As Dancas Do Inframundo Na Iconografia Mochica Mus

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As Danças do Inframundo na

Iconografia Mochica: Música e Rito


de Passagem em uma narrativa do Peru
Pré-Colombiano
Daniela La Chioma Silvestre Villalva1
DOI 10.20396/eha.vi14.3399

Introdução
A costa norte do Peru é uma região primordialmente desértica, com áreas de vales férteis
que se formam devido aos rios que descem a cordilheira no sentido do Pacífico, configuração que
permitiu o desenvolvimento de grandes populações na área desde períodos muito recuados, como
o Arcaico e o Formativo2. Os Mochicas ocuparam esta região no entre 100 A.C e 600 da nossa era, o
que se denomina Intermediário Inicial.3 Os estudos apontam para uma organização distribuída em
vales4, na qual cada vale tinha sua chefia e seu centro religioso e administrativo, chamado popular-
mente pelo vocábulo quéchua huaca.
Arqueólogos encontraram diferenças significativas entre as áreas ao norte e ao sul do rio
Jequetepeque e das pampas de Paiján5, dividindo-as entre área moche norte e moche sul. Essas
diferenças se dão na metalurgia, na iconografia e na arte em geral, em padrões de enterramento e
outros aspectos.
Exemplos de centros cerimoniais e administrativos mochicas estão espalhados por toda a costa
norte. Cada vale tinha seu centro principal. A Huaca de la Luna é o centro religioso-administrativo da
região Moche Sul, no vale de Moche, edifício monumental com murais policromados. A Huaca Cao
Viejo, igualmente na região Moche Sul, adota o mesmo estilo, mas está localizada no vale vizinho de
Chicama. A Huaca Rajada foi o centro da região moche norte, localizada no vale de Lambayeque. Ali
se descobriram nos anos 80 as Tumbas Reais de Sipán, considerada a maior descoberta arqueológica
das Américas, formada por dezenas de tumbas fechadas e suntuosas, com grandes quantidades de

1 Doutora em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.


2 Alva Meneses, 2013
3 Rowe, 1962
4 Castillo & Quilter, 2010
5 Castillo & Donnan, 1994; Castillo & Quilter, 2010
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artefatos em ouro, prata e turquesa, associados com o Senhor de Sipán e seu séquito.6
Os adornos de Sipán demonstram que a região Moche Norte se caracterizou por uma
sofisticação da metalurgia não existente na área Moche Sul. Por outro lado, a área Moche Sul se
caracterizou pela produção de cerâmica de vasos pintados com linha fina, ausentes na região
Moche Norte. Esta cerâmica do período Médio, que coincide com o momento do apogeu das
grandes huacas em termos de rituais e espetáculos7, é a mais emblemática e conhecida nos estudos
de História da Arte e Arqueologia, com uma pintura fina em redor das vasilhas de fundo creme.
A Cerimônia do Sacrifício, por exemplo, é uma das cenas clássicas representadas em linha fina no
período Médio.8 9 Os pesquisadores norte-americanos Christopher Donnan e Donna McClelland
transpuseram centenas de imagens mochicas presentes em redor de vasos com bojo redondo para
planos bidimensionais, chamando-os de roll outs.10 Atualmente, estas ilustrações se encontram no
Arquivo Moche da Dumbarton Oaks Research Library and Collection, pertencente à Universidade
de Harvard.
A cronologia cerâmica mais utilizada pelos pesquisadores até hoje e que se mostra bastante
adequada para a região Moche Sul é a de Rafael Larco. Larco, que dá nome ao célebre museu de
Lima, foi o primeiro arqueólogo peruano a estudar os mochicas na década de 30, criando uma cro-
nologia cerâmica baseada no gargalo dos vasos como traço diagnóstico das diferentes fases, que
vão de I a V.11
No mundo andino são fundamentais as ontologias que fazem referência aos três principais
planos da existência, habitados pelos vivos, pelas divindades e pelos mortos. Estes conceitos e suas
nomenclaturas têm procedência do período Inca, mais recente, mas são largamente utilizadas nos
estudos arqueológicos andinos para classificar o material Pré-Inca.12 É importante levar em consi-
deração os princípios fundamentais desta cosmovisão, pois se encontram plasmados na cerâmica
pré-hispânica, incluindo o mochica. A arte mochica, portanto, é repleta de representações no mun-
do dos vivos, das divindades e no mundo dos mortos e cadavéricos. Encontramos representações de
música e dança no mundo dos vivos em vasilhas pintadas13, em contraposição às danças dos mortos,

