Cadernos Sion Volume 1

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REVISTA

CADERNOS DE SION

ANO 2020
VOLUME 1
NÚMERO 1

Centro Cristão de Estudos Judaicos


CADERNOS DE SION

REVISTA CADERNOS DE SION


ÓRGÃO OFICIAL CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

VOLUME 1, NÚMERO 1

EDITORES

Dr. Donizete Luiz Ribeiro

Dr. Jarbas Vargas Nascimento

CONSELHO EDITORIAL
Me. Fernando Gross (PUC-SP/CCDEJ)
Me. Joel Marcos Moreira (CCDEJ)
Me. Judson Vieira (PUC-SP/CCDEJ)
Me. Marivan Soares Ramos (CCDEJ)
Dr. Ruben Sternschein (CIP)
Dr. Saul Kirschbaum (CCDEJ)

CONSELHO CIENTÍFICO

Dr. Boris A. Nef Ulloa (PUC-SP) Dr.

Donizete Luiz Ribeiro (CCDEJ)

Me. Elio Passeto (ISPS-Ratisbonne)

Me Manoel Ferreira de Miranda Neto (CCDEJ)

Dr. Marc Rastoin (Centre Sèvres-Paris)

Dr. Moshe Orfali (Universidade Bar Ilan)

Dr. Olivier Rota (Université Catholique de Lille)

Dr. Rudney Soares de Souza (CCDEJ)

Dr. Thierry Vernet (Faculté Notre-Dame de Paris)

Dr. Vlademir Lúcio Ramos (UniPaulistana/CCDEJ)

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CADERNOS DE SION

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 3

PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ 6


Elton da Silva Santana

A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ 22


Fernando Gross

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA 39


Luciano José Dias

REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA 58


Marcio Miranda de Matos

NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL 73


Nayon Nigel da Silva Melo Cezar

O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO 92


Raimundo Pereira de Sousa

ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA INSTITUIÇÃO


DA EUCARISTIA 111
Robin Dominicio Januário

LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO DISCURSIVA RELIGIOSA


128
Jarbas Vargas Nascimento e Judson de Carvalho Vieira

LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 143


Michel Sakr

ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO 154


Jarbas Vargas Nascimento

JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS 161
José Benedito de Campos

ii
Apresentação CADERNOS DE SION

APRESENTAÇÃO

Caro Leitor/Leitora

Shalom

É com grande alegria que colocamos a público o primeiro número da Cadernos de


Sion, Revista semestral do Centro Cristão de Estudos Judaicos - CCDEJ -, mantido pelo
Instituto Theodoro Ratisbonne. Cadernos de Sion nasce com o objetivo de divulgar
pesquisas sobre Teologia, História e Cultura judaica em consonância com os textos
bíblicos e o Cristianismo, testemunhando na Igreja e no mundo a presença de Deus
e seu amor à humanidade.

Nesse número, o primeiro de 2020, damos especial destaque a textos, que se


enquadram nas linhas de pesquisa em desenvolvimento no CCDEJ, em especial, aqueles
resultantes de pesquisas realizadas em diferentes cursos ministrados no CCDEJ. Nesse
sentido, queremos mostrar parte de temas relevantes que mobilizam a Teologia, a
História, a Cultura judaico-cristã e as possibilidades de leitura e releitura de textos
bíblicos.

O primeiro artigo de autoria de Elton da Silva Santana, intitulado PAI NOSSO: UMA
ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ, se propõe a apresentar um estudo do Pai Nosso e suas
origens na tradição veterotestamentária e judaica, entendendo a tradição judaica como
aquela que se formou após a reconstrução do Templo, o Segundo Templo que, no
período de Jesus, é conhecido por muitos como judaísmo formativo.

O segundo artigo, de Fernando Gross, A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR


DO CORAÇÃO DO FARAÓ, apresenta um estudo de parte da Exegese judaica, a partir do
coração do faraó, fazendo uma aproximação da Teologia cristã com os ensinamentos da
Igreja, desde o Concílio Vaticano II e os atuais documentos sobre a importância da
complementaridade da leitura dos textos da Bíblia hebraica para nos ajudar a
desentranhar as riquezas da Palavra (Evangelii Gaudium, n° 249).

O artigo seguinte, de Luciano José Dias, OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE

3
Apresentação CADERNOS DE SION

REVELA, faz uma Análise reflexiva de diversas imagens criadas pela humanidade, ao
longo da história, para descrever a deus ou deuses, que acreditam estar a seu redor.
Assim, trata de inúmeras variações dessas imagens, que foram relatadas em textos
bíblicos e filosóficos, o que nos propicia avaliar a influência direta do tempo, lugar,
cultura e meio social na interpretação dos diversos contornos das imagens de Deus.

O quarto artigo, de Márcio Miranda de Matos, intitulado REFLEXÃO SOBRE A


DORMIÇÃO DE MARIA, reflete sobre a morte de Maria chamada comumente de
dormição que, segundo a doutrina da Igreja, ela passou pela morte, embora a partir do
século XVII, por conta da discussão em torno da Imaculada Conceição houvesse surgido
declarações de sua imortalidade.

O quinto artigo, de Nayon Nigel da Silva Melo Cezar, intitulado 50 ANOS DA NOSTRA
AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL, discute como se deu o caminho de
divergência entre as duas tradições no período da Igreja nascente, apresentando o
Concílio Vaticano II, séculos depois da ruptura, como o grande baluarte de abertura ao
diálogo e à unidade. Explicita, ainda, os difíceis caminhos trilhados pelo cardeal Béa na
concepção de um texto que traduzisse a voz da Igreja em um período que o mundo,
perplexo pelos horrores nazistas, urgia por uma palavra aos judeus.

O artigo seguinte, de Raimundo Pereira de Sousa, de título O MÉTODO MIDRÁSHICO


NO NOVO TESTAMENTO, apresenta um estudo sobre o método midráshico no Novo
Testamento, destacando-o como método de leitura e exegese, utilizado por hagiógrafos
neotestamentários, para proclamar e confirmar o cumprimento da Escritura na pessoa
do Cristo morto e ressuscitado e sua contribuição na formação do Novo Testamento,
uma vez que ele nasce e se configura no seio do judaísmo.

O artigo de Robin Dominicio Januário, ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-


COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA, estabelece uma
comparação entre a perícope da epístola paulina: 1Cor 11,23-25 e as perícopes dos
evangelhos sinóticos: Mc 14,22-25; Mt 26,26-29 e Lc 22,19-20, sobre a narrativa da
instituição da eucaristia. Aplica-se, de maneira introdutória, metodologias do campo da
exegese bíblica: disposição dos textos em sinopse, delimitação do texto bíblico e a
análise de quiasmo. A percepção deste estudo é que, apesar de mantida a tradição, cada
autor sagrado tem uma intencionalidade teológica diferente:

O penúltimo artigo, de Jarbas Vargas Nascimento e Judson de Carvalho Vieira,


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Apresentação CADERNOS DE SION

intitulado LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO DISCURSIVA


RELIGIOSA, apresenta uma leitura do discurso religioso católico pronunciado na Páscoa,
considerando a cenografia que movimenta o sermão, durante o rito sacramental. Ao
autores afirmam que o sermão, na condição de ritualizado, se define na relação entre

Deus e o homem, atualizando pelo interdiscurso a manifestação terrena/humana da


transcendência. Por isso, é pressuposto fundamental para a leitura do sermão a
vinculação extraordinária entre Deus e o sacerdote, ou seja, Deus se presentifica no
sacerdote. Trata-se, então, de considerar a encenação discursiva como a representação
de um lugar construído, a partir da morte e vida de Jesus, onde a vida se redefine por
relações interdiscursivas pautadas pelo ritual.

Por fim, o último artigo, de Michel Sakr, LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36,


analisa o caráter severo de Jesus no evangelho de Mateus, mostrando a tensão entre
fariseus e gentios. O clímax é o discurso no templo, cujo núcleo é constituído pelos sete
«Ai» (Mt 23,13-36). Para explicar essa severidade, Sarkr utiliza como prospectiva
metodológica a "pragmática", disciplina da comunicação e da linguística, oferecendo ao
leitor uma nova percepção da realidade.

Na seção ENTREVISTA, Pe. Padre Donizete Luiz Ribeiro, superior-geral da Congregação


dos Religiosos de Nossa Senhora de Sion relata pontos de sua trajetória pessoal, religiosa
e acadêmica, fala do carisma da Congregação que dirige, do diálogo judeu-cristão e das
atividades assumidas pelos religiosos em relação à educação básica e àquelas
desenvolvidas no Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCDEJ) de São Paulo.

Na seção RESENHA, José Benedito de Campos apresenta o livro: HADDAD, Rabino


Philippe. JESUS FALA COM ISRAEL: uma leitura judaica de parábolas de Jesus. São
Paulo: CCDEJ; Fons Sapientiae, 2015, obra da “Coleção Judaísmo e Cristianismo” que
objetiva cultivar o conhecimento mútuo entre judeus e cristãos, valorizando o
enraizamento judaico das Sagradas Escrituras e o diálogo inter-religioso, a partir do
patrimônio espiritual comum.
Ao finalizar essa Apresentação, queremos desejar-lhes boa leitura desse primeiro
número de Cadernos de Sion, convidá-los a participarem dos próximos números e pedir
que nos ajudem a divulgar esse veículo de comunicação acadêmica do CCDEJ.

SHALOM.
Os Editores
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ

Elton da Silva Santana


Mestrando em Teologia Bíblica pela PUC/SP; Especialista em EAD pela UNIP, Especialista em
Ensino de Filosofia pela UNESP; Especialista em Teologia, Cultura e História Judaica pelo
CCDEJ; Bacharel em Teologia pela PUC/SP e licenciado em Filosofia pela UNIFAI.

RESUMO
Neste trabalho, procuramos apresentar um breve estudo do Pai Nosso e suas origens na
tradição veterotestamentária e judaica, entendendo a tradição judaica como aquela que se
formou após a reconstrução do Templo, o Segundo Templo que, no período de Jesus, é
conhecido por muitos como judaísmo formativo. Assim, procuramos examinar a tradição
orante do judaísmo formativo, especialmente, a amidá e sua possível contribuição para o
desenvolvimento do Pai Nosso, do qual, acreditamos que Jesus tenha se inspirado
diretamente.
Palavras-chave Pai Nosso; Tefilah; Amidá; Shemone-esrê;

ABSTRACT
In this work, we seek to present a brief study of the Lord's Prayer and its origins in the Old
Testament and Jewish tradition, understanding the Jewish tradition as the one that was
formed after the reconstruction of the Temple, the Second Temple, which, in jesus' period, is
known to many as formative judaism. Thus, we seek to examine the praying tradition of this
formative judaism, especially amida and its possible contribution to the development of the
Our Father, from which we believe that Jesus was directly inspired.

Considerações Iniciais

O objetivo deste artigo é demonstrar as origens da oração do Pai Nosso no ambiente


bíblico e judaico. Não queremos aqui fazer uma exegese bíblica, algo que pretendemos em
outro momento, mas apenas discorrer sobre as fontes do Pai Nosso, também conhecida como
Oração do Senhor ou Oração Dominical, conforme a tradição cristã, sobretudo a Católica.

Há duas versões da oração do Pai Nosso nos Evangelhos, de Mateus (Mt 6,9-13) e de
Lucas (Lc 11,2-4). O primeiro apresenta uma versão mais longa, com sete petições e o segundo
uma versão mais curta, com cinco petições. Sobretudo, na versão mateana, é possível ver a
sua influência tanto na Bíblia hebraica como no seu ambiente próprio, o judaísmo formativo
do Segundo Templo. Assim, mostramos, dentro de uma perspectiva da teologia bíblica, que
aquilo que chamamos de oração cristã – o Pai Nosso, é, na verdade, uma oração
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

essencialmente judaica.

Assim, apresentamos o que é a oração judaica e suas principais características. Em


seguida, analisamos cada uma das sete petições contidas no Pai Nosso mateano, que
consideramos a que melhor bebeu destas fontes (bíblica e judaica). Além disso, em muitos
manuscritos, é apontada uma doxologia final, típica das orações bíblicas e judaicas, como
veremos. Portanto, na medida em que vamos dialogando com o Senhor, por meio desta bela
oração, vamos descobrindo o grande tesouro da tradição de Sião contida na tefilah ou amidá.
Isso é extremamente rico, sobretudo, nestes tempos de extremismos, em que o diálogo
parece, às vezes, tão difícil. Podemos perceber que todos os filhos de Abraão, sobretudo,
judeus e cristãos, podem bem dialogar e orar juntos a partir da mesma fonte. Num primeiro
momento, apresentamos o significado e a importância da oração para o judaísmo. Assim,
depois de compreendermos o sentido da tefilah, mergulhamos pela Shemonê esre ou amidá
e beber da mesma fonte que, sem dúvida, Jesus bebeu e provavelmente tenha se inspirado,
para nos dar esta pérola chamada Pai Nosso. Daí a necessidade de visitarmos, parte a parte,
de sua composição e visitarmos cada uma delas.

Também destacamos que, pela oração, nos aproximamos desta riqueza


compartilhada por nossos irmãos judeus, dos quais herdamos as Escrituras, para entendermos
a oração do Pai Nosso, oração verdadeiramente judaica. Ela nos foi dada por Jesus, o
nazareno, um judeu, o Messias que quer “que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e
eu em ti; que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste.”1
(Jo 17,21). Por isso, a importância de compreendermos o Pai Nosso como uma oração não
separada de suas raízes judaicas. E é só a partir daqui que podemos mergulhar nas
profundezas que esta oração nos permite chegar.

1. A oração no judaísmo

A liturgia judaica atual está alicerçada sobre o tripé: shema‘ Ysra’el (a profissão de fé
judaica), a tefillah (a oração) e a miqrat Torah (a leitura da Torah) (DI SANTE, 2004). Mas, pelo
que nos propomos cumprir, neste artigo, vamos apenas nos debruçar um pouco sobre a
tefillah. Antes, no entanto, precisamos compreender algo que está no coração do judeu
orante e que resume toda a essência hebraica: a Berakah.

1
Utilizaremos a Bíblia TEB (2020) como referência.
7
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

A Berakah2 “normalmente é traduzida como bênção ou também admiração, louvor,


agradecimento” (DI SANTE, 2004), representa o ser mesmo do judeu orante. Na Filosofia,
dizemos que o seu nascimento ocorreu, a partir da admiração do grego pelo mundo e que, daí
em diante, a pessoa incumbiu-se de ir em busca de seu significado. No mundo judaico,
podemos dizer que tal admiração é exatamente a Berakah, com uma diferença processual: o
judeu não vai em busca do significado do mundo, mas admira o significado que o mundo tem.
Por isso, ele procura bendizê-lo. Bendizer o mundo é se colocar diante de Deus, o seu Criador.
(HESCHEL, 2006, p.65)
O judeu orante agradece a Deus por tudo o que há na e diante da vida, sejam elas
boas ou ruins. Para entendermos melhor o espírito da Berakah, na vida cotidiana, visualizemos as
cenas do filme: A vida é bela. O modo como o protagonista reage frente as adversidades na sua
vida como fome, desemprego e, principalmente, o nazismo que sofre com sua família, mostra-
nos o verdadeiro espírito religioso do hebreu nas atribulações. Portanto, tudo é razão para
bendizer, para abrir o coração ao Eterno, pois é somente com o coração aberto a Ele, que
podemos professar a nossa fé, dialogar com Ele e seguir os Seus ensinamentos.

1.1. Tefillah

Literalmente, tefillah (ha tefillah), significa oração. No mundo judaico, é a série de


bênçãos curtas, que são recitadas em três momentos do dia: manhã, meio-dia e à tarde. A
liturgia diária costuma utilizá-la logo após a benção final do shemá. A tefillah sugere uma ação
reflexiva (LEONE, 2007), pois, quando rezamos estamos ao mesmo tempo avaliando-nos. Na
Teologia rabínica, orar deve ser uma obrigação diária e utiliza-se o termo mitzvá para esse
tipo de execução.
Heschel (2002) observa que a oração é a essência da vida espiritual e que tudo pode
ser espiritualizado, mas que também não pode, isto é, há coisas que podem ser tratadas com
espiritualidade. Vai depender de nosso sentimento, isto é, do que sentimos no momento. A
oração “ideal” é aquela que nos eleva a um estado de absoluta tranquilidade, voltada
totalmente a Deus. Num estado quase de transe, como por exemplo, o canto gregoriano, que
nos proporciona a uma experiência inebriante.
Rezar é perceber a maravilha, é recuperar o sentido do mistério que dá vida
a todos os seres, a margem divina em todos os feitos. A reza é nossa humilde
resposta à inconcebível surpresa de viver. É tudo que podemos oferecer em
troca do mistério pelo qual vivemos. (HESCHEL, 2002, p.90)

2
No grego, a tradição judaica da diáspora, traduziu como eucaristia que significa “ação de graças”.
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

Além disso, é importante sabermos que orar é um ato de fé e de manifestação de


espiritualidade. O sentido da oração é justamente uma busca incessante do supremo. E
Heschel (2002, p.90) afirma que “o assunto da oração não é a oração; o assunto da oração é
Deus. Ninguém pode orar, se não tiver fé na sua capacidade de se aproximar do Deus infinito,
misericordioso, eterno”.

O centro da oração é ser uma oração pessoal, o que significa um ato de manter Deus
conosco. Por isso, o dia é uma liturgia, ou como diz a regra de São Bento: ora et labora. O que
significa que a nossa conversa com Deus deve levar-nos a comunhão fraterna, pois o labor
significa criar no (com o) mundo e não para si, num ato isolado.

A tefillah também é conhecida como ‘amidah ou amidá, que significa “estar de pé”.
Ela é conhecida assim por ser recitada de pé. A sua origem teria se dado por volta do século V
a.C., formada por 18 bênçãos, derivando daí o nome de Shmone-esrê, como também é
conhecida. Atualmente, ela é composta por 19 bênçãos que teria sido acrescida na Babilônia,
no século III d.C., pela divisão de uma das orações em duas partes. (DI SANTE, 2004, p.93).

A Amidá está organizada em três bênçãos iniciais de louvor, treze bênçãos centrais
de pedidos e três bênçãos conclusivas de louvor. (SIDUR, 2008). Considerando o fato de que
Jesus era um judeu praticante, assim como os seus apóstolos, é de convir que a oração do Pai
Nosso pudesse seguir o que era tradicional na oração judaica.

2. A oração do Pai Nosso

Esta oração dominical, conhecida por Oração do Senhor ou Pai Nosso, acompanha a
vida cristã desde os tempos primeiros, quando os apóstolos instruíram as comunidades a fazê-
lo em todas as refeições. Em seu corpo, há toda a experiência histórica de como devemos nos
dispor em relação ao Pai: não de modo mecânico, mas numa dinâmica querida por Ele mesmo.

Temos basicamente duas fontes desta maravilhosa oração: a primeira fonte é a do


Evangelho de Mateus (6, 9-13): louvor; sete pedidos e; louvor; a segunda fonte é a do
Evangelho de Lucas (11, 2-4): Louvor; cinco pedidos; e Louvor; poderíamos ainda citar uma
terceira fonte, extra bíblica, nesse caso, que é a Didaqué ou Instrução dos doze Apóstolos
(8,2): Louvor; sete pedidos e louvor, onde apresenta uma estrutura similar ao Pai Nosso
mateano.

Adiante analisamos, em subcapítulos, cada uma das partes do Pai Nosso, sem
preocupação exegética, para que fique mais claro e pedagógico aquilo que objetivamos: a
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

Oração do Senhor é uma oração literalmente judaica. Primeiramente, porque veio de um


judeu que seguia os preceitos judaicos, conforme, exaustivamente podemos observar nos
quatro evangelhos; segundo, porque ela traz em seu conteúdo a bagagem bíblica e rabínica
do primeiro século da nossa era, como veremos.

Como dissemos acima, há duas versões do Pai Nosso. Para efeitos de estudo,
propomo-nos a discorrer sobre a versão mateana do Pai Nosso, pois julgamos que ele guarda
a oração mais próxima ao contexto judaico. Além do mais, concordamos com Jeremias (2006,
p.312), quando lembra que o Evangelho de Mateus é voltado para os judeus. Já o Evangelho
de Lucas é direcionado aos “gentios”; portanto, a oração segue inculturada. Da mesma forma,
alguns dos manuscritos de Mateus podem ter seguido por comunidades gentílicas e sido
inculturados, já que sabemos que o evangelho de Mateus, originalmente, possa ter sido
escrito em aramaico e, possivelmente, ao passar por comunidades gentílicas, tenha sido
traduzido para o grego, que é o que chegou para nós.

Para analisarmos melhor a Oração do Senhor, seguiremos a tradução livre, feita por
nós, conforme segue e, em seguida apresentamos o Pai Nosso, parte a parte e sua
aproximação com a tradição bíblica e judaica.

Tradução livre do Pai Nosso (cf. NESTLE-ALAND, 2012)

Pai Nosso que estai no céu,


santificado seja3 o teu Nome;
venha o Teu reino,
seja feita a Tua vontade, assim no céu como na terra.
O pão de amanhã, dai-nos hoje,
perdoa as nossas dívidas, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores,
e não nos conduzas à tentação,
mas livra-nos do mal.
Porque Teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém!4

2.1 Pai Nosso

Ao chamarmos Deus de “Pai Nosso” estamos, de fato, abrindo os nossos corações


para aceitarmos os outros como nossos irmãos. Ele que nos quer vivendo em família, chama-
3
Grifo nosso. As palavras foram grifadas para evidenciar as sete petições contidas na oração.
4
Esta doxologia final não está presente em todos os manuscritos (cf. NESTLE-ALAND, 2012).
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

nos para vivermos a fraternidade universal, advinda do Seu amor incondicional de Trindade
Santa (CROSBY, 2004, p.56). Isso é muito bom, pois Deus não é algo ou alguém que se possa
dominar, que se queira só para si. Deus é Deus de todo mundo, apesar de ter escolhido os
seus (Israel), porém, não para serem privilegiados sob outros povos, mas pela Aliança firmada

com os patriarcas e com Moisés. Para nós cristãos, pela fé em Jesus, entramos também nessa
filiação divina e irmandade com Cristo. (BARTH, 2006, p.32)

No Talmude da Babilônia (TB shabat 89 b) é possível perceber a paternidade divina,


vinculada aos patriarcas e a expressão empregada por Jesus “Pai Nosso”, em que pode ter se
inspirado, uma vez que tal expressão é encontrada com frequência em escritos no judaísmo
formativo.

Rabi Shmuel ben Nahmani relata em nome de Rabi Yonatan: “Que sentido
(dar) ao versículo: “Tu és nosso Pai, pois Abraão não nos conhece, Israel
ignora quem somos. Tu, Eterno, és Nosso Pai, Nosso Salvador (Is 63,15)?’”.
No futuro, o Santo, bendito seja Ele, dirá a Abraão: “Teus filhos erraram!”.
Abraão responderá: “Senhor do mundo, que eles sejam punidos para a
santificação do Teu Nome”. (HADDAD, 2017, p.58)

2.2 Que estai nos céus

A expressão “que estai nos céus”, empregada como morada divina, aparece na Bíblia
no singular e no plural. No entanto, o aramaico emprega o singular shemaïa = céu e o hebraico
emprega o plural shamaïm = céus. É possível encontrar a expressão “meu Pai que está nos
Céus” mais de trinta vezes entre o Talmud e o Midrash. (HADDAD, 2017, p.68). Na Bíblia,
indicando o céu como morada divina, é possível encontrar em várias passagens, como no
salmo (14,2): “Dos céus, o SENHOR se inclinou para os homens, para ver ser há alguém
perspicaz que busque a Deus”; e também “Ele inclinou-se do alto do seu santuário; o SENHOR,
lá dos céus, olhou para a terra”. (Sl 102,20)

Na sabedoria judaica, há uma discussão sobre se Deus está no mundo ou se o mundo


é que está em Deus. Se o mundo é o lugar de Deus, Deus não poderia ser infinito, mas finito,
o que o levaria a não ser Deus de fato, mas o mundo. Agora, se o lugar do mundo é Deus,
então Deus é o Lugar. Por isso, é que os israelitas sempre designam Deus nos céus, na Sua
morada; ou até mesmo os céus são referidos como sendo o próprio Deus. Céus e Deus são a
mesma coisa, de certa forma. Assim, alguns rabinos dizem que Deus é o Lugar.

