidade em [...] porque as vezes a forma
função de portarias e de como é apresentado é a
Poder decisório números, é algo que seja forma como a gestão quer
concentrado nos que simples para quem está de Parece que tudo que é trazido apresentar [...]então ninguém
detém as informações fora falar (Ata05;U1) à discussão é empurrado para apresenta dado que vá se
técnicas a câmara técnica (DC1) prejudicar (G3)
...a gente modela eles pra
Esta apresentação que é pensar de um jeito, tem tudo
altamente técnica só pode ser isso [...] se não eles não
discutido com pessoas que conseguem acompanhar
contenham conhecimento [...] muitas discussões. Eles têm
(Ata06;P02) que entender para poder
acompanhar (G2)
Fonte: Autoral, 2015.
71

Quadro 2 – Dimensão Pedagógica: O Vazio da Educação Permanente.


Linguagem, comunicação, diálogo, deliberação

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS participante das reuniões
conselheiros de saúde
mensais
...quando a informação é ...quando você apresenta
enrolada e não objetiva com daquele jeito, que é cheio de
Apresentações de planilhas
diversas explicações, sigla, cheio de coisas, você
com siglas e poucas
querendo ou não passa um ar não quer chegar nesse cara,
explicações – desconforto e
de desconfiança, de como se a [...] nem dá o direito dele ser
confusão nos
Supressão de informação não fosse realmente participante na
questionamentos dos
informações no completa (Ata05;T4) discussão... (G3)
conselheiros – visível
processo comunicativo O conselheiro informa que no
dificuldade de compreensão [...] as pessoas veem tanta
orçamento não aparece o
dos dados e pouca clareza nas dificuldade e às vezes quando
projeto de manutenção dos
explicações aos a gente vai lá ver os dados
CAPS porque ficaria num
questionamentos (DC3) não existe a dificuldade nos
nível muito detalhado
dados [...] (G3)
(Ata05;G1)
Sugeriu-se [...] que seja
procurada uma nova
metodologia [...] como enviar Parece que os conselheiros É que já vem tudo muito
antecipadamente aos dão maior importância para marcado... (U3)
conselheiros a apresentação discussões de âmbito
Falta de construções
integral e na reunião, fazer burocrático do que atuar na
coletivas
uma apresentação sucinta, formulação de estratégias e
abrindo espaço para a no controle da execução da ... já vem pronto, entendeu?
dirimição de dúvidas e política de saúde (DC2) Não tem a construção que
prestação de esclarecimentos deveria se ter ... (T1)
(Ata03)
Você tem que se dar essa
oportunidade, de ouvir todas
Solicita uma aprovação nem Alguns conselheiros que
as visões sobre determinado
que seja com algumas “discordam muito” parecem
assunto. E as vezes não é isso
considerações para ficar ter suas colocações ignorados
que acontece, porque tem
registrado nesta reunião pela plenária, já
conselheiro [...] que só quer
(Ata05;G2) rotineiramente (DC4)
que a visão dele prevaleça, e
acabou ... (U4)
Imposição de opiniões
O presidente coloca que estas
questões sejam discutidas na
Mesa Diretora, outra Alguns conselheiros fazem Já vi pessoas discutindo por
conselheira coloca que quem “caretas” quando aparecem quererem impor uma opinião,
deve decidir é a Plenária do discordâncias em suas né o seu ponto de vista, de
Conselho – há insistência e colocações (DC3) que o outro é contra (G1)
decide-se pela Mesa Diretora
(Ata05)
...a votação eu acho
Ao que todos concordam e a antidemocrático [...]. Não sei,
proposta é levada à votação, tinha que ser um negócio de
sendo aprovada por consenso...discutiu antes, já
unanimidade (Ata01) discutiu tudo, mas... e aí vai
A votação parece só ser pra votação (G2)
pedida pelo gestor quando Eu gostaria que fosse mais
Votação como método
este não consegue impor sua debatido e se tirasse um
decisório
opinião logo de início consenso. E pergunta-se se
Presidente aprova este
(Memo02;Ata04) está todo mundo de acordo
encaminhamento colocando
[...] é meio sabonete assim,
em votação, o que é aprovado
passa discute, fulano de tal
(Ata03)
fala uma coisa e ninguém
pede, “ah eu quero que vote”
... (T1)
Fonte: Autoral, 2015.
72

Quadro 2 – Dimensão Pedagógica: O Vazio da Educação Permanente.


Linguagem, comunicação, diálogo, deliberação (continuação)

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Problemas Éticos Observação não participante Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS
das reuniões mensais conselheiros de saúde
Parece não haver
aprofundamento nas
...a gente iniciou [...] alguns
discussões, os conselheiros
embates de que nós não
...propõe alteração de pauta parecem insatisfeitos com as
podíamos aprovar as coisas
sugerindo que todos os itens decisões e por vezes nem
com pressa. Só é possível
[...] sejam substituídos pela votam quando isto lhes é
Exigência da tomada aprovar com discussão (U2)
apresentação LOA, tendo em exigido – por não entender
de decisão sem tempo
vista que tal apresentação, será?(DC4)
apropriado para o
tem prazo legal [...] e mais Os conselheiros não tiveram
diálogo
relevante que os demais itens acesso ou leram o
O fato de só ter uma reunião
a serem apresentados na pauta Regulamento por completo, e
por mês é pouco, você não
(Ata08) ficaram, mesmo assim,
consegue debater no tempo
restritos apenas ao artigo
necessário [...] (U4)
específico para deliberarem...
(Memo01;Ata01)
...naquele Conselho [...]
decisões são tomadas sempre
...mas o que acontece,
no coletivo. No seu
quando o assunto é muito
entendimento a nossa CT
controverso ou ele é muito
funcionou de forma capenga
extenso, a câmara técnica
[...] sugere que esteja alerta às
Não há exposição na reunião discute, porque a câmara
Diminuir o número de comissões que não estão
da plenária sobre o que foi técnica é menor... (U4)
partícipes no diálogo funcionando a contento...
discutido na CT, apenas o seu
como forma de (Ata01;T04)
parecer que pelo visto é
melhorar a ...a gente já tenta resolver e
fala que é contrário a isso [...] sempre aceito pelos outros
ponderação trazer pra plenária
não sendo este assunto conselheiros (DC5)
simplesmente para a
primordial para ser abordado
aprovação [...]
na CT [...] Colocando a ideia
evidentemente, que um
em votação, foi aprovada com
número menor de ideias
voto contrário do Conselheiro
resolve melhor o problema
(Ata02;P01)
(U1)
Fonte: Autoral, 2015.
73

Quadro 3 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Concentração de Poder, Enfrentamento e Autonomia: A atual prática da Cultura Política

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS participante das reuniões
conselheiros de saúde
mensais
Entende todas as questões e
Presidente adiou a pauta para
as desculpas do Secretário
passar primeiro os informes ...as nossas pautas de reunião
enquanto conselheira mas o
orçamentários e o elas são todas engolidas pela
que aconteceu é gravíssimo,
planejamento da compra e gestão. Os encaminhamentos,
leu toda a legislação [...] o
distribuição de fitas de aprovação disso, aprovação
Enfrentamento dos erro está em produzir-se
glicemias ficou adiada para a daquilo. [...] O próprio conselho
mecanismos uma resolução do Conselho
próxima reunião - mensal. não gera uma pauta... (G3)
hegemônicos de sem o consentimento deste
(Memo04;Ata07)
gestão em favor (Ata05;T4)
de metodologias
...considera que houve uma
atuais de gestão
interferência na área da O que acontece: a gente não tem
compartilhada Parece que os conselheiros
saúde pelo executivo, que acesso, ou não é convidado, ou
raramente propõem pautas,
ignorou pareceres da SMS, não se faz participante nessas
geralmente estas são mais
inclusive não consultando o discussões com as outras
sobre questões burocráticas
CMS. É de opinião que o esferas, entendeu? Então é uma
da secretaria. (DC5)
CMS repudie este lei... coisa muito fechada [...] (T1)
(Ata07;U1)
...a gente arrumou uma encrenca
A conselheira conclui que
com o pessoal daqui de dentro
tudo se encontra no papel,
(da secretaria) que também não
basta apenas fazer funcionar
tinha uma formação adequada,
(Ata01;T4)
pra poder enxergar (expor) as
Dificuldade na Parece que se dá pouca coisas ruins (G2)
produção de um legitimidade as falas de teor
comportamento perceptivo – do Se o presidente do conselho não
público coerente com conhecimento da experiência fosse o Secretario talvez ele
o progresso moral já (a atenção em geral se tivesse voz pra esse debate, e
Para ele a comissão pode
registrado na concentra nas figuras talvez fortalecesse mais essa
atuar sem nenhum
legislação públicas da gestão) (DC5) questão de pressionar o Estado
problema, com ou sem
[...] Então acho que fica muito
paridade (Ata01; U3)
fechado e aí a gente já conhece
qual é a política né (T1)

Fonte: Autoral, 2015.


74

Quadro 4 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Secretário - Presidente: Uma prática do Poder Instituído, um Conflito de Interesse

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Problemas
Observação não participante Entrevistas com os
Éticos Análise de Atas do CMS
das reuniões mensais conselheiros de saúde
O Presidente informa que está Eu acho que quando ele é
solicitando a Secretária Executiva indicado pelo prefeito ele
que anote essas solicitações que fica muito direcionado pra
ele responderá formalmente ao que não aconteça algumas
Conflito de CLS (Ata08) coisas (T1)
interesses na Ninguém protestou no CMS desde
No fim, parece que sempre o
ocupação de que é presidente [...] Hoje 85% dos
presidente decide como será ... o próprio secretário ser o
dois cargos, funcionários são efetivos
procedido (DC5) presidente do CMS, me
onde um originários de concurso público,
parece que as respostas
fiscaliza o outro porque o que vigorava nesta
ficam muito focadas no que
secretaria era a indicação e
a gestão faz né, e não no que
nenhuma vez o conselho levantou
o CMS deveria fazer (G3)
uma moção solicitando
providências (Ata02;G2)
...na plenária levantam um
monte de questão e ele se
defende como secretário,
Pelos relatos, o Presidente conclui
isso aí eu briguei uma vez
que a comissão está funcionando
porque eu chamei o
satisfatoriamente mesmo sem
É contraditório o fato do presidente de camaleão,
paridade (Ata01)
Mediação ou presidente do CMS ser o porque ‘eu não sei quando
controle – secretario de saúde, suas falas você é presidente quando
dificuldade de não parecem buscar soluções, você é secretário’ (U5)
exercer o papel apenas deixar o trabalho para as O secretário não tem
de presidente comissões e utilizar o conselho autoridade de secretário no
do CMS para aprovar os orçamentos da conselho, ele tem autoridade
O Presidente [...] diante da
secretaria (Memo08;Ata05) de presidente. E presidente
resposta negativa considera que se
em geral é mediador. [...] eu
não está na lei, se não está escrito,
acho assim que nesse
então não há ilegalidade (Ata01)
momento o conselho está um
pouco extensão da gestão e
não controle social (U4)
Fonte: Autoral, 2015.
75

Quadro 5 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Hierarquia: O Espírito Competitivo

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os conselheiros
Análise de Atas do CMS participante das reuniões
de saúde
mensais
[...] tinha uma época que o diretor
da vigilância, ele não queria
passar os dados, então tinha
As demais pautas serão
inúmeras brigas, enfrentamentos
definidas na reunião da Mesa
[...] aquela época era bem pesado
Diretora e serão informados na
[...] Mas brigava de dizer que os
convocação da reunião
dados tinham que ser mostrados,
(Ata03,G2)
então eu comprava uma briga
Conflito entre a
O Presidente concorda que se interna na secretaria pra poder
estrutura
deve planejar, mas não mostrar no CMS (G2)
hierárquica e a
propõe ações ou alternativas ...Às vezes o Controle Social pode
coparticipação
Considera que houve uma (Memo3;Ata05) tá acontecendo e ser direcionado
democrática
interferência na área da saúde mesmo assim. Então depende da
pelo executivo, que ignorou forma que o condutor, tenha o seu
pareceres da SMS, inclusive colegiado eleito, ele vai conduzir
não consultando o Conselho. É da forma democrática ou não, ele
de opinião que o Conselho pode estar conduzindo aquilo pros
repudie este lei, através de interesses do gestor, um segmento
pronunciamento a respeito que é menor mas que tem apoio da
(Ata07;U1) grande maioria entendeu? (T1)
...tem o aspecto de você não reunir
a sociedade civil, de você não
estar lá in locus verificando se
aquela normativa tá funcionando.
E aí o que acontece, você sempre
Vão ser levadas ao Conselho Em algumas apresentações fica com a informação do gestor.
Municipal vindo com o da secretaria é nítido o não Não tô dizendo que não seja
discurso que só pode ser entendimento de grande verdadeira, não, certamente, na
Inibição do
apresentado no dia e devendo parte dos conselheiros e maioria das vezes é, mas na
Controle Social
ser aprovado. Se não conseguir mesmo assim as perguntas maioria das vezes só traz aquilo
pelo próprio
nem ter uma análise dos dados, são, por vezes, respondidas que interessa ao gestor (U4)
Estado que o
diante desta complexidade com descaso e percebe-se a ... A representante da odontologia
exige
como é que será votado, isso pressa em aprovar logo o era uma moça muito proativa e
fará com que acabe com o item da pauta em questão entrou em vários atritos com o
controle social (Ata06;U3) (DC3) secretário e de repente ela deixou
de ser representante e entrou outro
no lugar dela. A gente sabe que é
por causa dos conflitos [...] Ela
nunca quis sair ela foi retirada [...]
(U2)
Fonte: Autoral, 2015.
76

Quadro 6 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Relação entre os Segmentos: O Pensar-Agir Dicotômico-Dilemático

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Problemas Éticos Observação não participante Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS
das reuniões mensais conselheiros de saúde
[...] as vezes o gestor não
percebe que nós somos seus
aliados e não seus inimigos, e aí
não ceder por não ceder [...]. Não
...coloca que podem haver tem nenhum motivo específico a
Conselheiros se referem como
momentos conflitantes entre
“gestores” e “usuários”, sendo não ser a minha autoridade, então
Relação de disputa a Câmara Técnica e a Mesa isso acontece um monte. Toda
essa dicotomia evidente em
entre os segmentos Diretora, ainda diz que se as reunião tem isso (G3)
momentos de conflito –
governamental e duas se unissem estariam
principalmente colocando os ...é isso que acontece, o cara sabe
não governamental muito bem, sabendo que é
usuários como “sempre sendo que se ele for votar contra o
um processo dificultoso
os do contra” (DC6) gestor ele vai ser bloqueado lá na
(Ata05;G2)
frente [...] mas mesmo com tudo
isso ele teria que votar naquilo
que ele considera o mais correto
(G2)
Fonte: Autoral, 2015.
77

Quadro 7 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Articulação versus a Imobilidade da Sociedade Civil

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS participante das
conselheiros de saúde
reuniões mensais
diz que o conselho deve se unir e não
...os governantes, quando eles
agir como indivíduos para que até
querem votar uma pauta no
não sejam surpreendidos devida a
CMS, eles se organizam pra ir
pouca participação. Sugere [...]
pra reunião, e nós enquanto
ocorra uma reunião do Conselho [...]
movimento social ainda não
para que possam se conhecer e saber
temos esse hábito [...] nas
o que cada um faz, o que é, o que
reuniões, um puxa pra lá,
representa, para poderem planejar
outro puxa pra cá, o outro
algumas ações. Coloca que se não se
Falta de articulação puxa pra lá, sabe? Não tem
reunirem em algum momento jamais
do segmento dos uma unificação das ideias [...]
chegarão em algum lugar como
usuários - o (U3)
conselho (Ata02; U3)
pensar/agir
E daí o que que acontece,
isoladamente
como a sociedade civil está
dentro do CMS
desarticulada sempre tem
algum conselheiro que fica
O Presidente faz um aparte para dizer insistindo e aí os outros
que deve haver mecanismos de se conselheiros recuam porque
excluir a entidade ausente (Ata01) não tão com aquela discussão,
não discutiram não
combinaram, não tão com
aquela posição coletiva né?
(U4)
Defende-se dizendo que embora seja
acusada de trazer recorrentemente o
tema da sua entidade [...] expressa ...não há o consenso de quem
que a área não é privilegiada, é ela tá representando, pra ela
apenas bem organizada [...]. poder dar resposta em cima
Porque não trocar a
Finalmente diz que as discussões disso. Não, ela dá resposta em
entidade afinal é uma
sobre as demais comissões geram cima do próprio conhecimento
representação. A
Deslegitimação do mal-estar e confusões por falta de dela, do que ela acha [...] (G2)
entidade deve estar
Controle Social pelo uma regulamentação [...] (Ata10;
articulada com seu
distanciamento T04)
representante, e
entre os Não existe articulação... essa
interessada na
conselheiros e suas história da representação
deliberação, se não outra
bases passou a ser uma coisa assim,
entidade deve poder
representativas Retoma a palavra e também o “tu vais la e me representa”
assumir seu lugar
assunto sobre a vacância da entidade [...] já tentei por três vezes,
(Memo2; Ata07)
que não vem, não substitui o procurar o diretor da minha
representante e que no momento a representação, e nas três vezes
vaga fica em aberto (Ata01;T04) fui ouvido mas não encontrei
respaldo nenhum pras ações
que precisam ser feitas de
cooperação [...] (U2)
...vou te dizer que no início eu
me sentia constrangida em
alguns momentos, até as
pessoas saberem o que você
Sugere que na segunda terça-feira do
representa [...] ninguém me
mês ocorra uma reunião do
apresentou pro CMS (G3)
Ausência de Conselho, não sendo em caráter Têm conselheiros que
...o conflito de ideias elas
mecanismos de deliberativo, mas sim para que nunca falam com os
surgem nesse momento, então
inclusão dos novos possam se conhecer e saber o que outros (não se
a gente, muitas vezes, não
conselheiros cada um faz, o que é, o que conhecem?) (DC4)
conhece a instituição que a
representa, para poderem planejar
pessoa vem, a pessoa em si
algumas ações (Ata02;U3)
[...] é diferente de trabalhar
com as pessoas que você
convive dentro da instituição,
todos os dias (T1)
Fonte: Autoral, 2015.
78

Quadro 8 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Papel do Controle Social: Para Além do Pragmatismo Imediatista

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os conselheiros de
Análise de Atas do CMS participante das
saúde
reuniões mensais
...a LOA não é maior que as outras
questões da pauta. Mas é mais
importante [...] porque [...] se os
conselheiros não tiverem empoderados
disso aqui... um monte de coisa vai
...houveram pontos de pauta passar [...] olharem isso com muito
transferidos [...] cujas cuidado e com muito tempo, porque
Dificuldade de apresentações eram requeridas isso precisa ser amplamente discutido
consolidar o como normativas enquanto foram (G2)
papel do Controle possíveis apresentações [...] cuja ...as nossas pautas de reunião elas são
Social para além discussão não era requerida por lei todas engolidas pela gestão [...] O
dos objetivos ou normativa, mostrando a próprio conselho não gera na pauta [...]
burocráticos necessidade de se haver um existe o que foi discutido na CT, mas o
calendário ressaltando os pontos que a gente discute na CT são os
obrigatórios por lei (Ata05;P01) documentos da gestão, é LOAs, é
planejamento, o que já vem da gestão
entendeu? Não existe assim uma pauta
em que o conselho coloque as suas
demandas, as suas proposições [...]
(G3)
Agora, graças a deus, eu tenho plano
de saúde. [...] Meu sogro, por exemplo,
ele era atendido pelo SUS direto,
Algumas falas
porque ele não tinha plano de saúde,
Incoerência em parecem
O conselheiro, apoiado pelo não tinha nada (U1)
ocupar uma desconsiderar a
Presidente parabeniza o [...]eu sempre usei a rede de saúde [...]e
posição de defesa importância de um
atendimento do SUS, eu fazia esse tipo de pergunta [...]
e proteção de algo sistema público de
equiparando-o com centros de vocês sabem o que está acontecendo?
em que não se saúde para a
saúde privados (Ata08;U1) Não sabem, vocês estão acreditando no
acredita população (Memo
que o coordenador do posto ta dizendo,
01, Ata08)
isso aí mudou muita coisa. E hoje essa
pratica não é só minha, tem vários
conselheiros fazendo isso (U5)
Fonte: Autoral, 2015.

Quadro 9 – Dimensão Política: O Vazio da Responsabilidade Legal.


Profissionalização: Maior Legitimidade?

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os conselheiros de
Análise de Atas do CMS participante das
saúde
reuniões mensais
Dificuldade do ...o Conselho Municipal da As reuniões ...porque você tem que fazer controle
exercício da Saúde é representado pelo sempre ocorrem social de graça? [...] a gente tem uma
participação social conselheiro que não tem com faltas de coisa que controle social é organização
num mundo conseguido comparecer as conselheiros da sociedade civil então tem que ser de
dominado pelos reuniões mas tem justificado. (DC3) graça, não! Entendeu, aquilo é bom pra
valores de mercado (Ata02) sociedade, então o Estado tem que
patrocinar, financiar, incentivar né [...]
(U4)
...coloca que as oficinas dos Não era nem eu que deveria estar lá, era
conselhos locais foram todas no a nossa psicóloga, mas durante o
horário noturno porque sabe-se processo de espera ela engravidou, aí
que os individuos trabalham mandei e-mail pra um monte de gente e
durante o dia e não teriam a ninguém me respondeu, trabalhar de
possibilidade de comparecer graça não é pra qualquer um né. E ai pra
durante o mesmo (Ata02,G6) não perder a vaga eu fui (U3)
79

Fonte: Autoral, 2015.

Quadro 10 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Representação: A Aproximação de Valores

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os
Análise de Atas do CMS participante das reuniões
conselheiros de saúde
mensais
Não existe esta ligação prevista.
Nunca ninguém me disse assim:
vem cá qual o seu
posicionamento sobre tal
questão? Algumas demandas
que são da instituição, eu levei
pro conselho, mas precisava de
Desinteresse das
...entende-se que a efetividade da um posicionamento da
representações de
participação das entidades no instituição, e nunca se
base sobre as
Conselho deva ser acompanhada posicionou (U2)
deliberações do
e inclusive cobrada (Ata01;U5) ...eles fizeram cinco reuniões de
CMS
diretoria e nunca me
convidaram. [...] eu reclamei
[...] eu disse assim eu tô a dois
anos eu não pude dar um
relatório pra vocês! Porque eu
faço relatório, mas eu não pude
nem entregar né (U5)
[...]não adianta eles dizerem que
eles representam a sociedade,
que representam os usuários,
Alguns conselheiros não representa. Cada um toma
Inibição da
parecem ter seu discurso decisão a partir do que ele
subjetividade dos
ignorado, principalmente considera correto [...] (G2)
conselheiros (a não
quando denotam uma ...tem horas assim que a minha
valorização do
personalidade mais posição de neutralidade é a mais
sujeito)
exacerbada (DC1) confortável, que eu posso
escolher. Então talvez não seja a
mais correta, mas é a mais
confortável (G1)
O Conselho é formado por Às vezes ele vem como usuário,
quatro segmentos, todos com a mas não é nem usuário do
Segmento dos mesma competência, mas com sistema, então pelo menos que
usuários sendo olhares diferentes. 50% são Alguns conselheiros ele seja usuário do sistema, pelo
formado por usuários e há muitos usuários demostram não conhecer menos isso, e aí sim, aí ele já
conselheiros que votando com o olhar da gestão. os serviços do SUS viveu, já teve possivelmente
não utilizam o SUS Por isso é importante que os recusas de atendimento, então
papéis fiquem mais claros ele tem essa vivencia individual
(Ata01;P01) (G2)
Fonte: Autoral, 2015.
80

Quadro 11 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Participação: Por uma “Re-valoração” dos Valores Democráticos

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Problemas Observação não
Entrevistas com os conselheiros de
Éticos Análise de Atas do CMS participante das
saúde
reuniões mensais

Informa que a Secretaria


Executiva comunicou via e-
...eu fico num papel meio de espectadora.
mail a todos os conselheiros
Embora, eu seja conselheira, tenha voz no
que faltavam dois
conselho, eu acabo ficando muito mais na
representantes dos usuários na
posição de passar informação[...] eu acabo
Incoerência de comissão. E que mediante a
muitas vezes contemplando o que foi
ser conselheiro e falta de manifestação dos Sempre parece ser os colocado em discussão meio sem uma
não participar demais, a conselheira se mesmos conselheiros opinião própria, sabe? (G1)
dos processos prontificou a participar que se manifestam
decisórios - (Ata01;U5) nas plenárias (DC3)
omissão
A oficina que foi feita a noite A gente pergunta se mais alguém quer
foi a que veio menos pessoas. participar, não tem mais ninguém [...] eles
Deve-se ver o que fazer [...] reclamaram da prestação de contas, aí
para que ocorra o quando chamei pra participar ninguém
comparecimento de todos levantou a mão... e todo mundo reclama!
(Ata02;G6) [...] (G2)

...as capacitações devem ...as pessoas hoje também não querem


continuar, ter que insistir nas participar, não querem ter o trabalho de se
divulgações perante as organizar, discutir, pra defender seus
comunidades [...] mobilizar direitos [...] quem não ta no dia a dia
mais as comunidades para ter envolvido não vem, são sempre os
maior número de pessoas para mesmos. Não é também só culpa dos
gerar o interesse futuro de ser conselheiros não, é da própria sociedade
As reuniões se dão
Baixo incentivo conselheiro (Ata02;G4) (U3)
com poucos
à participação
indivíduos
da sociedade no
acompanhando a ...nós começamos a perceber o quanto o
CMS
plenária (DC4) conselho municipal estava distante das
comunidades [...] Hoje você pega aí os
Coloca que as reuniões dos
CLS são muito representativos também, e
Conselhos são pouco
eles tem uma participação, eles se reúnem
divulgadas (Ata02; P2)
no conselho [...] e assim, tá se fazendo um
trabalho de ampliar a construção desses
conselhos locais [...] (T2)

Fonte: Autoral, 2015.


81

Quadro 12 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Visão do Coletivo: Saber-se e Se Sentir Cidadão

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos participante das Entrevistas com os conselheiros de
Análise de Atas do CMS
reuniões saúde
mensais
O Estado, por todas as formas
... Que ele consiga pensar no bem maior
possíveis no passado, queria
que é a saúde pro usuário, e não por
tirar isso do município, queria
influencias políticas ou por questão
passar para outra região [...].
financeira dele poder ganhar alguma
A Secretaria do Estado é
coisa diante disso, ele poder ser
contra o nosso município
Conflito de interesses beneficiado com aquela atitude (G2)
(Ata02;G4)
entre os valores
...Claro que, às vezes, as ideias conflitam
pessoais e os valores
Aproveita o momento para com a tua ideologia, do que tu realmente
cívicos
expor uma situação incômoda acreditas do porquê estar ali, por um bem
que vivencia com o comum né, e as vezes as propostas são
funcionamento de uma casa muito direcionadas, são muito incomuns,
noturna [...] que fica ao lado né? É como se fosse “pra mim” e não é, a
de sua residência (Ata01;U6) discussão tem que ser voltada para um
todo (T1)
Fonte: Autoral, 2015.

Quadro 13 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Saúde Pública: O Olhar da Colonialidade

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Problemas Observação não
Análise de Atas do
Éticos participante das Entrevistas com os conselheiros de saúde
CMS
reuniões mensais
Acha estranho é Porque que serviço público da Dinamarca funciona e
que os funcionários aqui não funciona? Aqui tem o deboche da própria
da SMS tenham sociedade civil “ah isso aí é serviço público, é assim
Valorizar uma plano privado de mesmo”, entendeu? É isso que eu to dizendo, se é
visão ampliada saúde [...] coloca serviço público eu quero serviço de qualidade!
da saúde em que é um dinheiro Enquanto a sociedade não incorporar isso, vai ser a
meio ao público pagando mesma coisa sempre (U3)
imaginário um serviço privado
popular da [...], esse assunto
colonialidade está sendo [...] botar na cabeça que o SUS é meu
privatista e discutido para também, é dos outros mas é meu também, vamos lutar
tecnocrática montar uma por isso daí. [...] se a legislação do SUS for obedecida
política de como eu acho que não precisa prometer nada [...] (U5)
acabar com isso
(Ata05;U5)
Questiona se os ...em alguns momentos a política quer aproveitar o
centros de saúde momento social, a dificuldade, a necessidade pra
Por vezes quando a
que estão sendo perpassar uma situação de apoio a sociedade, usando da
gestão é pressionada
Construir uma prometidos pelos política (G1)
(principalmente pelos
política de políticos durante as
CLS) aparece sempre
saúde e não eleições são os ‘eu não tenho partido, meu partido é o SUS,
um discurso de que
uma saúde centros realmente minha bandeira é o SUS, isso é o que eu uso, porque eu
esse problema venho
política necessários ou se sou 100% favorável a uma política de saúde e não uma
“da gestão anterior”
são apenas para saúde política’, e eu concordo porque é isso que ocorre
(DC5)
aquisição de votos nesse Brasil (U5)
(Ata08;P2)
Fonte: Autoral, 2015.
82

Quadro 14 – Dimensão Cultural: O Vazio da Consciência de Cidadania.


Eficiência: O CMS como Possibilidade de Transformação Social

Triangulação de Dados (Alguns Exemplos)


Observação não
Problemas Éticos Entrevistas com os conselheiros
Análise de Atas do CMS participante das
de saúde
reuniões mensais
Propõe alteração de pauta
sugerindo que todos os itens a
partir dos Informes [...] sejam
Tudo se resume a isso: o que vier é
substituídos pela apresentação
aprovado no final. Porque que acaba
da Proposta da LOA [...]
Condicionamento de sendo aprovado, porque se não for
tendo em vista que tal
demandas a aprovado não vem o repasse das
apresentação, tem prazo legal
obrigatoriedades verbas, e daí a gente fica amarrado
para envio à Câmara de
legais [...] Então fica sempre na mão
Vereadores, como também é
daquele que executa os projetos e
de suma importância e mais
ele decide (T1)
relevante que os demais itens
(Ata08;G2)

...normalmente acontece isso,


quando é demanda em cima da hora,
põe as ressalvas mas aprova, a
ressalva nunca mais é vista [...]
dificilmente as pessoas vão retomar
esse tema, e isso é comum
Conivência dos
Parece que tudo é acontecer, a gente não conseguir
conselheiros frente
sempre aprovado retomar (G3)
aos mecanismos de
(DC3). Isso acontece, como existe um
instrumentalização
prazo, o orçamento pode ser
aprovado com ressalvas, na
resolução que aprova o orçamento a
gente coloca essa ressalva. Agora
cabe a plenária cobrar se as
ressalvas foram atendidas (U5)
Continua afirmando que ...a população pode ter certeza que o
participa há anos do Conselho, conselho fiscaliza e representa [...].
e infelizmente é a segunda vez Não vai resolver problema do
Baixa
que vê uma proposta como Parece que um setor médico que falta não sei aonde, isso
governabilidade do
essa no final de gestão (Ata01; sempre “passa a não, mas na somatória toda sim
Controle Social (pela
U3) responsabilidade” para (U2)
própria
Salienta que o plano de outro setor e ninguém ...na parte política a gente observa
impossibilidade do
aplicação, nesta gestão, se compromete com as que um sempre responsabiliza o
Estado em prover
qualquer tipo de investimento demandas colocadas outro, um poder responsabiliza o
todos os direitos
como Presidente do Conselho para o CMS (DC2) outro, então não isso tem porque o
sociais)
e gestor não pode fazer Estado não participa, ou não tem
nenhuma obra que não vá aquilo, porque o MS não repassou
concluir neste ano (Ata05;G2) (T1)
Fonte: Autoral, 2015.
83

A seguir estão apresentados os resultados deste estudo,


categorizados nas três grandes dimensões: a Política, a Pedagógica e a
Cultural. Essas dimensões se caracterizam como um espaço “grávido de
possibilidades” para futuras intervenções sobre os problemas avaliados.
São nessas dimensões que as autoras propõem visualizações de
estratégias para solucionar os problemas existentes. Nesse macro espaço
de possibilidades, os problemas éticos foram compreendidos dentro da
realidade do CMS e percebidos como impulsores do distanciamento entre
a teoria do que deveria ser e a prática do que realmente é. Neste sentido,
distribuíram-se os resultados em três grandes supercategorias analíticas,
os vazios ou desafios que necessitam ser superados: Vazio de
Responsabilidade Legal, Vazio de Educação Permanente e Vazio de
Consciência de Cidadania.

Mesmo que cada problema ético encontrado tenha uma pertinência


que transcende a um único vazio, essa visualização didática ajudou a
compreender o objeto de estudo, que na realidade se dá na interface dessas
dimensões, onde cada vazio contribuiu para compor o mosaico complexo
que sustenta a existência dos problemas éticos vivenciado pelos
conselheiros municipais de saúde.

6.1 DIMENSÃO PEDAGÓGICA: O VAZIO DA EDUCAÇÃO


PERMANENTE.

Nesta supercategoria concentram-se os problemas éticos que


dizem respeito às dificuldades de comunicação e entendimento
estabelecidas nas reuniões do CMS, muitas das quais dadas pelos diversos
saberes, culturas e interesses dos conselheiros, que mesmo com essas
diferenças precisam dialogar em um mesmo nível linguístico. De acordo
com Silva (2008) as técnicas de comunicação baseadas na simples troca
de informações e opiniões não são capazes de sustentar a construção de
um conhecimento baseado na emergência de ideias coletivas.
Partindo do pressuposto de que só se pode controlar
aquilo que se conhece, justifica-se a necessidade
contínua de cursos de capacitação e de educação
continuada para os conselheiros, de modo que estes
possam exercer o controle social e participar
84

ativamente na gestão das políticas públicas de


saúde (COTTA, CAZAL, RODRIGUES, 2009,
p.434).
A educação permanente então se torna fundamental para que os
avanços políticos se configurem. Contudo, reduzir essa formação
contínua ao requisito único das capacitações parece ser insuficiente para
diminuir o despreparo dos conselheiros, além de sustentar o papel
paternalista do Estado. O estabelecimento de canais de comunicação entre
população e governo de nada servem, se a única qualidade do
‘democrático’ for garantir a presença quantitativa da população nesses
espaços. A participação popular em qualquer instancia política demanda
um certo acesso à informação, ao conhecimento e à educação. No Brasil
onde a educação, mesmo sendo um direito, ainda não está ao alcance de
todos, exige-se pelo menos que os participantes tenham consciência
política e informação como forma de prevenir distorções e manipulações
(GARRAFA, 2003).
Os problemas éticos que dificultam a função do Controle Social e
que necessitam desse suporte pedagógico foram identificados neste CMS
nas seguintes categorias: Capacitação e Diálogo.

Capacitação: clichês, ingenuidade e paternalismo.

“[...] olha isso, como é que eu sou conselheiro de saúde e não sei o que
esses caras tão dizendo?!” (G3).