6 Alva & Donnan, 1993; Alva, 2006


7 Billman, 2010: 186
8 Ver La Chioma, 2016: Prancha 6
9 Hocquenghem, 1987: 124-125; Donnan & McClelland, 1999: 131; Quilter 2002:162; Benson 2012: 73
10 Donnan & McClelland, 1999
11 Pillsbury, 2006:11
12 La Chioma, 2013: 61; 2017: 130
13 ver La Chioma, 2016: Prancha 53, por exemplo

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que são geralmente representadas em relevo, como já notado por Donnan.14

As Danças do Inframundo
Denominei Danças do Inframundo uma cena que congrega personagens mortos e cadavéri-
cos dançando e tocando música (Fig.1). Encontrei esta narrativa em 124 peças, cuja análise resultou
em 5 grupos diferentes. A trajetória de pesquisa envolveu mais de uma década, entre Iniciação Cien-
tífica, Mestrado e Doutorado, no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, com bolsa de pesquisa
FAPESP e consulta presencial a mais de 15 instituições, entre museus, coleções e universidades15.
A fundamentação teórico-metodológica se baseia na convergência entre Arqueologia Cog-
nitiva e a Semiótica, como discutido no capítulo teórico de La Chioma.16 O método de análise con-
sidera o tipo de suporte artefactual, por exemplo se são vasos de alça estribo, mais grossa (Fig. 3),
ou vasos de alça lateral, mais fina (Fig.7). Também se consideram os atributos dos personagens,
os instrumentos que tocam, o contexto regional de produção e tantas outras informações que são
cruzadas no final da análise.
O Grupo 1 é o de Duplas de Antaristas. Antara é o nome dado à flauta de pã no mundo andino
e antarista como tem sido chamado em minha pesquisa o músico que toca o instrumento. Este gru-
po está centrado em um par de antaristas (Figs. 2, 3 e 4) acompanhados por dançarinos, mulheres,
crianças e um personagem que carrega uma planta de mandioca. Um belíssimo vaso do Museu de
Berlim17 pertence a esse grupo e constitui exceção: é a única Dança do Inframundo pintada em vez
do tradicional relevo que caracteriza esta temática, e difere de todas as outras porque apresenta um
aplique escultórico retratando um percussionista.

14 1982
15 MARLH - Museu Arqueológico Rafael Larco Herrera (Lima)
MNAAHP - Museu de Arqueologia, Antropologia e História do Peru (Ministério de Cultura do Peru, Lima)
MAASM - Museu de Arqueologia e Antropologia do Centro Cultural da Universidade Nacional Maior de San Marcos (Lima)
MAUNT - Museu de Arqueologia da Universidade Nacional de Trujillo (Trujillo)
MSHM - Museu de Sítio Huacas de Moche (Projeto Arq. Huacas de Moche, Trujillo)
MC - Museu Cassinelli (Trujillo)
MSHC - Museu de Sítio Huaca Cao (Trujillo)
MB - Museu Bruning de Lambayeque
MTRS - Museu Tumbas Reales de Sipán (Lambayeque)
MSRH - Museu de Sítio Huaca Rajada Sipán (Lambayeque)
MAE - Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (São Paulo)
MAM - Museu de América (Madri)
MET - The Metropolitan Museum of Art (Nova York)
AMNH - American Museum of Natural History (Nova York)
DO - Dumbarton Oaks Research Library and Collection (Harvard, Washington D.C)
16 2016:11-16
17 Ver La Chioma 2016, prancha 113.

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[Figura 1] Vasos com narrativa de Dan-


ças do Inframundo reunidos na Reser-
va Técnica do Museu Larco, Lima.
Foto da autora, 2013.

[Figura 2] Roll Out retirado de vaso moche com cena de Dança do Inframundo com duplas de antaristas (Grupo 1) e
demais personagens.
Imagem cedida gentilmente pelo Museu Larco, Lima.

[Figura 3] Vaso de alça estribo com representação de [Figura 4] Detalhe com dupla de antaristas em vaso
Dança do Inframundo. Museu Larco, Lima. com cena de Dança do Inframundo. Museu Larco,
Lima. Foto da autora, 2013.