Na verdade, esta ideia encontra a sua origem no Shabat de Deus. Com efeito,
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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

após ter organizado o mundo segundo a Sua vontade, Deus abençoou o


Homem (masculino e feminino) assim: “Frutificai, multiplicai, enchei a terra
e dominai-a” (Gn 1,28). Este Shabat divino manifesta certo retraimento
(tsimtsum) de Sua infinitude a fim de que o universo em geral e o homem em
particular existam. De onde a ideia de que Deus encontra-se nos céus, ainda
que seja Ele o Lugar (Makom) do mundo. (HADDAD, 2017, p.68)

2.3 Santificado seja o Teu Nome

Na terceira benção da amidá (Benção da Santificação de Deus) se diz: ''Tu és Santo,


o Teu Nome é santo e os santos te glorificam todos os dias. Pois, Tu és Deus, Rei Grande e
Santo. Bendito. Bendito sejas Tu, Eterno, Deus Santo.” (SIDUR, 2008, p.67). Na tradição
judaica, não se pronuncia nunca o nome Divino. Ao se referir a Deus, a tradição preferiu
utilizar alcunhas como Infinito, Eterno, o Todo Poderoso, Pai, Onipotente, Onipresente, o
Lugar etc. A tradição cristã, seguindo a tradição do judaísmo da diáspora, procurou utilizar o
termo Kyrios (Senhor), que também foi latinizado.

Desde o momento em que Israel recebe a revelação do nome divino (Gn 32,30), deve
santificá-Lo e louvá-Lo e nunca deverá macular o Nome. “Não pronunciarás o nome do
SENHOR, teu Deus, em vão, pois o SENHOR não deixa impune quem pronuncia o seu nome
em vão”. (Ex 20,7). Ao santificarmos o Nome, podemos conhecer a Sua grandeza, manifestada
por Ele mesmo. “Mostrarei minha grandeza e minha santidade, dar-me-ei a conhecer aos
olhos de numerosas nações. Então conhecerão que eu sou o SENHOR.” (Ez 38,23)

Para os cristãos, conhece-se a Deus por Seu Filho, afinal: “Aquele que me viu, viu o Pai”
(Jo 14,9b). Quando o anjo Gabriel visita a família de Nazaré e dá-lhe a Boa-nova, logo diz qual
deve ser o Seu Nome: Emanuel, que significa: Deus conosco. Portanto, em Moisés vem a
esperança da Salvação; e, em Jesus está a própria Salvação; Ele é o Deus conosco. Mesmo na
condição divina, Jesus revela o Pai e não se engrandece: “‘Pai, glorifica o teu nome.’ Então
uma voz veio do céu: ‘Eu o glorifiquei e o glorificarei ainda’.” (Jo 12,28) E ainda, “Eu manifestei
o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eles eram teus, a mim os deste, e eles
observaram a tua palavra.” (Jo 17,6) E, por fim “Eu lhes dei a conhecer o teu nome e darei a
conhecer ainda mais, a fim de que o amor com que amaste esteja neles, e eu neles.” (Jo 17,26)
Jesus revela o Pai que Lhe enviou, cumpre a Sua missão de ensinar os seus a santificar o Nome,
e volta a Casa do Pai.

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PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

2.4 Venha o Teu Reino

No qaddish, encontramos a seguinte prece: “Que ele possa estabelecer seu reino
durante vossa vida e durante vossos dias e durante o tempo da casa de Israel.” (DI SANTE,
2004, p.33). Ou seja, o Reino divino não é algo simplesmente espiritual é de um outro plano
de vida (“meta-história”), mas algo que se espera concretamente nesta vida e que tem
continuidade no vindouro, como bem expressou BOFF (1982, p.75):

Como virá o Reino de Deus? Para a fé cristã há um critério infalível, indicador


da chegada do Reino: quando os pobres são evangelizados, vale dizer,
quando a justiça começa a chegar aos empobrecidos, aos esbulhados e
oprimidos. Sempre quando se recriam laços de fraternidade, de concórdia,
de participação, de respeito à dignidade inviolável do homem, aí começa a
brotar o Reino de Deus. Sempre que na sociedade se impuserem estruturas
sociais que impeçam o homem de explorar o outro homem, que superem
relações de senhor e de escravo, que propiciem mais simetria, aí começa a
irromper a aurora do Reino de Deus.

2.5 Seja feita a Tua Vontade

Qualquer ação que façamos deve estar voltada a Deus. Deixar que a vontade de Deus
predomine em nossa vida é quebrar as barreiras do nosso eu. Quando passamos da barreira
do eu para Deus, ficamos mais próximos Dele e, consequentemente, do caminho dos Seus
desígnios e d´Aquele que o Pai enviou. “Ora, a vontade d´Aquele que me enviou é que eu não
perca nenhum dos que ele me deu, mas que eu os ressuscite nos últimos dias.” (Jo 6,39).

Assim, podemos encontrar no qaddish

Exaltado e santificado seja seu grande nome no mundo, que ele por sua
vontade criou. Faça prevalecer seu reino em vossas vidas e nos dias vossos e
na vida de toda a casa de Israel, prontamente e em breve. E a isto declara:
Amém. (JEREMIAS, 2006, p.65)

A vontade de Deus é que façamos o bem ao próximo, especialmente, com aqueles


que mais precisam: o órfão, a viúva, a prostituta, o sem-terra, o desempregado etc. Somente
fazendo a vontade do Pai, alcançaremos a vida eterna. Afinal, Ele separará os bons dos maus,
aqueles que fazem a Sua vontade dos que não fazem. A justiça é grau de medida de nossas
ações. Quem faz a vontade de Deus, significa que tem o coração puro, que alcançou o
Transcendente e, assim, é profeta da paz, da justiça. (BOFF, 1982, p.83)

Há, também, uma bela oração judaica, quando na proximidade da morte, que diz
como devemos nos abandonar à vontade divina: “Que a tua vontade seja a de curar-me, mas
13
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

se minha morte está decretada por ti, eu a aceitarei, com amor, de tuas mãos”. (DI SANTE,
2004, p.33). Parece que ela foi inspirada da fala de Judas: “porque é melhor para nós morrer
em combate do que presenciar as desgraças de nossa nação e de nosso lugar santo. A vontade
celeste será cumprida.” (1Mc 3,59-60)

2.6 Assim no céu como na terra

Quando abrimos o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis ou Bereshit, deparamo-nos com


as primeiras palavras da narrativa da criação que diz: “Início da criação do céu e da terra por
Deus.” (Gn 1,1). O céu representa a realidade espiritual e a terra o material. E uma vez que no
céu a vontade de Deus já está posta, como podemos perceber na fala de Bildad a Jó: “a ele
que nas alturas estabelece a paz.” (Jó 25,2b) (HADDAD, 2017, p.84). A graça vem do alto para
atingir depois a nós (a terra): “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que cria céu e terra!”
(Gn 14,19b)

Dessa forma, estamos mantendo uma relação com o transcendente. Não que o céu
seja um lugar específico, a morada divina igual ao monte Olimpo grego. O céu é o lugar
teológico, por excelência, da presença divina e é aquilo que devemos almejar e ajudar a
construir nesse plano de vida.

2.7 O pão de amanhã, dai-nos hoje

É comum, nas traduções, encontrarmos o enunciado “O pão nosso de cada dia dai-
nos hoje”. Todavia, como afirma Jeremias (2006, p.317), a tradução mais correta seria “O pão
de amanhã, dai-nos hoje”, uma vez que, seguindo uma tradição judaica da época de Jesus,
amanhã, muitas vezes, sugere o Grande dia, o Cumprimento Final. Trata-se de um termo
escatológico em que se espera a vinda do Reino imediatamente. É claro que não podemos
deixar de considerar o fato de, assim como Jesus que era do campo, muitos judeus pedirem a
Deus que houvesse sempre uma boa colheita: preces típicas de quem nunca sabe como vai
ser o dia de amanhã, já que no campo tudo é inesperado.

Assim, encontramos na nona petição das dezenove bênçãos:

“Abençoa, Eterno, nosso Deus, este ano e todos os produtos da colheita. Faz
cair orvalho e chuva (no inverno) de benção sobre a terra e traz fartura pela
Tua Bondade. Abençoa o nosso ano como todos os outros anos abençoados,
pois Tu é Deus da bondade e benfazejo, que abençoas os anos. Bendito sejas
Tu, Eterno, que abençoas os anos.” (SIDUR, 2008, p.69)

2.8 Perdoa as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores
14
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

Na quinta benção da amidá se diz:

Reconduze-nos à Tua lei, ó nosso Pai, retoma-nos ao teu serviço, ó nosso Rei, e
faça com que regressemos com sincero arrependimento para Ti. Bendito sejas
Tu, Eterno, que Te comprazes com o arrependimento. (SIDUR, 2008, p.68)
E na sexta benção:

Perdoa-nos, ó nosso Pai, pois pecamos; perdoa-nos, ó nosso Pai, pois


transgredimos; porque Tu é um Deus bom e clemente. Bendito sejas Tu,
Eterno, ó Misericordioso, que perdoas abundantemente. (SIDUR, 2008, p.68)
“Perdoai as nossas ofensas, assim como (também) perdoamos a quem nos tem
ofendido”, há aqui ao menos duas confusões, com relação às traduções em português. A
primeira é que, em Mateus, se traduziria “perdoai as nossas dívidas” – tradução literal do
aramaico e, em Lucas, “perdoai os nossos pecados” – terminologia grega. E, tanto pecado
como dívida nos remetem ao termo aramaico hôbâ, que se refere a uma dívida financeira. No
entanto, as traduções para o português costumam ampliar o seu sentido para um modo geral,
como ofensas. (JEREMIAS, 2006, p.68)

A outra confusão é que, seguindo esta tradução tradicional, acabamos por inverter os
papéis, ou seja, pedimos a Deus que nos perdoe, do mesmo modo como perdoamos os outros
que tenham feito algum mal a nós. Para uma possível aproximação do aramaico, Jeremias
(2006, p.72) nos propõe: “assim como também nós, ao dizer estas palavras, perdoamos aos
nossos devedores.” Porque devemos primeiramente expressar o nosso sincero
arrependimento, conforme tanto a teologia do evangelho de Mateus como o que está
prescrito na quinta benção da amidá acima.

2.9 E não nos conduzas à tentação

Na expressão “e não nos conduzas (deixes cair em) à tentação”, identificamos a


sugestão de que Deus é quem nos conduz à tentação. Contra esse pensamento, talvez, é o
que Tiago (1,13-14) escreve: “Que ninguém, quando for tentado, diga: ‘Minha tentação vem
de Deus’. Pois Deus não pode ser tentado a fazer o mal e a ninguém tenta. Cada qual é tentado
por sua própria concupiscência, que o arrasta e seduz”.

Nesse sentido, Jeremias (2006, p.74) afirma:

O que efetivamente se pede aqui é sermos protegidos durante a tentação e


não o sermos preservados dela, confirma isto certo logion extra canônico.
Segundo uma tradição antiga, Jesus tinha dito na última noite, antes da
oração do Getsêmani: “Ninguém pode alcançar o reino dos céus sem ter
15
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

passado antes pela tentação”.

Dessa maneira, podemos utilizar tal expressão, desde que compreendamos que a
tentação é algo a que todos estamos à disposição e devemos dedicar convicção de que Deus
caminha conosco para o bem.

Há um Midrash do salmo 26 (Midrash Tehelim) que diz o seguinte:

Examina-me e me prove: Prova-me como Abraão que superou a prova; como


Isaac que foi posto sobre o altar e saiu-se bem; como José provado pela
mulher de Putifar e que saiu mais forte. Apenas Davi ter sido provado,
declarou: ‘Eu não tenho força, de graça alivia-me’. Assim um homem não
deve comparar-se a um maior do que ele dizendo: ‘meu coração é garantia
de que eu não cairei’. E se Davi com todas as suas virtudes [...] não teve êxito,
com maior razão o comum dos homens. (HADDAD, 2017, p.106)
Na sétima benção da amidá encontramos:

Vê, rogamos, a nossa aflição e toma a nossa defesa; redime-nos depressa


com uma perfeita redenção, por amor ao Teu Nome, porque Tu és um Deus
libertador e poderoso. Bendito sejas Tu, Eterno, Redentor de Israel. (SIDUR,
2008, p.68)
2.10 Mas livrai-nos do Mal

Pedir a Deus que nos livre do mal é dizer que não queremos viver segundo a maldade,
que paira no mundo, mas que queremos viver o Seu Amor. Ninguém deseja viver para o mal,
porém, existe muitas pessoas que nunca aprenderam a viver o bem. Há uma oração judaica
vespertina (TB berakôt 60b) que nos dá inteiramente o sentido que devemos seguir: “Não
conduzas meu pé ao poder do pecado e não me leves ao poder da culpa, e não ao poder da
tentação, e não ao poder da infâmia” (JEREMIAS, 2006, p.74)

Se a Bíblia aponta a origem do mal e do pecado original, ela o faz não para saber
como o mal entrou, mas para saber como o mal poderia sair. Nesse sentido, ao menos na
narração do paraíso, a raiz do mal ou o pecado original não é só, nem em primeiro lugar, um
fato determinado, ocorrido no início da humanidade, mas é, também, uma realidade atual e
universal que atua no hoje de cada geração, como uma força perigosa e ameaçadora da qual
cada geração é responsável, incluindo a primeira.

''Bem-aventurado é aquele que atende ao pobre; o SENHOR o livrará no dia


do mal. O Senhor o livrará, e o conservará em vida; será abençoado na terra,
e tu não o entregarás à vontade de seus inimigos. O Senhor o sustentará no
leito da enfermidade; tu o restaurarás da sua cama de doença.'' (Sl 41,1-3)

16
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

Já para o autor do Gênesis (Gn 2,25 – 3), a narrativa do paraíso procura estabelecer
uma ligação entre a transgressão da lei e a percepção da nudez. Da percepção da nudez, todos
têm consciência, pois é um fenômeno humano universal, da transgressão da Lei de Deus, por
sua vez, nem todos têm consciência. A maioria das pessoas parecem estar dormindo e devem
ser acordadas. O autor quer acordá-los, aludindo à nudez. Isso significa que as referências à
nudez são um meio para confrontar o leitor com o mistério do mal que nele reside e que ele
desconhece.

2.11 Porque Teu é o Reino, o poder e a glória para sempre.

Muitos estudiosos observam que o enunciado “porque Teu é o Reino, o poder e a


glória para sempre”, representa um acréscimo da liturgia primitiva cristã. No entanto,
acreditamos que ela faz parte do primeiro manuscrito do evangelho de Mateus. Não nos cabe
aqui entrar em detalhes, mas sabemos que tal evangelho nasceu em uma comunidade
essencialmente judaica que professava a fé em Cristo. (JEREMIAS, 2006, p.76).
Compreendemos que, por se tratar de uma comunidade judaica, é de se imaginar que siga a
tradição judaica e considere o fato de que Jesus era um judeu praticante, assim como os seus
apóstolos; por isso, é de convir que tal oração siga o que era comum da oração judaica (louvor
– pedidos – louvor). Conforme a décima oitava benção da amidá, que antes de passar por um
acréscimo, terminava

Nós reconhecemos humildemente que Tu és o Eterno, nosso Deus, e o Deus


de nossos pais, agora e sempre. Tu és o Rochedo da nossa vida, o Escudo da
nossa salvação de geração em geração. Nós Te agradecemos e entoamos os
Teus louvores, pela nossa vida que está em Tuas mãos e nossa alma que Tu
preservas, pelos milagres que fazes diariamente em nosso favor, as
maravilhas de que nos cerca e as bondades que nos testemunhas a toda
hora, de manhã, ao meio dia e à noite. Deus de bondade, a Tua misericórdia
é infinita, as Tuas graças não se esgotam nunca, a nossa esperança será
eternamente em Ti. (SIDUR, 2008, p.73)
Reconhecer que a Deus pertence “o Reino, o Poder e a Glória...” é afirmar a Sua
superioridade. O povo de Israel sabe disso e sempre procurou reconhecer Aquele que o
libertou do Egito. Toda oração judaica finaliza com um louvor a Deus pois, em qualquer
situação da vida, seja ela triste ou alegre, é Deus quem nos observa. Se passamos uma
dificuldade ou turbulência, o que é comum, não significa que Deus nos deixou, e sim, devemos
procurá-lo em Sua onipresença e pedir por socorro. E, do mesmo modo, agradecer por tudo
o que nos faz.

17
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

Assim, não temos dúvidas de que tanto a Amidá como o Pai Nosso tenham se inspirado
em 1Cr 29,11, que diz: “A ti, SENHOR, a grandeza, a força, o esplendor, a majestade e a glória,
pois tudo, no céu e na terra, te pertence. A ti, SENHOR, a realeza e a soberania sobre todos os
seres.”

2.12 Amém

A palavra amém vem da raiz hebraica āmēn, que significa originalmente uma coluna,
escora que serve de sustento a algo, o que justifica traduzirmos por firmeza, de fato, assim
seja ou certamente. Essa palavra se tornou comum para designar a veracidade de algo, usado
geralmente no sentido legislativo, porém, tornou-se mais comum no término de orações a
Deus, confirmando Seus atributos, promessas etc. No Novo Testamento é utilizado, muitas
vezes, como aclamação litúrgica, para corroborar com uma súplica ou louvor ou ainda para
finalizar cartas. (BAUER, 2000, p.10)

Podemos encontrar no profeta Jeremias (11,5): “‘e poderei então cumprir o


compromisso solene, que assumi com vossos pais, de lhes dar uma terra que mana leite e
mel.’ Como hoje se vê. E eu respondi: ‘Sim (Amém), SENHOR’.” O salmo (106,48) finaliza:
“Bendito seja o SENHOR, o Deus de Israel, desde sempre e para sempre. E todo o povo dirá:
‘Amém! Aleluia!’.”

Considerações finais

Antes que as palavras cheguem aos lábios, a mente deve acreditar na boa vontade
de Deus em querer se aproximar de nós e em nossa capacidade de preparar o caminho para
Ele. Esta é a ideia que nos leva à oração. Orar é reconhecermo-nos, é colocar em sintonia
nossa percepção, volição, memória, pensamento, esperança, sentimento, sonhos, tudo o que
se move em nós. A essência da oração não está nas palavras que pronunciamos, no culto dos
lábios, mas na maneira em que a devoção do coração corresponde ao que as palavras
encerram, na consciência de estarmos falando sob os seus olhos. A oração é a forma mais fácil
de encontrarmo-nos com Deus, pois ela nos permite ir ao encontro do Absoluto. Ainda,
implica o diálogo por excelência, pois é pela oração que expressamos a nossa vontade de
buscar, no âmago de nosso ser, as respostas mais íntimas e complexas da nossa existência e
do mundo.
Pela oração, entregamo-nos ao amor de Deus, em prol da caridade com o outro. A

18
PAI NOSSO: UMA ORAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ CADERNOS DE SION

oração conduz-nos pelas veredas do dom da vida. Sem oração não percebemos a criação em
sua inteireza, pois ela é a luz que ilumina a nossa compreensão. Ela também é um “êxtase
espiritual”, como se todos os nossos pensamentos vitais, num ardor veemente, irrompessem
numa torrente impetuosa na direção de Deus. Uma força irrompe da solidão da nossa alma e
arrebata as nossas aspirações para o máximo, para o mais alto, para o sublime.

Por isso, o Pai Nosso, nascido nas entranhas do judaísmo formativo, ainda continua
tão atual e fundamental para a nossa existência. O Pai Nosso é oração judaica, porque vem da
tradição litúrgica judaica e das orações judaicas. Quando a tradição cristã aponta a oração que
as primeiras comunidades experimentaram, a partir da sua história, como a partir da
experiência que fizeram com o Messias que creram e dos Seus ensinamentos deixados. Quer
nos mostrar que ela tem um conteúdo fundamental do qual podemos experimentar o Eterno
e nos pôr em relação com o próximo, com nossos irmãos.

Pela oração do Pai Nosso, somos imersos no universo da fé judaico-cristã, que enxerga
a oração como movimento duplo: fé e vida. Dessa maneira, o contato com o Absoluto deve
nos levar ao contato com o outro, para que sejamos todos um com o Um, conforme expressou
o rabino Haddad (2017, p.17): “Esta oração possui sua originalidade, inscrevendo-se no
coração da liturgia de Israel”. Ao rezá-lo, nós cristãos, estamos automática e espiritualmente
entrando em diálogo com a tradição judaica; estamos, portanto, dialogando não somente com
o totalmente Outro, mas com o outro: nossos irmãos judeus, que ricamente nos transmitiu o
seu legado de fé e existência.

O diálogo pressupõe sempre o desejo de se conhecer reciprocamente e de


aprofundar tal conhecimento. Ele constitui, de fato, um meio privilegiado
para favorecer um melhor conhecimento mútuo e, particularmente no caso
do diálogo entre judeus e cristão, para aprofundar mais as riquezas da
própria tradição. É condição do diálogo, porém, o respeito da sua fé e das
suas convicções religiosas. (CONGREGAÇÃO DAS RELIGIOSAS DE NOSSA
SENHORA DE SION, 2008, p.15)

REFERÊNCIAS

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19
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BOFF, Leonardo. O Pai Nosso: a oração da libertação integral. 3ª. Petrópolis: Vozes, 1982.

. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

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E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO DA ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO – CEDRA. Diálogo da Igreja
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ

Fernando Gross

Doutorando em Teologia pela PUC-SP, Mestre em Teologia pela PUC-SP, Especialista em


Teologia e História Judaica pelo CCDEJ e, atualmente, professor no CCDEJ

RESUMO

Dentro das narrativas e tradições bíblicas pertencentes ao Livro do Êxodo (7-10), este artigo tem
como tema o estudo de parte da exegese judaica a partir do coração do faraó. Tem comoobjetivo uma
aproximação da teologia cristã com os ensinamentos da Igreja, desde o ConcílioVaticano II e os atuais
documentos da Igreja sobre a importância de uma rica complementaridade, que nos permita ler
juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra
(Evangelii Gaudium, n° 249). Destacamospara isso a metodologia da aproximação do pensamento de
sete exegetas judeus a respeito do que se reflete sobre o coração opressor do rei do Egito. Como
resultados apresentamos o quanto importante é conhecermos a exegese judaica para uma melhor
compreensão da exegese cristã, considerando as conclusões na necessidade do diálogo com o vasto
patrimônio cultural e ético do qual herdamos em nossa identidade cristã, a partir da raiz santa da
identidade judaica.

Palavras-chave: Torah; Judaísmo; Cristianismo; Coração do Faraó; Narrativas do Êxodo.

ABSTRACT

Within the biblical narratives and traditions belonging to the book of exodus (7-10), this articlehas as its
theme the study of part of jewish exegesis from the heart of the pharaoh. it aims to bring christian
theology closer to the church's teachings since the second Vatican Council and the current church
documents on the importance of a rich complementarity that allows us to read together the texts of
the hebrew Bible and help each other to unravel the riches of the word (Evangelii Gaudium, n ° 249).
We highlight the methodology of approaching the thinking of seven jewish exegetes about what is
reflected on the oppressive heart of the king of Egypt. As a result we present how important it is to
know jewish exegesis for a better understanding of Christian Exegesis, considering the conclusions on
the need for dialogue with the vast cultural and ethical heritage from which we inherit in our christian
identity from the holy rootof jewish identity.

Keywords: Torah; Judaism; Christianity; Pharaoh's Heart; Exodus narratives.