A falta de capacitações dentro dos Conselhos de Saúde vem sendo


diagnosticada ao longo da literatura (WENDHAUSEN, BARBOSA e
BORBA, 2006; BOEIRA, BUECKMANN, FERREIRA, 2007;
MOREIRA e ESCOREL, 2009). As desigualdades sociais, assim como
as desigualdades em saúde não podem ser superadas sem democracia,
mas esta precisa ser efetiva, ou seja, além de formas de participação
democrática é necessário dar condições políticas, econômicas,
educacionais e sociais para que ela aconteça (COUTINHO, 2006 apud
SARMENTO, 2012).
De acordo com Correia (2005) a importância da capacitação pode
ser constatada a partir da apresentação dos resultados de uma pesquisa,
subsidiada pelo MS, em que se avaliou o impacto da capacitação
apontando diferenças entre Conselhos capacitados e não-capacitados,
chegando a indicadores que demonstravam um percentual de maior
eficiência nos conselhos capacitados. Em itens como a capacidade de
85

interferência no processo de alocação de recursos financeiros, obteve-se


27% dos Conselhos capacitados atuando de alguma forma, em contraste
com 100% dos Conselhos não capacitados que não conseguiram interferir
no processo de nenhuma forma.
Essa dificuldade de intervenção e entendimento das ações
propostas dentro do CMS de saúde aliada ao despreparo para o exercício
do Controle Social esteve bastante presente na fala dos conselheiros:
...se ele tem que votar ele tem que entender [...]
imagina se eu vou entender de orçamento, eu não
entendo de orçamento de saúde hoje. Por isso que
aquele dia eu fiquei quietinha [...] como é que eu
vou entender aquilo lá? “Ah foi orçado isso, foi
gasto isso”, eu vou ter que buscar as informações
(U3).
...se eu não conheço o sistema, se eu não sei como
ele funciona, do que se trata, e porque é preciso
fazer isso, você não tem o mínimo de
conhecimento das portarias do ministério, fica
difícil de eu estar controlando (G1).
Percebe-se nas falas que a falta de conhecimento sobre
determinados assuntos que são pautas de reuniões incomoda os
conselheiros e prejudica sua tomada de decisão – a dificuldade de serem
espectadores quando o espaço exige que se consolidem atores (FREIRE,
1987). Neste sentido existe um problema ético em se exigir uma tomada
de decisão de indivíduos que não tenham compartilhado um
conhecimento mínimo sobre o assunto, gerando um desconforto para
esses conselheiros, principalmente porque sua decisão responde por todo
um coletivo, da mesma forma que afeta todo esse coletivo.
...o meu maior constrangimento é talvez não ter
tido quando eu entrei no CMS essas formações e eu
ter que buscar individualmente isso, então isso de
início me constrangia, porque você não tem certeza
do seu posicionamento quando você não tem
alguém que diga olha o CMS funciona assim, assim
e assado, foi muito do meu feeling e da minha
observação (T2).
...eu acho que até gera esse constrangimento de não
perguntar por vergonha, porque olha isso, como é
que eu sou conselheiro de saúde e não sei o que
86

esses caras tão dizendo?! Entende, claro que gera


esse constrangimento, eu não tenho dúvida (G3).
A posição vulnerável daquele que “desconhece” alimentada pela
falta de clareza das questões trazidas para a mesa de deliberação da
plenária parece levar os conselheiros a conivência - gerada pelo
silenciamento ou à marginalização - e indução - por influência daqueles
que dominam o conhecimento ou simplesmente possuem ‘uma boa
retórica’. Em ambos os casos o sentido do controle social se esvazia:
Até que aquele que entrou, cru, comece a entender
[...] ele fica sem função praticamente, e nós que já
estamos não temos condições de trabalhar porque
até que a pessoa entenda todo o papel do conselho
é todo um ano de aprendizado (U1).
...isso que eu te falo, a gente consegue ser mais
pontual e ser mais firme quando a gente tem esse
conhecimento prévio, porque se não eles ficam,
aquilo que eu te falei, se eu não entendo nem o que
significa a sigla, quem dirá o resto que foi dito, que
eu já nem sei sobre o que o cara tá falando (G3).
...tem conselheiro que tá lá, há uns oito anos, e eu
nunca vi abrir a boca. Conhecimento deve ter
alguma coisa, mas e aí? É só pra sentar na cadeira
e ocupar o espaço? Ou pra fazer o debate político?
Pra isso também não serve, pra ficar lá só
concordando com tudo (U3).
Como se espera que os Conselhos de Saúde se configurem em
práticas baseadas no diálogo, toda a sua dinâmica fica condicionada ao
aprofundamento dos assuntos postos em pauta. Se as trocas de
informações não ocorrem, se as dúvidas não são esclarecidas o Controle
Social fica fadado a não ser nada mais que um mero mecanismo de
consentimento do Estado (BRAVO, CORREIA, 2012). O homem que
não compreende sua realidade não pode perceber os desafios dessa
realidade, muito menos transformá-la (FREIRE, 2011). Para que os locais
de gestão, como os Conselhos, possam se apresentar como locais de
intervenção, é necessário que estes espaços estejam dotados de sujeitos
aptos a imprimir mudanças nos modos de cuidar e nos próprios modos de
gerir a saúde (BRASIL, 2009a).
Eu acho que precisaria essa capacitação, eu sempre
costumo dizer que democracia custa dinheiro né. O
87

Estado pra propiciar a participação tem que


financiar a participação também né (U4).
Como os CMS são formados por diferentes atores, a capacitação
estratégica que possa criar uma base mínima de conhecimento entre
todos, objetivando a melhoria do processo de gestão participativa no SUS,
torna-se uma necessidade sentida por seus sujeitos. Tendo isso em vista o
Ministério da Saúde (MS) implementou a Política Nacional de Gestão
Estratégica e Participativa do SUS, conhecida como ParticipaSUS
(BRASIL,2009b). Essa política tem como um dos seus focos a educação
popular e a capacitação permanente de conselheiros de saúde como
formas imprescindíveis para a melhoria do poder de vocalização da
população e do poder decisórios dos próprios conselheiros. Apesar da
pouca abrangência do programa dentro deste CMS, existe o consenso do
Estado, ao menos nas suas publicações legais, quanto a necessidade da
capacitação para a participação democrática, afirmado pelas próprias
Diretrizes Nacionais para Capacitação de Conselheiros da Saúde, do MS:
(...) torna-se fundamental desencadear processos
de capacitação de Conselheiros de Saúde que
possibilitem, além da compreensão da estrutura e
funcionamento do SUS e do processo de
construção do modelo assistencial adequado a seus
princípios e diretrizes, também uma compreensão
ampliada de saúde, na qual seja possível uma maior
articulação intersetorial, de modo que a ação do
Conselho possa ser caracterizada como de
formulação e deliberação de políticas públicas
comprometidas com a qualidade de vida (BRASIL,
2002a, p. 7).
Sob essa égide de compromisso, constatou-se nas entrevistas que
houve algumas capacitações para o CMS estudado, mas que parecem ter
acontecido de forma descontínua, sendo que a maioria dos conselheiros
relatou não ter participado dessas capacitações ou não terem tomado
conhecimento das capacitações ocorridas. Neste sentido há ainda uma
parcela de responsabilidade do próprio Estado em estimular essa
participação, pois não adianta investir em capacitação sem promover o
interesse – “inexiste validade no ensino de que não resulta um
aprendizado” (FREIRE, 2011).
O fato de ser esse processo ainda insuficiente não significa que ele
tenha sido ineficiente. De acordo com alguns relatos os processos de
88

capacitação que ocorreram com os CLS geraram alguns frutos, dentre eles
a maior proximidade e participação destes conselhos junto ao CMS.
[...] percebemos que os conselhos locais não
tinham espaço e aí abrimos espaço. A partir daí nós
começamos a nos reestruturar dentro do conselho,
não foi uma coisa assim, planejada, pensada,
articulada, foi uma coisa que foi acontecendo na
medida em que o processo de formação estava
sendo realizado (U2).
O aprendizado que descobre ‘sem planejar’ e transforma a sua
realidade é por si libertador e se alimenta do próprio interesse dos
envolvidos. Neste sentido, os resultados ainda incipientes dessas
capacitações se devem, em boa parte, a uma baixa ou ausência total dos
conselheiros nesses momentos pedagógicos.
O conselheiro concorda que enquanto conselheiro
tem a necessidade de uma capacitação [...] e pede
para que quando houver capacitação para que todos
os conselheiros compareçam (Ata05; T02).
Olha, vai haver uma eleição em abril do ano que
vem, pela minha experiência eu vou dizer o que vai
acontecer, entra um grupo de conselheiros e eles
vão pedir capacitação, não sei o que [...]. Primeira
coisa que eles reclamam é capacitação, mas faz
uma capacitação agora. Nós estamos todo esse ano
fazendo capacitações para os CLS, aberta aos
conselheiros para eles aproveitarem e também
serem capacitados. Parece que a frequência maior
foi seis numa capacitação, as outras vão dois ou três
(U5).
Embora exista essa constante chamada por capacitações o que se
percebe é a baixa assiduidade dos conselheiros nesses encontros. Dentre
os motivos mais citados pelos conselheiros para justificar sua baixa
assiduidade poucos se encontram no mundo da praxis - da própria
reflexão sobre a sua condição para poder transformá-la, mas estão
reduzidos aos obstáculos objetivos a sua transformação - como a falta de
tempo ou o não acesso a divulgação das capacitações.
Neste sentido a educação continuada não pode ser emancipatória
se não houver um movimento interno de conscientização dos próprios
conselheiros sobre a sua dificuldade de atuação, ou seja, o
reconhecimento da contradição em que se acham e a consequente luta por
89

mudança (FREIRE, 1987). O forte condicionamento do CMS em ficar


dependente das ações do Estado no que concerne a sua educação
permanente, demonstra certa relação de dependência e revela uma
contradição bastante marcante. Podendo ser, as capacitações, uma forma
de libertação (FREIRE, 1987) para o agir autônomo do Controle Social
estas não deveriam ser elaboradas pelo Estado e sim pelos próprios
conselheiros, de forma ativa, como condição de sua autoemancipação. A
pedagogia que liberta só produz autonomia se tiver a participação ativa
dos seus sujeitos (FREIRE, 1987). Este é o segundo problema ético
encontrado – exigir e conceber um processo pedagógico sem incluir a
participação ativa dos próprios conselheiros.
A capacitação deve ter a visão de todos, portanto
nada melhor do que esses grupos poderem indicar,
escolher a formatação e quem vai falar, além da
maneira de ser realizada, este é um dos pontos pela
falta de presença e principalmente a falta de
planejamento conjunto (Ata02; P01).
...houve menção de que a capacitação é de acordo
com a visão do gestor [...] (Ata02;G05).
Sob este aspecto, talvez seja interessante uma “capacitação” no
próprio processo vivenciado pelos conselheiros. Esse processo formativo
poderia auxiliar no enfrentamento dos locais onde o poder (e com ele a
opressão) está presente. Sem esse empoderamento no processo decisório
fica fácil para os conselheiros sentirem-se inseguros e desamparados,
principalmente porque a liberdade, e com ela a autonomia, é uma
conquista e não uma doação. Logo se a posição dos representantes dos
diferentes segmentos for uma posição de espera por uma emancipação,
como algo que viria exclusivamente ‘de fora’, sua inibição silenciosa só
tenderá a prosperar (FREIRE, 1987).
Neste sentido, mais que exigir capacitações “extramuros”
estabelecer um ambiente onde as informações estejam disponíveis
apresenta-se como responsabilidade de todos. Os membros do CMS que
detém o conhecimento do que está sendo tratado podem e deveriam
esclarecer a plenária. Se isso não ocorre cabe nos perguntar onde está o
vazio: em uma “formação” como pré-requisito ou na formação que ocorre
durante a intervenção? Ou seja, o que de fato deveria ocorrer: ensino
tradicional (prévio), ou formação-intervenção-avaliação?
O movimento de aprender não apenas para se adaptar às novas
situações, mas sobretudo para transformar a realidade é um dos grandes
objetivos da educação (FREIRE, 2011). A educação permanente busca
90

essas adaptações/transformações de forma continuada, de forma sinérgica


com a própria dinâmica das transformações sociais, econômicas, culturais
e, porque não, pedagógicas. O pensar crítico, o pensar sobre o fazer dos
conselheiros, entendendo as melhorias que as capacitações podem trazer
mesmo que “não planejadas”, alimentam a importância desses espaços
pedagógicos e da própria aprendizagem.
Como resultado dessa combinação ainda insuficiente e ineficiente
do incentivo do Estado e do próprio Controle Social em lutar por sua
emancipação coletiva, estabeleceu-se entre os conselheiros uma busca
individual pela mudança de sua realidade. Essa procura, mesmo que
solitária, para transpor a barreira da falta de entendimento, leva os
conselheiros a utilizarem a aprendizagem da própria práxis - aprender
com seu próprio operar, ou seja, a medida que vão frequentando as
reuniões os conselheiros vão estudando, aprendendo, capacitando-se:
Porque não tem um espaço pra formação, a gente
vai pro conselho bem cru mesmo e depende muito
da iniciativa dos conselheiros, buscar as coisas,
documentos, essas coisas, pra ter uma formação.
Ele precisa minimamente se capacitar pra poder
exercer seu papel. Porque se não... (U3).
Eu me sinto pouco capacitada pelo CMS em si, pra
que a gente consiga ter mais profundidade nas
discussões entendeu? Aí então o que que eu busco
fazer, ler, me inteirar, que que é esse SUS, o que
que é tudo isso, porque não é a minha área de
conhecimento (G3).
...a conselheira quer sempre trazer para a reunião é
a saúde mental no município [...] se for colocar
cada item do município ficariam 24 horas falando
somente sobre isso (Ata05;G03).
Pouco envolvimento do coletivo, parece ser sempre
os mesmos a falarem (DC2).
Essa busca individual pelo conhecimento, apesar de válida, fica
limitada à capacidade de percepção crítica e ao interesse individual de
cada conselheiro – levando a uma maior participação de alguns e a um
distanciamento de outros. Além disso, alguns conselheiros se limitam a
sua área já conquistada de conhecimento não conseguindo, por vezes,
ampliar essa visão e consequente discussão.
O aprendizado individual, quando destinado ao trabalho em
coletivo pode ser potencializado pelo ‘co-laborar’ e, atrelado a ele, o
91

pensar dialógico que “não pode dar-se se não entre sujeitos” (FREIRE,
1987).
[...] se tá sendo apresentado no conselho, e se o
conselho tá ali pra olhar, pra ter noção que aquilo
tá de fato de acordo, em algum momento esse
conhecimento eu tinha que ter, teria que estar ali.
[...] Eu acho que os informes que são dados, as
apresentações que são feitas, se tivesse mais
conhecimento de todos, não só de um ou outro, eu
tenho a impressão que a gente teria um nível de
diálogo maior né, uma contribuição maior (G1).
A necessidade do aprofundamento nas discussões da plenária vai
ao encontro da teoria da deliberação moral, onde o diálogo intenso na
primeira etapa do processo deliberativo é que proporcionará um maior
conhecimento a todos (GRACIA, 2014). Isto significa que os
conselheiros precisam estar 100% implicados, envolvidos e abertos ao
diálogo, mas não que haverá um conhecimento homogêneo ou simétrico
entre todos. Na realidade essa homogeneização do conhecimento nem é o
desejado, pois com ela se correria o risco do CMS perder o imenso
potencial da diversidade de seus olhares, e da possibilidade de
estranhamento dessas percepções, que levam à riqueza da troca, e ao
aprendizado em grupo. Neste sentido, um conhecimento básico dos
fatores envolvidos em cada tema seria o mínimo desejado para o CMS,
mas que poderia ser alcançado com um diálogo aberto aos
questionamentos. De qualquer forma, quando essa informação fica
condicionada somente ao indivíduo, a própria desigualdade da sociedade
se reflete na disparidade de acesso à informação, gerando mais um
problema ético a ser discutido pelo CMS – condicionar a aprendizagem
de um grupo altamente diverso unicamente à capacidade individual de
cada sujeito.
De acordo com Garrafa (2003), é natural que o indivíduo saudável,
escolarizado e treinado tenha maior chance de se aperfeiçoar na busca de
se tornar físico e mentalmente apto ao próprio exercício da cidadania do
que o indivíduo doente, e/ou com pouca ou nenhuma escolaridade. Essas
desigualdades de acesso na sociedade podem (e devem) ser refletidas em
espaços de participação social, onde se tem representantes de usuários da
saúde ao lado de profissionais e gestores. Essa diversidade que é rica para
a gestão participativa, novamente exige a responsabilidade ética do
Estado, e dos seus próprios sujeitos em tentar diminuir as desigualdades
principalmente do acesso à informação:
92

Eu penso que ele precisa pelo menos se capacitar


naquele tema, naquele conselho. Pra ter as
informações mínimas pra poder participar. O que
não é fácil pras pessoas, principalmente pros
representantes da sociedade civil (U3).
[...] porque internet parece uma coisa pra todo
mundo mas não é. A grande maioria tá fora da
internet. Então você pega uma associação
comunitária que mal tem uma sede, e as pessoas
que moram na comunidade não tem um
computador. Então eu acho que deveria ter
capacitação mais presencial, mais permanente.
Então acho que isso atrapalha um pouco o diálogo
no CMS (U4).
Os usuários participam, mas assim a participação
vai muito da articulação da pessoa. Então tem uns
que ficam mais quietos (G2).
A responsabilidade compartilhada dos sujeitos do CMS é que
ainda parece estar pouco presente nos discursos destes. A educação
bancária como forma de diminuir as desigualdades se destaca sobre outras
alternativas mais empoderadoras. Se pensarmos de acordo com Freire
(1987), entendemos que a força da transformação social não se dá por
meio da “educação” que procura “encher” os educandos com conteúdos,
como se esse processo fosse linear, unidirecional e estático, como se
educar fosse uma doação daqueles que se julgam ‘sábios’ para aqueles
que julgam nada saber. Esse olhar parece preponderar na relação entre os
segmentos, onde os representantes dos usuários são apontados como
‘aqueles que deveriam ser capacitados’, sendo esse papel por vezes aceito
pelos usuários. Este olhar ajuda a manter a relação paternalista com o
Estado, onde mais uma vez a ‘exigência’ da concessão de capacitações
torna-se o foco único da democratização da informação.
Como essas capacitações é que trariam o saber técnico (por vezes
o saber dos profissionais da saúde), parece haver uma aceitação da
posição de não entendimento do representante do usuário, que por não
entender “o técnico” (mesmo não sendo o único segmento nesta condição)
se coloca em um estado de consentimento (embora um consentimento não
autônomo). Esse velamento da falta de autonomia parece alimentar a falsa
impressão que a simples ocupação do espaço de participação já garante a
representação dos segmentos.
93

É igual pra qualquer representação lá. Destaque pra


alguns, outros ficam mais quietos, mas eu acho que
de certa maneira eles têm uma liberdade boa pra
falar assim, eu não vejo problema, assim nesse
momento, com nenhum conselheiro, mesmo os que
ficam quietos a gente consegue discutir com eles
em algum outro momento (G2).
Acho que tem um movimento comunitário aqui, as
associações de moradores aqui é uma coisa muito
forte. Não é uma coisa tão comum em outros
lugares. Você pega aí os CLS são muito
representativos também e eles tem uma
participação, eles se reúnem também no conselho.
Eles vão às reuniões, eles têm inclusive direito a
falar nas reuniões do conselho, e assim, tá se
fazendo um trabalho de ampliar a construção
desses conselhos locais [...] os usuários realmente
tão fortes... 100% eu acho difícil, mas uma parte
expressiva sim (U4).
Essa constatação da boa articulação dos usuários, também pode ter
um componente explicativo no fato deste CMS se localizar em um
município de condições sociais privilegiadas. Apesar de possuir
desigualdades socioeconômicas o município possui um desenvolvimento
maior que a maioria das cidades do país.
Outra questão bastante interessante trazida pelos conselheiros se
concentra no conteúdo das capacitações, sendo quase unânime entre os
conselheiros a necessidade de foco na capacitação técnica, e
principalmente da grande valorização desse tipo de saber:
Tem que ter capacitação pra ele, minimamente. Um
dia inteiro pra entender o que que é a secretaria, o
que que é o CMS, e qual o papel dele lá.
Politicamente você sabe o seu papel, mas
tecnicamente é mais complicado, eu falo da parte
técnica (U3).
...o conselho vai ter que abrir uma forma para que
o nível de conhecimento das pessoas, dos
conselheiros, principalmente da representação
social, esteja no mesmo nível dos técnicos, isso é
desumano, como é que as pessoas vão ter
capacidade técnica de participar? (U3).
94

Esta supervalorização do saber técnico em detrimento dos demais,


que leva à exigência de equiparar e homogeneizar os conhecimentos
existentes entre os segmentos é outro problema ético encontrado no CMS.
Quando se exige que o conhecimento do usuário se equipare ao
conhecimento do técnico se supervaloriza o saber científico em
detrimento do saber local, fazendo com o que o Controle Social perca a
sua característica de composição de diferentes saberes, desejos e visões,
que tornam a gestão participativa do SUS única na sua construção
coletiva. Essa busca pela homogeneização dos saberes inibe uma das
principais funções do Controle Social que é justamente o estranhamento
das questões propostas em plenária. Para Freire (2011) a transformação
social acontece a partir da percepção da realidade, sendo que esta não
pode se dar no nível intelectualista, mas sim na ação e na reflexão. Neste
sentido mais que um saber técnico o CMS necessita de um saber para a
realidade local, construído no seio do seu próprio coletivo.
A questão talvez não seja a busca da homogeneização do saber
técnico, mas a desconcentração do poder, principalmente do poder
decisório, associado a esse tipo de conhecimento:
Então é muito heterogêneo para um determinado
contexto e a homogeneidade deveria estar prevista
no conhecimento do que eu estou fazendo ali, então
eu acho que essa é a principal questão. Esses
embates eu acho que poderiam ser amenizados se
todos tivessem com um nível de conhecimento
semelhante né, parecido em relação ao que é
apresentado ali (G1).
A atuação nos conselhos gestores deve ‘desmonopolizar’ o saber,
e com ele o poder, tornando os CMS realmente espaços de diálogo e
articulação entre os diferentes atores sociais. Essa desmonopolização vai
pressupor a necessidade de educação permanente e formativa
(WENDHAUSEN, 2006).
Um tipo de necessidade de conhecimento unânime entre os
conselheiros entrevistados foi o entendimento do que é e pra que serve o
controle social. Essa questão vai ser discutida mais a frente (item, 6.2.6),
mas já revela que existem conhecimentos que podem e devem ser
horizontalizados entre os conselheiros, mas que não devem fazer com que
os conselheiros esqueçam a importância da sua composição diversa,
principalmente no que se refere ao saber local dos usuários, capaz de
entender e trazer para o diálogo a necessidade social (GUIZARDI,
CAVALCANTI, 2010):
95

...o usuário não tem que entender de legislação, ele


tem que entender da demanda da comunidade dele,
se você não vai lá pra ver o que está acontecendo
você discute em tese (U4).
Eu acho que eles trazem a realidade da ‘ponta’
importante. Porque, sobre o ponto de vista de
gestão, muitas vezes, por mais que a gente esteja
atento né, e seja esse o papel da gestão, nem sempre
aqueles pontos que o usuário sente, a gestão
enxerga, e nem sempre o que o usuário precisa, o
gestor consegue responder. Então eu acho de suma
importância (G1).
Neste sentido, as capacitações podem ser necessárias à medida que
proporcionem um entendimento prévio mínimo do papel do CMS e do
Controle Social e não na busca do aprofundamento de todos os assuntos,
pois estes são infinitos dentro do espaço de participação social. Almejar
um conhecimento do papel e das reponsabilidades do ‘ser conselheiro’
torna-se fundamental, proporcionando para aqueles que decidem escolhas
conscientes. Para Freire (1987) o reconhecimento da realidade comum,
pode estabelecer atuações práticas que visem, de uma forma crítica, a
busca por transformar a realidade particular.
O entendimento da educação e com ela a formação do indivíduo
leva à percepção de que realmente ninguém tem o ‘poder’ de libertar
ninguém, e que também não é possível se libertar sozinho, que esse poder
de transformação e libertação está na comunhão entre os homens e
mulheres (FREIRE, 1987, p. 54). O pensar e agir consciente não pode ser
transferido, delegado à outrem, ou decido na solidão, eles estão
diretamente ligados ao coparticipar, o ‘co-pensar’ (FREIRE, 2011;
GRACIA, 2014). Para tanto, metodologias de valorização do saber do
usuário, como o Método em Roda proposto pela cogestão (CAMPOS,
2000), podem melhorar as relações de diálogo e diluir as possíveis
hierarquias que estejam instituídas na relação entre os segmentos,
transformando o próprio CMS em um espaço pedagógico de
aprendizagem. Nesta direção, também parece fundamental que as
reflexões bioéticas ampliem a capacidade crítica dos conselheiros,
aclarando o caráter formal da igualdade dentro da democracia instituída,
mas que na realidade é limitado e constantemente anulado pela
desigualdade econômica (SARMENTO, 2012)
Segundo o MS, experiências de capacitação de conselheiros para
atuarem de forma empoderada nas reuniões dos conselhos, têm gerado
“avanços qualitativos no exercício da função” (BRASIL, 2002a, p. 7).
96

Silva (1996) destaca que seria possível e interessante estimular esse


espaço de participação social dentro dos Conselhos de Saúde como
componente educativo, pois à medida que os usuários passam a ter
espaços para diálogos, seus processos decisórios tornam-se mais
embasados, estabelecendo o desenvolvimento de um aprendizado
contínuo.
Um questionamento levantando pelos conselheiros, é que superada
a barreira da falta de capacitação/formação, a questão da alta rotatividade
dos conselheiros ainda persistiria como um possível entrave para o
desenvolvimento pedagógico do conselho:
Mas é que a cada dois anos entra gente nova, então
toda vez que entra gente nova, tem que ter
capacitação, nem que seja um único cidadão novo
que entra (U3).
[...] até isso precisa melhorar. É muito pouco
tempo, porque assim quando as pessoas começam
a entender, troca, porque é complicado entender
saúde, a gente já tem dificuldade, agora imagina
uma pessoa que não é da área [...] (G2).
[...] na verdade, a capacitação tem que ser
permanente. Você tem que ter uma política de
capacitação pros conselheiros. O que ocorre é que
nós temos uma alternância muito grande, porque
quem tem o assento é a entidade, então o nome do
conselheiro é responsabilidade da entidade, mas se
você dialogasse, se a gestão dialogasse com a
entidade, discutisse uma política pra ver se pelo
menos em uma gestão de permanência do mesmo
conselheiro, ou que fosse trocado o titular o
suplente permanecessem durante todo esse tempo,
e aí se faria uma capacitação pros dois... eu acho
que isso daria maior qualidade ao CMS, sem
dúvidas. Conhecimento sempre dá maior qualidade
né... (U4).
Trazer essas questões para o diálogo é fundamental para o
aprimoramento das políticas públicas, pois estas podem e devem se
desenvolver com base nas vivências das suas experiências. Este poder de
mudança das próprias políticas estabelecidas a partir das vivencias da
participação democrática é o que prevê a Cogestão - os espaços coletivos
tornam-se estratégias de superação das capacidades assimétricas de
97

decisão, compartilhando-se o poder e publicizando as instituições


(GUIZARDI, CAVALCANTI, 2010).
Um último problema ético encontrado, referente ao tema da
capacitação nos CMS, está nessa dificuldade de democratizar o poder
instituído, que por vezes fica concentrado naqueles que detém a maior
quantidade de informação, levando a decisões impostas e de forma não
compartilhada por todos:
é frequente, um conselheiro não compreender um
dado, isso acontece muito, porque as vezes a forma
como é apresentado é a forma como a gestão quer
apresentar o resultado, a gente tem que ter esse
entendimento, quem tá apresentando ali é uma
pessoa que está respondendo por aquela área
politicamente, então ninguém apresenta dado que
vá se prejudicar, não existe isso, no máximo existe
um dado que vai gerar um pouquinho de conflito,
ou dado que “ah gente tem que melhorar” [...] mas
o conselho não quer ver só isso, o conselho quer
ver o real, aquilo que a gente tem (G3).
Diminuir essa concentração de poder por meio das capacitações é
primordial, porém, como visto, não tem sido bem-sucedido,
principalmente porque se delega ao próprio grande concentrador de
poder, como único detentor dos meios para a educação permanente. Se
essa estrutura de poder é obra dos homens, a sua transformação também
deverá ser obra desses homens, logo, cabe a estes serem sujeitos da
transformação e não objetos dela (FREIRE, 2011).
Mesmo que a busca por diminuir a dificuldade de entendimento,
causado pela diversidade de saberes, formações e culturas, for o foco de
todos os envolvidos, ela vai continuar homogeneizando olhares quando a
“troca” de conhecimentos for unidirecional. É como se o saber se tornasse
prescritivo, o conselheiro deixa de decidir por si, e passar a decidir para
outros, e em vez de se educar para a autonomia passa a se disciplinar uma
dependência. O grande risco dessa homogeneização de olhares é a perda
da diversidade do CMS, que é rica, tanto para a cogestão, como para a
deliberação moral.
...a gente modela eles pra pensar de um jeito, tem
tudo isso... Acaba que eles deixam de pensar como
usuário talvez? Eu acho que sim... porque é
importante... se não eles não conseguem
acompanhar muitas discussões. Eles têm que
98

entender para poder acompanhar, por isso que eu


não sei como organizar (G2).
Neste sentido caberia aos conselheiros, principalmente da gestão,
compartilhar mais, desmonopolizando saber e poder. Sob este aspecto as
capacitações para realmente serem permanentes, devem acontecer no dia-
a-dia do CMS, pois assim poderiam contemplar conteúdos diversos, para
além do técnico, deixando de ser feita “para”, mas “com” o CMS.
A democracia brasileira reforçada nos seus moldes participativos
ajuda a sustentar a noção de direitos que o indivíduo exerce no convívio
social, bem como seus deveres. Para tanto se fortalece a necessidade de
buscar a autonomia desses cidadãos, fugindo do papel submisso que o
paternalismo do Estado oferece (MALUF, CARVALHO, DINIZ, et al.,
2007). Situar a Bioética como uma forma reflexiva de transpor esse
campo de poderes, informações e diferenças, auxilia na busca de fatores
que proporcionem condições sociais e políticas para enfrentar as novas
possibilidades de participação e com ela as, não tão novas, expressões da
injustiça e da desigualdade (SARMENTO, 2012).
O pensar e agir ético tem o potencial de auxiliar os conselheiros a
tomarem consciência do seu próprio papel na busca por autonomia –
enquanto capacidade de tomar suas próprias decisões (MALUF,
CARVALHO, DINIZ, et al., 2007). O ato autônomo também pressupõe
haver liberdade de ação, requerendo uma aptidão do indivíduo para agir
conforme as escolhas feitas e as decisões tomadas (MUÑOZ, FORTES,
1998 apud MALUF, CARVALHO, DINIZ et al., 2007). Essa aptidão
passa pelo acesso a um conhecimento adequado. Este conhecimento não
se refere a um conhecimento técnico específico, mas sim na medida que
existe a compreensão: da natureza da ação; das consequências previsíveis
e dos resultados possíveis da execução, ou não, da ação (FADEN,
BEAUCHAMP, 1986 apud MALUF, CARVALHO, DINIZ, et al., 2007).
Sob este olhar o próprio refletir-agir do cotidiano do CMS torna-se
componente da possibilidade de autonomia dos conselheiros. Além do
conhecimento exigido, a busca de uma formação autônoma é um aspecto
fundamental para a transformação de indivíduos em agente ativos, sendo
alguém que decide com intencionalidade e é capaz de enfrentar
mecanismo externos de opressão (FADEN, BEAUCHAMP, 1986 apud
MALUF, CARVALHO, DINIZ, et al., 2007).
Além disso, o fortalecimento do indivíduo na busca por sua
autonomia torna-se necessário entre os conselheiros na medida em que os
CMS também são espaços de profissionais da saúde (com um histórico
99

cultural de paternalismo) e que decidem por um coletivo, exigindo uma


reflexão contínua e o diálogo permanente entre os conselheiros.
A garantia disso (se referindo ao espaço para o
segmento dos usuários) não quer dizer que haja
uma garantia de discussão, uma garantia de outras
coisas assim... mas o fato deles estarem lá
representados já é um grande passo. Então se hoje
não se colocam, talvez é por aquilo que eu te falei
antes, que a gente não forma as pessoas. E não é
informar, é formar mesmo, porque você se forma
conselheiro (G3).
...o que eu acho que mais fez diferença no CMS, é
que ao longo das reuniões, dentro das câmaras
técnicas, nós vamos nos capacitando. Eles me
ensinam e eu ensino pra eles, é uma troca né. E isso
faz, quando alguém pergunta, não no intuito de
“aquilo ali tá errado”. Mas eles perguntam como
funciona isso, como funciona aquilo... é uma
educação permanente. Essa é a formação do CMS
(G2).
Sob estes diversos aspectos a dimensão pedagógica pode
transcender o vazio da educação permanente no CMS para além da
divulgação de informações, sendo necessária uma visão cognitiva do
processo, baseada em metodologias, teorias e epistemes que alimentem o
aprendizado por meio das próprias experiências, individuais e coletivas,
possibilitando um aprender com o seu próprio operar (SILVA, 2008).
Neste mesmo olhar caminham as contribuições de Campos (2000) com o
fortalecimento do sujeito e da democracia institucional por meio de
métodos de cogestão. Essa busca do educar-se no exercício decisório
coletivo aumenta a capacidade deliberativa dos seus participantes,
preparando-os para o exercício da deliberação moral.
Com um olhar já à frente, para além da capacitação pontual dos
conselheiros, a 14ª Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 2012a)
sugeriu um processo de formação de toda a sociedade brasileira. Seu
intuito foi, além do aumento quantitativo, a melhoria qualitativa do
exercício de cidadania. Dentre as recomendações da 14ª Conferência
estão a instituição de conteúdos curriculares relacionados com as políticas
públicas (SUS, cidadania, participação da comunidade, controle social,
educação em saúde, entre outros), no ensino fundamental, médio e nos
cursos de graduação de universidades públicas e privadas, visando a
100

conscientização sobre direitos e deveres perante o SUS e a importância


da participação popular e do Controle Social (BRASIL, 2012a).
A separação entre educação e política (ingênua ou astutamente
consolidada) não é só irreal como perigosa. Pensar a educação sem ser
voltada para a realidade da cidade é reduzi-la e não utilizar seu potencial
transformador (MOLINA, 2011). Esta tentativa de reaproximar educação
e política, como nos moldes da Paidéia grega, reascende o potencial
participativo da democracia, e pode ser uma forma de, a longo prazo,
diminuir a dependência do Controle Social do SUS das suas tão almejadas
capacitações.

Linguagem, comunicação, diálogo, deliberação: um processo


ascendente.

“[...] tem espaço para o diálogo, isso não significa que todo mundo
utilize esse espaço... mas espaço para o diálogo tem” (U4).

A proposta de promover um diálogo entre os diversos setores do


poder público e da sociedade civil representa um grande desafio, um deles
é o da comunicação visto que, cada um dos setores da sociedade
envolvido nesse diálogo tem um vocabulário próprio, seja técnico-
científico ou não (BAPTISTA, 2008). Essa barreira para o diálogo
pautada na dificuldade de entendimento foi debatida no item anterior, o
que se propõe aqui é perceber e explorar a dimensão do diálogo dentro na
sua realidade subjetiva – do querer deliberar realmente. O processo de
comunicação até chegar na profundidade deliberativa vai envolver
diversos fatores, dentre eles: as relações de poder e interesse; o
entendimento do que está sendo posto; a necessidade de escuta; a abertura
para a exposição de opiniões, o reconhecimento do outro como legítimo
no diálogo e a presença da construção coletiva entre os conselheiros.
[...] a minha opinião às vezes diverge da dos outros
conselheiros. Mesmo porque às vezes não há o
entendimento de toda a situação, por todos, né? Aí
é onde existem esses conflitos. É como eu digo: o
entendimento da gestão não é o dos conselheiros,
aí acontecem esses atritos (U1).
Este tem sido um dos obstáculos do CMS - transpor a barreira dos
diferentes saberes, sem homogeneizar os conteúdos ao nível das
especificidades, mas criando um domínio linguístico, ou seja, a
101

“construção coletiva de conceitos que possuem uma mesma semântica


para as pessoas que participam” (SILVA, 1998, p.148), onde todos se
compreendem no nível da comunicação.
...os técnicos da área, eles têm que ser capazes de
transformar aquela linguagem numa linguagem
acessível a todos os conselheiros porque ali nós
temos pessoas da comunidade, que são
perfeitamente capazes de compreender [...]. Tem
que ser compreensível a todos e essa desculpa de
que “não, vocês não sabem porque vocês não são
técnicos”, não serve porque os dados são públicos,
né? (U4).
...a pessoa que apresenta as vezes apresenta como
se fosse óbvio, mas ela tem que entender que tem
representantes ali de locais que nunca lidaram com
aquele tipo de planilha, aquele tipo de número.
Então tem que ser uma coisa mais facilitada sim,
mais didática, digamos assim, que consiga tirar
uma reflexão daquelas pessoas (G3).

