Cadernos Sion Volume 1
Cadernos Sion Volume 1
Cadernos Sion Volume 1
CADERNOS DE SION
ANO 2020
VOLUME 1
NÚMERO 1
VOLUME 1, NÚMERO 1
EDITORES
CONSELHO EDITORIAL
Me. Fernando Gross (PUC-SP/CCDEJ)
Me. Joel Marcos Moreira (CCDEJ)
Me. Judson Vieira (PUC-SP/CCDEJ)
Me. Marivan Soares Ramos (CCDEJ)
Dr. Ruben Sternschein (CIP)
Dr. Saul Kirschbaum (CCDEJ)
CONSELHO CIENTÍFICO
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CADERNOS DE SION
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 3
JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS 161
José Benedito de Campos
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Apresentação CADERNOS DE SION
APRESENTAÇÃO
Caro Leitor/Leitora
Shalom
O primeiro artigo de autoria de Elton da Silva Santana, intitulado PAI NOSSO: UMA
ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ, se propõe a apresentar um estudo do Pai Nosso e suas
origens na tradição veterotestamentária e judaica, entendendo a tradição judaica como
aquela que se formou após a reconstrução do Templo, o Segundo Templo que, no
período de Jesus, é conhecido por muitos como judaísmo formativo.
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Apresentação CADERNOS DE SION
REVELA, faz uma Análise reflexiva de diversas imagens criadas pela humanidade, ao
longo da história, para descrever a deus ou deuses, que acreditam estar a seu redor.
Assim, trata de inúmeras variações dessas imagens, que foram relatadas em textos
bíblicos e filosóficos, o que nos propicia avaliar a influência direta do tempo, lugar,
cultura e meio social na interpretação dos diversos contornos das imagens de Deus.
O quinto artigo, de Nayon Nigel da Silva Melo Cezar, intitulado 50 ANOS DA NOSTRA
AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL, discute como se deu o caminho de
divergência entre as duas tradições no período da Igreja nascente, apresentando o
Concílio Vaticano II, séculos depois da ruptura, como o grande baluarte de abertura ao
diálogo e à unidade. Explicita, ainda, os difíceis caminhos trilhados pelo cardeal Béa na
concepção de um texto que traduzisse a voz da Igreja em um período que o mundo,
perplexo pelos horrores nazistas, urgia por uma palavra aos judeus.
SHALOM.
Os Editores
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
RESUMO
Neste trabalho, procuramos apresentar um breve estudo do Pai Nosso e suas origens na
tradição veterotestamentária e judaica, entendendo a tradição judaica como aquela que se
formou após a reconstrução do Templo, o Segundo Templo que, no período de Jesus, é
conhecido por muitos como judaísmo formativo. Assim, procuramos examinar a tradição
orante do judaísmo formativo, especialmente, a amidá e sua possível contribuição para o
desenvolvimento do Pai Nosso, do qual, acreditamos que Jesus tenha se inspirado
diretamente.
Palavras-chave Pai Nosso; Tefilah; Amidá; Shemone-esrê;
ABSTRACT
In this work, we seek to present a brief study of the Lord's Prayer and its origins in the Old
Testament and Jewish tradition, understanding the Jewish tradition as the one that was
formed after the reconstruction of the Temple, the Second Temple, which, in jesus' period, is
known to many as formative judaism. Thus, we seek to examine the praying tradition of this
formative judaism, especially amida and its possible contribution to the development of the
Our Father, from which we believe that Jesus was directly inspired.
Considerações Iniciais
Há duas versões da oração do Pai Nosso nos Evangelhos, de Mateus (Mt 6,9-13) e de
Lucas (Lc 11,2-4). O primeiro apresenta uma versão mais longa, com sete petições e o segundo
uma versão mais curta, com cinco petições. Sobretudo, na versão mateana, é possível ver a
sua influência tanto na Bíblia hebraica como no seu ambiente próprio, o judaísmo formativo
do Segundo Templo. Assim, mostramos, dentro de uma perspectiva da teologia bíblica, que
aquilo que chamamos de oração cristã – o Pai Nosso, é, na verdade, uma oração
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
essencialmente judaica.
1. A oração no judaísmo
A liturgia judaica atual está alicerçada sobre o tripé: shema‘ Ysra’el (a profissão de fé
judaica), a tefillah (a oração) e a miqrat Torah (a leitura da Torah) (DI SANTE, 2004). Mas, pelo
que nos propomos cumprir, neste artigo, vamos apenas nos debruçar um pouco sobre a
tefillah. Antes, no entanto, precisamos compreender algo que está no coração do judeu
orante e que resume toda a essência hebraica: a Berakah.
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Utilizaremos a Bíblia TEB (2020) como referência.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
1.1. Tefillah
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No grego, a tradição judaica da diáspora, traduziu como eucaristia que significa “ação de graças”.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
O centro da oração é ser uma oração pessoal, o que significa um ato de manter Deus
conosco. Por isso, o dia é uma liturgia, ou como diz a regra de São Bento: ora et labora. O que
significa que a nossa conversa com Deus deve levar-nos a comunhão fraterna, pois o labor
significa criar no (com o) mundo e não para si, num ato isolado.
A tefillah também é conhecida como ‘amidah ou amidá, que significa “estar de pé”.
Ela é conhecida assim por ser recitada de pé. A sua origem teria se dado por volta do século V
a.C., formada por 18 bênçãos, derivando daí o nome de Shmone-esrê, como também é
conhecida. Atualmente, ela é composta por 19 bênçãos que teria sido acrescida na Babilônia,
no século III d.C., pela divisão de uma das orações em duas partes. (DI SANTE, 2004, p.93).
A Amidá está organizada em três bênçãos iniciais de louvor, treze bênçãos centrais
de pedidos e três bênçãos conclusivas de louvor. (SIDUR, 2008). Considerando o fato de que
Jesus era um judeu praticante, assim como os seus apóstolos, é de convir que a oração do Pai
Nosso pudesse seguir o que era tradicional na oração judaica.
Esta oração dominical, conhecida por Oração do Senhor ou Pai Nosso, acompanha a
vida cristã desde os tempos primeiros, quando os apóstolos instruíram as comunidades a fazê-
lo em todas as refeições. Em seu corpo, há toda a experiência histórica de como devemos nos
dispor em relação ao Pai: não de modo mecânico, mas numa dinâmica querida por Ele mesmo.
Adiante analisamos, em subcapítulos, cada uma das partes do Pai Nosso, sem
preocupação exegética, para que fique mais claro e pedagógico aquilo que objetivamos: a
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
Como dissemos acima, há duas versões do Pai Nosso. Para efeitos de estudo,
propomo-nos a discorrer sobre a versão mateana do Pai Nosso, pois julgamos que ele guarda
a oração mais próxima ao contexto judaico. Além do mais, concordamos com Jeremias (2006,
p.312), quando lembra que o Evangelho de Mateus é voltado para os judeus. Já o Evangelho
de Lucas é direcionado aos “gentios”; portanto, a oração segue inculturada. Da mesma forma,
alguns dos manuscritos de Mateus podem ter seguido por comunidades gentílicas e sido
inculturados, já que sabemos que o evangelho de Mateus, originalmente, possa ter sido
escrito em aramaico e, possivelmente, ao passar por comunidades gentílicas, tenha sido
traduzido para o grego, que é o que chegou para nós.
Para analisarmos melhor a Oração do Senhor, seguiremos a tradução livre, feita por
nós, conforme segue e, em seguida apresentamos o Pai Nosso, parte a parte e sua
aproximação com a tradição bíblica e judaica.
nos para vivermos a fraternidade universal, advinda do Seu amor incondicional de Trindade
Santa (CROSBY, 2004, p.56). Isso é muito bom, pois Deus não é algo ou alguém que se possa
dominar, que se queira só para si. Deus é Deus de todo mundo, apesar de ter escolhido os
seus (Israel), porém, não para serem privilegiados sob outros povos, mas pela Aliança firmada
com os patriarcas e com Moisés. Para nós cristãos, pela fé em Jesus, entramos também nessa
filiação divina e irmandade com Cristo. (BARTH, 2006, p.32)
Rabi Shmuel ben Nahmani relata em nome de Rabi Yonatan: “Que sentido
(dar) ao versículo: “Tu és nosso Pai, pois Abraão não nos conhece, Israel
ignora quem somos. Tu, Eterno, és Nosso Pai, Nosso Salvador (Is 63,15)?’”.
No futuro, o Santo, bendito seja Ele, dirá a Abraão: “Teus filhos erraram!”.
Abraão responderá: “Senhor do mundo, que eles sejam punidos para a
santificação do Teu Nome”. (HADDAD, 2017, p.58)
A expressão “que estai nos céus”, empregada como morada divina, aparece na Bíblia
no singular e no plural. No entanto, o aramaico emprega o singular shemaïa = céu e o hebraico
emprega o plural shamaïm = céus. É possível encontrar a expressão “meu Pai que está nos
Céus” mais de trinta vezes entre o Talmud e o Midrash. (HADDAD, 2017, p.68). Na Bíblia,
indicando o céu como morada divina, é possível encontrar em várias passagens, como no
salmo (14,2): “Dos céus, o SENHOR se inclinou para os homens, para ver ser há alguém
perspicaz que busque a Deus”; e também “Ele inclinou-se do alto do seu santuário; o SENHOR,
lá dos céus, olhou para a terra”. (Sl 102,20)
Na verdade, esta ideia encontra a sua origem no Shabat de Deus. Com efeito,
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
Desde o momento em que Israel recebe a revelação do nome divino (Gn 32,30), deve
santificá-Lo e louvá-Lo e nunca deverá macular o Nome. “Não pronunciarás o nome do
SENHOR, teu Deus, em vão, pois o SENHOR não deixa impune quem pronuncia o seu nome
em vão”. (Ex 20,7). Ao santificarmos o Nome, podemos conhecer a Sua grandeza, manifestada
por Ele mesmo. “Mostrarei minha grandeza e minha santidade, dar-me-ei a conhecer aos
olhos de numerosas nações. Então conhecerão que eu sou o SENHOR.” (Ez 38,23)
Para os cristãos, conhece-se a Deus por Seu Filho, afinal: “Aquele que me viu, viu o Pai”
(Jo 14,9b). Quando o anjo Gabriel visita a família de Nazaré e dá-lhe a Boa-nova, logo diz qual
deve ser o Seu Nome: Emanuel, que significa: Deus conosco. Portanto, em Moisés vem a
esperança da Salvação; e, em Jesus está a própria Salvação; Ele é o Deus conosco. Mesmo na
condição divina, Jesus revela o Pai e não se engrandece: “‘Pai, glorifica o teu nome.’ Então
uma voz veio do céu: ‘Eu o glorifiquei e o glorificarei ainda’.” (Jo 12,28) E ainda, “Eu manifestei
o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eles eram teus, a mim os deste, e eles
observaram a tua palavra.” (Jo 17,6) E, por fim “Eu lhes dei a conhecer o teu nome e darei a
conhecer ainda mais, a fim de que o amor com que amaste esteja neles, e eu neles.” (Jo 17,26)
Jesus revela o Pai que Lhe enviou, cumpre a Sua missão de ensinar os seus a santificar o Nome,
e volta a Casa do Pai.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
No qaddish, encontramos a seguinte prece: “Que ele possa estabelecer seu reino
durante vossa vida e durante vossos dias e durante o tempo da casa de Israel.” (DI SANTE,
2004, p.33). Ou seja, o Reino divino não é algo simplesmente espiritual é de um outro plano
de vida (“meta-história”), mas algo que se espera concretamente nesta vida e que tem
continuidade no vindouro, como bem expressou BOFF (1982, p.75):
Qualquer ação que façamos deve estar voltada a Deus. Deixar que a vontade de Deus
predomine em nossa vida é quebrar as barreiras do nosso eu. Quando passamos da barreira
do eu para Deus, ficamos mais próximos Dele e, consequentemente, do caminho dos Seus
desígnios e d´Aquele que o Pai enviou. “Ora, a vontade d´Aquele que me enviou é que eu não
perca nenhum dos que ele me deu, mas que eu os ressuscite nos últimos dias.” (Jo 6,39).
Exaltado e santificado seja seu grande nome no mundo, que ele por sua
vontade criou. Faça prevalecer seu reino em vossas vidas e nos dias vossos e
na vida de toda a casa de Israel, prontamente e em breve. E a isto declara:
Amém. (JEREMIAS, 2006, p.65)
Há, também, uma bela oração judaica, quando na proximidade da morte, que diz
como devemos nos abandonar à vontade divina: “Que a tua vontade seja a de curar-me, mas
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
se minha morte está decretada por ti, eu a aceitarei, com amor, de tuas mãos”. (DI SANTE,
2004, p.33). Parece que ela foi inspirada da fala de Judas: “porque é melhor para nós morrer
em combate do que presenciar as desgraças de nossa nação e de nosso lugar santo. A vontade
celeste será cumprida.” (1Mc 3,59-60)
Dessa forma, estamos mantendo uma relação com o transcendente. Não que o céu
seja um lugar específico, a morada divina igual ao monte Olimpo grego. O céu é o lugar
teológico, por excelência, da presença divina e é aquilo que devemos almejar e ajudar a
construir nesse plano de vida.
É comum, nas traduções, encontrarmos o enunciado “O pão nosso de cada dia dai-
nos hoje”. Todavia, como afirma Jeremias (2006, p.317), a tradução mais correta seria “O pão
de amanhã, dai-nos hoje”, uma vez que, seguindo uma tradição judaica da época de Jesus,
amanhã, muitas vezes, sugere o Grande dia, o Cumprimento Final. Trata-se de um termo
escatológico em que se espera a vinda do Reino imediatamente. É claro que não podemos
deixar de considerar o fato de, assim como Jesus que era do campo, muitos judeus pedirem a
Deus que houvesse sempre uma boa colheita: preces típicas de quem nunca sabe como vai
ser o dia de amanhã, já que no campo tudo é inesperado.
“Abençoa, Eterno, nosso Deus, este ano e todos os produtos da colheita. Faz
cair orvalho e chuva (no inverno) de benção sobre a terra e traz fartura pela
Tua Bondade. Abençoa o nosso ano como todos os outros anos abençoados,
pois Tu é Deus da bondade e benfazejo, que abençoas os anos. Bendito sejas
Tu, Eterno, que abençoas os anos.” (SIDUR, 2008, p.69)
2.8 Perdoa as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
Reconduze-nos à Tua lei, ó nosso Pai, retoma-nos ao teu serviço, ó nosso Rei, e
faça com que regressemos com sincero arrependimento para Ti. Bendito sejas
Tu, Eterno, que Te comprazes com o arrependimento. (SIDUR, 2008, p.68)
E na sexta benção:
A outra confusão é que, seguindo esta tradução tradicional, acabamos por inverter os
papéis, ou seja, pedimos a Deus que nos perdoe, do mesmo modo como perdoamos os outros
que tenham feito algum mal a nós. Para uma possível aproximação do aramaico, Jeremias
(2006, p.72) nos propõe: “assim como também nós, ao dizer estas palavras, perdoamos aos
nossos devedores.” Porque devemos primeiramente expressar o nosso sincero
arrependimento, conforme tanto a teologia do evangelho de Mateus como o que está
prescrito na quinta benção da amidá acima.
Dessa maneira, podemos utilizar tal expressão, desde que compreendamos que a
tentação é algo a que todos estamos à disposição e devemos dedicar convicção de que Deus
caminha conosco para o bem.
Pedir a Deus que nos livre do mal é dizer que não queremos viver segundo a maldade,
que paira no mundo, mas que queremos viver o Seu Amor. Ninguém deseja viver para o mal,
porém, existe muitas pessoas que nunca aprenderam a viver o bem. Há uma oração judaica
vespertina (TB berakôt 60b) que nos dá inteiramente o sentido que devemos seguir: “Não
conduzas meu pé ao poder do pecado e não me leves ao poder da culpa, e não ao poder da
tentação, e não ao poder da infâmia” (JEREMIAS, 2006, p.74)
Se a Bíblia aponta a origem do mal e do pecado original, ela o faz não para saber
como o mal entrou, mas para saber como o mal poderia sair. Nesse sentido, ao menos na
narração do paraíso, a raiz do mal ou o pecado original não é só, nem em primeiro lugar, um
fato determinado, ocorrido no início da humanidade, mas é, também, uma realidade atual e
universal que atua no hoje de cada geração, como uma força perigosa e ameaçadora da qual
cada geração é responsável, incluindo a primeira.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
Já para o autor do Gênesis (Gn 2,25 – 3), a narrativa do paraíso procura estabelecer
uma ligação entre a transgressão da lei e a percepção da nudez. Da percepção da nudez, todos
têm consciência, pois é um fenômeno humano universal, da transgressão da Lei de Deus, por
sua vez, nem todos têm consciência. A maioria das pessoas parecem estar dormindo e devem
ser acordadas. O autor quer acordá-los, aludindo à nudez. Isso significa que as referências à
nudez são um meio para confrontar o leitor com o mistério do mal que nele reside e que ele
desconhece.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
Assim, não temos dúvidas de que tanto a Amidá como o Pai Nosso tenham se inspirado
em 1Cr 29,11, que diz: “A ti, SENHOR, a grandeza, a força, o esplendor, a majestade e a glória,
pois tudo, no céu e na terra, te pertence. A ti, SENHOR, a realeza e a soberania sobre todos os
seres.”
2.12 Amém
A palavra amém vem da raiz hebraica āmēn, que significa originalmente uma coluna,
escora que serve de sustento a algo, o que justifica traduzirmos por firmeza, de fato, assim
seja ou certamente. Essa palavra se tornou comum para designar a veracidade de algo, usado
geralmente no sentido legislativo, porém, tornou-se mais comum no término de orações a
Deus, confirmando Seus atributos, promessas etc. No Novo Testamento é utilizado, muitas
vezes, como aclamação litúrgica, para corroborar com uma súplica ou louvor ou ainda para
finalizar cartas. (BAUER, 2000, p.10)
Considerações finais
Antes que as palavras cheguem aos lábios, a mente deve acreditar na boa vontade
de Deus em querer se aproximar de nós e em nossa capacidade de preparar o caminho para
Ele. Esta é a ideia que nos leva à oração. Orar é reconhecermo-nos, é colocar em sintonia
nossa percepção, volição, memória, pensamento, esperança, sentimento, sonhos, tudo o que
se move em nós. A essência da oração não está nas palavras que pronunciamos, no culto dos
lábios, mas na maneira em que a devoção do coração corresponde ao que as palavras
encerram, na consciência de estarmos falando sob os seus olhos. A oração é a forma mais fácil
de encontrarmo-nos com Deus, pois ela nos permite ir ao encontro do Absoluto. Ainda,
implica o diálogo por excelência, pois é pela oração que expressamos a nossa vontade de
buscar, no âmago de nosso ser, as respostas mais íntimas e complexas da nossa existência e
do mundo.
Pela oração, entregamo-nos ao amor de Deus, em prol da caridade com o outro. A
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
oração conduz-nos pelas veredas do dom da vida. Sem oração não percebemos a criação em
sua inteireza, pois ela é a luz que ilumina a nossa compreensão. Ela também é um “êxtase
espiritual”, como se todos os nossos pensamentos vitais, num ardor veemente, irrompessem
numa torrente impetuosa na direção de Deus. Uma força irrompe da solidão da nossa alma e
arrebata as nossas aspirações para o máximo, para o mais alto, para o sublime.
Por isso, o Pai Nosso, nascido nas entranhas do judaísmo formativo, ainda continua
tão atual e fundamental para a nossa existência. O Pai Nosso é oração judaica, porque vem da
tradição litúrgica judaica e das orações judaicas. Quando a tradição cristã aponta a oração que
as primeiras comunidades experimentaram, a partir da sua história, como a partir da
experiência que fizeram com o Messias que creram e dos Seus ensinamentos deixados. Quer
nos mostrar que ela tem um conteúdo fundamental do qual podemos experimentar o Eterno
e nos pôr em relação com o próximo, com nossos irmãos.
Pela oração do Pai Nosso, somos imersos no universo da fé judaico-cristã, que enxerga
a oração como movimento duplo: fé e vida. Dessa maneira, o contato com o Absoluto deve
nos levar ao contato com o outro, para que sejamos todos um com o Um, conforme expressou
o rabino Haddad (2017, p.17): “Esta oração possui sua originalidade, inscrevendo-se no
coração da liturgia de Israel”. Ao rezá-lo, nós cristãos, estamos automática e espiritualmente
entrando em diálogo com a tradição judaica; estamos, portanto, dialogando não somente com
o totalmente Outro, mas com o outro: nossos irmãos judeus, que ricamente nos transmitiu o
seu legado de fé e existência.
REFERÊNCIAS
BARTH, Karl. O Pai Nosso: a oração que Jesus ensinou aos seus discípulos. São Paulo: Fonte,
2006.
BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA (TEB). São Paulo: Loyola, 1994.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION
BOFF, Leonardo. O Pai Nosso: a oração da libertação integral. 3ª. Petrópolis: Vozes, 1982.
BUNIM, Irving M. A ética do Sinai: ensinamentos dos sábios do Talmud. 3ª ed. São Paulo:
Sêfer, 2004.
CROSBY, Michel H. A oração que Jesus nos ensinou. São Paulo: Paulus, 2004.
DI SANTE, Camine. Liturgia judaica. Fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus,
2004.
GIGLIO, Auro del. Iniciação ao Estudo da Torá. São Paulo: Séfer, 2003.
GORGULHO, F. Gilberto e ANDERSON, Ana Flora. A origem e o mistério do mal. São Paulo,
2006.
HADDAD, R. P. Pai Nosso: uma leitura judaica da oração de Jesus. São Paulo: Fons Sapientiae,
2017.
HEERDT, Mauri L. e COPPI, Paulo De. Pai Nosso! Uma reflexão teológica e pastoral sobre Deus
Pai. 2ª ed., São Paulo: Mundo e Missão, 2003.
JEREMIAS, Joachim. Estudos do Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2006.
LEONE, Alexandre. A oração como Experiência mística em Abraham J. Heschel. In: REVER –
Revista de Estudos da Religião. São Paulo: PUC, 2003: p. 42-53;
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
MOSETTO, Francesco. Pai-nosso. Breve comentário bíblico-patrístico. São Paulo: Ave Maria,
2008.
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 28ª. Sociedade Bíblica do Brasil: São Paulo,
2012.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O Povo Judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã. São
Paulo: Paulinas, 2001;
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ
Fernando Gross
RESUMO
Dentro das narrativas e tradições bíblicas pertencentes ao Livro do Êxodo (7-10), este artigo tem
como tema o estudo de parte da exegese judaica a partir do coração do faraó. Tem comoobjetivo uma
aproximação da teologia cristã com os ensinamentos da Igreja, desde o ConcílioVaticano II e os atuais
documentos da Igreja sobre a importância de uma rica complementaridade, que nos permita ler
juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra
(Evangelii Gaudium, n° 249). Destacamospara isso a metodologia da aproximação do pensamento de
sete exegetas judeus a respeito do que se reflete sobre o coração opressor do rei do Egito. Como
resultados apresentamos o quanto importante é conhecermos a exegese judaica para uma melhor
compreensão da exegese cristã, considerando as conclusões na necessidade do diálogo com o vasto
patrimônio cultural e ético do qual herdamos em nossa identidade cristã, a partir da raiz santa da
identidade judaica.
ABSTRACT
Within the biblical narratives and traditions belonging to the book of exodus (7-10), this articlehas as its
theme the study of part of jewish exegesis from the heart of the pharaoh. it aims to bring christian
theology closer to the church's teachings since the second Vatican Council and the current church
documents on the importance of a rich complementarity that allows us to read together the texts of
the hebrew Bible and help each other to unravel the riches of the word (Evangelii Gaudium, n ° 249).
We highlight the methodology of approaching the thinking of seven jewish exegetes about what is
reflected on the oppressive heart of the king of Egypt. As a result we present how important it is to
know jewish exegesis for a better understanding of Christian Exegesis, considering the conclusions on
the need for dialogue with the vast cultural and ethical heritage from which we inherit in our christian
identity from the holy rootof jewish identity.
Considerações Iniciais
O que acontece de fato no interior desse órgão tão importante do coração de quem
governava o Egito? O que podemos compreender dentro das narrativas e tradições bíblicas
pertencentes no Livro do Êxodo sobre o conceito de livre-arbítrio e a responsabilidade do
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
faraó sobre o evento Pascal da libertação dos Filhos de Israel daquela situação opressora em
que viviam? O que nos falam a respeito disso a exegese judaica? Essas são algumas questões
que se pretende responder nesse estudo a partir de uma aproximação de parte da exegese
judaica a partir do coração do faraó. Isso é o que a Igreja nos pede desde o Concílio Vaticano
II e os documentos do seu Magistério sobre a importância do diálogo com a rica experiência
que os Judeus possuem de ler as Sagradas Escrituras.
Esse artigo tem como objetivo realizar um estudo sobre o que refletiram sete exegetas
judeus sobre o movimento interior no coração do governante do Egito mencionado sobretudo
nos capítulos 7 a 10 do Livro do Êxodo. A teologia cristã pode incluir a novidade dos estudos
judaicos em sua reflexão? Não é isso que nos propõe os ensinamentos da Igreja desde o
Concílio Vaticano II e os atuais documentos da Igreja sobre a importância de uma rica
complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos
mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra (Evangelii Gaudium, n° 249)?
Este artigo quer, portanto, mostrar um exemplo da riqueza desse diálogo e o quanto
perdemos com a desconfiança e o desconhecimento dos estudos judaicos. É preciso crescer
nesse exercício dialogal com o vasto patrimônio cultural e ético do qual herdamos em nossa
identidade cristã a partir da raiz santa da identidade judaica.
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
Foi somente a partir da 6ª Praga, os furúnculos, que vemos o cumprimento da Divina
Promessa feita a Moisés: “E reforçou/fortaleceu o SENHOR o coração do faraó, como Deus
tinha dito a Moisés” (Ex 9,12). Daqui em diante isso acontece após cada Praga: após os
gafanhotos: “Porque eu atribuí peso ao coração dele e ao coração de seus servos” (Ex 10,1);
“Contudo, o SENHOR reforçou, fortaleceu o coração do faraó” (Ex 10,20); e antes da Praga da
Morte dos Primogênitos: “O SENHOR reforçou/fortaleceu o coração do faraó e ele não quis
mais enviá-los” (Ex 10,27).