Considerações Iniciais

O que acontece de fato no interior desse órgão tão importante do coração de quem
governava o Egito? O que podemos compreender dentro das narrativas e tradições bíblicas
pertencentes no Livro do Êxodo sobre o conceito de livre-arbítrio e a responsabilidade do
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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
faraó sobre o evento Pascal da libertação dos Filhos de Israel daquela situação opressora em
que viviam? O que nos falam a respeito disso a exegese judaica? Essas são algumas questões
que se pretende responder nesse estudo a partir de uma aproximação de parte da exegese
judaica a partir do coração do faraó. Isso é o que a Igreja nos pede desde o Concílio Vaticano
II e os documentos do seu Magistério sobre a importância do diálogo com a rica experiência
que os Judeus possuem de ler as Sagradas Escrituras.
Esse artigo tem como objetivo realizar um estudo sobre o que refletiram sete exegetas
judeus sobre o movimento interior no coração do governante do Egito mencionado sobretudo
nos capítulos 7 a 10 do Livro do Êxodo. A teologia cristã pode incluir a novidade dos estudos
judaicos em sua reflexão? Não é isso que nos propõe os ensinamentos da Igreja desde o
Concílio Vaticano II e os atuais documentos da Igreja sobre a importância de uma rica
complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos
mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra (Evangelii Gaudium, n° 249)?
Este artigo quer, portanto, mostrar um exemplo da riqueza desse diálogo e o quanto
perdemos com a desconfiança e o desconhecimento dos estudos judaicos. É preciso crescer
nesse exercício dialogal com o vasto patrimônio cultural e ético do qual herdamos em nossa
identidade cristã a partir da raiz santa da identidade judaica.

Desenvolvimento - Diversos comentários judaicos antigos e modernos

“Eu endurecerei o coração do faraó e multiplicarei meus sinais (milagres) e maravilhas


na terra do Egito” (Ex 7,3).
Estas palavras foram ditas a Moisés antes do conflito com o faraó e do início das 10
pragas: “elas tinham a intenção de informar a Moisés o curso dos eventos que iriam ocorrer
dali em diante” (LEIBOWITZ, Nehama. New Studies in Shemot - Exodus, 1996, p.149.). Sempre
nos é dito que foi o próprio faraó quem obstinou o seu coração, por meio do livre-arbítrio:

E o coração do faraó se obstinou” (Ex 7,13); após a praga do sangue:


“e se reforçou/fortaleceu o coração do faraó” (Ex 7,22);após as rãs: “e
vendo faraó que havia descanso atribuiu peso ao seu coração” (Ex
8,11); após os piolhos: “e se reforçou/fortaleceu o coração do
faraó”(Ex 8,15); após a mistura de animais nocivos, cobras e
escorpiões: “Mas desta vez, de novo, o faraó tornou pesado o seu
coração e ele não enviou o povo” (Ex 8,28); após a peste: “o coração
do faraó tornou-se pesado e não deixou o povo sair (Ex 9,7).

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A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
Foi somente a partir da 6ª Praga, os furúnculos, que vemos o cumprimento da Divina
Promessa feita a Moisés: “E reforçou/fortaleceu o SENHOR o coração do faraó, como Deus
tinha dito a Moisés” (Ex 9,12). Daqui em diante isso acontece após cada Praga: após os
gafanhotos: “Porque eu atribuí peso ao coração dele e ao coração de seus servos” (Ex 10,1);
“Contudo, o SENHOR reforçou, fortaleceu o coração do faraó” (Ex 10,20); e antes da Praga da
Morte dos Primogênitos: “O SENHOR reforçou/fortaleceu o coração do faraó e ele não quis
mais enviá-los” (Ex 10,27).
Esses textos sempre questionaram os comentadores e exegetas judeus ao longo dos
séculos, porque parecem contradizer o princípio humano do livre-arbítrio, “um princípio
estabelecido do Judaísmo” (WIGODER, Geoffrey . Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme,
1996, p. 586-588), e que é um princípio estabelecido do Judaísmo.5
Vejamos como os comentadores judeus trabalharam a questão do livre-arbítrio e o
endurecimento do coração do faraó.
Existe culpa por parte do faraó, já que Deus teria lhe tirado a possibilidade de mudar
sua decisão. Se Deus endureceu o coração de quem governava o Egito, ele seria livre para
decidir realmente? O comentador do Midrash a seguir expõe uma dessas reflexões sobre tais

atitudes de Deus e do faraó: “Pois Eu endureci o seu coração” (Ex 9,1) – Disse Rabi Yohanan:6
Isso permite uma abertura para que os hereges possam dizer: A ele (faraó) não foi permitido
por Deus arrepender-se! (Shemot Rabbah13,4).
Ramban7 coloca a questão de modo claro: “Se o Senhor endureceu seu coração, então
qual foi afinal seu crime?” Lembraremos algumas das respostas de exegetas e comentadores
judeus.

SHADAL8
A posição de cada um dos próximos sete pensadores judeus indicarão para nós como

5
Princípio filosófico e teológico para os judeus que confere ao indivíduo a possibilidade de agir por sua própria
vontade e segundo suas próprias ações. Esse princípio no judaísmo foi discutido em todas as épocas e se
confronta sempre ao conceito do determinismo, divino ounatural. Provindo da vontade individual, as ações
humanas são, portanto, integralmente imputáveis ao seu autor.
6
Rabi Yohanan bar Nappaha (180-279 d.C.) foi rabbi na época nascente do Talmud. Nascido na Galileia e ensinado
pelo próprio Yehudah Ha Nasi nos caminhos da Torah, a qual estudou e ensinou diligentemente por toda a sua
vida. Considerado o maior rabbi na terra de Israel.
7
Ramban, abreviação de Rabi Moshe ben Nachman, ou Nachmânides (1194-1270), um rabino catalão,
médico e grande conhecedor da Torá.
8
Shadal, abreviação de Samuel Davi Luzzatto, era professor de italiano, poeta e membro domovimento de Estudos
Judaicos (1800-1865).

24
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
a tradição judaica refletiu sobre o coração opressor do faraó.

Saiba que todos os atos são atribuídos a Deus, já que Ele é a sua últimacausa,
algumas por absoluto decreto, e outras através da operação da escolha
humana garantida por Ele... No sentido que Ele é o autor de todos os atos,
Ele endureceu o coração do faraó. (FIELDS, 2015,p. 36.)

Nesse caso, nós poderíamos nos perguntar, por que afinal a Torah não atribui tudo o
que acontece, não ao seu imediato autor, mas diretamente para o último e único Deus? Seria
Deus realmente o responsável e não o faraó pelo seu endurecimento? Shadal é cuidadoso em
colocar essa objeção:
Os atos atribuídos a Deus nas Escrituras são aqueles que não são comuns,
as suas causas estão para além do nosso entendimento. A obstinação do
faraó foi um exemplo disso, desde a sua persistente recusa em prestar
atenção aos prodígios das pragas já foi um assunto para se admirar.
Compare a citação de Deuteronômio 29,3: 'Contudo, até o dia de hoje o
SENHOR não vos tinha dado um coração para compreender, olhos para ver
e ouvidos para ouvir'. (LEIBOWITZ, 1996, p.151)

No entender de Shadal, no entanto, a frase “Contudo, o SENHOR reforçou, fortaleceu o


coração do faraó” (Ex 10,20), não implica que o Senhor tenha destituído o faraó da sua
liberdade de ação, quando na verdade Ele impediu-o de emendar-se de seus caminhos. Não
houve interferência com o processo de arrependimento no qual todo ser humano está
implicado. Apenas nos é apresentado o caminho das Escrituras em nos descrever a própria
obstinação eincorrigibilidade do faraó.

CASSUTO9
Cassuto Rambam destaca aquilo que os textos aparentam de contradições
sobre a questão do livre-arbítrio, reconhecendo que tomam por violência este princípio do
judaísmo. O autor tratará desta questão na introdução do seu oitavo capítulo sobre os Ditos
dos Pais (Pirket Avot). e nas leis do arrependimento. Como são palavras chaves e importantes
para o ouvinte-leitor para a melhor compreensão sobre o livre-arbítrio, transcrever-las-emos
a seguir:
A primeira solução é o caminho que o antigo Hebraico se expressa a si

9
Umberto Cassuto (1833-1951), rabino italiano, sucessor de Samuel Hirsch Margulies como diretor do Seminário
Rabínico de Florença. Grande estudioso da Bíblia, expulso da Universidade de Roma com as leis raciais em 1939,
lecionou na Universidade hebraica de Jerusalém até sua morte em 1951. Autor de muitas obras sob o
pseudônimo de Moshe DavidCassuto, nome de seu avô.
25
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
mesmo. Em uma mulher estéril se dizia: ‘O SENHOR fechou o seu útero’
(1Sm 1,5); num acidente no qual uma pessoa mata sem intenção outra está
escrito: ‘mas se não lhe fez emboscada, Deus permitiu que caísse em suas
mãos’ (Ex 21,13). Todo acontecimento tem um número de causas, e essas
causas, por sua vez, tem outras causas, e assim ad infinitum; de acordo com
a concepção judaica, a causa das causas era a vontade de Deus, o Criador e
o Governador do mundo. Agora o filósofo examina o longo e complexo elo
de causas, enquanto a pessoa comum pula diretamente do último efeito
para a primeira causa e atribui à última diretamente a Deus. Isto, agora, é
como a Torah emprega idiomas humanos e expressa a si mesma.
Consequentemente, a expressão, “mas Eu reforçarei o seu coração” é, em
última análise, o mesmo como se estivesse escrito: “mas seu coração será
obstinado”. Na continuação da narrativa, as frases como “E o SENHOR
reforçou o coração do faraó” alternadas com “E o coração do faraó se
obstinou” podem ser trocadas entre si, porque o seu significado essencial é
idêntico”. (LEIBOWITZ, 1996, p.152)

Cassuto parece ignorar seu próprio cuidado em perceber as nuances e variações dos
textos bíblicos. Parece confundir e igualar o passivo “O coração do faraó se obstinou” (Ex
9,7) com o ativo “O SENHOR reforçou o coração do faraó”.10

ALBO11
Outra aproximação do nosso estudo sobre o que acontece de fato com o coração do
faraó nos é apresentado por Albo no seu clássico livro filosófico chamado Sefer Ha-Ikkarim
(Livro dos Princípios):23

O homem mau se torna piedoso e retorna para o SENHOR quando o golpe


recai sobre si – fora do medo da retribuição, como no caso do faraó que
disse: ‘O SENHOR é justo. Eu e meu povo somos maus’ (Ex 9,27). Mas isso
lembra mais um ato de compulsão e não de livre vontade. E por isso o
SENHOR reforçou ainda mais seu coração, para que ele imaginasse que a
praga fosse meramente acidental antes do que providencial. Isso se deu
para suprimir os amedrontadores efeitos da própria praga, deixando seu
livre-arbítrio sem a influência de nenhuma compulsão. Somente assim
poderia se demonstrar se seu arrependimento era livremente motivado.
Deste modo, os portões doarrependimento estarão sempre fechados diante
da face do malvado. Mas longe do Altíssimo Deus o recusar ao homem o
direito da sua livreescolha para o bem! Pelo contrário, a Escritura atesta: ‘Eu
não sinto prazer na morte de ninguém que morre – oráculo do SENHOR

10
Ex 9,12. Os verbos utilizados na língua original em Hebraico são diferentes entre Ex 9,7 – raiz verbal dbk
obstinou, pesou, tornou pesado o seu coração e a raiz verbal qzx tornou forte, reforçou, fortaleceu o coração do
faraó. Isso demonstra a necessidade também do estudo das línguas originais em que os textos bíblicos foram
escritos para um melhor diálogo e a correção de traduções que neste caso “nivelaram” significados profundos e
diversos dos termos utilizados na redação original.
11
Joseph Albo (em torno de 1360 – 1444) foi um filósofo judeu que viveu na Espanha. Discípulo de Hasdai
Crescas. O seu amplo conhecimento cobria os domínios do pensamento judaico, tanto bíblico como rabínico e
filosófico. Era igualmente versado na filosofia islâmica e na escolástica cristã, sobretudo através dos escritos de
Tomás de Aquino.
26
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
Deus. Convertei-vos e vivereis! (LEIBOWITZ, 1996, p. 152)

Albo reforça, portanto, a necessidade do livre-arbítrio não estar motivado por outros
elementos momentâneos, mas unicamente pelo arrependimento consciente. A conversão
sincera produzirá sempre a vida!

SFORNO12
Outro exegeta judeu, Sforno, adota a mesma citação bíblica em Ezequiel relacionando
o desejo Divino de que o ser humano se arrependa dos seus caminhos:
O Altíssimo Deus enviou as pragas para estimular os egípcios ao
arrependimento... e não há dúvidas de que, se o faraó não tivesse
obstinado o seu coração, ele teria deixado os filhos de Israel partirem, mas
sua ação não teria sido motivada por um sincero arrependimento e
submissão à vontade Divina, mas simplesmente para não mais ter de
submeter-se ao sofrimento das pragas, assim como seus servos o
intimaram: ‘Não sabes ainda que o Egito está destruído?’. Mas isso não teria
de fato constituído seu verdadeiro arrependimento. Tivesse o faraó
desejado submeter-se a Deus e sinceramente retornado a Ele, nada disso
teria ocorrido no seu caminho. Mas Deus reforçou o seu coração, fortaleceu
sua resistência para permitir a ele que aguentasse as pragas e detivesse a
partida dos filhos de Israel: ‘para que eu mostre os Meus sinais no meio
deles’, para que eles possam, desse modo, reconhecer Meu poder e
bondade e voltar para Mim em verdadeiro arrependimento. (LEIBOWITZ,
1996, p. 153)

Sforno comenta sobre essa interpretação sobre o fortalecimento do coração, que


implica resistência para suportar o sofrimento. Contudo, esta não é uma opção do seu livre-
arbítrio, mas, pelo contrário, o reforço do coração em questão para a não remoção do
obstáculo e para a sua decisão irrestrita de voltar-se para o verdadeiro Deus.

RAMBAM13
Rambam destaca aquilo que os textos aparentam de contradições sobre a questão do

12
Sforno, Obadiah Ben Jacob (em torno de 1470 – em torno de 1550). Comentador da Bíblia, filósofo e médico
nascido em Cesena, na Itália. É considerado uma das maiores autoridades rabínicas da cidade por seu saber
talmúdico e sua maestria sobre questões halákhicas. Ele ensinou o hebraico a Johannes Reuchlin, o famoso
humanista cristão, de 1498 a 1500.
13
Rambam é o nome dado ao grande pensador Moshe ben Maimon (“Maimônides”). Nasceu em 1135 em
Córdoba e faleceu em 1204 no Egito. Foi um judeu sefaradita, filósofo e astrônomo e se tornou um dos mais
importantes e influentes professores de Torah e de ciências físicas da Idade Média. Seus quatorze livros de
comentários da Torah (Mishneh Torah) e a sua obra o Guia dos Perplexos ainda continuam importantes hoje na
codificação das leis do Talmud. É chamado a Grande Águia em reconhecimento ao seu entendimento e exposição
da Torah Oral.
27
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
livre-arbítrio, reconhecendo que tomam por violência este princípio do judaísmo. O autor
tratará desta questão na introdução do seu oitavo capítulo sobre os Ditos dos Pais (Pirket
Avot) e nas leis do arrependimento. Como são palavras chaves e importantes para o
ouvinte-leitor para a melhor compreensão sobre o livre-arbítrio, transcrever-las-emos a
seguir:
Existem muitas passagens nas Escrituras que parecem contradizer o
princípio do Livre-Arbítrio e muitos se deixaram enganar pelo seu conteúdo.
Eles imaginam que o Santo Deus predestine o homem para o bem ou para o
mal. Eu, no entanto, fornecerei uma chave para a compreensão dessas
passagens. Quando um homem peca por própria conta, ele é punido...
algumas vezes neste mundo, outras no Mundo Vindouro, e algumas vezes
em ambos. Quando isso se aplica? Quandoele não se emenda. Mas se ele se
corrige, o arrependimento é um antídoto para essa retribuição. Assim como
os pecados foram de sua própria opção, assim também o é o
arrependimento.
Mas acontece algumas vezes que a ofensa do homem seja tão grave que ele
acaba sendo penalizado em não lhe ser mais concedido a oportunidade de
voltar atrás da sua perversidade, assim sendo ele morre com o pecado que
ele cometeu. (...) Confira também 2Cr 36,16: 'Mas eles zombavam dos
mensageiros de Deus, desprezavam as suas palavras, e riam dos seus
profetas, até que a ira de Deus se desencadeou sobre Seu povo e não
houve mais remédio'. Em outras palavras, eles pecaram por sua própria e
livre vontade, até que eles mesmos confiscaram de si mesmos a
oportunidade do arrependimento, o qual é o clássico remédio.
Para esse fim, a Escritura afirma também: “E eu endurecerei o coraçãodo faraó”. Ele pecou, primeiro
por sua livre vontade... até que ele mesmo retirou de si a oportunidade de se arrepender.(...) Nós
podemos, portanto, concluir que não foi Deus quem forçou o faraó a fazer o mal a Israel, ou Seom
para cometer iniquidades na sua terra, ou os cananitas a adotarem práticas abomináveis, ou nem
mesmo forçou Israel a servir aos ídolos. Todos eles pecaram por suas próprias sugestões, perdendo o
direito ao arrependimento. (LEIBOWITZ, 1996, p.154-155)

A explicação de Rambam, num primeiro momento, pode parecer contraditória. O


autor havia formulado o princípio absoluto do Livre-arbítrio nas suas leis de arrependimento
no seu Código do Judaísmo (Mishné Torah 5,2-3):
Ninguém força, predestina ou obriga alguém a seguir um destes dois
caminhos – ele somente é o único árbitro. De sua própria vontade ele se
inclina para qualquer caminho que ele queira seguir. Este é um princípio
fundamental do judaísmo – o homem é absolutamente livre para executar
qualquer ação – seja ela má ou boa. (LEIBOWITZ, 1996, p.156)

Se assim for, como poderia então Deus retirar da própria vontade do faraó o poder de
arrepender-se? Quem sabe com um olhar mais atencioso isso se clarifique. A decisão final
sempre permanece com o homem. No início, contudo, o homem é livre para escolher
qualquer caminho de ação que ele desejar. A ele é oferecido uma igual oportunidade para o

28
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO CADERNOS DE SION

DO FARAÓ
bem ou para o mal, mas tão logo ele tenha feito a sua primeira escolha, então as
oportunidades diante dele já não são mais assim tão balanceadas. Quanto mais ele insista no
primeiro caminho escolhido, digamos, o mau caminho, mais duro se torna para ele retomar o
bom caminho. Em outras palavras, não é o Senhor Deus que lhe dificultou sua liberdade, e
tornou o caminho do arrependimento difícil para ele. Ele mesmo, por sua própria escolha e
persistência no mal, colocou para si obstáculos no caminho de volta para se emendar.
Rambam continua:
Os justos e os profetas sempre pediram ao SENHOR Deus para ajudá- los a
se manterem no verdadeiro caminho: “Ensina-me o teu caminho, SENHOR”
(Sl 27,11). Não permita que meus pecados me separem do verdadeiro
caminho, através do qual eu possa conhecer Teu caminho e a unidade do
Teu Nome. Cf. Salmo 51,12: e um espírito novo, pronto a obedecer”. Em
outras palavras, deixe que meu espírito realize a Tua vontade e não deixe
meus pecados me levarem à recusa ao arrependimento. Mas deixe que a
iniciativa permaneça sempre comigo, para me tornar capaz de voltar atrás e
entender e conhecer ocaminho da verdade...
Não foi a isso a que Davi se referiu quando disse: “Bom e justo é o SENHOR;
por isso mostra o caminho aos pecadores. Conduz os humildes na justiça e
lhes ensina o seu caminho” (Sl 25, 8-9). Deus mesmo enviou profetas para
divulgar os caminhos do SENHOR e chamar o povo ao arrependimento.
Além disso, ele deu a eles o entendimento de quanto mais um homem é
atraído para os caminhos da sabedoria e da justiça, ele os desejará mais e
mais cultivá-los e permanecer neles. Para isto os nossos Sábios referem-se
nos seus escritos: “aquele que procura purificar-se a si mesmo, é ajudado
pelo Alto” implicando que ele vai encontrar o seu caminho aplainado.
(LEIBOWITZ, 1996, p.156-157)

Rambam ressalta nessas linhas o recíproco das relações entre o ser humano e o próprio
Deus. Deus não forçou o faraó a escolher um mau caminho. Foi uma opção do faraó e, uma
vez que ele persistiu no caminho das suas ações, isso se tornou para ele mais difícil de resistir.
Deus construiu essa resposta, por assim dizer, dentro da própria construção que o homem

fez. Quanto mais um homem peca, mais os seus pecados se tornam uma barreira entre ele e
o arrependimento.
Olhemos para um ditado rabínico citado pelo próprio Rambam:
Disse Resh Lakish:14 Qual é a força do texto (Pr 3,34): “Dos zombadoresele vai
zombar, mas aos humildes ele vai mostrar o seu favor”. Se ele tentar se
contaminar vai ser lhe dado uma abertura; se ele tentar se purificar a si
mesmo ele é ajudado pelo alto. (Shabat 104a)

14
Shimon ben Lakish foi um mestre Amoraíta mais famosos da segunda geração, que viveu no século III d.C. Foi
um dos gigantes do estudo da Torah.
29
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

RASHI

Rashi15 sobre isso aponta claramente em seu comentário:


“Se para os zombadores, ele vai desprezar”: ele vai desprezar por sua própria
iniciativa: Ninguém vai encorajá-lo e ninguém vai detê-lo. “Para os humildes” se ele
se sente atraído por uma qualidade moral “Ele irá mostrar seu favor”, ele será
ajudado pelos Céus. Se ele tenta se contaminar, se lhe abre uma oportunidade; se
ele tenta se purificar a si mesmo, ele é ajudado pelo Alto e uma oportunidade é
preparada para ele.
Disse Resh Lakish: Qual é a força do texto (Pr 3,34): 'Dos zombadores ele vai zombar,
mas aos humildes ele vai mostrar o seu favor'. Se ele tentar se contaminar vai ser
lhe dado uma abertura; se ele tentar se purificar a si mesmo ele é ajudado pelo alto”
(Shabbat 104a ). E ele mesmo como Sábio do Talmud responde à questão do Rabbi
Yohanan: O Santo Deus espera pelo homem uma, duas e uma terceira vez, mas não
mais. Ele fecha seu coração ao arrependimento a fim de exigir punição para seu
pecado. Assim também para o perverso faraó: O Santo Deus deu a ele cinco
chances, mas ele não lhe deu atenção alguma. Diante disse o Santíssimo Deus disse:
Tu endureceste teu pescoço e obstinaste o teu coração. Eis então que Eu vou
acrescentar mais degradação junto à tua degradação (Shemot Rabbah 13,4).
Portanto, com os zombadores Ele desprezará toda possibilidade ao arrependimento,
pois este arrependimento não foi sequer considerado por eles.

Rashi demonstra portanto, em seu comentário, toda as possibilidades oferecidas e


rejeitadaslivremente antes do decreto divino da sua punição. Mas o faraó não prestou e nem
deu atenção ao que devia dar atenção, não considerou as palavras do SENHOR Deus que lhe
foram oferecidas.

HIRSCH16
Muitos séculos antes, o próprio Sábio do Talmud Resh Lakish responde à questão do
Rabbi Yohanan e parece ter uma explicação semelhante à proposta dada pelo Rabbi Hirsch:
Se Deus movia todas as fichas e faraó não tivesse livre-arbítrio, o soberano
egípcio não poderia ser responsabilizado pelas suas escolhas. Isso
significaria então que nenhum de nós é verdadeiramente livre e os atos que
nós acreditamos ser inspirados pelo amor ou pelo ódio, a generosidade ou
o egoísmo, a justiça ou a indiferença não são nada mais que ilusão. Seria

15
Rashi, acrônimo de Rabbi Chlomo Yitschaki (Salomon Ben Isaac) (1040-1105). Foi eminentecomentador judeu da
Biblia e do Talmud. Sua principal contribuição se dá no campo da exegese metodologicamente baseada nos
procedimentos gêmeos do pechat e do derach; o primeiro se define como o sentido óbvio, o segundo procura
encontrar um sentido mais profundo do texto para ilustrar, revelar uma lei ou uma postura ética. Todos os seus
comentários são ricos em derach eo folclore midráshico fornecendo sempre uma nova dimensão à interpretação
do texto. Sua influência não se restringiu somente ao judaísmo. Nicolas de Lyre, frade franciscano (1270-1340)
lia Rachi no texto original – hebraico – e no seu próprio comentário bíblico, cita frequentemente Rachi.Cf.
Bouquins, Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme./ (verbete Rachi)
16
Rabbi Samson Raphael Hirsch (1808-1888) foi um rabbi alemão conhecido como o intelectual fundador da
Escola Torah im Derech Eretz, contribuindo para o desenvolvimento do Judaísmo Ortodoxo.