Pautadas no modelo positivista de educação, as exposições de


determinados conteúdos que deveriam trazer maior clareza ao diálogo dos
conselheiros, acabam se reduzindo apenas à eficiência técnica, não
estimulando a consciência crítica e a curiosidade criativa e indagadora,
essenciais à cidadania que reconhece a realidade como algo possível de
ser transformado (FIGUEIREDO, CAMPOS, 2014). Muitos dos
conselheiros utilizam apenas o momento da reunião para se aprimorarem
nos assuntos do CMS, se a exposição do conteúdo e de todos os seus fatos
não é compreensível, muito pouco se conseguirá aprofundar nas
discussões posteriores. Essa questão das apresentações é tema recorrente
nas reuniões sendo que muitos conselheiros já vêm exigindo essa tradução
dos termos mais específicos, fato que vem sendo buscado e alcançado em
alguma medida pelos expositores, embora ainda distante do ideal.
...a apresentação, ela é técnica, não tem como não
ser, a gente diminuiu esse entrave técnico,
deixamos ela mais assim pra leigo. Outra coisa,
tecnicamente quem vive com aquilo ali tem um
vocabulário, quem não convive com aquilo... então
esse vocabulário tem que ser traduzido. (U5).
102

O conselheiro informa que no orçamento não


aparece o projeto de manutenção dos CAPS porque
ficaria num nível muito detalhado (Ata05;G1).
Coloca que é a segunda apresentação [...] que vê e
foram praticamente idênticas [...] quando a
informação é enrolada e não objetiva com diversas
explicações, querendo ou não passa um ar de
desconfiança, de como se a informação não fosse
completa (Ata05;T4).
Uma das principais ênfases do conceito de Cogestão é a
democratização do poder (GUIZARDI, CAVALCANTI, 2010). Neste
sentido, há um distanciamento deste gerir compartilhado quando apenas
um segmento, como no caso – a gestão, controla as informações, as filtra
ou suprimi conforme seu entendimento (este tema será aprofundado nos
itens 6.2.1, 6.2.2 e 6.2.3). Existe uma necessidade legal das exposições
por parte da gestão, como é o caso das prestações de contas trimestral e a
proposta orçamentária anual da saúde (BRASIL, 2003). O problema ético
aqui identificado encontra-se na supressão de informações no processo
comunicativo ou pela omissão daqueles que detêm a informação, seja por
dificuldades de traduções técnicas ou mesmo por questões de interesse e
poder.
[...] a gente tenta traduzir isso para os usuários.
Tanto que quando vai alguém da nossa secretaria
que eu vejo que ta falando de uma forma mais
difícil eu procuro dar umas dicas, eu olho a
apresentação antes e procuro colocar, primeiro
porque vai surgir polemica [...]. Então a gente tenta
sempre dar umas dicas pra que as pessoas tomem
cuidado na hora de falar com os conselheiros pra
que eles entendam o que a gente ta falando. Mesmo
sendo técnico tudo é possível de ser explicado,
então o que pode ser suprimido pra não atrapalhar
o entendimento a gente tenta suprimir (G2).
...eu considero até uma falta de respeito, porque
qualquer um que vai apresentar esse trabalho tem
que ter esse cuidado, de mostrar pro outro, se fazer
entender, chegar no entendimento que se tem. E aí
quando tens um conselho ele tem uma variedade de
pessoas com formações diferentes, com
concepções diferentes, então você precisa chegar
nessas pessoas. E quando você apresenta daquele
103

jeito, que é cheio de sigla, cheio de coisas, você não


quer chegar nesse cara, então você nem quer, nem
dá o direito dele ser realmente participante na
discussão, e isso pra mim já é bem problemático
(G3).
[...] as pessoas veem tanta dificuldade e as vezes
quando a gente vai lá ver os dados não existe a
dificuldade nos dados. Então isso é difícil sabe, o
papel do conselheiro é mediar isso, justamente
tentar entender, porque aqui não existe e aqui o cara
tá apontando que tem, então acho que pro conselho
o principal é isso (G3).
De acordo com Gracia (2014) um primeiro momento do processo
dialógico, que pode vir a envolver questões morais - aonde ele tornar-se-
ia deliberativo, deve trazer a plena exposição de todos os fatos envolvidos
na questão a ser dialogada (no processo dialógico), ou deliberadas (na
dialética que irá envolver para além dos fatos, os valores e deveres). Se
essa exposição total dos fatos envolvidos não ocorrer não é possível para
os conselheiros dialogar em profundidade, com a autonomia de quem
decide tendo ciência dos pontos envolvidos. Cabe aqui perguntar a quem
interessa essa supressão de informação que se torna uma grande barreira
para o Controle Social. É importante que os conselheiros consigam
problematizar essa questão, tendo consciência que de nada adianta a
criação institucional dos espaços de participação social se não houver por
parte da sociedade uma constante pressão e monitoramento, capaz de
continuar o processo de democratização deste poder historicamente
centrado no Estado.
Essas barreiras linguísticas e comunicativas dificultam o
estabelecimento do diálogo entre os conselheiros, diminuindo a
possibilidade de estruturação de uma realidade própria deste grupo, onde
a facilidade de entendimento mútuo viabilizaria a construção coletiva
(SILVA, 1998). Essa não estruturação de uma realidade conjunta, ou o
estabelecimento de diferentes percepções de realidade entre os
conselheiros, pode ser constatado nas falas dos gestores responsáveis por
expor grande parte das informações e dados dentro do CMS:
...se eu mudei muito é porque eu tive que aprender
com eles a melhor forma, eu não posso apresentar
pra mim eu tenho que apresentar pra eles, eu tenho
que falar de um jeito que eles entendam, e como é
o jeito que eles entendem? Então o conselho foi um
ator extremamente importante para que se tivesse
104

toda essa mudança que hoje a gente tem [...] e dessa


mudança cultural de transparência. A gente sempre
falou com o CMS não numa posição de fiscalizador
e de cobrança, mas na posição de construir junto, e
essa que eu acho que é a diferença (G2).
É interessante destacar que de fato ocorreu uma melhora (e neste
ponto, unânime entre os conselheiros), na forma de apresentação dos
dados da secretaria, num sentido de diminuir a barreira da linguagem,
principalmente técnica. De fato, muito se conquistou, inclusive pelas
diferentes políticas de incentivo ao Controle Social que vem sendo
implementadas (como a PNH e o ParticipaSUS), mas ainda existe uma
série de dificuldades ao diálogo e a construção coletiva dentro do CMS:
É que já vem tudo muito marcado, o orçamento
vem de lá, não é discutido muito... ah se pudesse
discutir coisas como “ah esse ano nós vamos
investir mais nos profissionais” entendeu? mas eu
não senti que essa discussão eu possa ter lá. (U3).
Eu acho que porque já vem pronto, entendeu? Não
tem a construção que deveria se ter [...] Não é vindo
com uma coisa pronta e “é assim tá bom?”, “ah não,
põe uma vírgula ali que fica melhor”, “ah tá ótimo”
e pronto acabou... [...] Eu acho que tem que ter mais
dinâmica (T1).
[...] assim eu não sei, no outro conselho que eu
participo não é assim, a gente não tem isso de
aprova ou não aprova ali. A gente busca as
evidencias, vê a situação, mas é claro é outra
dinâmica de Conselho (G3).
Apesar de alguns conselheiros sentirem que a construção de ideias
e ações dentro do CMS ocorre de forma coletiva, muito do que foi
constatado nesse estudo indica que a maioria dos temas postos em pauta
para serem definidos dentro do CMS já vem de alguma forma estruturada
e bem encaminhada. Esta não participação dos conselheiros desde a
concepção das ações e durante seu desenvolvimento, gera uma sensação
de não pertencimento ao que está sendo proposto, e uma consequente não
adesão (SILVA, 1998). O se sentir pertencente é que pode gerar a
consciência de ter responsabilidades e obrigações de lealdade para com
essa comunidade (CORTINA, 2005b). Se esse pertencimento não ocorre,
dificilmente os cidadãos se sentirão motivados a interferir no curso da sua
105

polis, produzindo-se com isso um espaço público repleto de


representantes que se sentem incapazes e desanimados.
Para Gracia (2014), o processo verdadeiramente deliberativo
necessita que os seus atores entendam que seu ponto de vista é, e sempre
será, parcial, e que para aumentarmos a prudência de nossas ações
necessitamos aumentar as perspectivas e olhares sobre aquele ponto em
questão, ou seja, necessitamos de outros participantes no processo. Esta
necessidade de abarcar diferentes olhares se aplica impreterivelmente
para as questões públicas, principalmente por envolverem diferentes
valores sociais e individuais e diferentes deveres políticos, econômicos e
culturais. Assim identifica-se mais um problema ético deste CMS – a não
construção coletiva, tirando o caráter deliberativo deste espaço público,
tornando-o muitas vezes um conselho consultivo.
Outra questão levantada pelos conselheiros foi que, mesmo quando
há a possibilidade de deliberação e construção coletiva, os entraves no
diálogo voltam-se para a dificuldade da escuta ativa e do reconhecimento
do outro como legítimo na relação, levando à barreira das imposições
sobre as construções:
...enxergar nos outros conselheiros, independente
se são gestores ou não, que todas as visões sobre a
mesma coisa são importantes. Você tem que se dar
essa oportunidade, de ouvir todas as visões sobre
determinado assunto. E as vezes não é isso que
acontece né, porque tem conselheiro, do governo e
da sociedade civil, que só quer que a visão dele
prevaleça, e acabou, indiscutível aquilo, e que se
alguém coloca outra posição aí já viu... (U4).
Já vi pessoas discutindo por quererem impor uma
opinião, né o seu ponto de vista, de que o outro é
contra (G1).
Essa forma de comunicação que trabalha na tentativa de
convencimento e imposição de opiniões não é dialógica, não servindo
para espaços colegiados e deliberativos como o CMS, pois além das
decisões serem mais prudentes na medida em que conseguem aproximar
diferentes visões (GRACIA, 2014), o pensar ético ao nível do indivíduo
não se baseia na inflexão do pensamento, mas na curiosidade e no
coparticipar no mundo (FREIRE, 2011). Neste sentido a negação do
diálogo pela imposição de opiniões torna-se um problema ético bastante
marcante, principalmente por parte daqueles que detém algum tipo de
poder:
106

Presidente coloca que estas questões sejam


discutidas na Mesa Diretora [...] a conselheira
coloca que quem deve decidir é a Plenária do
Conselho [...] Presidente coloca que podem haver
momentos conflitantes entre a Câmara Técnica e a
Mesa Diretora, ainda diz que se as duas se unissem
estariam muito bem (Ata05).
...deu pra entender que nós conselheiros não
estávamos aceitando qualquer coisa, nós fomos
punidos exatamente porque não concordávamos
com certas coisas. Aí ele (o presidente) passou a
deixar de fazer certos intuitos de modificar aquilo
que estava assim, querendo mudar a regra do jogo,
querendo impor ao conselho (U1).
...ele interrompia toda vez. Ele cortava a fala dos
conselheiros não deixava eles concluírem, ele tem
que aprender né, num processo participativo,
colegiado você precisa aprender a ouvir, eu acho
que o nosso presidente lá, pela minha avaliação
hoje, ele não sabe ouvir, ele quer resolver a pauta
que ele traz pro conselho, aí contrariou ele já viu...
[...] ele não gosta de divergências, se puder evitar
ele vai evitar a qualquer custo, esse é o sentimento
que eu tenho com relação à esse conselho, a essa
presidência do conselho (U3).

Para que ocorra um diálogo que para além da lógica, consiga


penetrar no mundo da dialética (da tese, antítese e síntese), faz-se
necessário que seus participantes reconheçam uns aos outros como
legítimos nesse caminhar construtivo (SILVA, 1998). De igual forma não
podem existir mudanças efetivas onde não ocorrem constantes reflexões
e intervenções, possibilitando a capacidade de mudanças individuais, de
pensamento e prática (FIGUEIREDO, CAMPOS, 2014).
A descentralização do poder, principalmente do poder que se
concentra nas mãos do presidente passa pela própria capacidade de
enfrentamento dos conselheiros. Se esse enfrentamento não ocorre o
espaço do CMS fica fadado a diálogos inibidos e decisões induzidas. A
construção de relações baseadas no respeito e que têm como método o
diálogo necessita estar apoiada no compartilhamento do poder e
desmonopolização do saber (FIGUEIREDO, CAMPOS, 2014). Essa
relação horizontalizada, com autonomia de pensamento e liberdade de
107

expressão de opinião parece ocorrer ainda de forma frágil, chegando por


vezes ao nível da agressão e opressão:
...o secretario levantou a voz pra ele e ele levantou
a voz para o secretário, muito rispidamente. Outra
discussão de alguns anos atrás... alguns anos atrás
nos tínhamos muitas discussões. O ex-secretário
era uma pessoa muito difícil, muito difícil... (U2)
Ah teve uma vez que o secretário tacou o sapato na
minha cabeça, só não me acertou porque eu desviei
[...] Os outros os conselheiros continuaram tudo
igual, começaram a rir, e eu fiquei na minha, e a
gente foi pro Ministério Público, ai houve outras
situações, eu tomei processo... aí ele disse que eu
tinha desacatado ele, porque ele era o secretário
quem eu achava que era... afinal, de contas se ele
diz que pedra é pedra eu não posso questionar, a
minha função é ser conselheira, e é exatamente aí
que eu não concordo, se eu tô vendo que a pedra
não é pedra é um pau, eu não vou dizer pra ti que é
só porque tu quer.. (T2)
Quando as emoções nos invadem não é possível buscar uma
decisão prudente, sendo necessário esperar pelo reequilíbrio emocional
(GRACIA, 2014). Essas discussões em que as emoções se sobrepunham
ao racional, chegando ao nível da agressão verbal ou até mesmo física,
negando qualquer tipo de possibilidade de diálogo, foram relatos de
gestões anteriores. De acordo com os conselheiros houve no CMS uma
evolução em termos de respeito e busca de um ambiente emocionalmente
favorável ao diálogo, embora ainda persista a opressão e a inibição das
discussões, que não raramente, levam ao silenciamento de grande parte
das opiniões, em um espaço onde o poder não é horizontalizado. Na
vivência coletiva temos que ser capazes de escutar os outros e entender
que eles podem verdadeiramente nos ajudar na busca pela melhor decisão
(GRACIA, 2014).
[...] nunca aconteceu comigo assim, de algum tema
não ser esclarecido ou de criar qualquer tipo de
conflito ou de quando eu fosse me colocar soasse
aquele ar de “ah você de novo”. Mas eu já vi
acontecer com outros conselheiros sabe... e eu vejo
assim que quando as pessoas são bastante é.... e não
é só a crítica pela crítica, e não é ser só crítico, mas
observadores dos meandros mesmo de uma
108

reunião, as vezes isso não é visto com bons olhos...


(G3).
Olha, eu acho que todos têm direito à palavra ali
quando são inscritos, mas nem tudo que é dito é
respeitado [...] Eu vejo que quando é uma coisa que
tem mais gente que está concordando com quem
está exposto, há um movimento de defesa. Ou
quando não, quando aquela pessoa acaba ficando
meio que sozinha na discussão, há um
silenciamento. Há um silenciamento. E quando o
nível da coisa toma um vulto maior, ou seja um
nível de defesa maior em relação a um conselheiro
eu acho que a hierarquia se sobrepõe: “deu,
ninguém mais vai falar sobre isso, está encerrado o
assunto”. Talvez pra não chegar num nível de
conflito maior. Mas eu não sei se essa é a forma
mais correta de resolver um conflito (G1).
Interessante destacar que esse movimento de “defesa” de uma
opinião torna-se rico em um ambiente em que as pessoas tentam buscar,
a partir de diferentes olhares, alguma forma de decisão compartilhada. De
acordo com Gracia (2014), as decisões que envolvem mais do que fatos,
valores morais, não exigem necessariamente um consenso entre todos os
participantes, visto que trabalham com mais do que somente uma resposta
para o problema. Encontrar essas diferentes respostas para determinados
problemas exige muita deliberação e uma lógica polivalente. O problema
é que na busca da decisão ‘verdadeira’ (como se fosse única e certa) as
pessoas acabam trabalhando na lógica bivalente da verdade e do erro
(GRACIA, 2014). Neste sentido o que geralmente acaba ocorrendo é a
decisão à base do voto, que leva à supressão de uma minoria, pela maioria.
...a votação eu acho antidemocrático: “permaneça
como está”, pronto votou. Pra gente, até pro gestor
é bom, vou te falar, pro gestor é.... é até difícil falar,
porque eu estou numa posição de gestor, mas pra
gestão é tranquilo, mas eu não sei, não é um
mecanismo... permaneçam como está então
acabou, votado. Não sei, tinha que ser um negócio
de consenso... discutiu antes, já discutiu tudo, mas
e aí vai pra votação. Gestor sempre vai perder,
sempre vai perder, ele é minoria. Tem coisa que a
gestão bota que não é legal, eu sei disso, né não vou
dizer... a gente tenta fazer tudo o melhor possível,
mas sei lá, as vezes eles consideram que não é uma
109

coisa adequada, ou por alguma questão política.


Então eu acho que o método de votação não é legal,
não tenho ideia de como fazer diferente, só sei que
não é bom (G2).

Essa visão de um representante da gestão mostra o desconforto


pela votação justamente pela gestão ser minoria, o que comprova a
insatisfação das minorias quando a decisão é a base do voto. A questão
que o conselheiro destaca é a forma como se procede a votação – “os que
estão de acordo permaneçam como estão”, e pronto está votado? Esta
prática não estimula o diálogo, mesmo porque não fornece o tempo
necessário para a discussão. Cabe aos conselheiros refletir sobre essa
prática, pois o problema não está nela ou na votação, ambas são reflexos
do modus operandi do CMS. Qual é a intenção de ser assim? Essa prática
é intencional? É desconhecimento de outras formas? Há desinteresse em
uma forma que promova o diálogo e quem sabe até deliberação? Essas
reflexões deveriam ser compartilhadas pelos conselheiros como forma de
evolução de suas atividades internas.
Um contraponto a fala anterior é a visão de outro conselheiro, que
se coloca numa posição favorável a uma maior constância nas votações:
[...] num espaço como aquele, eu acho que a gente
precisaria debater mais, e colocar mais em votação
alguns pontos críticos. Parece que é um tabu, já tem
uma sistematização de como funciona [...] eu que
tô um ano aí eu vejo que pouca coisa entrou em
votação. [...] porque daí entra a discussão, fazem as
falas e no fim entra em consenso e pronto. Não é
direcionado, é discutido e pede a manifestação dos
presentes, mas não tem aquela dinâmica de ir pra
votação, é mais discursivo. Eu gostaria que fosse
mais debatido e se tirasse um consenso. E
pergunta-se se está todo mundo de acordo [...] é
meio sabonete assim, passa discute, fulano de tal
fala uma coisa e ninguém pede, “ah eu quero que
vote”... (T1).
Ao que todos concordam e a proposta é levada à
votação, sendo aprovada por unanimidade (Ata01).
A votação parece só ser pedida pelo gestor quando
este não consegue impor sua opinião logo de início
(Memo02; Ata04).
110

A dificuldade percebida por esse conselheiro está justamente neste


‘consenso’ não aprofundado, de exposições e colocações diferentes, por
vezes divergentes, e que não são exploradas para uma verdadeira decisão
coletiva - um consenso que não é verdadeiro, pois se fosse seria melhor
que o voto. Como não há consenso real aqueles em maior número desejam
a votação, ao contrário dos que estão em menor número. Talvez pelo
próprio ambiente hierárquico do CMS chegar à votação seria uma
conquista para este conselheiro, pois ao menos haveria a chance de não
ser a opinião da gestão a prevalecer. Assim a votação como forma de
decisão é outro problema ético do CMS que precisa ser dialogado, pois se
por um lado não há consenso de fato pois não há um verdadeiro diálogo,
mesmo com a votação, pelo próprio método em que é conduzida, acaba
muitas vezes inibindo possíveis formas de expressar opiniões. De fato,
em um conselho deliberativo, a votação poderia ser o último recurso,
nunca o padrão.
Uma grande dificuldade para o diálogo construtivo, indicada pelos
conselheiros, foi a questão do pouco tempo para as discussões em pauta,
e mesmo o pouco tempo para a análise dos temas em pauta:
...a gente iniciou uma briga entre aspas, algumas
discussões mais ásperas sim, mas alguns embates
de que nós não podíamos aprovar as coisas com
pressa. Só é possível aprovar isso com discussão
(U2).
...eles vão lá e apresentam no dia e o cara não
recebeu nada antes, e aí como que você vai votar?
Como que você vai aprovar? Se não recebeu pra
poder analisar [...]Aí ele vai lá apresenta um
powerpointizinho e pronto? (U3).
...propõe alteração de pauta sugerindo que todos os
itens [...] sejam substituídos pela apresentação
LOA, tendo em vista que tal apresentação, tem
prazo legal [...] e mais relevante que os demais
itens a serem apresentados na pauta (Ata08).
O fato de só ter uma reunião por mês é pouco, você
não consegue debater no tempo necessário [...]
enfim no final sempre acaba se aprovando né,
porque senão não vai pra frente e você também não
quer empacar, você quer que as coisas fluam né. Aí
fica nesse empasse (U4).
111

Sem dúvida a questão do pouco tempo para o diálogo e a tomada


de decisão, muitas vezes aliada à urgência legal desses pareceres, consiste
em um problema ético, principalmente nos momentos em que as decisões
envolvem questões morais. De acordo com Gracia (2014) trabalhar com
um tempo bem manejado é fundamental na deliberação moral, pois
permite encontrar cursos de ações que muitas vezes são melhores que os
decididos até o momento. Por vezes é o tempo que permite clarear muitas
questões e até resolver outras.
Uma saída para essa falta de tempo encontrada pelo CMS foi a
criação de uma Câmara Técnica (CT).
...a câmara técnica não tem poder de deliberação,
mas o que acontece, quando o assunto é muito
controverso ou ele é muito extenso, a câmara
técnica discute, porque a câmara técnica é menor,
aí ela discute aquele assunto e leva na reunião. É
um certo filtro né, tem uma relação de confiança
porque a câmara técnica é o conselho né (U4).
Discutimos abertamente todas as situações, e os
técnicos são chamados pra apresentar tecnicamente
tudo antes de chegar ao conselho. Não chega mais
no conselho se não passar pela câmara técnica. E ai
a discussão antecede, e aí as urgências deixam de
ser as urgências no momento da decisão. Elas
passam ser discutidas uma semana antes. Isso ficou
muito interessante (U2).
Existe um grande consenso entre os conselheiros sobre as
melhorias trazidas desde a criação da CT, principalmente as que se
referem a um melhor entendimento e aprofundamento das discussões em
cima dos temas pautados. A questão que aqui se levanta é a diminuição
da diversidade de opiniões e valores devido ao menor número de
conselheiros que dialogam, pois apesar da CT trabalhar de forma
‘ampliada’, ou seja, aberta a todos (conselheiros e comunidade), ainda são
poucos os que participam. Este ponderar entre um menor número de
pessoas para melhorar o diálogo com uma possível perda de diferentes
olhares é outro problema ético encontrado. Para Gracia (2014), nos
processos coletivos mais perto estamos da busca dos melhores cursos de
ação quanto mais distintos sejam os pontos de vista postos em diálogo:
[...] ali que a gente já traz, praticamente, uma
opinião formada diante da situação da secretaria
[...] aí a gente já tenta resolver e trazer pra plenária
112

simplesmente para a aprovação. São membros do


conselho que fazem parte da CT e, evidentemente,
que um número menor de ideias resolve melhor o
problema (U1).
Essa questão da paridade em comissão, eu acho
que... eu também discuti muito essa questão da
paridade porque eu acho que deve sim ter, mas em
comissão não sei... acho que a menos que a
comissão tenha votação, se for uma comissão que
vai preparar uma proposta não vejo necessidade de
paridade em comissões né, porque ali você vai
discutir as ideias, quem vai aprovar é o coletivo
(U3).
Tanto o número diminuto de conselheiros, como a não observação
da paridade na CT, e em outras comissões, parecem não preocupar os
conselheiros. Mesmo que não seja opinião de todos, há uma certa
acomodação em cima das decisões (que são na realidade recomendações)
trazidas pela CT, não tendo maiores diálogos e discordâncias em cima
desse parecer. De fato, o que foi chamado de CT (mas que não discute
necessariamente apenas questões técnicas), vem potencializando os
espaços de diálogo dentro do CMS. Acontece que esta melhoria não deve
tirar a responsabilidade sobre as reuniões das plenárias, que necessitam
também caminhar para a direção do maior diálogo e na busca por
aproximar o CMS da prática da deliberação moral.
...eu realmente deixo pra fazer os questionamentos
dentro da câmara técnica, até porque que eu sei a
correria que são as nossas reuniões da plenária
assim, e alguns momentos você sente até que eles
preferem que você não pergunte, e isso aí
eticamente me incomoda, porque quem mais
pergunta sempre é apontado: “hum, você de novo”.
Então isso já não é bom. E aí parte de uma
insistência pessoal mesmo, sabe, as pessoas têm
que ser insistentes [...] (G3).
...no geral acho que a gente tem diálogo. Tem
espaço para o diálogo, isso não significa que todo
mundo utilize esse espaço, que todos os
conselheiros utilizem, mas espaço para o diálogo
tem (U4).
Esse espaço para o diálogo apesar de ‘aberto’ a todos, constitui-se
num espaço onde ocorrem inibições explícitas e/ou subjetivas e que não
113

geram resultados de fato, pois muitas das discussões não saem do nível
do discurso, além de serem, muitas vezes, direcionadas por aqueles que
conduzem as reuniões e concentram em si muito do poder decisório.
Neste sentido o espaço para diálogo demonstra necessitar de uma
metodologia que aumente a horizontalidade das decisões, trabalhe com
mais tempo e legitime todos nessa relação dialógica e, assim que possível,
dialética.
...outra coisa que eu já disse várias vezes e digo de
novo, o CMS deveria ter umas aulinhas de como se
reunir, pessoal não sabe falar, pessoal começa a
falar, falar, falar e diverge muito, não é objetivo nas
suas perguntas nem nas suas respostas, não sabe
nem pedir as coisas. Essas coisas a gente questiona
muito (U5).
O que começou a mudar, alguns conselheiros
começaram acordar pro fato de que existe muita
coisa técnica sim, mas muita coisa pode ser
resolvida sem questões meramente técnicas. As
questões técnicas vão ser tratadas por técnicos,
conselheiros que tenham o conhecimento técnico
pra isso. Caso contrário tem que ter sim a posição
de cada um, a posição de sua comunidade (U2)
Essas percepções de que o CMS precisa trabalhar com
metodologias que melhorem qualitativamente o diálogo, e que existem
opiniões para além do saber técnico e que devem ser estimuladas
recomendam os referenciais da cogestão (CAMPOS, 2000) e da
deliberação moral (GRACIA, 2014) para preencher o vazio de educação
permanente. Tanto a cogestão como a deliberação moral têm um potencial
cognitivo nos seus processos, alimentado o aprendizado a partir de suas
próprias experiências (SILVA, 1998). Assim quanto mais se dialoga
dentro do CMS, mais se evolui e se aumentam as possibilidades de
discussões mais aprofundadas. Essa possibilidade de melhorar a dialógica
dentro dos CMS aproxima os conselheiros da condição de deliberarem
moralmente, levando a conhecerem-se mais e a respeitarem-se mais
(GRACIA, 2014). Segundo Gracia (2014) este é um dos grandes papéis
da Bioética - ajudar a transpor a barreira da imposição de pontos de vista
e da dogmatização de opiniões ensinadas desde a educação primária,
promovendo a deliberação não só no âmbito sanitário, mas em toda a
sociedade.
114

A valorização dos meios frente aos fins.

O Vazio da Educação Permanente permitiu a categorização de


diversos problemas éticos, que podem ser sistematicamente visualizados
no Quadro 15. A identificação destes problemas reais se deu a partir da
sua aproximação com a teoria encontrada nos referenciais adotados que
permitiram visualizar um CMS pouco fortalecido pela formação
permanente e distante de estabelecer uma deliberação efetiva.

Quadro 15 – Problemas Éticos encontrados na Supercategoria do Vazio de


Educação Permanente, e distribuídos nas suas respectivas categorias

Exigir uma tomada de decisão sem o compartilhamento


de conhecimentos minimamente necessários.
Exigência e concepção de um processo pedagógico que
não inclui seus sujeitos.
Vazio da Educação Permanente

Condicionar a aprendizagem de um grupo altamente


Capacitação diverso unicamente à capacidade individual de cada
sujeito.
Supervalorizar o conhecimento técnico em detrimento
dos demais conhecimentos.
Poder decisório concentrado nos que detém as
informações técnicas.
Supressão de informações no processo comunicativo.
Falta de construções coletivas.
Linguagem, Imposição de opiniões.
comunicação, Votação como método decisório
diálogo, Exigência da tomada de decisão sem tempo apropriado
deliberação. para o diálogo
Diminuir o número de partícipes no diálogo como forma
de melhorar a ponderação
Fonte: autoral, 2015.

Possíveis soluções para esses problemas éticos podem ser


sugeridas a partir do olhar sobre a dimensão da educação permanente. A
comparação entre a prática do que realmente é e a teoria do que poderia
ser nos possibilitou alguns indícios de estratégias que poderiam ser
utilizadas no âmbito do CMS, principalmente metodologias que permitem
aprender com e nos próprios processos participativos. Como os
problemas morais nesses espaços de participação social envolvem valores
por vezes conflitantes, não caberia desenvolver protocolos ou algum outro
recurso apriorístico. A tentativa de aproximar a prática da teoria não é
115

colocá-las como contraditórias que devem ser sobrepostas de toda


maneira. A intenção de evidenciá-las é justamente a de buscar as mútuas
contribuições para que ambas, teoria e prática, possam se aprimorar e
encontrar sua ‘justa medida’.
O vazio da educação permanente evidenciou a necessidade de uma
pedagogia do diálogo dentro do CMS. Uma pedagogia baseada na
valorização do outro como legítimo na construção coletiva, capaz de
consolidar um Controle Social fundamentado numa razão substantiva,
sustentado por justificativas humanistas e socialmente comprometidas,
onde seja possível a valorização dos meios frente aos fins.

6.2 DIMENSÃO POLÍTICA: O VAZIO DA RESPONSABILIDADE


LEGAL

Nesta supercategoria concentram-se os problemas éticos


relacionados a aspectos normativo-institucionais dentro do CMS, e que
podem ser evidenciados pela reflexão da atual prática do conjunto de leis
e normas regulatórias dentro desses espaços de participação social. Para
além do caráter institucional, também se observou os problemas éticos
‘instituídos’ nesses espaços, que brotam da dificuldade de produção de
um comportamento público coerente com o progresso moral já verificado
na legislação, e principalmente comprometido com a população
(GARRAFA, 2003). Trata-se de repensar os valores nos espaços públicos
impregnados por relações de poder, pelo espírito competitivo, e pela
exclusão do que é diverso (SILVA, 2006).
Dar condições para que a democracia participativa se efetive vai
para além da simples regulamentação e formalização da participação com
todos sendo iguais na tomada de decisão. Essa legitimação formal
(legalização) da igualdade decisória não encontra correspondência com a
realidade da sociedade desigual em que vivemos (SARMENTO, 2012).
Tendo essas questões em mente, os problemas éticos que
necessitam de algum suporte político foram identificados em
concentradas nas seguintes categorias temáticas: Autonomia; Secretário
de Saúde como Presidente; Hierarquia; Relação entre os Segmentos;
Articulação, Papel do Controle Social e Profissionalização.

Concentração de poder, enfrentamento e autonomia: a atual


prática da cultura política.
116

“[...] alguns acreditam que se não votarem do jeito do secretário ele pode
não colocar um serviço na minha comunidade. Gente não é assim... não dá para
continuar assim, pensando desse jeito” (U6).

De acordo com Campos (2000), é na radical diferença de poder


entre a cúpula diretiva e os agentes de produção que se baseia o modelo
gerencial hegemônico. Para o autor a construção e o estímulo à autonomia
entre os agentes de produção nunca foi tida como foco real para os
estudiosos das escolas de administração - os dirigentes sempre
mantiveram o direito à expressão de seus interesses e subjetividades. Aos
demais cabia somente objetivar-se na racionalidade quase mecânica da
sua função.
Quando se propõe que os Conselhos de Saúde trabalhem a partir
da participação da sociedade “na formulação de estratégias e no controle
da execução das Políticas de Saúde, inclusive em seus aspectos
econômicos e financeiros” (BRASIL, 1990, p.4), aproxima-se os agentes
de produção (prestadores de serviço, trabalhadores e usuários) dos, até
então sempre isolados, agentes diretivos (gestores), colocando-os em pé
de igualdade decisória. O problema é que a garantia legal dessa igualdade
não garante sua efetivação no espaço do CMS:
...as nossas pautas de reunião elas são todas
engolidas pela gestão. Os encaminhamentos,
aprovação disso, aprovação daquilo [...] O próprio
conselho não gera uma pauta não tem um
momento... existe o que foi discutido na CT, mas o
que a gente discute na CT são os documentos da
gestão, é LOAs, é planejamento, o que já vem da
gestão entendeu? Não existe assim uma pauta em
que o conselho coloque as suas demandas, as suas
proposições [...] (G3).
...às vezes o presidente, ele procura pôr fim a
determinados diálogos né? E como o CMS ainda
tem muita gente nova, quer dizer não tá tão se
sentindo autoridade pra dizer: “olha, seu
presidente, não é assim e tal” (U4).
A resistência em se desmonopolizar o poder aliada às dificuldades
de enfrentamento dos conselheiros levam a um quadro de pouca ou
nenhuma autonomia do CMS. Existe um “esforço subjetivo dos
dominantes para liquidar com um padrão de subjetividade que autorize as
massas a expressarem seus desejos e interesses” (CAMPOS, 2000, p.34).
117

Esse esforço ‘subjetivo’ em se manter o poder nas mãos do segmento da


gestão pode ser observado na própria postura paternalista da secretaria de
saúde sobre o CMS:
Tem uma análise que eu sempre uso assim, de que
o executivo era muito paternalista com os
conselhos. E os conselhos aceitavam. E isso aí se
tu analisas as leis, os procedimentos no dia a dia, a
gente chega também a essa conclusão. [...] E não é
só no nosso município, é o contexto nacional todo.
Pode ver que o CNS está dentro do prédio do
ministério, e onde que está o CES? Está dentro do
prédio da secretaria estadual. Nós estamos fora por
falta de espaço, mas estão construindo lá SMS e
nós vamos pra lá. Sabe, isso já é a paternalismo [...]
não é que eu seja totalmente contra que a gente
fique junto com a secretaria, é quando a gente quer
trabalhar junto você pode estar aqui e o CMS estar
a 10km de distância, é só se comunicar que dá, mas
o CMS junto, pelo lado do conselho né, ele sente
que está participando da vida pública. E pelo outro
lado, pelo lado bom a secretaria também acha que
ela pode se beneficiar mais com o CMS com ela.
Esse é o lado de pai e filho vivendo
harmonicamente (U5).

Seria ingênuo pensar que a simples implementação das instâncias


colegiadas e deliberativas iriam eliminar a burocratização e a
concentração de poder (CAMPOS, 2000). Segundo o autor, esses espaços
de participação coletiva têm um grande potencial de levar a uma maior
autonomia reflexiva e de poder decisório dos seus membros se, por meio
de metodologias de estímulo à subjetivação dos sujeitos, houver espaço e
tempo para escuta e elaboração em grupo de ideias e de tomada de
decisões.
...eu acredito é que deveria existir uma
obrigatoriedade na legislação orçamentária que
fosse definido uma dotação orçamentária para o
conselho. E isso não existe. E o conselho fica
sempre subordinado às exigências da secretaria. Aí
eles alegam que não tem dinheiro. Nunca tem. E se
não tem dinheiro, pouca coisa pode-se fazer (U1).
118

A recomendação do Conselho Nacional é que o


CMS tenha seu orçamento próprio só o orçamento,
se o dinheiro que vier pro CMS não é ele que vai
gerir porque têm normas que tem que obedecer,
protocolos. [...] O CMS, por aquilo de estar junto
com a secretaria, ele não tem uma independência
do controle dos seus gastos, por exemplo, xerox,
café, açúcar, a gente pega no almoxarifado, isso aí
tudo não tem assim uma média de quanto o CMS
gasta, nós queríamos ter isso aí, nós estamos
pedindo a tempo pra saber o que a gente gasta, até
pra ajudar assim (U5).