Esses textos sempre questionaram os comentadores e exegetas judeus ao longo dos
séculos, porque parecem contradizer o princípio humano do livre-arbítrio, “um princípio
estabelecido do Judaísmo” (WIGODER, Geoffrey . Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme,
1996, p. 586-588), e que é um princípio estabelecido do Judaísmo.5
Vejamos como os comentadores judeus trabalharam a questão do livre-arbítrio e o
endurecimento do coração do faraó.
Existe culpa por parte do faraó, já que Deus teria lhe tirado a possibilidade de mudar
sua decisão. Se Deus endureceu o coração de quem governava o Egito, ele seria livre para
decidir realmente? O comentador do Midrash a seguir expõe uma dessas reflexões sobre tais
atitudes de Deus e do faraó: “Pois Eu endureci o seu coração” (Ex 9,1) – Disse Rabi Yohanan:6
Isso permite uma abertura para que os hereges possam dizer: A ele (faraó) não foi permitido
por Deus arrepender-se! (Shemot Rabbah13,4).
Ramban7 coloca a questão de modo claro: “Se o Senhor endureceu seu coração, então
qual foi afinal seu crime?” Lembraremos algumas das respostas de exegetas e comentadores
judeus.
SHADAL8
A posição de cada um dos próximos sete pensadores judeus indicarão para nós como
5
Princípio filosófico e teológico para os judeus que confere ao indivíduo a possibilidade de agir por sua própria
vontade e segundo suas próprias ações. Esse princípio no judaísmo foi discutido em todas as épocas e se
confronta sempre ao conceito do determinismo, divino ounatural. Provindo da vontade individual, as ações
humanas são, portanto, integralmente imputáveis ao seu autor.
6
Rabi Yohanan bar Nappaha (180-279 d.C.) foi rabbi na época nascente do Talmud. Nascido na Galileia e ensinado
pelo próprio Yehudah Ha Nasi nos caminhos da Torah, a qual estudou e ensinou diligentemente por toda a sua
vida. Considerado o maior rabbi na terra de Israel.
7
Ramban, abreviação de Rabi Moshe ben Nachman, ou Nachmânides (1194-1270), um rabino catalão,
médico e grande conhecedor da Torá.
8
Shadal, abreviação de Samuel Davi Luzzatto, era professor de italiano, poeta e membro domovimento de Estudos
Judaicos (1800-1865).
24
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
a tradição judaica refletiu sobre o coração opressor do faraó.
Saiba que todos os atos são atribuídos a Deus, já que Ele é a sua últimacausa,
algumas por absoluto decreto, e outras através da operação da escolha
humana garantida por Ele... No sentido que Ele é o autor de todos os atos,
Ele endureceu o coração do faraó. (FIELDS, 2015,p. 36.)
Nesse caso, nós poderíamos nos perguntar, por que afinal a Torah não atribui tudo o
que acontece, não ao seu imediato autor, mas diretamente para o último e único Deus? Seria
Deus realmente o responsável e não o faraó pelo seu endurecimento? Shadal é cuidadoso em
colocar essa objeção:
Os atos atribuídos a Deus nas Escrituras são aqueles que não são comuns,
as suas causas estão para além do nosso entendimento. A obstinação do
faraó foi um exemplo disso, desde a sua persistente recusa em prestar
atenção aos prodígios das pragas já foi um assunto para se admirar.
Compare a citação de Deuteronômio 29,3: 'Contudo, até o dia de hoje o
SENHOR não vos tinha dado um coração para compreender, olhos para ver
e ouvidos para ouvir'. (LEIBOWITZ, 1996, p.151)
CASSUTO9
Cassuto Rambam destaca aquilo que os textos aparentam de contradições
sobre a questão do livre-arbítrio, reconhecendo que tomam por violência este princípio do
judaísmo. O autor tratará desta questão na introdução do seu oitavo capítulo sobre os Ditos
dos Pais (Pirket Avot). e nas leis do arrependimento. Como são palavras chaves e importantes
para o ouvinte-leitor para a melhor compreensão sobre o livre-arbítrio, transcrever-las-emos
a seguir:
A primeira solução é o caminho que o antigo Hebraico se expressa a si
9
Umberto Cassuto (1833-1951), rabino italiano, sucessor de Samuel Hirsch Margulies como diretor do Seminário
Rabínico de Florença. Grande estudioso da Bíblia, expulso da Universidade de Roma com as leis raciais em 1939,
lecionou na Universidade hebraica de Jerusalém até sua morte em 1951. Autor de muitas obras sob o
pseudônimo de Moshe DavidCassuto, nome de seu avô.
25
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
mesmo. Em uma mulher estéril se dizia: ‘O SENHOR fechou o seu útero’
(1Sm 1,5); num acidente no qual uma pessoa mata sem intenção outra está
escrito: ‘mas se não lhe fez emboscada, Deus permitiu que caísse em suas
mãos’ (Ex 21,13). Todo acontecimento tem um número de causas, e essas
causas, por sua vez, tem outras causas, e assim ad infinitum; de acordo com
a concepção judaica, a causa das causas era a vontade de Deus, o Criador e
o Governador do mundo. Agora o filósofo examina o longo e complexo elo
de causas, enquanto a pessoa comum pula diretamente do último efeito
para a primeira causa e atribui à última diretamente a Deus. Isto, agora, é
como a Torah emprega idiomas humanos e expressa a si mesma.
Consequentemente, a expressão, “mas Eu reforçarei o seu coração” é, em
última análise, o mesmo como se estivesse escrito: “mas seu coração será
obstinado”. Na continuação da narrativa, as frases como “E o SENHOR
reforçou o coração do faraó” alternadas com “E o coração do faraó se
obstinou” podem ser trocadas entre si, porque o seu significado essencial é
idêntico”. (LEIBOWITZ, 1996, p.152)
Cassuto parece ignorar seu próprio cuidado em perceber as nuances e variações dos
textos bíblicos. Parece confundir e igualar o passivo “O coração do faraó se obstinou” (Ex
9,7) com o ativo “O SENHOR reforçou o coração do faraó”.10
ALBO11
Outra aproximação do nosso estudo sobre o que acontece de fato com o coração do
faraó nos é apresentado por Albo no seu clássico livro filosófico chamado Sefer Ha-Ikkarim
(Livro dos Princípios):23
10
Ex 9,12. Os verbos utilizados na língua original em Hebraico são diferentes entre Ex 9,7 – raiz verbal dbk
obstinou, pesou, tornou pesado o seu coração e a raiz verbal qzx tornou forte, reforçou, fortaleceu o coração do
faraó. Isso demonstra a necessidade também do estudo das línguas originais em que os textos bíblicos foram
escritos para um melhor diálogo e a correção de traduções que neste caso “nivelaram” significados profundos e
diversos dos termos utilizados na redação original.
11
Joseph Albo (em torno de 1360 – 1444) foi um filósofo judeu que viveu na Espanha. Discípulo de Hasdai
Crescas. O seu amplo conhecimento cobria os domínios do pensamento judaico, tanto bíblico como rabínico e
filosófico. Era igualmente versado na filosofia islâmica e na escolástica cristã, sobretudo através dos escritos de
Tomás de Aquino.
26
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
Deus. Convertei-vos e vivereis! (LEIBOWITZ, 1996, p. 152)
Albo reforça, portanto, a necessidade do livre-arbítrio não estar motivado por outros
elementos momentâneos, mas unicamente pelo arrependimento consciente. A conversão
sincera produzirá sempre a vida!
SFORNO12
Outro exegeta judeu, Sforno, adota a mesma citação bíblica em Ezequiel relacionando
o desejo Divino de que o ser humano se arrependa dos seus caminhos:
O Altíssimo Deus enviou as pragas para estimular os egípcios ao
arrependimento... e não há dúvidas de que, se o faraó não tivesse
obstinado o seu coração, ele teria deixado os filhos de Israel partirem, mas
sua ação não teria sido motivada por um sincero arrependimento e
submissão à vontade Divina, mas simplesmente para não mais ter de
submeter-se ao sofrimento das pragas, assim como seus servos o
intimaram: ‘Não sabes ainda que o Egito está destruído?’. Mas isso não teria
de fato constituído seu verdadeiro arrependimento. Tivesse o faraó
desejado submeter-se a Deus e sinceramente retornado a Ele, nada disso
teria ocorrido no seu caminho. Mas Deus reforçou o seu coração, fortaleceu
sua resistência para permitir a ele que aguentasse as pragas e detivesse a
partida dos filhos de Israel: ‘para que eu mostre os Meus sinais no meio
deles’, para que eles possam, desse modo, reconhecer Meu poder e
bondade e voltar para Mim em verdadeiro arrependimento. (LEIBOWITZ,
1996, p. 153)
RAMBAM13
Rambam destaca aquilo que os textos aparentam de contradições sobre a questão do
12
Sforno, Obadiah Ben Jacob (em torno de 1470 – em torno de 1550). Comentador da Bíblia, filósofo e médico
nascido em Cesena, na Itália. É considerado uma das maiores autoridades rabínicas da cidade por seu saber
talmúdico e sua maestria sobre questões halákhicas. Ele ensinou o hebraico a Johannes Reuchlin, o famoso
humanista cristão, de 1498 a 1500.
13
Rambam é o nome dado ao grande pensador Moshe ben Maimon (“Maimônides”). Nasceu em 1135 em
Córdoba e faleceu em 1204 no Egito. Foi um judeu sefaradita, filósofo e astrônomo e se tornou um dos mais
importantes e influentes professores de Torah e de ciências físicas da Idade Média. Seus quatorze livros de
comentários da Torah (Mishneh Torah) e a sua obra o Guia dos Perplexos ainda continuam importantes hoje na
codificação das leis do Talmud. É chamado a Grande Águia em reconhecimento ao seu entendimento e exposição
da Torah Oral.
27
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
livre-arbítrio, reconhecendo que tomam por violência este princípio do judaísmo. O autor
tratará desta questão na introdução do seu oitavo capítulo sobre os Ditos dos Pais (Pirket
Avot) e nas leis do arrependimento. Como são palavras chaves e importantes para o
ouvinte-leitor para a melhor compreensão sobre o livre-arbítrio, transcrever-las-emos a
seguir:
Existem muitas passagens nas Escrituras que parecem contradizer o
princípio do Livre-Arbítrio e muitos se deixaram enganar pelo seu conteúdo.
Eles imaginam que o Santo Deus predestine o homem para o bem ou para o
mal. Eu, no entanto, fornecerei uma chave para a compreensão dessas
passagens. Quando um homem peca por própria conta, ele é punido...
algumas vezes neste mundo, outras no Mundo Vindouro, e algumas vezes
em ambos. Quando isso se aplica? Quandoele não se emenda. Mas se ele se
corrige, o arrependimento é um antídoto para essa retribuição. Assim como
os pecados foram de sua própria opção, assim também o é o
arrependimento.
Mas acontece algumas vezes que a ofensa do homem seja tão grave que ele
acaba sendo penalizado em não lhe ser mais concedido a oportunidade de
voltar atrás da sua perversidade, assim sendo ele morre com o pecado que
ele cometeu. (...) Confira também 2Cr 36,16: 'Mas eles zombavam dos
mensageiros de Deus, desprezavam as suas palavras, e riam dos seus
profetas, até que a ira de Deus se desencadeou sobre Seu povo e não
houve mais remédio'. Em outras palavras, eles pecaram por sua própria e
livre vontade, até que eles mesmos confiscaram de si mesmos a
oportunidade do arrependimento, o qual é o clássico remédio.
Para esse fim, a Escritura afirma também: “E eu endurecerei o coraçãodo faraó”. Ele pecou, primeiro
por sua livre vontade... até que ele mesmo retirou de si a oportunidade de se arrepender.(...) Nós
podemos, portanto, concluir que não foi Deus quem forçou o faraó a fazer o mal a Israel, ou Seom
para cometer iniquidades na sua terra, ou os cananitas a adotarem práticas abomináveis, ou nem
mesmo forçou Israel a servir aos ídolos. Todos eles pecaram por suas próprias sugestões, perdendo o
direito ao arrependimento. (LEIBOWITZ, 1996, p.154-155)
Se assim for, como poderia então Deus retirar da própria vontade do faraó o poder de
arrepender-se? Quem sabe com um olhar mais atencioso isso se clarifique. A decisão final
sempre permanece com o homem. No início, contudo, o homem é livre para escolher
qualquer caminho de ação que ele desejar. A ele é oferecido uma igual oportunidade para o
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION
DO FARAÓ
bem ou para o mal, mas tão logo ele tenha feito a sua primeira escolha, então as
oportunidades diante dele já não são mais assim tão balanceadas. Quanto mais ele insista no
primeiro caminho escolhido, digamos, o mau caminho, mais duro se torna para ele retomar o
bom caminho. Em outras palavras, não é o Senhor Deus que lhe dificultou sua liberdade, e
tornou o caminho do arrependimento difícil para ele. Ele mesmo, por sua própria escolha e
persistência no mal, colocou para si obstáculos no caminho de volta para se emendar.
Rambam continua:
Os justos e os profetas sempre pediram ao SENHOR Deus para ajudá- los a
se manterem no verdadeiro caminho: “Ensina-me o teu caminho, SENHOR”
(Sl 27,11). Não permita que meus pecados me separem do verdadeiro
caminho, através do qual eu possa conhecer Teu caminho e a unidade do
Teu Nome. Cf. Salmo 51,12: e um espírito novo, pronto a obedecer”. Em
outras palavras, deixe que meu espírito realize a Tua vontade e não deixe
meus pecados me levarem à recusa ao arrependimento. Mas deixe que a
iniciativa permaneça sempre comigo, para me tornar capaz de voltar atrás e
entender e conhecer ocaminho da verdade...
Não foi a isso a que Davi se referiu quando disse: “Bom e justo é o SENHOR;
por isso mostra o caminho aos pecadores. Conduz os humildes na justiça e
lhes ensina o seu caminho” (Sl 25, 8-9). Deus mesmo enviou profetas para
divulgar os caminhos do SENHOR e chamar o povo ao arrependimento.
Além disso, ele deu a eles o entendimento de quanto mais um homem é
atraído para os caminhos da sabedoria e da justiça, ele os desejará mais e
mais cultivá-los e permanecer neles. Para isto os nossos Sábios referem-se
nos seus escritos: “aquele que procura purificar-se a si mesmo, é ajudado
pelo Alto” implicando que ele vai encontrar o seu caminho aplainado.
(LEIBOWITZ, 1996, p.156-157)
Rambam ressalta nessas linhas o recíproco das relações entre o ser humano e o próprio
Deus. Deus não forçou o faraó a escolher um mau caminho. Foi uma opção do faraó e, uma
vez que ele persistiu no caminho das suas ações, isso se tornou para ele mais difícil de resistir.
Deus construiu essa resposta, por assim dizer, dentro da própria construção que o homem
fez. Quanto mais um homem peca, mais os seus pecados se tornam uma barreira entre ele e
o arrependimento.
Olhemos para um ditado rabínico citado pelo próprio Rambam:
Disse Resh Lakish:14 Qual é a força do texto (Pr 3,34): “Dos zombadoresele vai
zombar, mas aos humildes ele vai mostrar o seu favor”. Se ele tentar se
contaminar vai ser lhe dado uma abertura; se ele tentar se purificar a si
mesmo ele é ajudado pelo alto. (Shabat 104a)
14
Shimon ben Lakish foi um mestre Amoraíta mais famosos da segunda geração, que viveu no século III d.C. Foi
um dos gigantes do estudo da Torah.
29
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
RASHI
HIRSCH16
Muitos séculos antes, o próprio Sábio do Talmud Resh Lakish responde à questão do
Rabbi Yohanan e parece ter uma explicação semelhante à proposta dada pelo Rabbi Hirsch:
Se Deus movia todas as fichas e faraó não tivesse livre-arbítrio, o soberano
egípcio não poderia ser responsabilizado pelas suas escolhas. Isso
significaria então que nenhum de nós é verdadeiramente livre e os atos que
nós acreditamos ser inspirados pelo amor ou pelo ódio, a generosidade ou
o egoísmo, a justiça ou a indiferença não são nada mais que ilusão. Seria
15
Rashi, acrônimo de Rabbi Chlomo Yitschaki (Salomon Ben Isaac) (1040-1105). Foi eminentecomentador judeu da
Biblia e do Talmud. Sua principal contribuição se dá no campo da exegese metodologicamente baseada nos
procedimentos gêmeos do pechat e do derach; o primeiro se define como o sentido óbvio, o segundo procura
encontrar um sentido mais profundo do texto para ilustrar, revelar uma lei ou uma postura ética. Todos os seus
comentários são ricos em derach eo folclore midráshico fornecendo sempre uma nova dimensão à interpretação
do texto. Sua influência não se restringiu somente ao judaísmo. Nicolas de Lyre, frade franciscano (1270-1340)
lia Rachi no texto original – hebraico – e no seu próprio comentário bíblico, cita frequentemente Rachi.Cf.
Bouquins, Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme./ (verbete Rachi)
16
Rabbi Samson Raphael Hirsch (1808-1888) foi um rabbi alemão conhecido como o intelectual fundador da
Escola Torah im Derech Eretz, contribuindo para o desenvolvimento do Judaísmo Ortodoxo.
30
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
isso que a Torah nos ensina quando fala que Deus “endureceu o coração do
faraó?”, pergunta Rabbi Yohanan ao seu cunhado Rabbi Simeon ben Lakish,
companheiro de estudo e amigo próximo.
“Deus – explicou Resh Lakish – ofereceu ao faraó muitíssimas ocasiões para
mudar seu ponto de vista e permitir aos filhos de Israel para deixar o Egito.
As pragas foram enviadas com a finalidade de advertências na esperança
que o faraó, tomado pelo arrependimento, libertasse os escravos: Tendo
Deus avisado por cinco vezes e ele ignorado e continuado a obstinar-se em
seu coração, então Deus lhe disse: Eu vou acrescentar mais dificuldades
àquelas que você criou porsi mesmo”. (FIELDS, 2015,p. 38)
Aqui está, dessa maneira, o que a Torah nos ensina sobre o que ela menciona o coração
fortalecido, o coração obstinado, ou o coração endurecido do faraó. Foi a própria teimosia do
faraó que agiu sobre seu próprio coração não prestando atenção ao que devia pensar e mudar.
Assim, é o ser humano por si mesmo quem escolhe, quem abre ou se obstina em seu coração.
O Senhor Deus o ajuda em seu caminho, mas a ajuda positiva proporcionada ao homem bom
não é comparável com a passiva assistência dada de modo a remover os obstáculos
levantados por si mesmo, tendo ele escolhido o mau caminho.
31
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
Além disso, outro ponto merece ainda ser examinado. Um midrash comentava que
“faraó gostava de contar vantagem dizendo que ele mesmo era um deus” (Êxodo Rabba 8,2).
Ele tinha poder de dispor sobre a vida de quem quer que fosse no seu tempo e comandava
inumeráveis exércitos capazes de fulminar quem quer que tentasse se revoltar contra sua
soberania. Ele exercia, através de seus comandantes, poder de vida e de morte sobre
milhares de escravos obrigados a lhe construir as cidades de Pithom e Ramsés. O coração do
faraó acreditava ser indestrutível, de modo que ninguém poderia lhe vencer ou arruinar os
seus planos (Shemot Rabba 8,2).
Já que ele acreditava que era um deus, dez pragas se abateram sobre ele. E o que o
faraó dizia? “O Nilo é meu! Eu o fiz para mim!” (Ez 29,3). Por causa dessas palavras e do seu
modo de pensar sobre si mesmo, Deus lhe oprimiu com as pragas. Nesse sentido, podemos
dizer que o objetivo das pragas acabou também por ser um meio pedagógico: “levar ao
conhecimento de Deus àqueles que se recusavam em reconhecer o Seu poder” (LEIBOWITZ,
1996, p.170-177).
Todas as pragas relatadas pela Torah descrevem essas tentativas repetidas para
quebrar o coração arrogante do faraó e para que ele aprendesse a conhecer ao Senhor Deus.
Seria como perceber, diante de um grande panorama ao olhar para todos os relatos das pragas
do Êxodo, que se trata de um confronto entre a vontade de Deus reconhecido exclusivamente
pelos filhos de Israel e a vontade de um tirano opressor. Assim, as pragas, a derrota
humilhante e o fim vergonhoso daquele que pensava ser o Rei Deus constituíram como uma
saga destinada a inspirar o desprezo para com o paganismo egípcio (SARNA, 1986, p. 80).
O faraó foi vencido, todo o seu exército e sua arrogância não foram suficientes para
impedir a sede de liberdade que Deus tinha colocado no coração dos filhos de Israel. Quanto
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
mais o faraó e todo o seu sistema opressor se brutalizava, mais crescia a sua determinação de
serem livres, conforme o desejo soberano e perene de Deus para eles e para todos os povos
da terra.
A cada vez que o faraó tinha uma chance de deixá-los partir para não mais sofrer o
golpe das pragas, ele acreditava a si mesmo ter feito acordo com escravos inferiores a ele,
repulsivos e indignos e seu coração se obstinava. O orgulho de querer ser mais do que os
outros, de conceder ajuda a quem não é importante como ele mesmo era, seu orgulho e
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
histórias imaginárias, a Torah descreve eventos reais envolvendo seres humanos reais. A
redenção é um processo que envolve tanto o tempo quanto uma gradualidade” (GOLDIN,
2008, p. 64).
Existe sim uma relação profunda entre a Tradição Judaica e sua Oralidade que
demonstrou ser capaz de suportar e prolongar a Escritura Sagrada dando-lhe gosto e vida: o
que chamamos de Torah Haim! A Torah Viva!
Vale considerar que a solidão e a amargura pelas quais muitas pessoas ainda passam e
gemem hoje:
A dura escravidão que existia no Egito (e ainda hoje), é sempre significado da
ausência de palavra e de som, em total silêncio. A Redenção começa quando
começa a existir o som, mas a palavra ainda é ausente. Finalmente, quando
ocorre a constatação de ambos, som e palavra, a redenção alcança sua total
realização (LUSTIGER, 2014, p. 53)
Moisés, sem dúvida, realizou essa mudança obedecendo a um projeto divino. Colocou
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
seu coração na Palavra de Deus e no projeto de formar um povo, de estimular um modo novo
de convivência, a partir de uma Palavra Sua que será revelada e entregue para orientar os
passos desse povo e de toda humanidade. Mas o faraó não colocou seu coração nisso:
Faraó não somente pecou contra o povo judeu, mas também contra o seu
próprio povo, os egípcios, e contra o mundo inteiro. Sua obstinação levou à
morte em última análise também o primogênito egípcio. (LUSTIGER, op. cit.
p. 39)
Contudo, surge a impressão de que o faraó, com a sua insistência num raciocínio duro e
pesado em relação à proposta dos israelitas saírem do Egito, entre numa dinâmica que
acentua cada vez mais catástrofes para si mesmo e para o seu povo. Por sua vez, todas as
ações tirânicas estimulam a ascensão de outra possibilidade de se realizar o projeto do êxodo.
Na impossibilidade do faraó aceitar esse projeto, por raciocinar e descobrir a
necessidade dos oprimidos recuperarem a sua liberdade, não pondo o seu coração no que
deveria pô-lo, sobra o caminho de conseguir o almejado através de acontecimentos
catastróficos, sendo que estes podem derrubar todos aqueles que obstinam o seu coração.
Ou, em outras palavras, caso o convite à conversão for rejeitado, Deus pode permitir que o
opressor, através de sua falta de compreensão, se autodestrua. Enfim, justamente dessa
forma, o Senhor Deus de Israel respeita mais uma vez o livro arbítrio da pessoa.
Aliás, esse processo pode ser experimentado ainda hoje:
Todos os homens perversos agem como o faraó. Quando Deus lhes envia
um castigo, prometem melhorar. Mas quando termina o sofrimento,
esquecem por completo da decisão de serem bons e se arrependerem. Esta
é a lição do faraó: como não devemos agir! (GROSS, 2014, p. 277)
A história do êxodo apresenta o Senhor Deus de Israel como não disposto a negociar a
liberdade dos oprimidos, no caso, dos filhos de Israel. Ao opressor não é permitido insistir, de
forma definitiva, na opressão dos que subjugou ao seu poder. Pelo contrário, o faraó há de
pôr seu coração na liberdade de quem é oprimido por ele. Caso contrário, ao insistir na
obstinação do seu coração, o Senhor Deus dos oprimidos pode até contribuir com tal
endurecimento, sendo que assim se aproxima a catástrofe e a autodestruição de quem se
obstina.
O livre-arbítrio e a capacidade de arrependimento são presentes de Deus na nossa vida;
mas esses podem ser tomados como propriedade perene e eterna para nós? Estar atentos à
voz da Palavra e de Deus pode ser um convite efetivo à prática da justiça para que esses
valiosos presentes não sejam levados embora um dia?
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
Segundo o autor Rabbi Yosef Stern: “não há praga ‘maior’ do que a negação do livre-
arbítrio” (STERN, 1996, p. 49). Faraó tinha sido insistentemente chamado, praga após praga,
a reconhecer os sinais e a grandeza de Deus e anunciar isso a toda a humanidade. Mas o que
faraó anunciou à humanidade e à muitíssimas gerações após ele foi a total falência do seu
modo tirano e opressor de governar que conduziu a si mesmo e ao redor a uma destruição
total, justamente por essa incapacidade de colocar seu coração naquilo que devia colocar, e
agir em consequência dessa percepção real do mundo e da grandeza do Senhor Deus. Deus
poderia simplesmente ter esmagado todos os inimigos, mas por que não o fez? Por que
poupou o faraó em todas as pragas? Mais uma vez fica comprovado que Deus queria que ele
conhecesse os Seus caminhos, estava mais interessado no seu arrependimento, não na sua
morte. Mas nem ele, nem seus servos colocaram no coração à disposição da palavra do
Senhor.
Lembremos do que está dito em “meterei o pânico no coração daqueles que de vós
restarem na terra dos inimigos” (Nm 26,36). O que ocorreu com o faraó foi justamente esse
“fortalecimento das artérias espirituais caracterizado pela falta de medo e a subsequente
inabilidade de arrepender-se” (STERN, op. cit. p.101).