[Figura 5] Roll Out retirado de vaso moche com cena de Dança do Inframundo com antaristas flutuando sobre guer-
reiro paramentado (Grupov2) e demais personagens.
Imagem cedida gentilmente pelo Museu Larco, Lima.

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[Figura 6] Roll Out retirado de vaso moche com cena de Dança do Inframundo com trios de antaras e percussão (Gru-
po 3) e demais personagens. Imagem cedida gentilmente pelo Museu Larco, Lima.

[Figura 7] Vaso de alça lateral com representa- [Figura 8] Roll Out da Entrada no Inframundo feito
ção de Dança do Inframundo. Museu Larco, Lima. por Donna McClelland a partir de vaso original.
Créditos: Christopher B. Donnan and Donna McClelland Moche
Archive, 1963-2011, PH.PC.001, Image Collections and Fieldwork
Archives, Dumbarton Oaks, Trustees for Harvard University, Wa-
shington, D. C.

[Figura 9] Roll Out de cena retirada de vaso do Museu de Arte de Lima com personagens cadavéricos disputando
sêmen e antaras. Golte, 2009.

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O Grupo 2 é centrado em dois antaristas que flutuam sobre um guerreiro ricamente para-
mentado (Fig. 5). Acompanham os dançarinos de sempre. Há um par de personagens que parecem
se enfrentar em uma espécie de batalha ritual, em cujo centro há um percussionista pequeno. Por
fim, há o carregador de mandioca.
O Grupo 3 está centrado em um trio de antaras e percussão (Fig. 6). Seguem os dançarinos e
o carregador de mandioca, agora tocando uma trombeta.
O Grupo 4 é formado apenas por tocadores de trombetas cadavéricos e dançarinos nus, sem
muitos detalhes.18

A Entrada no Inframundo e o Ciclo de Vida e Morte


A Fig. 8 retrata a cena mais notável encontrada na pesquisa, que permitiu minha interpreta-
ção das Danças do Inframundo. Eu a classifiquei no Grupo 5.19 Hocquenghem20, pesquisadora ale-
mã que analisou uma das cenas, a denominou A Entrada no Inframundo. Há apenas três exemplares
dela em peças originais, todos pertencentes a coleções particulares, o que lhe confere uma notória
raridade. Donnan & McClelland visitaram estas coleções e passaram as imagens para planos bidi-
mensionais, como fizeram com as outras imagens mochicas.21
A cena está dividida em duas partes e o único elemento a conectá-las é um personagem que
parece ser empurrado de um plano para outro. Na ponta superior esquerda um casal em cópula
invertida é seguido por um personagem carregando esferas. Estas esferas são consideradas sêmen
por Golte,22 interpretação que usei em minha tese. Seguem um morcego e um personagem que
toca flauta tubular, ou quena. Ele tem formato de amendoim. Dançarinos estão por toda a cena
em ambos os planos e alguns personagens na ponta direita inferior parecem trancafiados em uma
espécie de tumba ou sarcófago. Finalmente, um par de tocadores de antaras aparece na ponta es-
querda inferior.
De fato, amendoins tocando quenas ou flautas tubulares são comuns na arte Moche.23 Assim
como os personagens cadavéricos tocando antaras e as cenas de cópula, que formam a tradicional

18 ver La Chioma, 2016, Prancha 123


19 Ver La Chioma, Prancha 124
20 1987:138
21 Por ter feito minha Residência Pré-Doutoral na Dumbarton Oaks (2016) tive acesso direto ao arquivo e às imagens digitalizadas em alta
resolução.
22 2009:163
23 ver La Chioma, 2016: Prancha 96