De acordo com a Quarta Diretriz, artigo IV da resolução nº 333 do


CNS: “O orçamento do Conselho de Saúde será gerenciado pelo próprio
Conselho de Saúde” (BRASIL 2003, p.7). Essa dificuldade de realização
prática dos mecanismos assegurados por lei é imposta pelo histórico de
burocratização e concentração de poder citados por Campos (2000).
Assim como existe o lento caminhar do Controle Social na sua busca
emancipatória, há uma dificuldade e/ou o desinteresse daqueles que
sempre detiveram o controle em emancipar seus controlados.
O que acontece: a gente não tem acesso, ou não é
convidado, ou não se faz participante nessas
discussões com as outras esferas, entendeu? Então
é uma coisa muito fechada [...] Tipo “ah tem uma
reunião no CES e tem um financiamento que a
gente precisa pedir” isso não acontece, é entre
gestor e gestor, então fica uma coisa muito fechada.
É aonde eu coloco o direcionamento da intenção
política (T1).
Uma articulação melhor, uma autonomia pra se
colocar em algumas questões, não ficar tão na
defensiva às vezes, sabe, entender que quando a
gestão se posiciona com alguma coisa o Conselho
pode se posicionar ao contrário. Esse entendimento
ainda é muito cuidadoso, ainda é feito com muito
cuidado pelos próprios conselheiros sabe, acho que
falta ainda uma ousadia digamos assim, mas não é
por falta de vontade, é que você precisa conhecer
muito bem a autonomia de um CMS pra você
conseguir dar esses passos (G3).
119

Entende todas as questões e as desculpas do


Secretário enquanto conselheira, mas o que
aconteceu é gravíssimo, leu toda a legislação [...] o
erro está em produzir-se uma resolução do
Conselho sem o consentimento deste (Ata05;T4).
Os mecanismos de controle sobre a maior ou menos autonomia dos
conselheiros se embasam na “‘utopia concreta’ de ordenar de maneira
racional, metódica e harmônica, coisas e pessoas segundo a vontade e
projetos dos superiores” (CAMPOS, 2000, p. 34). Os mecanismos de
controle se reformularam ao longo da história, do terror à sedução,
passando pelos modernos sistemas de prestação de contas, diferentes
arranjos para de forma objetivamente subjetiva dominar os
‘subordinados’.
[...] aí que tá o negócio, não podia praticamente
questionar os fatos. Não podia. Pelo menos eu
fiquei marginalizado alguns anos. E houve um
tempo que ele (o secretário de saúde da gestão
anterior) esteve no comando, aí eu tinha que
esperar o momento para que não houvesse o
conflito (U1).
O secretário atual é muito inteligente, ele não vai
muito pro confronto, ele tem uma voz muito macia,
mas ele acaba fazendo muitas vezes o que ele quer,
do jeito que ele quer (U2).
Ter o próprio secretário de saúde como presidente do CMS (o que
será melhor aprofundado no item 6.2.2) pode ser uma forma de coerção
subjetiva, imposta pela presença de uma figura pública com alta
concentração de poder num espaço teoricamente cogerido.
[...] porque ele acha que se ele é de entidade ele vai
prejudicar mais a entidade dele, principalmente do
segmento dos usuários [...] alguns acreditam que se
não votarem do jeito do secretário ele pode não
colocar um serviço na minha comunidade. Gente
não é assim, se isso acontece chama o Ministério
Público, não dá para continuar assim, pensando
desse jeito (U6).
A já citada dificuldade de entendimento (item 6.1.1) deixa os
conselheiros mais vulneráveis às intenções daqueles que detêm e
controlam o conhecimento técnico:
120

[...] eu não consigo ver o elefante que o todo pode


representar, e aí eu fico pensando... será que 150
milhões de reais não resolve o problema de saúde
do município? Será que com isso não dá de rever o
que não funciona, tirar aquele recurso e aplicar
aonde funciona? Ou tu almeja ter mais pra deixar
aquelas coisas ali empilhadinhas sem finalidade?
[...] E eu acho que a ideologia, a preocupação do
grande grupo é ainda o financiamento, claro, é a
parte chave né, e aí o debate sempre fica circulando
em relação a ele, mas daí com medo de perder o
financiamento não se desaprova alguma coisa, e aí
se ressalva, se faz considerações mas também não
se têm os retornos necessário (T1).
Os conselheiros têm questionamentos cujas dúvidas não
conseguem ser sanadas nas plenárias. Não há uma visão clara do todo e
não se tem autonomia (e nem se é estimulada) para buscar respostas e
iniciar propostas. Como existe por parte do Estado uma alimentação da
cultura de transparência nos gastos públicos (que pode ser questionada
como uma forma mínima de horizontalidade e de direito público, mas é
usada como um grande ‘trunfo’ do controle social), o orçamento torna-se
o foco do qual não se consegue evoluir. O conselho assim condena-se a
ser um órgão consultivo das propostas provindas do segmento dos
gestores. Esse controle, pelo medo ou pela sedução, vem ganhando com
o tempo características mais sutis de indução:
O CMS às vezes não expõe tanto quanto deseja, as
coisas que são pautadas ali na discussão, são
poucas as vezes que a gente se expõe, enquanto
CMS como um todo, que não seja uma coisa
provocada pela gestão, isso eu já percebi. É
provocado, pra que a gente se exponha, o CMS
ainda não se expõe publicamente pra garantir
algumas coisas que não seja bastante provocada
assim. Ainda falta e quando você não sabe o
caminho a percorrer você tem que esperar que
alguém te dê uma luz pra esse caminho (G3).
Diminuir a autonomia é a base ideológica dos mecanismos de
dominação, onde estes se valem da coerção, mas também da criação de
novos consensos mediante o entendimento em alguma medida dos
interesses dos dominados, assim se criam espaços de micropoderes,
121

alternados entre pontos de dominação e de libertação (FOUCAULT,


1979, apud CAMPOS, 2000).
Por exemplo, um questionamento que a gente fez
foi se a gente poderia ir num centro de saúde pra
ver como estava o serviço, a gente ainda não sabe
se tem essa autonomia, a gente sabe que,
teoricamente, a gente teria [...] mas sempre isso tem
que ser acordado com a gestão. Então a gente não
tem autonomia. Porque o correto seria que o CMS,
autonomamente, pudesse fazer suas diligências, e
esse monitoramento não acontece ainda [...] Já foi
tentado. [...] só que também, quando chegou a hora
de visitar os CAPS, por exemplo, aí o negócio
começou a emperrar. A gestão segurava, pedia para
marcar hora, e não sei o que mais... e por nós tudo
bem, a gente marca, mas daí cancela e tal, aí sabe,
a gente vê que não é muito facilitado assim (G3).
...a partir do momento em que nós fortalecemos a
câmara técnica, os conselheiros começaram a
participar efetivamente da câmara técnica,
passamos a ter um outro compromisso de todos
com as questões técnicas e passamos a exigir muito
mais do gestor. Né, você vê hoje o gestor pedindo
pro conselheiro participar de discussões técnicas,
de conteúdo técnico, de modo de apresentação, de
estruturação, de planejamento, de estruturação
organizacional, antes não havia né? (U2).
Esse controle velado, onde se exige participação por um lado e
nega-se autonomia do outro é um dos grandes desafios da democratização
de instituições - construir uma nova dialética entre controle e autonomia
torna-se a tarefa inicial (CAMPOS, 2000). É nessa questão que
encontramos o primeiro problema ético dentro desta supercategoria, dado
entre os históricos e hegemônicos mecanismos de gestão e as atuais
metodologias de cogestão e participação social. Transpor a barreira do
relativismo entre autonomia e controle, libertação e submissão, cocriação
e coerção tem sido um dos grandes problemas éticos deste CMS.
Em meio a esses mecanismos de controle, os conselheiros
valorizam, e por vezes, superestimar a pouca liberdade que lhes é
permitida, ou a muito custo conquistada.
...eu acredito até, que nós somos livres e
independentes porque não temos nenhum
122

compromisso, nem político nem mesmo as


associações não são subordinadas à
obrigatoriedade da secretaria. E nós tivemos que
desmascarar ou que forçar uma barra a gente tem
condições de fazer (U1).
...então é importante ter funcionários de carreira
assim, porque eles têm entendimento do sistema de
como ele funciona, porém não de gestão, não
comprometidos em cargos comissionados, essa é
uma diferença bem grande (G3).
Ser livre e independente por não ter algum tipo de submissão direta
à gestão é inegavelmente primordial e garantido por resolução – ‘cargos
de confiança ou de chefia que interfiram na autonomia representativa do
conselheiro, devem ser avaliados como possível impedimento da
representação’ (BRASIL, 2003, p.6), mas não basta para o exercício de
autonomia neste espaço de Controle Social.
Essa dificuldade de ser autônomo não se limita aos espaços de
relações existentes entre os conselheiros, mas permeia-se pelos diferentes
espaços políticos, quase como um resultado do enfrentamento necessário
à participação social dentro do SUS.
Se o presidente do conselho não fosse o Secretario
talvez ele tivesse voz pra esse debate, e talvez
fortalecesse mais essa questão de pressionar o
Estado, de responsabilizar mais o Estado [...] Então
acho que fica muito fechado e aí a gente já conhece
qual é a política né (T1).
...teve uma época que para entenderem o que era
um indicador, se ele tava bom, se ele tava ruim, a
gente usava carinhas. Carinha vermelha era quando
um indicador não tinha alcançado a sua meta,
quando ele tava bom era verde. [...] e daí assim,
teve um reflexo muito negativo pros gestores que
não queriam ver uma carinha vermelha. Ai a gente
arrumou uma outra encrenca, encrenca com o
pessoal daqui de dentro que também não tinha uma
formação adequada, pra poder enxergar as coisas
ruins (G2).
Parece que se dá pouca legitimidade as falas de teor
perceptivo – do conhecimento da experiência (a
atenção em geral se concentra nas figuras públicas
da gestão) (DC5).
123

A necessidade de enfrentamento nos diferentes espaços políticos


reforça a dificuldade que é superar mecanismos que foram historicamente
institucionalizados, e que continuam instituídos nos locais públicos. Este
seria o segundo problema ético desta categoria – dificuldade na produção
de um comportamento público coerente com o progresso moral já
registrado na legislação, principalmente quando se trata de deixar para
trás ‘ranços históricos’ de poder e controle. Transformar uma instituição
é muito mais que mudar uma lei, é passar da teoria constitucional à prática
do fazer (GARRAFA, 2003).
Apesar das dificuldades apontadas existe certo consenso entre os
conselheiros ao se referirem a uma melhora no seu exercício de
autonomia e de poder decisório, principalmente após um fato isolado – a
não aprovação do plano municipal de saúde pelo CMS no ano anterior.
... a câmara técnica decidiu, não passou na câmara
técnica nós não vamos aprovar no conselho e não
aprovamos. A conselheira (responsável pela
apresentação) ficou muito chateada, na discussão
pedimos uma pausa, na pausa os conselheiros se
reuniram e disseram: não vamos aprovar, tem que
passar na câmara técnica, a gente tem que manter o
nosso posicionamento. Todos aceitaram e não
aprovamos. Isso foi um marco na história do
conselho, e o conselho vem seguindo isso (U2.)
É a gente já teve momentos bem piores em relação
às votações. E eu acho que também esse grupo do
CMS conseguiu grandes avanços assim, de dizer
não. Foi a primeira vez, em quatro anos, que eu
ouvi esse CMS dizer não. E aí gerou uma série de
indisposições, assim constrangimentos, choros e
coisas, as pessoas ficaram angustiadas. Mas o CMS
se posicionou, sabe, e eu acho que a primeira vez
se viu o grupo forte assim e disse “não, agora a
gente não vai votar em cima da hora”, “precisa de
um pouco mais de reflexão”, a “apresentação não
foi suficiente”, “não passou pela câmara técnica”,
e isso nos incomodou e a gente vai fazer de um
outro jeito. Então mas isso é da vivencia de
Conselho que eu acho que dá essa segurança pras
pessoas, porque é um enfrentamento (G3).
Esse momento marcante na história do CMS foi de fato um
enfrentamento e uma tentativa de autoafirmação política. Para Campos
(2000) é justamente desses processos de luta/negociação que surgem
124

resultados potentes para a produção de saúde. O problema é que mesmo


com esses pontos de liberdade e enfrentamento se os conselheiros não
estiverem atuando de forma autônoma nessas decisões e com objetivos
consolidados para além do simples confronto com seus dominadores,
colhem-se resultados ainda mínimos.
Depois foi tranquilo. Porque o que eles queriam era
passar na câmara técnica. Passamos na câmara
técnica, fizemos a apresentação tudo de novo. Ai
eles solicitaram duas ou três mudanças de
palavras... palavras! Que não implicavam em
mudanças de contexto... a gente fez, [...] foi
aprovar em março... somente atrasou (G2).
Mesmo que os resultados não se consolidem como ações concretas
para além do CMS, esses arranjos em busca de maior autonomia facilitam
o educar-se, o construir-se como sujeito desses espaços, levando ao
desenvolvimento integral dos que participam a partir do exercício
cotidiano de poder como escola, o fator Paidéia produzindo autonomia
(CAMPOS, 2000).
Um espaço em que se pode observar maior autonomia dos
conselheiros foi o que se consolidou na CT.
...no final do ano [...] nós fizemos as exposições
que não era possível fazer a aprovação e a plenária
prontamente atendeu as exigências da câmara
técnica, e o secretário ficou louco da vida. (U1).
...esse grupo de conselheiros atualmente, por conta
da câmara técnica se fortaleceu em relação a ao
tempo de discussões. Então a câmara técnica é
muito importante pros conselheiros. Querendo ou
não é aquele momento de estudos que eu te falei
que a gente não tem, formativo, a gente acaba
forçando isso numa câmara técnica, que é onde
todas as apresentações vão antecipadamente pros
conselheiros conhecerem, e aí uma outra vantagem
é ampliar sempre essa câmara técnica, não deixar
sempre para o mesmo grupo assistir. [...] e se
alguém disser “não passa essa pra frente”, a gente
não vai passar (G3).
Hoje nós temos a câmara técnica que está muito
mais efetiva nos debates do que nas reuniões
próprias do conselho. [...] todos os temas que são
debatidos na CT “vai pro pau”, não tem essa de ser
125

bonzinho, ou se mauzinho, é tirado todas as


dúvidas, chamamos o técnico, nós queremos
explicação, e se a gente não ficar feliz com a
explicação a gente manda pro plenário que a gente
não concorda, ou concordamos em partes, mas aqui
na CT, ela tá com outro fluxo do que no CMS (U6).
A produção de autonomia é bastante perceptível dentro desse
espaço de Controle Social. A ausência do secretário e uma menor
formalidade podem ser fatores que ajudam a proporcionar um espaço
mais favorável a essa participação. Em espaços de cogestão há objetivos
a serem alcançados, assim “quem deseja um fim ou necessita dele, obriga-
se a inventar meios para tal” (CAMPOS, 2000, p. 78). Diminuídos os
mecanismos de controle, rompem-se também as restrições para o
exercício da subjetividade aumentando-se as capacidades de análise e de
intervenção. Um relato interessante foi a visão de um conselheiro quanto
à inibição que o monitoramento por meio de gravação do áudio das
plenárias pode causar a um público ainda não acostumado com esse tipo
de ‘transparência pública’.
...na câmara técnica, você vai perceber que é uma
dinâmica bem diferente assim, vais ver como as
pessoas se colocam mais. Por quê? A nossa reunião
do CMS é uma reunião monitorada, querendo ou
não uma reunião de conselho é uma reunião
monitorada, e tudo que tu és monitorado tua
postura é outra. Então a gente sabe que algumas
pessoas se expõem mais quando a gente tá na
câmara técnica, até por isso. É bem interessante
(G3).

Aos poucos a familiaridade com esse tipo de monitoramento, que


não serve, ou não deve servir, como forma de repressão, deve levar a uma
maior aceitação e tranquilidade dos conselheiros. O que eticamente não
pode ocorrer é a inibição por medo de alguma represália ou mesmo por
alguma postura individual não coerente com os valores morais públicos.
Se o Controle Social é uma forma de democracia em que participantes da
sociedade representam o todo da comunidade, é minimamente justo que
essa comunidade tenha acesso aos acontecimentos das plenárias.
Uma questão já citada (item 6.1.2) mas que aqui merece maior
análise é quanto ao poder instituído à câmara técnica, levando a uma
grande aceitação das ‘recomendações’ provindas desse espaço. Essa
relação, apesar de repercutir positivamente dentro do CMS, talvez
126

devesse ter alguns de seus aspectos refletidos de forma mais aprofundada,


principalmente no que se trata da grande influência desse espaço em
relação às plenárias. A grande quantidade de demandas passadas para a
CT - algumas das quais nem se referem a questões técnicas - também pode
demonstrar uma diminuição do poder que têm os espaços de discussão
dentro das plenárias, possível reflexo da dificuldade das mesmas
estabelecerem processos de diálogo e deliberação.
...eu ainda não conheci muito bem como que
funciona a história das câmaras técnicas, o que que
elas fazem, mas eu vou me inteirar pra entender se
esses são os espaços de diálogo... porque assim “ah
a câmara técnica analisou o planejamento e trouxe
a sua proposta”. Na última reunião, não sei se isso
é com todo mundo, mas assim nem a pauta eu
recebi antes, não sabia nem o que ia acontecer lá no
dia, entendeu? Então você ter o que vai ser
discutido, ter a documentação pra você também
estudar, eu acho importante (U3).
Mesmo que a CT traga somente recomendações, se não há um
fortalecimento dos conselheiros como um todo, essas recomendações
deixam de ser consultivas e entram no campo das imposições, pois não
há explicação do que foi dialogado e a recomendação de decisões se pauta
na relação da confiança cega e do paternalismo que não liberta ou
empodera.
...quando os conselheiros estão muito fortalecidos
sabe, discutindo, esmiuçando mesmo cada parecer,
o que vai acontecer em cada plenária, pra chegar lá
com mais tranquilidade assim é o ponto positivo.
Porém a câmara técnica também faz com que a
população que está assistindo uma reunião de
conselho tenha tudo muito en passant assim, não
tem profundidade na apresentação assim, porque a
gente já fez isso antes, aí eu não sei dizer ainda se
isso é positivo ou negativo, as vezes eu fico ainda
com um pouco de dúvida (G3).
Este é o ponto nevrálgico dessa relação entre a CT e as plenárias:
se o aprofundamento ocorre apenas no primeiro espaço que tipo de
informação terão no segundo momento? Não são as reuniões da plenária
os espaços legalmente deliberativos? Como diminuir os mecanismos de
coerção e aumentar o tempo para análise sem desempoderar o espaço
público do Controle Social? O problema reside entre melhorar a eficiência
127

dos CMS por meio das CT sem diminuir a deliberação nas plenárias, e a
responsabilidade da transparência com o Controle Social.
Para finalizar a análise desta categoria, observou-se a importância
da atualização dos regimentos para que estes espaços públicos não tenham
tanta ‘liberdade’ em fazer o que bem desejar – a atualização moral das
leis. Como via de mão dupla, também cabe a reflexão constante sobre os
atos em sociedade, para que também não se distanciem do “progresso
moral já verificado na legislação” (GARRAFA, 2003, p. 58).
Isso eu acho que a gente tem a vantagem de ter
dentro do nosso CMS, ter um regimento que em
cada eleição a gente consulta esse documento e se
for necessário põe adendos. Isso foi uma discussão
ampla que a gente teve na última eleição, que tinha
algumas partes do regimento que realmente já
estava equivocada né, passam os anos [...]. Mas no
caso específico quando o presidente questiona se
existe um regimento e ele não existe, então se não
há registro eu faço o que eu quero né (risos), então
a partir desse momento ele tem liberdade de
decisão. Dá mais autonomia ainda quando você não
tem algo que te coloque na linha né. (G3)
A autonomia ‘no e do’ grupo para permanentes revisões dos
regimentos é essencial no acompanhamento das constantes
transformações da sociedade, principalmente ao que se refere às
transformações morais. Esse “ter mais autonomia quando não tem algo
que te coloca na linha” exemplifica o fato da necessidade da existência de
leis escritas para espaços públicos onde a moral não se encontra
consolidada o suficiente, não para diminuir a autonomia, mas para
conseguir por si mesma regrar as ações dos indivíduos.

Secretário - presidente: uma prática do poder instituído, um


conflito de interesses.

“aí fica aquela questão: “ah e se não for o secretario ele vai estar
presente nas reuniões?” Porque é o que obriga ele a estar em todas as reuniões
do CMS, pra que lado tu corres?” (T1).

Existe nas ações do Estado um vínculo profundo entre a


responsabilidade individual e a responsabilidade social, visto que o
Estado (por meio dos seus “homens de Estado” – funcionários públicos
128

e, em particular, os gestores da saúde pública) é responsável pelo bem


comum da sociedade. Aos homens e mulheres que decidem no âmbito
público cabe também a responsabilização por suas ações morais. Neste
sentido, seria de bom tom supor que estes sujeitos agissem de forma não
coerciva (SCHRAMM, 2003). Além da responsabilidade legal e moral
com o bem comum, há uma exigência também legal e moral de que o
Controle Social deva estar plenamente inserido no processo decisório,
mais do que inserido, embasando esse processo.
... tem que abrir a possibilidade de que qualquer
pessoa possa ser o presidente, por que não? Porque
sempre o secretário? Eu acho que ele já nos poda
muito a discussão das pautas... pra nós sociedade
civil já é complicado, já nos afasta um pouco né...
porque eles trazem só a pauta deles... (U3).
Eu acho que quando ele é indicado pelo prefeito ele
fica muito direcionado pra que não aconteça
algumas coisas. Eu sempre pensei que essa vaga da
presidência do conselho, ela fosse eleita entre os
conselheiros eleitos para estarem ali, eu acho mais
democrático, embora também não deixe de ter a
possibilidade de ser direcionado na eleição. Mas eu
acho mais democrático que isso aconteça (T1).
De acordo com a terceira diretriz da resolução nº 333 do CNS, a
composição dos conselhos deve ser paritária de usuários, em relação ao
conjunto dos demais segmentos representados, “sendo o seu Presidente
eleito entre os membros do Conselho, em Reunião Plenária” (BRASIL,
2003, p.5). Acontece que existe, fruto da descentralização, uma abertura
legal para que os CMS criem sua própria organização interna, por meio
de regimento próprio. É neste caso que o secretário torna-se presidente
nato do Conselho. Neste sentido, caberia ao próprio CMS, autônomo e
empoderado, modificar seus regimentos.
Até a própria portaria do CMS é conflituosa... ela
nem foi aprovado ainda! Então ela ainda está em
processo né, então tudo isso é bem complicado [...],
toda reunião alguém cobra esses documentos... e
acaba ficando assim, porque ele é gerenciado pela
própria gestão que encaminha, entende? E isso é
uma outra coisa que deve incomodar algumas
pessoas. E pra mim causou estranhamento assim, o
primeiro impacto, o próprio secretário ser o
presidente do CMS, me parece que as respostas
129

ficam muito focadas no que a gestão faz né, e não


no que o CMS deveria fazer (G3).
Se o CMS deve atuar “no controle da execução da política de saúde
na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros” e “cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder
legalmente constituído em cada esfera do governo” (BRASIL, 1990),
parece não fazer sentido que o presidente do CMS seja o Secretário de
Saúde, pois nesse caso o CMS deve fiscalizar seu próprio presidente que
homologa ou não as decisões do CMS, assim como o Secretário torna-se
fiscalizador dele mesmo. “É complicado, é uma situação que deveria ser
repensada. Ninguém serve a dois deuses né” (T1). Este é o primeiro
problema ético desta categoria – o conflito de interesses em se ter a figura
do Secretário de Saúde como presidente do CMS, órgão que deve exercer
o Controle Social sobre o Estado.
Como colocou Schramm (2003), a responsabilidade moral do
gestor de instituições públicas, como a da saúde, deve minimamente fazer
com que suas ações não sejam coercivas. Essa moralidade foi
transformada em resolução - “Os Governos garantirão autonomia para o
pleno funcionamento do Conselho de Saúde [...]” (BRASIL, 2003, p.5),
autonomia esta que não foi nem moralmente nem legalmente alcançada
(item 6.2.1). Assim, além das dificuldades postas na ‘fiscalização e
controle de estratégias’, esse conflito de interesses acaba alimentando
também os problemas na ‘formulação e execução’ das ações políticas.
Aí o que eu fico muito “pê” da vida é porque é
muito mais fácil eles falarem entre eles, tipo ficar
de murmurinho do que chegar e encarar o
secretário e dizer que não concordou com a
posição, mas chegou na hora votou junto. Eles
votam junto, aí depois ficam pois é, eu não
concordava mas sabe como que é né, ele é
secretário... (U6).
...se ele conseguisse pressionar o executor que
também é representante do CMS, representante
máximo do conselho [...] aí fica aquela questão “ah
e se não for o secretário ele vai estar presente nas
reuniões”? Porque é o que obriga ele a estar em
todas as reuniões do CMS. Pra que lado tu corres?
E aí talvez dificulte mais ainda a questão da
execução, porque daí ele pode responder ou não, e
aí judicializa fica um trâmite mais demorado pras
ações acontecerem [...] (T1).
130

É contraditório o fato do presidente do CMS ser o


secretario de saúde, suas falas não parecem buscar
soluções, apenas deixar o trabalho para as
comissões e utilizar o conselho para aprovar os
orçamentos da secretaria (Memo 08; Ata 05).
Essa questão da vinculação da presença do Secretário de Saúde ao
cargo de Presidente do Conselho é levantada por outros conselheiros:
...o presidente é o gestor, e é um tipo de conflito
que a gente enfrenta, mas aí esse conflito também
é complicado. Assim oh, dentro do conselho, o
mais democrático, entre aspas, que se pensa, é que
o usuário seja o presidente do conselho. [...] eu vejo
que tem um lado bom e um ruim. O lado ruim do
presidente do conselho ser o gestor, ser o secretário
da saúde, é que... é de tirar um pouco a autonomia
dos outros conselheiros, principalmente os
usuários. Mas por outro lado o obriga a participar
de todas as reuniões, então o obriga a dar resposta
a tudo, porque ele tá no CMS, então ele tem que dar
as respostas. Então assim, tem os dois lados da
moeda né? (G2).
...a gente tem que respeitar as falas. Entendo que
ele hoje na posição de gestor e de presidente do
conselho, ele vai querer defender aqueles que ele
representa lá dentro, mas ele também tem que ser
imparcial quando ele for ouvir, porque ele também
representa todos os conselheiros né [...] Ele tem
que falar pelo conselho, ele não tem que falar como
secretário, e isso é muito conflitivo ali na pessoa
que representa todos (T1).
Eu não sou contra isso, pelo contrário, se eu posso
falar com o secretário uma vez por mês, por que
não? Mas aí o que ocorre é que há uma certa
confusão entre controle social e gestão, né... (U4).
Esse receio de que o Secretário de Saúde não participe das reuniões
se não estiver ocupando o cargo de Presidente levanta novamente a
responsabilidade do Estado em fornecer os subsídios necessário à
democratização das instituições públicas. Outra questão levantada é o
receio da pouca governabilidade do CMS causada pela possível ausência
deste gestor público. De acordo com Campos (2000, p.43) sempre
“argumenta-se sobre a baixa capacidade dirigente dos coletivos. No
131

entanto, os equívocos e dificuldades dos governantes não indicam melhor


desempenho”. Neste sentido, pergunta-se se a capacidade de ação desses
espaços públicos não cresceria se todo o aparato de Estado, com seus
consultores, assessores e sistemas de informação se dedicasse em apoiá-
los, ao menos eventualmente (CAMPOS, 2000). Precisaria o gestor
máximo da Saúde ser legalmente obrigado a participar do CMS? Parece
haver uma necessidade das leis escritas quando os interesses e valores não
estão claros e postos em evidência.
A dubiedade legal, e por vezes moral, do secretário de saúde
respondendo como presidente do conselho externaliza-se na difícil, e
quem sabe impossível, separação entre um e outro, confusão que se reflete
na relação entre Secretaria de Saúde e Controle Social:
...na plenária levantam um monte de questão e ele
se defende como secretário, isso aí eu briguei uma
vez porque eu chamei o presidente de camaleão,
porque ‘eu não sei quando você é presidente
quando você é secretário’. E na defesa que eu fiz
pro presidente ser eleito pelos seus pares eu disse o
seguinte, porque ele, se tu analisar bem como
ocorre na plenária, é o seguinte, ele abre a sessão
como presidente, ele fecha a sessão como
presidente, mas no miolo da sessão é um secretário
de saúde (U5).
... não é que as pessoas estão erradas, que elas
façam isso com má intenção. Não é, é a forma de
organização é que tá equivocada, e isso depende
muito de quem tá lá pra poder conduzir a discussão
(G2).
O secretário não é autoridade, não tem autoridade
de secretário no conselho, ele tem autoridade de
presidente. E presidente em geral é mediador.
Lógico, porque o presidente tem opinião e tal.
Então eu acho assim que nesse momento o
conselho está um pouco extensão da gestão e não
controle social. Então acho que esse é o grande
problema que eu estou vendo no momento (U4).
Justamente nessa questão de o Presidente ser mediador dentro do
CMS é que se encontra o segundo problema ético identificado – o
presidente sendo o secretário tem papel de mediação ou de controle?
Campos (2000) no seu método Paidéia ou Método da Roda encontra na
presença do apoiador ou mediador a figura, mesmo que não
132

indispensável, de um grande facilitador do estabelecimento de Espaços


Coletivos. Espaços onde o grupo se fortalece na sua capacidade de análise
e intervenção. Mesmo que o Presidente do CMS não tenha esse papel
definido é inegável seu poder de facilitar ou não as discussões e
encaminhamentos, bem como direcioná-las ou mesmo cessá-las quando
achar conveniente. Essa concentração de autoridade, somadas ao fato de
ser o Secretário de Saúde médico, pode fazer com que sua palavra soe
como ‘palavra final’, transformando o espaço do Controle Social em um
lugar de ‘monólogo’ do governo (WENDHAUSEN, CAPONI, 2002).
Essa possível inibição causada pela figura do Secretário de
Saúde/Presidente do Conselho/Médico pode ser um dos fatores que
paralisam as tentativas de enfrentamento dos conselheiros a essa situação
institucionalmente imposta:
...nós tivemos a oportunidade de, no conselho,
decidirmos pela escolha de um presidente dentre
qualquer dos membros do conselho. Alguns
conselheiros votaram contra a proposta de que
qualquer um pudesse ser presidente, e adotaram a
ideia apresentada pelo presidente de que haveriam
dois presidentes, um presidente secretário e um
outro escolhido entre os membros (U2).
Nós estamos com um projeto desde 2009 brigando
por isso, e o projeto foi para a câmara de
vereadores, voltou lá por uma série de
questõezinhas, a procuradoria questionou algumas
coisas então voltou pra nós, [...] nós aprovamos por
duas três vezes esses textos, quando esse texto foi
colocado em votação o executivo, no caso o
presidente, ponderou que seria interessante que
houvesse então dois presidentes com o mesmo
status e que eles trabalhariam alternadamente, eu
fui totalmente contra, e como eu não estava nessa
reunião não pude votar, e o pessoal não soube
defender, uns ficaram em dúvida, uns sempre
estiveram, aí por dois, três foi aprovado esse texto
(U5).
[...] está tramitando, uma mudança de lei em que o
CMS seria presidido por dois presidentes como é a
CIB, uma vez pelo usuário uma vez pelo gestor. Eu
acho que esse pode ser um dos caminhos, eu acho
que a gente consegue avaliar os dois modelos, eu
acho que isso pode ser uma proposta interessante,
133

que dilui um pouco esse poder né, e realmente


centra muito o poder no gestor (G2).

Essa solução apesar de não ser unânime entre os conselheiros


poderia ser viável como a “justa medida” entre o conceder e ceder poder,
próprio dos espaços políticos. Acontece que para se adequar como a
solução mais “prudente” ela deveria ser plenamente deliberada por todos
antes de qualquer tomada de decisão (GRACIA, 2014). Os problemas
morais nunca estão nos valores em si, mas na dificuldade de realiza-los
quando entram em conflito. Os conflitos não afetam os valores em si, mas
sim sua realização (GRACIA, 2014). Mais do que o enfrentamento sobre
pontos de concentração de poder nos espaços de participação social,
necessita-se que os conselhos sejam espaços que estimulem a reflexão
sobre a moral, sobre os valores, sobre os interesses, que se promova o
diálogo sobre essas questões. Que os CMS sejam espaços de vivência
ética, buscando atender aos anseios de todo o grupo, e para além do grupo,
de toda a sociedade.

Hierarquia: o espírito competitivo

“eu acho até as reuniões muito mornas assim, acho que evita-se algumas
coisas já, então algumas coisas talvez não cheguem pra esses conselheiros...
sempre acha que está faltando alguma informação” (G3).

A estrutura de poder hegemônica e sua sustentação pelas práticas


políticas institucionalizadas, e a autonomia que oscila entre graus de
liberdade e de controle associada a não incorporação de práticas
verdadeiramente construtivas que possam considerar o Controle Social
como sujeito ativo no processo decisório formam o quadro político
institucional atual. Desconcentrar o poder dessa estrutura gerencial
hegemônica na busca do construir compartilhado passa pela habilidade de
alterar os arranjos estruturais produtores de dominação (CAMPOS,
2000). Um desses arranjos é o sistema hierárquico de poder.
Se a cogestão com seu método da roda e horizontalização dos
fluxos de poder é capaz de produzir subjetividade e com isso sujeitos com
capacidade de análise e intervenção, a estrutura hierárquica produz pontos
de concentração de poder e sujeitos ‘objetivados’, que decidem e agem
por objetivos externos a eles, o objetivo daqueles que o dominam
(CAMPOS, 2000).
134

Como visto nas categorias anteriores, a estrutura do CMS permite


uma hierarquia impositiva ao colocar explicitamente o gestor máximo da
saúde como presidente do Conselho.
...a presidência sendo da secretaria, ela impõe o
caráter impositivo dele como chefe dos
funcionários e ali ele tenta impor isso, e dá uma
área, não de atrito assim, mas a gente questiona.
Uma vez ele mandou uma pessoa calar a boca né,
isso ai ele pode dizer pros funcionários dele, mas
não dentro do CMS [...] (U5).
Porque no CMS tem essa coisa da autoridade né,
você vai pra secretaria então o secretário é uma
autoridade, e no CMS isso não existe, não é que não
exista do ponto de vista do respeito, é lógico, todo
mundo tem que se respeitar. Mas ali no CMS todos
são conselheiros iguais, inclusive o presidente do
CMS. Então eu acho que você precisa saber disso,
que você é um igual dentro do CMS e você tem que
se comportar como tal (U4).
A hierarquia dentro dos espaços públicos de decisão é um resquício
histórico das estruturas governamentais. Exigir que esses espaços se
“coletivizem” passa pela capacidade de transformação dos trabalhadores
e gestores, acostumados com o senso comum de gerenciamento em todas
as suas esferas governamentais. O entendimento do conselheiro de que
“ele pode agir assim com os funcionários dele, mas não aqui” deixa
perceber esse senso comum de como funcionam as instâncias hierárquicas
de governo, racionalidade que não é tão facilmente aceita no CMS, um
espaço construído para o Controle Social e, portanto, que deveriam ser de
participação e igualdade de poder. Essas diferentes racionalidades, ambas
socialmente aceitas repercutem por toda a rede de gestão governamental:
[...] eu tinha várias estratégias, eu fazia a
apresentação pra eles antes, eu fazia toda uma
sensibilização e uma educação permanente para o
secretário adjunto. Eu fazia um movimento interno,
porque era os dois lados, não era só a apresentação
pro conselho [...] tinha uma época que o diretor da
vigilância, ele não passava os dados, ele não queria
passar os dados, então tinha inúmeras brigas,
enfrentamentos, e a gente brigava mesmo, de gritar,
aquela época era bem pesado [...] Então nessa
época eu brigava, ainda brigo. Mas brigava de dizer
135

que os dados tinham que ser mostrados, então eu


comprava uma briga interna na secretaria pra poder
mostrar no CMS (G2).
Essa barreira histórica da estrutura hierárquica se embasa no
espírito competitivo das elites, que na busca de manter o seu poder
encontra resistência para incorporar valores cooperativos, construtivos, e
de transparência, valores introduzidos pelas novas instâncias de gestão -
valores do controle social.
[...] eu propus mudar, e dentro da secretaria foi
mais difícil que com os conselheiros. Com os
conselheiros foi tranquilo porque eu fui pactuando
com eles o jeito de se apresentar, e foi assim que eu
fui construindo com eles e que tem até hoje [...]
Então o conselho foi um ator extremamente
importante para que se tivesse toda essa mudança
que hoje a gente tem dentro do planejamento da
secretaria, então é uma das pontas importantes [...]
dessa mudança cultural de transparência. Que a
gente sempre falou com o CMS não numa posição
de fiscalizador e de cobrança, mas na posição de
construir junto, e essa que eu acho que é a
diferença. (G2).
Considera que houve uma interferência na área da
saúde pelo executivo, que ignorou pareceres da
SMS, inclusive não consultando o Conselho. É de
opinião que o Conselho repudie este lei, através de
pronunciamento a respeito (Ata07; U1).
O pluralismo de valores trazido pela introdução de diferentes
atores nas esferas decisórias ajudou a reformular muitas das práticas
anteriormente consolidadas nas instituições. Esses estranhamentos
causados por diferentes condutas são importantes mecanismos para a
superação da gestão hierárquica dentro do SUS. Nesse ponto torna-se
importante olhar para o potencial transformador que tem o indivíduo que
se educa e que se reconstrói no agir cooperativo, e que ao mesmo tempo
modifica o local em que atua (CAMPOS, 2000). Neste sentido existe uma
importância basal em fazer com que o “homens e mulheres do Estado”
entendam a importância de repensar seus valores historicamente
objetivistas, individualistas e competitivos.
Já vi pessoas discutindo por quererem impor uma
opinião, né o seu ponto de vista, de que o outro é
136

contra, a ponto de chegar num nível da pessoa (de


quem estava conduzindo a reunião) mandar a
pessoa calar-se, e a pessoa se sentir tão indignada
com aquilo, sem voz naquele momento, levantar-se
e ir embora (G1).
...tem o poder, o poder é muito claro. Assim, bem
no começo tinha, até eles conseguirem entender
também né, tinha conselheiro que dizia: “eu quero
que entre isso”, como se nos fossemos empregados,
no fim somos mesmo. Nós somos empregados da
população, mas não é assim, a relação com o
conselho não se constrói desse jeito (G2).
Existe uma dificuldade implícita quando da necessidade de
deliberação moral, principalmente quando se trata de grupos com valores
conflitantes entre si – hierarquia/horizontalidade,
competição/cooperação, imposição/construção, neste sentido observa-se
um movimento entre os segmentos para a melhoria de suas relações,
obviamente de forma ainda lenta, na tentativa de acerto e erro, qualidade
de quem busca apreender novos campos relacionais.
Ah, a secretaria nos considera sim, não é aquele
parceiro, parceiro assim, mas ela considera. Hoje
ela tá dando explicação das coisas, antes nós
tínhamos que pedir... porque levou algumas
chicotadas né, a gente impôs muito, a gente brigou
muito. Se tu olhares as resoluções de planos
aprovadas, elas sempre são aprovadas com
algumas ressalvas. Hoje tá havendo conversações e
explicações, porque eles estão vendo que aí a gente
aprova sem ressalvas (U5).
A gente é consultado, eu graças a Deus, eu tenho
sido privilegiado nisso, muita coisa eles me
consultam pra saber o meu parecer, tem outros
também que são muito consultados, então eles
consultam alguns pra ver se eles estão no caminho
certo ou não. Porque as vezes eles estão pensando
uma coisa e o CMS pode refutar. Então isso aí até
incha a bola da gente (U5).
Apesar das colocações soarem como melhorias da estrutura
hierárquica da secretaria sobre o CMS essa forma relacional não chega a
ser um processo cogerido. Poderia ser no máximo uma consultoria, mas
não é Cogestão. Mesmo porque alguns processos não são coletivizados
137

com foco na criação coletiva, mas sim como tentativa de facilitar algumas
ações, como “aprovar sem ressalvas” – é como se consolidassem usuários
‘estratégicos’ para medir a aceitação das propostas, para não dar
confusão. O que não significa que a melhoria foi ineficiente, apenas que
ela é insuficiente. De qualquer forma esse método encontrado pela
secretaria de consulta a alguns representantes do CMS perpetua o modelo
hierárquico de gestão, onde alguns ‘privilegiados’ terão sua opinião
levada em consideração, outros não.
Estruturas hierárquicas - e autoritárias - de poder não são capazes
de produzir coparticipação. Esse é o primeiro problema ético identificado
aqui – como democratizar as instituições de saúde se estas ainda operam
na tradição gerencial da hierarquia?
...às vezes o Controle Social pode tá acontecendo e
ser direcionado mesmo assim. Então depende da
forma que o condutor, tenha o seu colegiado eleito,
ele vai conduzir da forma democrática ou não, ele
pode estar conduzindo aquilo pros interesses do
gestor, um segmento que é menor mas que tem
apoio da grande maioria entendeu? (T1).
Já houve confronto de tirar conselheiro, exemplo:
a representante da odontologia era uma moça muito
proativa e entrou em vários atritos com o secretário
e de repente ela deixou de ser representante e
entrou outro no lugar dela. A gente sabe que é por
causa dos conflitos [...]. Ela nunca quis sair ela foi
retirada [...] (U2).
Esses mecanismos de estímulo à competição e ao individualismo
não são capazes de gerar autonomia ou liberdade do grupo, no máximo
perpetuam o controle e a dominação. Produzir liberdade passa por colocar
em pauta os desejos e interesses dos partícipes.
...essa questão da UPA é um exemplo, claro e
nítido. O gestor toma a decisão de trocar o projeto
sem discutir no CMS, sem discutir lá com a
comunidade, isso não pode, isso é um conflito. Se
o gestor tivesse trazido à pauta quem sabe ele
estaria sendo apoiado, [...] mas o jeito que a coisa
foi, o diálogo que se estabeleceu, ou seja, nenhum,
culminou com aquela situação de briga que a gente
viu ali né [...] (U4).
138

...neste momento ali teve uma postura totalmente


incorreta do presidente, porque ele tem que
valorizar o questionamento, a manifestação da
conselheira. Se ela tá colocando sobre as questões
errôneas do gráfico, se ela tá apontando críticas, ele
tem que avaliar essas críticas, discutir as críticas
que estão sendo colocadas e reconstruir aquilo que
foi apresentado, pra não se errar novamente. É
meio que um ‘cala a boca’ né, “ah não vamos
discutir isso”. Acho que é uma conduta errada.
(G2).
O espírito competitivo já consolidado em sociedade acaba
impedindo que os locais de construção coletiva se utilizem de todo o seu
potencial transformador, principalmente por não alcançarem toda a
‘capacidade de direção’ que existe entre todo o coletivo, ficando restrita
somente ao potencial da cúpula diretiva instituída. Diminui-se assim a
habilidade e a potência para compor consensos, alianças e implementar
projetos (GRAMSCI, 1978, apud CAMPOS, 2000). Ainda existe uma
grande dificuldade de transformar determinados valores dentro do CMS,
mesmo quando essa transformação moral já aconteceu no aparato legal:
As formas de estruturação interna do Conselho de
Saúde voltadas para a coordenação e direção dos
trabalhos deverão garantir a funcionalidade na
distribuição de atribuições entre conselheiros e
servidores, fortalecendo o processo democrático,
no que evitará qualquer procedimento que crie
hierarquia de poder entre conselheiros ou permita
medidas tecnocráticas no seu funcionamento
(BRASIL, 2003, Quarta Diretriz, artigo II, p.7).
Mesmo com a parcela de responsabilidade individual, moral e
legal, continua sendo também dever do Estado auxiliar no controle dos
desvios e excessos, incluindo os que ocorrem sob a égide do Controle
Social.
O CMS não tem uma força legal, ele tem um
amparo legal, mas não tem uma força legal, tudo
que ele faz é consubstanciado, então não tem... mas
assim, o executivo, e isso a gente briga um pouco
ainda, toma uma série de medidas que o CMS é o
último a saber, eles não têm uma transparência com
o CMS, porque essa transparência evitaria atrito
né? (U5)
139

O problema era o seguinte, não esse secretário


atual, mas o que antecedeu, ele era bastante
prepotente. E ele não aceitava que nós
contrariássemos as ações pessoais dele e com isso,
as vezes ele era grosseiro com o próprio servidor
da secretaria, e a gente entendia que não deveria ser
assim. Ele fez uma resolução nos punindo
inclusive, não aceitando uma ata feita pela
comissão e queria manipular e eu não aceitei, e aí
deu no que deu. Uma briga minha bastante
conflitante e ele, claro, como presidente do
conselho ele pode, e com o apoio de outros
conselheiros, fizeram uma resolução e nos puniram
(U1).