Se perdermos a capacidade de ouvir essa voz de Deus também nós hoje corremos o risco
de sofrer essas pragas físicas e doenças espirituais, como está escrito: “Se descuidares de pôr
em prática todas as palavras desta Lei, escritas neste livro, temendo este Nome glorioso e
terrível, o Nome do SENHOR teu Deus, o SENHOR tornará terríveis as pragas contra ti e tua
descendência: serão flagelos enormes e permanentes, enfermidades graves e persistentes. Ele
te lançará todas as doenças do Egito, que tanto temias, e elas te contagiarão” (Dt 28,58-60).
De acordo com essas interpretações, a Torah não desconsidera que nem os filhos de
Israel estão imunes de sofrerem as doenças físicas do Egito. A tradição de Israel afirma, porém,
que a pior doença, a inabilidade do arrependimento, nunca será suportada pelos que colocam
no coração a palavra do SENHOR. Não esqueçamos o término do versículo: “pois Eu Sou o
SENHOR que te cura” (Ex 15,26).
Mais uma vez usando o recurso exegético das Escrituras, se Deus se autodefine como
Aquele que cura, mesmo quando as doenças físicas do Egito recaiam sobre nós, a capacidade
de arrependimento não será afetada, pois Deus pode nos curar através do arrependimento,
como está escrito: “O SENHOR teu Deus circuncidará teu coração e o coração de teus
descendentes, para amares ao SENHOR teu Deus de todo o coração e com toda a alma para
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
Considerações Finais
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION
REFERÊNCIAS
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Shemot. Jerusalem: Gefen publishing, 2008.
GRENZER, Matthias. O projeto do êxodo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
GROSS, Fernando. O Ciclo de Leituras da Torah na Sinagoga. 2ª ed.São Paulo: Fons
Sapientiae/CCDEJ, 2014.
LEIBOWITZ, Nehama. New Studies in Shemot Exodus. Jerusalem: The Jewish Agency, 1996.
LENHARDT, Pierre. À escuta de Israel, na Igreja: “porque de Sion sai a Torá e de Jerusalém a
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Soloveitchik – Sefer Shemos. New York: Oupress, 2014.
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SARNA, Nahoum M. Exploring Exodus: The Heritage of Biblical Israel. New York: Shocken
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STERN, Yosef. Chasam Sofer. Commentary on the Torah. Shemot. Art Scroll Judaica Classics,
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WIGODER, Geoffrey . Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme. Paris: Cerf /Robert Laffont,
1996.
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento.São Paulo: Loyola, 1983.
38
OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION
RESUMO
O presente artigo procura trazer ao leitor uma possibilidade de análise e reflexão sobre as diversas
imagens criadas pela humanidade, ao longo da história, para descrever deus ou deuses, que
acreditam estar a seu redor. Objetivamos tratar de inúmeras variações de imagens que foram
relatadas em passagens bíblicas e filosóficas, o que nos propicia avaliar a influência direta do tempo,
lugar, cultura e meio social na interpretação dos diversos contornos das imagens de deus. O conceito
sobre divindade se dá no ambiente cultural de cada povo, sendo que, em especial, tratamos das
ideias de deus, inseridas no contexto judaico-cristão. O artigo nos leva a diferenciar uma imagem de
deus, que se revela como defensor da vida, e dos deuses da humanidade, divindades idealizadas de
forma antropomórfica, capazes de repentinas mudanças de personalidade, pois expressam os mais
profundos medos e desejos humanos.
ABSTRACT
This article seeks to bring to the listener-reader, the possibility of an analysis and reflection, of the
various images created by humanity, throughout history, to describe god or gods that they believe
are around them. Here we deal with numerous variations of these images, which were reported in
biblical and philosophical passages, which gives us evaluate the direct influence of elements such as
time, place, culture and social environment in the interpretationof the various contours of the images
of god. The concept of divinities occurs within the cultural context of each and every people, and in
particular, we are dealing here with the ideas of god, inserted in the Judeo-Christian context. The
article leads us to differentiate between, an image of god, who reveals himself as a defender of life,
and gods of humanity, deities idealized in an anthropomorphic way, capable of sudden personality
changes, which express the deepest human fears and desires.
Considerações Iniciais
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Ainda, segundo Eliade (2010), no Egito, séc.14 a.C. apareceu o faraó Akenaton, que
acabou com a proliferação de deuses em sua terra, adotando como único deus para seu povo,
o deus “Aton”.
Os homens da antiguidade, quando encontravam um novo deus para guiá-los, logo
descobriam sua personalidade que, por coincidência, se parecia muito com a personalidade
dos próprios profetas, que faziam a ponte no relacionamento entre o povo e os deuses. Como
forma de exemplo, citamos aqui, “Aton”, o deus do faraó Akenaton, que era pacífico, amante
das artes e dos animais.
Antes dele, o panteão egípcio era formado por milhares de entidades, com qualidades
e defeitos humanos. Havia deuses protetores dos doentes, da agricultura, do casamento etc.
Muito embora os tempos sejam outros, ainda hoje, é comum vermos pessoas atribuindo a
Deus, suas próprias características humanas, tais como ira, cólera, rancor etc. Muitas
pregações falam de um Deus que condena, mata e destrói. Não são poucas as associações
feitas atribuindo a Deus, problemas relacionados a uma falta de políticas públicas e sociais ou
mesmo associando as chuvas, que alagam e destroem, a um castigo de Deus. Ainda nos dias
atuais, muitos, ensinam aos filhos, desde pequenos, que Deus castiga as malcriações e faltas.
O conceito sobre Deus é um aprendizado permanente da humanidade, ao longo dos
séculos, que se dá no contexto cultural de cada povo e no contato entre as diversas culturas.
Este conhecimento chega até nós de várias formas e uma delas é através dos escritos que
perpassaram muitos séculos, trazendo registrados em suas páginas tais experiências. Este é o
caso dos escritos bíblicos.
Por meio dos múltiplos livros da Bíblia, escritos por diferentes pessoas e em épocas
diversas, percebemos que o povo bíblico, ao interagir com os povos ao seu redor, foi
agregando e enriquecendo suas experiências do Deus revelado, à luz das características dos
deuses vizinhos, levando-os a uma diversificada compreensão da revelação (ROMER, 2016).
Isto se deu no desenrolar dos conflitos, das crises, das vitórias e alegrias do cotidiano. Indo
além, extrapolando o alcance de nossa pesquisa, podemos afirmar que essa diversificada
compreensão da revelação, continua a acontecer na vida de cada indivíduo ou grupo, nos dias
atuais, que fazem a própria experiência de Deus, levando em conta o contexto em que estão
inseridos.
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Tomando novamente, como base a Bíblia, que mostra a íntima relação de Deus com um
povo – neste caso, o povo de Israel – ao ser analisado através de um olhar ocidental, distante
dos acontecimentos, tanto no tempo como na linguagem, cultura e na literatura, ficamos
intrigados ao vermos que o mesmo Deus salvador e misericordioso para com Israel é colérico
e destruidor para com seus opositores, revelando-se algoz de sua própria criação – visto que
tudo foi criado por Ele. Por outro lado, fazendo uso do olhar semita – daqueles que
escreveram –, que não olham os relatos bíblicos como história de fato, mas história de fé, é
perfeitamente possível uma compreensão, pois descrevem sua crença no Deus, que se revela
como libertador, portanto suas ações tendem a ser grandiosas.
Diferentemente da visão semita, nós hoje olhamos os relatos bíblicos e perguntamos:
como compreender um Deus que destrói, aniquila, matando adultos e crianças, expulsando
moradores de sua Terra para dá-la a outros? (Dt 7,6; 14,2). Numa leitura atenta dos relatos,
percebemos que estamos diante de textos complexos e fruto de um longo processo redacional
e com diferentes imagens de Deus. Isso se explica, porque os livros, em sua maioria, foram
compostos de camadas sobrepostas. Tal como uma colcha de retalhos, eles foram sendo
emendados e costurados até chegar ao texto final que temos hoje.
É resultado da memória do povo. Nasceu de uma oralidade, do contar histórias da vida
do povo, que cria uma literatura que relata sua história, suas reflexões, sua sabedoria, sua
oração. E tudo isso, por vezes, em narrativas. Somente assim, podemos compreender as
diferenças e contradições presentes nos relatos bíblicos. Como por exemplo: Ele (Javé) faz
justiça ao órfão e a viúva e ama o migrante (estrangeiro), dando-lhe pão e roupa. Portanto,
amem o estrangeiro, porque vocês foram migrantes na terra do Egito (Dt 10,18-19).
Comparemos agora, tal afirmação, a um outro texto presente no mesmo Livro: Javé, o
nosso Deus, o entregou diante de nós, e nós o derrotamos, como também a seus filhos e a todo
o seu povo. Nessa ocasião, capturamos todas as suas cidades e consagramos cada uma delas
ao extermínio. De homens, mulheres e crianças, não deixamos nenhum sobrevivente
(estrangeiro). (Dt 2,33-34).
É necessário entender que, somente depois de muitos anos, esse livro saiu da oralidade
e se tornou livro escrito, Escritura Sagrada. Somente assim, podemos compreender as
diferenças e contradições presentes nesse e em outros relatos bíblicos. Ao longo desse
processo redacional, o povo foi fazendo diferentes experiências da revelação de Deus. Isso
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1
Só Coélet (Eclesiastes), dois séculos mais tarde, irá no mesmo sentido, aconselhando seus leitores:
“Em tempo de felicidade, sê feliz, e no dia da desgraça reflete: Deus faz tanto um como o outro, para
que o homem não possa saber o que virá depois dele” (7,14).
2
Epicuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e
numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma,
onde Lucrécio foi seu maior divulgador.
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No século XIX, o filósofo Leibniz3 refletiu novamente sobre essa problemática e até criou
uma nova área do pensar filosófico e teológico: a Teodiceia. Ele chegou à conclusão de que o
mal não é uma realidade, não tem consistência em si próprio, é apenas um vácuo, um vazio,
uma carência: a carência do bem, do amor de Deus (BINGEMER, 2010).
Ainda, nesse mesmo século XIX, Marx4 concluiu que a religião, considerando o judaísmo,
o cristianismo e o islamismo, “amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque
lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os
despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste
mundo” (CHAUI, 1997, p. 309). Desta forma, Marx tinha a visão de que a figura divina
acendesse dentro de cada indivíduo a expectativa de uma vida posterior, muito mais
gratificante do que esta, criando certo tipo de acomodação. As questões levantadas pela
Filosofia não elucidam ou explicam a problemática, mas revelam o perturbador desejo
humano de encontrar respostas.
Algo possível de ser constatado no campo das experiências humanas é que, um
indivíduo inflexível e inseguro, por exemplo, dificilmente terá uma percepção que não seja de
um Deus guardião, normativo, caprichoso e intolerante; já alguém que avançou no processo
de autoconhecimento e está prestes a superar as dualidades – bastante presente na visão
maniqueísta5 da vida – tende a perceber Deus como a expressão do absoluto, intangível,
permanentemente compassivo no sentido da aceitação do que é.
Em meio a tantos conceitos relacionados a um único Ser, aferimos como uma única e só
figura é capaz de se revelar em forma tão plural, influenciando pessoas e grupos, como foi o
caso do povo de Israel e, também para as mais variadas mentes de filósofos de determinadas
épocas. Essa visão eclética de diversos pensadores explicita que o período em que vivem e o
contexto em que estão inseridos interferem e influenciam a formação das múltiplas faces de
Deus por eles combinadas.
3
Gottfried Wilhelm von Leibniz foi um filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão.
4
Karl Heinrich Marx foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista
moderna, que atuou como economista, filósofo, históriador, teórico político e jornalista. O pensamento
de Marx influencia várias áreas tais como: Filosofia, História, Direito, Sociologia, Literatura, Pedagogia,
Ciência Política, Antropologia, Biologia, Psicologia, Economia, Teologia, Comunicação, Administração,
Design, Arquitetura, Geografia e outras.
5
O Maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou
Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a
popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois
princípios opostos do Bem e do Mal.
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Unicidade de Deus
Uma certeza que muitos trazem imbuída no mais profundo de seus âmagos – mesmo
não sendo uma premissa verdadeira – é que, o Deus do Antigo e do Novo testamentos não é
o mesmo. Este pensamento – ainda comum entre muitos, nos dias atuais, se dá, levando-se
em conta tamanha diferença nas narrativas, que apresentam as ações divinas em cada uma
das duas porções. Os escritos bíblicos podem ser comparados a fotografias de Deus, feitas em
momentos culturais muito diferentes por pessoas e povos, vivendo experiências diversas.
Podemos explorar uma explicação, dizendo que o povo bíblico, numa situação de guerra
contra inimigos poderosos, fotografou um Deus guerreiro para animar as pessoas nos
combates.
Em momento de lutas internas religiosas, os hagiógrafos desenharam um Deus exigente
no cumprimento de leis para evitar a desordem social (LIBÂNIO, 2009, p. 1-3). Olhando para a
primeira porção da Bíblia, vemos o profeta Oséias, afirmar que Deus carrega ternamente em
seus braços a Efraim como a uma criancinha de colo (Os 11,3). Apresentando-nos já, no Antigo
Testamento, traços do Deus, serão relidos e aprofundados no Novo Testamento.
Partindo do fato de que a revelação se dá na história que é progressiva, chegando em
seu ponto mais elevado – para os cristãos – no Novo Testamento, devemos interpretar os
diferentes contornos das imagens de Deus, de acordo com aquelas vividas e pregadas por
Jesus.
Em última análise, podemos dizer que a figura de Deus encontrará sua expressão mais
perfeita na revelação de Jesus. Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único de Deus, que está
junto ao Pai, foi quem no-lo deu a conhecer (Jo 1,18). Por isso, é muito perigoso tomar citações
isoladas da Escritura e arremessá-las sobre as pessoas como se esta fosse a ideia definitiva e
eterna de Deus, e não reflexo de uma experiência histórica de um povo.
O encontro com os diversos contornos das imagens de Deus no Antigo Testamento
pode-nos ser benéfico, precisamente pela maneira como nos é apresentado nos textos
bíblicos, onde o Povo de Israel vive e experimenta, dentro de um processo lento, porém
continuo, a certeza de não estarem sós e que tal como outros povos, eles tinham o seu Deus.
Os textos bíblicos, relatam que os patriarcas foram adoradores de muitos deuses. As
tradições, porém, que circularam mais tarde no meio das tribos, já viam neles homens que
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experimentaram um Deus de maneira mais expressiva. Abraão se tornou, por isso, símbolo de
homem de fé em Deus. A vocação de Abraão tornou-se programática para todas as vocações,
ao seguir o apelo do Deus, que se revela (Gn 12, 1-3.7). A esse Deus, que vai fazendo alianças
com seus descendentes, Abraão ergueu um altar.
Moisés, a partir da experiência da escravidão e libertação do Egito, vinculou a fé ao Deus
que se revela, ao lado do qual não admitiu outros deuses. Para traduzir essa ligação profunda
com um único Deus, o povo o experimentou como “ciumento” e qualquer infidelidade era
vista como adultério. Profetas como Amós e Oséias, exploraram muito bem e com
originalidade a imagem matrimonial, como forma de descrever a vivência do povo em relação
a seu Deus.
Não era o Deus, que se revela, que era ciumento, mas o povo que o experimentava como
seu Deus próprio, único e guia pela longa caminhada para Canaã. Identificaram-no com o deus
supremo dos cananeus, “El”. Lá encontraram também outros deuses e depois se defrontaram
com os deuses fenícios, assírios, babilônios. Todos esses deuses foram rejeitados – como
deuses da humanidade – graças à fidelidade ao Deus que se revela. A confissão de fé do povo
bíblico a seu Deus, como Deus que se revela, encontrou expressão dramática no fato narrado
no livro dos Reis, onde o profeta Elias, questionou o povo pela sua ambiguidade na vivência
de sua fé dizendo: Se o Senhor é o verdadeiro Deus, segui-o, mas se é Baal, segui a ele! Depois
armou o altar cheio de vítimas e desafiou os profetas de Baal a que invocassem seus deuses,
ele, por sua vez, invocaria ao Senhor (1Rs18,21).
As orações dos profetas de Baal não foram ouvidas, enquanto a oração de Elias fez baixar
o fogo do céu e devorou as vítimas do sacrifício. Diante dessa maravilha, o povo exclamou: O
Senhor é Deus, o Senhor é que é Deus! (1Rs 18,39). A cena da degola de todos os profetas por
parte de Elias, a qual se segue a esse ato de confissão, revela o caráter comovente do processo
de fé do povo. Desta sorte, por meio de longo caminho, a partir de sua experiência histórica,
Israel professou o monoteísmo, primeiramente de maneira prática, para depois formulá-lo
doutrinariamente. Nos tardios livros do Dêutero-Isaías, o povo confessa que o mesmo Senhor,
que o salvou e livrou da escravidão do Egito, o Deus da Aliança, é também o Deus criador de
todas as coisas. Um Deus eterno é o Senhor, o criador dos confins da terra (Is 40, 28). Termina-
se, assim, esse longo processo numa confissão ampla de fé, em que o povo, compreende a
Deus como Deus da vida.
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Deus da Vida
Ao lado da unicidade, a extrema relação com a vida define, em profundidade, os
contornos de Deus no Antigo Testamento: essa é sua principal característica. Nas primeiras
páginas do Gênesis, o Deus que se revela, aparece como Senhor da vida. Pela palavra, cria
todas as coisas (Gn 1,1-31) e mais diretamente em relação ao ser humano, insufla-lhe o sopro
da vida (Gn 2, 7).
Na ordem da experiência, os hebreus reconhecem o Deus, que se revela, como Deus da
vida, por obra e graça da libertação da escravidão e da morte no Egito. Aí, há duas cenas
paradigmáticas da experiência de vida: o Senhor livra todos os primogênitos hebreus da
espada do Anjo exterminador – Ele é um Deus de vida para os hebreus – em oposição à
realidade de morte dos egípcios. A outra cena é a epopeia do êxodo. Ela é uma contínua luta
contra a morte por causa do ataque dos egípcios da fome, da sede, das serpentes e de todas
as agruras de uma longa travessia pelo deserto. Nos momentos críticos, o Deus, que se revela,
aparece como o Deus que lhes defende e conserva a vida. Para Israel, a vida traduziu-se na
experiência da libertação e da conquista da terra. Foi o Deus que se revela, que libertou o
povo e que lhe deu a terra em que corre leite e mel (LIBÂNIO, 2009, p. 3-5).
O povo de Israel sedentarizou-se. No início, as estruturas da sociedade organizaram-se
ainda de uma maneira mais justa, pois a diferença entre ricos e pobres não era tão grande. As
autoridades eram do próprio povo, permaneciam próximas e o inimigo estava fora. Assim, o
Deus que se revela se manifestou como o Deus da vida, despertando homens dotados para
defenderem o povo, que se tornaram os juízes. Com o passar do tempo, mesmo na época dos
juízes e mais fortemente depois na monarquia, a injustiça social começou a crescer. A brecha
entre pobres e ricos aumentou. Israelitas passaram a oprimir e escravizar israelitas. Com a
decadência da monarquia, a prática da injustiça foi crescendo. O Deus que se revela, mais uma
vez, apareceu como o defensor da vida, agindo em prol do pobre, da viúva, do órfão. Os
profetas se fizeram porta-vozes da luta pela vida dos desprotegidos.
Assim, por exemplo, no reinado de Jeroboão II, imperava a injustiça. Os ricos levavam
uma vida de luxo e riqueza. Para tanto, carregava-se o povo com impostos, oprimiam-se os
pastores e lavradores. Surgiu então o profeta Amós. Com expressões fortes, ele descreveu a
situação de injustiça (Am 2,6-7). Sobre essa situação de injustiça pesou o juízo de Deus. As
ameaças foram terríveis. A visão do profeta foi espantosa: Vi o Senhor que estava de pé sobre
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o altar e ele disse: “Bate no capitel para que tremam os umbrais! E seguiu-se uma série de
malefícios: cortar a cabeça de todos sem exceção, não retirar nenhum do xeol, prender os que
se esconderam em qualquer altura ou profundidade que seja, passando-os em seguida ao fio
da espada (Am 9,1-4). Mas, no final, abriu-se uma réstia de esperança e de vida: O Senhor
prometeu levantar a tenda de Davi que está caindo, reparar-lhe as brechas, levantar-lhe as
ruínas e reconstruí-la como nos dias antigos (Am 9, 11). Assim é o oráculo, a Palavra de vida
do Senhor.
O Deus que se revela, é Deus de vida para o povo conduzido ao exílio da Babilônia.
Quando tudo era treva, tudo era sofrimento, tudo era morte, a Palavra do Senhor soava como
luz e futuro. É desta forma que surgiram os cânticos utópicos e esperançosos mais lindos da
Escritura. Podemos até mesmo nomeá-los de livros da consolação. Iniciou-se com a belíssima
exclamação: Confortai, confortai meu povo! Terminou o tempo da provação, foi saldado o
débito da culpa. E então uma voz clama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, nivelai
na estepe uma estrada para nosso Deus! Todo vale seja entulhado e todo monte e colina sejam
abaixados. O monte se torne planície e as escarpas se transformem em amplo vale! Então a
glória do Senhor se manifestará, e todos os homens juntos a verão (Is 40,1-5). É o mesmo texto
que o Novo Testamento aplica a João Batista, precursor do Senhor.
Num outro texto, numa imagem vigorosa, o profeta Ezequiel descreveu a libertação do
povo do exílio da Babilônia como uma dantesca cena de ressurreição das ossadas. Assim diz o
Senhor Deus às ossadas: Vou infundir-vos, eu mesmo, um espírito para que revivais. Dar-vos-
ei nervos, farei crescer carne e estenderei por cima a pele. Incutirei um espírito para que
revivais. Então sabereis que eu sou o Senhor. (Ez 37,1-14). As ossadas são todas as casas de
Israel. Então se assistiu à cena do levantar-se dos ossos como um exército numeroso.
E finalmente, O Senhor é Deus da vida eterna, retirando os mortos do xeol,
ressuscitando-os. Este é o ponto alto da revelação veterotestamentária. A fé na ressurreição
dos mortos deriva diretamente da compreensão de que o Deus que se revela, é um Deus dos
vivos e não dos mortos. Deus triunfa sobre o último inimigo, a morte. O profeta Daniel anuncia
um tempo de angústia, escatológico, final, dizendo: Então muitos dos que dormem na terra
poeirenta, despertarão; uns para a vida eterna, outros para vergonha, para abominação
eterna. Então os sábios brilharão como o firmamento resplandecente, e os que tiverem
conduzido a muitos para a justiça brilharão como estrelas para sempre (Dn 12, 2-3).
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O conceito de Deus como Pai de Jesus, de seus seguidores e de todo o mundo criado
está profundamente implantado nos Evangelhos. Ao considerar a Deidade como um Pai
atento, Jesus tenciona passar a seus discípulos a atitude apropriada para com Deus, e já que
a noção de Pai e de filho são correlatas, ele propõe um modelo para o comportamento dos
“Irmãos e irmãs”. Comparada a frequência do tema do Reino divino, a imagem do Pai é
relativamente rara no gênero literário das parábolas, aparecendo apenas nas parábolas dos
Dois filhos e na do Filho pródigo. Na primeira parábola, comparado ao papel desempenhado
pelos filhos, o pai é o personagem menos importante, limitando-se a dar ordens. O principal
traço paterno é o perdão não formulado ao filho rebelde, quando este se arrepende (Mt
21,28-32). Na segunda parábola, a do Filho Pródigo, o pai reconhece intuitivamente o
arrependimento do filho antes que seja expresso e corre ao seu encontro, abraça-o e
proclama publicamente seu regozijo por aquele que estava perdido e morto, mas que agora
foi encontrado e está vivo (Lc 15,11-32).
O imaginário restrito do conceito de Deus, que sublinha essas parábolas, reflete amor e
paciência para com um filho verdadeiramente arrependido e corresponde ao profundo anseio
espiritual dos publicanos e dos pecadores, destinatários preferidos para a mensagem de Jesus.
Alinhado ao ensinamento das parábolas, um dos traços salientes da pregação de Jesus é o
pronto perdão a seus filhos transviados: E quando estiveres rezando, perdoa o que tiveres
contra alguém, para que teu pai que está no céu possa perdoar tuas faltas (Mc 11,25). Um
outro texto, mais longo, apresenta a mesma máxima, desta vez, incluindo uma formulação
negativa: Se perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai Celeste também perdoará as tuas;
mas se não perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai Celeste também não perdoará as
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tuas6 (Mt 11,14). Nessas passagens citadas, notamos que o mais importante contorno da face
de Deus, apresentada por Jesus, é de um Deus Pai, que age perdoando seus filhos; entretanto,
vincula o ato de perdoar, à capacidade humana de também oferecer o perdão.
Na maioria dos exemplos, esta benevolente paternidade divina vincula-se ao ambiente
judaico de Jesus e faz ecoar a perspectiva religiosa particular de sua época; assim, a
preocupação por elementos essenciais, tais como, alimento, bebida e roupas é vista como a
marca distintiva dos gentios (Mt 6,32). O ensinamento de Jesus a respeito de Deus, o Pai,
reflete as ideias religiosas do judaísmo bíblico e, particularmente, às ideias de sua própria
época. A mais antiga atestação de que Israel já há muito tempo fazia alusão a Deus como Pai
e que ele se dirigia a Israel como filhos, encontra-se na célebre passagem de Ex 4,22 onde,
segundo a tradição “Javista”, Moisés se dirige ao faraó dizendo: Assim disse o Senhor, “Israel
é meu filho, meu primogênito”. Enquanto as nuances exatas do termo “Pai” permanecem
vagas, não pode haver dúvida de que mesmo em nível individual o relacionamento entre Deus
e os israelitas era visto de uma perspectiva de família. (VERMES,1995, p. 158-159).
Existem várias outras passagens bíblicas, que também revelam a aproximação de Jesus
ao Deus que se revela como Pai, indicando que ele, já, no Antigo Testamento, podia ser
reconhecido com tais características.