30
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

isso que a Torah nos ensina quando fala que Deus “endureceu o coração do
faraó?”, pergunta Rabbi Yohanan ao seu cunhado Rabbi Simeon ben Lakish,
companheiro de estudo e amigo próximo.
“Deus – explicou Resh Lakish – ofereceu ao faraó muitíssimas ocasiões para
mudar seu ponto de vista e permitir aos filhos de Israel para deixar o Egito.
As pragas foram enviadas com a finalidade de advertências na esperança
que o faraó, tomado pelo arrependimento, libertasse os escravos: Tendo
Deus avisado por cinco vezes e ele ignorado e continuado a obstinar-se em
seu coração, então Deus lhe disse: Eu vou acrescentar mais dificuldades
àquelas que você criou porsi mesmo”. (FIELDS, 2015,p. 38)

Aqui está, dessa maneira, o que a Torah nos ensina sobre o que ela menciona o coração
fortalecido, o coração obstinado, ou o coração endurecido do faraó. Foi a própria teimosia do
faraó que agiu sobre seu próprio coração não prestando atenção ao que devia pensar e mudar.
Assim, é o ser humano por si mesmo quem escolhe, quem abre ou se obstina em seu coração.
O Senhor Deus o ajuda em seu caminho, mas a ajuda positiva proporcionada ao homem bom
não é comparável com a passiva assistência dada de modo a remover os obstáculos
levantados por si mesmo, tendo ele escolhido o mau caminho.

Considerações diversas sobre o coração do faraó

O psicanalista moderno, filósofo e sociólogo alemão Erich Fromm (1900-1980) entrou


em contato com essa análise dos exegetas judeus, sobretudo a de Rambam Maimônides.
Compreendeu que a Torah, ao descrever os ocorridos relacionados ao coração do faraó, está
na verdade descrevendo “uma das leis fundamentais do comportamento humano” (FROMM,
1966, p. 101. Citado em FIELDS, 2015, p. 39). Cada ato mau tende a endurecer o coração
humano, mortificando-o e envenenando-o. Por sua vez, cada ato bom tende a adocicá-lo, a
torná-lo mais vivo (FIELDS, 2015, p. 39). 40
Quanto mais o coração humano torna-se pesado, menos ele será capaz de
liberdade para mudar e cada vez mais se tornará determinado, dependente
diríamos, das suas ações precedentes. Ocorre então o ponto de não-
retorno, quando o coração do ser humano está tão empedernido e tão
insensível que ele perdeu toda a capacidade de fazer escolhas livres e que
ele está forçado a continuar sobre o mesmo trilho até o fim irremediável –
aquele que em última análise – o conduzirá para a sua própria destruição
física ou espiritual. (FROMM, op. cit. p.101)

Assim, a primeira escolha do faraó em continuar as perseguições e a opressão contra


os filhos de Israel foi lhe conduzindo finalmente até a esse “ponto do não – retorno” (FIELDS,
op. cit. p. 39). Talvez ele tenha pensado que cedendo às “exigências” do povo, os hebreus e

31
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

também os egípcios concluiriam a sua incapacidade de administrar e se rebelassem.


Implica, dessa maneira, no raciocínio de quem é inseguro e fecha-se à realidade que clama
por liberdade e por vida digna.
O faraó, que pensava que dominava o universo inteiro, na verdade estava dominado
pelo medo do fracasso, incapaz de desenvolver soluções criativas diante dos seus problemas.
A consequência é que o faraó acaba vítima de sua soberania tirana. Isso é trágico em todo
sistema político surdo à voz dos que sofrem, uma vez que o líder tirano acaba por escolher o
caminho da descida em uma ladeira íngreme, impossibilitado de parar e evitar catástrofes
para si e a seu redor.

Além disso, outro ponto merece ainda ser examinado. Um midrash comentava que
“faraó gostava de contar vantagem dizendo que ele mesmo era um deus” (Êxodo Rabba 8,2).
Ele tinha poder de dispor sobre a vida de quem quer que fosse no seu tempo e comandava
inumeráveis exércitos capazes de fulminar quem quer que tentasse se revoltar contra sua
soberania. Ele exercia, através de seus comandantes, poder de vida e de morte sobre
milhares de escravos obrigados a lhe construir as cidades de Pithom e Ramsés. O coração do
faraó acreditava ser indestrutível, de modo que ninguém poderia lhe vencer ou arruinar os
seus planos (Shemot Rabba 8,2).
Já que ele acreditava que era um deus, dez pragas se abateram sobre ele. E o que o
faraó dizia? “O Nilo é meu! Eu o fiz para mim!” (Ez 29,3). Por causa dessas palavras e do seu
modo de pensar sobre si mesmo, Deus lhe oprimiu com as pragas. Nesse sentido, podemos
dizer que o objetivo das pragas acabou também por ser um meio pedagógico: “levar ao
conhecimento de Deus àqueles que se recusavam em reconhecer o Seu poder” (LEIBOWITZ,
1996, p.170-177).
Todas as pragas relatadas pela Torah descrevem essas tentativas repetidas para
quebrar o coração arrogante do faraó e para que ele aprendesse a conhecer ao Senhor Deus.
Seria como perceber, diante de um grande panorama ao olhar para todos os relatos das pragas
do Êxodo, que se trata de um confronto entre a vontade de Deus reconhecido exclusivamente
pelos filhos de Israel e a vontade de um tirano opressor. Assim, as pragas, a derrota
humilhante e o fim vergonhoso daquele que pensava ser o Rei Deus constituíram como uma
saga destinada a inspirar o desprezo para com o paganismo egípcio (SARNA, 1986, p. 80).
O faraó foi vencido, todo o seu exército e sua arrogância não foram suficientes para
impedir a sede de liberdade que Deus tinha colocado no coração dos filhos de Israel. Quanto

32
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

mais o faraó e todo o seu sistema opressor se brutalizava, mais crescia a sua determinação de
serem livres, conforme o desejo soberano e perene de Deus para eles e para todos os povos
da terra.
A cada vez que o faraó tinha uma chance de deixá-los partir para não mais sofrer o
golpe das pragas, ele acreditava a si mesmo ter feito acordo com escravos inferiores a ele,
repulsivos e indignos e seu coração se obstinava. O orgulho de querer ser mais do que os
outros, de conceder ajuda a quem não é importante como ele mesmo era, seu orgulho e

vaidade lhe entorpeciam, cerravam as muralhas para o diálogo e a realidade exterior. A


vaidade do coração do faraó foi o seu próprio carrasco, que o matou.
Por sua vez, a sede de liberdade que Deus havia semeado nesses oprimidos era mais
forte que a obstinação de quem oprime. Esse desejo de liberdade não poderia ser quebrado
por ele e o faraó nada podia contra esse projeto libertador. Deus, dessa maneira, decidiu dar
uma lição ao faraó e a todos os que ouvirem nas gerações futuras falar desse soberano
opressor do Egito. A partir desse momento, Deus iria endurecer ainda mais seu coração
obstinado. E a esse e a muitos soberanos que se arvoram serem um deus e que fizeram e
fazem tanto mal a tantas criaturas e seres humanos pelo seu louco modo de governar, tudo
isso acabará sendo destruído. Deus revelará a sua derrota diante de todos e demonstrará que
o Deus da liberdade sempre vence todas as batalhas contra a opressão.
Assim, essa história das pragas e do coração do faraó não nos interessa tanto por
considerar se os seres humanos são livres ou não de suas escolhas, mas sim o reconhecimento
de o confronto entre aqueles que pretendem ser um deus e o próprio Deus. No confronto
entre aqueles que pretendem governar o mundo e Deus, vence sempre Deus, que liberta o
mundo e os povos de todos os projetos que cerceiam a liberdade e a dignidade humanas.
Será sempre a vitória do Deus de Israel que deseja e ordena tudo e todas as coisas para
a liberdade, a justiça e a digna vida para cada ser humano. Nenhum soberano desse mundo
tem o direito de moer aqueles que governa, e nem de reduzi-los a escravos. A obstinação do
coração do faraó e as pragas milagrosamente enviadas para afligi-lo colocam em destaque o
poder do Deus libertador. Para a Torah, nenhum faraó com obstinado coração, nenhum
soberano, nenhuma instituição conseguem deter a vontade de Deus de libertar os seres
humanos. Essa vontade para sempre triunfará, pois Deus quer que todos sejamos livres!
As fontes rabínicas aqui apresentadas procuraram demonstrar a seriedade de como
devemos nos aproximar da narrativa bíblica e de como ela deve ser abordada. “Longe das

33
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

histórias imaginárias, a Torah descreve eventos reais envolvendo seres humanos reais. A
redenção é um processo que envolve tanto o tempo quanto uma gradualidade” (GOLDIN,
2008, p. 64).
Existe sim uma relação profunda entre a Tradição Judaica e sua Oralidade que
demonstrou ser capaz de suportar e prolongar a Escritura Sagrada dando-lhe gosto e vida: o
que chamamos de Torah Haim! A Torah Viva!

Para ser verdadeiramente livre, os escravos israelitas precisaram testemunhar a total


destruição de tudo o que antes lhes era pesado como que um grilhão. Somente se o Egito,
seus cidadãos, sua realeza, seus feiticeiros e seus deuses fossem derrubados, os filhos de Israel
e todos os participantes do Êxodo poderiam começar a sua jornada em direção à verdadeira
liberdade.
Passo a passo, as pragas enviadas por Deus foram destruindo tudo aquilo
que os filhos de Israel aprenderam a temer. Como as algemas foram
quebradas, a promessa de liberdade começa a emergir. (GOLDIN, op. cit. p.
65)

Vale considerar que a solidão e a amargura pelas quais muitas pessoas ainda passam e
gemem hoje:
A dura escravidão que existia no Egito (e ainda hoje), é sempre significado da
ausência de palavra e de som, em total silêncio. A Redenção começa quando
começa a existir o som, mas a palavra ainda é ausente. Finalmente, quando
ocorre a constatação de ambos, som e palavra, a redenção alcança sua total
realização (LUSTIGER, 2014, p. 53)

Há beleza na sensibilidade do quadro da escravidão que Arnold Lustiger nos apresenta


no seu comentário sobre o livro do Êxodo. A relevância está no cultivo pessoal dessas
mensagens para não ensurdecermos ante o sofrimento alheio:
Antes de Moisés aparecer não havia uma única palavra. Nenhuma denúncia
era apresentada, nenhum grito era proferido. Os homens fazem silêncio
quando são impiedosamente torturados pelos feitores. A tortura já era dada
como certa. E eles pensavam que era assim que iria acontecer sempre. A
dor não se precipitava sobre o sofrimento, pois eles não tinham
conhecimento de qualquer necessidade. Quando Moisés apareceu, o som,
ou a voz, começou a existir em meio a essa escravidão. Moisés, ao defender
os judeus indefesos, restaurava a sensibilidades aos macerados escravos.
De repente, eles se deram conta que toda aquela dor, angústia, humilhação
e crueldade, toda a ganância e intolerância de um ser humano frente a
outro ser humano como ele, é má, ruim. O morto silêncio da não existência
tinha ido embora; a voz da humana existência era agora ouvida. (LUSTIGER,
op. cit. p. 53)

Moisés, sem dúvida, realizou essa mudança obedecendo a um projeto divino. Colocou
34
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

seu coração na Palavra de Deus e no projeto de formar um povo, de estimular um modo novo

de convivência, a partir de uma Palavra Sua que será revelada e entregue para orientar os
passos desse povo e de toda humanidade. Mas o faraó não colocou seu coração nisso:
Faraó não somente pecou contra o povo judeu, mas também contra o seu
próprio povo, os egípcios, e contra o mundo inteiro. Sua obstinação levou à
morte em última análise também o primogênito egípcio. (LUSTIGER, op. cit.
p. 39)

Contudo, surge a impressão de que o faraó, com a sua insistência num raciocínio duro e
pesado em relação à proposta dos israelitas saírem do Egito, entre numa dinâmica que
acentua cada vez mais catástrofes para si mesmo e para o seu povo. Por sua vez, todas as
ações tirânicas estimulam a ascensão de outra possibilidade de se realizar o projeto do êxodo.
Na impossibilidade do faraó aceitar esse projeto, por raciocinar e descobrir a
necessidade dos oprimidos recuperarem a sua liberdade, não pondo o seu coração no que
deveria pô-lo, sobra o caminho de conseguir o almejado através de acontecimentos
catastróficos, sendo que estes podem derrubar todos aqueles que obstinam o seu coração.
Ou, em outras palavras, caso o convite à conversão for rejeitado, Deus pode permitir que o
opressor, através de sua falta de compreensão, se autodestrua. Enfim, justamente dessa
forma, o Senhor Deus de Israel respeita mais uma vez o livro arbítrio da pessoa.
Aliás, esse processo pode ser experimentado ainda hoje:
Todos os homens perversos agem como o faraó. Quando Deus lhes envia
um castigo, prometem melhorar. Mas quando termina o sofrimento,
esquecem por completo da decisão de serem bons e se arrependerem. Esta
é a lição do faraó: como não devemos agir! (GROSS, 2014, p. 277)

A história do êxodo apresenta o Senhor Deus de Israel como não disposto a negociar a
liberdade dos oprimidos, no caso, dos filhos de Israel. Ao opressor não é permitido insistir, de
forma definitiva, na opressão dos que subjugou ao seu poder. Pelo contrário, o faraó há de
pôr seu coração na liberdade de quem é oprimido por ele. Caso contrário, ao insistir na
obstinação do seu coração, o Senhor Deus dos oprimidos pode até contribuir com tal
endurecimento, sendo que assim se aproxima a catástrofe e a autodestruição de quem se
obstina.
O livre-arbítrio e a capacidade de arrependimento são presentes de Deus na nossa vida;
mas esses podem ser tomados como propriedade perene e eterna para nós? Estar atentos à

voz da Palavra e de Deus pode ser um convite efetivo à prática da justiça para que esses
valiosos presentes não sejam levados embora um dia?
35
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

Segundo o autor Rabbi Yosef Stern: “não há praga ‘maior’ do que a negação do livre-
arbítrio” (STERN, 1996, p. 49). Faraó tinha sido insistentemente chamado, praga após praga,
a reconhecer os sinais e a grandeza de Deus e anunciar isso a toda a humanidade. Mas o que
faraó anunciou à humanidade e à muitíssimas gerações após ele foi a total falência do seu
modo tirano e opressor de governar que conduziu a si mesmo e ao redor a uma destruição
total, justamente por essa incapacidade de colocar seu coração naquilo que devia colocar, e
agir em consequência dessa percepção real do mundo e da grandeza do Senhor Deus. Deus
poderia simplesmente ter esmagado todos os inimigos, mas por que não o fez? Por que
poupou o faraó em todas as pragas? Mais uma vez fica comprovado que Deus queria que ele
conhecesse os Seus caminhos, estava mais interessado no seu arrependimento, não na sua
morte. Mas nem ele, nem seus servos colocaram no coração à disposição da palavra do
Senhor.
Lembremos do que está dito em “meterei o pânico no coração daqueles que de vós
restarem na terra dos inimigos” (Nm 26,36). O que ocorreu com o faraó foi justamente esse
“fortalecimento das artérias espirituais caracterizado pela falta de medo e a subsequente
inabilidade de arrepender-se” (STERN, op. cit. p.101).
Se perdermos a capacidade de ouvir essa voz de Deus também nós hoje corremos o risco
de sofrer essas pragas físicas e doenças espirituais, como está escrito: “Se descuidares de pôr
em prática todas as palavras desta Lei, escritas neste livro, temendo este Nome glorioso e
terrível, o Nome do SENHOR teu Deus, o SENHOR tornará terríveis as pragas contra ti e tua
descendência: serão flagelos enormes e permanentes, enfermidades graves e persistentes. Ele
te lançará todas as doenças do Egito, que tanto temias, e elas te contagiarão” (Dt 28,58-60).
De acordo com essas interpretações, a Torah não desconsidera que nem os filhos de
Israel estão imunes de sofrerem as doenças físicas do Egito. A tradição de Israel afirma, porém,
que a pior doença, a inabilidade do arrependimento, nunca será suportada pelos que colocam
no coração a palavra do SENHOR. Não esqueçamos o término do versículo: “pois Eu Sou o
SENHOR que te cura” (Ex 15,26).

Mais uma vez usando o recurso exegético das Escrituras, se Deus se autodefine como
Aquele que cura, mesmo quando as doenças físicas do Egito recaiam sobre nós, a capacidade
de arrependimento não será afetada, pois Deus pode nos curar através do arrependimento,
como está escrito: “O SENHOR teu Deus circuncidará teu coração e o coração de teus
descendentes, para amares ao SENHOR teu Deus de todo o coração e com toda a alma para

36
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

que assim possas viver” (Dt 30,6).


O coração do faraó, e o coração do ser humano teriam algo ainda hoje a nos comunicar,
afinal? Será sempre no diálogo com Deus que o ser humano pode se questionar, repensar-se
e ser desafiado, convidando a mudar para melhor a sua história. Mas não deixa de ser
questionador também. “Justamente quando escuta o coração é sábio e inteligente” (WOLFF,
1983, p. 90) .Com isso, surge a pergunta decisiva do profeta: “Por que endureceríeis o vosso
coração como o fizeram (alguns) egípcios e o faraó?” (1 Sm 6,6).
O Deus de Israel, por sua vez, parece até tolerar demais a opção do faraó. Já que este
último insiste, de forma inegociável, na obstinação de seu coração, no final, o Senhor o ajuda
justamente nisso. Mas Deus definitivamente não está disposto a negociar a liberdade de seu
povo, dos oprimidos. Ou seja: a última palavra a respeito da liberdade dos miseráveis não
pertence ao opressor, mesmo que isso inclua a morte antecipada de quem oprime.

Considerações Finais

“A Bíblia não é um depósito de conceitos. A sua língua é predominantemente narrativa


e poética... Ela não quer falar, por exemplo, da sarça ardente: ela quer fazer arder”
(MENDONÇA, 2007, p. 38). Ao confirmar essa verdade na interpretação da Bíblia, desejo que
ao contemplar mais de perto o coração do faraó, também a partir da escuta de exegetas
judeus, esta reflexão possa nos ajudar a, num primeiro momento, fazer um check-up ao
nosso próprio coração, fazendo-o pulsar mais atento no ritmo da Palavra de Deus: colocando
nosso coração naquilo que devemos colocar, nos seus projetos de misericórdia e de
liberdade para todos, assim como está escrito no Livro dos Provérbios: “Meu filho, dá-me o
teu coração, e que teus olhos gostem dos meus caminhos” (Pv 23,26). Num segundo
momento esperamos influenciar positivamente naquilo que o Irmão Pierre Lenhardt, NDS,
dizia sobre a importância das fontes judaicas para um cristão, pois os estudos judaicos
podem de fato “levar a rever muitas conclusões da exegese e da teologia” (LENHARDT, 2020,
p. 22). Dialoguemos sempre mais com essas raízes santas (Rm 11,16) das fontes judaicas
para melhor entendermos nossa identidade cristã que delas provém e para melhor usufruir
desse vasto patrimônio cultural e ético que herdamos juntos.

37
A EXEGESE JUDAICA E O MOVIMENTO INTERIOR DO CORAÇÃO DO FARAÓ CADERNOS DE SION

REFERÊNCIAS

FIELDS, Harvey J. La Torah commentée pour notre temps. L’Exode et Le Levitique. Paris, 2015.
GOLDIN, Shmuel. Unlocking the Torah Text, and In-depth Journey into the Weekly Parasha,
Shemot. Jerusalem: Gefen publishing, 2008.
GRENZER, Matthias. O projeto do êxodo. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
GROSS, Fernando. O Ciclo de Leituras da Torah na Sinagoga. 2ª ed.São Paulo: Fons
Sapientiae/CCDEJ, 2014.
LEIBOWITZ, Nehama. New Studies in Shemot Exodus. Jerusalem: The Jewish Agency, 1996.
LENHARDT, Pierre. À escuta de Israel, na Igreja: “porque de Sion sai a Torá e de Jerusalém a
Palavra do Senhor” (Is 2,3). São Paulo: Fons Sapientiae, 2020.
LUSTIGER, Arnold. Chumash with commentary based on the teachings of Rabbi B.
Soloveitchik – Sefer Shemos. New York: Oupress, 2014.
MENDONÇA, José Tolentino. A Sexualidade na Bíblia: morfologia e trajectórias.Braga, REVISTA
THEOLOGICA, 2.ª Série, 42, 2 , 2007.
SARNA, Nahoum M. Exploring Exodus: The Heritage of Biblical Israel. New York: Shocken
Books, 1986.
STERN, Yosef. Chasam Sofer. Commentary on the Torah. Shemot. Art Scroll Judaica Classics,
New York, 1996.
WIGODER, Geoffrey . Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme. Paris: Cerf /Robert Laffont,
1996.
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento.São Paulo: Loyola, 1983.

38
OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA

Luciano José Dias

Mestre em Teologia bíblica pela PUC-SP, Especialista em Práticas pedagógicas de ensino


religioso e em Cultura Judaico-Cristã, História e Teologia pela UNIFAI, membro do Grupo de
Pesquisa TIAT. ORCID: 0000-0001-8077-4636.

RESUMO
O presente artigo procura trazer ao leitor uma possibilidade de análise e reflexão sobre as diversas
imagens criadas pela humanidade, ao longo da história, para descrever deus ou deuses, que
acreditam estar a seu redor. Objetivamos tratar de inúmeras variações de imagens que foram
relatadas em passagens bíblicas e filosóficas, o que nos propicia avaliar a influência direta do tempo,
lugar, cultura e meio social na interpretação dos diversos contornos das imagens de deus. O conceito
sobre divindade se dá no ambiente cultural de cada povo, sendo que, em especial, tratamos das
ideias de deus, inseridas no contexto judaico-cristão. O artigo nos leva a diferenciar uma imagem de
deus, que se revela como defensor da vida, e dos deuses da humanidade, divindades idealizadas de
forma antropomórfica, capazes de repentinas mudanças de personalidade, pois expressam os mais
profundos medos e desejos humanos.

PALAVRAS-CHAVE: Conceito; Compreensão; Divindade; Experiência

ABSTRACT
This article seeks to bring to the listener-reader, the possibility of an analysis and reflection, of the
various images created by humanity, throughout history, to describe god or gods that they believe
are around them. Here we deal with numerous variations of these images, which were reported in
biblical and philosophical passages, which gives us evaluate the direct influence of elements such as
time, place, culture and social environment in the interpretationof the various contours of the images
of god. The concept of divinities occurs within the cultural context of each and every people, and in
particular, we are dealing here with the ideas of god, inserted in the Judeo-Christian context. The
article leads us to differentiate between, an image of god, who reveals himself as a defender of life,
and gods of humanity, deities idealized in an anthropomorphic way, capable of sudden personality
changes, which express the deepest human fears and desires.

KEYWORDS: Concept; Understanding; Divinity; Experience

Considerações Iniciais

Ao iniciarmos esse artigo, convidamos o leitor a lançar um olhar sobre a história da


humanidade, nas evoluções e regressões por ela experimentadas na compreensão de seu
relacionamento com Deus ou deuses, que atuam em seu meio; suas características,
comportamentos e ações. Ao efetuarmos esse mergulho no passado, com os pés em nossa
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

realidade atual, esperamos propiciar o reconhecimento da diferenciação existente, entre o


Deus que se revela – buscando sempre a conservação da vida – e os deuses da humanidade –
Antropomorfismo inato à pessoa humana. Desde já, esclarecemos que, o enunciado “deuses
da humanidade” não está relacionado a uma apresentação nominativa de deuses conhecidos
na história. Nossa intenção é mostra como os seres humanos, por vezes, definem os
acontecimentos em seu entorno, atribuindo a eles o resultado de ações de diferentes
divindades. O antropomorfismo é um conceito filosófico associado às formas humanas, ou
seja, ele atribui características, sejam físicas, sentimentos, emoções, pensamentos, ações ou
comportamentos humanos aos objetos inanimados ou seres irracionais. Em outras palavras,
o antropomorfismo atribui caraterísticas humanas aos seres de natureza não humanas. Do
grego, o termo “antropomorfismo” é a junção dos termos “anthropo” (homem) e “morfhe”
(forma).
Tendo em vista a amplitude do tema a ser abordado, partimos das imagens judaico-
cristãs de Deus, contidas nas Escrituras, que são consideradas sagradas, tanto para os judeus,
quanto para cristãos. Se observamos, mais de perto, os diferentes relatos bíblicos, que tratam
das imagens de Deus e suas diferenças, por vezes, até mesmo contradições, percebe-se que o
povo de Israel e circunvizinhos foram desenvolvendo um diversificado entendimento de Deus,
compreendendo-o em diferentes contornos, ao longo de sua história e experiências, assim
como foram moldando os deuses da humanidade, conforme as necessidades de cada época.
Da mesma forma, frente às dificuldades, problemas, descobertas e inquietudes da vida
moderna, continuamos a descobrir o Deus que se revela em seus diferentes contornos, que
hora se entrelaçam aos contornos dos deuses da humanidade.
A experiência do Sagrado sempre levará em conta o contexto em que o ser humano está
inserido, a bagagem cultural que traz consigo, tal como os conflitos que o cerca; por isso, a
compreensão que fazemos de Deus depende da compreensão que o ser humano tem de si
mesmo e de suas relações. Isso não implica dizer que Deus seja uma invenção humana, mas
que a compreensão humana de Deus, estando vinculada à sua revelação, que acontece na
história, depende da capacidade de cada indivíduo de perceber, processar e concatenar essa
revelação dentro de sua cosmovisão.

