Do Enredo À Passarela Do Samba
Do Enredo À Passarela Do Samba
Do Enredo À Passarela Do Samba
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DO ENREDO
À PASSARELA DO SAMBA
A VISIBILIDADE DA CIÊNCIA NO CARNAVAL
The work covers the main aspects that make up the pa-
rade of samba school, whose emblematic object of the
Unidos da Tijuca Carnival parade in 2004 with the theme
“The dream of creation and the creation of the dream: the
art of science in time the impossible”. We have analyzed
the different stages of preparation of the show, contrast
their languages and observing the power of each one of
them. These are ways to discuss issues related to the vis-
ibility of science in a parade of samba schools.
O desenvolvimento da pesquisa
de uma escola de samba
Para desenvolver uma pesquisa faz-se necessário escolher, primeiramen-
te, uma metodologia a assumir como “nossa”, que justifique nossas escolhas e
como iremos atuar durante o processo de coleta de dados.
De forma similar, o carnaval também se serve desse mecanismo. Na atu-
alidade, é preciso ter pesquisas (temas6) e justificativas densas para explicar de
forma contundente a temática escolhida, tendo em vista a ocorrência de julga-
mento que demanda uma “didatização” na forma de explicitá-la – maneiras bem
claras de abordar o tema, para que não seja apenas um “invencionismo” ou uma
viagem de sonhos, mas que apresente argumentos sérios, sequenciais e compre-
ensíveis, facilitando o entendimento do público presente, a percepção dos jura-
dos e, antes disso, a busca do investimento para a realização da ideia (seu patro-
cínio com vistas tanto à avaliação (julgamento) do tema escolhido quanto à ven-
da do espetáculo para a mídia).
Segundo o Manual do julgador de 2014, o quesito enredo é subdividido
em dois subquesitos:
CONCEPÇÃO: (valor do subquesito: de 4,5 a 5,0 pontos)
o argumento ou tema, ou seja, a ideia básica apresentada pela Es-
cola e o desenvolvimento teórico do tema proposto.
A escolha do samba
Não iremos aqui narrar o nascimento do samba nem tampouco cerradas
disputas populares sobre “Pelo telefone” ser ou não o primeiro samba. Tenta-
remos antes construir a ideia de como se escolhe um samba – sim, eles são es-
colhidos –, passando por um processo de avaliação primeiro interna e depois
externa.
Começamos retomando a ideia de sinopse que, em alguns casos, passa
por um tratamento estético deixando de ser só um duro texto digitado pela agre-
miação em algumas folhas de papel timbrado para ganhar contornos, imagens,
ilustrações, tornando-se um pequeno caderno (Figura 4) que é distribuído para os
compositores em um dia específico, em que os autores da sinopse, o carnavales-
co e os outros segmentos da agremiação, irão expor o tema-enredo, sua pesqui-
sa e seus principais desdobramentos. Nesse momento, entendemos que se esta-
belece uma espécie de aula, em que os estudantes são os compositores, que ne-
cessitam entender a temática para articular seus versos, poesias, rimas, prosas, a
ser materializados em música e disputar com outros compositores durante cerca
de dois meses as eliminatórias de samba-enredo. Em alguns casos se utilizam da
“expertise” de alguns segmentos da escola (velha guarda, baianas, carnavalesco
etc.) que irão julgar qual é a mais adequada para a plástica e para a pesquisa teó-
rica, representando pela música a temática que se quer falar.
Os aspectos de legitimação de um samba e de sua linguagem em detri-
mento de outros transitam pelo fato de se aproximarem ao máximo dos aspectos
direcionadores e que são contados na pesquisa (sinopse). Os compositores se va-
lem dos argumentos da pesquisa, articulando a poesia da forma mais eficaz pos-
sível a fim de interpelar os atores e espectadores para que entendam a temática
em questão e cantem corações abertos.
No caso específico da Unidos da Tijuca no Carnaval de 2004, percebemos
uma apropriação dos conceitos mais relevantes que aparecem destacados na si-
nopse emergindo da poesia proposta por seus autores para o samba:
Nessa máquina do tempo, eu vou / Vou viajar... (com a Tijuca te le-
var) / À era do Renascimento / De sonhos, e criação / Desejos,
transformação / Acreditar, desafiar / Superar os limites do homem
/ Brincar de Deus, criar a vida / Querer voar e flutuar
Neste excerto, observa-se o convite a embarcar no sonho – a máquina do
tempo que realizará uma série de viagens –, um recurso explicativo da Unidos
da Tijuca, que num primeiro momento perpassa pelo período histórico nomina-
do Renascimento e sinaliza o trabalho do artista Leonardo da Vinci, cuja obra es-
tuda o corpo humano, as possibilidades de voar, tanques de guerra, paraquedas
e outros artefatos que possibilitaram à ciência sonhar e desejar a realização des-
ses sonhos.
Isso é expresso no samba, quando afirma ser necessário ter desejos de
transformação, superar os limites, apontando para a perspectiva de que a ciên-
cia, para acontecer, necessita desses desejos.