No Deuteronômio, Moisés ora diz aos judeus, Vós sois os filhos do Senhor vosso Deus
(14,1), ora transmite a mesma mensagem por meio de uma comparação: Sabei, pois, em vosso
coração, que assim como o homem disciplina seu filho o Senhor vosso Deus vos impõe sua
disciplina (8,5). O mesmo tipo de imagem é usado no Salmo 103,13, em relação aos devotos:
Assim como o pai tem devoção de seus filhos, do mesmo modo o Senhor tem devoção daqueles
que o temem. Na literatura profética, Deus é representado proclamando o vínculo Pai-filho
entre ele mesmo e Israel: Gerei e criei filhos, mas eles se revoltaram contra mim (Is 1,2).E onde
lhes foi dito: “Não sois meu povo” lhes será dito: “Filhos do Deus vivo” (Os 2,1). Pois sou um
pai para Israel e Efraim é meu primogênito (Jr 31,9).
6
A máxima negativa é incluída também como sumário doutrinal da Parábola do Servo Cruel (Mt 18,35).
O ensinamento relativo à reconciliação necessária, mesmo fazendo uma oferenda no Templo, é
enfatizada igualmente em Mt 5,23s., sem referência a um Pai Celeste benevolente. A alusão ao
santuário, que na opinião de Bultmann atesta a forma mais original porque “pressupõe a existência do
sistema sacrificial, em Jerusalém, é mais provavelmente derivada de Mateus do que de Jesus, cujo
interesse em assuntos do Templo parece ter sido um tanto periférico.
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Nos salmos, Deus proclama o rei seu filho no momento de sua entronização, declaração
dotada de significado messiânico depois do desaparecimento da soberania política: Tu és meu
filho, hoje eu te gerei (Sl 2,7). Entretanto, enquanto a metáfora parece familiar, a referência
comunitária a Deus, em forma de prece, como “nosso Pai” ocorre relativamente tarde, em
passagens da literatura pós-exílica: Pois tu és nosso Pai, já que Abraão não nos conhece e Israel
não nos reconhece, Tu, ó Senhor és nosso Pai, Nosso Redentor, este é teu nome desde a
antiguidade. (Is 63,16).
A compreensão de Deus como Pai celeste, típica da pregação de Jesus, se enquadra no
desenvolvimento do pensamento religioso judaico num esboço esquemático, que vai desde a
Bíblia até os rabis, a ideia do Pai divino se desloca para o nível coletivo, a partir do
Criador/Gerador do povo judeu (dentro da humanidade) em direção ao Protetor amante e
afetuoso do membro individual da família. À época dos sábios tanaíticos, até o século III d.C.,
o Pai Celeste é o Deus providencial, distinto do Deus Rei-Juiz-Soberano, e a imagem paternal
é nitidamente muito familiar no meio hassídico-carismático. (VERMES,1995, p. 164).
A representação de um Pai amante e solícito não se ajusta à experiência humana de um
mundo duro, injusto e cruel, onde melhor se enquadra as imagens dos deuses da humanidade.
Naquela época como agora, como afirma Vermes (1995), os filhotes implumes ainda caem do
ninho, os pequeninos morrem e, como o próprio Jesus logo iria experimentar, os inocentes
sofrem. Mas o que se encontra no interior de sua intuição é a convicção de que o eterno,
distante, dominador e terrível Criador – de acordo com a cosmovisão de alguns – é
primariamente um Deus próximo e que pode ser alcançado. É essa a certeza de boa nova que
os seguidores de Jesus passaram a explorar mais e mais, ao revelarem os diferentes contornos
do Deus que se revela, agora à luz do Cristo Jesus.
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este povo da escravidão do Egito, ama e defende esse povo e o conduz à terra que Ele um dia
havia prometido a Abraão, Isaac e Jacó, patriarcas desse povo eleito.
Esse povo, que elegeu para si, amou com amor esponsal, como averiguamos nas várias
passagem citadas. Ele é um Deus que tem uma relação de aliança, zelo e ciúme por seu povo
e faz tudo para não o perder. Esse é também o Deus do homem judeu, Jesus Cristo, o qual foi
experimentado dentro de sua tradição e cultura judaica, que será lido pelos cristãos como
“Ser–em-si” e “Ser–para” ..., que se aproxima do ser humano e o ama. Em Jesus Cristo, revelar-
se que Deus é acima de tudo Amor, primeiramente em si mesmo e depois, também na sua
relação com a criação, especialmente com a humanidade.
Considerações finais
Ao final desse artigo, constatamos que analisamos a figura do Deus que se revela e dos
deuses da humanidade e que nos cabe aqui, apresentar algumas considerações finais, e não
uma conclusão, tendo em vista se tratar de um tema sempre aberto a novas interações.
Em momentos de profunda crise religiosa que, de tempos em tempos, enfrentamos, não
basta crer em qualquer Deus (deuses da humanidade); precisamos discernir qual é o Deus que
se revela. Isso só é possível, observando as diversas experiências históricas e as ações
geradoras de vida, por Ele iniciadas. Parece-nos muito importante reivindicar hoje, na
sociedade moderna, o autêntico Deus bíblico, o Deus dos Patriarcas, Deus dos Profetas, Deus
de Jesus Cristo. Todavia, não podemos confundi-lo com qualquer outro “deus”, elaborado por
nós a partir de medos, ou ambições e fantasmas que pouco ou nada tem a ver com a
experiência de Deus, outrora vivida e comunicada no universo bíblico.
Na tentativa de expressar desejos e vontades, por vezes, criamos imagens
antropomórficas de Deus. O Antropomorfismo é um conceito muito utilizado em diversas
religiões, por exemplo, no Cristianismo, de forma que aspectos humanos são atribuídos aos
deuses ou aos seres sobrenaturais, anjos, santos, demônios, os quais não apresentam forma
determinada (amorfos).
Podemos pensar por exemplo, em Deus, o qual é provocado como se tivesse corpo
(antropomorfismo) e sentimentos humanos. No entanto, os textos bíblicos deixam claro que
Deus não possui um corpo nem sentimentos humanos. Ele é uma presença boa que abençoa
a vida. A solicitude amorosa do Deus que se revela, quase sempre misterioso e velado, está
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REFERÊNCIAS
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Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno, Concílio Vaticano
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GUTIÉRREZ, Gustavo. O Deus da Vida. São Paulo: Loyola, 1990.
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
RESUMO
O objetivo desse artigo é fazer uma reflexão sobre a morte de Maria chamada comumente de
dormição; afinal, segundo a doutrina da Igreja, Maria passou pela morte embora, a partir do século
XVII por conta da discussão em torno da Imaculada Conceição, houvesse surgido quem declarasse sua
imortalidade. Isso não encontrou fundamentos sólidos. Assim, o Concílio do Vaticano II nos
apresenta Maria como exemplo de discípula e serva, em total conformidade, a seu filho Jesus. Com
isso, fica mais claro que a experiência da morte e de sua participação na ressurreição de Cristo, pois
sendo elevada de corpo e alma aos céus é a antecipação do fim, no qual os cristãos colocam sua
esperança. Maria, passando pela morte, não se vê diminuída, ao contrário, só aumenta a sua
dignidade.
RESUMEN
El propósito de este artículo es reflexionar sobre la muerte de María, comúnmente conocida como
durmiente, al fin y al cabo, según la doctrina de la Iglesia pasó por la muerte aunque a partir del siglo
XVII a causa de la discusión en torno a la Inmaculada Concepción que había aparecido quien declaró
su inmortalidad. Esto no encontró una base sólida. Del Concilio Vaticano II, que presenta a María
como ejemplo de discípula y sierva en plena conformidad con su hijo Jesús, se hace aún más claro
que la experiencia de la muerte y su participación en la resurrección de Cristo resucitado en cuerpo y
alma a los cielos. es la anticipación del fin, enel que los cristianos depositan su esperanza. María pasar
por la muerte no la disminuye, al contrario, solo aumenta su dignidad.
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
Considerações Iniciais
1
Dimitris Vetsikas
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
Então a Virgem Maria estaria isenta da morte? Tendo passado por uma espécie de
sono profundo e sendo assunta aos céus ainda em vida? No meio católico existe certa
controvérsia no que se refere ao desenlace final de sua vida, ainda que no texto do dogma da
Assunção definido por meio da Constituição Apostólica Munificentissimus Deus do Papa Pio
XII esteja escrito: “terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma a gloria
celestial”. Não parece claro para alguns que ela de fato tenha passado pela morte.
Isso se deve ao fato da utilização do termo dormição ser confundido com sono por
certo devocionalismo popular que, por vezes, tem dificuldade de compreender certos termos
utilizados pela Igreja ao longo dos séculos.
A Sagrada Escritura utiliza largamente esse termo como um eufemismo para morte, o
que foi muitas vezes interpretado como uma espécie de sono profundo, no entanto, isso não
encontra respaldo na doutrina católica.
Na verdade, alguns teólogos afirmaram a isenção da morte da Virgem
e a sua passagem direta da vida terrena à glória celestial. Todavia,
esta opinião é desconhecida até ao século XVII, enquanto na
realidade existe uma comum tradição que considera a morte de
Maria a sua introdução na glória celeste. (PAULO II, Papa João.
Audiência: A dormida da Mãe de Deus. Quarta-feira 25 de Junho de
1997.)
Embora não pareça haver uma afirmação clara e objetiva que designe a morte de
Maria como um fato consumado, encontramos sólidos argumentos no magistério da Igreja
que corroboram tal circunstância. Por exemplo, quando é mencionada sua participação na
ressurreição de seu filho. “A Assunção da santíssima Virgem é uma singular participação na
ressurreição do seu Filho” (CIC §966). Ou ainda na indicação de que nela podemos vislumbrar
a antecipação do que ocorrerá com todos os cristãos. ‘‘e uma antecipação da ressurreição dos
outros cristãos’’. (CIC §966)
A morte é condição necessária e essencial para ressurreição, e a assunção de Maria é
descrita pelo catecismo como a participação da ressurreição de seu Filho. O que nos leva a
concluir que como ressuscitou passou pela morte embora descrita com palavras mais brandas:
“terminado o curso da vida terrena”.
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
A Assunção de Maria por seu Filho Jesus indica que ela está na presença d’Ele no céu
de corpo e alma, viva, ressuscitada como sublime antecipação da ressurreição dos outros
cristãos. “Assunção do substantivo latino assunptio (acolhida) e antes ainda da raiz verbal
latina ad/as-sumo (tomo para mim, acolho)”. (Lexicon, 2003, p 56).
Maria foi tomada por Jesus, acolhida na esfera celeste pelo poder de seu divino Filho.
Dormição ou morte?
Salomão adormeceu com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi, seu
pai, e seu filho Roboão reinou em seu lugar. (I Rs 11,43)
Roboão adormeceu com seus pais e foi enterrado com seus pais na cidade
de Davi; sua mãe chamava-se Naamá, a amonita. Seu filho Abiam reinou em
seu lugar. (I Rs 14,31)
Encontraremos outros: Abiam (cf. I Rs 15,8), Asa (cf. I Rs 15,24), Baasa (cf. I Rs 16,6),
Amri (cf. I Rs 16,28) e Josafá (cf. I Rs 22,51).
Portanto, é bastante claro que mesmo na Escritura o termo dormição não passa de
uma maneira abrandada para dizer morte, o que corrobora o argumento de que não há
motivos para crer que Maria não passou pela morte, afinal, é um desenlace importante por
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conta de servir como referencial daquilo que para o cristão é o motivo de esperança, uma vida
eterna na glória da Trindade. Uma nova vida transformada pela realidade da ressurreição.
Dentro de um aspecto cristológico a mãe Maria se assemelha ao Filho Jesus, tendo o seguido
também na sua última etapa (morte) rumo à glória celeste, como singular exemplo para todas
as gerações de cristãos de como seguir a Cristo confiantes na ressurreição.
2
Panagia: do grego Παναγία, fem. De panágios, pan + hágios, o todo-Santo; pronunciou a pronúncia grega:
[panaˈʝia] em grego medieval e moderno, também transliterou Panayia ou Panaghia, é um dos títulos
de Maria, Mãe de Jesus, usado especialmente no cristianismo ortodoxo. A maioria das igrejas gregas
dedicadas à Virgem Maria é chamada Panagia; a designação padrão cristã ocidental de "Santa Maria"
é raramente usada no Oriente Ortodoxo, "Santa Maria" é considerada a mais santa de todos os seres
humanos, estando acima de todos os outros santos.
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
de Deus para viver tamanha missão, escolhida e preparada para tal, desde toda eternidade,
prenunciada nas Escrituras como aquela cuja linhagem esmagaria a cabeça da serpente (cf.
Gn 3,15), serva fiel, mulher de fé que por sua total obediência desata o nó da desobediência
de Eva.
Não haveria então condição para que seu corpo fosse corrompido pela terra, ou seja,
se deteriorasse. Ser preservada do pecado é algo singular à Maria dentre as criaturas.
O que torna necessária a compreensão de que não conhecer a corrupção da morte de
maneira alguma significa não morrer, mas ter seu corpo preservado da decomposição. Em
nada desejando ser maior que seu filho, ela desejou passar pela morte assim como Ele passou.
É o que significa: “terminado o curso de sua vida terrena”.
Ressurreição
O Papa Francisco em uma de suas homilias por ocasião da festa da Assunção de Maria
indica que: “O mistério da Assunção de Maria em corpo e alma também está inteiramente
inscrito na Ressurreição de Cristo. A humanidade da Mãe foi ‘atraída’ pelo Filho na sua
passagem através da morte” (Francisco, Homilia, 15-VIII-2013).
Portanto, ao passar pela morte se despe do mortal e é revestida da ressurreição
seguindo seu filho até a vida eterna, e antecipando o fim último dos cristãos. ‘‘A Assunção da
santíssima Virgem é uma singular participação na ressurreição do seu Filho e uma antecipação
da ressurreição dos outros cristãos’’. (CIC §966).
Prefigurando a ressurreição dos outros cristãos, ou seja, assim como passou pela
morte e foi ressuscitada acontecerá aos outros cristãos que tendo passado pela morte um dia
alcançarão a ressurreição como indicado na profissão de fé. “A Assunção é uma realidade que
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também nos diz respeito, porque nos indica de modo luminoso o nosso destino, o da
humanidade e da história” (Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, Papa
Bento XVI, 15 de Agosto de 2012).
Toda humanidade anseia pela ressurreição dos mortos e pôde vislumbrar esse mistério
inaugurado por Jesus agora vivido por Maria como verdadeira confirmação da fé cristã que
tem como ponto central a ressurreição em Cristo Jesus, afinal, como diz São Paulo: “E, se Cristo
não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé.” (I Cor 15,14).
São João Paulo II retoma o assunto do dogma da Assunção em uma de suas catequeses
para esclarecer tais dúvidas e contradições que produzem certa confusão para que se
compreenda o que de fato aconteceu, dizendo com clareza sem igual que para os padres da
Igreja a tradição corrente sempre foi a de que Maria se despiu do que era mortal e se revestiu
de imortalidade para ser assunta aos céus conforme São João Damasceno, portanto, a
dormição nunca foi encarada como sono.
São Tiago de Sarug indica a morte e a reunião dos apóstolos para sepultar o corpo da
Virgem Maria:
Segundo o qual quando para Maria chegou o tempo de caminhar pela via
de todas as gerações, ou seja, a via da morte, o coro dos doze Apóstolos
reunisse para enterrar o corpo virginal da Bem aventurada (Discurso sobre a
sepultura da Santa Mãe de Deus, 8799 em C. VONA, Lateranum 19 [1953],
188).
São Modesto de Jerusalém fala de sua ressurreição por meio de seu Filho Jesus:
Depois de ter falado amplamente da beatíssima dormida da gloriosissima
Mãe de Deus, conclui o seu elogio exaltando a intervenção prodigiosa de
Cristo que a ressuscitou do sepulcro para recebê-la consigo na gloria (Enc. In
dormitionem Deiparae semperque Virginis Mariae, nn. 7 e 14; PG 86 bis,
3293; 3311).
São João Damasceno fala do despir-se do que é mortal para revestir-se do que é
imortal:
Que por sua vez, pergunta: Como e possível que aquela que no parto
ultrapassou todos os limites da natureza, agora se submeta as leis desta e o
seu corpo imaculado se sujeite a morte? E responde: Certamente era
necessário que a parte mortal fosse deposta para se revestir de imortalidade,
porque nem o Senhor da natureza rejeitou a experiência da morte. Com
efeito, Ele morre segundo a carne e com a morte destrói a morte, a corrupção
concede a incorruptibilidade e o morrer faz d'Ele nascente de ressurreição
(Panegírico sobre a Dormida da Mãe de Deus, 10: SC 80,107).
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Quem melhor para fundamentar essa doutrina do que um grande padre do oriente
chamado São João Damasceno3 profundo devoto da Virgem Maria chamado pela Igreja
“doutor em Assunção”, deu início à teologia mariana com seus escritos. Um dos mais
importantes defensores de Maria fala de forma sublime sobre a subida de Maria pelos degraus
da morte rumo ao céu, como pela graça de Deus Jacó viu uma escada, que vai da terra ao céu,
por onde os anjos sobem e descem fazendo menção a uma escada espiritual, onde podemos
ver Jesus que é o caminho que nos leva ao céu, e também Maria que é para os cristãos a
escada pela qual Jesus desce a humanidade.
Como não elevaria da terra ao céu aquela que fora um verdadeiro céu sobre
a terra? Hoje a escada espiritual e viva, pela qual o Altíssimo desceu se fez
visível e conversou entre os homens (Baruc 3, 38), ei-la que sobe, pelos
degraus da morte, da terra ao céu. Hoje a mesa terrestre que, sem núpcias,
trouxera o pão celeste da vida e a brasa da divindade, foi levada da terra aos
céus, e para a Porta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as portas
do céu. (Homilia sobre a Dormição da Santíssima Mãe de Deus, a Bem
Aventurada Virgem Maria, 676-749).
Elevada aos céus por sua obediência, docilidade e serviço aos desígnios de Deus,
aquela que desde sempre só a Ele pertenceu, cheia da graça, aguarda ansiosamente após a
ascensão de seu Divino Filho o momento do reencontro, não resta dúvida de que aquela que
sofreu junto d’Ele na cruz morreria com Ele naquele momento se lhe fosse permitido.
Aquela que foi o leito nupcial onde se deu a divina encarnação do Verbo
veio repousar em túmulo glorioso, como em tálamo nupcial, para de lá se
elevar até a câmara das núpcias celestes, onde reina em plena luz com seu
Filho e seu Deus, deixando-nos também como lugar de núpcias seu túmulo
sobre a terra. Lugar de núpcias, esse túmulo? Sim, e o mais esplendoroso
de todos, a refulgir não por revérberos de ouro, de prata ou de gemas,
porém pela divina luz, irradiação do Espírito Santo. (Homilia sobre a
Dormição da Santíssima Mãe de Deus, a Bem Aventurada Virgem Maria,
676-749)
É possível encontrar esse túmulo em Jerusalém, de fato existem duas igrejas que
guardam este mistério, uma fica no Monte Sião próxima ao cenáculo e é chamada Abadia da
Dormição de Maria e a outra fica ao lado do Getsêmani, um túmulo em Jerusalém que
segundo a tradição é datado do primeiro século da era cristã, ele está localizado no vale de
Cedrom. É conhecido pela Igreja tanto do ocidente como do oriente pelo nome “Tumba de
Maria”, de fato, encontra-se hoje sob a guarda da Igreja Ortodoxa, mas já esteve sob os
3
João Damasceno nascido de uma família árabe cristã no ano 675, em Damasco, na Síria. Veio daí
seu apelido "Damasceno" ou "de Damasco". É considerado o último dos santos Padres orientais da
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Igreja, antes que o Oriente se separasse definitivamente de Roma, no ano 1054. Uma das grandes
figuras do cristianismo, não só da época em que viveu, mas de todos os tempos, especialmente pela
obra teológica que nos legou. Elevado a condição de doutor da Igreja pelo Papa Leão XIII era conhecido
pelos adversários e pelos teólogos como São Tomás do oriente.cuidados de Beneditinos e
Franciscanos. Ainda segundo a tradição, foi desta tumba que Mariade corpo e alma subiu aos céus.
Alguns textos apócrifos que tratam do assunto Assunção de Maria, entre eles um é
atribuído a São João e se chama: “De Transitus Virginis” que trata dessa tradição de forma rica
em detalhes mencionando os locais onde hoje se guardam a memória da morte, do
sepultamento, bem como, a da assunção da Virgem Maria. O texto descreve que os apóstolos
teriam sido trazidos, por meio de um milagre do Senhor, a Jerusalém de todos os cantos da
terra por onde estavam espalhados anunciando o evangelho.
E que na noite anterior ao desenlace da Virgem Maria se reuniram ao redor dela e
acompanharam a suave morte de Maria, chamada dormição, que teria ocorrido no monte
Sião próximo ao local do cenáculo. Logo após seu santo corpo teria sido transportado em
procissão, acompanhado por uma multidão de devotos, por toda cidade de Jerusalém até o
vale do Cedrom, conhecido também como Vale dos Justos, aos pés do Monte das Oliveiras,
onde foi sepultado. Local onde ao terceiro dia ela foi ressuscitada pelo Senhor que veio buscá-
la junto com seus anjos, a fim de transportá-la ao Paraíso.
As Igrejas da Dormição e a tumba de Maria fazem memória a estas tradições antigas.
Uma faz memória ao local da morte de Maria e a outra faz memória ao local de seu
sepultamento e Assunção.
4
Fotos de Marcio Miranda de Matos
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Quanto a Sagrada Escritura mesmo não havendo nenhuma alusão direta a Assunção,
é possível encontrar a partir do olhar da Igreja várias indicações e prefigurações do fato, como
as que se seguem:
Gn 3,15 “Porei hostilidade entre ti e a mulher”. É possível perceber Maria como nova
Eva. Sua vida e missão estão intimamente ligadas à vida de seu Filho Jesus, o novo Adão.
Portanto, como travam a mesma luta contra a serpente, se Jesus é glorificado por sua
ressurreição a ela também caberia à mesma glorificação de seu corpo por ser partícipe como
colaboradora da redenção.
Ex 20,12 “Honra teu pai e tua mãe”. Para cumprir tal mandamento com perfeição,
Jesus que tem poder de poupar sua mãe da corrupção de seu corpo, ou seja, “decomposição”
o fez para a ela conceder maior honra.
Is 60,3 na Vulgata “Glorificarei o lugar onde os meus pés se apoiaram”. Tendo Jesus, o
Santo dos santos, ocupado o ventre imaculado de Maria o santificou e glorificou.
Sl 45,10.14-16 “A tua direita uma dama, ornada de Ofir (...). Vestida com brocados, à
filha do rei é levada para dentro do séquito de virgens.
(...) Com júbilo e alegria, elas entram no palácio”. Pode-se interpretar como prefiguração de
Maria sendo introduzida na glória como rainha.
Ct 3,6 (cf. 4,8 e 6,9): “A esposa do Cântico dos cânticos, ‘subindo do deserto como
colunas de fumaça perfumada com incenso e mirra’, para ser coroada”. Na esposa do Cântico
dos cânticos vemos uma prefiguração de Maria sendo elevada aos céus.
Lc 1,28 “Ave cheia de graça, o senhor está contigo”. A partir da afirmação do anjo pode-
se chegar à conclusão de que Maria recebe a plenitude da graça em sua Assunção.
Sl 132,8 “Levanta-te, Adonai para o teu repouso, tu e a arca da tua santificação”. A
Arca da Aliança é uma das mais belas a prefigurações de Maria feita segundo a ordem de Deus
de madeira incorruptível (Acácia), dentro da Arca foram colocadas as tábuas da Lei, um vaso
com o maná recolhido do deserto e a vara de Aarão que floresceu como sinal da escolha do
sacerdócio levita (Ex 25,16,21; Nm 17,1-10; Dt 10,1-5) Maria é a arca da nova aliança
tabernáculo mais perfeito feito por mãos não humanas (cf. Hb 9,11) foi criada Imaculada,
virgem perpetua e incorruptível revestida de graças traz em seu ventre a palavra de Deus viva
o próprio Verbo encarnado (Jo 1,1), o Pão vivo descido do céu ( Jo 6,49-50) e o Sacerdócio vivo
(Hb 7,17).
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Ap 11,19 “Abriu-se então o templo de Deus, que está no céu, e a arca de sua aliança
apareceu em seu templo”. Pode-se ver aqui a arca da aliança no céu junto de Deus, imagem
de Maria, pois um objeto de madeira não poderia estar no céu.
Ap 12,1 “Um grande sinal apareceu no céu: uma mulher, vestida de sol, a lua debaixo
dos pés, e uma coroa de doze estrelas na cabeça”. Mais uma imagem de Maria no céu.
O olhar do Magistério
Com clareza até mesmo no texto do dogma definido por Pio XII em 1 de novembro de
1950 é possível perceber a referência sobre a morte quando se diz: “a imaculada Mãe de Deus,
a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à
glória celestial”. Afinal, o que significa terminar o curso de sua vida terrestre? Não era
conveniente a afirmação da morte de forma excessivamente explícita, pois, tomaria uma
proporção talvez maior do que se pretendia evidenciar; sua Assunção.
Assim como também deixa claro a importância da glorificação de seu corpo e alma
como sinal de esperança para humanidade:
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
Em uma audiência papal,5 durante suas catequeses, São João Paulo II faz observações
claríssimas e incontestáveis como esta: “Para ser partícipe da ressurreição de Cristo, Maria
devia compartilhar antes de mais nada da Sua morte”. Pode-se perceber que a posição da
Igreja sempre foi clara em relação ao assunto, portanto, a controvérsia deve ter surgido por
uma questão terminológica, que levou a confusão entre dormição e morte levando alguns a
acreditar que se tratasse de fatos distintos.
A Mãe não é superior ao Filho, que assumiu a morte, dando lhe novo
significado e transformando-a em instrumento de salvação. Empenhada na
obra redentora e associada à oferta salvífica de Cristo, Maria pôde
compartilhar o sofrimento e a morte em vista da redenção da humanidade.
(PAULO II, Papa João. Audiência: A dormida da Mãe de Deus. Quarta-feira 25
de Junho de 1997.)