O Deus que se revela, é um Deus relacional, só pode ser compreendido dentro da


caminhada humana; é um Deus que dialoga com os seres, enquanto esses desenvolvem sua

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

história. Nesse dinâmico processo de desenvolvimento, cada indivíduo vai experimentando


Deus nos diferentes momentos de sua vida. A compreensão que se terá, portanto, de Deus,
nunca é absoluta, é sempre relativa. Assim, por vezes, o Deus que se revela, é confundido com
os deuses da humanidade.
É nessa perspectiva que fundamentamos esse artigo, no intuito de levar nosso leitor a
uma reflexão de si, dos deuses da humanidade e do Deus que se revela. Não temos a
pretensão de esgotar essa temática levantada em tão poucas páginas. Nem mesmo de
responder a todas as questões que surgirão no decorrer desse artigo. A proposta é fazer
pensar o Deus que se revela, mostrando o que o diferencia dos deuses da humanidade:
protótipos de deuses criados à imagem do homem.

A humanidade em busca de Deus

Já no início da aventura humana sobre a terra, o homem pré-histórico tentava imaginar


quem teria criado as coisas existentes e como seria este criador, que não podia ser visto. A
grande aventura de falar sobre divindades perpassa todos os séculos da existência humana,
desde quando se tem relatos. Os registros históricos mais antigos desta aventura, segundo
Mircea Eliade (2010), vêm da Suméria, região onde foi inventada a escrita, há cerca de quatro
mil anos antes de nossa era. Por meio de tabletes de barro, hoje guardados em museus,
ficamos sabendo que os sumérios acreditavam em deuses com formas humanas e imortais.
Também na Suméria, os deuses começaram a se preocupar com o comportamento do povo.

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Ainda, segundo Eliade (2010), no Egito, séc.14 a.C. apareceu o faraó Akenaton, que
acabou com a proliferação de deuses em sua terra, adotando como único deus para seu povo,
o deus “Aton”.
Os homens da antiguidade, quando encontravam um novo deus para guiá-los, logo
descobriam sua personalidade que, por coincidência, se parecia muito com a personalidade
dos próprios profetas, que faziam a ponte no relacionamento entre o povo e os deuses. Como
forma de exemplo, citamos aqui, “Aton”, o deus do faraó Akenaton, que era pacífico, amante
das artes e dos animais.
Antes dele, o panteão egípcio era formado por milhares de entidades, com qualidades
e defeitos humanos. Havia deuses protetores dos doentes, da agricultura, do casamento etc.
Muito embora os tempos sejam outros, ainda hoje, é comum vermos pessoas atribuindo a
Deus, suas próprias características humanas, tais como ira, cólera, rancor etc. Muitas
pregações falam de um Deus que condena, mata e destrói. Não são poucas as associações
feitas atribuindo a Deus, problemas relacionados a uma falta de políticas públicas e sociais ou
mesmo associando as chuvas, que alagam e destroem, a um castigo de Deus. Ainda nos dias
atuais, muitos, ensinam aos filhos, desde pequenos, que Deus castiga as malcriações e faltas.
O conceito sobre Deus é um aprendizado permanente da humanidade, ao longo dos
séculos, que se dá no contexto cultural de cada povo e no contato entre as diversas culturas.
Este conhecimento chega até nós de várias formas e uma delas é através dos escritos que
perpassaram muitos séculos, trazendo registrados em suas páginas tais experiências. Este é o
caso dos escritos bíblicos.
Por meio dos múltiplos livros da Bíblia, escritos por diferentes pessoas e em épocas
diversas, percebemos que o povo bíblico, ao interagir com os povos ao seu redor, foi
agregando e enriquecendo suas experiências do Deus revelado, à luz das características dos
deuses vizinhos, levando-os a uma diversificada compreensão da revelação (ROMER, 2016).
Isto se deu no desenrolar dos conflitos, das crises, das vitórias e alegrias do cotidiano. Indo
além, extrapolando o alcance de nossa pesquisa, podemos afirmar que essa diversificada
compreensão da revelação, continua a acontecer na vida de cada indivíduo ou grupo, nos dias
atuais, que fazem a própria experiência de Deus, levando em conta o contexto em que estão
inseridos.

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Tomando novamente, como base a Bíblia, que mostra a íntima relação de Deus com um
povo – neste caso, o povo de Israel – ao ser analisado através de um olhar ocidental, distante
dos acontecimentos, tanto no tempo como na linguagem, cultura e na literatura, ficamos
intrigados ao vermos que o mesmo Deus salvador e misericordioso para com Israel é colérico
e destruidor para com seus opositores, revelando-se algoz de sua própria criação – visto que
tudo foi criado por Ele. Por outro lado, fazendo uso do olhar semita – daqueles que
escreveram –, que não olham os relatos bíblicos como história de fato, mas história de fé, é
perfeitamente possível uma compreensão, pois descrevem sua crença no Deus, que se revela
como libertador, portanto suas ações tendem a ser grandiosas.
Diferentemente da visão semita, nós hoje olhamos os relatos bíblicos e perguntamos:
como compreender um Deus que destrói, aniquila, matando adultos e crianças, expulsando
moradores de sua Terra para dá-la a outros? (Dt 7,6; 14,2). Numa leitura atenta dos relatos,
percebemos que estamos diante de textos complexos e fruto de um longo processo redacional
e com diferentes imagens de Deus. Isso se explica, porque os livros, em sua maioria, foram
compostos de camadas sobrepostas. Tal como uma colcha de retalhos, eles foram sendo
emendados e costurados até chegar ao texto final que temos hoje.
É resultado da memória do povo. Nasceu de uma oralidade, do contar histórias da vida
do povo, que cria uma literatura que relata sua história, suas reflexões, sua sabedoria, sua
oração. E tudo isso, por vezes, em narrativas. Somente assim, podemos compreender as
diferenças e contradições presentes nos relatos bíblicos. Como por exemplo: Ele (Javé) faz
justiça ao órfão e a viúva e ama o migrante (estrangeiro), dando-lhe pão e roupa. Portanto,
amem o estrangeiro, porque vocês foram migrantes na terra do Egito (Dt 10,18-19).
Comparemos agora, tal afirmação, a um outro texto presente no mesmo Livro: Javé, o
nosso Deus, o entregou diante de nós, e nós o derrotamos, como também a seus filhos e a todo
o seu povo. Nessa ocasião, capturamos todas as suas cidades e consagramos cada uma delas
ao extermínio. De homens, mulheres e crianças, não deixamos nenhum sobrevivente
(estrangeiro). (Dt 2,33-34).
É necessário entender que, somente depois de muitos anos, esse livro saiu da oralidade
e se tornou livro escrito, Escritura Sagrada. Somente assim, podemos compreender as
diferenças e contradições presentes nesse e em outros relatos bíblicos. Ao longo desse
processo redacional, o povo foi fazendo diferentes experiências da revelação de Deus. Isso
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

levou a múltiplas interpretações do que seriam os contornos de Deus, ou mesmo deuses, se


olhamos tamanhas diferenças e contradições apresentadas. Dentro dessa mesma temática,
cabe-nos, inserir a questão da origem do mal. Existindo um único Deus que é bom, de onde
proveria o mal?

Tentativas de explicar o mal


Numa concepção politeísta, em que o destino do universo depende da atuação de uma
multidão de divindades, o aparecimento do mal e do sofrimento pode ser atribuído a deuses
ou a demônios, dos quais o ser humano tenta se defender com amuletos e sacrifícios. Ainda
numa concepção politeísta, os deuses podem ser considerados imprevisíveis, sendo sua
relação com os seres humanos, por vezes, até calamitosa, mesmo que esses não tenham
cometido nenhuma falta contra eles
Desde que existe um só Deus, a questão da origem e do porquê do mal se coloca com
intensidade. Os textos bíblicos dão diferentes respostas a esse problema. Alguns textos
sustentam que o mal e o sofrimento são punições divinas para aqueles que cometeram atos
reprováveis. Entretanto, essa chamada teologia da retribuição é, muitas vezes, posta em
questão. No livro de Jó, por exemplo, o autor mostra que Jó, ao contrário do que afirmam seus
amigos, não admite que mereça a punição que está sofrendo. Todavia, ele não dá resposta
sobre a origem do mal que o Deus, que se revela, envia sobre ele. Do mesmo modo, a narrativa
da criação, no livro do Gênesis, constata que as trevas, a desordem e o abismo, símbolos do
mal ou do caos primordial não são criados por Deus, mas dominados por ele, porque ele os
integra na criação. Esses textos concedem, portanto, certa autonomia ao mal sem, no entanto,
desenvolver um sistema teológico dualista.
O Dêutero-Isaías, no entanto, propõe uma solução radical, ao afirmar que o próprio
Deus, que se revela, criou o mal: Eu sou o SENHOR e outro não há! Não existe deus fora de
mim! Armei-te guerreiro e tu não me conhecias. Assim se ficará sabendo, do nascer do sol até
o poente, que sem mim nada existe. Eu é que formo a luz e crio as trevas, faço o bem-estar e
crio o sofrimento; eu sou o SENHOR, eu é que faço tudo isso. (Is 45,5-7).

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Esse texto é praticamente o único em toda a Bíblia hebraica 1 a afirmar explicitamente


que Deus não somente criou a “paz”, a ordem harmoniosa, mas também o seu contrário, o
mal ou o caos. Para o Dêutero-Isaías, todos os poderes, mesmo os que são nefastos,
encontram sua origem no Deus que se revela e estão sob seu controle. Visto que há um só
Deus e que, fora dele, não há nada (v.5), nada pode escapar a esse Deus. Entretanto, no
contexto dos escritos bíblicos, essa afirmação permanecerá marginal.
Como podemos perceber, a problemática levantada aqui é complexa; por isso, cabe
também a nós darmos uma olhada em um outro campo do conhecimento humano, que
também se debruçou sobre a mesma temática, que é a Filosofia. O filósofo pré-socrático
Epicuro2, em síntese, colocava a questão da seguinte maneira:
Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não
quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é
impossível em Deus. Sepode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é
contrário a Deus. Se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente: portanto
nem sequer é Deus. Se pode e quer que é a única coisa compatível com Deus,
donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os
impede? (EPICURO, p. 28)

Epicuro, na passagem acima, questiona a compatibilidade da existência de um Deus,


comumente, considerado onipotente e bondoso, com o problema do mal no mundo. Se Deus
quer impedir o mal e não pode, deixaria de ser onipotente; se pode e não quer, deixaria de
exercer sua bondade; se não pode e não quer, além de impotente não seria bondoso. Essa
pergunta final pode nos deixar com a sensação de que a resposta é: porque Deus não existe.
Entretanto, Epicuro ressalta a possibilidade de a divindade não acabar com o mal porque, em
sua imortalidade, viveria apenas para sua própria felicidade. Portanto, não deveríamos temer
a Deus, porque – se existe – sequer tem motivo para se envolver nos assuntos humanos.
Deveríamos, portanto, abandonar essas opiniões que a troco de nada nos causam sofrimento.
Sábio Epicuro, ao formular tal questão que, desde que o mundo é mundo, agita o coração
humano.

1
Só Coélet (Eclesiastes), dois séculos mais tarde, irá no mesmo sentido, aconselhando seus leitores:
“Em tempo de felicidade, sê feliz, e no dia da desgraça reflete: Deus faz tanto um como o outro, para
que o homem não possa saber o que virá depois dele” (7,14).
2
Epicuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e
numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma,
onde Lucrécio foi seu maior divulgador.

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

No século XIX, o filósofo Leibniz3 refletiu novamente sobre essa problemática e até criou
uma nova área do pensar filosófico e teológico: a Teodiceia. Ele chegou à conclusão de que o
mal não é uma realidade, não tem consistência em si próprio, é apenas um vácuo, um vazio,
uma carência: a carência do bem, do amor de Deus (BINGEMER, 2010).
Ainda, nesse mesmo século XIX, Marx4 concluiu que a religião, considerando o judaísmo,
o cristianismo e o islamismo, “amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque
lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os
despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste
mundo” (CHAUI, 1997, p. 309). Desta forma, Marx tinha a visão de que a figura divina
acendesse dentro de cada indivíduo a expectativa de uma vida posterior, muito mais
gratificante do que esta, criando certo tipo de acomodação. As questões levantadas pela
Filosofia não elucidam ou explicam a problemática, mas revelam o perturbador desejo
humano de encontrar respostas.
Algo possível de ser constatado no campo das experiências humanas é que, um
indivíduo inflexível e inseguro, por exemplo, dificilmente terá uma percepção que não seja de
um Deus guardião, normativo, caprichoso e intolerante; já alguém que avançou no processo
de autoconhecimento e está prestes a superar as dualidades – bastante presente na visão
maniqueísta5 da vida – tende a perceber Deus como a expressão do absoluto, intangível,
permanentemente compassivo no sentido da aceitação do que é.
Em meio a tantos conceitos relacionados a um único Ser, aferimos como uma única e só
figura é capaz de se revelar em forma tão plural, influenciando pessoas e grupos, como foi o
caso do povo de Israel e, também para as mais variadas mentes de filósofos de determinadas
épocas. Essa visão eclética de diversos pensadores explicita que o período em que vivem e o
contexto em que estão inseridos interferem e influenciam a formação das múltiplas faces de
Deus por eles combinadas.

3
Gottfried Wilhelm von Leibniz foi um filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão.
4
Karl Heinrich Marx foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista
moderna, que atuou como economista, filósofo, históriador, teórico político e jornalista. O pensamento
de Marx influencia várias áreas tais como: Filosofia, História, Direito, Sociologia, Literatura, Pedagogia,
Ciência Política, Antropologia, Biologia, Psicologia, Economia, Teologia, Comunicação, Administração,
Design, Arquitetura, Geografia e outras.
5
O Maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou
Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a
popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois
princípios opostos do Bem e do Mal.
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Unicidade de Deus
Uma certeza que muitos trazem imbuída no mais profundo de seus âmagos – mesmo
não sendo uma premissa verdadeira – é que, o Deus do Antigo e do Novo testamentos não é
o mesmo. Este pensamento – ainda comum entre muitos, nos dias atuais, se dá, levando-se
em conta tamanha diferença nas narrativas, que apresentam as ações divinas em cada uma
das duas porções. Os escritos bíblicos podem ser comparados a fotografias de Deus, feitas em
momentos culturais muito diferentes por pessoas e povos, vivendo experiências diversas.
Podemos explorar uma explicação, dizendo que o povo bíblico, numa situação de guerra
contra inimigos poderosos, fotografou um Deus guerreiro para animar as pessoas nos
combates.
Em momento de lutas internas religiosas, os hagiógrafos desenharam um Deus exigente
no cumprimento de leis para evitar a desordem social (LIBÂNIO, 2009, p. 1-3). Olhando para a
primeira porção da Bíblia, vemos o profeta Oséias, afirmar que Deus carrega ternamente em
seus braços a Efraim como a uma criancinha de colo (Os 11,3). Apresentando-nos já, no Antigo
Testamento, traços do Deus, serão relidos e aprofundados no Novo Testamento.
Partindo do fato de que a revelação se dá na história que é progressiva, chegando em
seu ponto mais elevado – para os cristãos – no Novo Testamento, devemos interpretar os
diferentes contornos das imagens de Deus, de acordo com aquelas vividas e pregadas por
Jesus.
Em última análise, podemos dizer que a figura de Deus encontrará sua expressão mais
perfeita na revelação de Jesus. Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único de Deus, que está
junto ao Pai, foi quem no-lo deu a conhecer (Jo 1,18). Por isso, é muito perigoso tomar citações
isoladas da Escritura e arremessá-las sobre as pessoas como se esta fosse a ideia definitiva e
eterna de Deus, e não reflexo de uma experiência histórica de um povo.
O encontro com os diversos contornos das imagens de Deus no Antigo Testamento
pode-nos ser benéfico, precisamente pela maneira como nos é apresentado nos textos
bíblicos, onde o Povo de Israel vive e experimenta, dentro de um processo lento, porém
continuo, a certeza de não estarem sós e que tal como outros povos, eles tinham o seu Deus.
Os textos bíblicos, relatam que os patriarcas foram adoradores de muitos deuses. As
tradições, porém, que circularam mais tarde no meio das tribos, já viam neles homens que
47
OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

experimentaram um Deus de maneira mais expressiva. Abraão se tornou, por isso, símbolo de
homem de fé em Deus. A vocação de Abraão tornou-se programática para todas as vocações,
ao seguir o apelo do Deus, que se revela (Gn 12, 1-3.7). A esse Deus, que vai fazendo alianças
com seus descendentes, Abraão ergueu um altar.
Moisés, a partir da experiência da escravidão e libertação do Egito, vinculou a fé ao Deus
que se revela, ao lado do qual não admitiu outros deuses. Para traduzir essa ligação profunda
com um único Deus, o povo o experimentou como “ciumento” e qualquer infidelidade era
vista como adultério. Profetas como Amós e Oséias, exploraram muito bem e com
originalidade a imagem matrimonial, como forma de descrever a vivência do povo em relação
a seu Deus.
Não era o Deus, que se revela, que era ciumento, mas o povo que o experimentava como
seu Deus próprio, único e guia pela longa caminhada para Canaã. Identificaram-no com o deus
supremo dos cananeus, “El”. Lá encontraram também outros deuses e depois se defrontaram
com os deuses fenícios, assírios, babilônios. Todos esses deuses foram rejeitados – como
deuses da humanidade – graças à fidelidade ao Deus que se revela. A confissão de fé do povo
bíblico a seu Deus, como Deus que se revela, encontrou expressão dramática no fato narrado
no livro dos Reis, onde o profeta Elias, questionou o povo pela sua ambiguidade na vivência
de sua fé dizendo: Se o Senhor é o verdadeiro Deus, segui-o, mas se é Baal, segui a ele! Depois
armou o altar cheio de vítimas e desafiou os profetas de Baal a que invocassem seus deuses,
ele, por sua vez, invocaria ao Senhor (1Rs18,21).
As orações dos profetas de Baal não foram ouvidas, enquanto a oração de Elias fez baixar
o fogo do céu e devorou as vítimas do sacrifício. Diante dessa maravilha, o povo exclamou: O
Senhor é Deus, o Senhor é que é Deus! (1Rs 18,39). A cena da degola de todos os profetas por
parte de Elias, a qual se segue a esse ato de confissão, revela o caráter comovente do processo
de fé do povo. Desta sorte, por meio de longo caminho, a partir de sua experiência histórica,
Israel professou o monoteísmo, primeiramente de maneira prática, para depois formulá-lo
doutrinariamente. Nos tardios livros do Dêutero-Isaías, o povo confessa que o mesmo Senhor,
que o salvou e livrou da escravidão do Egito, o Deus da Aliança, é também o Deus criador de
todas as coisas. Um Deus eterno é o Senhor, o criador dos confins da terra (Is 40, 28). Termina-
se, assim, esse longo processo numa confissão ampla de fé, em que o povo, compreende a
Deus como Deus da vida.
48
OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Deus da Vida
Ao lado da unicidade, a extrema relação com a vida define, em profundidade, os
contornos de Deus no Antigo Testamento: essa é sua principal característica. Nas primeiras
páginas do Gênesis, o Deus que se revela, aparece como Senhor da vida. Pela palavra, cria
todas as coisas (Gn 1,1-31) e mais diretamente em relação ao ser humano, insufla-lhe o sopro
da vida (Gn 2, 7).
Na ordem da experiência, os hebreus reconhecem o Deus, que se revela, como Deus da
vida, por obra e graça da libertação da escravidão e da morte no Egito. Aí, há duas cenas
paradigmáticas da experiência de vida: o Senhor livra todos os primogênitos hebreus da
espada do Anjo exterminador – Ele é um Deus de vida para os hebreus – em oposição à
realidade de morte dos egípcios. A outra cena é a epopeia do êxodo. Ela é uma contínua luta
contra a morte por causa do ataque dos egípcios da fome, da sede, das serpentes e de todas
as agruras de uma longa travessia pelo deserto. Nos momentos críticos, o Deus, que se revela,
aparece como o Deus que lhes defende e conserva a vida. Para Israel, a vida traduziu-se na
experiência da libertação e da conquista da terra. Foi o Deus que se revela, que libertou o
povo e que lhe deu a terra em que corre leite e mel (LIBÂNIO, 2009, p. 3-5).
O povo de Israel sedentarizou-se. No início, as estruturas da sociedade organizaram-se
ainda de uma maneira mais justa, pois a diferença entre ricos e pobres não era tão grande. As
autoridades eram do próprio povo, permaneciam próximas e o inimigo estava fora. Assim, o
Deus que se revela se manifestou como o Deus da vida, despertando homens dotados para
defenderem o povo, que se tornaram os juízes. Com o passar do tempo, mesmo na época dos
juízes e mais fortemente depois na monarquia, a injustiça social começou a crescer. A brecha
entre pobres e ricos aumentou. Israelitas passaram a oprimir e escravizar israelitas. Com a
decadência da monarquia, a prática da injustiça foi crescendo. O Deus que se revela, mais uma
vez, apareceu como o defensor da vida, agindo em prol do pobre, da viúva, do órfão. Os
profetas se fizeram porta-vozes da luta pela vida dos desprotegidos.
Assim, por exemplo, no reinado de Jeroboão II, imperava a injustiça. Os ricos levavam
uma vida de luxo e riqueza. Para tanto, carregava-se o povo com impostos, oprimiam-se os
pastores e lavradores. Surgiu então o profeta Amós. Com expressões fortes, ele descreveu a
situação de injustiça (Am 2,6-7). Sobre essa situação de injustiça pesou o juízo de Deus. As
ameaças foram terríveis. A visão do profeta foi espantosa: Vi o Senhor que estava de pé sobre
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