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arte erótica moche. Existe uma discussão na bibliografia entre Hocquenghem e Bourget24 sobre a
direção que o personagem estaria trilhando: de baixo para cima ou de cima para baixo.
Minha interpretação advém da análise dos dados etnomusicológicos.25 A música foi o centro
da minha análise: dividi os grupos sempre centrando a classificação nos músicos e na produção so-
nora. As associações entre instrumentos e seus tocadores foi minha ferramenta metodológica para
compreender a lógica da cena. Os estudos etnomusicológicos foram também considerados para a
interpretação. Eles atestam que a antara é um instrumento ligado com o mundo dos mortos e com
a época seca nos Andes.26
Na fig. 9, desenho de Golte27 referente a uma peça do Museu de Arte de Lima, personagens
mortos parecem disputar uma antara que cai ao lado de uma esfera, o sêmen, como visto anterior-
mente, como se estivessem ávidos por fertilização na época seca.
Dados etnomusicológicos atestam que quenas ou flautas tubulares, por outro lado, têm rela-
ção com a fertilidade, as sementes, o nascimento, padrão que também encontramos na iconografia
moche.28 Quenas e antaras são, portanto, instrumentos sonoros com simbologias opostas. Por essa
razão, é compreensível, dentro dos padrões da cosmovisão andina e da produção musical andina,
que o personagem esteja saindo do mundo dos vivos, onde o casal em cópula está associado a um
amendoim que toca quena, e entrando no mundo dos mortos, onde estão as antaras.
Neste sentido, as Danças do Inframundo são uma narrativa de ciclo de vida e morte, como
discutido em La Chioma.29

Considerações Finais
Nossa análise dos dados demonstrou que as Danças do Inframundo foram produzidas
maiormente na região Moche Sul, ou seja, vales de Moche, Chicama, Viru, e na fase III e IV, ou seja,
período Moche Médio.30
Essas conclusões foram possíveis porque as peças do Museu Larco, de onde procede a maior
parte dos dados, guarda informações de proveniência sobre os vales onde Rafael Larco escavou as

24 2006:179-182
25 La Chioma 2012: 148-156; 2016: 236-247; 2017: 131-133; 2019: 267
26 Stobart, 2006: 52; Bellenguer, 2007: 123
27 2009
28 Stobart, 2006: 53
29 2012: 148-156; 2016: 236-247; 2017: 131-133; 2019: 267
30 La Chioma, 2016: 226; 246-247

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[Figura 10] Tabela compendiando as principais conclusões a respeito do contexto de produção e


circulação das vasilhas de Danças do Inframundo.
Diagrama: La Chioma. Baseado em La Chioma, 2016.

peças. Determinados grupos de cenas têm relações com determinados vales. Isto pode significar
que cada vale tinha uma tradição diferente de compreender e narrar as Danças do Inframundo, ou
que os governantes de cada vale enfatizassem características diferentes da narrativa.31
O Grupo 2, por exemplo, com antaristas voando sobre o guerreiro, foi encontrado associado
somente ao vale de Chicama.
Na tabela (Fig. 10) foram detalhadas estas características e relações. Enquanto os grupos 1 e
3 estão mais bem distribuídos entre vários vales, os grupos 2 e 4 têm relação com apenas um vale:
Chicama e Virú respectivamente.
No caso da Entrada no Inframundo, Donnan & McClelland, ao terem contato direto com as
peças em coleções particulares, registraram também o formato do gargalo dos vasos. Ao ver os de-
senhos em alta resolução na Dumbarton Oaks notei que se tratavam, os três exemplares, de peças
da fase III, isto é, anteriores as dos outros grupos. Portanto, a Entrada no Inframundo, uma cena
mais rara e até mais completa, seria mais antiga que as Danças do Inframundo tradicionais, que
existem às centenas nos museus. A Entrada no Inframundo pode ser uma narrativa mais antiga que
tenha dado origem à tradição de representar as danças dos mortos. As cenas subsequentes podem
ser sínteses dessa narrativa, com a ênfase que o governante de cada vale gostaria de dar. No caso do
vale de Chicama o guerreiro com antaristas flutuantes parece ter sido o elemento central.

31 La Chioma, 2016: 246-247

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Consideramos, também, fundamental incorporar em nossa investigação o trabalho dos et-


nomusicólogos, os quais nos permitem refletir, em conjunto com a iconografia analisada, a respeito
da produção musical no mundo andino antigo. Aspectos chave da musicologia e da etnomusicolo-
gia transpassaram este trabalho desde a classificação das peças —que obedeceu a critérios semio-
lógicos, mas também organológicos32 até a interpretação das cenas, tanto em relação à simbologia
dos instrumentos sonoros, como a relação entre música e calendário cerimonial. O fato de que que-
nas e antaras tenham simbologias opostas na musicologia andina, um conceito com o qual etno-
musicólogos têm trabalhado por décadas, foi fundamental para a intepretação da cena da Entrada
no Inframundo.33

32 Sachs & Hornbostel, 1992


33 Este estudo está publicado de forma mais completa em minha Dissertação de Mestrado (2012), tese de Doutorado (2016) e em artigo recen-
te no Peru (2019).

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