Ao afirmar que Maria não é superior ao Filho o Santo Padre São João Paulo II deixa
claro um dos motivos mais óbvios para que ela tenha passado pela morte, afinal, ela é criatura
de Deus, é bem verdade que a mais alta, mais nobre e mais especial de todas as criaturas,
aquela que por sua obediência e colaboração permitiu o cumprimento dos planos de Deus em
sua vida e gerou para o mundo a Salvação e a Vida que é Jesus.
Se Ele próprio sendo Deus submeteu-se à morte mesmo não tendo pecado algum não
faria sentido que Maria, embora cheia de graça, inferior a Ele, também não fosse a tal fim
submetida. Isso não a diminui em coisa alguma, pelo contrário, até mesmo ajuda a enaltecê-
la, afinal, aquela que em tudo serviu e procurou imitar seu Divino Filho Jesus não o faria
também na morte?
Qualquer que tenha sido o fato orgânico e biológico que, sob o aspecto físico,
causou a cessação da vida do corpo, pode-se dizer que a passagem desta
vida à outra constitui para Maria uma maturação da graça na glória, de tal
forma que jamais como nesse caso a morte pôde ser concebida como uma
“dormida”. Nalguns Padres da Igreja encontramos a descrição de Jesus
mesmo que vem acolher a sua Mãe no momento da morte, para a
introduzir na glória celeste. Assim, estes apresentam a morte de Maria
como um evento de amor que a levou a alcançar o seu Filho divino para
participar da Sua vida imortal. No final da sua existência terrena, ela terá
experimentado, como Paulo e mais do que ele, o desejo de se libertar do
corpo para estar com Cristo para sempre (cf. Fl 1, 23). A experiência da
morte enriqueceu a pessoa da Virgem: passando pela comum sorte dos
homens, ela pode exercer com mais eficácia a sua maternidade espiritual
em relação àqueles que chegam à hora suprema da vida. (Audiência Papa
João Paulo II, Quarta-feira 25 de Junho de 1997).
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Audiência Papa João Paulo II, Quarta-feira 25 de Junho de 1997
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Considerações finais
A devoção a Maria é parte importante da fé católica, no entanto, deve ser vivida com
equilíbrio seguindo as orientações da Igreja, sem excessos, o que costuma desviar os fiéis da
verdadeira devoção provocando confusões e distorções quanto à fé. Maria é única no projeto
de Deus, foi concebida de forma singular guardada de toda mancha do pecado e no fim de sua
vida passou pela morte para indicar o caminho pelo qual todos devem passar seguindo Jesus.
Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em
erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou
quaisquer outros. E os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não
consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz
reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a
nossa mãe e a imitar as suas virtudes. (LG, 6)
Afinal, ela viveu para seu filho Jesus Cristo e conhecê-la nos leva a Ele e não a ela. Aos
pés da cruz Maria contempla a morte dolorosa de Jesus desejando com todo seu coração
morrer com Ele. Mesmo tendo Ele ressuscitado em sua ascensão agora Ele sobe aos céus e a
ela ainda não lhe é permitido acompanhá-lo, foi preciso esperar, ela ainda tinha uma missão
a cumprir, a Igreja nascente precisa dela. E assim que chegou o tempo pôde ir ao encontro do
Amado, segundo São Francisco de Sales, ela morreu de forma tão suave que o melhor adjetivo
foi: “morrer de amor”, isso por não suportar mais viver nesse mundo sem a Sua companhia.
Que Maria seja exemplo das mais nobres virtudes para cada membro do corpo de
Cristo que é a Igreja. E cada um possa aprender com Maria como viver e morrer com Cristo na
esperança da vida eterna que virá.
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71
REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION
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PAULO II, Papa João. A Virgem Maria – 58 catequeses do Papa sobre a Nossa Senhora. Lorena:
Cléofas, 2017.
72
NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION
RESUMO
Uma das grandes mudanças ocorridas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962- 1965) refere-se à
abertura ao diálogo entre as tradições cristã e judaica; a Igreja recorda-se que tem um passado, e
esse passado não pode excluir o povo de Israel, com o qual Deus fez a primeira Aliança. Duas
tradições tão próximas não poderiam ficar separadas eternamente. Assim, o Concílio Vaticano II foi o
expoente do início da convergência dessas tradições e tornou-se essencial. Esse artigo reflete sobre o
impacto da Declaração Nostra Aetate no Brasil, um dos primeiros lugares que foi destino dos judeus
fugitivos das perseguições da Europa, provocadas por histórias fantasiosas, brigas políticas e
religiosas. Tornar conhecido esses ultrajes passados, tornar-se possível construir um futuro mais
harmônico, compreendendo e vivendo os laços que unem a Igreja de Cristo e o povo de Israel. A
metodologia utilizada neste trabalho é a pesquisa bibliográfica quantitativa, que se deu por
fichamentos e resumos de livros, que discutiram e aprofundaram-se a Nostra Aetate e a tradição
judaico-cristã, entre eles Humberto Porto, José Bizon, Maria Luiza Tucci Carneiro e Keila Grinberg. O
artigo apresenta como se deu o caminho de divergência entre as duas tradições no período da Igreja
nascente, apresentando o Concílio Vaticano II, séculos depois da ruptura, como o grande baluarte de
abertura ao diálogo e à unidade. Explicita os difíceis caminhos trilhados pelo cardeal Béa na produção
de um texto que fosse a voz da Igreja em um período em que o mundo, perplexo pelos horrores
nazistas, urgia por uma palavra aos judeus. Após a apresentação histórica, analisamos o impacto da
Nostra Aetate na relação cristã-judaica, no Brasil, abordando as mudanças ocorridas nessa relação.
ABSTRACT
One of the great changes of the Second Vatican Ecumenical Council (1962-1965) refers to the
openness to dialogue between Christian and Jewish traditions; The Church remembers that it has a
past, and that past cannot exclude the people of Israel, in which God made the first Covenant. Two
traditions so close could not be separated forever, so the Second Vatican Council, was the exponent of
the beginning of convergence of both and became an essential element of this article, which reflects
the impact of the Nostra Aetate Declaration in Brazil, one of the first places that It was the fate of
Jews fleeing the persecution of Europe brought on by fanciful stories, political and religious quarrels.
To make past outrages known today, to make it possible to build a more harmonious future by
understanding and living the bonds that unite the Church of Christ and the people of Israel, thus
moving towards the realization of God's designs. The methodology used in this work is the
quantitative bibliographic research that will take place through records and summaries of books by
authors who also discussed and deepened the theme of Nostra Aetate and the Judeo-Christian
tradition, among them Humberto Porto, José Bizon, Maria Luiza Tucci Carneiro and Keila
Grinberg. The article presents how the path of divergence between the two traditions took place in
the period of the nascent Church, presenting the Second Vatican Council, centuries after the rupture,
as the great bastion of openness to dialogue and unity. And explaining the difficult paths taken by
Cardinal Béa in the conception of a text that was the voice of the Church in a period that everyone,
perplexed by the Nazi horrors, urged the Jews for a word. After the historical presentation, we
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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION
analysed the impact of Nostra Aetate on the Christian-Jewish relationship in Brazil, addressing the
changes that occurred in that relationship.
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não obrigatoriedade do rito da circuncisão para os gentios convertidos, como vemos nos livros
dos At 15 e Gal 2, 10-14, no entanto, afim de criar uma relação harmoniosa com a comunidade
de Jerusalém que respeitava essa obrigatoriedade mosaica, foram impostas as seguintes
condições: “abstenção de carnes sufocadas, de carnes imoladas aos ídolos e de fornicação” At
15,19-20 (PORTO, 1971, p. 21). Essa foi uma forma encontrada para que os judeus não se
sentissem impuros ao se relacionarem com os novos convertidos.
Pode-se dizer que o ápice dessa crise se deu por ocasião da guerra judaica de 66 a 70.
Por não lutarem juntos, os judeu-cristãos foram o alvo da grande animosidade e critica por
parte dos judeus. Viram-se forçados desse modo, a deixar Jerusalém partindo para Jordânia.
No ano 70 d. C. Tito invade Jerusalém, massacra toda a população e destrói o Templo. Com a
destruição do Templo “[...] o judaísmo perde sua autonomia administrativa, o seu centro de
culto, o Templo, coração da vida religiosa de Israel e símbolo da unidade de Deus” (PORTO,
1971, p. 22). Observa-se através do historiador Flavio Josefo o assombroso relato da
destruição do Templo:
Com o fim da guerra a reorganização judaica fica a cargo dos fariseus, que prezam por
tradição particular à ortodoxia judaica, guardando assim cuidadosamente o legado do
passado. Já reorganizado o judaísmo adquire um caráter mais intolerante, pois se sentia
ameaçado pelas correntes oriundas do próprio judaísmo, inclusive pelos judeu-cristãos.
Culminando ao ponto de Rabi Gamaliel II, no ano 85 d. C., introduzir na oração da manhã
(Amidá), uma benção, ou como classificam alguns autores uma maldição, reservada aos
cristãos e outros hereges.
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Que não haja esperança para os convertidos a idolatria e que o reino do mal
seja logo arrancado d’entre nós e que os notzarim e os heréticos (minim)
pereçam que eles sejam apagados do livro da vida que eles não sejam
inscritos entre os justos. Bendito seja aquele que submete os arrogantes
(GUNDRY, 1998, p. 35).
Sobre a benção são divergentes as opiniões, segundo Miranda, em seu livro, “As
relações judeus-cristãs do primeiro século”, “a palavra ‘minim’, no começo designava de modo
geral, os apóstatas ou os dissidentes, que no início, eram todos aqueles que recusavam o
judaísmo de Gamaliel II” (MIRANDA, 2015, p. 47). O que poderia ser uma luta interna dentro
do judaísmo entre liberais e conservadores, todavia alguns textos tanaíticos 1 referem-se aos
“minim” como os não judeus, ou seja, os cristãos, que nesse momento da história já não se
sentiam judeus, portanto “a benção contra os “minim” seria também contra os cristãos”
(MIRANDA, 2015, p. 47).
Não podemos afirmar que a oração contra os “minim” foi o ponto determinante para
a separação entre judeus e cristão, mas a partir desse momento vê-se Igreja e Sinagoga
trilhando caminhos divergentes, já que devido a essa oração os judeu-cristãos são compelidos
a deixar a Sinagoga. Após esse breve histórico da separação de cristãos e judeus no primeiro
século da era cristã, pode-se constatar que alternando durante a história caminhos mais
conflituosos do que de reaproximação, judeus e cristãos viveram um grande embate, no fundo
foram movidos pela paixão em defesa da própria ortodoxia religiosa, que levou ao
rompimento do diálogo e ao afastamento das tradições.
O Brasil conta com uma considerável população de judeus, sendo a segunda maior
comunidade judaica da América Latina e a décima primeira do mundo. No entanto os motivos
que nortearam a vinda dos primeiros judeus no território nacional ainda são desconhecidos,
para a maioria dos cristãos e também para os diversos judeus residentes. Desse modo é mister
tornar conhecida a luta e as dificuldades de homens e mulheres, crianças, adultos e idosos,
em busca de um lugar de paz, onde pudessem viver sua vida e o culto a sua religião.
1
São textos escritos pelos sábios que escreveram a mishna a partir de 50 a. C. até o ano 200 d. C.
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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION
2
A diáspora foi o processo de dispersão dos judeus pelo mundo e a consequente formação de
comunidades judaicas fora de Israel.
3
Cristão-novo era o termo utilizado que categorizava os judeus recentemente convertidos ao
cristianismo. Dependendo do lugar o termo possuía diversos significados. Na Espanha, por exemplo,
os judeus convertidos eram chamados de marrano, que traduzido para o português, significa porco; o
que denota um forte antissemitismo.
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exclusivamente com os judaizantes” Com a inquisição muitos judeus fugiram para Portugal
que até então estava à margem do problema que marcava a Espanha.
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O Brasil foi o destino de milhares de judeus e cristãos novos, boa parte dos
quais convertidos compulsoriamente, e que chegaram vindo dos quatro
cantos do mundo. Desejavam encontrar um lugar seguro contra as
discriminações que os levaram a deixar seu país de origem (GRINBERG,
2005, p. 9-10).
A primeira comunidade judaica foi formada na cidade de Recife, entre os anos de 1630
e 1654, durante o período de ocupação colonial holandesa. Os holandeses permitiram a
liberdade de religião e defenderam legalmente judeus e cristãos-novos das restrições
impostas por Portugal.
Segundo Wiznitzer (1966), o número de judeus teria chegado, em 1644, a 1.450. Em
1636, os judeus fundaram, também em Recife, a primeira sinagoga em solo brasileiro e
também nas Américas, Kahal Kadosh Zur Israel (Santa Comunidade Rochedo de Israel).
A sinagoga de Recife ficava situada na Rua dos Judeus, num edifício de dois
andares, construído de pedra e cal. Os holandeses denominavam essa rua
de Bockestraet, mas depois da reconquista de Recife pelo exército luso-
brasileiro de libertação, foi a rua rebatizada com o nome de Rua da Cruz, e
os edifícios da antiga sinagoga e escola religiosa tomaram o número 26. Em
1879 o nome da rua mudou para o de Bom Jesus. O edifício da sinagoga foi
posto abaixo no começo do século XX e substituído por um edifício agora
ocupado por um banco. Hoje, o edifício traz o velho número 26, bem como
o número atual, 155. (WIZNITZER, 1966, p. 119).
Poder-se-á constatar que a história do povo judeu não foi diferente no Brasil
comparando com os outros países em que procuraram refúgio. No período colonial, por
exemplo, muitos sofreram perseguições com a inquisição, foram proibidos de contrair
matrimonio com “cristãos-velhos”4 e muitas vezes eram difamados com estórias fantasiosas.
Após a independência, a constituição de 1824 mantem o catolicismo como religião
oficial do Estado: “[...] mas proclamou a tolerância com relação a outras religiões e cultos
realizados em espaços privados [...]” (CYTRYNOWICZ, 2002, p. 1). Já com nova constituição de
4
Cristãos velhos eram aqueles que não tinham antepassados de origem judaica.
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5
O Fascismo é um regime político que surgiu na Europa entre 1919 e 1945. Tem como características
o totalitarismo e o militarismo e o seu idealizador do fascismo foi Benito Mussolini, que o implantou na
Itália.
6
Defendia uma política tradicionalista e baseia-se em uma sociedade estruturada a partir da religião e
da família, acreditando preservar assim a cultural local e a tradição.
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Alguns grupos também arriscam ações em prol dos judeus, mas de forma solitária. A
grande calamidade desperta uma consciência quase que universal sobre o judeu e o judaísmo,
surge então a questão: quem é o homem judeu? Qual é o seu verdadeiro rosto? Essas
questões começam aparecer entre os teólogos, sobretudo entre os mais lúcidos e humildes.
Tanto judeus como os cristãos começam então a se perguntar se os ensinamentos vigentes
até então não poderiam ter “[...] alimentado e até mesmo ampliado o genocídio industrial
[...]” (FONSECA, 2011, p. 38).
No entanto, é com a publicação do livro Jésus et Israël, (Jesus e Israel), livro escrito
durante a Segunda Guerra mundial, publicado em 1948, de Jules Isaac (1877-1963), um judeu
que perdeu toda a sua família na guerra e que dedicou grande parte de seus esforços de
investigação sobre as causas do antissemitismo. Que as iniciativas de amizade entre judeus e
cristãos começam a engatinhar.
Em seu livro ele aponta “a interação entre as atitudes antijudaicas da teologia cristã e
o antissemitismo de cunho racial e biológico” (apud FONSECA, 2011, p. 38). E ainda, apresenta
quatro teses. São elas: 1) Jesus é judeu em sentido pleno, 2) o ensinamento de Jesus se fez no
quadro institucional do judaísmo, 3) Jesus não condenou o povo judeu, 4) o povo judeu não
pode ser qualificado de deicida.
Em seu segundo estudo intitulado L’Enseignement du mépris7(1962) Jules vai além e
indica o que deveria ser indicado e mudado há muitos séculos da teologia cristã: o ensino do
desprezo judaico.
Outro grande documento, antes do Concilio Vaticano II, dessa vez aprovado pela Igreja
foi intitulado Os dez pontos de Seelisberg, fruto de um encontro inter-religioso na cidade de
Seelisberg na Suíça no ano de 1947, é o primeiro documento de boas condutas elaborado
pelos cristãos em favor dos seus irmãos judeus. Jules Isaac, também é convidado para esse
encontro e diversos outros teólogos de outros credos.
Na história do diálogo judeu-cristão, a conferência de Seelisberg é
mencionada principalmente por seus Dez pontos, especificamente dirigidos
às igrejas. Os quatro primeiros destacam as raízes profundase fundamentais
do Cristianismo no Judaísmo. Outros seis pontos deixavam claro que o
judaísmo não mais devia ser apresentado de forma negativa no ensino
cristão. Este desafio estabeleceu um dos
7
O ensino de desdém: publicado em 1962, um ano antes da morte do autor. No livro Jules Isaac lida
com preconceito antijudaico, sentimentos de desconfiança, desprezo, hostilidade e ódio contra os
judeus.
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Durante o papado de Pio XII pode-se dizer que houve uma atitude indiferente do
Vaticano, “[...] houve pouco ou nenhum contato formal com crenças não-cristãs, nem mesmo
com os judeus, mas o papa apoiou sinceramente o conceito de tolerância para com os outros”
(MCBRIEN, 2000, p. 372). O que contrasta com os heroicos esforços de muitos padres
anônimos que salvaram vidas de judeus, arriscando as suas próprias vidas. Muitos
historiadores e teólogos concordam que a aproximação entre o judaísmo e o catolicismo foi
iniciada pelo papa João XXIII, seu sucessor.
Com o falecimento do papa Pio XII em 9 de outubro de 1958, o conclave composto por
51 cardeais elegeu o cardeal Roncalli em 28 de outubro de 1958, sucedendo Pio XII, o cardeal
Roncalli foi escolhido Papa e adota o nome de João XXIII. Prestes a completar 77 anos de idade,
não se esperava muito desse homem tranquilo e bonachão, no entanto os cinco anos em que
esteve no trono de Pedro foram profundamente marcantes e renovadores. “Coube ao papa
João XXIII enfrentar decisivamente a questão do relacionamento com o judaísmo, movido por
especial interesse, fruto de sua inquebrantável convicção pessoal” (PORTO, 1971, p. 110). No
ano seguinte, em 25 de janeiro de 1959 em reunião com os cardeais o Papa anuncia a
convocação do Concílio Vaticano II.
Abrir as janelas é deixar a luz e o ar entrar, luz e ar que arejam o mundo e a Igreja. O
Concílio foi um marco na história, uma tentativa da Igreja em dialogar com o mundo
contemporâneo. Nos anos em que se preparava a abertura do concílio o papa João XXIII, dá
um salto para a reaproximação e abertura ao diálogo com o povo de Israel.
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O texto é o mais breve documento produzido pelo Concílio, contêm apenas cinco
parágrafos, cerca de mil e duzentas palavras. Traz consigo as intenções da Igreja, fruto do
trabalho árduo de homens e mulheres que lutaram para que a Igreja se abrisse ao diálogo e
se aproximasse das religiões buscando uma mútua colaboração. Um texto que sem dúvida
pode ser chamado de revolucionário.
É com a Declaração Nostra Aetate que a Igreja se reaproxima do povo judeu, sobretudo
no capítulo quatro, que se encontra o coração de toda a Declaração, sua origem e também
sua intenção em relação ao povo de Israel. Conduzir o cristianismo a uma atitude cristã de
encontro, sem com isso perder ou enfraquecer a missão universal de Cristo e da Igreja, mas
convidar a todos a comungarem em uma única prece, uma prece de esperança, de unidade e
fraternidade.
A Igreja também reconhece com a Nostra Aetae que os cristãos estão em segundo
lugar, pois reconhecem a Eleição do povo de Israel como premissas da salvação e salienta que
os cristãos são justificados pelo fato de serem enxertados, pela obra da salvação de Cristo na
oliveira da eleição divina. O direito de primogenitura pertence até os dias de hoje aos judeus.
Foi a eles que Deus se manifestou primeiro, “[...] são os israelitas, aos quais pertencem a
adoção filial, a gloria, as alianças, a legislação, o culto, as promessas, aos quais pertencem os
patriarcas [...]” (Rm 9,4-5). A Igreja desse modo é a continuação de uma igreja de judeus e
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pagãos e, é alimentada até hoje e caminha em direção ao futuro com a história da eleição que
parte do Israel eleito por Deus e que está “misteriosamente prefigurada no êxodo do povo
eleito da terra da escravidão” (NOSTRA AETATE, nº 4).
Não se trata de um assunto do passado, entrementes a Igreja é dependente de Israel
em sua fé, “sem Israel, sem sua eleição e sua fé, a fé cristã estaria sem um lugar e se moveria,
em certo sentido, no espaço vazio” (GRÜMMER, 2013, p. 39) e assim também nos afirma a
Declaração:
O texto menciona também que: “[...] os principais dos judeus, com seus seguidores,
insistiram na morte de Cristo [...]” (NA nº 4); no entanto sua morte na cruz não poder ser
imputada a todos os judeus, inclusive os judeus nos tempos de hoje. Aqui se percebe que é
decisiva a ruptura com a infeliz tradição de preconceitos antissemitas. O Concílio diante da
acentuação permanente da eleição divina de Israel rejeita inequivocamente uma teologia
depreciativa. E ressalta que se deve haver cuidado para que: “[...] tanto na catequese como
na pregação da Palavra de Deus, não se ensine algo que não se coadune com a verdade
evangélica e com o espírito de Cristo” (NA nº 4).
E a Igreja como: “o novo povo de Deus” (NOSTRA AETATE nº 4), diante da valorização
da herança comum, exige também a valorização e o respeito mútuos como fruto dos estudos
teológicos e bíblicos assim como: “o diálogo fraterno” (NOSTRA AETATE nº 4). Nenhuma outra
religião está tão próxima do Cristianismo como o Judaísmo, o diálogo entre cristãos e judeus
é um meio que favorece o conhecimento mútuo e aprofunda as riquezas da tradição; é um
diálogo que exige respeito em relação à fé e as convicções religiosas de ambos os lados.
É incomensurável e inegável a importância da Declaração Nostra Aetate para a relação
com o Judaísmo. Não somente pelo fato de que se tenha desautorizado oficialmente pela
primeira vez na história da Igreja o antissemitismo e uma teologia da desvalorização do
judaísmo; que trazia consigo diversos males aos judeus, já que até então ser judeu “[...] era
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difícil de suportar, porque até então era qualificado como pecador contra Deus e o ser
humano” (GRÜMME, 2013, p. 45-46).
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cardeais, ainda fecham os olhos e mantem-se fechados em não aceitar ainda uma postura de
um espírito de abertura ao diálogo fraterno e recíproco.
Muito ainda precisa ser feito, as relações dos cristãos com os judeus não podem
continuar somente com bases na religião. Para que essas relações sejam profundas, elas deve
ser ampliada de forma a contemplar tudo aquilo que o judaísmo de fato significa, deve basear-
se no comprometimento incondicional com a sobrevivência e permanência do estado judeu,
Israel. O Estado de Israel é o símbolo concreto da liberdade e do direito de autodeterminação,
não apenas dos judeus, mas de todos os povos. Tal comprometimento pressupõe reconhecer
o direito dos povos de viverem livremente; livre da ideologia fundamentalista que fomenta o
terror.
O empenho da Igreja Católica para estabelecer as boas relações com o judaísmo e entre
as diferentes religiões responde a uma exigência do tempo em que vivemos. Esse empenho é
fundamental para combater as causas dos preconceitos contra os povos e as religiões e
também lembrar que a Declaração Nostra Aetate:
Este esforço de lembrança cabe a todos os católicos e não católicos, judeus e não judeus,
pois assim teremos a certeza de que se deu a contribuição para dar ao mundo uma feição mais
humana, permitindo que as futuras gerações sejam mais justas, que os erros fiquem no
passado e não assombrem o futuro. Somente assim se concretar-se-á a profecia Jeremias:
“Dar-vos-ei um futuro e uma esperança” (Jr 29, 11).
Referencias
ALMEIDA, João Carlos. As janelas, do vaticano. São Paulo: Editora Santuário, 2013.
BIZON, José. Diálogo católico- judaico no Brasil. São Paulo: Loyola, 2005a.
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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Holocausto crime contra a humanidade. São Paulo: Ática,
2002.
GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova. 1998.
HEISING, James W. Diálogos a uma polegada acima da terra. São Paulo: Loyola, 2004.
JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. De Abraão à queda de Jerusalém, obra completa. Rio
de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2004.
NOSTRA AETATE Nº 4 Sobre as relações da Igreja com a religião judaica, Vaticano II, 28
de outubro 1965, 25ª edição, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 742.
WIZNITZER, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. Tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, Editora da Universidade de São Paulo, 1966.
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar um estudo sobre o método midráshico no Novo
Testamento. Destacamos o midrash como método de leitura e a exegese, utilizados pelos hagiógrafos
neotestamentários, para proclamar e confirmar o cumprimento da Escritura na pessoa do Cristo morto
e ressuscitado, sua atualização teológica e moral e sua contribuiçãona formação do Novo Testamento,
uma vez que ele nasce e configura-se no seio do judaísmo. Na verdade, os primeiros cristãos não
criaram um modo próprio de leitura e interpretação das Escrituras, mas fizeram uso do método
existente nas sinagogas, para difundir a proclamação cristã. Nesse sentido, podemos dizer que o
Novo Testamento é uma releitura do Antigo Testamento, a partir da fé em Jesus Cristo, morto e
ressuscitado.
ABSTRACT
This article aims to present a study on the midráshico method in the NewTestament. Highlighting the
midrash as a method of reading and exegesis used by New Testament hagiographers, to proclaim and
confirm the fulfillment of Scripture in the person of the dead and risen Christ and its theological
update. And moral, as well as its contribution to the formation of the New Testament, since it is born
and shaped within Judaism. In fact, early Christians, as a Jewish culture, did not create their own way
of reading and interpreting the Scriptures, but made use of the synagogues' method of spreading the
Christian proclamation. In this sense, we can say that the Second Testament is a rereading of the First
Testament from faith in Jesus Christ, dead and risen.