o altar e ele disse: “Bate no capitel para que tremam os umbrais! E seguiu-se uma série de
malefícios: cortar a cabeça de todos sem exceção, não retirar nenhum do xeol, prender os que
se esconderam em qualquer altura ou profundidade que seja, passando-os em seguida ao fio
da espada (Am 9,1-4). Mas, no final, abriu-se uma réstia de esperança e de vida: O Senhor
prometeu levantar a tenda de Davi que está caindo, reparar-lhe as brechas, levantar-lhe as
ruínas e reconstruí-la como nos dias antigos (Am 9, 11). Assim é o oráculo, a Palavra de vida
do Senhor.
O Deus que se revela, é Deus de vida para o povo conduzido ao exílio da Babilônia.
Quando tudo era treva, tudo era sofrimento, tudo era morte, a Palavra do Senhor soava como
luz e futuro. É desta forma que surgiram os cânticos utópicos e esperançosos mais lindos da
Escritura. Podemos até mesmo nomeá-los de livros da consolação. Iniciou-se com a belíssima
exclamação: Confortai, confortai meu povo! Terminou o tempo da provação, foi saldado o
débito da culpa. E então uma voz clama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, nivelai
na estepe uma estrada para nosso Deus! Todo vale seja entulhado e todo monte e colina sejam
abaixados. O monte se torne planície e as escarpas se transformem em amplo vale! Então a
glória do Senhor se manifestará, e todos os homens juntos a verão (Is 40,1-5). É o mesmo texto
que o Novo Testamento aplica a João Batista, precursor do Senhor.
Num outro texto, numa imagem vigorosa, o profeta Ezequiel descreveu a libertação do
povo do exílio da Babilônia como uma dantesca cena de ressurreição das ossadas. Assim diz o
Senhor Deus às ossadas: Vou infundir-vos, eu mesmo, um espírito para que revivais. Dar-vos-
ei nervos, farei crescer carne e estenderei por cima a pele. Incutirei um espírito para que
revivais. Então sabereis que eu sou o Senhor. (Ez 37,1-14). As ossadas são todas as casas de
Israel. Então se assistiu à cena do levantar-se dos ossos como um exército numeroso.
E finalmente, O Senhor é Deus da vida eterna, retirando os mortos do xeol,
ressuscitando-os. Este é o ponto alto da revelação veterotestamentária. A fé na ressurreição
dos mortos deriva diretamente da compreensão de que o Deus que se revela, é um Deus dos
vivos e não dos mortos. Deus triunfa sobre o último inimigo, a morte. O profeta Daniel anuncia
um tempo de angústia, escatológico, final, dizendo: Então muitos dos que dormem na terra
poeirenta, despertarão; uns para a vida eterna, outros para vergonha, para abominação
eterna. Então os sábios brilharão como o firmamento resplandecente, e os que tiverem
conduzido a muitos para a justiça brilharão como estrelas para sempre (Dn 12, 2-3).
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Único e verdadeiro Deus. Deus da vida. Na experiência de sua unicidade e na defesa da


vida, o Deus que se revela aparece frequentemente como um Deus vigoroso, punitivo que
castiga as infidelidades do povo, que se ira e se impacienta por causa da dureza de sua cerviz
(Ex 32,9; 33,3.5) até as raias da cólera, do desejo de exterminá-lo. Mas não se pode concluir a
discussão sobre os contornos das imagens de Deus no Antigo Testamento sem falar de sua
infinita ternura.
A severidade e o poder implacável são a fotografia de um Deus no momento inicial da
caminhada. Pouco a pouco, Israel foi descobrindo o lado infinitamente terno de Deus. A
imagem de um Deus amor são traços mais raros, por isso mesmo, mais expressivo. O gênio
religioso de Israel afastou no início qualquer traço que pudesse mostrar um Deus fraco e
manipulável pelas criaturas, dificultando-lhe a infinita liberdade e decisão. Certos gestos de
ternura, compaixão e comoção poderiam macular essa imagem. Somente depois de ela estar
bem assentada, sem perigo de cobri-la, outros traços foram emergindo até expressões de
imensa ternura (LIBÂNIO, 2009, p. 5).
No Êxodo, lê-se com surpresa que o Deus falava frente a frente com Moisés, como
alguém que fala com seu amigo (Ex 33,11). Se compararmos com cenas anteriores em que Ele
aparecia no meio de trovões e relâmpagos, esse breve toque revela muito de um retrato de
Deus que lentamente se vai construindo. Há uma cena estranha em que o próprio Senhor
passou diante de Moisés e exclamou: O Senhor é o Senhor, um Deus compassivo
misericordioso, longânimo e abundante em lealdade e fidelidade (Ex 34,6). Nos profetas essa
imagem atinge seu ponto alto. No Segundo Isaías, Deus anima Jerusalém, revelando em
relação a ela seu amor esponsal: Teu esposo é quem te fez: Senhor Todo-poderoso é seu nome!
(Is 54, 5). O Senhor se delicia, se alegra de Israel, como o jovem esposo de sua donzela, o noivo
de sua noiva (Is 62,5).
Em Oséias, o Senhor deixa uma carta de amor a Israel. Amou-o desde quando era um
menino, chamou-o de filho, permaneceu amando-o nos seus desvios, tomou-o nos braços e
colou-o a seu rosto de tanto carinho, ligou-se com laços de amor, sentiu o coração palpitar-lhe
e as entranhas comoverem-se. Apesar de todas as infidelidades de Israel, permanece amando-
o. Termina dando a razão decisiva: Porque eu sou Deus e não homem (Os 11, 1-9).
Como vimos, nos textos tirados do Antigo Testamento, o Deus que se revela é Deus da
vida, sempre disposto a caminhar com seu povo, hora o povo o vê como colérico, severo ou
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

mesmo ciumento, hora como amoroso e misericordioso; dependendo da situação histórica


em que estão vivendo. Esses contornos de Deus, já presentes no Antigo Testamento, serão
descritos de forma ousada por Jesus, no Novo Testamento, ao apresentar Deus como “Abba,
Pai”.

Contornos de Deus apresentados por Jesus

O conceito de Deus como Pai de Jesus, de seus seguidores e de todo o mundo criado
está profundamente implantado nos Evangelhos. Ao considerar a Deidade como um Pai
atento, Jesus tenciona passar a seus discípulos a atitude apropriada para com Deus, e já que
a noção de Pai e de filho são correlatas, ele propõe um modelo para o comportamento dos
“Irmãos e irmãs”. Comparada a frequência do tema do Reino divino, a imagem do Pai é
relativamente rara no gênero literário das parábolas, aparecendo apenas nas parábolas dos
Dois filhos e na do Filho pródigo. Na primeira parábola, comparado ao papel desempenhado
pelos filhos, o pai é o personagem menos importante, limitando-se a dar ordens. O principal
traço paterno é o perdão não formulado ao filho rebelde, quando este se arrepende (Mt
21,28-32). Na segunda parábola, a do Filho Pródigo, o pai reconhece intuitivamente o
arrependimento do filho antes que seja expresso e corre ao seu encontro, abraça-o e
proclama publicamente seu regozijo por aquele que estava perdido e morto, mas que agora
foi encontrado e está vivo (Lc 15,11-32).
O imaginário restrito do conceito de Deus, que sublinha essas parábolas, reflete amor e
paciência para com um filho verdadeiramente arrependido e corresponde ao profundo anseio
espiritual dos publicanos e dos pecadores, destinatários preferidos para a mensagem de Jesus.
Alinhado ao ensinamento das parábolas, um dos traços salientes da pregação de Jesus é o
pronto perdão a seus filhos transviados: E quando estiveres rezando, perdoa o que tiveres
contra alguém, para que teu pai que está no céu possa perdoar tuas faltas (Mc 11,25). Um
outro texto, mais longo, apresenta a mesma máxima, desta vez, incluindo uma formulação
negativa: Se perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai Celeste também perdoará as tuas;
mas se não perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai Celeste também não perdoará as

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

tuas6 (Mt 11,14). Nessas passagens citadas, notamos que o mais importante contorno da face
de Deus, apresentada por Jesus, é de um Deus Pai, que age perdoando seus filhos; entretanto,
vincula o ato de perdoar, à capacidade humana de também oferecer o perdão.
Na maioria dos exemplos, esta benevolente paternidade divina vincula-se ao ambiente
judaico de Jesus e faz ecoar a perspectiva religiosa particular de sua época; assim, a
preocupação por elementos essenciais, tais como, alimento, bebida e roupas é vista como a
marca distintiva dos gentios (Mt 6,32). O ensinamento de Jesus a respeito de Deus, o Pai,
reflete as ideias religiosas do judaísmo bíblico e, particularmente, às ideias de sua própria
época. A mais antiga atestação de que Israel já há muito tempo fazia alusão a Deus como Pai
e que ele se dirigia a Israel como filhos, encontra-se na célebre passagem de Ex 4,22 onde,
segundo a tradição “Javista”, Moisés se dirige ao faraó dizendo: Assim disse o Senhor, “Israel
é meu filho, meu primogênito”. Enquanto as nuances exatas do termo “Pai” permanecem
vagas, não pode haver dúvida de que mesmo em nível individual o relacionamento entre Deus
e os israelitas era visto de uma perspectiva de família. (VERMES,1995, p. 158-159).
Existem várias outras passagens bíblicas, que também revelam a aproximação de Jesus
ao Deus que se revela como Pai, indicando que ele, já, no Antigo Testamento, podia ser
reconhecido com tais características.
No Deuteronômio, Moisés ora diz aos judeus, Vós sois os filhos do Senhor vosso Deus
(14,1), ora transmite a mesma mensagem por meio de uma comparação: Sabei, pois, em vosso
coração, que assim como o homem disciplina seu filho o Senhor vosso Deus vos impõe sua
disciplina (8,5). O mesmo tipo de imagem é usado no Salmo 103,13, em relação aos devotos:
Assim como o pai tem devoção de seus filhos, do mesmo modo o Senhor tem devoção daqueles
que o temem. Na literatura profética, Deus é representado proclamando o vínculo Pai-filho
entre ele mesmo e Israel: Gerei e criei filhos, mas eles se revoltaram contra mim (Is 1,2).E onde
lhes foi dito: “Não sois meu povo” lhes será dito: “Filhos do Deus vivo” (Os 2,1). Pois sou um
pai para Israel e Efraim é meu primogênito (Jr 31,9).

6
A máxima negativa é incluída também como sumário doutrinal da Parábola do Servo Cruel (Mt 18,35).
O ensinamento relativo à reconciliação necessária, mesmo fazendo uma oferenda no Templo, é
enfatizada igualmente em Mt 5,23s., sem referência a um Pai Celeste benevolente. A alusão ao
santuário, que na opinião de Bultmann atesta a forma mais original porque “pressupõe a existência do
sistema sacrificial, em Jerusalém, é mais provavelmente derivada de Mateus do que de Jesus, cujo
interesse em assuntos do Templo parece ter sido um tanto periférico.
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

Nos salmos, Deus proclama o rei seu filho no momento de sua entronização, declaração
dotada de significado messiânico depois do desaparecimento da soberania política: Tu és meu
filho, hoje eu te gerei (Sl 2,7). Entretanto, enquanto a metáfora parece familiar, a referência
comunitária a Deus, em forma de prece, como “nosso Pai” ocorre relativamente tarde, em
passagens da literatura pós-exílica: Pois tu és nosso Pai, já que Abraão não nos conhece e Israel
não nos reconhece, Tu, ó Senhor és nosso Pai, Nosso Redentor, este é teu nome desde a
antiguidade. (Is 63,16).
A compreensão de Deus como Pai celeste, típica da pregação de Jesus, se enquadra no
desenvolvimento do pensamento religioso judaico num esboço esquemático, que vai desde a
Bíblia até os rabis, a ideia do Pai divino se desloca para o nível coletivo, a partir do
Criador/Gerador do povo judeu (dentro da humanidade) em direção ao Protetor amante e
afetuoso do membro individual da família. À época dos sábios tanaíticos, até o século III d.C.,
o Pai Celeste é o Deus providencial, distinto do Deus Rei-Juiz-Soberano, e a imagem paternal
é nitidamente muito familiar no meio hassídico-carismático. (VERMES,1995, p. 164).
A representação de um Pai amante e solícito não se ajusta à experiência humana de um
mundo duro, injusto e cruel, onde melhor se enquadra as imagens dos deuses da humanidade.
Naquela época como agora, como afirma Vermes (1995), os filhotes implumes ainda caem do
ninho, os pequeninos morrem e, como o próprio Jesus logo iria experimentar, os inocentes
sofrem. Mas o que se encontra no interior de sua intuição é a convicção de que o eterno,
distante, dominador e terrível Criador – de acordo com a cosmovisão de alguns – é
primariamente um Deus próximo e que pode ser alcançado. É essa a certeza de boa nova que
os seguidores de Jesus passaram a explorar mais e mais, ao revelarem os diferentes contornos
do Deus que se revela, agora à luz do Cristo Jesus.

Contornos de Deus para cristãos


A experiência vivida em torno de Jesus, lida como realização das promessas do Deus que
se revela, encarnando-se na história humana, apresenta um olhar e reconhecimento de Deus,
como o “Ser–em–Si”, fundamento de tudo o que existe; mas, na história de Israel, Ele se revela
também como um “Ser–para”, um Ser relação. Ele se revela para os homens, se faz próximo,
entra na história humana e age nessa história, escolhe para si um povo, o povo hebreu, liberta

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

este povo da escravidão do Egito, ama e defende esse povo e o conduz à terra que Ele um dia
havia prometido a Abraão, Isaac e Jacó, patriarcas desse povo eleito.
Esse povo, que elegeu para si, amou com amor esponsal, como averiguamos nas várias
passagem citadas. Ele é um Deus que tem uma relação de aliança, zelo e ciúme por seu povo
e faz tudo para não o perder. Esse é também o Deus do homem judeu, Jesus Cristo, o qual foi
experimentado dentro de sua tradição e cultura judaica, que será lido pelos cristãos como
“Ser–em-si” e “Ser–para” ..., que se aproxima do ser humano e o ama. Em Jesus Cristo, revelar-
se que Deus é acima de tudo Amor, primeiramente em si mesmo e depois, também na sua
relação com a criação, especialmente com a humanidade.

Considerações finais
Ao final desse artigo, constatamos que analisamos a figura do Deus que se revela e dos
deuses da humanidade e que nos cabe aqui, apresentar algumas considerações finais, e não
uma conclusão, tendo em vista se tratar de um tema sempre aberto a novas interações.
Em momentos de profunda crise religiosa que, de tempos em tempos, enfrentamos, não
basta crer em qualquer Deus (deuses da humanidade); precisamos discernir qual é o Deus que
se revela. Isso só é possível, observando as diversas experiências históricas e as ações
geradoras de vida, por Ele iniciadas. Parece-nos muito importante reivindicar hoje, na
sociedade moderna, o autêntico Deus bíblico, o Deus dos Patriarcas, Deus dos Profetas, Deus
de Jesus Cristo. Todavia, não podemos confundi-lo com qualquer outro “deus”, elaborado por
nós a partir de medos, ou ambições e fantasmas que pouco ou nada tem a ver com a
experiência de Deus, outrora vivida e comunicada no universo bíblico.
Na tentativa de expressar desejos e vontades, por vezes, criamos imagens
antropomórficas de Deus. O Antropomorfismo é um conceito muito utilizado em diversas
religiões, por exemplo, no Cristianismo, de forma que aspectos humanos são atribuídos aos
deuses ou aos seres sobrenaturais, anjos, santos, demônios, os quais não apresentam forma
determinada (amorfos).
Podemos pensar por exemplo, em Deus, o qual é provocado como se tivesse corpo
(antropomorfismo) e sentimentos humanos. No entanto, os textos bíblicos deixam claro que
Deus não possui um corpo nem sentimentos humanos. Ele é uma presença boa que abençoa
a vida. A solicitude amorosa do Deus que se revela, quase sempre misterioso e velado, está
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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

presencialmente envolvendo a existência de toda criatura. É um Deus próximo, cuja bondade


irrompe no mundo sob a forma de compaixão. Sua proximidade permite-lhe buscar as pessoas
onde elas estão, mesmo que se encontrem perdidas, longe de sua Aliança. Deus, se posiciona
sempre contra o mal, sofrimento, opressão e morte. Imagens contrárias ou distintas disto
pertencem aos desejos e ambições humanas. O sofrimento e a enfermidade, não são
expressões da vontade, castigo ou tentativa de purificação aplicadas por Deus, são resultado
da inviolável finitude humana, inerente a tudo que vive.

REFERÊNCIAS

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OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA CADERNOS DE SION

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LATOURELLE, René, S.J.. Teologia da revelação. São Paulo: Paulinas, 1972.
MESQUITA, Luiz José de. Por Que Crer? A fé e Revelação. São Paulo: Ave Maria, 1990.
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RÖMER, Thomas. A origem de Javé. O Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2016.
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Sites:
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http://www.salvatorianos.org.br/textos_umalutadedeuses.htm acessado em 07-03-2011.

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA

Marcio Miranda de Matos


Especialista em Sagrada Escritura.

RESUMO
O objetivo desse artigo é fazer uma reflexão sobre a morte de Maria chamada comumente de
dormição; afinal, segundo a doutrina da Igreja, Maria passou pela morte embora, a partir do século
XVII por conta da discussão em torno da Imaculada Conceição, houvesse surgido quem declarasse sua
imortalidade. Isso não encontrou fundamentos sólidos. Assim, o Concílio do Vaticano II nos
apresenta Maria como exemplo de discípula e serva, em total conformidade, a seu filho Jesus. Com
isso, fica mais claro que a experiência da morte e de sua participação na ressurreição de Cristo, pois
sendo elevada de corpo e alma aos céus é a antecipação do fim, no qual os cristãos colocam sua
esperança. Maria, passando pela morte, não se vê diminuída, ao contrário, só aumenta a sua
dignidade.

Palavras-chave: Dogmática; Maria; Dormição; Morte; Assunção.

RESUMEN
El propósito de este artículo es reflexionar sobre la muerte de María, comúnmente conocida como
durmiente, al fin y al cabo, según la doctrina de la Iglesia pasó por la muerte aunque a partir del siglo
XVII a causa de la discusión en torno a la Inmaculada Concepción que había aparecido quien declaró
su inmortalidad. Esto no encontró una base sólida. Del Concilio Vaticano II, que presenta a María
como ejemplo de discípula y sierva en plena conformidad con su hijo Jesús, se hace aún más claro
que la experiencia de la muerte y su participación en la resurrección de Cristo resucitado en cuerpo y
alma a los cielos. es la anticipación del fin, enel que los cristianos depositan su esperanza. María pasar
por la muerte no la disminuye, al contrario, solo aumenta su dignidad.

Palabras llave: Dogmático; Maria; Dormición; Muerte; Suposición.

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Considerações Iniciais

"A concupiscência, depois de conceber, dá a luz o pecado; e o pecado, uma vez


consumado, gera a morte.” (Tg 1,15). Portanto, a primeira conclusão óbvia é que o pecado
gera a morte, o que levanta a seguinte questão: se Maria foi concebida sem a mancha do
pecado original sendo assim Imaculada Conceição como haveria de passar pela morte? Teria
ela pecado em algum outro momento da vida? E a resposta segundo a Igreja é: Não! Ela foi
imune ao pecado durante toda a sua vida a Igreja oriental a chama por um título especial:
Panaghia (toda santa) o que indica que ela se manteve pura.

1
Dimitris Vetsikas

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Os Padres da tradição oriental chamam a Mãe de Deus “a toda


santa” (Panaghia), celebram-na como “imune de toda a mancha de
pecado, visto que o próprio Espírito Santo a modelou e dela fez uma
nova criatura”. Pela graça de Deus, Maria manteve-se pura de todo o
pecado pessoal ao longo detoda a vida. (CIC §493).

Então a Virgem Maria estaria isenta da morte? Tendo passado por uma espécie de
sono profundo e sendo assunta aos céus ainda em vida? No meio católico existe certa
controvérsia no que se refere ao desenlace final de sua vida, ainda que no texto do dogma da
Assunção definido por meio da Constituição Apostólica Munificentissimus Deus do Papa Pio
XII esteja escrito: “terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma a gloria
celestial”. Não parece claro para alguns que ela de fato tenha passado pela morte.
Isso se deve ao fato da utilização do termo dormição ser confundido com sono por
certo devocionalismo popular que, por vezes, tem dificuldade de compreender certos termos
utilizados pela Igreja ao longo dos séculos.
A Sagrada Escritura utiliza largamente esse termo como um eufemismo para morte, o
que foi muitas vezes interpretado como uma espécie de sono profundo, no entanto, isso não
encontra respaldo na doutrina católica.
Na verdade, alguns teólogos afirmaram a isenção da morte da Virgem
e a sua passagem direta da vida terrena à glória celestial. Todavia,
esta opinião é desconhecida até ao século XVII, enquanto na
realidade existe uma comum tradição que considera a morte de
Maria a sua introdução na glória celeste. (PAULO II, Papa João.
Audiência: A dormida da Mãe de Deus. Quarta-feira 25 de Junho de
1997.)

Embora não pareça haver uma afirmação clara e objetiva que designe a morte de
Maria como um fato consumado, encontramos sólidos argumentos no magistério da Igreja
que corroboram tal circunstância. Por exemplo, quando é mencionada sua participação na
ressurreição de seu filho. “A Assunção da santíssima Virgem é uma singular participação na
ressurreição do seu Filho” (CIC §966). Ou ainda na indicação de que nela podemos vislumbrar
a antecipação do que ocorrerá com todos os cristãos. ‘‘e uma antecipação da ressurreição dos
outros cristãos’’. (CIC §966)
A morte é condição necessária e essencial para ressurreição, e a assunção de Maria é
descrita pelo catecismo como a participação da ressurreição de seu Filho. O que nos leva a
concluir que como ressuscitou passou pela morte embora descrita com palavras mais brandas:
“terminado o curso da vida terrena”.

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

A Virgem Imaculada, preservada imune de toda a mancha da culpa original,


terminado o curso da vida terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e
exaltada pelo Senhor como rainha, para assim se conformar mais
plenamente com o seu Filho, Senhor dos senhores e vencedor do pecado e
da morte (CIC §966).

A Assunção de Maria por seu Filho Jesus indica que ela está na presença d’Ele no céu
de corpo e alma, viva, ressuscitada como sublime antecipação da ressurreição dos outros
cristãos. “Assunção do substantivo latino assunptio (acolhida) e antes ainda da raiz verbal
latina ad/as-sumo (tomo para mim, acolho)”. (Lexicon, 2003, p 56).
Maria foi tomada por Jesus, acolhida na esfera celeste pelo poder de seu divino Filho.

Dormição ou morte?

A Sagrada Escritura utilizou largamente o termo dormição como eufemismo para


morte, pode se verificar o uso do termo dormição aplicado em diversos textos bíblicos como
sinônimo de morte. Existem diversas referências que utilizam variações desse termo:
“dormiu”, “adormeceu” ou “repousou”, portanto, não podemos pretender que o termo
“dormição de Maria” trate de algo diferente.
Como podemos ver nas passagens a seguir que constam do livro dos Reis:
E Davi adormeceu com seus pais e foi sepultado na cidade de Davi. (I Rs
2,10)

Salomão adormeceu com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi, seu
pai, e seu filho Roboão reinou em seu lugar. (I Rs 11,43)

Roboão adormeceu com seus pais e foi enterrado com seus pais na cidade
de Davi; sua mãe chamava-se Naamá, a amonita. Seu filho Abiam reinou em
seu lugar. (I Rs 14,31)

Encontraremos outros: Abiam (cf. I Rs 15,8), Asa (cf. I Rs 15,24), Baasa (cf. I Rs 16,6),
Amri (cf. I Rs 16,28) e Josafá (cf. I Rs 22,51).

Portanto, é bastante claro que mesmo na Escritura o termo dormição não passa de
uma maneira abrandada para dizer morte, o que corrobora o argumento de que não há
motivos para crer que Maria não passou pela morte, afinal, é um desenlace importante por

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

conta de servir como referencial daquilo que para o cristão é o motivo de esperança, uma vida
eterna na glória da Trindade. Uma nova vida transformada pela realidade da ressurreição.

Aspectos gerais sobre essa verdade de fé

Dentro de um aspecto cristológico a mãe Maria se assemelha ao Filho Jesus, tendo o seguido
também na sua última etapa (morte) rumo à glória celeste, como singular exemplo para todas
as gerações de cristãos de como seguir a Cristo confiantes na ressurreição.

A partir de um olhar mariológico: ela viveu a perfeita obediência a Deus na plena


realização de sua existência alcançou a santidade e de modo sublime o seu propósito a
salvação.
Por meio de uma visão eclesiológica: a Igreja vê em Maria o seu início e o seu fim, a
realização de sua esperança é a realização definitiva da fé, ou seja, nascer, viver e morrer com
Cristo para chegar à ressurreição.
Antropologicamente: o ser humano encontra em Maria a plenitude do favor divino e a
esperança de alcançar a ressurreição assim como ela.