O construir junto evitaria muito desses “atritos” acontece que esse


nível dos deveres como explica Gracia (2014) se sustenta em
determinados valores individuais e coletivos, e, portanto, a mudança de
ação só pode ocorrer com a mudança na priorização dos valores . O poder
é essencialmente a capacidade de coproduzir o que Campos (2000) chama
de “necessidades sociais” (ou melhor, direitos sociais) - como a saúde.
Esse coproduzir passa necessariamente pelo diálogo com a sociedade na
busca de consolidar uma geometria organizacional que facilite esses
movimentos horizontais e não obrigue o sujeito e o coletivo à imobilidade
(CAMPOS, 2000).
...com certeza, acaba inibindo, acaba... ah vai se
expor à toa às vezes sabe? Algumas pessoas
pensam que ‘ah não vou me expor porque não vai
valer a pena e eu vou acabar ainda me
incomodando’. [...] e um conselho ele pode ser
propositivo né? A partir do momento que ele
analisa tudo que está acontecendo, ele pode propor
pra essa gestão um caminho pra alguma coisa, e
isso pouco acontece, a gente dá mais opinião do
que propõe, a gente opina sobre as coisas, mas a
gente não é propositivo, entende? (G3).
A grande dificuldade de promover mudanças a partir de estruturas
rígidas acaba travando o processo transformador próprio do Controle
Social. Este é o segundo problema ético identificado – a inibição do
Controle Social por meio de estruturas engessadas de poder diminui a
140

própria eficiência do Estado em promover o objetivo maior de todos: a


melhoria da qualidade de vida da população.
Melhorar a situação sanitária no Brasil passa pelo envolvimento
social sem esquecer a responsabilidade do Estado em reconhecer a
verdadeira dimensão ética e social das políticas públicas – serem
instrumentos de cidadania (GARRAFA, 2003). O exercício da
participação social dentro do SUS, apesar de já ter quase os seus trinta
anos, ainda esbarra na estrutura de poder dos métodos de gestão
historicamente hegemônicos.
Um exemplo já discutido neste estudo (itens 6.1.1 e 6.2.2) está nos
entraves relacionados ao conhecimento como forma de poder. Na
estrutura hierárquica o monopólio do conhecimento fica com a “cúpula
decisória”.
... o conselheiro tem que estar muito antenado com
toda a cidade, com todos os conselhos locais, com
todas as necessidades pra poder propor, e ele não
tem acesso a todas essas informações, mesmo que
a secretaria tem, os conselheiros não tem acesso a
isso (U3).
Vão ser levadas ao Conselho Municipal vindo com
o discurso que só pode ser apresentado no dia e
devendo ser aprovado. Se não conseguir nem ter
uma análise dos dados, diante desta complexidade
como é que será votado, isso fará com que acabe
com o controle social (Ata06; U3).
...eu acho até as reuniões muito mornas assim, acho
que se evita algumas coisas, então algumas coisas
talvez não cheguem pra esses conselheiros, é a
minha percepção né. Então talvez o maior conflito
seja essa coisa... você sempre acha que está
faltando alguma informação, que alguma coisa tem
que você não consegue, ali no CMS, absorver pra
poder opinar [....] (G3).
A não abertura do segmento da gestão para o compartilhamento de
informações leva a um sentimento de desconfiança dos conselheiros,
caracterizando relações pouco embasadas no estímulo à liberdade e à
autonomia.
...tem o aspecto de você não reunir a sociedade
civil, de você não estar lá in locus verificando se
aquela normativa tá funcionando. E aí o que
141

acontece, você sempre fica com a informação do


gestor. Não tô dizendo que não seja verdadeira,
não, certamente, na maioria das vezes é, mas na
maioria das vezes só traz aquilo que interessa ao
gestor (U4).
No fim das contas a estrutura hierárquica com seu espírito
competitivo e auto interessado se sustenta à base das capacidades
assimétricas de decisão com mecanismos de imposição e subjugação:
...é conflitante nesse sentido, entendeu? Você
participar de uma discussão, se posicionar nessa
discussão [...] quando a coisa vem meio imposta,
‘assina aqui’, ou ‘não faça isso’, ou ‘não diga isso’,
ou ‘vamos fazer assim’ (G1).
...quando o nível da coisa toma um vulto maior, ou
seja, um nível de defesa maior em relação ao
posicionamento de um conselheiro eu acho que a
hierarquia se sobrepõe: “deu, ninguém mais vai
falar sobre isso, está encerrado o assunto” (G1).
Existe uma infinidade de matizes entre autonomia e controle. Seria
possível uma instituição que produzisse liberdade e autonomia ao invés
de controle e dominação? (CAMPOS, 2000). “Que regras e estruturas de
convivência institucional deveriam ser inventadas e experimentadas para
combinar dialeticamente atendimento às necessidades sociais e liberdade
para os indivíduos?” (CAMPOS, 2000, p. 65).
Segundo o autor, depende da capacidade social de construir
espaços de democratização do poder – a ‘roda’, e do potencial político de
sociabilizar sua capacidade diretiva entre o conjunto de todo o coletivo.
Ainda de acordo com Campos (2000), essa capacidade de diluição dos
saberes diretivos teria maior fluidez em ambientes não-hierárquicos,
sendo a relação inversa igualmente verdadeira. Novamente, mais do que
regras e estruturas, necessita-se refletir sobre os valores consolidados
como base para as ações individuais e coletivas.

Relação entre os segmentos: o pensar-agir dicotômico-


dilemático

“[...] às vezes o gestor não percebe que nós somos seus aliados e não
seus inimigos, e aí não ceder por não ceder... Não tem nenhum motivo
específico a não ser a minha autoridade” (G3).
142

Quando o Estado tenta reproduzir os diferentes olhares sociais nas


instâncias políticas, reproduzem-se também as desigualdades dessa
sociedade dentro desses espaços. Este é um dos motivos porque a simples
regulamentação da participação não torna as decisões horizontais
(SARMENTO, 2012). Para Arroyo (2010), o pressuposto da relação
Estado/povo é que os problemas são sempre visualizados como estando
na sociedade, e dentro dela mais especificamente, nos pobres, nos
coletivos, nos vulneráveis, nos desiguais, todos eles vistos como locus de
concentração de problemas. Esse olhar do Estado sobre a sociedade,
produz um olhar sobre o próprio Estado, onde este torna-se o centro, e a
sociedade “meros destinatários das ações e intervenções políticas”
(ARROYO, 2010, p. 1386; CHAUÍ, 1995). Nesta perspectiva o Estado se
eleva a condição de ator único, buscando cumprir seu dever de compensar
carências e solucionar problemas – sem rostos e sem sujeitos. “Os
desiguais como problema, as políticas como solução” (ARROYO, 2010,
p. 1387). Apesar de não ser esse o pressuposto do Controle Social,
descolar o segmento da sociedade do papel de problema e o segmento
governamental do papel de detentor de todas as soluções não tem sido
tarefa fácil dentro do CMS.
Eu não tô só avaliando o nosso CMS, eu estou
avaliando a forma de organização social, de outros
conselhos que eu já passei. Eu já trabalhei em
outros municípios, já participei do Conselho [...]
Mas é a forma como o SUS concebeu o Conselho,
que é uma coisa tipo gestor versus usuários tá? [...]
(G2)
Se o Estado enxerga na população um problema, sua posição é de
tentar afastá-la ou mantê-la ‘na linha’, numa relação não de parceria, mas
de ‘coleguismo’, onde por vezes se faz um agrado para poder receber as
aprovações necessárias às suas políticas, estas sim, seu foco.
...a gente nota que dentro da própria secretaria
existe a prepotência do secretário, mas que com o
conselho isso deixa de existir. [...] Porque ele já
entendeu que se nós não formos parceiro dele ele
não vai poder atuar realmente como secretário
(U1).
Esse perfil que se ‘modifica’ quando adentra o CMS, é o que
reconhece a importância do Controle Social na cogestão de política
públicas, ou simplesmente aceita uma exigência legal? A presença do
143

secretário de saúde no CMS vinculada ao cargo de Presidente (item 6.2.2),


até a suas imposições hierárquicas (itens 6.2.1 e 6.2.3) não parecem
condizer com uma parceria que realmente “constrói junto’.
Do outro lado dessa relação os usuários e trabalhadores (e por
vezes os representantes das prestadoras de serviço) se colocam numa
posição de embate, de um exigir do Estado como se realmente este tivesse
todas as soluções para os seus problemas, bastando apenas sua ‘boa
vontade’.
...tem pessoas que causam tumulto o tempo
inteiro... “sou contra porque sou contra”, tem
pessoas assim, nesse conselho nos temos, mas é a
minoria, que por ser assim, o restante já não ouve.
Porque o restante consegue entender (G2).
Tem uns que se deixam levar, mas também porque
é mais fácil, você tem que ir pro embate, não ser do
contra por ser do contra, “ah você é sempre do
contra”, “não, eu sou do contra por isso, isso e isso,
me diga o contrário que quem sabe eu mude minha
opinião”, mas enquanto isso não acontece eu vou
continuar sendo do contra (U6).
Esse campo de disputas gestor ‘contra’ usuário/trabalhadores e
vice-versa, historicamente construído nas lutas sociais pela saúde
estabelece-se dentro do CMS e representa um vértice de separação e
disputa entre os segmentos, que mais uma vez impede o construir
coletivo. Essa relação dicotômica é mais um problema ético deste CMS.
[...] às vezes o gestor não percebe que nós somos
seus aliados e não seus inimigos, e aí não ceder por
não ceder, parece assim que nós estamos... “ah a
bola é minha e eu não vou dividir com ninguém”.
Não tem nenhum motivo específico a não ser a
minha autoridade, então isso acontece um monte.
Toda reunião tem isso (G3).
[...] ele disse que eu tinha desacatado ele, porque
ele era o secretário quem eu achava que era [...]. E
ali a reunião praticamente acabou, e aí não
aprovamos as contas, ai foi pro ministério público,
a gente já ia perder recurso, aí quando ele viu que
o bicho ia pegar, que eu não ia abrir mão, aí ele
falou que foi um equívoco da conselheira e que por
isso o processo estava sendo arquivado. Eu falei
“então tá, mas o meu não”. Ele só tava fazendo isso
144

porque ele sabe que vai perder recurso... eu não tô


nem aí, não sou eu que vou perder, não vou ganhar
nada, mas em compensação ele vai se incomodar
um pouquinho (U6).
Acho que a maioria das decisões reflete minha
participação sim né, só não quando eu, no caso a
gestão perde, uma votação. Mas eu acho que são
muito poucas. [...] é porque assim, no conselho
apesar de ser votação, é muito mais consenso do
que votação, acho que a gente discute muito até
chegar né, então durante a discussão a gente já vê
se isso vai ser aprovado ou não vai. A maioria, são
muito poucos que eu não me sinto contemplada.
(G2)
Esse campo de disputa onde ceder não é opção, traz esse olhar de
que “eu perco quando algo do meu segmento não é aprovado”,
representando uma ideologia bastante individualizada e segmentada,
além de reduzir a função de um conselheiro. Apesar dos discursos se
inclinarem para o lado da participação e da construção, é quase um
consenso de que sempre algum segmento vai “perder’ nas discussões. É
este olhar dicotômico, que só enxerga duas opções, que dificulta o
deliberar, principalmente quando o problema é de ordem moral, onde
dificilmente se terá apenas duas respostas a serem analisadas, uma certa
e uma errada, uma boa e uma ruim, um contra e outra a favor (GRACIA,
2014).
Quando você se vê diante disso tudo, e você tem
um pouco de conhecimento de cada coisa, e alguém
vem pra você e diz assim você é favor? A favor de
quem? Porque se eu disser que as pessoas precisam
e assinar la aquele movimento “x” que de fato as
pessoas precisam e tem que ter, ok. Eu to
concordando com isso, mas automaticamente eu
estou me colocando contra a gestão, porque eu
tenho conhecimento que não vai dar conta daquilo
(G1).
...é muita coisa pra tudo ser formado com todos os
pares, eu acho que no mínimo um gestor e mais
alguém, ou profissional ou um usuário, tem que ter,
isso aí eu acho que não tem... porque os olhares são
diferentes, aí eu acho que no mínimo isso (G2).
145

Observa-se que os desejos e interesses dos membros do CMS


apesar de legalmente coincidirem na melhoria da saúde e qualidade de
vida da população parece existir uma miríade de situações em que esses
interesses divergem. Quando a conselheira coloca que ‘os olhares são
diferentes’ obviamente que são. Eles são e devem ser, para isso serve a
diversidade do Controle Social. O que há de se perguntar é se os
“interesses” deveriam divergir tanto assim? Para Campos (2000) quanto
maior a distância entre os desejos dos que estão cogerindo, mais penoso
se torna o trabalho.
...o gestor nunca cede, a não ser que ele seja muito
pressionado a ceder. O que é uma bobagem porque
na verdade todos os conselheiros que estão ali, os
do governo e os não governamentais querem o
melhor pra saúde (G3).
...é isso que acontece, o cara sabe que se ele for
votar contra o gestor ele vai ser bloqueado lá na
frente [...] mas mesmo com tudo isso ele teria que
votar naquilo que ele considera o mais correto
(G2).
O ser humano é um produto das circunstâncias históricas e sociais
do seu meio, mas também é um produtor de si mesmo e desse meio. À
medida que o sujeito utiliza sua capacidade de reagir às influências as
quais é exposto, começa a recompor também seus espaços de
convivência, tornando transformações viáveis (CAMPOS, 2000). Os
sujeitos têm a capacidade de influir nestes aspectos sociais, econômicos,
naturais, históricos, culturais e ideológicos (valores). O grau de influência
desses atores vai depender da sua capacidade de lidar com a variedade de
situações que lhe são impostas: graus de hierarquia e autonomia,
misturadas e em fluxo constante (CAMPOS, 2000).
[...] trabalhar com o poder, acho que é uma coisa
bem importante, eles me ensinaram isso, acho que
o maior aprendizado de tudo é esse, é como
entendê-los, como vivenciar aquele momento de
disputa ali, como diluir aquilo. Ao longo do tempo
que tive que ir construindo isso pra poder conseguir
articular os dois lados, porque eu sempre tive do
lado do gestor né, mas ao mesmo tempo eu quis que
eles conseguissem entender o que que a gente tava
apresentando, pra não ser dois lados e sim um lado
só (G2).
146

[...] eu não estou lá para ser contra ninguém. Eu não


sou contra a gestão, não sou contra o secretário
municipal, eu não sou contra nada daquilo, assim
como eu não sou contra a nenhum representante de
classe, tão pouco ao usuário. O papel de
intermediar isso é que é complicado [...]. Porque a
partir do momento que você está colocando um
posicionamento pra um lado, você está se
desposicionando em relação ao outro... (G1).
Neste aprendizado que o decidir em conjunto proporciona, um
ponto bastante importante é tentar superar essas visões dicotômicas, essa
nossa inclinação natural em transformar problemas em dilemas
(GRACIA, 2000): ou eu ganho ou eu perco. Se meu segmento ganha, tudo
está certo, se ele perde... Essas visões sempre dilemáticas não cabem ao
CMS, onde existem variados valores e com eles interesses diversos. A
questão é que as diferentes moralidades não precisam ser opostas. Elas
podem aprender a conviver, não necessariamente deixando de serem
diversas, mas superando suas limitações e fronteiras. É uma relação entre
diferentes segmentos a serem representados, mas todos têm um objetivo
em comum, e é este que pode auxiliar a transpor barreiras.
... A gente consegue avançar muito, sim, mas
porque o gestor tem sido um bom parceiro. Hoje o
conselho sabe que tem que prestar as contas de
tudo, não só pra cumprir a legislação, como um ato
assim isolado, mas que ele tem que cumprir por que
existe um grupo de pessoas que está lá pra cobrar,
pra exigir e pra pensar, mas também pra ajudar
sabe... (U2).
...eu acho que a gente trabalha muito bem isso a
gente constrói junto com eles [...] a gente queria
propor um novo modelo de prestação de contas, a
gente construiu com eles. [...] eles enxergam na
gente uma veracidade quando se coloca, então é o
fato deles acreditarem no que você tá orientando é
muito bacana. Então tem essa relação com eles
(G2).
Mesmo a autonomia dos conselheiros (já estudada no item 6.2.1)
melhoraria diretamente a capacidade de “agir influenciando e
considerando todas estas categorias” de diferentes interesses, valores e
deveres, entendo que todos são compostos por diversas soluções, e por
147

tanto, podem valer-se de métodos dialéticos que mediem todas essas


forças (CAMPOS, 2000, p.74).
Para Junges (2006) a Bioética tem um papel fundamental nessa
‘tomada de consciência’ onde mesmo o que, em algum momento pareceu
distante pode se aproximar, como usuários, gestores, trabalhadores e
prestadores de serviço se relacionando e por vezes, tendo que superar os
seus próprios paradigmas mentais.

Articulação versus a imobilidade da sociedade civil

“Na sua opinião, como que você vê a participação dos usuários no


conselho?” (Pesquisadora).
“Cada um por si. Desarticulados” (U3).

De acordo com o artigo 1º da Quinta Diretriz da Resolução nº 333


(2003) compete aos conselhos de saúde das três esferas federais
“Implementar a mobilização e articulação contínuas da sociedade, na
defesa dos princípios constitucionais que fundamentam o SUS, para o
controle social de Saúde” (BRASIL, 2003, p.9). A mobilização da
sociedade como responsabilidade do CMS está presente nas falas dos
conselheiros, embora concentrada em um único exemplo – os conselhos
locais de saúde:
[...] quando nós fizemos a pré-conferência que foi
organizada em diversos locais, muitos
conselheiros, e um fui um deles, fomos há várias
conferências locais e nós começamos a perceber o
quanto o conselho municipal estava distante das
comunidades, e só havia um jeito era trazer todo
mundo pra cá (U2).
Essa mobilização das pré-conferências de saúde, relativas à
convocação da Conferência Municipal de Saúde são obrigações legais do
CMS atribuídas pelo seu Regimento Interno. Para além dessa atribuição
legal, percebe-se uma responsabilização moral dos conselheiros em
aproximar os CLS do CMS.
[...] os CLS são muito representativos, eles vão nas
reuniões, eles têm inclusive direito a falar nas
reuniões do conselho municipal, tem um espaço
que é só deles, e assim, tá se fazendo um trabalho
de ampliar a construção desses conselhos locais, de
formar esses conselhos (T2).
148

A capacitação, mobilização e abertura para os CLS, permite uma


articulação interconselhos, e na esfera municipal auxilia no melhor
entendimento das percepções dos usuários em relação às políticas de
saúde, fato essencial para o Controle Social.
A criação dos conselhos locais foi excelente,
porque os conselheiros locais trazem os problemas
pro Conselho tentar solucioná-los, aí fica bem mais
fácil, porque nós não podemos estar em cada
comunidade (U1).
Apesar de toda a articulação entre os conselhos locais e o
municipal ainda falta um melhor preparo e emancipação desses
conselheiros locais (item 6.1.1), para que essa mobilização da sociedade
civil consolidada no CLS não se estabeleça somente como um local de
ouvidoria, mas antes, um canal de proposição e verdadeira participação
democrática.
[...] hoje a gente tem dado essa voz assim, e
querendo ou não tem fortalecido esses CLS, mas é
aquela coisa que eu te falei: fortalece a
representatividade e não a qualidade da
representatividade, então muitas vezes as pessoas
reivindicam coisas, e numa reunião de CMS você
percebe isso claramente, eles reivindicam o óbvio
que a gestão já tem resposta, e aí patina entendeu?
(G3).
Sob este olhar, percebe-se como um verdadeiro desafio da
democracia participativa no Brasil essa passagem da “cidadania
acostumada a exigir” para uma “cidadania acostumada a participar”, que
possa trabalhar também na proposição de projetos e ações, na busca do
estabelecimento dos sujeitos como atores verdadeiramente ativos na
estruturação do SUS (MARTINS et al., 2008). Essa dificuldade de ser
ativo, para além do exigir acrítico, que não conhece e não enxerga o
‘óbvio’, transparece também entre os conselheiros municipais:
“[...] nunca vi segmento de usuário apresentar, a
não ser os conselhos locais, mas mesmo assim
como informe, não é uma apresentação de uma
percepção” (G3).
Garantir legalmente a paridade dos representantes dos usuários não
tem assegurado a capacidade de intervenção desse segmento
(WENDHAUSEN; CAPONI, 2002). Dentre os diversos problemas
149

atribuídos pela literatura como obstáculos para que se efetive o Controle


Social (WENDHAUSEN, CAPONI, 2002; CORREIA, 2005;
WENDHAUSEN, CARDOSO, 2007; MOREIRA, ESCOREL, 2009;
GRISOTTI, PATRICIO, SILVA, 2010) um dos motivos aqui destacados
para essa efetividade rasa é a própria falta de articulação intraconselho,
principalmente no que concerne aos representantes dos segmentos dos
usuários do SUS.
...eu já participei de outros conselhos, não como
gestora, mas sempre como sociedade civil
organizada, e em todos os conselhos a sociedade
civil, que ali no caso são os usuários, se reúnem à
parte do gestor, e o gestor se reúne também, é
logico né? Mas ali no CMS não existe isso e eu
acho que isso é ruim, e isso não é pra dividir, não é
pra isso, mas é que os usuários e os trabalhadores,
eles têm demandas diversas do gestor. Às vezes
comuns, e às vezes diversas. Então você precisa se
articular, porque o gestor é articulado, todas as
informações que o gestor passa são articuladas
antes, são discutidas e tal, e os usuários e a
sociedade civil não se articula entendeu? (U4).
...os governantes, quando eles querem votar uma
pauta no CMS, eles se organizam pra ir pra reunião,
e nós enquanto movimento social ainda não temos
esse hábito [...] nas reuniões, um puxa pra lá, outro
puxa pra cá, o outro puxa pra lá, sabe? Não tem
uma unificação das ideias, não que tenha que ter,
mas pelo menos assim ‘processo tal está sendo
discutindo qual é a melhor proposta pra cidade’ [...]
não é que é pra ser contra, não, é pra ter uma
resposta mais unificada mesmo. Se for pra cada um
puxar pra um lado tamo ferrado, não vamos chegar
a lugar nenhum (U3).
Essa falta de articulação entre os diferentes representantes dos
segmentos, como aqui no caso, dos representantes dos usuários, torna
esses atores representantes de si ou de sua entidade (aprofundado no item
6.3.1), mas não representantes da sociedade, porque se não há uma
articulação, dificilmente acontece uma representação coletiva, um
controle da sociedade, no máximo se tem uma disputa individualizada de
interesses, que desarticulados raramente se viabilizam. A democracia
institucional que se pretende com o Controle Social é construída a partir
de “Grupos Sujeitos”, que viabilizariam uma reforma social. Ninguém
150

isoladamente é capaz de produzir democracia, esta é acima de tudo, um


produto social, sendo altamente dependente da habilidade dos grupos de
estabelecerem espaços de poder compartilhado (CAMPOS, 2000, p.41).
Essa forma de participar isolada provinda do segmento dos usuários, que
barra a capacidade de estabelecer enfrentamentos aos poderes instituídos
e que torna pouco fértil o Controle Social, é o grande problema ético dessa
falta de articulação dos usuários.
É que às vezes os outros também acreditam, mas a
forma como aquele conselheiro está trazendo
aquilo não tá legal, não representa o conjunto,
entendeu? Não foi dialogado aquilo, e como não
representa o conjunto, o conjunto pensa” ah é legal
mas eu não quero me meter nisso entendeu? Então
essa questão de que a sociedade civil tem que se
reunir, isso tem que ser uma coisa da pauta. [...] não
é uma coisa “ah vamos nos reunir escondidos aqui”
... é uma articulação, até porque as pessoas não
convivem no mesmo espaço né [...]. Essa
articulação talvez propicie que a gente não tenha
que ceder tanto pro gestor (U4).
Às vezes acontece, dependendo do item polêmico
que possa ser discutido a gente tenta conversar
antes pra chegar num consenso e rebater, porque
você já sabe que a proposta que vem é contrária.
Então a gente tenta se articular, debater, discutir, “é
assim e nós vamos defender isso aqui” [...] o que
requer uma articulação que tem que ser feita, senão,
não teria nem sentido ter um CMS, só pra
formalidade... reunião de cafezinho como a gente
diz... (T1).
E daí o que que acontece, como a sociedade civil
está desarticulada sempre tem algum conselheiro
que fica insistindo e aí os outros conselheiros
recuam porque não tão com aquela discussão, não
discutiram não combinaram, não tão com aquela
posição coletiva né? A gente sempre perde, porque
o governo tá sempre coeso (U4).
Esta realidade da participação social representada pelos interesses
individuais dos diferentes segmentos dentro do CMS, não deixa de ser
controle social, pois são indivíduos que constituem a comunidade.
Acontece que existe um nível de controle social que necessita
151

enfrentamentos políticos e tomadas de decisões que priorizem, por vezes,


o coletivo sobre as individualidades. Esse controle social é o que ocupa
os maiores espaços de autonomia dentro do CMS, pois é a unificação que
permite diluir pontos de concentração de poder consolidados. A
democracia é essa possibilidade de exercício de poder, capaz de alterar
esquemas de dominação, produzindo pontos de autonomia e liberdade
(CAMPOS, 2000).
A dificuldade de articulação do segmento dos usuários contrasta
com a facilidade de aproximação do segmento governamental – que
institucionalmente já é articulado, e dos trabalhadores – seja pelos
sindicatos, associações ou pela própria Central Única dos Trabalhadores.
Já o segmento das prestadoras de serviço é visto, e também se enxerga
como o segmento dos usuários. Alguns conselheiros se colocam até como
sendo dessa representação (item 6.3.1), e que, de igual forma, também
não se articulam extra muros do CMS.
Tem total articulação dentro da secretaria. Tudo
que tá lá no CMS eu articulo aqui dentro, eu e o
secretário, pra poder levar pro CMS (G2).
Acho que os trabalhadores se articulam bem, até
porque são articulados fora, os sindicatos, as
centrais se articulam melhor que os usuários, acho
que os usuários se articulam pouco, apesar de,
terem muito mais realidade, porque tão na
comunidade, tão na realidade mas se articulam
pouco. [...] a sociedade não governamental tem que
perceber que ela precisa se articular, que isso é
normal, o governo se articula, a diferença é que o
governo tá todo ali reunido, tem uma hierarquia, e
é o seguinte “eu quero assim e tal”, e a sociedade
civil não tem isso, ela precisa se articular de outro
jeito (T2).
A falta de um método de articulação já consolidado dificulta a
percepção da necessidade de se mobilizar fora do CMS. Apesar dessa
inexperiência, uma forma que os conselheiros encontraram para,
minimamente, poderem dialogar sobre os assuntos da pauta da reunião na
plenária foi o estabelecimento da CT, embora este sendo composto por
todos os segmentos do CMS. De qualquer forma esse foi um espaço
criado como forma de enfrentamento dessas situações de dominação, de
falta de entendimento, de clareza e de tempo.
152

...as decisões são coletivas, mas são pensadas e


discutidas previamente. Alguma coisa que nós não
discutimos na câmara técnica e que vá pra reunião
(U2).
Você enxerga então que cada segmento de
representação ele se articula... Pra votar junto... [...]
por exemplo a câmara técnica é legal. Dilui muito
os conflitos ali. Já é uma preparação boa, então
ajuda bastante. Então isso é uma forma de diluir um
pouco isso, de ajudar na votação, porque ela dá um
indicativo se isso deve ser aprovado ou não. Ela já
dá um parecer. Isso é bem bacana, porque lá sim
isso é bem discutido, o assunto (G2).
As articulações apenas “pra votar junto” para “não perder na
disputa dicotômica” (item 6.2.4) buscam um consenso que é, por muitas
vezes, menos necessário que a articulação autônoma daqueles que
conhecem profundamente os assuntos em pauta, e que, mesmo que não
entrem em consenso, têm a capacidade de discernir e escolher as soluções
mais prudentes dentre o leque de escolhas que podem ser tomadas
(GRACIA, 2014). A articulação é tão pouca, que mesmo quando o foco
é somente o “votar junto”, como foi o caso da não aprovação do plano de
saúde do município (item 6.2.1) pelo CMS, os conselheiros têm de parar
a plenária para que ocorra um diálogo mínimo:
[...] no meio da discussão pedimos uma pausa, na
pausa os conselheiros se reuniram e disseram: não
vamos aprovar, tem que passar na câmara técnica,
a gente tem que manter o nosso posicionamento.
Todos aceitaram e não aprovamos o plano (U2).
Existe outro nível de articulação que também é deficiente no CMS
estudado: é o da articulação dos conselheiros com suas bases
representativas. Se esse nível não dialoga, os conselheiros efetivamente
passam a ser representantes de si mesmo:
...não há o consenso de quem ela tá representando,
pra ela poder dar resposta em cima disso. Não, ela
dá resposta em cima do próprio conhecimento dela,
do que ela acha. Então, a forma de organização do
Conselho é equivocada (G2).
Retoma a palavra e também o assunto sobre a
vacância da entidade que não vem, não substitui o
153

representante e que no momento a vaga fica em


aberto (Ata01;T04).
Essa falta de articulação e diálogo dos conselheiros com suas bases
representativas já foi constatada por outros estudiosos (SILVA, 1996;
CORREIA, 2005; WENDHAUSEN, 2007; GRISOTTI, PATRICIO,
SILVA, 2010). A dificuldade vai desde conseguir um feedback das suas
bases no sentido de realimentar o CMS de fora pra dentro, até a
dificuldade de mobilizar os movimentos populares, de dentro para fora.
De igual forma não há uma pressão dos movimentos populares para
fortalecer ou estimular os conselheiros municipais, todas as
manifestações extramuros do CMS se dão pelos informes dos CLS, que
como vimos, ainda são pouco propositivos.
Não existe articulação... essa história da
representação passou a ser uma coisa assim, “tu
vais lá e me representa” [...]. E precisa tomar muito
cuidado, porque eu posso sujar o nome da
instituição. Agora, mais do que isso, eu penso que
eu poderia ser o elo de ligação com o serviço, o que
não acontece. E te digo mais, já tentei por três
vezes, procurar o diretor da minha representação, e
nas três vezes fui ouvido mas não encontrei
respaldo nenhum pras ações que precisam ser feitas
de cooperação [...] (U2).
Esse é o segundo problema ético nesta categoria - a falta de
articulação entre os conselheiros e suas bases representativas, fato que
deslegitima o Controle Social, pois os coloca os conselheiros como
representantes de si mesmos, com pouca ou nenhuma sensibilidade com
os ideais de suas bases decisórias, perdendo seu valor representativo (esse
tema será retomado no item 6.3.1). De igual forma, também os
representantes da gestão precisam entender seu papel enquanto
representantes do Estado e não do governo ou partido no poder. A força
política do CMS somente terá potencial de transformação da realidade
social e de consolidação do SUS, “na medida em que as entidades
priorizem nas suas agendas de pressões e mobilizações” também as
deliberações do CMS (BRASIL, 2002b, p. 20).
Outro problema ético levantado nesta categoria está no mecanismo
de acolhimento dos conselheiros no CMS. Apesar da sustentação legal do
estímulo à articulação, principalmente da sociedade civil com vistas à sua
autonomia, a realidade do CMS é marcada pela indiferença dos
conselheiros já estabelecidos, principalmente da gestão que detém o poder
154

de condução das reuniões, em tentar incluir e estimular uma aproximação


dos novos conselheiros. Fato que desestimula a consolidação de uma
equipe de trabalho, que conhece as suas individualidades e se valoriza
enquanto sujeitos de ação.
...vou te dizer que no início eu me sentia
constrangida em alguns momentos, até as pessoas
saberem o que você representa... porque, por
exemplo, ninguém me apresentou pro CMS, eu
entrei, ninguém disse “essa é fulana, representante
de tal instituição, tá vindo fazer parte do nosso
CMS...” [...] o CMS não tem feito esse movimento
de apresentação... [...] Às vezes você conhece a
pessoa ali no tête à tête, porque você senta do lado
conhece um pouquinho, senta do lado conhece um
pouquinho, muitos eu conheci assim, eu não tive
um momento assim de não reunião e que tu pudesse
trocar com essas pessoas [...] (G3).
...a gente tem muito pouco contato e as
divergências que podem estar acontecendo, o
conflito de ideias elas surgem nesse momento,
então a gente, muitas vezes, não conhece a
instituição que a pessoa vem, a pessoa em si, a
gente não tem esse contato diário, é diferente de
trabalhar com as pessoas que você convive dentro
da instituição, todos os dias (T1).
Sugere que na segunda terça-feira do mês ocorra
uma reunião do Conselho, não sendo em caráter
deliberativo, mas sim para que possam se conhecer
e saber o que cada um faz, o que é, o que representa,
para poderem planejar algumas ações (Ata02; U3).