Considerações Iniciais
É evidente o crescimento de pessoas, grupos e comunidades que buscam ler, reler e
interpretar a Bíblia à luz da vida, e a vida á luz da Bíblia. É nela que Israel, o povo de Deus,
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
buscou a fonte de inspiração e iluminação para sua sobrevivência em meio aos cativeiros da
história. Este artigo é fruto de estudos, reflexões e sistematizações ao longo da caminhada e
das várias experiências com o povo junto às comunidades, que procuram ler e interpretar as
Escrituras, buscando nelas um sentido para o cotidiano da vida. Ele é o resultado de uma busca
intensa de resposta às grandes indagações e desafios em relação ao judaísmo, cuja fonte
nasceu e desenvolveu o cristianismo e de estudos bíblicos com pequenos grupos, indagados,
inúmeras vezes, sobre como as primeiras comunidades cristãs interpretavam as Escrituras.
Que tipo de leitura os autores do Segundo Testamento 1 e as primeiras comunidades
cristãs utilizaram para apresentar a fé nascente? Teria Jesus rompido com sua cultura e com
o seu povo para dar início a um novo movimento, o Cristianismo? Percorrendo os caminhos
da Exegese e Hermenêutica bíblica existentes, percebe-se que o método midráshico, utilizado
pelos rabinos para conservarem e atualizarem as Escrituras é o ponto de partida dos
hagiógrafos neotestamentários que, com sabedoria, procuraram apresentar os
acontecimentos de Jesus a seus contemporâneos à luz das categorias e técnicas próprias do
judaísmo da época.
Constata-se, pelas pesquisas e sistematizações feitas em torno do Segundo
Testamento, a necessidade da análise destes textos, a partir da tradição rabínica, que era
transmitida nas sinagogas pelos fariseus do século I d.C., por meio do método midráshico. A
busca para compreender o Segundo Testamento pelo midrash se integra fortemente ao
método histórico-crítico, porque permite ampliar o horizonte cultural, que deu origem ao
texto. Sem essa base, tornar-se-ia difícil entender como os hagiógrafos neotestamentários
trabalharam, para dar corpo à fé nascente, afirmando que, na pessoa de Jesus de Nazaré, se
deu o “cumprimento das profecias reveladas”.Contudo, por meio do método midráshico é
possível perceber, com clareza, que as Escrituras têm um sentido próprio para todas as
situações e épocas.
Compreende-se por Escritura, aquilo que a literatura cristã designava como “Escritura
hebraica” ou “Antigo Testamento”. No Segundo Testamento, a expressão “Antigo
1
Usaremos o título “Primeiro Testamento” para evitar a conotação negativa que se poderia atribuir a
“Antigo Testamento”, e “Segundo Testamento” para se referir ao “Novo Testamento”. (cf. PCB, p. 52)
93
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
Testamento” aparece somente uma vez, em 2Cor 3,14. É importante compreender que os
primeiros cristãos, que eram judeus, liam as Escrituras da maneira que se fazia na sinagoga,
como observa o Dicionário Internacional do Novo Testamento (2000, p.696):
Para eles, portanto como para todos os demais judeus, a Bíblia era
“Escritura Sagrada”, o fundamento, a regra e o alvo para a fé e a vida. Nela,
encontravam a Palavra viva de Deus, experimentada mediante a
interpretação como mensagem pessoal, e, originalmente, transmitida nesta
forma pela palavra falada, e preservada intacta através do poderda memória.
Para Bloch (1954), do “ponto de vista histórico, é a partir do exílio e, sobretudo com a
restauração e o período persa, que a Torah ocupa o lugar central na vida de Israel”. A
experiência de sofrimento no exílio produziu em Israel, através da profecia, a esperança de
uma transformação nacional. E motivada por esta convicção é que Israel busca nas Escrituras
a base para a reconstrução de sua identidade enquanto povo, e também sua reorganização
política, social, econômica e religiosa.
O teólogo Ramos nos convida a refletir e compreender os diversos significados do
termo hebraico Torá:
94
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
A Torá Oral sempre precede a Torá Escrita, pois ao mesmo tempo em que a lei (Torá)
foi dada no Sinai, esta deve ter sido acompanhada por uma Tradição Oral.
A partir do momento em que as Escrituras são reconhecidas como norma para a vida
de Israel, ela é incessantemente lida, comentada e atualizada em vista da prática. Por isso, ela
é objeto de pesquisa, estudo e interpretação. É nesse estudo da Torá que situamos o midrash
como um dos métodos típicos, utilizados pelos rabinos para investigação, interpretação e
aplicação da Torá.
O midrash
O termo midrash vem da raiz hebraica vrd (darash) que significa “buscar”, “investigar”,
“estudar”, “examinar”, “explicar”, “interpretar” as Escrituras. É frequente sua ocorrência na
Bíblia, significando “busca”, “investigação”, conforme Dt 13,15; Esd 7,10; Is 55,6; Am 5,4; 6,14;
Sl 34,6 etc. Entretanto, midrash, como substantivo, encontra-se pela primeira vez em 2Cr
13,22 e 24,27. Contudo, o sentido nos dois textos é incerto, pois, segundo Avril e Lenhardt
(2018) o midrash é a “Leitura-busca”.
O midrash, no sentido de busca e procura, é utilizado, quando as Escrituras se referem
à procura ou à busca do Senhor: “Procurai o Senhor enquanto pode ser encontrado; e procurei
o Senhor, e Ele me respondeu” conforme Is 55,6; Am 5,4; 5,6; 14; Sl 34,6. O verbo vrd implica
uma pesquisa intensa e um esforço inerente à vontade de encontrar o procurado. Aplicado às
Escrituras, significa pesquisar o sentido da Palavra de Deus, teológica e praticamente e, em
última análise, procurar o próprio Deus em sua Palavra.
Obviamente, essa busca precisa de um espaço concreto para ser realizada. É no texto
de Ben Sirac, Eclo 51,23 que o midrash aparece como uma atividade realizada na Casa de
Estudo – vrdmh tiyb>. Segundo Pérez e Fernandez (2000) é por isso que encontramos na
literatura rabínica o estudo da Torah e da exegese como uma das principais atividades
desenvolvidas na casa de estudo. Na antiga literatura rabínica, o termo designa tanto o
95
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
resultado do estudo quanto uma obra literária, que resulta do estudo interpretativo de um
texto das Escrituras.
Para Rathaus (1976), é precisamente em vista da compreensão da Torá que o midrash
adquire o sentido preciso de interpretação e exposição do texto bíblico. Esse minucioso
trabalho se deve aos Mestres da Mishná e do Talmud que, durante os quatro ou cinco
primeiros séculos de nossa era, se dedicaram exclusivamente ao estudo e interpretação da
Torá. Na mesma direção de pensamento, afirma Bloch:
96
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
b) Midrash haggadah
O Haggadah vem do radical dgn: narrar, contar, relatar, e diz respeito a tudo o que, na área
da interpretação, não visa à norma de conduta, mas às crenças, à teologia.
Haggadah (plural Haggadot). Vem do verbo Lehaguid “narrar, contar,
referir”. Gênero da interpretação midráshica realizada sobre narrações
bíblicas. Aparece desenvolvida nas obras de Gênesis Rabbah e Levítico
Rabbah. (TREBOLLE, 1996, p. 696)
Na verdade, de acordo com a índole desses tipos de midrash, a halakah se referia quase
que exclusivamente ao Pentateuco, enquanto que a haggadah se estendia a qualquer livro da
Bíblia hebraica. Com o passar do tempo, torna-se a se chamar midrash (VARQUEZ, 1995, p.47).
Depois da volta do exílio, a partir de Esdras, a Palavra de Deus (Torá Oral e Escrita)
ocupa o lugar central na vida da comunidade. Ela precisa ser lida, interpretada e atualizada.
Toda ação rabínica desse período e dos subsequentes foi a atividade exegética de estudo e
interpretação da Bíblia. Segundo Ketterer e Remaud (1996, p.10), “este trabalho intenso de
pesquisa e estudo do texto bíblico desencadeou-se num processo gradativo de maneira
especial nos dois centros importantes da vida judaica: a Sinagoga e a Casa de Estudo”. Foi em
função do estudo e da aplicação da Torá que os rabinos desenvolveram uma técnica e uma
mística de interpretação, pois de um lado, se defrontam com um texto sagrado inalterável e,
de outro, a necessidade de aplicá-lo às situações novas.
Por meio da palavra PaRDeS,2 os rabinos desenvolveram quatro níveis de leitura ou
interpretação das Escrituras. Cada consoante da palavra – P R D S indica um modo de
interpretação das Escrituras, tais como: Peshat, Rémez, Derash, e Sod, respectivamente.3
2
A expressão hebraica – sdrp –PaRDeS significa literalmente horta, pomar ou jardim. Esta tradução
simboliza a riqueza de pensamento e inspiração que poderá surgir dos textos sagrados, se soubermos
como cultivá-los e como colher os frutos mais difíceis de alcançar. (Cf. BUNIM. A Ética do Sinai..., p.
5).
3
Para uma melhor compreensão sobre o PaRDeS, enquanto leitura e interpretação da Escritura,
recomendo a leitura do terceiro capítulo - A Sagrada Escritura: um jardim (PARDES) a ser
conhecido (RAMOS. Por trás das Escrituras – uma introdução à exegese judaica e cristã, p. 43-44)
97
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
2º A unidade entre as diversas partes da Escritura: para “os exegetas midráshicos, não
só estão unidas as três partes da Escritura (Pentateuco, Profetas e Escritos), mas também as
diversas partes dos próprios livros da Bíblia” (ÁGUA PÉREZ, 2000).
3º Escritura explica a Escritura: da unidade que liga toda a Bíblia, seus livros e suas
diversas partes, indica que a Bíblia deve ser explicada por ela mesma. É nela que se encontra
a plenitude de sentidos. Tanto Munõz Leon (1987), como Água Pérez (2000) afirmam que o
ponto de partida que justifica a exegese midráshica é a plenitude de sentidos que o texto
bíblico contém. Munõz Leon (1987) sintetiza esta plenitude de sentidos da seguinte forma:
98
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
“Na Torah não há um antes nem um depois; na Torah, há setenta faces e o que não está na
Torah, não está no mundo. Ou a Torah se explica pela Torah”.
Na verdade, a exegese midráshica procura mostrar que a Escritura possui uma
pluralidade de sentidos e, que eles, só serão compreendidos mediante um esforço e uma
busca exegética realizados no processo de “escavar” o texto, para compreender, atualizar
(midrash) e aplicá-lo às diversas circunstâncias da vida.
Nota-se que a leitura exegética rabínica das Escrituras possui suas raízes e fontes no
período do final do século I e início do II de nossa era. Segundo Barrera (1996, p.141) “Era
costume ler a Torah na manhã de sábado, no I século, tanto em Israel (At 15,21) como na
diáspora”. O próprio texto do evangelho segundo São Lucas 4,14-22, ressalta este costume de
ler a Escritura aos sábados nas Sinagogas. Para a Pontifícia Comissão Bíblica (PCB, 2002, p.53)
“Jesus ensina nas sinagogas ao modo da cultura do mundo circundante”. Este procedimento
é muito claro em Lucas 4,14-22, mostrando que Jesus entrou em dia de sábado na Sinagoga,
onde lhe foi entregue o livro da Torá, com a profecia de Isaías (Is 61,1-2). Jesus faz a releitura
do texto e, por meio do midrash, afirma que “hoje essa profecia se cumpriu”. O específico
desta releitura é que ela é feita à luz de Cristo.
O midrash como exegese cristã, segundo Água Pérez (1985) é encontrado na
passagem de Lucas 24 (os “discípulos” de Emaús) sob três aspectos fundamentais:
99
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
Em Jesus Cristo, temos o cumprimento de toda a Torá. Para Munõz Leon (1987, p.55),
“a característica principal do midrash cristão parte da proclamação deste cumprimento,
buscando a confirmação na Escritura”. A diferença entre o midrash cristão e o midrash judeu
ocorre pelo fato de que, para o Judaísmo, as Escrituras são a Palavra de Deus que lida, relida
e atualizada, constitui o princípio normativo e jurídico que conduz a vida do povo. O midrash
é a própria Escritura revelada que, por meio da cadeia de transmissão, será atualizada de
geração em geração como resposta aos acontecimentos presentes.
Para os cristãos, o que ocupa o centro de sua atenção é o acontecimento Jesus Cristo.
Nele e por ele a Torá obteve o seu cumprimento. Segundo Água Perez (1985) o midrash cristão
é caracterizado como o midrash de cumprimento: “parte do dito frontal de Cristo e recorre ao
Primeiro Testamento para explicá-lo e confirmá-lo. O texto, a Palavra de Deus que explica o
dito é tirado de seu contexto para ser referido ao ministério de Jesus” (ÁGUA PÉREZ, 1985,
p. 84).
A natureza específica do midrash neotestamentário reside no fato de ser um midrash
do Cumprimento Messiânico. Para essa afirmação é que se buscam nas Escrituras (Primeiro
Testamento) a explicação e a confirmação. Contudo, os autores Lenhardt e Collin (1994, p.48,)
afirmam que “Jesus é aquele que transmite a tradição, e é, ao mesmo tempo, essa Tradição”.
Nele a Torá ganha seu cumprimento definitivo. Todavia, o midrash tanto no Judaísmo como
no Cristianismo é sempre uma leitura atualizante do texto no seu contexto.
Para uma melhor compreensão do midrash cristão, o Novo Testamento deve ser lido
e analisado no seu conjunto, que têm como o fundamento: “o cumprimento das Escrituras”.
(Collin; Lenhardt, 1994, pp.89-96) identificam três esquemas distintos de midrash nos escritos
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
pessoa e figura de Cristo. Para tal afirmação é que hagiógrafos neotestamentários recorrem à
tradição, buscando nos textos a iluminação que sirva de anúncio ou prefiguração do
acontecimento escatológico cumprido em Jesus de Nazaré. Trata-se de uma autêntica
releitura do Primeiro Testamento, verificada do ponto de vista da fé em Jesus. Segue alguns
exemplos dos textos do Segundo Testamento nos quais se atribuem a Jesus as tradições
messiânicas do Primeiro Testamento:
Filho do Homem(Mt 13, 36-43; 24, 30; 25, 31; Mc 8, 38;13, 26-27; Atos 7, 56; Ap 1, 13),
aplicado por Jesus mesmo, tirado da tradição apocalíptica por meio de um
procedimento Pêsher;
Jesus é proclamado o Messias segundo o messianismo davídico (2 Sm7; Is 6-12; 7, 10-
16; 9, 1-7 ; 11, 1-9; Mq 5, 1-4; Lc 1, 32-33; Mt 21,9);
Filho de Abraão (Mt 1, 1), bem como, os textos que afirmam a prefiguração de Cristo
na figura do Servo Sofredor do Dêutero-Isaías (Is 42, 1-7; 49, 1-6; 50, 4-9; 52, 13; 53,
12).
A tradição do Melquisedec, Sumo Sacerdote, é usada como tipologia da carta aos
hebreus para expor o sacerdócio de Cristo (Hb 7; remonta o Targum Neophyth I Gn
14, 18);
A serpente de bronze elevada por Moisés no deserto, como prefiguração da elevação
de Cristo na Cruz (Nm 21, 4-9; Jn 3, 14-15, 8, 28ss; 12, 32-24; 19, 37).
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
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Para Dodd (1977), o sentido de ego eimi- Eu sou nos faz perceber que Deus deu seu
próprio nome a Cristo. Recorda, também, que o nome no Primeiro Testamento está associado
à glória eterna de Deus. Portanto, a glória eterna de Deus, na teologia do Quarto Evangelho,
é atribuída a Cristo.
Na perspectiva dessa abordagem há, ainda, os outros elementos midráshicos,
implícitos como explícitos, atribuídos a Jesus por toda a literatura neotestamentária. Para
comprovar, encontramos no Evangelho segundo João as seguintes perícopes:
2. “Eu sou o pão da vida... Eu sou o pão descido do céu” (Jo 6,30-51) midrash Êxodo 16
o “Dom do Maná” reflete a prefiguração da Eucaristia e do mesmo Cristo como o pão
descido do céu. A interpretação e a atualização do texto consistem em mostrar Jesus
como o “Novo Êxodo”. Neste sentido, o Êxodo é uma etapa da história da salvação que
culmina no Evangelho.
3. “Eu sou a videira verdadeira” (Jo 15,1-8) o texto reflete midrashicamente a perícope
de Isaías 5,1-6, que mostra a designação de Judá e Israel como a “Vinha do Senhor”.
4. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 6,4) é interpretado sob a luz de toda a
Torá, as categorias: Caminho, Verdade e Vida são assumidas pela comunidade de Israel
como verdadeira realidade que conduz ao Senhor. A Torá é concebida por Israel como
Caminho da Verdade, que orienta a vida para o Senhor. É nessa perspectiva que João
afirma ser Jesus a Torá, Palavra encarnada e revelada plenamente para aqueles que
queiram andar nos caminhos da verdade e da vida.
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Este transfigurado cultural judaico, bem como a atividade literária desta escola são
percebidos particularmente na transposição cristã das grandes tradições de Israel por meio
dos discursos que constituem uma narrativa. Na mesma linha de pensamento o biblista
Konings vai afirmar:
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
Considerações finais
O caminho percorrido, por meio do midrash, nos fez perceber que o método
midráshico é todo um conjunto de passos que proporciona ao exegeta o meio para que possa
entender, com maior clareza, o modo e a forma com que os hagiógrafos neotestamentários
leram, interpretaram e compreenderam as Escrituras.
Notamos que o midrash, enquanto método exegético caracteriza-se por duas palavras-
chave: “atualizar” e “cumprir”. Foi a partir destas palavras que os hagiógrafos
neotestamentários sistematizaram o seu kerygma, a proclamação de sua fé.
O midrash, enquanto método exegético teve grande importância na formação e
transmissão das Escrituras: primeiro no interior do Judaísmo que através da leitura midráshica
desenvolveu toda uma técnica de interpretação, atualização e aplicação da Torá na vida
cotidiana; segundo, no Cristianismo que, por meio de seus leitores no contato com a Literatura
Rabínica, procuraram apresentar a pessoa de Jesus Cristo morto e ressuscitado como o
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION
REFERÊNCIAS
ÁGUA PEREZ, Agustín del. El método midrásico y la exégesis del Nuevo Testamento.
Valencia: San Jerônimo, 1985.
AVRIL, Anne e LENHARDT, Pierre. Introdução à leitura judaica da escritura. São Paulo:
Edições CCDEJ-Fons Sapientiae, 2008 (coleção judaísmo e cristianismo).
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista ampliada, São Paulo: Paulus, 2002.
BUNIM, Irving M. A Ética do Sinai. Ensinamentos dos Sábios do Talmud. São Paulo: Sêfer,
2001.
DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
DOCUMENTOS SOBRE A BÍBLIA E SUA INTERPRETAÇÃO. (1893-2010). São Paulo: Paulus, 2019.
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KONINGES, Johan. O Evangelho de São João. Amor e fidelidade. São Paulo: Vozes, 2000.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã.
São Paulo: Paulinas, 2002.
RAMOS, Marivan S. Por trás das Escrituras. Uma introdução à exegese judaica e cristã.
São Paulo: Edições CCDEJ-Fons Sapientiae, 2019. (coleção judaísmo e cristianismo).
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ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA INSTITUIÇÃO DA
EUCARISTIA
RESUMO
O propósito deste artigo é estabelecer uma comparação entre a perícope da epístola paulina: 1Cor
11,23-25 e as perícopes dos evangelhos sinóticos: Mc 14,22-25; Mt 26,26-29 e Lc 22,19- 20, sobre a
narrativa da instituição da eucaristia. Aplicou-se, de maneira introdutória, metodologias do campo da
exegese bíblica: disposição dos textos em sinopse, delimitação do texto bíblico e a análise de
quiasmo. A percepção deste estudo é que, apesar de mantida a tradição, cada autor sagrado tem
uma intencionalidade teológica diferente: Na epístola de Paulo, a prática da caridade é o núcleo da
mensagem. Nos Evangelhos sinóticos, a comunidade de Marcos e Mateus revela a mesma a
comunicação central: a vida de Jesus é a grande Ação de Graças, contudo Mateus considera novas
perspectivas em relação a Marcos. A fonte do evangelho Lucas é historicamente tardia, por isso
recebe grandes contribuições de: Marcos, Mateus, Fonte Q e tradição teológica própria. Por isso,
Lucas tem maiores condições de perceber e reconhecer que a Eucaristia é o memorial do sacrifício de
Cristo.
Palavras-chave: Exegese; Eucaristia; Exegese; Sinóticos; Literatura Paulina.
ABSTRACT
The purpose of this study is to establish a comparison between the pericope of the Pauline epistle: 1
Cor 11,23-25 and the pericopes of the synoptic gospels: Mc 14, 22-25; Mt 26,26-29 and Lc 22,19-20,
on the narrative of the institution of the Eucharist. Methodologies in the field of biblical exegesis were
applied in an introductory manner: provision of texts in synopsis, delimitation of the biblical text and
the analysis of chiasmus. The perception of this study is that, despite the tradition being maintained,
each sacred author has a different theological intent: In Paul's epistle, the practice of charity is the core
of the message. In the synoptic Gospels, the community of Mark and Matthew reveals the same central
communication: the life of Jesus is the great Thanksgiving; however Matthew considers new
perspectives in relation to Mark. The source of the Gospel Luke is historically late, so it receives great
contributions from: Mark, Matthew, source of information Q and its own theological tradition.
Therefore, Luke is better able to perceive and recognize that the Eucharist is the memorial of Christ's
sacrifice.
Keywords: Exegesis; Eucharist; Synoptics; Pauline Literature.
Considerações iniciais
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INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
A palavra Evangelho deriva do grego, que quer dizer: Boa Nova ou Boa
Notícia. Em sua origem, o vocábulo indica a declaração de vitórias de caráter
militar e os grandes feitos do Império. Sua significação religiosa intervém no
contexto do culto ao imperador. Paulo herda este termo de um uso forjado
pela tradição cristã helenista. A utilização dessa palavra em Paulo designa a
proclamação da Boa-Nova da salvação em Jesus Cristo (MARGUERAT, 2015,
p. 36).
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INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
isto em memória de mim’. 25 Do mesmo modo, após a ceia, também tomou
o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as
vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim”.1
METODOLOGIA
Para melhor compreensão dos conteúdos e mensagens contidos nas perícopes,
aplicou-se uma metodologia de análise de conjunto e isolada dos textos. Na análise de
conjunto, foi empregado respectivamente os seguintes procedimentos: Disposição dos textos
em colunas (DATTLER, 1986); comparação de repetições de palavras, análise de mudança nas
conjugações e tempos verbais nas orações, vocabulário próprio contido em cada texto.
Verificado o número de ocorrências, extraíram-se as palavras-chave contidas nos quatro
textos e pesquisou-se seus diversos significados no Primeiro Testamento.
Na análise individual das perícopes, foram utilizadas, de maneira introdutória,
ferramentas aplicadas no campo da exegese bíblica: delimitação do texto bíblico e a análise
estilística de quiasmo.
Finalmente com a obtenção das informações extraídas pelas duas análises e seus
respectivos tópicos, foi proposta, para cada uma das perícopes, uma reflexão teológica acerca
dos textos estudados, tendo como eixo principal de raciocínio a mensagem encontrada na
análise de quiasmo.
1
Todas as citações bíblicas contidas neste estudo são retiradas da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
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ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
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Senhor Jesus tomou o discípulos, disse: é o meu corpo”. que é dado por
pão 24e, depois de dar "Tomai e comei, isto é 23
Depois, tomou um vós. Fazei isto em
graças, partiu-o e o meu corpo". cálice e, dando graças, minha memória”.
27 20
disse: "Isto é o meu Depois, tomou um deu-lhes e todos dele E, depois de
corpo, que é para vós; cálice e, dando graças, beberam. 24E disse- comer, fez o
fazei isto em memória deu-lhes dizendo: lhes: “Isto é o meu mesmo com o
de mim". 25Do mesmo "Bebei dele todos, sangue, o sangue da cálice, dizendo:
28
modo, após a ceia, pois isto é o meu Aliança, que é “Este cálice é a
também tomou o sangue, o sangue da derramado em favor nova Aliança em
cálice, dizendo: "Este Aliança, que é de muitos.25Em meu sangue, que
cálice é a nova Aliança derramado por muitos verdade vos digo, já é derramado em
em meu sangue; todas para remissão dos não beberei do fruto favor de vós”.
as vezes que dele pecados. 29Eu vos digo: da videira até aquele
beberdes, fazei-o em desde agora não dia em que beberei o
memória de mim". beberei deste fruto da vinho novo do Reino
videira até aquele dia de Deus”.
em que convosco
beberei o vinho novo
no Reino do meu Pai".
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tomou o cálice,
sangue, que é Isto é o meu sangue, o dizendo: "Este cálice é
- -
derramado sangue a nova Aliança em
meu sangue;
Cálice Não beberei - - -
Fruto da videira até aquele
Dando graças - - -
dia em que
- Beberei o vinho novo - - -
- Reino - - -
Tabela 1: Palavras literais encontradas no texto.
115
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A centralidade dessa mensagem em Marcos pode nos comunicar que Deus aceitou, de
bom grado, a oferta de Jesus e por sua Ação de Graças, estamos em comunhão com Deus.
Marcos, sendo o primeiro escritor evangélico, também tem a preocupação de anunciar a
urgente conversão dos crentes, pois em sua concepção teológica, a segunda vinda de Jesus
(parusia) estaria muito próxima; por isso, o evangelista não se prende em debates. A palavra
sangue é empregada três vezes: duas no sentido de aliança de sangue e uma no sentido de
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martírio. O evangelho de Marcos foi escrito para justificar e dar uma resposta à comunidade
pela morte do apóstolo Pedro (MARGUERAT, 2015).
Se Pedro, que esteve bem próximo de Jesus, teve um fim trágico, quanto mais os
crentes que ainda estavam no início do caminho. Como seria também o fim deles? Valeria a
pena seguir Jesus? O contexto histórico é que a comunidade estava passando momentos de
perseguições. O objetivo de Marcos é mostrar que Pedro percorreu o caminho, seguiu Jesus
até as últimas consequências. O evangelho também tem o intuito de mostrar quem é Jesus, e
que vale a pena o seu seguimento (MARGUERAT, 2015). Não seria então equivocado dizer que
Marcos escreve para exortar à comunidade que permaneça firme nas promessas de Deus, pois
a aliança com Jesus foi feita e o Reino de Deus está próximo. Deus não volta atrás nas suas
promessas.