Não conheceu a corrupção da morte

Imaculada Conceição, concebida sem a mancha do pecado original por singular


privilégio da graça de Deus, toda santa e sem nenhum resquício de corrupção em sua carne,
obra-prima das mãos do Criador; Maria foi feita para ser o vaso de honra que traria em seu
ventre o Salvador do mundo.
Seu corpo de fato não conheceu corrupção, afinal, foi preservado de toda mancha do
pecado desde o primeiro instante de sua concepção e ao longo de toda sua vida não pecou.
Importante recordar que Maria é Panagia2, toda santa, concebida de forma única e
especialíssima sem a mancha do pecado original, virgem intacta e incorrupta, viveu uma vida
de santidade sem cometer pecado algum, toda dedicada a Deus, toda de Deus, cheia da Graça

2
Panagia: do grego Παναγία, fem. De panágios, pan + hágios, o todo-Santo; pronunciou a pronúncia grega:
[panaˈʝia] em grego medieval e moderno, também transliterou Panayia ou Panaghia, é um dos títulos
de Maria, Mãe de Jesus, usado especialmente no cristianismo ortodoxo. A maioria das igrejas gregas
dedicadas à Virgem Maria é chamada Panagia; a designação padrão cristã ocidental de "Santa Maria"
é raramente usada no Oriente Ortodoxo, "Santa Maria" é considerada a mais santa de todos os seres
humanos, estando acima de todos os outros santos.

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

de Deus para viver tamanha missão, escolhida e preparada para tal, desde toda eternidade,
prenunciada nas Escrituras como aquela cuja linhagem esmagaria a cabeça da serpente (cf.
Gn 3,15), serva fiel, mulher de fé que por sua total obediência desata o nó da desobediência
de Eva.
Não haveria então condição para que seu corpo fosse corrompido pela terra, ou seja,
se deteriorasse. Ser preservada do pecado é algo singular à Maria dentre as criaturas.
O que torna necessária a compreensão de que não conhecer a corrupção da morte de
maneira alguma significa não morrer, mas ter seu corpo preservado da decomposição. Em
nada desejando ser maior que seu filho, ela desejou passar pela morte assim como Ele passou.
É o que significa: “terminado o curso de sua vida terrena”.

Ressurreição

Importante à compreensão de que a assunção de Maria tem a ver com a ressurreição


de Jesus e também é o prenúncio da ressurreição dos cristãos. O corpo santo de Maria passa
pela morte, assim como seu filho Jesus, sendo então por Ele ressuscitada e levada ao céu de
corpo e alma.
A morte é condição para entrar na vida eterna, pois se faz necessário, segundo São João
Damasceno:
Certamente era necessário que a parte mortal fosse deposta para se revestir
de imortalidade, porque nem o Senhor da natureza rejeitou a experiência da
morte. Com efeito, Ele morre segundo a carne e com a morte destrói a morte, à
corrupção concede a incorruptibilidade e o morrer faz d'Ele nascente de
ressurreição (Panegírico sobre a Dormida da Mãe de Deus, 10: SC 80, 107).

O Papa Francisco em uma de suas homilias por ocasião da festa da Assunção de Maria
indica que: “O mistério da Assunção de Maria em corpo e alma também está inteiramente
inscrito na Ressurreição de Cristo. A humanidade da Mãe foi ‘atraída’ pelo Filho na sua
passagem através da morte” (Francisco, Homilia, 15-VIII-2013).
Portanto, ao passar pela morte se despe do mortal e é revestida da ressurreição
seguindo seu filho até a vida eterna, e antecipando o fim último dos cristãos. ‘‘A Assunção da
santíssima Virgem é uma singular participação na ressurreição do seu Filho e uma antecipação
da ressurreição dos outros cristãos’’. (CIC §966).
Prefigurando a ressurreição dos outros cristãos, ou seja, assim como passou pela
morte e foi ressuscitada acontecerá aos outros cristãos que tendo passado pela morte um dia
alcançarão a ressurreição como indicado na profissão de fé. “A Assunção é uma realidade que
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

também nos diz respeito, porque nos indica de modo luminoso o nosso destino, o da
humanidade e da história” (Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, Papa
Bento XVI, 15 de Agosto de 2012).

Toda humanidade anseia pela ressurreição dos mortos e pôde vislumbrar esse mistério
inaugurado por Jesus agora vivido por Maria como verdadeira confirmação da fé cristã que
tem como ponto central a ressurreição em Cristo Jesus, afinal, como diz São Paulo: “E, se Cristo
não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé.” (I Cor 15,14).
São João Paulo II retoma o assunto do dogma da Assunção em uma de suas catequeses
para esclarecer tais dúvidas e contradições que produzem certa confusão para que se
compreenda o que de fato aconteceu, dizendo com clareza sem igual que para os padres da
Igreja a tradição corrente sempre foi a de que Maria se despiu do que era mortal e se revestiu
de imortalidade para ser assunta aos céus conforme São João Damasceno, portanto, a
dormição nunca foi encarada como sono.
São Tiago de Sarug indica a morte e a reunião dos apóstolos para sepultar o corpo da
Virgem Maria:

Segundo o qual quando para Maria chegou o tempo de caminhar pela via
de todas as gerações, ou seja, a via da morte, o coro dos doze Apóstolos
reunisse para enterrar o corpo virginal da Bem aventurada (Discurso sobre a
sepultura da Santa Mãe de Deus, 8799 em C. VONA, Lateranum 19 [1953],
188).

São Modesto de Jerusalém fala de sua ressurreição por meio de seu Filho Jesus:
Depois de ter falado amplamente da beatíssima dormida da gloriosissima
Mãe de Deus, conclui o seu elogio exaltando a intervenção prodigiosa de
Cristo que a ressuscitou do sepulcro para recebê-la consigo na gloria (Enc. In
dormitionem Deiparae semperque Virginis Mariae, nn. 7 e 14; PG 86 bis,
3293; 3311).

São João Damasceno fala do despir-se do que é mortal para revestir-se do que é
imortal:
Que por sua vez, pergunta: Como e possível que aquela que no parto
ultrapassou todos os limites da natureza, agora se submeta as leis desta e o
seu corpo imaculado se sujeite a morte? E responde: Certamente era
necessário que a parte mortal fosse deposta para se revestir de imortalidade,
porque nem o Senhor da natureza rejeitou a experiência da morte. Com
efeito, Ele morre segundo a carne e com a morte destrói a morte, a corrupção
concede a incorruptibilidade e o morrer faz d'Ele nascente de ressurreição
(Panegírico sobre a Dormida da Mãe de Deus, 10: SC 80,107).

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Quem melhor para fundamentar essa doutrina do que um grande padre do oriente
chamado São João Damasceno3 profundo devoto da Virgem Maria chamado pela Igreja
“doutor em Assunção”, deu início à teologia mariana com seus escritos. Um dos mais
importantes defensores de Maria fala de forma sublime sobre a subida de Maria pelos degraus
da morte rumo ao céu, como pela graça de Deus Jacó viu uma escada, que vai da terra ao céu,
por onde os anjos sobem e descem fazendo menção a uma escada espiritual, onde podemos
ver Jesus que é o caminho que nos leva ao céu, e também Maria que é para os cristãos a
escada pela qual Jesus desce a humanidade.
Como não elevaria da terra ao céu aquela que fora um verdadeiro céu sobre
a terra? Hoje a escada espiritual e viva, pela qual o Altíssimo desceu se fez
visível e conversou entre os homens (Baruc 3, 38), ei-la que sobe, pelos
degraus da morte, da terra ao céu. Hoje a mesa terrestre que, sem núpcias,
trouxera o pão celeste da vida e a brasa da divindade, foi levada da terra aos
céus, e para a Porta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as portas
do céu. (Homilia sobre a Dormição da Santíssima Mãe de Deus, a Bem
Aventurada Virgem Maria, 676-749).

Elevada aos céus por sua obediência, docilidade e serviço aos desígnios de Deus,
aquela que desde sempre só a Ele pertenceu, cheia da graça, aguarda ansiosamente após a
ascensão de seu Divino Filho o momento do reencontro, não resta dúvida de que aquela que
sofreu junto d’Ele na cruz morreria com Ele naquele momento se lhe fosse permitido.

Aquela que foi o leito nupcial onde se deu a divina encarnação do Verbo
veio repousar em túmulo glorioso, como em tálamo nupcial, para de lá se
elevar até a câmara das núpcias celestes, onde reina em plena luz com seu
Filho e seu Deus, deixando-nos também como lugar de núpcias seu túmulo
sobre a terra. Lugar de núpcias, esse túmulo? Sim, e o mais esplendoroso
de todos, a refulgir não por revérberos de ouro, de prata ou de gemas,
porém pela divina luz, irradiação do Espírito Santo. (Homilia sobre a
Dormição da Santíssima Mãe de Deus, a Bem Aventurada Virgem Maria,
676-749)

É possível encontrar esse túmulo em Jerusalém, de fato existem duas igrejas que
guardam este mistério, uma fica no Monte Sião próxima ao cenáculo e é chamada Abadia da
Dormição de Maria e a outra fica ao lado do Getsêmani, um túmulo em Jerusalém que
segundo a tradição é datado do primeiro século da era cristã, ele está localizado no vale de
Cedrom. É conhecido pela Igreja tanto do ocidente como do oriente pelo nome “Tumba de
Maria”, de fato, encontra-se hoje sob a guarda da Igreja Ortodoxa, mas já esteve sob os

3
João Damasceno nascido de uma família árabe cristã no ano 675, em Damasco, na Síria. Veio daí
seu apelido "Damasceno" ou "de Damasco". É considerado o último dos santos Padres orientais da

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Igreja, antes que o Oriente se separasse definitivamente de Roma, no ano 1054. Uma das grandes
figuras do cristianismo, não só da época em que viveu, mas de todos os tempos, especialmente pela
obra teológica que nos legou. Elevado a condição de doutor da Igreja pelo Papa Leão XIII era conhecido
pelos adversários e pelos teólogos como São Tomás do oriente.cuidados de Beneditinos e
Franciscanos. Ainda segundo a tradição, foi desta tumba que Mariade corpo e alma subiu aos céus.

Abadia da dormição Tumba de Maria4

Alguns textos apócrifos que tratam do assunto Assunção de Maria, entre eles um é
atribuído a São João e se chama: “De Transitus Virginis” que trata dessa tradição de forma rica
em detalhes mencionando os locais onde hoje se guardam a memória da morte, do
sepultamento, bem como, a da assunção da Virgem Maria. O texto descreve que os apóstolos
teriam sido trazidos, por meio de um milagre do Senhor, a Jerusalém de todos os cantos da
terra por onde estavam espalhados anunciando o evangelho.
E que na noite anterior ao desenlace da Virgem Maria se reuniram ao redor dela e
acompanharam a suave morte de Maria, chamada dormição, que teria ocorrido no monte
Sião próximo ao local do cenáculo. Logo após seu santo corpo teria sido transportado em
procissão, acompanhado por uma multidão de devotos, por toda cidade de Jerusalém até o
vale do Cedrom, conhecido também como Vale dos Justos, aos pés do Monte das Oliveiras,
onde foi sepultado. Local onde ao terceiro dia ela foi ressuscitada pelo Senhor que veio buscá-
la junto com seus anjos, a fim de transportá-la ao Paraíso.
As Igrejas da Dormição e a tumba de Maria fazem memória a estas tradições antigas.
Uma faz memória ao local da morte de Maria e a outra faz memória ao local de seu
sepultamento e Assunção.

4
Fotos de Marcio Miranda de Matos
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Quanto a Sagrada Escritura mesmo não havendo nenhuma alusão direta a Assunção,
é possível encontrar a partir do olhar da Igreja várias indicações e prefigurações do fato, como
as que se seguem:
Gn 3,15 “Porei hostilidade entre ti e a mulher”. É possível perceber Maria como nova
Eva. Sua vida e missão estão intimamente ligadas à vida de seu Filho Jesus, o novo Adão.
Portanto, como travam a mesma luta contra a serpente, se Jesus é glorificado por sua
ressurreição a ela também caberia à mesma glorificação de seu corpo por ser partícipe como
colaboradora da redenção.
Ex 20,12 “Honra teu pai e tua mãe”. Para cumprir tal mandamento com perfeição,
Jesus que tem poder de poupar sua mãe da corrupção de seu corpo, ou seja, “decomposição”
o fez para a ela conceder maior honra.
Is 60,3 na Vulgata “Glorificarei o lugar onde os meus pés se apoiaram”. Tendo Jesus, o
Santo dos santos, ocupado o ventre imaculado de Maria o santificou e glorificou.
Sl 45,10.14-16 “A tua direita uma dama, ornada de Ofir (...). Vestida com brocados, à
filha do rei é levada para dentro do séquito de virgens.
(...) Com júbilo e alegria, elas entram no palácio”. Pode-se interpretar como prefiguração de
Maria sendo introduzida na glória como rainha.
Ct 3,6 (cf. 4,8 e 6,9): “A esposa do Cântico dos cânticos, ‘subindo do deserto como
colunas de fumaça perfumada com incenso e mirra’, para ser coroada”. Na esposa do Cântico
dos cânticos vemos uma prefiguração de Maria sendo elevada aos céus.
Lc 1,28 “Ave cheia de graça, o senhor está contigo”. A partir da afirmação do anjo pode-
se chegar à conclusão de que Maria recebe a plenitude da graça em sua Assunção.
Sl 132,8 “Levanta-te, Adonai para o teu repouso, tu e a arca da tua santificação”. A
Arca da Aliança é uma das mais belas a prefigurações de Maria feita segundo a ordem de Deus
de madeira incorruptível (Acácia), dentro da Arca foram colocadas as tábuas da Lei, um vaso
com o maná recolhido do deserto e a vara de Aarão que floresceu como sinal da escolha do
sacerdócio levita (Ex 25,16,21; Nm 17,1-10; Dt 10,1-5) Maria é a arca da nova aliança
tabernáculo mais perfeito feito por mãos não humanas (cf. Hb 9,11) foi criada Imaculada,
virgem perpetua e incorruptível revestida de graças traz em seu ventre a palavra de Deus viva
o próprio Verbo encarnado (Jo 1,1), o Pão vivo descido do céu ( Jo 6,49-50) e o Sacerdócio vivo
(Hb 7,17).

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Ap 11,19 “Abriu-se então o templo de Deus, que está no céu, e a arca de sua aliança
apareceu em seu templo”. Pode-se ver aqui a arca da aliança no céu junto de Deus, imagem
de Maria, pois um objeto de madeira não poderia estar no céu.
Ap 12,1 “Um grande sinal apareceu no céu: uma mulher, vestida de sol, a lua debaixo
dos pés, e uma coroa de doze estrelas na cabeça”. Mais uma imagem de Maria no céu.

S. Germano de Constantinopla julgava que a incorrupção do corpo da


virgem Maria Mãe de Deus, e a sua assunção ao céu são corolários não só
da sua maternidade divina, mas até da santidade singular daquele corpo
virginal: “Vós, como está escrito, aparecestes ‘em beleza’; o vosso corpo
virginal é totalmente santo, totalmente casto, totalmente domicílio de Deus
de forma que até por este motivo foi isento de desfazer-se em pó; foi, sim,
transformado, enquanto era humano, para viver a vida altíssima da
incorruptibilidade, mas agora está vivo, gloriosíssimo, incólume e
participante da vida perfeita”. (Constituição Apostólica Munificentissimus
Deus, 1950, p.6).

O olhar do Magistério

Com clareza até mesmo no texto do dogma definido por Pio XII em 1 de novembro de
1950 é possível perceber a referência sobre a morte quando se diz: “a imaculada Mãe de Deus,
a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à
glória celestial”. Afinal, o que significa terminar o curso de sua vida terrestre? Não era
conveniente a afirmação da morte de forma excessivamente explícita, pois, tomaria uma
proporção talvez maior do que se pretendia evidenciar; sua Assunção.

A Constituição dogmática Lumen Gentium retoma o assunto repetindo a afirmação: “A


Virgem Imaculada, que fora preservada de toda a mancha de culpa original, terminando o
curso da sua vida terrena, foi elevada à glória celeste em corpo e alma” (LG, 59).

Assim como também deixa claro a importância da glorificação de seu corpo e alma
como sinal de esperança para humanidade:

Entretanto, a Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é


imagem e início da Igreja que se há de consumar no século futuro, assim
também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação,
para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor
(cf. 2 Pd 3,10). (LG, 68).

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Em uma audiência papal,5 durante suas catequeses, São João Paulo II faz observações
claríssimas e incontestáveis como esta: “Para ser partícipe da ressurreição de Cristo, Maria
devia compartilhar antes de mais nada da Sua morte”. Pode-se perceber que a posição da
Igreja sempre foi clara em relação ao assunto, portanto, a controvérsia deve ter surgido por
uma questão terminológica, que levou a confusão entre dormição e morte levando alguns a
acreditar que se tratasse de fatos distintos.

A Mãe não é superior ao Filho, que assumiu a morte, dando lhe novo
significado e transformando-a em instrumento de salvação. Empenhada na
obra redentora e associada à oferta salvífica de Cristo, Maria pôde
compartilhar o sofrimento e a morte em vista da redenção da humanidade.
(PAULO II, Papa João. Audiência: A dormida da Mãe de Deus. Quarta-feira 25
de Junho de 1997.)

Ao afirmar que Maria não é superior ao Filho o Santo Padre São João Paulo II deixa
claro um dos motivos mais óbvios para que ela tenha passado pela morte, afinal, ela é criatura
de Deus, é bem verdade que a mais alta, mais nobre e mais especial de todas as criaturas,
aquela que por sua obediência e colaboração permitiu o cumprimento dos planos de Deus em
sua vida e gerou para o mundo a Salvação e a Vida que é Jesus.

Se Ele próprio sendo Deus submeteu-se à morte mesmo não tendo pecado algum não
faria sentido que Maria, embora cheia de graça, inferior a Ele, também não fosse a tal fim
submetida. Isso não a diminui em coisa alguma, pelo contrário, até mesmo ajuda a enaltecê-
la, afinal, aquela que em tudo serviu e procurou imitar seu Divino Filho Jesus não o faria
também na morte?

Qualquer que tenha sido o fato orgânico e biológico que, sob o aspecto físico,
causou a cessação da vida do corpo, pode-se dizer que a passagem desta
vida à outra constitui para Maria uma maturação da graça na glória, de tal
forma que jamais como nesse caso a morte pôde ser concebida como uma
“dormida”. Nalguns Padres da Igreja encontramos a descrição de Jesus
mesmo que vem acolher a sua Mãe no momento da morte, para a
introduzir na glória celeste. Assim, estes apresentam a morte de Maria
como um evento de amor que a levou a alcançar o seu Filho divino para
participar da Sua vida imortal. No final da sua existência terrena, ela terá
experimentado, como Paulo e mais do que ele, o desejo de se libertar do
corpo para estar com Cristo para sempre (cf. Fl 1, 23). A experiência da
morte enriqueceu a pessoa da Virgem: passando pela comum sorte dos
homens, ela pode exercer com mais eficácia a sua maternidade espiritual
em relação àqueles que chegam à hora suprema da vida. (Audiência Papa
João Paulo II, Quarta-feira 25 de Junho de 1997).

5
Audiência Papa João Paulo II, Quarta-feira 25 de Junho de 1997
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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Considerações finais

É preocupante que na atualidade a doutrina da Igreja seja por vezes distorcida e a


tradição descartada já que em nome de uma devoção equivocada permeada por certo
fanatismo se coloque Maria muitas vezes em uma condição onde ela jamais pretendeu estar,
ou seja, acima de Jesus. Afinal, se Jesus passou pela morte sendo Deus como ela, criatura, não
passaria?
Não existem fundamentos que sustentem os argumentos de que ela não teria morrido
e apenas entrado em um sono profundo.
Não passar pela morte abriria um precedente perigoso, pois poderia se presumir que
haveria outra maneira de se ir ao céu, por exemplo, a doutrina do arrebatamento alardeada
no meio protestante neopentecostal.
É de suma importância para a compreensão desse mistério que morrer não diminui
Maria em nada, apenas indica que ela não é maior do que seu Filho Jesus, afinal, sendo Ele o
Deus encarnado e não tendo pecado algum, morreu em nosso lugar. Ela ao mesmo tempo se
torna para os cristãos sinal de esperança e confirma a ressurreição dos mortos para aqueles
que em Jesus anseiam pela vida eterna. Seu filho vem buscá-la para honrá-la mais uma vez
como sempre fez durante sua vida, cumprindo a Lei. Jesus sempre honrou sua mãe.

A devoção a Maria é parte importante da fé católica, no entanto, deve ser vivida com
equilíbrio seguindo as orientações da Igreja, sem excessos, o que costuma desviar os fiéis da
verdadeira devoção provocando confusões e distorções quanto à fé. Maria é única no projeto
de Deus, foi concebida de forma singular guardada de toda mancha do pecado e no fim de sua
vida passou pela morte para indicar o caminho pelo qual todos devem passar seguindo Jesus.

Ela é ímpar e ocupa um lugar só dela no mistério de Deus, no entanto, é importante


conhecer bem o lugar para não colocá-la equivocadamente em uma posição que ela mesma
nunca desejou para si.

Aos teólogos e pregadores da palavra de Deus, exorta-os instantemente a


evitarem com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada
estreiteza na consideração da dignidade singular da Mãe de Deus.
Estudando, sob a orientação do magistério, a Sagrada Escritura, os santos
Padres e Doutores, e as liturgias das Igrejas, expliquem como convêm as
funções e os privilégios da Santíssima Virgem, os quais dizem respeito todos
a Cristo, origem de toda a verdade, santidade e piedade.
70
REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em
erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou
quaisquer outros. E os fiéis lembrem-se de que a verdadeira devoção não
consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz
reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a
nossa mãe e a imitar as suas virtudes. (LG, 6)

Afinal, ela viveu para seu filho Jesus Cristo e conhecê-la nos leva a Ele e não a ela. Aos
pés da cruz Maria contempla a morte dolorosa de Jesus desejando com todo seu coração
morrer com Ele. Mesmo tendo Ele ressuscitado em sua ascensão agora Ele sobe aos céus e a
ela ainda não lhe é permitido acompanhá-lo, foi preciso esperar, ela ainda tinha uma missão
a cumprir, a Igreja nascente precisa dela. E assim que chegou o tempo pôde ir ao encontro do
Amado, segundo São Francisco de Sales, ela morreu de forma tão suave que o melhor adjetivo
foi: “morrer de amor”, isso por não suportar mais viver nesse mundo sem a Sua companhia.

Que Maria seja exemplo das mais nobres virtudes para cada membro do corpo de
Cristo que é a Igreja. E cada um possa aprender com Maria como viver e morrer com Cristo na
esperança da vida eterna que virá.

REFERÊNCIAS

Catecismo da Igreja Católica - Edição Típica Vaticana. 9º Edição. São Paulo: Loyola, 2000.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução: Sociedade bíblica católica internacional.


4ª edição revisada e ampliada. São Paulo: Paulus, 2006.

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REFLEXÃO SOBRE A DORMIÇÃO E ASSUNÇÃO DE MARIA CADERNOS DE SION

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL

Nayon Nigel da Silva Melo Cezar


Graduado em Filosofia, Especialista em Cultura Judaica pelo Centro Universitário Assunção e
graduando em Teologia na Salesian Pontifical University em Jerusalem.

RESUMO
Uma das grandes mudanças ocorridas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962- 1965) refere-se à
abertura ao diálogo entre as tradições cristã e judaica; a Igreja recorda-se que tem um passado, e
esse passado não pode excluir o povo de Israel, com o qual Deus fez a primeira Aliança. Duas
tradições tão próximas não poderiam ficar separadas eternamente. Assim, o Concílio Vaticano II foi o
expoente do início da convergência dessas tradições e tornou-se essencial. Esse artigo reflete sobre o
impacto da Declaração Nostra Aetate no Brasil, um dos primeiros lugares que foi destino dos judeus
fugitivos das perseguições da Europa, provocadas por histórias fantasiosas, brigas políticas e
religiosas. Tornar conhecido esses ultrajes passados, tornar-se possível construir um futuro mais
harmônico, compreendendo e vivendo os laços que unem a Igreja de Cristo e o povo de Israel. A
metodologia utilizada neste trabalho é a pesquisa bibliográfica quantitativa, que se deu por
fichamentos e resumos de livros, que discutiram e aprofundaram-se a Nostra Aetate e a tradição
judaico-cristã, entre eles Humberto Porto, José Bizon, Maria Luiza Tucci Carneiro e Keila Grinberg. O
artigo apresenta como se deu o caminho de divergência entre as duas tradições no período da Igreja
nascente, apresentando o Concílio Vaticano II, séculos depois da ruptura, como o grande baluarte de
abertura ao diálogo e à unidade. Explicita os difíceis caminhos trilhados pelo cardeal Béa na produção
de um texto que fosse a voz da Igreja em um período em que o mundo, perplexo pelos horrores
nazistas, urgia por uma palavra aos judeus. Após a apresentação histórica, analisamos o impacto da
Nostra Aetate na relação cristã-judaica, no Brasil, abordando as mudanças ocorridas nessa relação.