Se existe um Presidente, que é anfitrião e que media as reuniões


por que a ausência das apresentações como forma de facilitar um
ambiente de articulações? De acordo com Campos (2000), esse velamento
do Sujeito é uma estratégia deliberada de dominação, na tentativa de se
manter a hegemonia, e esta ser vista como único sujeito existente, e aí
perde-se qualquer possiblidade de dialética e construção coletiva
(CAMPOS, 2000). Sem sujeitos de ação não há deliberação e muito
menos transformações. Neste sentido, parece que a articulação se iniciaria
pela própria aproximação dos conselheiros enquanto indivíduos.
155

Descobrindo-se enquanto seres de ontogenias diversas poderiam começar


a se articular na busca de maior efetividade para todo o coletivo.

Papel do Controle Social: para além do pragmatismo


imediatista.

“Agora, graças a Deus, eu tenho plano de saúde” (U1).

O estabelecimento de um limite de atuação entre as ações


específicas do CMS e as atribuições do Poder Executivo (Gestão do SUS),
tem gerado indisposições e contribuído para o estabelecimento da
dicotomia Estado X Sociedade (item 6.2.4). Especificamente o papel do
CMS e do Controle Social estabelecido no seu cerne encontra-se
“limitado ao espaço privilegiado e bem identificado” no qual a população
participa, através de representantes, na formulação e proposição de
estratégias e no controle da execução das políticas de saúde (BRASIL,
2002b, p.12). Entender o papel do Controle Social também exige a
compreensão das competências típicas da Gestão, que são: Planejamento,
Orçamentação, Programação, Normatização, Direção/Gerência,
Operacionalização/Execução e Controle/Avaliação das ações e
programas (BRASIL, 2002b).
A dificuldade maior deste CMS não está especificamente no
reconhecimento desse papel prático do Controle Social (ainda assim com
diversos obstáculos – autonomia, hierarquia, controle), muito menos no
exigir o papel da Gestão (pois, pelo que já foi colocado, esta ‘engole’ a
pauta com as suas atividades). O obstáculo maior aqui identificado
encontra-se na ampliação e adesão ao projeto instituinte do Controle
Social como o exercício do ser cidadão dentro da esfera política, buscando
acima de tudo, o melhor para toda a sociedade.
Essa concepção menos pragmática e mais subjetiva não
desconsidera as atribuições práticas do Controle Social, mas transcende-
as na consolidação de um objetivo maior, o de:
...assegurar a construção de um modelo assistencial
baseado nos direitos de cidadania de toda a
população, intersetorial, em defesa da vida e da
saúde e com acesso universal e equitativo a todos
os níveis da atenção integral à saúde, da
coletividade, dos grupos populacionais expostos a
riscos específicos e de cada indivíduo (BRASIL,
2002b, p.26).
156

Sem a clareza desse objetivo social do controle sobre o Estado, os


conselheiros ficam expostos “a pressões estreitas de tendências e grupos,
da sociedade e do Governo, desviando-se da totalidade da sociedade e da
cidadania”, e o Controle Social perde credibilidade e torna-se frágil
(BRASIL, 2002b, p.26). Dentro do CMS estudado existe este apelo para
se clarear o papel do Controle Social e sua estruturação:
Ah acho que a gente deveria saber, a princípio, o
que é o papel do conselheiro. Eu acho que bem
focado porque ainda existe muito dúvida assim, e o
papel do próprio CMS (G3).
Tem gente que parece que não sabe o que ta
fazendo lá [...] tem sempre isso... vou falar pelo
menos alguma coisa só pra dizer que eu to na
reunião... (T2).
Para os conselheiros difundir o papel objetivo e prático, que tem
possibilidade de resultados imediatos é a principal questão para o
entendimento do ser conselheiro.
...reconhecer o seu papel como órgão de
monitoramento [...] como é que o sistema tá
agindo. E que tem que saber sim onde tem onde não
tem médico, onde tem e não tem enfermeira, onde
as equipes estão falhas, onde não estão, que
organização mínima elas precisam ter, eu acho que
é papel do CMS saber isso pra poder organizar,
propor, poder propor aonde tem que ser o foco,
então conhecer a realidade do município também,
as características sociais do município, como que
essas famílias se organizam aqui nesses territórios
(G3).
... eu acho que o objetivo do CMS é isso, é olhar
esse sistema de uma forma ampla e ver os acessos
que ele está tendo, aonde que eles estão travados,
onde é que tem trinca nisso tudo, e tentar minimizar
tudo isso assim né. Então essa preocupação mais
macro talvez seja também uma qualidade que as
pessoas têm que trabalhar em si (T2).
De fato há uma importância complementar desse papel objetivo do
Controle Social, mas de maneira nenhuma exclui a importância do papel
subjetivo do ser conselheiro, que encontra respaldo na emoção de dar
valor a um sistema público e de qualidade para a saúde, que coloca os
157

valores coletivos como foco de suas ações, e que enxerga, acima de tudo,
as interações entre os diferentes setores sobre o imaginário e a qualidade
de vida da população. Existe sempre uma tendência a aceitar os reflexos
da “nova ordem mundial” como sendo naturais e inevitáveis (FREIRE,
2011). Um dos grandes ganhos da participação social seria esse contra
fluxo estabelecendo as responsabilidades morais, ao menos, no mesmo
nível das responsabilidades legais.
Se tu vais pro CMS por mais que você tenha um
segmento você tem que fazer a discussão de forma
ampla, ela tem que ser coletiva, ela não pode ser
primeiro eu, depois o nós. Eu acho que você tem
que vir pro CMS com outra visão, e não é a visão
de muitos conselheiros hoje, sabe vai mais porque
acha que depois lá na frente pode pedir alguma
coisa, já que eu conheço o secretário. Não vem com
aquela discussão coletiva que é o fundamental, o
objetivo de você estar no conselho, é pras políticas
coletivas e não pras políticas individuais. [...] a
função do conselheiro ela é de relevância pública,
mas você tem que saber porque, sabe você tem que
fazer as coisas por amor, porque tu gosta, porque tu
valoriza a participação (U6).

O Controle Social resulta do envolvimento de todos os interesses


específicos de cada segmento, que devem ser articulados em favor do
conjunto de toda a sociedade. Neste sentido, o papel do Controle Social
tem função primordial no exercício da cidadania (BRASIL, 2002b).
Apesar de todos os esforços para aproximar a sociedade das decisões
políticas e com isso aumentar a possibilidade de se desenvolverem atores
cada vez mais engajados nas questões da sua polis, esse agir cidadão
esteve sempre colado a ampliação da participação social dentro das
instituições governamentais como forma de fiscalização, principalmente
das contas públicas.
Procurar estudar muito sobre o que é e qual o
modelo que a gente quer de um CMS, ou qualquer
tipo de conselho que seja eficiente, democrático e
que realmente o movimento social seja ouvido,
dentro do papel que ele tem de importância em
construir tudo isso, e muito mais de fiscalizar se
realmente essas verbas são devidamente aplicadas
158

e o retorno da produção disso pra sociedade, pro


usuário num todo (T1).
Existe na fala do conselheiro uma abertura para a importância do
Controle Social enquanto um movimento da sociedade e que precisa ser
ouvido, mas não nega a importância centralizada do papel objetivo do
CMS, e dentro dele com foco na transparência das contas públicas, visão
que parece ser a hegemônica dentre os conselheiros:
...a Lei Orçamentária Anual (LOA) não é maior
que as outras questões da pauta. Mas é mais
importante, eu como gestora penso exatamente
assim... porque a LOA vai definir toda a locação
do recurso financeiro, e se os conselheiros não
tiverem empoderados disso aqui... um monte de
coisa vai passar... isso aqui ó na atualidade
infelizmente é mais importante [...] Porque aqui é
que vai ser dito exatamente o que vai ser feito. Se
eles não olharem isso com muito cuidado e com
muito tempo, porque isso precisa ser amplamente
discutido (G2).
...a gente acaba ficando com prazo muito reduzido
pra análise da proposta orçamentária anual, e ela é
que vai dar as diretrizes pra que tudo aconteça
naquele ano, pra execução do melhor plano de
saúde pro município. E as intervenções de nós
conselheiros, o nosso papel é controlar essa questão
financeira (T1).
O olhar dicotômico entre o que de fato é mais importante e o que
é menos importante coloca as questões de financiamento público sempre
como carro-chefe das discussões do CMS. É interessante analisar que esse
papel de transparência é o que legalmente cabe aos representantes da
gestão do SUS, sendo o papel do Controle Social exclusivamente o de
aprová-la ou não, o que reduz e muito o seu escopo de responsabilidades.
Não cabe nessa análise descobrir o que é mais importante ao CMS, mas
sim entender porque os conselheiros estão tendo que ‘escolher’ algumas
prioridades, se o seu papel é muito mais do que o burocrático? A quem
serve esse engessamento de pautas e tempo de discussão?
Essas questões necessitam ser resgatadas pelo conjunto do CMS
na busca de refletir sobre o papel ampliado do CMS e do Controle Social,
entendendo que tanto as questões pragmáticas quando as questões da
subjetividade e seus valores coletivos implícitos necessitam caminhar
lado a lado nas ações dos conselheiros – como ações complementares
159

que são – não se tem ações locais efetivas para o SUS se não se pensar no
conjunto da sociedade, assim como de nada adianta valores coletivos se
estes não passam para o mundo dos fatos.
De fato os deveres estão sempre fundamentados em valores.
Cortina (2005b) ressalta que quando consideramos algo justo
pretendemos que o mesmo seja igualmente considerado por qualquer ser
racional em condições de imparcialidade, que não se guie por interesses
individuais ou de grupo, mas por interesses universalizáveis. Nos
interessamos por valores como liberdade, justiça, solidariedade,
disponibilidade para diálogo dentre outros, estando dispostos a defender
que qualquer pessoa deveria tentar realizá-los como forma de não perder
sua humanidade. Assim universalizamos tais valores.
Se não se consolidam esses valores universalizáveis como a
própria cooperação e solidariedade como moral do CMS, pouco os
cidadãos poderão avançar na questão da saúde pública brasileira. Essa
dificuldade de consolidar o papel do Controle Social para além dos
objetivos burocráticos, incorporando valores universalizáveis e que
objetivem o bem comum para a saúde pública é o problema ético
enfrentado pelo CMS na definição do seu papel enquanto Controle Social.
De acordo com Freire (2011) não há pensar certo à margem de
princípios éticos, a mudança é sempre uma possibilidade e um direito,
mas cabe a quem muda assumir as mudanças operadas, porque no fim
todo pensar certo é extremamente coerente. Essa discussão, embora sutil,
existe no CMS: a de que é preciso, para enfrentar os obstáculos na
construção do SUS, acima de tudo, acreditar nele:
Agora, graças a deus, eu tenho plano de saúde. Mas
anteriormente eu tinha um dependente aqui na
minha casa. Meu sogro, por exemplo, ele era
atendido pelo SUS, direto, porque ele não tinha
plano de saúde, não tinha nada. Então, graças a
deus isso eu pude constatar, que a equipe de saúde
vinha mesmo sem o agente de saúde [...] havia a
unidade de saúde, e qualquer coisa que eu
precisasse eles estavam lá (U1).
O conselheiro, apoiado pelo Presidente parabeniza
o atendimento do SUS, equiparando-o com centros
de saúde privados (Ata08; U1).
[...] eu falo pra todos os conselheiros, eu sempre
usei a rede de saúde, desde a época que tinha que ir
de madrugada, então eu chegava com algum
problema e eu fazia esse tipo de pergunta “porque
160

está acontecendo isso”, e eles respondiam dizendo


que não pode tá acontecendo e eu dizia, “tá
acontecendo comigo”. Eu não tava pedindo pra
ninguém eu tava dizendo que eu tava vivendo esse
problema e que ele estava sim acontecendo. E
vocês sabem o que está acontecendo? Não sabem,
vocês estão acreditando no que o coordenador do
posto tá dizendo, isso aí mudou muita coisa. E hoje
essa pratica não é só minha, tem vários
conselheiros fazendo isso (U5).
Ser ou não usuário do SUS é uma questão que será aprofundada
mais a frente (item 6.3.1), o fato essencial está em superar muito do
imaginário popular que associa o que é “público” à uma visão negativa,
um “graças a deus por não precisar usar”. Existe um valor de bem comum
associado à saúde pública que deve estar atrelado ao exercício de ser
conselheiro, pois é incoerente defender e controlar algo que não se estima.
Este é o segundo problema ético do Papel do Controle Social – o de estar
numa posição de defesa e construção de algo ao qual não se associa
valores positivos, ou simplesmente algo em que não se acredita. Esse
acreditar não significa fechar os olhos para os problemas do sistema
público de saúde, mas debitar esperança, ser otimista, porém não ingênuo.
Por fim, se aqueles que exercem a participação social dentro do
SUS, por acreditarem na importância do seu papel, depositarem maior
confiança e respeito neste Controle Social, haverá de se fortificar a
‘moral’ deste CMS, aumentando o seu ‘valor’ frente a estruturas
consolidadas de poder.
Em um CMS não se precisa temer essas resistências políticas, pois
há um poder concentrado e já legalmente debitado à participação popular.
Talvez a sociedade e aqueles que exercem esse papel necessitem confiar
mais no seu valor enquanto estrutura de poder decisório. O papel
autoritário baseado na correia de transmissão de normas criadas por
‘chefias superiores’ desaparece quando o exercício de poder é visto e se
vê como compartilhado (CAMPOS, 2000).
...existe uma corrente dentro dos usuários do SUS
que não concorda com esse termo, controle social.
Porque em nenhuma lei fala em controle social, ela
fala só em participação popular, a própria
constituição fala. Então esse controle social sugere
assim que a gente tá controlando entende, a gente
tá participando dele, participando das ações e
161

serviços de saúde, controlando através do controle,


de análise um monte de coisa (U5).
...o conselho não tá ali só pra fiscalizar, só pra
controlar, mas ele também deve construir junto
com a gente. E eu acho que essa é a nossa proposta
junto com o conselho, é o tempo inteiro: construir
com eles, construir com eles... Não só o papel de
controle e fiscalização (G2)
Essa percepção de que o Controle Social é muito mais do que
controlar o Estado fortalece a visão cooperativa do CMS em detrimento
da competição histórica entre sociedade-Estado, fortificando esse espaço
de construção compartilhada, abrindo um possível caminho para o
estabelecimento de um Controle Social com papel de Cogestão.
O Controle Social ao ser exercido pelo conjunto das instituições e
entidades da sociedade civil organizada tende a ser legítimo e efetivo a
favor do conjunto de toda a sociedade (BRASIL, 2002b), desde que suas
intervenções propostas priorizem um olhar eticamente comprometido
com a saúde coletiva e de seus indivíduos e que possa responsabilizar toda
a estrutura econômico-político-social-educacional como coatores na
busca da saúde para além de um conceito rígido, mas como qualidade de
vida para o ser humano e seu ambiente.

Profissionalização: maior legitimidade?

“[...] por que você tem que fazer controle social de graça?” (U4).

A formação cidadã do brasileiro para o exercício da participação


social tem sido tema de congressos e estudos, essa preocupação com o
nível de preparo da sociedade atual para atuar no Controle Social esteve
presente em diversas recomendações da 14ª Conferência Nacional de
Saúde (BRASIL, 2012a). Já o tema da profissionalização do Controle
Social não foi abordado nessa conferencia e sua regulamentação se dá nos
moldes da Resolução no 333 do CNS, que coloca o Controle Social no
SUS como uma função não remunerada, sendo seu exercício considerado
um serviço de caráter relevante à preservação da saúde da população
(BRASIL, 1990; BRASIL, 2003).
Apesar dessa disposição legal nunca ter sido alterada, alguns
conselheiros a partir de suas vivências começam a questionar essa
estruturação do exercício participativo.
162

Olha, eu posso te dizer o seguinte, eu acho que é


essa mudança de conselheiros é que atrapalha.
Porque muda a cada dois anos o número de
conselheiros, e aí até aquele que entrou, cru,
comece a entender da necessidade do trabalho ele
fica sem função praticamente, e nós que já estamos
não temos condições de trabalhar porque até que a
pessoa entenda todo o papel do conselho é todo um
ano de aprendizado (U1).
...eles perguntam como funciona isso, como
funciona aquilo... é uma educação permanente.
Essa é a formação do CMS. Aí qual é o problema?
Daqui dois anos eles saem... Chega outro... esse
tava começando a entender como é que era, aí vem
uma outra pessoa que nunca viu, aí começa todo o
processo de novo (G2).
Essa questão da grande alternância dos conselheiros dentro do
CMS já foi questionada no item 6.1.1, justamente nesse quesito do tempo
de aprendizado para o exercício do papel de Controle Social. Legalmente
é possível a maior permanência do indivíduo na cadeira de conselheiro,
pois a alternância de dois anos é uma ‘sugestão’, do CNS podendo os
conselheiros ser reconduzidos, a critério das respectivas representações
(BRASIL, 2003). Essa prática de recondução dos conselheiros por
diferentes representações já está instituída dentro do CMS, tendo
conselheiro que ocupa uma vaga desde a fundação do Conselho em
questão. Essa “carreira” dentro do Controle Social apesar de não ser
legalmente reconhecida, de fato é percebida como positiva entre os
conselheiros.
E agora eu acredito assim, que nos últimos anos até
porque a gente não teve uma grande renovação de
conselheiros, muitos permaneceram, e alguns já
foram conselheiros em alguns momentos e
voltaram, outros eram suplentes e ficaram na
cadeira de titular agora. E isso também é bom, eu
vejo pela gente aqui, quando eu era suplente, se eu
não acompanhasse as reuniões, quando eu assumi
eu ia ficar mais perdida do que já era (G3).
Ser legalmente justificável não significa que seja moralmente
aceitável já que esta alternância das cadeiras do CMS traz consigo o risco
de enrijecimento de um processo que é, por concepção, dinâmico e
diverso. Como já citado no item 6.1.1, uma alternativa para o Controle
163

Social seria a própria formação da sociedade para o exercício


participativo o que poderia auxiliar o Estado e a comunidade no
controverso tema da regulamentação ou não do Controle Social como
uma forma de ocupação.
Para a quase totalidade dos conselheiros a dificuldade de
conciliação entre as atribuições dos seus trabalhos individuais e o tempo
para o exercício do Controle Social tem sido uma grande barreira à sua
participação no CMS e uma das maiores justificativas para a
profissionalização.
...como a gente é representante de uma instituição,
uma associação, um sindicato, que seja, a gente
também tem a nossa agenda, então a gente fica
totalmente inundado de compromissos sem poder
se dedicar aquela única atividade, aquele único
grupo de discussão, então é bem complexo assim,
participar (T1).
...tem um processo formativo, mas nem tudo os
conselheiros conseguem participar, eu ainda sou
uma conselheira bastante presente, porque tenho a
vantagem de estar aqui na secretaria e conseguir
com isso, a secretaria entendendo que eu sou
conselheira que eu tenho que participar, mas eu sei
que muitos dos conselheiros têm outras atribuições
né, todos eles têm (G3).
Então eu acho que eu tenho conseguido, não tenho
assim nenhuma queixa de “ah não consegui expor
essa ou aquela opinião”, me falta é tempo, pra me
dedicar mais, eu tenho dois empregos né... (U4).
A questão da regulamentação legal do exercício de ser conselheiro
poderia auxiliar nessas dificuldades de conciliação, principalmente no
reconhecimento dessa atividade em sociedade. Se ela não está
consolidada como uma atividade de suma importância dentro da
sociedade os conselheiros ainda ficam reféns do entendimento e da “boa
vontade” dos seus empregadores nas suas outras atividades, essas sim
compromisso irrevogável.
Essa dificuldade de dedicação acaba conflitando com as próprias
atribuições legais dos conselheiros:
...paridade em tudo, em todas as comissões, não
tem como. Seria o mais legitimo de todos, é o mais
bacana de se fazer, só que eu vejo que em termos
164

práticos a gente não conseguiria fazer isso pra tudo,


por indisponibilidade. As pessoas que estão no
CMS elas não são pagas para estarem ali, como é
que elas vão a mil reuniões ao mesmo tempo...
(T2).
...coloca que as oficinas dos conselhos locais foram
todas no horário noturno porque sabe-se que os
individuos trabalham durante o dia e não teriam a
possibilidade de comparecer durante o mesmo
(Ata02; G6).
Esse trabalhar do CMS na medida das possibilidades dos seus
conselheiros levou-os a ‘afrouxar’ no seu regimento o princípio da
paridade em comissões formadas, pelo simples fato de que seria
impossível conseguir formar as comissões com o número de conselheiros
necessário. Seja por falta de conscientização ou por falta de tempo essas
ausências tem levantado a questão da profissionalização do Controle
Social pelos membros do CMS:
Eu acho que os conselheiros da sociedade civil
deveriam ser remunerados, porque você tem uma
dedicação. Talvez não todos, mas poderíamos
começar pela câmara técnica do CMS, que se reúne
muito mais do que o CMS. Mas eu acho que as
pessoas deveriam ser remuneradas, porque eu acho
que isso é um incentivo, porque que você tem que
fazer controle social de graça? [...] a gente tem uma
coisa que controle social é organização da
sociedade civil então tem que ser de graça, não!
Entendeu, aquilo é bom pra sociedade, então o
Estado tem que patrocinar, financiar, incentivar né.
[...] não precisa ser altos salários, mas começar com
alguma coisa, você tem que incentivar, porque as
pessoas trabalham, elas têm ‘n’ demandas. Claro
que isso traz inúmeras consequências mas as
consequências não podem ser usadas como
desculpa pra não ter remuneração, a gente tem que
encontrar formas de…entendeu? (U4).
Eu era do conselho nacional de juventude eu não
tinha remuneração, mas diária para ir a Brasília...
três dias de reunião, você vai dormir aonde e comer
o que? Mas “a entidade que você faz parte deve
patrocinar”, tudo bem até poderíamos dividir,
talvez o conselho nacional, as entidades são muito
165

mais organizadas, tem uma capacidade de


articulação maior e tal, mas também é importante
pro Estado, que exista o conselho (U4).
A gente tem muita deficiência né, nessa questão da
representação. Outro dia eu tava conversando com
uma pessoa no sentido que a gente precisa ser
profissionalizada, ter a formação, sem perder o seu
eu de sociedade civil, mas estar profissionalizado
no entendimento daquele setor, daquele orçamento
(U3).
As argumentações dos conselheiros se referem a diferentes
questões – profissionalização enquanto um trabalho remunerado,
enquanto uma forma de não ter despesas pessoais, e enquanto uma
qualificação para o exercício. No contrassenso dessas propostas, como
não poderia deixar de ser, existem outras percepções:
Eu acho que o objetivo de ser conselheiro, pra mim,
eu não consigo pensar em ter que receber pra fazer
o que eu faço [...] Agora tu imaginas os caras se
ganhassem pra isso, [...] o cara vai dizer “bom eu
tô recebendo da gestão, eu não posso dizer não pro
gestor”, se hoje não recebendo alguns conselheiros
já tentam se amarrar, tu imaginas se tu pagar. O
cara vai continuar atrelado a gestão, o cara vai
continuar pedindo favor o tempo inteiro. “Ah, não,
mas, oh, eu sou conselheiro, eu sou pago pra isso”,
não camarada, você só vai valorizar o fato de você
ser conselheiro exatamente por isso, porque você
tem que se dedicar a estudar, você precisa aprender,
você precisa conhecer, não porque você é pago pra
isso, não é por aí (U6).
Se receber ai acabou efetivamente a parte do
Controle Social, porque se você está recebendo pra
fazer isso acabou, não tem sentido você ter uma
participação popular dentro do CMS. Pra que?
Então pega os gestores, pega os trabalhadores que
estão ali, pega o pessoal da rede e paga (T2).
A profissionalização do Controle Social seria de fato um
problema ético a ser encarado pelo CMS, mas que ainda não pertence a
realidade diária de enfrentamento dos conselheiros, embora já possua
subsídios suficientes para ser deliberado moralmente. O problema ético
vivenciado diariamente pelos conselheiros reside na dificuldade de
166

pertencer a um sistema que ainda não se encaixa na realidade brasileira –


o exercer a cidadania, com seus valores universalistas de construção e
cooperação, num mundo dominado pelos valores de caráter excludente,
competitivo. Tentar exercer esse papel de participação social em um
sistema travado por interesses contrários não tem sido tarefa fácil para o
CMS.
Tu tens que procurar ter dedicação, é um valor, de
disposição para o que você está fazendo, porque se
você não tem tempo você também não vai produzir
muito, não vai contribuir muito, mas quem tem
tempo hoje? (T2).
Não era nem eu que deveria estar lá, era a nossa
psicóloga, mas durante o processo de espera ela
engravidou, ai mandei e-mail pra um monte de
gente e ninguém me respondeu, trabalhar de graça
não é pra qualquer um né. E ai pra não perder a
vaga eu fui (U3).
...a gente, com o capitalismo, se alienou muito...
não temos tempo... A gente não tem esse contato
com a população, porque usuário é a população né.
A população não está acostumada num sistema
Brasil de assistencialismo, nós somos um país
assistencialista né, aonde a gente contribui, a gente
paga e acha que vem de graça. Então tem algumas
pessoas que se dedicam sim, eu acho que algumas
pessoas até que já estão aposentadas, que tem uma
dedicação assim.... mas o pessoal efetivo, que tá ai
na labuta no trabalho não tem tempo pra querer
saber que existe um CMS, que existe um grupo de
pessoas que estão lá discutindo os interesses dele
[...] eu acho que deveria trabalhar mais isso
entendeu. É complicado (T1).
A participação social exerce o papel de um novo ator global que
não se encaixa facilmente em um sistema de base capitalista, dominante
e alienador. É preciso repensar o lugar da participação social na estrutura
organizativa da sociedade atual. Independente das respostas é importante
que o CMS questione e reflita sobre essas questões enquanto
representantes da sociedade e detentores de poder de enfrentamento
político, econômico e social. Esta condição indica a necessidade de
interlocutores da Bioética também atuarem de forma crítica na
capacitação de setores organizados da sociedade civil como o CMS, para
167

que a democracia efetua sua capacidade de socializar o poder e a política,


intervindo na reprodução das diferentes formas de violência e
desigualdade dessa sociedade de mercado (SARMENTO, 2012).

Democratização do poder.

O Vazio de Responsabilidade Legal categorizou os problemas


éticos a partir das aproximações e distanciamento do que é legal e do que
é moral, levando a desafios de caráter normativo-institucional, tanto da
sua atualização como da sua implementação. Neste sentido traçou-se
problemas éticos (compilados no Quadro 16) com o que é instituído
dentro do CMS, e que enrijece o instituinte, diminuindo seu potencial de
subjetivação e de transformação.
168

Quadro 16 – Problemas Éticos encontrados na Supercategoria do Vazio de


Responsabilidade Legal com suas respectivas categorias

Enfrentamento dos mecanismos


Concentração de hegemônicos de gestão em favor de
Poder, metodologias atuais de gestão
Enfrentamento e compartilhada.
Autonomia
Dificuldade de aproximação entre a lei e a
moral atual
Conflito de interesses na ocupação de dois
Secretário - cargos, onde um fiscaliza o outro.
Presidente Mediação ou controle – dificuldade de
exercer o papel de presidente do CMS.
Conflito entre a estrutura hierárquica e a
coparticipação democrática.
Vazio de Responsabilidade Legal

Hierarquia
Inoculação do Controle Social pelo próprio
Estado que o exige.
Relação entre os Relação de disputa entre os segmentos
Segmentos governamental e não governamental.
Falta de articulação do segmento dos
usuários - o pensar/agir isoladamente dentro
do CMS.
Deslegitimação do Controle Social pelo
Articulação
distanciamento entre os conselheiros e suas
bases representativas.
Ausência de mecanismos de inclusão dos
novos conselheiros
Dificuldade de consolidar o papel do
Controle Social para além dos objetivos
Papel do Controle burocráticos.
Social Incoerência em ocupar uma posição de
defesa e proteção de algo em que não se
acredita.

Profissionalização Dificuldade do exercício da participação


do Controle social num mundo dominado pelos valores
Social de mercado.

Fonte: autoral, 2015.


169

Existe uma democracia instituída nos moldes atuais que é limitada


por mecanismos de poder e constantemente anulada pelos interesses
econômicos. Além disso, a formalização da participação social instituída
e regulada na igualdade decisória não encontra correspondência com a
realidade desigual em que vivemos (SARMENTO, 2012).
O Vazio da Responsabilidade Legal precisa ser preenchido com
mecanismos que consigam realmente democratizar as instituições, como
atualizações da lei que possam diluir estruturas hierárquicas e de
dominação; a consolidação institucional de métodos de cogestão que
possam transformar a relação entre os segmentos em verdadeiros
trabalhos cooperativos e construtivos além do reconhecimento
substantivo do sujeito e estímulo à sua subjetividade. Estes mecanismos
dependem do poder de pressão social dentro dos espaços públicos e do
significado que a responsabilização legal de exercer o Controle Social tem
na prática diária de ser conselheiro.
Por fim, é este o desafio central do Estado que se pretenda eficiente
e democrático – reconhecer e administrar diferenças e conflitos de desejos
e poder, sem negá-los ou camufla-los em nome de uma falsa objetividade
burocrática (CAMPOS, 2000).

6.3 DIMENSÃO CULTURAL: O VAZIO DA CONSCIÊNCIA DE


CIDADANIA

A dimensão cultural, enquanto espaço de invenção coletiva de


símbolos, valores, ideias e comportamentos, procurou visualizar os
problemas éticos provindos de uma atual cultura de cidadania por meio
da participação social em instâncias políticas. O desafio de estabelecer
essa cultura de cidadania leva a dificuldades de coesão social, de
consolidação de um sentimento de pertença comunitário e de construção
e de implementação de projetos de interesse comum.
A separação histórica entre educação e política enterrou por
séculos a ideologia de construção de uma cultura baseada na formação do
homem para a polis (a cultura da Paidéia) sem a concretude de limites e
separações atualmente existentes entre essas três dimensões –
educacional-política-cultural. De igual forma essa ruptura também
paralisou o desenvolvimento do “ser cidadão” enquanto exercício de
direitos e deveres na busca de uma causa comum para com toda a
sociedade, que é a própria razão de ser da civilidade (CORTINA, 2005b).
170

A participação social democrática vem tentar uma reconciliação


entre política e cultura, buscando no exercício da cidadania um meio de
captar e responder aos interesses da sociedade de forma não violenta mas
também mantendo uma ideologia de poder do Estado (CHAUÍ, 1995).
No SUS estimular a inclusão da sociedade nos processos
produtivos em saúde buscou materializar um novo conceito de saúde que
incluísse o indivíduo como ser autônomo capaz de decidir sobre seu
destino e, sobretudo, responsabilizar-se sobre o que lhe é,
constitucionalmente, de direito (BRASIL, 2006a).
Materializar a participação social sobre os alicerces da
inexperiência histórica, de um Estado que por vezes ainda enxerga a
sociedade civil organizada como uma ameaça e em meio à uma economia
estruturada no mercado selvagem que nada tem a ganhar com o
desacumulo de capital (CHAUÍ, 1995), estabelece um quadro de grande
desafio na busca de diminuir as desigualdades em saúde. Neste sentido
torna-se interessante consolidar uma cultura baseada em valores
justificadores da participação e do Controle Social para de fato efetivar a
uma política democrática.

Representação: a aproximação de valores

“tem horas assim que a minha posição de neutralidade é a mais


confortável [...] talvez não seja a mais correta, mas é a mais confortável” (G1).