Em Mc 14,25 é dito: “Em verdade vos digo, já não beberei do fruto da videira até aquele
dia em que beberei o vinho novo do Reino de Deus”, as palavras: aquele dia/Vinho Novo/Reino
de Deus, é possível que tenha denotações imediatistas. Esta conclusão pode ser respaldada
pelo fato de este evangelho ser anterior à destruição do Templo de Jerusalém, considerado a
morada de Deus. Certamente, os conflitos, tensões, perseguições, formas da escrita e
concepções de movimento apocalíptico na época sinalizaram a urgência da conversão.
O Centro da mensagem teológica na perícope de Mc 14,22-25 é dar graças (Eucaristia).
O evangelista quer transmitir perseverança e firmeza na fé, mesmo diante das perseguições e
dificuldades das comunidades em seu contexto histórico, pois em Jesus, Deus mostrou que
cumpre e cumprirá a sua fidelidade às promessas. “A comunidade anseia pela parusia de Jesus
e a conclusão escatológica da história” (DOUGLAS, 2006, p. 222).
120
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2
“A festa de Yom kipur é o dia em que Deus perdoa os pecados do Povo. Esse dia é conhecido pelos os judeus
como o grande dia, os dias terríveis, o dia do julgamento” (NETO, 2007, p.32).
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sacerdócio? É possível pensar que a comunidade estava percebendo que Jesus seria o novo
Yom Kippur? Certamente, as epístolas de Paulo vão influenciar diretamente esse olhar sobre
Jesus. Em Mc 14,24e está escrito: em “favor de muitos”. O segundo elemento refere-se ao
que vem escrito em Mt 26,29d “deste fruto da videira até aquele dia em que convosco beberei
o vinho novo no Reino do meu Pai". A palavra “convosco” é nova em relação a Marcos: indica
estar junto, com vocês. Possivelmente o evangelista quer mostrar a presença de Jesus na
comunidade e ressaltar a comunicação de seu Espírito. Provavelmente fosse um passo para
responder à superação da parusia imediata? Sabe-se que videira, vinho e reino são termos
teológicos e que possuem uma profundidade imensa no Primeiro Testamento, ligadas ao povo
de Israel, tempos messiânicos e soberania de Deus (STERN, 2007).
Outra citação que em Mateus é colocado de modo diferente, se dá por meio da
expressão: “Reino do meu Pai”. Em Marcos está escrito: “Reino de Deus”. Mostra que a
comunidade de fato vê em Jesus uma relação de proximidade com Deus (Abba - paizinho em
hebraico). Para Jesus, Deus não é somente Deus (que é claramente grandioso), mas é também
“paizinho”. Indica, portanto essa íntima relação singular de Jesus com Deus.
A mensagem teológica, portanto, em Mt 26, 26-29 é semelhante a Mc 14, 22-25, pois
possui a mesma comunicação central, porém há indícios de uma nova perspectiva da atividade
de Jesus: que a comunidade estivesse substituindo o ritual de Yom Kippur, pelo perdão dado
por Jesus, já que Jesus possuía uma íntima relação com o Deus de Israel? Ainda que seja uma
ideia embrionária, essa última afirmação é bastante plausível pois, ao longo da narrativa
mateana, mostra que Jesus é capaz de perdoar pecados, sendo que para a tradição judaica,
somente Deus é capaz de tal gesto. Um trecho do evangelho de Mateus que pode alcançar
essa compreensão é a perícope de Mt 9, 1-8:
“1E entrando em um barco, ele atravessou e foi para a sua cidade. 2Aí lhe
trouxeram um paralítico deitado numa cama. Jesus, vendo tão grande fé,
disse ao paralítico: ‘Tem ânimo, meu filho; os teus pecados te são
perdoados.’ 3Ao ver isso alguns dos escribas diziam consigo: ‘Está
blasfemando’. 4Mas Jesus, conhecendo os seus pensamentos, disse: ‘Por
que tendes esses maus pensamentos em vossos corações? 5Com efeito, que
é mais fácil dizer 'Teus pecados são perdoados', ou dizer 'Levanta-te e
anda'? 6Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem poder na
terra de perdoar pecados...’, disse então ao paralítico: ‘Levanta-te, toma tua
cama e vai para casa’. 7Ele se levantou
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O centro da perícope é: Fazei isto em minha memória, pois carrega uma profundidade
ímpar no judaísmo.
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INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
Vários elementos deixam transparecer que, na perícope Lc 22, 19-20, Lucas faz
referência ao ritual de Seder da Pessah,3 pois há a presença de elementos intrínsecos. Neste
ritual, o evangelista estabelece uma comunicação nova: Jesus é nova Páscoa.
“Lucas é o único dos quatro escritores que descreve o estabelecimento da
Nova Aliança (B’rit Chadashah) que menciona tanto um cálice antes da
refeição [...] e outro depois [...] O seder requer quatro cálices: dois antes da
refeição e dois depois. Cada um está relacionado com uma das promessas
de Deus em Êxodo 6, 6-7 [...] O terceiro dos quatro cálices (Lc 22,17a),
correspondendo a Êxodo 6,6-7 “e vos resgatarei”. Assim Yeshua usou o
“cálice da redenção”, como o terceiro cálice é chamado, para inaugurar a
Nova Aliança, a qual redime do Egito, da escravidão do pecado, a todos que
confiam em Deus e em seus Messias. [...] A Nova Aliança renova e restaura o
que a Aliança Mosaicaprometeu ao povo judeu. (STERN, 2007, p. 106-107).”
Lucas assimila que as ações de Jesus e a Ceia Pascal estão intimamente ligadas. Comer
o pão e beber do cálice é restaurar a Aliança de libertação. A partir da experiência do
ressuscitado, Jesus se torna critério para seus seguidores, de releitura e interpretação das
tradições de Israel. Lucas conserva a tradição recebida de diversas fontes, e retoma a tradição
paulina, ampliando a sua interpretação histórica e teológica, conforme visto na análise da
perícope 1Cor 11,23-25, ressignificando, de maneira mais clara, o ritual da Páscoa do Primeiro
Testamento. O evangelista vai percebendo e amadurecendo teologicamente que Jesus se
utiliza do memorial judaico, da sagrada ação litúrgica do judaísmo e de elementos
previamente conhecidos na tradição de Israel, para exercer a sua ação libertadora e salvadora,
realizada de uma vez por todas.
A Eucaristia é a nova Páscoa, a nova Aliança, não no sentido de substituição da Páscoa
do Primeiro Testamento, mas de sua plenificação. A Páscoa de Jesus não tem ruptura ou
descontinuidade com a antiga (Êxodo), mas ao contrário, é seu cumprimento absoluto. É a
continuidade da História da Salvação, prometida desde o Primeiro Testamento, agora
concretizada em Jesus de Nazaré. A celebração da Ceia do Senhor vai tomando forma e
ganhando novos elementos ao longo da história e da literatura dos evangelhos.
Considerações Finais
3
“Refeição da Páscoa: É o ritual estabelecido em Êxodo 12,1-16, para celebrar a libertação dos judeus da
escravidão egípcia e seu estabelecimento como uma nação e como povo de Deus” (STERN, 2007, p. 101).
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ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
REFERÊNCIAS
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INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
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DISCURSIVA RELIGIOSA
LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO DISCURSIVARELIGIOSA
RESUMO
Este artigo tem como tema uma leitura do discurso religioso católico, considerando a cenografia
que movimenta o gênero de discurso sermão, proferido durante o rito sacramental. Nosso
objetivo é propor uma leitura do discurso religioso, identificando a forma como o enunciador
constrói uma cenografia, cujos recursos linguístico-discursivos conferem eficácia a seus
enunciados. O aporte teórico-metodológico que fundamenta nosso estudo é da Análise do
Discurso de linha francesa (AD), nas perspectivas enunciativo-discursivas propostas por
Maingueneau (2000, 2002, 2008). Selecionamos como corpus um sermão proferido oralmente
pelo Padre Antonio Geraldo Della Costa, sacerdote gaúcho da Congregação dos missionários de
São Carlos, durante a missa de Páscoa, no dia 31 de março de 2013 e postado no dia seguinte
em Liturgia Diária Comentada, blog católico de reflexões sobre a liturgia diária. Partimos da
constatação de que os discursos sobre manifestações de religiosidade devam se beneficiar das
pesquisas linguísticas, para acionar a produção de efeitos de sentido materializados em textos
desse campo discursivo. A análise evidenciou que o teológico e o religioso dialogam na
cenografia e garantem unidade ao discurso, estabilizando-o em um acordo tácito, referendado
no/pelo enunciado assim seja, celebrado e firmado no sermão. Por isso, o evento bíblico e o dito
no sermão se sustentam reciprocamente como verdade e instauram um crer-dever-fazer.
ABSTRACT
This article is about the reading of catholic religious discourse, considering the scenography that
moves the sermon discourse genre, pronounced during the sacramental rite. Our purpose is
offering a reading of religious discourse, identifying the mode of how the enunciator build the
scenography, whose linguistic-discursive resources gives effectiveness to his statements. The
theoretical-methodological contribution that grounds our study is the French line discourse
analysis, in enunciative-discursive perspectives proposal by Maingueneau (2000, 2002, 2008).
We selected the sermon corpus orally read by the Priest Antonio Geraldo Della Costa, priest of
the missionary congregation of São Carlos, during the easter mass, on march 31, 2013, and
posted the following day at the “Liturgia Diária Comentada”, a catholic blog with reflections
about daily liturgy. We started from the findings that the discourses about manifestations of
religiosity should benefit from linguistic research to trigger the production of sense effects
materialized in texts from this discursive field. The analysis evidenced that the theological and
the religious dialogue in the scenography and guarantee unity to discourses, stabilizing him in a
unspoken agreement, endorsed in/by the statement so be it, celebrated and signed in the
sermon. Therefore, the biblical event and the saying in the sermon are mutually supportive as
truth and establish a believe - to owe - do.
Keywords: discourse analysis, scenography, sermon, reading
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LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO CADERNOS DE SION
DISCURSIVA RELIGIOSA
Neste artigo propomos uma leitura do discurso religioso católico com especial
atenção à dupla cenografia que ocorre no gênero de discurso sermão, proferido no rito
sacramental. Partimos da constatação de que os discursos sobre manifestações de
religiosidade devam se beneficiar das pesquisas linguísticas, para acionar a produção de
efeitos de sentido materializados em textos desse campo discursivo. Nas últimas
décadas, a emergência de novas igrejas e os estudos delas e de suas expressões de fé
têm evoluído muito, principalmente pela interdisciplinaridade que opera com diferentes
campos do conhecimento de modo particular, com as vertentes linguísticas mais
estabilizadas e validadas na academia.
Nosso objetivo é propor uma leitura do discurso religioso católico, procurando
mostrar a forma como o enunciador constrói a cenografia no gênero de discurso
sermão, proferido no rito sacramental, cujos recursos linguístico-discursivos conferem
eficácia a seus enunciados. Buscamos, também, contribuir com as discussões que
abordam a leitura como uma negociação de efeitos de sentido, enfocando as regras de
organização do gênero de discurso sermão que, por meio de uma dupla encenação -
ritualizada e social – legitima as formações discursivas da Religião católica, na
enunciação. A partir da hipótese do primado do interdiscurso, ou seja, de que o
interdiscurso precede o discurso (Maingueneau, 2008), queremos mostrar como o
enunciador se apropria da constituência do discurso teológico para organizar o espaço
de interlocução, onde transitam estratégias de tomada da palavra.
No que se refere aos procedimentos metodológicos adotado, nosso percurso se
organiza em dois momentos: em primeiro lugar, apresentamos as condições sócio-
históricas de produção do discurso que selecionamos, considerando sua situação
retextualizada, a forma como o rito sacramental, por meio de gestos simbólicos, faz
presentificar o divino e o secular, resultando na condição religiosa do discurso, que se
configura, in essentia, por meio do interdiscurso teológico; em seguida, apresentamos
as noções de interdiscurso e cenografia que retiramos de Maingueneau (2008). Para ele,
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Afirma, também, Maingueneau (2008) que a noção de cena de enunciação faz com que
o discurso se organize em um espaço que, ao mesmo tempo, é instituído pelo gênero
de discurso e pelo próprio discurso. Deste modo, o gênero é a instituição de fala que
une o discurso ao social, pois nele e por ele os interlocutores assumem determinados
papéis.
A cenografia é a encenação que, ao desenvolver-se, instala seu próprio
dispositivo de fala. Ou seja, no discurso, a cenografia se desenvolve para se legitimar e
concretizar seu processo de inscrição no discurso, por meio de um enunciador e um co-
enunciador, um ethos, um código linguageiro, uma topografia e uma cronografia. Esses
elementos, de certo, sustentam a cenografia, à medida que emergem no discurso como
os mais apropriados para aquele evento comunicativo. Temos, então, o que
Maingueneau (2013; p. 98) chama de enlaçamento paradoxal, ou seja, o que é dito
legitima o modo de dizer e vice-versa.
O sermão, em análise, é tomado como uma prática discursiva, está
necessariamente contextualizado e, segundo Maingueneau (2001), inserido em uma
cronologia e em uma topografia que possibilitam ao leitor associar a cena englobante, a
cena genérica e a cenografia. A cena englobante do discurso selecionado é do tipo
religioso, na medida em que operacionaliza o interdiscurso teológico e destaca em sua
organização o comportamento humano em relação a Deus, princípio e fim. Isso revela
que, no funcionamento discursivo, há marcas e mecanismos, que indiciam
interlocutores, espaços e tempos da enunciação, bem como posicionamentos que são
de responsabilidade do enunciador e da instituição a que ele filia. O interdiscurso,
revelado pelo discurso constituinte teológico, retirado de João 20, 1-9, confirma-nos o
quadro cênico do discurso. O tema do discurso - a vida vencendo a morte - recupera o
acontecimento do Cristo ressuscitado relatado por João, mobiliza o evento pascal, que
é compartilhado na enunciação pelas instâncias que interagem no ritual, formando, por
conseguinte, uma memória coletiva em torno da páscoa.
Embora pareça que a cena englobante defina o tema do discurso, o que, de fato,
o define são as peculiaridades das formações discursivas impostas pelo sujeito no
tratamento do tema e os procedimentos que ele realiza para se comunicar na
cenografia. É bom esclarecer, também, que, a condição de estabelecer uma tipologia
para esse discurso, não significa que a cena englobante sozinha seja suficiente para lê-
134
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DISCURSIVA RELIGIOSA
lo. Desse modo, faz-se necessário identificar, no processo de leitura, a cena genérica, os
papéis assumidos pelo sacerdote e pelos fieis, na enunciação, e considerar a condição
de ritualização, quando da apreensão da cenografia. Ainda que o gênero de discurso
sermão seja uma forma de enunciar já conhecida nos meios culturais e religiosos pelas
funções que o viabiliza é a cenografia que o leitor coloca em primeiro plano. Por isso,
com base em Maingueneau, asseguramos que é a cenografia que torna possível ao leitor
sua conduta no processo de negociação de efeitos de sentido no discurso.
Observamos, ainda, no funcionamento discursivo que o sacerdote, sujeito da
enunciação, no sermão, encena uma dupla cenografia: uma decorrente do ritual onde
circulam ele próprio, o enunciador e os coenunciadores, e outra cenografia decorrente
de um evento social, marcado por fatores sociais e religiosos reveladores do cotidiano
dos participantes da missa. Para esclarecer melhor a importância do ritual sobre o
enunciador e a cenografia, lembramos Foucault (2003, p 39), quando afirma que:
O ritual define a qualificação que devem possuir os
indivíduos que falam [...]; define os gestos, os
comportamentos, as circunstâncias, e todo o
conjunto de signos que devem acompanhar o
discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta
das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se
dirigem os limites de seu valor de coerção.
Desse modo, pelo ritual, o enunciador projeta uma cenografia em que há uma
manifestação de um evento espiritual e outra em que é construído um evento secular.
Neste sentido, espiritual e temporal se impõem coercitivamente na enunciação e criam
duas encenações paradoxalmente complementares, que instauram um ato de leitura a
ser lançado sobre o sermão. Os efeitos de sentido possíveis produzidos neste discurso
dependem de um processo de negociação que advém também do posicionamento
enunciativo do leitor.
Assim, para os objetivos deste artigo, é importante reafirmar que esse discurso
religioso se constitui na condição de ritualizado e define-se na relação entre Deus e o
homem, que, no/pelo ritual, atualiza pelo interdiscurso a manifestação terrena/humana
da transcendência. Ora, no ritual, quebra-se a assimetria entre o sagrado e o profano,
entre o espiritual e o temporal, fazendo com que o sacerdote assuma a ordem do divino,
que se atualiza no humano. Por isso, é pressuposto fundamental para a leitura do
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discurso. Esta condição faz com que esse hiperenunciador preencha a cenografia e
possibilite a presença cênica de seguidores de Jesus. Essa atitude do hiperenunciador
confere ao sermão um enquadramento simbólico, configurando uma topografia em que
a manifestação de Maria Madalena, Pedro e João pode levar os co-enunciadores a se
identificarem com eles e aderirem a uma ou outra de suas atitudes de fé, conforme
retomamos nos recortes a seguir. Maria Madalena, Pedro e João cada um de uma
maneira e segundo sua disposição interior tem em comum pressa para encontrar Jesus.
Retomamos agora o recorte (3) Maria Madalena, no "primeiro dia da semana"
(ou de um novo tempo), ainda "no escuro" procura no túmulo o Cristo morto. Diante do
túmulo vazio, pensa que haviam roubado o corpo do Senhor. Mas quando ela o encontra,
a fé desponta em seu coração. * Ela representa a nova comunidade, que inicialmente
acredita que a morte triunfou e vai procurar Jesus morto no sepulcro. Diante do sepulcro
vazio, percebe que a morte não venceu e que Jesus continua vivo.
Neste recorte, é possível observar que, no domingo de manhã, Maria Madalena,
a discípula mais dedicada a Jesus, acostumada a andar pelo jardim onde Ele havia sido
sepultado, fora surpreendida pelo túmulo vazio. Este aspecto narrativo da cenografia,
embora legitime, valide e traduza a narrativa do evento bíblico, traz à memória uma
mulher afetuosa, que assume no discurso teológico e no funcionamento do discurso
religioso uma atitude de fé no Cristo vivo, capaz de suscitar efeitos de credibilidade
decorrentes da interdiscursividade e da ritualização. Neste sentido, Maria Madalena,
nesta nova encenação, é reatualizada pelo enunciador do sermão para convidar os co-
enunciadores a lembrarem da figura de Jesus vivo e em sua plenitude. Maria Madalena,
certa de que o túmulo estava vazio, questiona-se a si e sua fé para confirmá-la e corre
para lembrar os sujeitos Pedro e João. Os enunciados que organizam a cenografia
evocam, na memória discursiva, o interdiscurso teológico e, por ele,
reatualizam/recriam, no sermão, o mito do jardim do Éden, denotando uma dimensão
criativa da leitura discursiva. O jardim em que Maria Madalena constatara o sepulcro
vazio expande o processo de leitura e possibilita-nos transcender a racionalidade
humana e relacionar esta narrativa com a história primordial de Adão e Eva em que
Madalena é identificada pecadora como Eva, mas Maria como a Virgem.
Além disso, de um lado, Maria Madalena encerra a certeza da ressurreição de
Jesus e, de outro, Pedro mostra lentidão em crer na páscoa de Jesus, conforme
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encenado no recorte (4) - Pedro, para quem a morte significava fracasso, recusava
aceitar que a vida nova passasse pela humilhação da cruz. Para ele a Ressurreição de
Jesus era uma hipótese absurda e sem sentido. Com surpresa, ele viu o túmulo vazio e os
panos dobrados... Mas continuou "no escuro": "Viu e não creu". * Ele representa o
discípulo que tem dificuldade em aceitar que a vida nova passe pela humilhação da cruz.
Chamado por Maria Madalena, Pedro, o chefe dos apóstolos, vai até o jardim
onde se encontrava o sepulcro de Jesus, examina-o cuidadosamente, mas demorou a
acreditar que ele estivesse vazio. Os fatos postos em cena ganham condição de
realidade e de acontecimento real, pois que o enunciador, para validar o sermão, evoca
a voz a um hiperenunciador, identifica-se com ele e mobiliza a cenografia. Da mesma
forma que Maria Madalena, assim Pedro e João são construídos no sermão como
sujeitos reais, criando nos co-enunciadores um efeito de verdade sobre a narrativa que
integra a cena enunciativa. Assim, como uma atividade discursiva, as relações entre
Maria Madalena, Pedro e o discípulo que Jesus amava legitimam a enunciação, ao
mesmo tempo suas atitudes particulares garantem não somente a pertinência do
interdiscurso teológico, mas também o reatualiza na cenografia do sermão,
reivindicando dos co-enunciadores uma adesão particular e comunitária do que se vive
no ritual.
No entanto, a referência ao discípulo que Jesus amava no interdiscurso e a
omissão de seu nome (João) expressa uma relação de alteridade que esse sujeito
assume na cenografia. Neste sentido, João, o escritor do texto do evangelho,
interpelado como sujeito, mostra-se como se somente ele pudesse ser vislumbrado, a
partir do olhar de Jesus, com o qual estabelece ainda uma unidade na cenografia,
conforme lemos no recorte seguinte:
Recorte (5) - "O Discípulo que Jesus amava" (João), diante do sepulcro vazio,
compreende os sinais e percebe que a morte não pôs fim à vida. Descobre que Jesus está
vivo. Por isso, ele "viu e acreditou". É a primeira profissão de fé na Ressurreição. * Ele
representa o "discípulo ideal", que está em sintonia total com Jesus. É o paradigma do
homem novo recriado por Jesus. O "Amor" conduz o discípulo pelo itinerário da fé...* Por
que não tem nome? Para que cada um de nós possa incluir o seu nome e compreender o
que deve fazer para ser como Jesus quer. - E nós conseguimos ver apenas os sinais de
morte como Pedro, ou sabemos descobrir os sinais da Ressurreição?
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REFERÊNCIAS
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LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO CADERNOS DE SION
DISCURSIVA RELIGIOSA
NASCIMENTO, Jarbas Vargas et alii. A Parábola do filho Pródigo. São Paulo: LPB, 2009.
ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983.
PAPA PAULO VI. Evangelli Nuntiandi. Disponível
em: <http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_exhortations/documents/
hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi_po.html> Acesso em: 02 set. 2017.
POSTER, Mark. The mode of information. Chicago: The University of Chicago:
Press, 1996.
---------------------. A segunda era dos media. Tradução Maria J. Taborda e
Alexandra Figueiredo. Oeiras: Celta:, 2000.
142
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION
Michel Sakr
L’auteur est un prêtre diocésain maronite de Byblos (Liban). Il a fait un premier cycle
d’études de théologie à l’Université Saint-Esprit de Kaslik (Liban) et un deuxième cycle à
l’Université Catholique de l’Ouest, Angers (France). Suite à une expérience de pastorale et
d’enseignement de deux ans au Nigeria, il a achevé son doctorat en 2005 en théologie
biblique à l’Université Pontificale Grégorienne à Rome. Après avoir rendu un service pastoral
et académique pendant quatre ans en São Paulo (Brésil) il est revenu au Liban et il enseigne
actuellement le Nouveau Testament dans les Universités Catholiques à Beyrouth et dans le
Centro Cristão de Estudos Judaicos em São Paulo, Brésil.
RÉSUMÉ
La problématique principale de cet article trouve son point de départ dans l’analyse du caractère
sévère de Jésus dans l’évangile. Des synoptiques, c’est Matthieu qui met le plus l’accent sur la
tension entre les pharisiens et Jésus. Le point culminant est le discours dans le temple dont le noyau
est constitué des sept «Ouai» (Mt 23,13-36). Pour expliquer cette sévérité, l’auteur utilise comme
approche méthodique la «pragmatique» au sein de la science de la communication et de la
linguistique. L’objectif principal de la recherche est d’offrir au lecteur une nouvelle perception de la
réalité et de l’interpeller sur son agir moral.
RESUMO
A principal problemática deste artigo encontra seu ponto de partida na análise do caráter severo de
Jesus no evangelho. Dos sinóticos, é Mateus quem mais enfatiza a tensão entre os fariseus e Jesus. O
clímax é o discurso no templo, cujo núcleo é constituído pelos sete «Ai» (Mt 23,13-36). Para explicar
essa severidade, o autor usa como prospectiva metodológica a "pragmática" dentro da ciência da
comunicação e da linguística. O objetivo principal da pesquisa é oferecer ao leitor uma nova
percepção da realidade e desafiá-lo em sua ação moral.
Introduction
L’évangile de Matthieu met l’accent plus que les autres synoptiques sur la tension entre
Jésus et les pharisiens. Les paroles sévères (Mt 23,13-36) proférées par Jésus dans le temple
contre ces derniers peuvent choquer le lecteur habitué à concevoir Jésus sous l’angle de
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LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION
l’humilité et de la douceur (Mt 11,29 ; 12,19-20). Ce n’est pas tant la bonté de Jésus qui pose
problème aux croyants que le caractère sévère de certaines de ses énonciations. C’est
pourquoi cet article vient mettre le doigt sur la double face de Jésus : sévère Sauveur1!
A un niveau méthodologique, étudier un texte biblique dans la prospective pragmatique
se fait de plus en plus actuellement dans les milieux exégétiques2. Ceci consiste à dégager la
force inhérente aux textes, interpellant les lecteurs à avoir un comportement cohérent avec
ce qu’ils lisent.
Voyons dans ce qui suit comment se présente l’apport de la lecture pragmatique à Mt
23,13-36, situant tout d’abord cette approche dans le domaine exégétique et déduisant
ensuite, après l’analyse du texte, les principes théologiques qui en découlent.
–—————————
1
Cet article résulte d’une thèse doctorale défendue par l’auteur dans l’Université
Pontificale Grégorienne à Rome et publiée sous ce même titre : M. S AKR, Le sévère Sauveur,
Lecture pragmatique des sept «Ouai» dans Mt 23,13-36, EH XXIII/808, Bern 2005.