A tradução em plástica
Na mesma pesquisa em que se encontram argumentos para construir o
samba por meio de uma análise detalhada da sinopse, o artista, carnavalesco,
tenta traduzir em plástica9 elementos que possam ajudar a contar a temática.
Segundo o Manual do julgador (liesa, 2014, p. 47-48), tanto com relação
a fantasias quanto a alegorias e adereços, é necessário observar “a concepção e
a adequação das Fantasias/Alegorias e Adereços ao Enredo as quais devem cum-
prir a função de transmitir as diversas partes do conteúdo desse Enredo”. Dessa
forma, se faz necessária ao carnavalesco uma pesquisa iconográfica que o ajude
a conceber as fantasias e alegorias para contar o tema, bem como sondagem de
materiais adequados a sua realização.
O processo pode ter quatro fases: a) divisão da temática em blocos que
narrarão o tema; b) desenvolvimento dos desenhos das fantasias e alegorias que
irão representar num primeiro momento esses elementos; c) confecção dos pro-
tótipos – modelos de cada uma das fantasias que se multiplicarão para formar as
alas; e, não menos importante, d) a fase de ferragem, madeiramento e decora-
ção das alegorias.
Ainda sobre as fantasias, algumas escolas de samba fazem a festa dos pro-
tótipos, geralmente no mês de outubro.10 Ela serve para apresentar as fantasias,
bem como “ensinar” o que cada uma delas significa, fazendo um movimento edu-
cacional que integra os participantes mais ainda com o tema e com as fantasias. A
festa é uma oportunidade para compreender o desfile e, na sequência, produzi-
lo, pois articula nesse movimento o saber sobre a temática que agora se encontra
como fantasia, saber esse que pode auxiliar no entendimento de diversos concei-
tos, incluindo aqueles do campo da ciência.
Observaremos algumas fantasias e alegorias que fizeram parte do des-
file da Unidos da Tijuca para verificar qual a narrativa de ciência que a escola
propôs.
Na figura 6, o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira da Unidos
da Tijuca traz a fantasia Energia. A porta-bandeira representando o anel aromá-
tico (formato da saia) e sua ressonância (círculo fechado superior) e o mestre-sa-
la o elétron que circula em torno do anel proporcionando várias ligações. É uma
proposta alegórica, mas trata-se de tema bastante complexo na ciência, principal-
mente na química, que é a questão da ressonância. É possível pensar que esses
argumentos, agora de ordem visual, também contribuam para aquisição/forma-
ção de um saber a respeito da química.
Nas figuras 7, 8 e 9, vemos o carro “Da alquimia à química”, onde visua-
lizamos em primeiro plano (Figura 7) a ideia primitiva das bruxas/bruxos como
eram pensados no medievo, quando as pessoas que tinham conhecimento dife-
rente daquele normatizado pelas vivências da época e que ganharam contornos
de misticismo, muitas vezes foram punidas com a morte. Ainda na mesma alego-
ria, aparecem vidrarias, algumas mais rudimentares, outras mais atuais compon-
do o cenário de um laboratório (Figura 9) Observam-se também nesse conjunto,
O desfile – a apresentação
O desfile de uma escola de samba é o acontecimento da festa “momes-
ca” para essas entidades, e é também quando temos o encontro das linguagens
(tema/pesquisa, samba e plástica), que descrevemos e visualizamos. No momen-
to em que se arma a escola (prática de ordenação para coloca-la em desfile), des-
taca-se o elemento capaz de agregar todas essas linguagens: o enredo. Nos 85
minutos de desfile, verificamos o resultado da pesquisa desenvolvida incialmen-
te e que agora é posta à prova para mais de 70 mil espectadores in loco e os mi-
lhares de outros que, em suas residências, acompanham o desfile ala a ala, car-
ro a carro.
No Sambódromo, são distribuídas gratuitamente inúmeras publicações
(Cante com a gente, Ensaio geral, Livro abre-alas) que narram o enredo quadro a
quadro, além de resumir a temática escolhida e reproduzir a letra do samba.
O Roteiro dos Desfiles (Figura 14), criado oficialmente em 2010, mas que
existia como outras publicações em anos anteriores, é subsidiado pelo órgão ofi-
cial de turismo, Riotur,12 que tem como objetivo facilitar aos espectadores locais
o entendimento do que está sendo visto e cantado, além de justificar os motivos
da escolha do enredo.
Dessa forma, podemos pensar que há condições de se adquirir algum tipo
de saber relativo à ciência por meio de um desfile de escola de samba. Entende-
mos, é claro, que esse conhecimento necessita da multiplicidade de linguagens,
da “didatização” das temáticas e também do interesse, da afinidade, do desejo
de conhecer. Pois uma boa parcela de quem desfila/assiste identifica-se com al-
guma agremiação e com os próprios desfiles. Outra evidência de que há condi-
ções de aprendizagem num desfile se dá quando espectadores laçam mão de al-
gum samba ou alguma justificativa do desfile para explicar algo cotidiano, histó-
rico ou mesmo da ciência.
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