Existe uma verdade que aproxima os CMS com a cultura da


Paidéia grega, o estabelecimento de um compromisso entre os membros
de um coletivo e destes com a sociedade no seu todo. Esta adesão, mais
ou menos voluntária, a determinados valores instituídos torna-os
membros de uma organização (CAMPOS, 2000) e o diálogo desses
valores com a moral da sociedade e com a sua própria individualidade
consolida-os como representantes da sociedade dentro desses espaços
públicos. Essa tensão dialética entre ‘pressão de força’ externa (pontos de
dominação) e pressão de força interna (graus de autonomia) ajudaria a
consolidar as singularidades de indivíduos e grupos (CAMPOS, 2000,
p.73).
Essa capacidade em maior ou menor grau para trabalhar com
interesses e desejos por vezes diversos tem causado diferentes reações
entre os conselheiros, dentre elas a mais percebida é a que vem da clareza
objetiva da lei “Os representantes no Conselho de Saúde serão indicados,
171

por escrito, pelos seus respectivos segmentos entidades” (BRASIL, 2003,


p.6). Essa relação entre o segmento e a entidade a qual o conselheiro
representa tem demonstrado não corresponder às expectativas dos
conselheiros.
...o que existe é assim, determinado segmento não
consegue levar pra comunidade aquilo que ocorre
dentro do conselho. Não consegue as vezes por
razões, as vezes que ele não tem um contato direto
com a comunidade e outras vezes é porque fica
isolado. Ele foi eleito pela comunidade mas ele
realmente não representa (U1).
...porque você fica na mão da instituição e a
instituição tá longe do que acontece, não sei se há,
e normalmente não há uma aproximação entre a
instituição e a sua representação. Eu por exemplo,
posso falar qualquer bobagem, que a instituição vai
ficar sabendo? Nada. [...]. É muito maior do que
você possa imaginar, esse é um problema a ser
resolvido, nunca se discutiu, é um problema pra ser
pensado (U2).
O vácuo de comunicação entre o segmento e a sua base é, em
grande parte, alimentado pelo próprio desinteresse da entidade em
conhecer o que acontece no CMS:
...eu trato disso com algumas pessoas da minha
instituição, discuto alguma coisa com as pessoas,
mas não de modo institucional. Até porque com
quem que eu vou discutir? Não existe esta ligação
prevista. Nunca ninguém me disse assim: vem cá
qual o seu posicionamento sobre tal questão?
Algumas demandas que são da instituição, eu levei
pro conselho, mas precisava de um posicionamento
da instituição, e nunca se posicionou (U2).
[...] existe uma falha. Eu sei dos meus deveres
como conselheiro, mas eu só tive oportunidade
uma vez só de me reportar a minha entidade, pelo
seguinte, eu fui apresentado como representante,
expliquei o que ia ser feito, o que não ia ser feito, e
eles fizeram cinco reuniões de diretoria e nunca me
convidaram. [...] eu reclamei, mandei um e-mail
desse tamanho, “po como que é, eu sou
representante e não consigo expor”, ai eles se
172

desculparam, que na próxima eu ia ser convidado,


não sei o que... eu disse assim eu to a dois anos eu
não pude dar um relatório pra vocês! Porque eu
faço relatório, mas eu não pude nem entregar né
(U5).
Esse distanciamento institucional e comunitário parece
corresponder à realidade brasileira ainda desacostumada com a
participação em instâncias públicas, e principalmente ainda pouco
conscientes do seu poder transformador. Para Cortina (2005b) existe uma
dificuldade de sociedades pós-industriais gerarem em seus membros um
sentimento de pertencimento que os faça trabalhar em conjunto pelo bem
comum. Para a autora apesar do conceito de cidadania ter sido criado no
âmbito político há uma dimensão cidadã que é afetada pelas outras esferas
sociais, como a econômica e a privada, onde estas, portanto, precisam ser
incluídas na responsabilidade do participar cidadão.
Nesta direção, há uma incoerência em se indicar um representante
para ocupar uma vaga no CMS sem lhe dar o respaldo necessário para as
ações que serão tomadas, ou simplesmente não se interessar pelos valores
dos quais aquele conselheiro se apropria. O desinteresse das instâncias de
base em estabelecer uma relação com os conselheiros é o primeiro
problema ético encontrado nessa categoria. Uma atuação legítima nos
moldes atuais da democracia de “representação por meio de associações”
requer uma redistribuição das responsabilidades dessa representação
fugindo do antigo pressuposto de passividade de um dos lados dessa
relação (YOUNG, 2006, apud LUCHMANN, 2011, p.137). Nesta
perspectiva uma representação legítima requer a participação ativa dos
grupos e organizações sociais (LUCHMANN, 2011).
...entende-se que a efetividade da participação das
entidades no Conselho deva ser acompanhada e
inclusive cobrada (Ata01; U5).
O problema do distanciamento do representante da sua base
representativa também não tem contribuído para que os conselheiros
entendam com clareza quem eles realmente devem representar, e
consequentemente, para o entendimento de quais objetivos estão em foco:
...tem essa dificuldade de interpretação. A gente
representa os trabalhadores mas que não deixam de
ser usuários do município (T1).
...eu nunca estudei isso, nunca vi isso, tem gente lá
que eu nem sei o que que representa, eles falam eu
173

represento não sei o que, mas eu nem fui atrás, pra


mim todo mundo é igual entende? [...] é ruim esses
lados, sabe... então, eu sinceramente acabo não me
importando muito com essa divisão de quem é
quem, o que que ele ta representando ali (G2).
Ter a clareza da sua representação e do seu segmento não significa
dividir os conselheiros como diferentes, mas entender que eles precisam
dialogar sobre interesses que serão muitas vezes diversos, e se não houver
clareza do seu papel de controle social (item 6.2.6) atinado com o que sua
representação significa, possivelmente perde-se a diversidade tão
interessante à participação social no SUS.
De qualquer maneira, independente do distanciamento da entidade
ou organização representada, há um ‘quê’ de ideologia entre os
conselheiros em, de forma unânime, se posicionarem contra a exposição
e luta por valores individuais dentro do espaço público do CMS:
[...] não adianta eles dizerem que eles representam
a sociedade, que representam os usuários, não
representa. Cada um toma decisão a partir do que
ele considera correto, daquilo que ele tem como
história de vida, daquilo que ele tem como história
dentro da trajetória do conselho, do que ele sente
pelo gestor, do que ele sente pelo que ele tá
apresentando, não há efetiva representação da
sociedade. Não é, como é formado o conselho a
gente não tem isso, então pra mim é um modelo
ruim, não funciona, pra representar a sociedade não
funciona (G2).
Nem sempre é tranquilo... é aquilo que eu te falei
assim, eu represento a gestão, e também represento
uma outra gestão de uma outra secretaria, então
quando eu me exponho eu não posso me expor,
primeiro, jamais a minha opinião pessoal né, apesar
de eu ter várias, sobre várias coisas que acontecem
ali. (G3).
[...] eu acho que ele tem que saber que ele não se
auto representa, eu acho que é isso que ele tem que
saber (U4).
Essa ênfase em não se “autorrepresentar” tem significado dentro
de uma realidade cartesiana dicotômica e linear, o que de maneira alguma
se aplica quando se discutem ética e valores. Existe uma individualidade,
uma subjetividade, um ser que deseja e que tem valores constituídos e que
174

não podem simplesmente serem anulados para defender-se uma


instituição. Há uma necessidade de se mediar interesses e descobrir a
opção, que no momento, realiza o maior número de valores, a mais
razoável e prudente como vimos com Gracia (2014). Mas quando essa
dialética não existe, e fica-se fadado a ter de escolher entre um ou outro,
é que o trabalho de ser representante fica mais “penoso”.
A tentativa de considerar o conselheiro enquanto um simples
“meio” de transferência de valores e interesses acaba por vezes
conflitando com essa individualidade do ser. Esse conflito interno é um
dos perigos em se embasar a representação somente em um dos pontos de
força dessa posição complexa que é a da participação social.
...eu, às vezes, me sinto um pouco tolhida, no
sentido de que eu estou como representante da
gestão e algumas situações acontece das pessoas lá
fazerem uma discussão contraria à gestão, se
mostram contrárias, já saíram moções de repudio
ao próprio secretário, e eu sou representante
daquele órgão, então eu fico no meio, as vezes até
concordo com o que está sendo discutido mas como
que eu vou chegar... como representante da gestão
e dizer “não realmente, de fato...” então é um pouco
pesado essa representatividade (G1).
...tem horas assim que a minha posição de
neutralidade é a mais confortável, que eu posso
escolher. Então talvez não seja a mais correta, mas
é a mais confortável. E às vezes eu me coloco num
papel de neutralidade por conforto. Então por isso
que eu acho que enquanto levando o nome de
conselheira, isso não está correto. Porque o
conselheiro deveria ter um papel de poder resolver
isso de uma maneira melhor (G1).
Alguns conselheiros parecem ter seu discurso
ignorado, principalmente quando denotam uma
personalidade mais exacerbada (DC1).
Para Campos (2000) a subjetividade estimulada dos sujeitos pode
auxiliar sua capacidade de análise e intervenção, tirando-o da posição de
um mero executor de interesses e desejos impostos externamente a ele.
Essa valorização do sujeito é ainda pouco estimulada no CMS, onde a
máxima do nunca se “autorrepresentar” acaba inibindo decisões
autônomas e por vezes incutindo o medo de se colocar e de decidir
enquanto conselheiro. Essa inibição do ser subjetivo, e com ele grande
175

parte da capacidade transformadora das instituições (CAMPOS, 2000) é


o segundo problema ético encontrado na categoria da representação no
CMS.
Por fim, o último “ponto de pressão” a que deve mediar o
conselheiro é a sua posição enquanto representante de toda a sociedade.
Essa posição do ser coletivo legalmente exigida – “Os segmentos que
compõem o Conselho de Saúde são escolhidos para representar a
sociedade como um todo, no aprimoramento do SUS” (BRASIL, 2003,
p.6) e moralmente aceita, coloca os conselheiros nesse discurso
condenador do eu indivíduo e num sofrimento interno quando a decisão
da sua representação de base conflita com seus sentimentos de “dever”
moral. De qualquer modo é unânime entre os conselheiros seu dever
mútuo de representar toda a sociedade como o grande foco da sua
participação.
Apesar do foco comunitário ser aceito por todos, esse dever social
é fortemente atrelado aos representantes do segmento dos usuários. O fato
desses representantes não terem que atender à premissas e obrigações de
instituições que tenham interesses diversos ao dos usuários coloca-os
numa posição mais ´confortável´ para exercer seu papel criativo e crítico
para ‘modelar as democracias modernas” (LUCHMANN, 2011, p. 120).
Acontece que essa maior abertura na defesa da saúde coletiva coloca nos
representantes desse segmento uma maior cobrança pela posição do
usuário, nesse sentido encontra-se o terceiro problema ético – o desse
segmento ser ou não formado por usuário do SUS.
Às vezes ele vem como usuário, mas não é nem
usuário do sistema, então pelo menos que ele seja
usuário do sistema, pelo menos isso, e aí sim, aí ele
já viveu, já teve possivelmente recusas de
atendimento, então ele tem essa vivencia
individual. Então tem gente que dá exemplo do
tipo: “porque a minha empregada foi lá e fez isso,
porque o fulano foi lá e não sei o que, mas a pessoa
mesmo nunca pisou numa Unidade, não sabe nem
o que que é ser usuário do SUS, e tá lá
representando o usuário do SUS (G2).
Eu não utilizo o sistema não, porque assim o fato
de eu não usar não quer dizer que eu não tenha que
brigar pela qualidade dele, eu represento o bairro e
as pessoas utilizam, então você tem que discutir o
funcionamento e a qualidade dos atendimentos.
Tem muita gente que faz essa pergunta: “mas você
176

não usa porque você ta lá?” Eu digo, qual é o


problema? Eu preciso conhecer e brigar pela
política, as pessoas precisam conhecer o processo
né, os direitos (U3).
De fato ser realmente usuário do SUS parece aproximar a
discussão dos conselheiros da realidade do sistema de saúde,
principalmente por estar vinculados ao segmento dos usuários trazer a
chamada “realidade da ponta”. Esse seria o ideal de uma representação –
um indivíduo que tivesse uma vivencia mais próxima possível à vivencia
daqueles que ele representa, mas, a exemplo do sufrágio universal, ser
representante é ser escolhido pela maioria dos votos em plenária. Assim
como a crise da democracia no Brasil, que não tem sido capaz de incluir
diferentes grupos e demandas no processo político decisório, alimentando
a distância entre representantes e representados, a democracia
representativa fica, nesse sentido, debilitada (LUCHMANN, 2011).
De qualquer modo, o controle social por meio dessa participação
social – embora representativa, tem conseguido diminuir o
distanciamento da esfera institucional política das demandas locais, neste
sentido promover a representação democrática dentro do SUS tem
justamente buscado aumentar os espaços públicos e os atores sociais
envolvidos. Se a representação hoje ainda não é a mais satisfatória cabe
aos conselheiros e sociedade abrir espaço para essas discussões.
Mesmo que não haja uma obrigatoriedade legal de se vincular a
representação dos usuários à utilização do SUS nos seus serviços de
Atenção Básica, não significa que não possa haver uma deliberação moral
sobre o tema – o que implica dialogar sobre toda a gama de possibilidades
que o tema trás, e não somente entre o “ser ou não ser” usuário. Será que
seria imoral ‘esperar’ (participando) que o SUS seja ‘bom’ para se tornar
usuário? Seria imoral não usar diretamente os serviços públicos de saúde
e representar os usuários?
Essas questões devem ser dialogadas no CMS. Em contrapartida,
o que não pode haver é uma atribuição exclusiva às associações e
organizações civis o compromisso da “virtuosidade moral e da
capacidade de mudança social” (LUCHMANN, 2011, p. 135), pois
mesmo havendo a representação do segmento dos usuários, resguardar a
saúde enquanto um bem de toda a sociedade é um dos valores que
embasam toda a construção do CMS.
Por fim, o reconhecimento e a mediação entre o pluralismo de
valores morais e a diversidade de interpretações do que é ser um
representante de CMS pode alimentar um melhor diálogo entre esses três
177

pontos de pressão – individual, de base representativa e coletiva, visto que


a opção por apenas um deles tem gerado diferentes problemas éticos.
Para Campos (2000) o sujeito capaz de renunciar em absoluto a
sua dimensão interna jamais alcançaria algum grau de autonomia, ficando
totalmente a mercê de interesses externos, por outro lado o “não abdicar”
de nenhuma parte dos desejos e interesses pessoais tampouco o
possibilitaria viver em sociedade. Estabelecer uma aproximação entre
essas diferentes dimensões torna o trabalho de conselheiro mais tranquilo,
visto que todos eles, como condição humana, baseiam-se em valores que
justifiquem suas ações. É essa capacidade de se relacionar de forma
dialética e de articular com suas bases representativas seus valores
individuais e coletivos, que leva ao cumprimento do papel do conselheiro
na formulação de estratégias e diretrizes e no acompanhamento
ininterrupto da execução de políticas, conectando-as com os direitos e
necessidades dos seus segmentos (BRASIL, 2002a, p.6).

Participação: por uma “re-valoração” dos valores


democráticos.

“Se metade do CMS fosse ativo, como eu como mais uns dois ou três
que são, ah daí nós íamos ter uma força violenta né...” (U5).

O reconhecimento da participação social no Brasil por meio de


bases representativas (a representação democrática) traz uma nova
legitimação política ancorada na ideia de que “as decisões políticas devem
ser tomadas por aqueles que estarão submetidas a elas por meio do debate
público” (LUCHMANN, 2011, p.130). Quando o SUS incorpora este
modelo de participativo por meio do Controle Social dentro do CMS tem
como objetivo materializar um local em que a sociedade pudesse
pressionar, fiscalizar e acompanhar as ações do Estado (BATAGELLO,
2011), porém o simples estabelecimento desses espaços deliberativos não
tem garantido a qualidade da participação social. De acordo com
Luchmann (2011) quando se analisa de fato esses espaços de participação
como os conselhos gestores a realidade deixa transparecer situações bem
diferentes do desejado “engajamento cívico”, o que se encontra é uma
quantidade reduzida de indivíduos efetivamente ativos.
Olha não dá nem de dizer que eu me sinto
contemplada nas discussões do CMS, ou que eu me
enxergo dentro das decisões finais, porque eu fico
num papel meio de espectadora. Embora, eu seja
178

conselheira, tenha voz no conselho, eu acabo


ficando muito mais na posição de passar
informação[...] muitas vezes dizem “tem alguém
que é contra?” E aí quando você não se manifesta
você acaba sendo favorável. Então eu acabo muitas
vezes contemplando o que foi colocado em
discussão meio sem uma opinião própria, sabe?
(G1).
A gente pergunta se mais alguém quer participar,
não tem mais ninguém... como por exemplo eles
reclamaram da prestação de contas, aí quando que
chamei pra participar ninguém levantou a mão... e
todo mundo reclama! [...] olha não é fácil... (G2).
Acho que por interesse, acho que, quando a gente
tem interesse de fazer algo, a gente dá um jeito de
ir. O outro são impedimentos mesmo, a pessoa
trabalha, não pode sair... mas, mesmo assim, [...]
tem apresentações que são disponibilizadas, mas vê
se tem interesse? (U5).
A cidadania só pode ser efetivada quando os indivíduos se
envolvem e participam das questões públicas, pois a dedicação somente
aos assuntos privados não os contentam mais. Este participar dos espaços
políticos necessita de um interesse alimentado pelo sentimento de
pertencimento desses cidadãos a uma comunidade, onde o caráter
obrigatório nem seria capaz de estabelecer o mesmo poder de
comprometimento (CORTINA, 2005b). Se não há uma dedicação e uma
autoresponsabilização dos conselheiros em se mobilizar e participar das
decisões, os CMS correm o risco de se transformar em meros espaços de
formalizações legais.
Uma coisa que eu noto muito é o seguinte, embora
ao final de cada sessão a gente aprove a pauta da
próxima plenária, pouca gente dentro do conselho
procura se apoderar do que vai ser tratado, eu as
vezes peco com isso, eu também as vezes incorro
nesse erro (U5).

...eu acho que os conselheiros deveriam se dedicar


a estudar alguma coisa, pegar alguma coisa, pra
quando falar, falar com propriedade, reivindicar
com propriedade, isso aí as vezes falha. Tem que
ser participativo, e lá pouca gente é (T2).
179

Se metade do CMS fosse ativo, como eu, como


mais uns dois ou três que são, ah daí nós íamos ter
uma força violenta né... em tudo quanto é lugar, é
na entidade, é no conselho, é nos grêmios, sempre
tem os puxadores de carroça, que puxam e dez vão
em cima, então eu me considero um puxador de
carroça, e o CMS tem uns três ou quatro que são
ativos (U5).
[...] desses conselheiros que tem nossos aqui hoje,
tem três, quatro, que vão pro embate, o restante
entra mudo e sai calado. Isso quando não dorme na
reunião inteira (U6).
A efetiva atuação das representações de grande base da sociedade
é considerada fundamental para corrigir as desigualdades econômicas e
promover a “competência regulatória requerida para a promoção do bem
comum” (COHEN, 2000, p.43, apud LUCHMANN, 2011, p.130). A
ainda baixa adesão e engajamento pessoal dos conselheiros revela o
primeiro problema ético da participação no SUS – a incoerência em
ocupar espaços de representação coletiva sem de fato participar ou
realizar enfrentamentos.
Como não há uma obrigatoriedade, ao menos em tese, da
participação dos conselheiros, o cumprimento das suas atividades
enquanto Controle Social fica à mercê da consciência desses
representantes, das suas responsabilidades sociais e políticas. Instaurar de
‘dentro pra fora’ essa nova cultura política de democracia participativa
sem preparar a sociedade, sem investir em outros mecanismos de
produção cultural de cidadania parece não estar surtindo o resultado
esperado, ou ao menos, tem tornado os resultados do CMS ainda lentos e
pouco expressivos. A simples inovação democrática da exigência legal da
participação no Brasil não a qualifica como um valor moral a ser
constantemente exigido, nem ‘dentro’ do CMS nem ‘fora’ dele. Neste
sentido, reforça-se a importância da reflexão ética e da deliberação moral
nesses espaços que precisam evoluir em consciência mesmo depois de
consolidados legalmente.
Olha são eles que votam, eles que elegeram o cara
pra tá lá também, então... talvez eles não tenham
ciência do potencial que se tem na representação de
um conselho. Isso eu percebo, talvez o que falte é
isso (G3).
180

A população politicamente ainda não entendeu o


papel dela, ela vota no amigo, vota no cara que deu
emprego pro amigo dele [...] isso aí me apavora, as
pessoas são eleitas dessa forma, quando não tem
dinheiro direto, por que isso acontece, a gente que
tá no bairro dia a dia a gente vê, e eles se sujeitam
a isso, não entenderam que não é esse o processo
(U3).
...as pessoas hoje também não querem participar,
não querem ter o trabalho de se organizar, discutir,
pra defender seus direitos. Não vem dizer que
querem porque não querem não, são muito
acomodados. Marca uma reunião no bairro da
associação de moradores pra discutir um tema,
quem não tá no dia a dia envolvido não vem, são
sempre os mesmos. Não é também só culpa dos
conselheiros não, é da própria sociedade (U3).
Um dos determinantes para um bom governo é o envolvimento e
comprometimento voluntário das pessoas em atividades públicas,
pautado pela confiança e reciprocidade capazes de diluir o individualismo
e a desconfiança, estes sim “corrosivos” a uma sociedade democrática
(LUCHMANN, 2011, p.121).
E a população tava se mobilizando, a sociedade
tava querendo participar, porque? Porque tava se
sentindo sujeito no processo, sabe “eu ajudei a
decidir sobre esse assunto”, “essa obra saiu porque
eu tava lá e ajudei a defender”, sabe? Ai as pessoas
tavam se sentindo importantes no processo, né
porque só ir lá votar no dia e deixar a
responsabilidade pros outros não satisfaz mais as
pessoas. E aí o que o governo fez? Foi lá e cortou
o processo (U3).
...é difícil de te responder se eu sinto realmente que
o cara é representativo ou não, ele tem a garantia e
ele tá lá hoje, então se ele não faz o uso é porque
ele também não é instrumentalizado (G3).

Mesmo com a participação social legitimada pelas esferas


governamentais aproximando a população dos espaços decisórios, as
condições políticas, culturais ou educacionais podem tornar o processo
participativo tão irrelevante que um cidadão pode se sentir quase
181

“obrigado” a desistir de participar (CORTINA, 2005b). Esse “gap” entre


a legitimação política da participação social e os ainda insuficientes
mecanismos de preparo e inclusão da participação como um valor moral,
que possam solidificar uma cultura da cidadania participativa, acaba
reproduzindo os mecanismos “hegemônicos de democracia” do próprio
sufrágio universal, que, para alguns estudiosos, não passa de um
mecanismo de dominação daqueles que são ‘representados’ (STOLZ,
FRANCKINI, KYRILLOS, 2011). O baixo incentivo à consolidação dos
mecanismos de sociabilização política como uma forma de cultura cidadã,
deixando por vezes os CMS solitários na sua participação, é outro
problema ético encontrado nessa categoria.
O caminhar de uma “re-valoração” dos valores culturais da
sociedade, com maior adesão pelo processo participativo apesar de
bastante lento vem ganhando maior visibilidade. Como o incentivo,
principalmente do Estado, em reconhecer e estimar os valores da
participação social em outras instâncias não políticas, é ainda insuficiente,
é o próprio espaço do CMS, concebido para o exercício da cidadania, que
vem servindo de ‘incubadora’ para esses novos interesses e desejos da
democracia participativa.
...nós começamos a perceber o quanto o conselho
municipal estava distante das comunidades, e só
havia um jeito - era trazer todo mundo pra cá. Hoje
você pega aí os CLS são muito representativos
também, e eles tem uma participação, eles se
reúnem no conselho. [...] e assim, tá se fazendo um
trabalho de ampliar a construção desses conselhos
locais, de formar esses conselhos. Então eu acho
que tem participação, não só pelos que estão com
acento no CMS (T2).
...as capacitações devem continuar, ter que insistir
nas divulgações perante as comunidades [...]
mobilizar mais as comunidades para ter maior
número de pessoas para gerar o interesse futuro de
ser conselheiro (Ata02; G4).
...a partir do momento em que nós fortalecemos a
câmara técnica, os conselheiros começaram a
participar efetivamente da câmara técnica, nos
passamos a ter um outro compromisso de todos
com as questões técnicas e passamos a exigir muito
mais do gestor. Né, você vê hoje o gestor pedindo
182

pro conselheiro participar de discussões técnicas


[...] antes não havia né (U2).
...até como pessoa comum independente de ser
conselheiro, você descobre uma porção de coisas
né, aprende uma porção de coisa. E assim como,
imagino, que assim como eu, outros conselheiros
que também estão focados para uma determinada
área descobrem coisas de outra, ah eu acho muito
rico (G1).
...nada ensina mais do que estar na pratica do dia a
dia, estar discutindo dia a dia e compreendendo o
que que é o sistema no dia a dia. Porque daí não é
uma coisa que a gente lê em livro ou que está
escrito num artigo [...] são coisas muito práticas
que nos ensinam o que é o sistema e como pode
melhorar o sistema (U2).
São as diferentes pressões e exigências exercidas em espaços
coletivos que podem servir como um antídoto para os poderes já
estabelecidos e convenções enrijecidas. Esses “contrapoderes’ tencionam
positivamente a lógica interna de espaços coletivos, servindo de substrato
para transformações internas e sua repercussão externas, sociais e
políticas (CAMPOS, 2000). O aprender a participar dos espaços públicos
alimentado pelo próprio processo do aprender participando leva a um
aumento da civilidade. Essa retroalimentação positiva tem um potencial
transformador a medida que difundido e estimulado em todos os espaços
sociais possíveis.
A inclusão e abertura para o diálogo de diferentes atores sociais
dentro do CMS pode promover três grandes efeitos benéficos à
democracia (MUTZ, 2006 apud LUCHMANN, 2011): primeiro a
expansão da consciência e tolerância argumentativa provinda da
exposição a diferentes pontos de vista:
Eu aprendi muito com os outros segmentos, com as
pessoas, com outros profissionais, porque cada um
de nós tem uma formação também. E tentar
construir um edifício juntando todo esse elenco,
esse conjunto de dificuldades e particularidades,
para construir o todo [...] foi um aprendizado bem
grande pra mim, cresci um pouco mais a minha
visão política e social... e poder também, como
pessoa, contribuir nas discussões e tentar achar um
bem comum pra todo mundo (T1).
183

Paciência, ser capaz de ceder pra fazer a unidade,


saber identificar naquela proposta toda o que é mais
importante. Mas eu acho que paciência e
capacidade de diálogo, a coisa que eu mais aprendi.
E lógico, outras coisas em relação à saúde que a
gente nunca sabe tudo, e vai estar aprendendo
sempre, mas paciência e ter capacidade de diálogo
com certeza (U4)
Segundo - o espaço participativo proporciona o reconhecimento do
território e da realidade atual e o aumento do conhecimento, no mínimo
ampliando o acesso a novas informações:
Eu aprendi muito até sobre o próprio sistema, eu
vejo os resultados que o município alcança, os
movimentos que são feitos pra determinadas
políticas serem cumpridas. As entidades mesmo, os
próprios representante de classe que trazem
algumas informações, que contribuem né (G1).
...a reunião, claro ela instiga, mas ela não me traz
dados suficientes pra que eu conheça tudo isso. Eu
me vejo assim, como alguém que chegou no CMS
hoje e assiste uma reunião, vai ter que ir pra casa
estudar, porque aquilo ali não dá conta, claro e nem
é pra isso, a finalidade não é essa, mas eu aprendi
muito, nossa, aprendi muito sobre SUS, aprendi
muito como as relações políticas funcionam, como
as representações tem diferentes características e
como as pessoas se colocam (G3).
E, por fim, essa abertura para a atuação da sociedade amplia o
respeito político, no que tange o reconhecimento de diferentes valores e
experiências, e a própria liberdade de vivenciá-los e expressá-los:
Aprender a lidar com o setor público, você tem que
aprender a lidar com eles, com a morosidade dos
processos, lento... Aprender a lidar com isso e ver
como agilizar também né, entender pra também
não ficar só na espera. É um processo, pra mim
mesmo como cidadã, porque eu não posso fica só
fechadinha aqui no setor e não abrir todo o resto da
cidade, discussão de plano diretor e tudo mais...
tem muita liderança comunitária que conhecem
100 vezes mais que vereadores (U3).
184

Tanto o executivo ficou mais maduro, como o


próprio CMS [...] ele vai ficando mais consciente
de sua força, até onde ele pode fazer, o que que ele
pode fazer. Tem coisas que cabem ao município,
outras ao estado, e o conselheiro vai aprendendo
esses caminhos né (U5).
O estímulo à cultura da participação é de fundamental importância
para a disseminação e o aprofundamento da democracia. O estímulo aos
setores reconhecidos e mesmo os não institucionalizados pelo Estado tem
o poder de pressionar os poderes políticos (interno e externamente) a se
difundirem, ampliando a ação tradicional dos movimentos sociais e
perpetuando o importante papel de “tornar a democracia, por assim dizer,
mais democrática” (STOLZ, FRANCKINI, KYRILLOS, 2011, p.196).

Visão do Coletivo: saber-se e se sentir cidadão.

“às vezes as propostas são muito direcionadas [...] como se fosse “pra
mim” e não é, a discussão tem que ser voltada para um todo” (T1).

A consolidação da cidadania por meio da participação social exige


um saber e um se sentir cidadão de uma comunidade para que os
indivíduos trabalhem por ela, se comprometendo em projetos comuns.
Esse exercício de cidadania demanda os sentimentos de justiça e de
pertencimento para que esse trabalho visualize um bem comum a todos -
um ‘ser’ no coletivo (CORTINA, 2005b).
O participar por meio do Controle Social vai aproximar os valores
e interesses individuais, que são, por vezes, importantes até para um
sentido de sobrevivência, típicos da vida privada, com os valores da vida
pública, do viver em coletivo que objetivam portanto o melhor para todos.
A aproximação dos valores individuais com a busca de realizar os valores
coletivos é um enfrentamento necessário ao CMS.
...acho que um distanciamento das concepções
individuais, porque, querendo ou não, a gente não
pode levar tanto as opiniões pessoas, as dúvidas
pessoais, [...] porque o que eu percebo dos
conselheiros é que as vezes eles vão lá e levam
dúvidas deles... “ah como é que eu faço pra pessoa
tal conseguir tal cirurgia?”, não! a minha
preocupação tem que ser assim “porque que o
acesso à cirurgia ortopédica, por exemplo, tá tão
185

difícil hoje no município? Vamos problematizar


isso no CMS? Não querer resolver um problema do
meu CLS e nem o meu problema da minha rede
aqui, mas sim uma discussão ampla assim né (G3).
...ele ter princípios e valores que faça com que ele
tenha a melhor decisão possível, que ele consiga
pensar no bem maior que é a saúde pro usuário, e
não por influencias políticas ou por questão
financeira dele poder ganhar alguma coisa diante
disso, ele poder ser beneficiado com aquela atitude
(G2).
O Estado, por todas as formas possíveis no
passado, queria tirar isso do município, queria
passar para outra região [...]. A Secretaria do
Estado é contra o nosso município (Ata02;G4).
Os valores morais são individuais e coletivos, podendo ser
universalizáveis, como por exemplo, a liberdade, igualdade,
solidariedade, respeito e diálogo - valores do agir cívico (CORTINA,
2005b). Quando os valores individuais conflitam ou sobrepõem esses
valores cívicos, temos um problema ético dentro do CMS, um conflito de
interesses. Onde as reuniões tornam-se palco de disputas particulares e
desejos pessoais. Mesmo as aspirações das representações de base podem
conflitar com esses valores universalizáveis, onde a defesa desmedida dos
interesses das representações pode também caracterizar problemas, ou
mesmo conflitos de interesses.
Enxergo fortalezas dentro do CMS [...] pessoas que
não puxam pra um lado só, não puxa pra uma área
específica, pra um só olhar. Então é diferente de
algumas pessoas que né, que só querem saber da
sua área, mesmo sem querer não é nada intencional
as vezes... (T2).
...às vezes o despreparo das próprias pessoas que
“viajam”, aproveitam um determinado assunto e ai
vão “falando, falando” até chegar aonde é a coisa
da representação de classe, ali eu “sou
representante de tal coisa” ai eles falam de uma
coisa la na frente e ele vem trazendo aquilo de um
jeito até chegar no ponto, até conseguir fazer um
link, que na verdade não existe, naquilo que é o
interesse dele, da representação dele, e aquela
186

situação que está sendo apresentada acaba ficando


de lado, então isso eu vejo bastante. (G1).
...na verdade o conselheiro chega e não sabe de
muita coisa, mas se ele tem ética, se ele quer que o
SUS de certo, ele consegue, ele consegue aprender.
Então tem que ter vontade de aprender, estar
disponível pra aprender, [...] não adianta, vem um
cara com um baita conhecimento, com papo, tu
sabes que se tu apresentar aquilo pra ele, ele vai
entender. Só que o cara não é um cara que é
confiável, ele tá ali pra olhar só pro dele (G2).
Essa visão do coletivo, esse olhar sobre toda a miríade de valores,
conseguindo extrair desses diferentes interesses aqueles que satisfaçam
da melhor forma a sociedade é algo em que os conselheiros necessitam
estar atentos. Essa questão dialoga, em alguma medida, com as diversas
reflexões que vem sendo feitas sobre o utilitarismo como ferramenta
Bioética (NASCIMENTO, GARRAFA, 2011) - a busca moral e política
de se estar visualizando o bem coletivo no CMS em todos os processos
deliberativos, não o coloca como regra protocolar (principalmente por
estarmos tratando de possíveis deliberações morais), mas não há como
não considera-lo em todos os processos decisórios – principalmente por
se tratar do CMS, um espaço público.
A deliberação pode auxiliar a aproximar, em torno de um objetivo
que seja comum a todos, todos os valores que estão ‘em jogo’, quanto
mais aproximados esses valores mais facilmente se consolidarão as
decisões deliberadas e com elas as reformas sociais que lhe cabem.
Quanto mais o indivíduo acerca seus próprios interesses aos interesses
coletivos, melhor ele se enxerga dentro da sua comunidade e maior se
torna o seu senso de pertencimento, tornando mais empoderada sua
participação.
...claro que às vezes as ideias conflitam com a tua
ideologia, do que tu realmente acreditas do porquê
estar ali, por um bem comum né, e as vezes as
propostas são muito direcionadas, são muito
incomuns né, é como se fosse “pra mim” e não é, a
discussão tem que ser voltada para um todo. [...]
então eu vejo que alguns projetos, algumas ações
elas são um pouco direcionadas entende, eu acho
que é a parte onde eu me sinto mais à vontade pra
abrir o debate, pra discutir... (T1)
187

Mas foi assim por uma questão pessoal minha, de


ver aquela UBS, porque eu me apavorei, tinha um
ventilador que era de rir, ele nem girava... agora já
tiraram tudo, a nova coordenadora tirou, chegava a
ser cômico. E a questão de segurança né, já fui lá
conversar com o secretário de saúde e ele me deu
uma resposta mau criada, mas eu nem liguei, não
tô pedindo pra mim. Enquanto eu não tiver pedindo
pra mim eu sou dura na queda, sou chata, insistente,
o secretário de educação que disse pra mim “mas
você vem me pedir de novo!” Eu disse não é pra
mim é pras crianças do meu bairro, isso parece que
te dá mais força (U3).
De igual forma as decisões em saúde pública podem gerar conflitos
éticos por “limitarem ou restringirem liberdades e decisões pessoais, em
nome da supremacia do interesse público”, como algumas ações da
vigilância epidemiológica e sanitária. Assim a visão do coletivo dentro do
CMS deve estar sempre animada pelo bem da saúde da comunidade, e de
forma complementar, sempre dialogando com os direitos e liberdades dos
indivíduos (FORTES, ZOBOLI, 2003, p. 17) e, no caso dos CMS,
também das representações.
Se o bem global pode ser construído a partir do bem local
(CORTINA, 2005b, p.207), o bem individual também estará presente no
bem coletivo. Essas ponderações entre individual/coletivo são próprias da
ética e da moral de uma sociedade, e portanto também pertencem aos
espaços de Controle Social. O desafio portanto passa mais uma vez em
aproximar a Bioética desse campo de resolução de conflitos, trazendo
essa percepção de que nem tudo pode ser resolvido pela ‘razão suprema’
e pela tecnocracia - existe um leque de fatores sociais e políticos,
constantemente renovados pelos saberes produzidos por essa renovada
democracia participativa, que podem enfrentar as diferentes injustiças e
desigualdades do mundo atual (GARRAFA, 2005).

Saúde Pública: o olhar da colonialidade.

“Aqui tem o deboche da própria sociedade civil – ‘ah isso aí é serviço


público, é assim mesmo’, [...] se é serviço público eu quero serviço de
qualidade!” (U3).
188

Sob a égide da Constituição ‘Cidadã’ constrói-se no Brasil pós-


ditatorial uma cidadania amplamente baseada em direitos, que foi, de
‘grito em grito’ ampliando sua fatia de direitos e conformando os deveres
cidadãos. Apesar desse avanço sobre o reconhecimento das opressões e
discriminações socioculturais, muito se perdeu por não se dar o devido
valor às reflexões acerca das desigualdades sociais e às raízes históricas
do processo de colonização, responsáveis por articularem diversas formas
de dominação (SCHERER-WARREN, 2011).
As diferentes formas de dominação, muitas das quais, como já
vimos, reproduzidas pelos órgãos públicos, têm sido estudadas como
resultados da colonialidade. Edificada sobre os processos históricos de
colonização e produção de desigualdades, a colonialidade carrega a marca
da dominação que impregna, além de conceber, estruturas culturais,
políticas e ideológicas, todas elas embutidas da visão ‘eurocentrada’ de
interpretação do mundo (NASCIMENTO, GARRAFA, 2011).
Esse olhar eurocêntrico colocou o mundo desenvolvido, moderno,
como um ideal a ser alcançado onde, sob este pilar, tudo que não é
moderno é visto como não-civilizado, retrógrado, que precisa ser
educado, melhorado, desenvolvido. “Há uma quase natural afirmação da
inferioridade de quem não é marcado pela modernidade”
(NASCIMENTO, GARRAFA, 2011, p.290). Esse pensamento
colonialista impôs (e ainda impõe) padrões morais, econômicos e
políticos marcados pelo acumulo de poder, capital e saber científico,
colocando os produzidos como desiguais como bárbaros a serem
‘generosamente’ salvos pela modernidade. Esses padrões ideológicos
respingam em todas as formas de socialização, incluindo o olhar sobre a
saúde pública – que sobre esse arrimo é reproduzida como subalterna,
antiquada e que, por ‘desprestigiosamente’ ser de todos, acaba não sendo
de ninguém em especial – sem um valor de desejo intrínseco também não
lhe é atribuído muito valor externo.
Porque que serviço público da Dinamarca funciona
e aqui não funciona? Aqui tem o deboche da
própria sociedade civil “ah isso aí é serviço
público, é assim mesmo”, entendeu? É isso que eu
tô dizendo, se é serviço público eu quero serviço de
qualidade! Enquanto a sociedade não incorporar
isso, vai ser a mesma coisa sempre (U3).
[...] botar na cabeça que o SUS é meu também, é
dos outros, mas é meu também, vamos lutar por
isso daí. [...] eu acho que a lei tem que ser
obedecida, se a legislação do SUS for obedecida eu
189

acho que não precisa prometer nada. No papel o


SUS é a coisa mais linda que existe (U5).
Apesar do arcabouço legal do SUS ser, sob muitos aspectos, um
ideal a ser seguido por muitos países, a população brasileira ainda associa
o sistema público como um signo negativo. Parece existir uma
colonialidade das palavras que se aplica ao signo do ‘público’ – que é
subalterno e antiquado e de baixa qualidade - e que por ser
ideologicamente reproduzido pelas grandes mídias (estas sempre sob o
interesse do capital) impregnou o imaginário da população. Sem negar os
diversos problemas existentes (muito dos quais advindos desse próprio
descaso com o que é público) entende-se que essa colonização de ideias
impute signos negativas até em quem não utiliza a assistência direta da
equipe de saúde da família. Esse imaginário sendo reproduzido dentro do
próprio CMS é um dos problemas éticos encontrados – defender e
valorizar um sistema público que prima pela visão ampliada da saúde em
meio ao imaginário popular sob o signo da colonialidade privatista e
tecnocrática.
A colonialidade sobre o que é “público” leva a um olhar do que ‘é
de graça – é ruim’. Uma forma encontrada pelos conselheiros de combater
esse olhar desvalorizador foi mostrar que a saúde pública é paga por todos
- ela tem o seu custo nos impostos por isso ela deve ser valorizada. Este
pensamento não busca ‘revalorizar’ a égide do direto, mas se concentra
em proteger o que tem valor monetário, por isso deve ser bom.
“Hoje não uso o SUS, tenho um bom convenio, da
empresa do meu marido. Pago por ele então eu uso”
(U3).
...sabe, não dá, eu não consigo admitir que “ah
porque é de graça”, não é de graça, tem que
começar a botar na cabecinha dessa gente, cheia de
caraminhola, que é pago, sai do bolso de todo
mundo (U6).