2
A titre d’indication, voire les travaux des membres de l’Association Biblique Interna-
tionale «Evangile et Culture» publiés dans le site www.evangeliumetcultura.org.
144
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION
Dans la Bible, le genre «Ouai» n’est principalement ni narratif ni poétique (17 fois), mais
spécialement il est utilisé dans la littérature prophétique (71 fois), quoique sa présence soit
attestée presque dans tous les livres de l’Ancien et du Nouveau Testament.
A un niveau communicatif, concernant ses stratégies narratives et syntaxiques, «Ouai»
est utilisé la plupart des fois comme une interjection ou un cri, rarement comme un
substantif féminin (Ap 9,12; 11,14) et une seule fois comme un adjectif (1Co 9,16). Dans les
cas où «Ouai» est une interjection accompagnée de la deuxième personne ou d’un vocatif
ou d’un nominatif, il donne une impression très emphatique, contrairement à son usage
avec la troisième personne ou le datif. Une proposition causale introduite par «oti», parce
que, est présente parfois à cette construction indiquant généralement le réquisitoire
énumérant les motifs du «Ouai» qui ne sont autres que les défauts du destinataire (Ez 24,6-
7; Jr 4,13; Tb 10,5). Et enfin, nous signalons qu’il est possible de trouver aussi, surtout dans
les oracles prophétiques, à la fin du réquisitoire, une annonce du châtiment introduite par
«C’est pourquoi dit le Seigneur» avec un emploi du verbe au futur (Is 5,24). Ce châtiment ne
fait que consacrer la mauvaise situation du destinataire dans une condamnation éternelle,
pire que sa situation actuelle.
Au niveau sémantique-pragmatique, le genre de «Ouai» peut communiquer trois
messages divers que nous exposons dans une graduation croissante:
– Le sens de lamentation ou de peur à cause d’un événement quelconque; le «ouvai,» est
accompagné généralement de la première personne, par exemple: «Malheur à nous car
nous sommes perdus» (Jr 4,13).
– Le sens d’invective ou de malédiction qui n’est autre qu’un reproche sévère dit au
destinataire à cause de ses méchancetés, dans une amertume profonde, ressemblant à un
cri de douleur; quand même, il y a encore une chance de salut, vue que l’annonce du
châtiment n’est pas faite: «Malheur à vous, hommes impies, qui avez délaissé la loi du Dieu
Très-Haut» (Si 41,8).
– Le sens de menace, ceci est dû à la gravité de la situation pervertie du destinataire. La
menace est mise en évidence par les verbes conjugués au futur: «Malheur à vous qui riez
maintenant, car vous serez en deuil et vous pleurerez» (Lc 6,25). Elle pourrait être vue
comme une invitation à la conversion en vue d’éviter le châtiment éternel. Elle pourrait être
une menace faible dans le sens d’une mise en garde.
Dans le tableau suivant, sont exposés les 46 emplois du mot «Ouai» dans le Nouveau
Testament, suivant l’endroit, la catégorie des destinataires et le message particulier
communiqué par un tel genre4. Le chiffre entre parenthèse indique la fréquence du terme
«Ouai» dans l’endroit correspondant.
–—————————
3
Dans ce qui suit, nous traduisons «Ouai» par «Malheur à» car la langue française manque
d’un équivalent correspondant aux lettres grecques, comme en est le cas par exemple pour
l’italien «Guai», le portugais «Ai», l’espagnol «Ay», l’allemand «Wehe» et l’anglais «Woe».
4
Pour l’occurrence de «Ouai» dans l’A.T. cf. M. SAKR, Le sévère Sauveur, 61-67.
145
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION
1Co 9,16 (1) A moi; «Ouai» est adjectif: cas unique Menace
Jude 11 (1) A eux (les hommes impies) Invective
146
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION
Dans ce qui suit, nous allons présenter la construction du lecteur 5 jusqu’au texte (Mt
23,13-36), appelée aussi le contexte de situation, et faire ensuite l’analyse de la stratégie
narrative et syntaxique démontrant une réécriture intelligible du texte, et à la fin, faire
l’analyse de la stratégie sémantique révélant la fonction des «Ouai» à un niveau historique
et actuel6. Ainsi, la pragmatique s’emploie à chaque étape de l’analyse 7, offrant au lecteur
une nouvelle vision de la réalité et interpellant son comportement moral.
Mt 23,13-36 est l’apogée ou le point culminant vers lequel confluent principalement les
éléments constitutifs de la formule stéréotypée, répétée six fois au début des séquences
textuelles. Ces éléments sont à voir dans la narration précédente, comme étant les
«attentes» du lecteur auxquelles le texte (23,13-36) est en mesure de répondre. Les indices
les plus importants pour le lecteur se trouvent donc réunis dans la formule semblable à un
refrain «Malheur à vous scribes et pharisiens hypocrites». Ainsi, tout au long du récit
évangélique, le texte a construit un lecteur implicite capable de reconnaître le genre «Ouai»,
la «confrontation avec les scribes et les pharisiens», et la thématique de «l’hypocrisie»:
– Les premiers emplois de «Ouai» dans la narration matthéenne revêtent la fonction de
menaces de jugement si l’on ne se convertit pas (11,20-24) et celle de lamentation sur le sort
de ceux qui seront attirés par les scandales (18,7).
– La «confrontation» avec les pharisiens a vu le jour déjà avec le Baptiste (3,7-10), et les
scribes réunis entrent en scène comme critiquant Jésus conférant au paralytique le pardon
des péchés (9,1-8). Les controverses qui ont eu des thèmes variés et les prises de position
contre l’action salvifique de Dieu ont déclenché quelques invectives primordiales dans le
ministère galiléen: engeance de vipères (12,34) et génération mauvaise et adultère
(12,39.45; 16,4).
– Dans ses enseignements, Jésus a mis en garde contre «l’hypocrisie» et le fait de pratiquer
sa justice devant les hommes pour se faire remarquer. Et autour d’un sujet concernant la
tradition – le fait de manger sans se laver les mains – Jésus a prononcé pour la première fois
en face des scribes et des pharisiens l’invective «hypocrites!» (15,7).
–—————————
5
Cf. J.D. KINGSBURY, «Reflections on “The Reader” of Matthew’s Gospel», NTS 34
(1988) 442-460; J.-L. SKA, “Our Fathers Have Told Us”. Introduction to the Analysis of
Hebrew Narratives, SubBi 13, Roma 1990, 42-43.
6
Dans l’analyse de la stratégie narrative et syntaxique du texte appelée aussi analyse des
éléments de cohésion et de cohérence, ce qui nous importe n’est pas seulement ce qui est dit
ou comment il est dit (l’étude narrative), mais surtout ce qu’on veut dire avec ce qui est utilisé
(la pragmatique). Et dans l’analyse de la stratégie sémantique, il ne s’agit pas seulement de
savoir «qu’est-ce que cela veut dire?» (la sémantique) mais surtout «qu’est-ce que l’auteur a
voulu dire avec cela?» (la pragmatique).
7
Si autrefois, avec Charles Morris en 1938, la pragmatique constituait le troisième cadre
de recherche à côté de la syntaxique et de la sémantique, aujourd’hui cette ligne de
démarcation nette entre la pragmatique et les autres disciplines est à éliminer. Pour ceci, voir
l’apport du nouvel article sur l’ancien de M. GRILLI, «Evento comunicativo e interpretazione
di un testo biblico», Gr. 83 (2002) 655-678; «Autore e lettore. Il problema della comunica-
zione nell’ambito dell’esegesi biblica», Gr. 74 (1993) 447-459.
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LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION
négatifs dans leur «enseignement» et leur «halakha». Il a dénoncé leur péché en les
menaçant d’un jugement qui peut être encore évité par la conversion. Ceci signifie que Jésus
n’a ni maudi ni condamné ses destinataires mais il a constaté que s’il ne va pas y avoir de
conversion, les malheurs viendront. En effet, les dénonciations avaient les thèmes suivants:
fermeture du Royaume des cieux (23,13), stratégie missionnaire menant à la perdition
(23,15), jurement invalide (23,16-22), accomplir des lois secondaires et en négliger les plus
importants (23,23-24), et s’occuper du bien-être extérieur (23,25-26) tout en ayant un
intérieur impur (23,27-28). Disposées dans un crescendo dramatique, ces invectives
culminent dans ce qui est le plus ample et le plus violent (23,29-36): le meurtre des envoyés
de Dieu, proclamant ainsi que la mesure de l’iniquité est déjà comblée et que l’annonce du
châtiment est rendue explicite.
Tout ceci s’applique aux scribes et aux pharisiens, mais aussi à la génération de Jésus et
de Matthieu, et à la communauté ecclésiale à travers les siècles. C’est là l’apport de la
pragmatique qui voit, par exemple, à travers la fermeture du Royaume (23,13) par des clés
donnés à Pierre (16,19) l’idée d’une mauvaise responsabilité religieuse et ecclésiale de
laquelle le lecteur de tout temps est appelé à s’éloigner !
Cette page (Mt 23,13-36) est à considérer comme un miroir pour tout l’évangile de Mt,
car vers elle, convergent les diverses confrontations avec les chefs religieux juifs, et les
différents enseignements de Jésus durant son ministère public, spécialement le Sermon sur
la montagne (Mt 5 – 7). Par ses menaces du jugement, le texte prépare déjà le discours
eschatologique (24,31; 24,51; 25,28.30.41.46), et le vocabulaire de la persécution des
envoyés suscite déjà chez le lecteur l’attente de l’histoire de la passion et de la résurrection.
L’étude exégétique de Mt 23,13-36 fait émerger quelques points théologiques inhérents à
la narration matthéenne. Cet évangile destiné à une communauté judéo-chrétienne expose
des paroles sévères contre les chefs juifs! Comment à partir de ce texte pourrait-on donc
évaluer la christologie matthéenne et quelle est la figure modèle de l’Eglise et de ses
responsables voulue par Mt?
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3. Synthèse théologique
Dans ce qui suit, nous allons détecter la visée théologique et herméneutique, vers
laquelle tend l’analyse exégétique de Mt 23,13-36, dans une réflexion touchant à la
christologie et à l’ecclésiologie de Mt, les deux éléments les plus importants de son évangile.
essaye de prévenir les siens de la damnation surtout quand ils continuent à aller dans le
chemin du refus. A l’instar des prophètes de l’ancienne alliance il proclame à la fois un
message de jugement et de salut (Jr 31,28; Is 60,10), complétant ainsi la structure formelle
des «Ouai», dont ils sont les principaux utilisateurs, par un contenu adéquat.
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Conclusion
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«Dès lors, comprendre, c’est se comprendre devant le texte. Non point imposer au texte
sa propre capacité finie de comprendre, mais s’exposer au texte et recevoir de lui un soi plus
vaste», P. RICŒUR, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Paris 1986, 116-117.
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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION
Padre Donizete Luiz Ribeiro relata, na entrevista, pontos de sua trajetória pessoal,
religiosa e acadêmica, fala do carisma da Congregação dos Religiosos de Sion, do diálogo
judeu-cristão e das atividades assumidas pelos religiosos em relação à educação básica
e àquelas desenvolvidas no Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCDEJ) de São Paulo.
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Começando pelo nível superior da educação, algumas das questões e temas que
levantei acima ilustram bem a complexidade das coisas e a contribuição de Sion por
meio dos estudos e pesquisas de seus alunos nos Centros de Estudos, no Brasil, como
no exterior. A Igreja assume seriamente a herança que ela recebeu do povo judeu e
como ela devemos tirar as consequências para nossa vida e ação cristãs.
No campo da educação básica, os colégios de Sion, da educação infantil às portas
das universidades, oferecem uma educação humana integral, formando os jovens para
a vida, para o diálogo com o Outro e com os outros. Sabemos que a educação sendo
integral respeita e promove o humano, combate do interior toda de forma de exclusão
e ajuda cada pessoa a ser mais “gente”, mais humana a serviço dos outros e da
construção da cidadania.
Que todo esse grande patrimônio de Sion possa se desenvolver ainda mais em
nossos colégios e Centros de Estudos. Assim, estaremos firmes em Sion, como dizemos,
citando Sirácida 24, 10: In Sion firmata sum.
4. Quando foi que a Congregação instituiu o CCDEJ e como ele se legitimou como
um espaço de pesquisa teológica? Quais as atividades desenvolvidas no CCDEJ
e como elas atendem ao carisma da Congregação?
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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION
Pe. Donizete Luiz Ribeiro, NDS, Doutor em Teologia e Estudos Judaicos pelo Instituto
Católico de Paris. Professor do CCDEJ de São Paulo e Professor convidado no CCDEJ
da Faculdade Notre-Dame de Paris. Dentre seus escritos, destacam-se Convidados
ao banquete nupcial. Uma leitura de Parábolas nos evangelhos e na tradição Judaica.
São Paulo: Fons Sapientiae/CCDEJ, 2015; e “As obras de Misericórdia como Imitatio
Dei.
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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION
Lattes ID
http://lattes.cnpq.br/0636122199551695 Entrevistador:
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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION
Graduado em Letras e suas literaturas pela FAFI de Itajubá, Minas Gerais. Graduado em
Teologia pela FACAPA (Faculdade Católica de Pouso Alegre). Cursos de Estudos Judaicos no
Ratisbonne Centre.
HADDAD, Rabino Philippe. JESUS FALA COM ISRAEL: uma leitura judaica de parábolas de
Jesus. São Paulo: CCEJ; Fons Sapientiae, 2015. 152 p., 160 x 230mm – ISBN 978-85-63042-21-
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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION
Torah corria em suas veias, no seu sangue, sobre os seus lábios. Jamais pensou Jesus em anular
a Torah, reformá-la, substituí-la. Para Jesus, a reforma devia ser aquela do coração, não aquela
da Lei (Mt 5,18). Ele queria modificar o homem no interior, ensinando-lhe o caráter ilusório
dos bens materiais e da vaidade humana” (p. 21). Ademais, prossegue “Impregnado desta
tradição de Israel, Jesus preconizou o חידוש- hidush, a “renovação do sentido”, fiel à Tradição
de seus pais” (p. 22).
Afirma o Autor: “ser esta uma obra de amizade para com minhas irmãs e meus irmãos
cristãos, obra benevolente com relação a Jesus. Não o Jesus teológico, não o Jesus origem da
discórdia e frequentemente o pretexto do ódio” (p. 28). Ressalta que, “pessoalmente, se aterá
antes ao que Jesus disse do que ao que se diz sobre ele; estará atento antes mais ao que Jesus
fez do que ao que se fez dele” (p. 29).
Finalmente, espera que esta modesta obra possa enriquecer o cristão, assim como lhe
permitiu a compreender melhor os Evangelhos, pois foi o espírito de um autêntico diálogo
que o guiou (p. 31).
No capítulo primeiro, antes de discorrer e analisar cada uma das cinco parábolas no
capítulo segundo, apresenta o Autor uma interessante e didática explanação, que introduz o
leitor nos Estudos Judaicos. Seu objetivo é fazer com que ele compreenda melhor as parábolas
de Jesus. Destarte, discorre o Autor com maestria, experiência de Rabino, em uma linguagem
simples, direta, clara e ilustrada com muitas citações bíblicas e talmúdicas sempre acrescidas
de seus ricos e interessantes comentários.
Ressalta ainda, com sua experiência pessoal, o estado atual das relações entre judeus e
cristãos e a grande contribuição propiciada pelo Concílio Vaticano II para um diálogo regular
e confiança entre os crentes que estão dispostos a compartilhar em uma escuta mútua e
respeitar o que eles sugerem lendo e discutindo as fontes de seus vários textos da tradição
judaico-cristã. Afirma também que este livro é fruto de vários anos de estudos conjuntos,
debates e palestras públicas, de modom particular na sinagoga de Ulis (Essonne), onde ele é
Rabino.
Apresenta ainda o Autor detalhes sobre as principais etapas da história do judaísmo e
sua prática de interpretação de textos bíblicos, atribuindo grande importância à tradição oral
e o debate (p. 41).
No Capítulo II, intitulado As Parábolas de Jesus, discorre o autor sobre cinco parábolas:
1) As Parábolas da Misericórdia de Lc 15,1-32 (A ovelha reencontrada, A dracma reencontrada
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considerado como um ignorante”. Isto porque “O sábio ensina e comenta, mas ajuda também
a agir conforme a palavra divina”. Jesus em seus ensinamentos destaca essa prática judaica
de que “ouvir Suas palavras, mas não praticá-las é um a obra estéril, isso se assemelha a uma
casa sem fundamentos, a uma casa sobre a areia. Mas praticá-las é voltar a plantar as
fundações sólidas sobre uma rocha ( ̶ תצוּﬧtsur) ̶ que redireciona sempre à firmeza, à
permanência e então a Deus, pois o Eterno é o “rochedo da libertação (p. 93).
Na parábola do Bom Samaritano, apresenta o Autor sucinto conhecimento histórico
sobre os Samaritanos e qual o seu relacionamento com os Judeus da época do segundo
Templo. Discorre a seguir sobre Cohen e Levi, sobre as funções e a escolha desses dois
personagens importantes na sociedade hebraica. Informa ainda o autor que “os deveres
específicos do Cohen em relação a Levi, pois aos כהנים- cohanim cabia o dever de purificar os
israelitas que se tornavam impuros segundo a legislação do Levíticos” (p. 102).
Destarte, ao findar sua análise sobre esta parábola mostra o Autor “que Jesus realiza
uma verdadeira revolução de consciências, um despertar para responsabilidade. Com essa
parábola Jesus inova – – חידושhidush, pois a questão não é mais de saber “quem é meu
próximo”, mas em saber “tu te consideras como próximo do outro?” e principalmente se este
outro está sofrendo. Destarte, aprendemos através desta parábola que não podemos
selecionar os nossos amigos, nossos próximos, mas procurarmos ser nós mesmos o ponto de
partida da fraternidade e do amor” (p. 115).
Na parábola do Semeador, assinala o Autor, dentre outras coisas, que “Ao discípulo não
basta receber passivamente o ensinamento, mas precisa trabalhar, segundo seu nível, à sua
medida, a palavra do mestre. Cada homem digere o alimento que absorve, o mesmo ocorre
para o espírito e o coração que devem acolher o ensinamento” (p. 117). De igual modo, afirma
que “Jesus ensina à margem do lago de Genesaré em um barco a fim de convidar aqueles que
o escutam a avançar nas águas da Torah, a não permanecer tímidos sobre a margem das
duvidas. Jesus quis, através desse deslocamento, obrigar o ouvinte a modificar o seu olhar
sobre o mundo. Nossos espíritos se fecham sobre as nossas verdades ligadas à nossa
educação, ao nosso espaço” (p. 120).
A seguir mostra que “Jesus oferece aos seus discípulos a chave da parábola: O que é
semeado é a palavra, a palavra divina” (p. 124)
No que se refere à Estrutura da parábola do semeador, apresenta o autor um quadro
esquemático dessa parábola e sua interpretação feita por Jesus através em quatro níveis (a
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terra, a consequência e o sentido) em que os grãos são lançados: à beira do caminho, em terra
pedregosa, entre espinhos e em terra boa (p. 127). De acordo com um trecho da Mishna Avot
(5,15) aqueles quatro níveis acima citados correspondem às quatro atitudes que existem entre
os estudantes: “os estudantes esponjas, que absorvem tudo, bons e maus raciocínios;
estudantes peneiras, que filtram o melhor e rejeitam os resíduos, pois o filtro guarda a borra
e deixa passar o vinho; e por último os estudantes funis, que recebem de um lado e derramam
do outro” (p. 128).
Apresenta por último o Autor as quatro escolhas propostas por Jesus: 1) Ser uma beira
de terreno; 2) Ser um terreno cheio de pedras; 3) Ser um terreno espinhento; e 4) Tornar-se
uma terra boa (pp. 128-132).
Na análise da Parábola da Figueira, situa o Autor esta parábola ao aproximar-se da
Páscoa – Pessah – פסח, a festa dos pães ázimos, as חג המצותhag hamatsot, a festa do
nascimento do povo de Israel (p. 133). Essa parábola “fala de sinais, de paciência, da vinda do
filho do homem”. Ela implica uma visão da História. Ela convida a pensar no começo e no fim
(p. 134).
Afirma a seguir o Autor, que “o primeiro ensinamento da Torah é de ordem teológica:
Deus é o Criador do mundo. Existe um começo no tempo e no espaço. O Deus de antes a
criação, o Deus a-histórico nós não o conhecemos, jamais podemos conhecê-lo. Mais: este
Deus a-histórico, criando tempo e o espaço, tornou-se um Deus da História, um Deus na
História” (p. 135).
O que nós podemos notar é que o mundo não se fez num dia”. Destarte, “Deus confia
a Sua obra ao Homem, ele entra no Seu – שבתshabat – descanso, repouso ,não num repouso
letárgico, mas num tempo contido. O Shabat de Deus significa que os homens dispõem de
uma margem de liberdade para manter a ordem divina ou engendrar a desordem. Os anjos
não possuem esta liberdade, os animais também. O tempo da História humana corresponde
ao Shabat de Deus. Deus repousa... sobre o Homem” (p. 136).
A seguir ao abordar sobre a História em três tempos, mostra que segundo o TB
Sanhedrin 97a, “o profeta Elias ensinava que o mundo duraria 6.000 anos, sendo 2000 anos
de תוהוּ ובהוּ- tohu vbohu - sem forma e vazia -2000 anos de Torah e 2000 anos para os dias do
Messias. Rashi assim interpreta esta passagem talmúdica: a) 2000 anos de tohu: porque a
Torah ainda não havia sido revelada, o mundo parecia ao tohu.; b) 2000 anos de Torah: os dois
milênios se estendem desde Abraão até os dias do Messias; c) 2000 mil anos do Messias: Após
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os dois milênios de Torah é possível que o Messias venha, que o reino ímpio (Roma) despareça
e que termine a opressão de Israel” (p. 139). Embora esse tempo messiânico se situe ainda
בעולם הזה- baolam haze - neste mundo, em que a humanidade possa chegar a um nível de
sabedoria que sem conflitos (as espadas serão transformadas em relhas (Is 2,4), a economia
militar transformada em economia de partilha). Assim, o reino de Deus é proclamado na terra,
os homens se reconhecerão fraternalmente” (p.141). De igual modo, afirma que “a
ressurreição dos mortos faz a transição com o – עולם הבאo olam haba = o mundo vindouro,
que corresponde ao oitavo dia, embora segundo Is 64,3 “nenhum olho o viu, exceto Deus” (p.
141).
Assevera o autor que sobre o Messias, conforme um trecho talmúdico sobre a vinda do
Messias (TB Sanedrin 98) e ainda o Sl 95,7 e de Is 60,22, não importa quando o Messias virá.
O que importa é que ele virá como um Messias sofredor de maneira não triunfal. Mas virá
somente “se vós escutardes a voz de Deu” e se os homens merecerem, Sua vinda será
apressada. O homem espera um Messias que espera o homem!” (p. 142).
Em “A figueira do inicio, a figueira do fim”, discorre o autor sobre a importância da
figueira na Bíblia, pois ela e seu fruto, o figo, que é considerado entre os sete frutos que
exaltam a beleza de Israel: “Terra do trigo, da cevada, da uva, do figo, da romã, terra da oliva
oleosa e do mel - da tâmara-” (Dt 8,8) (p. 143).
Afirma o Autor que a chegada do Verão é indicada por tornarem-se tenros seus ramos
e pela caída de suas folhas. Verão em hebraico significa קיץkaïts, da mesma raiz do verbo הקיץ
h. k. ts = (se) acordar, e de קץkets “fim”, fim de uma época, fim de um período, fim deste
mundo” (p. 145). Os sinais, anunciadores de acontecimentos que se aproximam, dos quais
Jesus fala, não evocam um doce mês de maio” (p. 146). Por fim, afirma que “as palavras de
Jesus enquanto palavras da Torah permanecem eternas, interpelando a sua geração”. Os
discípulos são chamados a permanecer vigilantes. Eles verão com seus próprios olhos se
permanecerem às espreitas. Jesus não se proclama abertamente como Messias; mas fosse ele
o “Filho do homem”, sua vinda não se confundiria como o “dia do Eterno que ninguém, exceto
o Pai, conhece” (p. 147).
Finda o autor esta obra enfatizando que “depois das parábolas da misericórdia, do
anúncio da parábola da figueira e nosso tempo contemporâneo, dois mil anos se passaram,
onde a incompreensão superou o diálogo. Felizmente, graças ao Céu, depois de 50 anos, um
reconhecimento, uma escuta se faz entre judeus e cristãos. Eis aqui um dos sinais eloquentes
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da figueira, o tempo de uma fraternidade entre os “filhos” do “Pai”, comprovando que existe
um encontro da História que nós não podemos falhar, pois toda graça é um tesouro único...”
(p. 148).
Com certeza a publicação desta obra constitui um fato inédito hodiernamente. Isto por
tratar-se de um trabalho sobre as cinco parábolas evangélicas lidas, analisadas e discutidas
por um judeu francófilo. Trata-se de uma amostra dos frutos do Concílio Vaticano II, com a
publicação da Declaração Apostólica Nostra Aetate, que propiciou, incentivou e fez com que
o diálogo interrreligioso viesse a acontecer realmente. Não resta dúvida, tratar-se de uma
obra estimulante, que em muito ajudará o leitor a compreender melhor toda a riqueza da fé
judaico-cristã, ilustrada e com suas citações bíblicas, talmúdicas e rabínicas, tão
apropiadamente explicitadas e comentadas pelo Rabino Haddad. Constitui ainda uma
oportunidade de levar o leitor a ter uma visão original, séria, bem embasada sobre o quanto
Jesus viveu intensamente como verdadeiro judeu. Ademais, quem sabe esse primeiro trabalho
poderá despertar o leitor cristão ou não, a se aprofundar nos Estudos Judaicos-Cristãos, a fim
de poder compreender os Evangelhos e demais livros da Bíblia. Que outras obras deste nível
venham a ser publicadas futuramente! Parabéns ao Autor pelo magno e singular trabalho e
de igual modo aos Editores, ao Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCEDJ pela publicação
dessa obra, tão bem traduzida pelo Pe. Faustino Tonini, NDS).
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