A população não está acostumada num sistema


Brasil de assistencialismo, nós somos um país
assistencialista né, aonde a gente contribui, a gente
paga e acha que vem de graça (T1).
A colonialidade também traz a marca da “generosidade” dos que
estão em condições favoráveis de desenvolvimento e que por isso
auxiliam os desiguais, os marginalizados, não porque estes têm direito à
190

uma vida digna, mas sob o olhar da assistência generosa e gratuita do que
é público – não para todos, mas para aqueles que não podem pagar por
qualquer outra coisa ‘melhor’. Neste sentido a Bioética tem um papel
fundamental nessas questões persistentes advindas da desigualdade,
principalmente em defender os vulnerados, politizando sobretudo esses
problemas morais (GARRAFA, 2011).
Há outro resquício de colonialidade sobre a cultura da saúde
pública no Brasil – a dificuldade de descolar a visão tecnocrática como
condição ímpar na busca de um SUS de qualidade. A tecnologia pode ser
positiva e tem sido requerida sob vários aspectos dentro do sistema
público, o problema se concentra em colocá-la como condição única na
busca pela saúde, fazendo persistir um olhar biomédico, principalmente
como medida de valoração do SUS.
[...] eu vejo muito isso... o orçamento foi
atendimento, os indicadores...quantos ultrassons
quantos raios-x, é tudo com relação a consultas...
(T2)
[...] às vezes eu penso que quando se discute saúde
eles estão discutindo só o atendimento nos centros
de saúde. Pra mim saúde é muito mais que isso.
Não vi o CMS ter uma relação com a questão da
saúde preventiva [...] Como que é a qualidade de
água e saneamento? Como que é qualidade da
habitação dessas pessoas que são atendidas aqui?
[...] E depois isso é discutido coletivamente? Quem
é que faz isso? O administrador daqui do CMS,
quando medico traz relatos de condições precárias
numa família, isso depois é debatido no coletivo do
executivo pra tentar resolver o problema
conjuntamente? Eu não vi isso, senão, não vai dar
certo, discutir só o atendimento a saúde, a
distribuição de medicamentos, que é importante,
com certeza que é, mas eu acho que saúde é mais
que isso [...] eu não consigo ver esse debate
isoladamente (U3).
A dificuldade de se consolidar nas vias práticas, o que já foi
articulado na lei, se concentra na própria barreira de mudar o imaginário
colonizado da população sobre a saúde, sobre o que é um serviço de saúde
que pode para além de tratar doenças, produzir saúde.
Alguns países vêm buscando consolidar a qualidade de vida da sua
população sobre patamares menos condicionados pelo olhar tecnocrático,
191

a exemplo do Butão que adotou o FIB (felicidade interna bruta) para


medir seu ‘desenvolvimento’ interno, e da Bolívia que determina
constitucionalmente a busca pelo bem-estar social, passando a entender
que o importante para o país não são as coisas produzidas, as riquezas
materiais, mas o que essas coisas produzidas proporcionam
concretamente para a vida das pessoas (GARRAFA, 2011, p. 292). Neste
sentido cabe também retomar o conceito de mínimos de justiça de Rawls
trazido por Cortina (2005b), como da necessidade de encontrar em uma
sociedade o que a mesma considera justo. Uma vez que se tenha esses
mínimos providos, cada um por si poderá buscar o que considera
felicidade, ou mesmo qualidade de vida.
Esse papel da saúde para além do “número de consultas” pode ser
criticamente pensado como um reflexo da saúde enquanto poder político,
como forma de angariar votos e manter hierarquias. Uma população
convencida pelas ideias da colonialidade é desejável para uma política
que busca concentração de poder ao invés de transformação social.
Eu acredito muito no SUS, uma vez uma
conselheira, numa briga dessas por questões de
política, largou assim: ‘eu não tenho partido, meu
partido é o SUS, minha bandeira é o SUS, isso é o
que eu uso, porque eu sou 100% favorável a uma
política de saúde e não uma saúde política’, e eu
concordo porque é isso que ocorre nesse Brasil
(U5).
...em alguns momentos a política quer aproveitar o
momento social, a dificuldade, a necessidade, pra
perpassar uma situação de apoio a sociedade,
usando da política e ao mesmo tempo colocando
essa política como contraria a que estava sendo
válida, no caso a política do comando, é a disputa
entre os partidos né, vamos dizer assim [...] a ponto
de sair moção de repudio, então coisas assim desse
tipo são as que mais me chamam atenção (G1).
A necessidade de um olhar crítico, que se paute no entendimento
da Bioética como questão essencial para a transformação paradigmática
do que é um sistema público de saúde, e que reflita sobre os biopoderes,
é um problema ético do CMS – construir uma ‘política de saúde e não
uma saúde política’. Ou seja, uma política que pense a saúde como um
bem comum a toda sociedade, e que, portanto, visualize a dimensão
política inerente à saúde, colocando-a como questão de todos, e não um
subterfúgio para ‘politicagem’ - uma forma de discurso político que não
192

ultrapassa a linha da promessa, servindo como palanque de candidaturas


e que não evolui para ações concretas de transformação social.
É fácil perceber que quando os ditames hegemônicos estão
ancorados na lógica da colonialidade é necessário utilizar-se de uma
reflexão ética que busque entender de que maneira o imaginário sobre os
conceitos de vida e saúde estão em jogo como condição sine qua non na
busca por outros conhecimentos e por políticas moralizadas (GARRAFA,
2011).

Eficiência: o CMS como possibilidade de transformação


social

“[...] a gente usa muito a questão de pedir com ressalva a aprovação, só


que essas ressalvas nunca vem o retorno, só tem uma via, não tem via de mão
dupla” (T1).

De acordo com a pesquisa do IBGE sobre o perfil dos municípios


brasileiros (BRASIL, 2012) os conselhos municipais de saúde estão
presentes em 97,3% dos municípios do país, uma abrangência bastante à
frente da maioria dos conselhos municipais de políticas públicas. Muito
dessa presença se refere à obrigatoriedade constitucional da presença
desses conselhos nos municípios, e sua vinculação ao repasse dos
recursos da saúde da União para os municípios (BRASIL, 1990).
Acontece que a garantia legal desses espaços de participação não os
consolida como instâncias efetivas de Controle Social (BRAVO,
CORREIA, 2012).
Tudo se resume a isso: o que vier é aprovado no
final. [...] Porque se não for aprovado não vem o
repasse das verbas, e daí a gente fica amarrado [...].
Então fica sempre na mão daquele que executa os
projetos e ele decide. E aí a gente fica meio que a
mercê da sorte né, a única coisa é ter a convicção
de que todos que estão ali estão pelo bem comum...
então se todos estão ali por um bem comum, e vão
decidir algo para todos, pra mim e pra todos, talvez
seja confortante saber que foi aprovado e fim de
papo, está sendo feito e foi aprovado (T1).
A falta de governabilidade do Controle Social em não aprovar ou
mesmo contestar as demandas impostas a plenária é, por vezes, atribuída
a essa ‘amarração’ legal do repasse federal de verbas, esse
193

condicionamento pode, em alguma medida instrumentalizar o Controle


Social. A dificuldade de deliberar sobre demandas atreladas a repasses
financeiros ou mesmo demandas para além das obrigatoriedades legais é
um problema ético que diminui por vezes a efetividade do CMS.
De acordo com Bravo e Correia (2012) evitar que as reuniões dos
Conselhos de Saúde tornem-se meros mecanismos instrumentais de
consentimento público às execuções do Estado é um dos maiores desafios
desse espaço de participação social.
As dificuldades de consolidar ações concretas ‘desde dentro’ do
Controle Social vêm se dando por diversos artifícios, muitos deles já
citados anteriormente neste trabalho, como a dificuldade de fazer com que
os conselheiros se empoderem e tomem decisões mesmo que necessitem
ser contrárias à gestão; a questão da falta de tempo para deliberação nas
plenárias; a dificuldade de entendimento do que está sendo posto,
principalmente de questões muito técnicas consolidam a
instrumentalidade real do CMS.
[...] a gente usa muito a questão de pedir com
ressalva a aprovação, só que dessas ressalvas nunca
vem o retorno, só tem uma via, não tem via de mão
dupla, é uma via só. Mesmo que seja aprovado com
ressalva não tem um retorno das considerações
feitas nas ressalvas (T1).
A questão de aprovar as demandas (porque tem que aprovar) com
ressalvas, apesar de ser uma prática constante no CMS, a movimentação
no sentido de retomar as questões que necessitam ser fiscalizadas (e que
é própria da função do conselho), ainda é insuficiente entre os
conselheiros:
...normalmente acontece isso, quando é demanda
em cima da hora, põe as ressalvas, mas aprova, a
ressalva nunca mais é vista. Isso é um outro ponto
importante. Se a gente for ler as Atas da reunião de
início do ano pra agora com certeza muita coisa a
gente não retomou, e que a gente se comprometeu
lá atrás, ou deixou uma ressalva... Pontualmente
um conselheiro ou outro acaba lembrando (G3).
...a gente vê muita discussão de que “ah passa pelo
CMS, é aprovado mas depois não retorna”, isso é
uma verdade, não se tem uma apresentação
periódica de cada projeto apresentado e aprovado
(T1).
194

Isso acontece, como existe um prazo, o orçamento


pode ser aprovado com ressalvas, na resolução que
aprova o orçamento a gente coloca essa ressalva.
Agora cabe a plenária cobrar se as ressalvas foram
atendidas (U5).
Esses fatores impedem concretizações reais do Controle Social e
colocam os conselheiros num papel de consentimento ativo para o Estado.
Essa condição torna o CMS pouco efetivo no seu papel de formulação e
proposição (ações quase inexistentes de acordo com o que já foi
apresentado) e no controle, que por vezes parece mais um controle do
Estado do que sobre o Estado. Apesar da constatação da grande maioria
dos conselheiros quanto a pouca eficiência do CMS, pouco se pôde
perceber quanto à articulação de ações concretas para a mudança dessa
condição – tanto a mudança legal como moral – e que partissem dos
conselheiros, já que representantes do próprio controle social. Essa quase
conivência de alguns conselheiros aos mecanismos de instrumentalização
do CMS é mais um problema ético deste CMS.
De igual forma, a falta de governabilidade do CMS em provocar
transformações sociais reais causadas pelos próprios entraves políticos -
burocráticos e legais - também auxiliam no papel pouco efetivo desse
espaço:
...a população pode ter certeza que o conselho
fiscaliza e representa [...]. Não vai resolver
problema do médico que falta não sei aonde, isso
não, mas na somatória toda sim (U2).
...na parte política a gente observa que um sempre
responsabiliza o outro, um poder responsabiliza o
outro, então ‘não tem isso porque o Estado não
participa’, ou ‘não tem aquilo, porque o MS não
repassou’ (T1).
As necessidades e direitos sociais impõem às instituições públicas
padrões de acesso, prestação, e avaliação que, muitas vezes, contradizem
a capacidade de implementação dessas ações pelo Estado (FLEURY,
2011). Essa relação entre o poder de transformação social exigido do
CMS e a impossibilidade de uma maior governabilidade de suas ações
consolidam o último problema ético encontrado.
A baixa capacidade do CMS em efetuar ações concretas de
transformação social cria um quadro pouco atrativo para a participação
cidadã, onde o CMS não é capaz de consolidar um maior sentimento de
pertença na população – ou seja, a população não se vê atendida pelo
195

Estado e nem pelos seus mecanismos de participação, logo não sente que
o Estado lhe protege como cidadão e, portanto, não se reconhece
pertencente aos assuntos deste. De acordo com Cortina (2005b) esse
pertencimento é que seria capaz de gerar a consciência de
responsabilização e lealdade para com a comunidade, sem ela
dificilmente os cidadãos se sentirão motivados a interferir no curso da sua
vida em coletivo.

O bem comum na cultura da cidadania.

O Vazio da Consciência de Cidadania permitiu visualizar os


problemas éticos (Quadro 17) alimentados pela distância entre a teoria de
legalizar a participação democrática e a prática de torna-la um valor
social.
196

Quadro 17 – Problemas Éticos encontrados na Supercategoria do Vazio de


Consciência de Cidadania e distribuídos nas suas respectivas Categorias

Desinteresse das representações de base sobre as


deliberações do CMS.

Inibição da subjetividade dos conselheiros (a não


Representação
valorização do sujeito).

Segmento dos usuários sendo formado por


conselheiros que não utilizam o SUS.
Incoerência de ser conselheiro e não participar dos
Vazio de Consciência de Cidadania

processos decisórios - omissão.


Participação
Baixo incentivo à participação da sociedade no
CMS.

Visão do Conflito de interesses entre os valores pessoais e


Coletivo os valores cívicos.

Valorizar uma visão ampliada da saúde em meio


ao imaginário popular da colonialidade privatista e
Saúde Pública tecnocrática.
Construir uma política de saúde e não uma saúde
política.
Condicionamento de demandas a obrigatoriedades
legais.

Eficiência do Conivência dos conselheiros frente aos


CMS mecanismos de instrumentalização

Baixa governabilidade do Controle Social (pela


própria impossibilidade do Estado em prover todos
os direitos sociais).
Fonte: autoral, 2015.

As dificuldades referentes à adesão social em participar ativamente


no CMS e se enxergar enquanto membro de uma comunidade - portanto
pertencente a ela - acaba dificultando a consolidação das decisões
tomadas nas plenárias. De fato efetivar um espaço de participação pública
em que a consciência da importância da cidadania, principalmente no que
197

se refere aos deveres, não esteja inserida nos símbolos, valores e


comportamentos sociais parece prejudicar o desempenho do CMS.
De acordo com Cortina (2005b) educar a população em valores
próprios do ser cidadão é possível como também necessário, pois a
humanidade aprende o agir cidadão como aprende tudo na vida (com a
educação formal e não formal) contudo, ainda de acordo com a autora, o
potencial dessa aprendizagem não se dá por força da lei, mas por gosto.
Nesse sentido o vazio da consciência de cidadania pode ser
preenchido com uma educação para a cidadania, formal e informal, para
o participar cidadão, onde o próprio valor da saúde enquanto um bem
comum a todos teria o poder pedagógico de estimular essa participação,
aumentando assim a própria civilidade.
Uma sociedade imbuída de valores comuns à cidadania torna-se
apta a influenciar e organizar o Estado a seu modo, incutindo de valores
suas ações e tornando moral a política que lhe cabe.
199

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos nesta pesquisa confirmaram a hipótese


inicial de que os problemas éticos existentes no CMS podem interferir no
Controle Social do SUS, dificultando a consolidação e efetivação desses
espaços de participação democrática. Apesar da atuação de alguns
conselheiros em busca da melhoria desse espaço de participação social,
estas ainda perpetuam com pouco poder transformador, pois se encontram
isoladas, com pouco apoio das representações de base, dos órgãos
governamentais e da própria sociedade.
A análise dos resultados evidenciou que o estabelecimento de
canais de aproximação entre governo e população necessita de diferentes
suportes e mecanismos que evitem a conivência, as manipulações e as
distorções políticas, levando a um controle do Estado sobre a sociedade.
Cabe recapitular os principais pontos que necessitam ser dialogados
dentro deste CMS como forma de transpor a barreira dos problemas éticos
aqui expostos, na busca de maior eficiência do Controle Social:
 A busca da estabilidade emancipatória da informação, do
conhecimento e da educação, como forma de enfrentar a
realidade da desigualdade social transferida para dentro
do CMS; a imposição do saber técnico e a própria barreira
do poder daqueles que detém maior conhecimento. A
valorização do saber local pelos conselheiros como forma
de promover um enfrentamento à cultura da tecnocracia e
dominação, mostra-se como pré-requisito para a
transformações sócio-políticas, e pressuposto do Controle
Social como forma de inclusão, permitindo aos sujeitos
das desigualdades pressionar os mecanismos que o
dominam - ninguém melhor do que o próprio sujeito das
ações para entender a sua realidade.
 A importância de subjetivar o espaço do Controle Social
pelas vivências e experiências dos seus sujeitos,
fundamentando-se numa razão substantiva que perceba e
evidencie os valores envolvidos em todos os processos
decisórios, onde a justificativa das ações se dê por meio
de interesses humanizadores e socialmente
comprometidos, sendo, portanto, capaz de valorizar os
meios frente aos fins.
 A democratização do poder e a desmonopolização dos
saberes que consolidam as estruturas hierárquicas do
200

Estado mostraram-se como condições imperativas para


aumentar a eficiência das ações do CMS e com elas, o
aumento do sentimento de pertencimento da comunidade
ao espaço participativo. A necessidade de desmantelar
mecanismos de dominação, possibilitando assim trabalhos
verdadeiramente coletivos e construtivos, como os
sugeridos pela Cogestão, pode ajudar a estabelecer uma
responsabilização cidadã, onde os conselheiros
empoderados pela atuação coletiva consigam
protagonizar num nível político, pressionando e
moralizando leis. Neste aspecto, cabe ressaltar a
importância de considerar também o olhar daqueles “que
concentram o poder”, pois o papel ético não está em julgar
mas sim em entender profundamente como se dão as
relações humanas na busca de perceber e valorizar seus
componentes humanizadores. A dificuldade encontrada
neste trabalho para entrevistar o próprio secretário de
saúde, como forma de trazer seu olhar para a discussão,
pode revelar a própria sobrecarga daqueles que
concentram os poderes políticos. Fato que auxilia a
sustentar a necessidade da democratização do poder como
forma de melhorar a eficiência e a própria humanização
da política.
 A efetivação de um espaço de participação pública em que
a consciência da importância da cidadania, principalmente
no que se refere aos seus deveres, esteja inserida na cultura
dessa sociedade, perpassando seus símbolos, valores e
comportamentos sociais. Realizar os valores da cidadania
em sociedade é possível por meio da educação ética,
formal e não formal, que possa inclui a própria
comunidade no reconhecimento da importância desses
valores, fato que auxilia na ‘valorização’ dos mesmos,
sem a necessidade do artificio legal.
 O estabelecimento de mecanismos de aprendizagem
pedagógica onde todos sejam capazes de conscientizar e
serem conscientizados para uma cultura cidadã, esta sim
com potencial de enfrentamento das estruturas de
manutenção das desigualdades, capaz de transformar
realidades.
201

Apesar de a análise dos resultados ter sido realizada sob os três


grandes vazios – de educação permanente, de responsabilidade legal e de
consciência de cidadania há de frisar a inexistência de limites entre eles,
onde a influência de um desafio sobre o outro torna-se evidente – há
componentes de poder político que perpassam as dificuldades
pedagógicas e culturais, assim como de ambas no desafio político e delas
entre si. Neste sentido, os diferentes caminhos identificados sob estes três
olhares podem ser transpostos com ações que considerem os três desafios.
Uma sugestão seria a utilização de metodologias deliberativas e de
construção coletiva, capazes de educar para a dialógica necessária aos
espaços de decisão compartilhada transpondo a barreira da imposição de
opiniões e do dogmatismo. Essas metodologias devem estar embasadas
na escuta ativa que permite conhecer todos os fatos envolvidos no
diálogo, além do reconhecimento da autenticidade dos diversos saberes –
necessários aos espaços públicos com seus valores sociais/individuais
diversos e diferentes deveres políticos, econômicos e culturais – tornando
legítimo o Controle Social, e permitindo o estabelecimento de uma
verdadeira deliberação dentro do CMS.
Como sugestão prática a ser utilizada pelo CMS a autora propõe a
própria Metodologia de Deliberação Moral de Gracia (2014) como forma
de enfrentar diretamente os problemas éticos presentes (Apêndice C). A
deliberação moral, composta por passos sequenciais e complexamente
gradativos, permite cercar os problemas éticos sobre todos os seus
aspectos, sendo possível a visualização ampla dos mesmos. A grande
vantagem dos seus passos é a sua abertura pedagógica para a discussão
ética - ao não restringir a delimitação do que é de fato um problema ético
permite o encorajamento e a desinibição dos envolvidos no diálogo,
aproximando-os do tema “ética”, que ainda lhes é confuso. A dificuldade
de se deliberar moralmente envolve por vezes o próprio distanciamento
que o desenvolvimento ético humanístico tem da formação educacional,
tornando o tema ‘ética’ uma incógnita e portanto velando suas
possibilidades de percepção e enfrentamento. Esse obstáculo pode ser
transposto pela aprendizagem que a metodologia da deliberação moral
proporciona àqueles que deliberam – quanto mais os conselheiros
deliberarem moralmente, mais se aprofundarão e aprenderão a arte da
reflexão ética.
Apesar da sugestão de utilizar a metodologia de Gracia (2014),
sobretudo, à fundamentação desse método pedagógico. Adotar essa
fundamentação – de respeito ao outro; da escuta ativa; do aprender a ouvir
as diferentes verdades do grupo; de entender que é positivo mudar de
opinião à medida que se argumenta em coletivo; sobretudo quando se
202

consegue adotar uma dose de humanidade necessária à deliberação moral.


Esse embasamento da Deliberação Moral, mais do que auxiliar na
resolução dos conflitos tem o potencial de promover mudanças de vida e
de relacionamento com a sociedade – à medida que se torna
fundamentação das ações diária.
Neste mesmo sentido, propõe-se uma segunda metodologia
deliberativa que, com a mesma essência teórica da Deliberação Moral,
auxilia no diálogo de qualquer temática, facilitando a tomada de decisão
coletiva – a Metodologia para a Construção Coletiva de Conceitos,
proposta por Silva (1998). Com o objetivo de evitar conflitos de
ideologias que podem ocasionar um desgaste na relação social do grupo,
se embasa no construtivismo, possuindo como princípio epistêmico
fundamental: a valorização do outro como legítimo na convivência.
Valorização que deve auxiliar no desvelamento dos próprios conflitos que
se revelam, inclusive nos valores assumidos. Essa metodologia de diálogo
não busca apenas uma participação qualificada, mas também um legítimo
reconhecimento da importância do outro na construção coletiva, levando-
se em conta as emoções e subjetividade das pessoas. Neste sentido, ela
facilita a construção de conceitos, ideias e propostas de forma
cooperativa, de modo que todo o grupo sinta-se parte do processo. Esse
método ao focar no caminho pedagógico, mais do que no resultado da
decisão a ser tomada, permite o empoderamento dos conselheiros
enquanto identidade de grupo, que dialoga e decide de forma cooperativa
e solidária. Assim, essa metodologia caberia ao dia-a-dia do CMS levando
à valorização dos seus fundamentos como forma de aprimoramento
contínuo dos indivíduos que convivem em sociedade. Os passos
metodológicos propostos por Silva (1998) podem ser visualizados no
Anexo 33.
Esse aprendizado que se realiza à medida que se permite atuar a
partir da realidade dos próprios conselheiros, proposto pelas duas
metodologias citadas, pode ser uma alternativa a barreira estabelecida
pela falta de “capacitações” para os conselheiros, tão citadas na literatura
e no próprio CMS, mas que parece não vir obtendo grandes resultados.
Numa via de mão dupla o diálogo empoderado pela participação cidadã,
que aprende eticamente com seu próprio operar, é capaz de estabelecer as
deliberações necessárias para a transformação de problemas que
persistem imoralmente na sociedade. O reconhecimento desses
problemas, aliado à percepção dos diferentes interesses e valores que
sempre se estabelecem em relações sócio-político-culturais, sem tentar
camuflá-los ou escondê-los, é condição necessária para enfrentá-los.
203

Ao aceitarmos que a produção de saúde e doença dá-se por


diversos níveis de determinantes em saúde, entendemos que se cria e
recria estados de saúde ao longo da história em sociedade e que, portanto,
a cultura é determinada por esses estados qualitativos de vida. Se os
determinantes sociais em saúde se dão no meio da sociedade, nada melhor
que a própria sociedade para ajudar a identifica-los, e acima de tudo,
transformá-los. Neste sentido empoderar a comunidade com a
importância do exercício da cidadania ajudaria no enfrentamento desses
determinantes.
Como forma de reforçar a responsabilidade da produção científica
acadêmica na transformação da sociedade e melhoria da qualidade de vida
da população, a autora se propôs, a convite dos próprios conselheiros
entrevistados, a apresentar os resultados da sua dissertação em reunião na
CT do CMS participante da pesquisa. Neste momento o enfoque será nas
possíveis alternativas que poderiam ser deixadas para os conselheiros a
partir do que se construiu com o embasamento teórico desse trabalho. O
objetivo principal é levar os resultados e trabalhar com os conselheiros as
possíveis soluções práticas aos problemas encontrados.
Além desse investimento pedagógico diretamente no CMS, um
processo de educação inverso, embasado em valores sociais e humanistas,
que não se inicie pela ponta final da participação social, mas que busque
desde a educação infantil a reconciliação entre educação e política se
mostra como fundamental para firmar os valores do exercício
democrático no seio da sociedade. A formação cidadã se estabelece como
nevrálgica para a consolidação da democracia participativa, pois nela se
harmonizam as informações e os conhecimentos necessários para o agir
coletivo “desde” e “para” a cidade. Cidadãos que conhecem seu potencial
transformador são capazes de se posicionar como autônomos, porem
humildemente dependentes de todo o coletivo comunitário, podendo
verdadeiramente, pois em pé de igualdade de poder, pressionar os
mecanismos do Estado.
Sobre este componente educacional observa-se, oportunamente, a
importância de não descolar a cultura da cidadania da importância da
reflexão ética, que por meio da visão crítica pode estabelecer percepções
desnudadas sobre os mecanismos econômicos e políticos que vem
mantendo as desigualdades sociais ao longo de décadas – entender o que
é ética para estimular a ação ética. Se não se estabelece de imediato esse
componente educacional formal, uma sugestão ao CMS, dada pelos
próprios conselheiros, seria a fundação de uma Comissão de Bioética
como uma solução mediata necessária à introdução de maior visão crítica.
Um dos problemas desse recurso é sua restrição a poucos membros
204

perdendo o componente pedagógico da deliberação moral como


ferramenta de todo o CMS. De qualquer forma um pequeno grupo que se
dispõe a dialogar sobre a luz da Bioética expõe seus conhecimentos e
habilidades para serem refletidos e aprimorados, desenvolvendo assim
atitudes e caráteres individuais e de grupo. Esse desenvolver ético de um
restrito número de indivíduos tem a possibilidade de ser apenas inicial,
podendo se expandir para dentro das reuniões da plenária, à medida que
os conselheiros se educam.
Perante todos esses aspectos percebe-se que não pode haver
aproximação entre Estado e sociedade e reconciliação entre política e
cultura se antes não se desenvolver esse componente educacional – desde
dentro e desde fora do CMS. Neste caminho da valorização cidadã,
entender o potencial pedagógico do conceito de saúde enquanto um bem
comum de toda a sociedade pode estimular uma cultura de cidadania
valorizadora do SUS, auxiliando no estabelecimento de mecanismos de
coparticipação, cogestão e deliberação. As reflexões geradas pela
comunidade que se dispõe a trabalhar politicamente pelo bem de todos
devem ter o potencial moral de serem tão sólidas quanto a legislação e
capazes, quando necessário, de a renovar. O deliberado pelo Controle
Social, na busca de um autêntico bem comum deve ser internalizado como
verdadeiro nas relações entre Estado e sociedade.
Estimular uma cultura da cidadania torna-se imperioso para
qualificar os espaços de participação social, de igual maneira considerar
as reflexões bioéticas como forma de aumentar a criticidade no cotidiano
das pessoas, em especial no que concerne a sua saúde, estabelece-se como
um instrumento social e político para a democracia. Refletir sobre os
valores justificadores das nossas ações e do nosso agir no mundo e com
eles produzir a cultura que vigora e dita as ações da sociedade e do Estado
é a moral do ser cidadão, que pode redefinir os limites e as conexões das
diversas atividades humanas, dentre elas a educação, a política e a
econômica.
Se pudermos aprender a sermos cidadãos e nos educarmos em
valores próprios desse cooperar participativo, de igual forma poderemos
criar uma cultura política que sustente os espaços de aproximação com o
Estado, configurando o Controle Social para mais do que uma
possibilidade legal, uma forma de ser em sociedade.
205

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214

APÊNDICES
Apêndice A - Roteiro de Entrevista

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA


CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ODONTOLOGIA
MESTRADO - ODONTOLOGIA EM SAÚDE COLETIVA

ROTEIRO DE ENTREVISTA3
Pergunta disparadora:
Você já vivenciou algum problema ético nas reuniões do conselho?
Poderia me contar qual(is) foi(foram) e como foi(foram)?
Caso Hipotético:
O presidente do CMS dá boas vindas e diz que é uma honra ter sido
indicado pelo prefeito para novamente estar à frente do conselho. Diz que
está satisfeito com sua equipe, pois são todos funcionários de longa data
da casa, e por isso, altamente qualificados.
A reunião se inicia com a colocação de um conselheiro sobre a
falta de paridade entre usuários, trabalhadores da saúde e gestores em uma
das comissões formadas pelos conselheiros, pois sente que a paridade é
importante para que o resultado contemple da melhor forma a sociedade.
O Presidente então questiona se em algum regimento consta que deva
haver paridade nesta comissão. Diante da resposta negativa ele considera
que se não está escrito, então não há ilegalidade.
Um conselheiro então pede que os informes da Mesa Diretora
sejam substituídos pela apresentação da Proposta da Lei Orçamentária
Anual do Fundo Municipal de Saúde do Município, tendo em vista que

3
Este Roteiro guiará as Entrevistas Semi-dirigidas. A pós a
questão disparadora, a pesquisadora narrará um suposto caso de
um conflito ético que poderia estar presente nas reuniões do
Conselho de Saúde. Logo após continuará a entrevista em forma
de diálogo que deverá ser capaz de responder as questões acima
colocadas.
215

tal apresentação tem prazo legal para envio à Câmara de Vereadores, além
de ser de suma importância e mais relevante que os demais itens da pauta.
Colocada em votação, a plenária aprovou a alteração.
Ao final da apresentação, uma conselheira relatou desapontamento
com os dados apresentados, comentando também a impressão errônea que
os gráficos sugerem e colocando em evidência os gastos do Conselho, que
se concentram em infraestrutura, não havendo gastos com ações políticas.
O presidente interrompe dizendo que o Conselho leva suas propostas para
fora do município, que é exemplar e que a conselheira nunca se dá por
satisfeita.
Outra conselheira pede a palavra dizendo que a apresentação é
realmente técnica e só pode ser discutida com pessoas que contenham
conhecimento a respeito. Diz que o assunto tratado é muito importante e
que os leigos são insensíveis a este tipo de assunto, quem não sabe disso
é porque está alienado.
Outro conselheiro demonstra descontentamento afirmando que o
Conselho realiza poucas reflexões sobre possíveis transformações, e o que
geralmente se tem é uma pauta de encaminhamentos, fiscalização e
relatórios, além de demandas emergenciais como àquela, trazendo-se o
discurso que só pode ser apresentada no mesmo dia e devendo ser voltado
imediatamente. E questiona: se não se consegue nem analisar os dados,
como votar diante de tal complexidade?
A mesa diretora pede questão de ordem, diz que o orçamento pode
ser aprovado com ressalvas, e que depois enviará a apresentação para os
conselheiros apreciarem melhor. O presidente coloca o item em votação,
o qual acaba sendo aprovado.
No suposto caso, você enxerga algum problema ético? Qual/quais?
Você acha que situações desse caráter ocorrem no CMS em que
atua? Poderia me contar alguma situação que você tenha presenciado?
Demais perguntas: (lembrar que devem ser investigados os
conflitos éticos de variadas ordens, e que não precisam emergir somente
do espaço das reuniões – pode ser nas inúmeras relações enquanto
conselheiro).
1. Em que medida as reuniões propiciam um ambiente adequado para o
diálogo de questões públicas?

2.Durante as reuniões você consegue expor suas questões, exprimir


opinião, enfim, consegue contribuir?
216

3.Como você avalia o método de diálogo e de decisão utilizado


neste conselho? Teria outra sugestão?
4. O conselheiro já sofreu algum tipo de constrangimento no
exercício de ser conselheiro? (exemplos apenas se não tiver
compreendido: agressões verbais, humilhações, tratamento com descaso
etc.). Se importaria de me relatar?
5.O conselheiro se sente contemplado nas decisões do conselho?
Enxerga-se dentro delas? Acha que as decisões refletem sua participação?
6.Quais valores você considera fundamentais para um bom
conselheiro?
7. Em sua opinião, como você vê a participação de usuários no
CMS?
8. Na sua opinião, os usuários do SUS de Florianópolis conseguem
ser representados pelos conselheiros do segmento dos usuários? Por quê?

9. Você acredita que o trabalho deste CMS tem gerado resultados


para a população de Florianópolis? Consegue me apontar a que você
atribui esse fato?

10. Participar das reuniões do CMS lhe trouxe algum aprendizado?


Qual(is)? Acha que algum tipo de capacitação teria ajudado ou ainda seria
necessária?

11. O que você considera que um conselheiro tem de saber para


exercer seu papel como gestor da saúde coletiva?
217

Apêndice B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA


CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
CAMPUS UNIVERSITÁRIO - TRINDADE
DEPARTAMENTO DE ODONTOLOGIA
CEP.: 88040-970 - FLORIANÓPOLIS - SANTA CATARINA
e-mail: [email protected]

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

O projeto de pesquisa intitulado: CONFLITOS ÉTICOS


VIVENCIADOS POR CONSELHEIROS MUNICIPAIS DE SAÚDE:
UM ESTUDO DE CASO é desenvolvido pela mestranda em Odontologia
em Saúde Coletiva Juliara Bellina Hoffmann (RG nº: 4011696 -
SSP/SC - CPF nº: 05672563910). Trata-se de pesquisa em Saúde Coletiva
pelo Curso de Mestrado Acadêmico em Odontologia em Saúde Coletiva,
pelo Programa de Pós-Graduação em Odontologia da Universidade
Federal de Santa Catarina. Área Concentração: Odontologia em Saúde
Coletiva, sob orientação da Profª. Drª. Mirelle Finkler (pesquisadora
responsável). Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos da UFSC sob o número 539.891/2014.

A pesquisa tem como objetivo principal analisar os conflitos


éticos vivenciados pelos conselheiros do Conselho Municipal de Saúde
de Florianópolis. Para tanto o procedimento usado será entrevista
individual composta por questionamentos abertos, que serão respondidos
em horário conveniente por cada um dos conselheiros que concordar em
participar do estudo. As entrevistas serão registradas em gravador digital
e por escrito. Às informações coletadas nas entrevistas serão acrescidas
de informações obtidas por meio de leitura das atas do Conselho
Municipal que são de acesso público, bem como por meio da observação
das reuniões mensais que ocorrem de forma também aberta à sociedade.
Os possíveis riscos oferecidos nesta pesquisa são: desconforto
ao participar da entrevista e possível constrangimento em caso de
218

identificação do participante informante que, no entanto, tem o sigilo


garantido pelas pesquisadoras. Possui natureza educacional, no entanto,
não se trata de estudo experimental que venha a colocar em prática
qualquer nova intervenção ou procedimento pedagógico. A pesquisa se
orientará e obedecerá aos cuidados éticos determinados pela Resolução
nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, considerado o respeito aos
informantes participantes de todo processo investigativo e observadas as
condições de:
 consentimento esclarecido, expresso pela assinatura do
presente termo;
 garantia de confidencialidade e proteção da imagem
individual e institucional;
 respeito a valores individuais ou institucionais manifestos,
sejam de caráter religioso, cultural ou moral;
 liberdade de recusa à participação total;
 amplo acesso a qualquer informação acerca do estudo;
 os registros, anotações coletadas ficarão sob a guarda da
pesquisadora principal. Só terão acesso aos mesmos os
pesquisadores envolvidos.

Os resultados da pesquisa trarão benefícios no sentido de


oferecer subsídios para possíveis intervenções pedagógicas com o
objetivo de melhorar o processo deliberativo das reuniões do Conselho
Municipal de Saúde. Destas reflexões, entende-se que devem emergir
discussões na perspectiva da bioética no sentido aprimorar o caráter
deliberativo dos Conselhos de Saúde.

Eu.....................................................................................................
.................................................., fui informado(a) dos objetivos,
procedimentos, riscos e benefícios desta pesquisa, conforme descritos
acima. Declaro estar ciente de que solicitaram a minha participação neste
estudo e que autorizarei a gravação da minha entrevista em aparelho digital.
Estou ciente de que participações em pesquisa não podem ser
remuneradas e que minha participação no estudo pode ser interrompida a
qualquer momento se assim eu o desejar, sem nenhum tipo de prejuízo.
Compreendendo tudo o que foi esclarecido sobre o estudo e concordo
com a participação no mesmo. Por fim, declaro que estou recebendo uma
cópia deste termo de consentimento assinado.

________________________________
219

Assinatura do participante

________________________________
Assinatura da pesquisadora principal

__________________________, ___ de ______________ de


2014.
Em caso de necessidade, contate com: Juliara Hoffmann.
Endereço: Rua Desembargador Vitor Lima, 410/apto501.
Carvoeira - Florianópolis/SC.
Telefone: (48) 98148895. E-mail: [email protected]
220

Apêndice C - Metodologia de Deliberação Moral de Gracia (2014).


A. 1. Apresentação do caso;
Deliberação 2. Esclarecimentos sobre o quadro
sobre os fatos. clínico do caso:
- diagnóstico
- prognóstico
- tratamento
B. 3. Identificação dos problemas éticos
Deliberação do caso;
sobre os 4. Escolha do problema ético que será
valores. discutido;
5. Explicitação dos valores em conflito
nesse problema;
C. 6. Identificação de cursos extremos de
Deliberação ação;
sobre os 7. Busca de cursos intermediários;
deveres. 8. Eleição do curso ótimo;
D. 9. Provas de consistência da decisão:
Deliberação - prova da legalidade;
sobre as - prova do tempo;
responsabilida - prova de publicidade.
des.
Leque Hermenêutico – Sistematização da Ética

Deliberação sobre os fatos: síntese do caso ou da


situação; problemas éticos.
Deliberação sobre os valores: identificação do problema
ético principal; e dos valores em conflito.
Consulta a profissionais.
Deliberação sobre os deveres: identificação dos cursos de
ação extremos, intermediários e ótimos.
Deliberação sobre as responsabilidades: Provas de
legalidade; de tempo e de publicidade.
Comentários finais sobre: o que foi aprendido e o que
ficou para aprender.
221

ANEXOS
Anexo 1 – Autorização Prefeitura Municipal do Município
223

Anexo 2 – Parecer Consubstanciado do CEPSH


224
225
227

Anexo 3 - Metodologia para a Construção Coletiva de


Conceitos, proposta por Silva (1998).

(próximas páginas)
228
229

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