Palavras-chave: Nostra Aetate; Judaísmo; Cristianismo; Antissemitismo; Diálogo.

ABSTRACT
One of the great changes of the Second Vatican Ecumenical Council (1962-1965) refers to the
openness to dialogue between Christian and Jewish traditions; The Church remembers that it has a
past, and that past cannot exclude the people of Israel, in which God made the first Covenant. Two
traditions so close could not be separated forever, so the Second Vatican Council, was the exponent of
the beginning of convergence of both and became an essential element of this article, which reflects
the impact of the Nostra Aetate Declaration in Brazil, one of the first places that It was the fate of
Jews fleeing the persecution of Europe brought on by fanciful stories, political and religious quarrels.
To make past outrages known today, to make it possible to build a more harmonious future by
understanding and living the bonds that unite the Church of Christ and the people of Israel, thus
moving towards the realization of God's designs. The methodology used in this work is the
quantitative bibliographic research that will take place through records and summaries of books by
authors who also discussed and deepened the theme of Nostra Aetate and the Judeo-Christian
tradition, among them Humberto Porto, José Bizon, Maria Luiza Tucci Carneiro and Keila
Grinberg. The article presents how the path of divergence between the two traditions took place in
the period of the nascent Church, presenting the Second Vatican Council, centuries after the rupture,
as the great bastion of openness to dialogue and unity. And explaining the difficult paths taken by
Cardinal Béa in the conception of a text that was the voice of the Church in a period that everyone,
perplexed by the Nazi horrors, urged the Jews for a word. After the historical presentation, we
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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

analysed the impact of Nostra Aetate on the Christian-Jewish relationship in Brazil, addressing the
changes that occurred in that relationship.

Keywords: Nostra Aetate; Judaism; Christianity; Anti-Semitism; Dialogue.

Breve histórico da separação entre judeus e cristão


No início da era cristã, judeus e cristãos caminhavam juntos e a Igreja germinava no
seio do judaísmo, que era fundamentalmente uma Igreja de judeus, “seus membros, embora,
agrupados em comunidades separadas das judaicas, continuavam, extremamente, a pensar
segundo as categorias da religião mosaica” (PORTO, 1971, p.10).
A Igreja primitiva, ou seja, a Igreja nascente em Jerusalém pode ser descrita como um
grupo de judeus instruídos na fé que acreditavam que Jesus, o crucificado, era realmente o
Messias enviado por Deus e que este Jesus ressuscitou dos mortos e não tardaria a vir
estabelecer na terra o Reino de Deus. O que não quer dizer que era uma comunidade que se
via externa ou alheia ao judaísmo, muito pelo contrário, permaneceu unida a tradição judaica,
durante todo o primeiro século do cristianismo.
No entanto, essa relação ora harmoniosa tornou-se uma relação de inimizade que
perdurou por séculos. Com o desenvolvimento e a difusão da fé cristã, surge uma preocupação
com relação à tradição judaica.

[...] desde os inícios da evangelização grega, admitiam os judeus- cristãos


(Sic) nas suas comunidades convertidos pagãos, sem os obrigarem ao rito
da circuncisão. Estes fatos eram interpretados às tradições religiosas.
Vemos inclusive tal protesto judeu encontrar eco em alguns cristãos vindos
das seitas farisaicas que propugnavam intransigentemente a tese da
circuncisão para os gentios. Ascendeu- se então o debate, a que o Concílio
de Jerusalém, realizado por volta do ano 49, pôs um ponto final (PORTO,
1971, p. 20).

Foi com o Concílio de Jerusalém, aproximadamente no ano 50 d. C, conforme


apresentado em At 15,1-40; que se pode dizer que ocorreu mais um passo rumo a separação
das duas tradições; fruto da busca de identidade, sobretudo para o cristianismo incipiente.
Pedro representando o Colégio Apostólico e Tiago o Conselho dos Anciãos, foram a favor da

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não obrigatoriedade do rito da circuncisão para os gentios convertidos, como vemos nos livros
dos At 15 e Gal 2, 10-14, no entanto, afim de criar uma relação harmoniosa com a comunidade
de Jerusalém que respeitava essa obrigatoriedade mosaica, foram impostas as seguintes
condições: “abstenção de carnes sufocadas, de carnes imoladas aos ídolos e de fornicação” At
15,19-20 (PORTO, 1971, p. 21). Essa foi uma forma encontrada para que os judeus não se
sentissem impuros ao se relacionarem com os novos convertidos.
Pode-se dizer que o ápice dessa crise se deu por ocasião da guerra judaica de 66 a 70.
Por não lutarem juntos, os judeu-cristãos foram o alvo da grande animosidade e critica por
parte dos judeus. Viram-se forçados desse modo, a deixar Jerusalém partindo para Jordânia.
No ano 70 d. C. Tito invade Jerusalém, massacra toda a população e destrói o Templo. Com a
destruição do Templo “[...] o judaísmo perde sua autonomia administrativa, o seu centro de
culto, o Templo, coração da vida religiosa de Israel e símbolo da unidade de Deus” (PORTO,
1971, p. 22). Observa-se através do historiador Flavio Josefo o assombroso relato da
destruição do Templo:

Quando o fogo devorava o Templo, os soldados furiosos saqueavam e


matavam todos os que encontravam. Não perdoavam nem à idade, nem à
condição. Os velhos e as crianças, os sacerdotes e os leigos, eram todos
passados a fio de espada; todos eram envolvidos nessa matança geral e os
que recorriam aos rogos não eram tratados com mais clemencia do que os
que tinham a coragem de se defender até o fim; o gemido dos moribundos
misturava-se com o barulho do crepitar das chamas, que avançavam sempre
e o incêndio de tão grandeedifício, situado num lugar elevado, fazia aos que
o contemplavam de longe, pensar que toda a cidade estava devorada pelas
chamas (JOSEFO, 2004, p. 1367).

Com o fim da guerra a reorganização judaica fica a cargo dos fariseus, que prezam por
tradição particular à ortodoxia judaica, guardando assim cuidadosamente o legado do
passado. Já reorganizado o judaísmo adquire um caráter mais intolerante, pois se sentia
ameaçado pelas correntes oriundas do próprio judaísmo, inclusive pelos judeu-cristãos.
Culminando ao ponto de Rabi Gamaliel II, no ano 85 d. C., introduzir na oração da manhã
(Amidá), uma benção, ou como classificam alguns autores uma maldição, reservada aos
cristãos e outros hereges.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

Que não haja esperança para os convertidos a idolatria e que o reino do mal
seja logo arrancado d’entre nós e que os notzarim e os heréticos (minim)
pereçam que eles sejam apagados do livro da vida que eles não sejam
inscritos entre os justos. Bendito seja aquele que submete os arrogantes
(GUNDRY, 1998, p. 35).

Sobre a benção são divergentes as opiniões, segundo Miranda, em seu livro, “As
relações judeus-cristãs do primeiro século”, “a palavra ‘minim’, no começo designava de modo
geral, os apóstatas ou os dissidentes, que no início, eram todos aqueles que recusavam o
judaísmo de Gamaliel II” (MIRANDA, 2015, p. 47). O que poderia ser uma luta interna dentro
do judaísmo entre liberais e conservadores, todavia alguns textos tanaíticos 1 referem-se aos
“minim” como os não judeus, ou seja, os cristãos, que nesse momento da história já não se
sentiam judeus, portanto “a benção contra os “minim” seria também contra os cristãos”
(MIRANDA, 2015, p. 47).
Não podemos afirmar que a oração contra os “minim” foi o ponto determinante para
a separação entre judeus e cristão, mas a partir desse momento vê-se Igreja e Sinagoga
trilhando caminhos divergentes, já que devido a essa oração os judeu-cristãos são compelidos
a deixar a Sinagoga. Após esse breve histórico da separação de cristãos e judeus no primeiro
século da era cristã, pode-se constatar que alternando durante a história caminhos mais
conflituosos do que de reaproximação, judeus e cristãos viveram um grande embate, no fundo
foram movidos pela paixão em defesa da própria ortodoxia religiosa, que levou ao
rompimento do diálogo e ao afastamento das tradições.

Da Europa ao Brasil, um longo caminho.

O Brasil conta com uma considerável população de judeus, sendo a segunda maior
comunidade judaica da América Latina e a décima primeira do mundo. No entanto os motivos
que nortearam a vinda dos primeiros judeus no território nacional ainda são desconhecidos,
para a maioria dos cristãos e também para os diversos judeus residentes. Desse modo é mister
tornar conhecida a luta e as dificuldades de homens e mulheres, crianças, adultos e idosos,
em busca de um lugar de paz, onde pudessem viver sua vida e o culto a sua religião.

1
São textos escritos pelos sábios que escreveram a mishna a partir de 50 a. C. até o ano 200 d. C.

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Essa história se inicia do outro lado do oceano Atlântico, na península ibérica, na


Espanha. Sepharad é uma palavra do hebraico que pode ser traduzida como “terra
prometida”, foi assim de Sepharad que chamavam na Espanha os judeus, após a guerra
judaico-cristã do século I e da segunda destruição do Templo, no ano 70 da era cristã e que foi
o marco histórico da Diáspora.2 A Espanha :“[...] tornou-se, pelo menos no nome, a Sepharad
dos hebreus que por sua vez acabariam sendo conhecidos como judeus sefarditas [...]”
(GRINBERG, 2005, p. 17).
Foi durante um vasto período que se deu entre os séculos I e o século XV d. C. que a
comunidade mais numerosa e forte da Europa se concentrou na Espanha e foi marcada por
um estreito e intenso contato com outras culturas e religiões.

A vida das comunidades sefarditas conheceu, de todo modo, situações


variadas desde os primórdios da Diáspora até a célebre expulsão decretada
pelos reis católicos, Fernando e Isabel, em 1492. Da integração à
segregação, ou mesmo perseguição, as conjunturas foram múltiplas
(GRINBERG, 2005, p. 18).

No entanto o antissemitismo cresceu em toda a Europa após o século XI com as


cruzadas, “uma cruzada não era apenas a retomada dos Lugares Santos cristãos tomados
pelos árabes; era também a vingança pelo suposto crime de “deicídio” cometidos pelos
judeus” (FAINGOLD, 2016, p. 1). Com isso os judeus passaram a serem vistos como o mal
absoluto e exigiu-se que até mesmo usassem roupas diferentes da dos cristãos para quem não
fossem confundidos.
Essa perseguição fez com que muitos judeus se convertessem ao cristianismo, mas
muitos continuavam com suas práticas religiosas em segredo e outros praticavam-nas
abertamente. Os judeus que se convertiam eram chamados de “cristãos-novos.” 3
Com o surgimento da inquisição espanhola, houve uma forte perseguição ao judaísmo
praticado às claras por boa parcela dos conversos. Segundo Grinberg (2005, p. 26), entre os
anos de 1483 e 1525 os tribunais da inquisição espanhola: “se preocuparam quase que

2
A diáspora foi o processo de dispersão dos judeus pelo mundo e a consequente formação de
comunidades judaicas fora de Israel.
3
Cristão-novo era o termo utilizado que categorizava os judeus recentemente convertidos ao
cristianismo. Dependendo do lugar o termo possuía diversos significados. Na Espanha, por exemplo,
os judeus convertidos eram chamados de marrano, que traduzido para o português, significa porco; o
que denota um forte antissemitismo.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

exclusivamente com os judaizantes” Com a inquisição muitos judeus fugiram para Portugal
que até então estava à margem do problema que marcava a Espanha.

A entrada de milhares de judeus espanhóis no reino português mudaria


completa e drasticamente a situação da comunidade sefaradita lusitana. A
história dos judeus se repetiria, doravante, em solo português com uma
importante diferença. Decretar-se-ia primeiro a conversão forçada, já no
reinado de D. Manuel em 1496- 1497, e somente no reinado de D. João III,
cerca de 40 anos depois, é que seria estabelecida a inquisição portuguesa
nos mesmos moldes dacongênere de Espanha e com os mesmos propósitos e
fins (GRINBERG,2005, p. 28).

A imparcialidade durou pouco e foi em 24 de dezembro de 1496 que foi decretado em


Portugal, pelo rei João III, a expulsão de Mouros e judeus, já que a princesa de Castela, filha
dos reis católicos e prometida em casamento ao príncipe de Portugal, se recusava a pisar em
solo onde houvesse hereges. Inicia assim a perseguição aos judeus e, é com o surgimento da
inquisição portuguesa que muitos fogem para uma nova colônia, uma terra desconhecida e
não muito povoada, a nova Sepharad dos judeus: o Brasil.
No Brasil a história judaica pode ser estudada, segundo o historiador Roney Cytrynowicz
(2002) por meio de quatro marcos distintos: a presença de cristãos-novos e a ação da
Inquisição durante o período em que o Brasil foi colônia de Portugal (1500-1822); a formação
de uma comunidade judaica em Recife, cidade pernambucana no nordeste do Brasil, no século
XVII durante o período de invasão e domínio holandês, que propiciou liberdade religiosa para
os judeus; o período moderno (1822-1889), no qual houve uma abertura para a aceitação de
outras religiões e começo de uma esparsa imigração em várias cidades; o período
contemporâneo (em 1889, o Brasil adotou uma Constituição que garantia a liberdade de
religião), quando se formaram comunidades em colônias agrícolas no Rio Grande do Sul
(principalmente a partir da primeira década do século 20), e comunidades organizadas em
algumas das principais cidades do Brasil (a partir da Primeira Guerra Mundial).
O Brasil foi o palco para a primeira comunidade judaica estabelecida nas Américas. Com
a expulsão dos judeus de Portugal, logo após a sua descoberta, judeus convertidos
ao catolicismo (cristãos-novos) já haviam se estabelecido na nova colônia. Ao menos dois
pisaram na terra quando Pedro Álvares Cabral chegou em 1500, fazendo parte de sua

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

tripulação: Mestre João, médico particular da Coroa Portuguesa e astrônomo; e Gaspar da


Gama, intérprete e comandante da nau que trazia mantimentos.

O Brasil foi o destino de milhares de judeus e cristãos novos, boa parte dos
quais convertidos compulsoriamente, e que chegaram vindo dos quatro
cantos do mundo. Desejavam encontrar um lugar seguro contra as
discriminações que os levaram a deixar seu país de origem (GRINBERG,
2005, p. 9-10).

A primeira comunidade judaica foi formada na cidade de Recife, entre os anos de 1630
e 1654, durante o período de ocupação colonial holandesa. Os holandeses permitiram a
liberdade de religião e defenderam legalmente judeus e cristãos-novos das restrições
impostas por Portugal.
Segundo Wiznitzer (1966), o número de judeus teria chegado, em 1644, a 1.450. Em
1636, os judeus fundaram, também em Recife, a primeira sinagoga em solo brasileiro e
também nas Américas, Kahal Kadosh Zur Israel (Santa Comunidade Rochedo de Israel).

A sinagoga de Recife ficava situada na Rua dos Judeus, num edifício de dois
andares, construído de pedra e cal. Os holandeses denominavam essa rua
de Bockestraet, mas depois da reconquista de Recife pelo exército luso-
brasileiro de libertação, foi a rua rebatizada com o nome de Rua da Cruz, e
os edifícios da antiga sinagoga e escola religiosa tomaram o número 26. Em
1879 o nome da rua mudou para o de Bom Jesus. O edifício da sinagoga foi
posto abaixo no começo do século XX e substituído por um edifício agora
ocupado por um banco. Hoje, o edifício traz o velho número 26, bem como
o número atual, 155. (WIZNITZER, 1966, p. 119).

Poder-se-á constatar que a história do povo judeu não foi diferente no Brasil
comparando com os outros países em que procuraram refúgio. No período colonial, por
exemplo, muitos sofreram perseguições com a inquisição, foram proibidos de contrair
matrimonio com “cristãos-velhos”4 e muitas vezes eram difamados com estórias fantasiosas.
Após a independência, a constituição de 1824 mantem o catolicismo como religião
oficial do Estado: “[...] mas proclamou a tolerância com relação a outras religiões e cultos
realizados em espaços privados [...]” (CYTRYNOWICZ, 2002, p. 1). Já com nova constituição de

4
Cristãos velhos eram aqueles que não tinham antepassados de origem judaica.

79
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1891 é decretada a separação entre Estado e Igreja e proclamada a liberdade religiosa em


todo o território brasileiro e também, introduz o casamento civil e os cemitérios laicos.
Durante a Primeira Guerra Mundial muitos veem no país um local de refúgio, prova disse
foram os 56 mil imigrantes judeus que chegaram ao país nos anos de 1930.
Durante os anos do Estado-Novo (1937) e da Segunda Guerra Mundial, um forte clima
de xenofobia estava presente no governo e em setores das elites políticas e intelectuais. O
ensino de línguas estrangeiras e a publicação de jornais em línguas estrangeiras foram
banidos, restrições impostas a todos os grupos imigrantes e as organizações de imigrantes
tiveram que “nacionalizar” seus nomes.
As organizações judaicas adequaram-se à legislação e souberam enfrentar as restrições
sem deixar de funcionar. As escolas continuaram a ensinar hebraico e cultura judaica, as
sinagogas mantiveram seus cultos, programas de rádio tocavam músicas judaicas e inúmeras
organizações foram fundadas neste período.
Todavia apesar do Brasil também ter tido um período em que a inquisição foi atuante e
perseguiu diversos judeus; teve entre os anos de 1933 a 1938 o fascismo 5 e o integralismo6
que tinha uma plataforma abertamente antissemita, as ações foram muitas vezes de forma
velada e em alguns casos em lugares pontuais

Da dor surge a esperança


Séculos de história de perseguição, lutas, mortes e um aflorado antissemitismo tomou
conta de quase todo o mundo cristão. O tempo de uma reaproximação e respeito mútuo era
esperado e desenhado por muitos pensadores de ambos os lados. Principiou a Igreja em 1928,
antes dos horrores nazistas a manifestar a sua preocupação mostrando-se solidaria com a
sorte do povo de Israel: “[...] a Sé Apostólica condena soberanamente o ódio contra o povo
outrora escolhido por Deus, ódio esse comumente designado com o nome de antissemitismo”
(PORTO, 1971, p. 78).
Já em 1939, um ano antes da Segunda Guerra Mundial (1940-1945), o Papa Pio XII em
discurso dirigido a visitantes belgas, defendeu a inadmissibilidade do movimento antissemita

5
O Fascismo é um regime político que surgiu na Europa entre 1919 e 1945. Tem como características
o totalitarismo e o militarismo e o seu idealizador do fascismo foi Benito Mussolini, que o implantou na
Itália.
6
Defendia uma política tradicionalista e baseia-se em uma sociedade estruturada a partir da religião e
da família, acreditando preservar assim a cultural local e a tradição.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

e afirmou: “o antissemitismo é inadmissível [...] porque espiritualmente somos semitas”


(PORTO, 1971, p. 78).
Eclode a Segunda Guerra Mundial, “muitas pessoas não perceberam a ameaça que os
nazistas representavam, e alguns líderes cristãos os apoiaram” (FONSECA, 2011, p. 37), mas o
ódio e o antissemitismo se encarnam em Hitler que junto com seus aliados na Europa
persegue e massacra os judeus. Obviamente se deve ressaltar que o antissemitismo adquire
aqui não uma bandeira apenas religiosa, mas política e social; “para o antissemitismo
hitleriano, por exemplo, um judeu feito cristão continua sendo judeu, a única solução é o
extermínio” (PORTO, 1971, p. 77). Homens e mulheres foram mortos, exterminados, pelo
simples fato de serem judeus. O mundo inteiro se mobiliza e denuncia os horrores do nazismo,
chegam aos meios de comunicação os relatos do horror.

Cada noite trinta homens eram escolhidos ao azar e fuzilados; muitos se


suicidavam cortando os pulsos com pedaços de vidro, pois não suportavam
os sofrimentos, outros lançavam-se dos andaimes, outros ainda eram
flagelados muitas vezes até a morte, enquanto todos eram obrigados a
trabalhar no campo seminus, com uma temperatura de trinta graus abaixo
de zero. (CARNEIRO, 2002, p. 66).

Durante os seis anos de guerra foram assassinados, pelos nazistas, aproximadamente


seis milhões de judeus, incluindo um milhão e quinhentas mil crianças, representando um
terço do povo judeu naquela época. Esta decisão de aniquilar os judeus, já era prevista desde
1924 no livro "Mein Kampf" (Minha luta), de Adolf Hitler. No livro Hitler diz que “[...] o judeu
é identificado como o demônio, sendo responsabilizado pela ‘degradação da pureza da raça
ariana’ o ‘fermento da corrupção física e moral’” (apud CARNEIRO, 2002, p. 26). Foi uma
operação feita com fria eficiência, um genocídio cuidadosamente planejado e executado. Foi
única na história em escala, gerenciamento e implementação, e por essa razão recebeu um
nome próprio: Shoah (destruição).
Com o fim da Segunda Guerra mundial, sendo notórias todas as crueldades nazistas
com o povo de Israel na Shoah, o mundo se cala. Todas as grandes instituições, assim como a
Igreja mantiveram-se em silêncio, no entanto deve-se ressaltar a Encíclica do Papa Pio XI, “Mit
brennender Sorge” (Com ardente preocupação), publicada em 1937, onde condena a ideologia
nazista, o racismo e o antissemitismo. É considerada a primeira declaração de um chefe de
Estado europeu a se opor frontalmente ao Terceiro Reich.

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Alguns grupos também arriscam ações em prol dos judeus, mas de forma solitária. A
grande calamidade desperta uma consciência quase que universal sobre o judeu e o judaísmo,
surge então a questão: quem é o homem judeu? Qual é o seu verdadeiro rosto? Essas
questões começam aparecer entre os teólogos, sobretudo entre os mais lúcidos e humildes.
Tanto judeus como os cristãos começam então a se perguntar se os ensinamentos vigentes
até então não poderiam ter “[...] alimentado e até mesmo ampliado o genocídio industrial
[...]” (FONSECA, 2011, p. 38).
No entanto, é com a publicação do livro Jésus et Israël, (Jesus e Israel), livro escrito
durante a Segunda Guerra mundial, publicado em 1948, de Jules Isaac (1877-1963), um judeu
que perdeu toda a sua família na guerra e que dedicou grande parte de seus esforços de
investigação sobre as causas do antissemitismo. Que as iniciativas de amizade entre judeus e
cristãos começam a engatinhar.
Em seu livro ele aponta “a interação entre as atitudes antijudaicas da teologia cristã e
o antissemitismo de cunho racial e biológico” (apud FONSECA, 2011, p. 38). E ainda, apresenta
quatro teses. São elas: 1) Jesus é judeu em sentido pleno, 2) o ensinamento de Jesus se fez no
quadro institucional do judaísmo, 3) Jesus não condenou o povo judeu, 4) o povo judeu não
pode ser qualificado de deicida.
Em seu segundo estudo intitulado L’Enseignement du mépris7(1962) Jules vai além e
indica o que deveria ser indicado e mudado há muitos séculos da teologia cristã: o ensino do
desprezo judaico.
Outro grande documento, antes do Concilio Vaticano II, dessa vez aprovado pela Igreja
foi intitulado Os dez pontos de Seelisberg, fruto de um encontro inter-religioso na cidade de
Seelisberg na Suíça no ano de 1947, é o primeiro documento de boas condutas elaborado
pelos cristãos em favor dos seus irmãos judeus. Jules Isaac, também é convidado para esse
encontro e diversos outros teólogos de outros credos.
Na história do diálogo judeu-cristão, a conferência de Seelisberg é
mencionada principalmente por seus Dez pontos, especificamente dirigidos
às igrejas. Os quatro primeiros destacam as raízes profundase fundamentais
do Cristianismo no Judaísmo. Outros seis pontos deixavam claro que o
judaísmo não mais devia ser apresentado de forma negativa no ensino
cristão. Este desafio estabeleceu um dos

7
O ensino de desdém: publicado em 1962, um ano antes da morte do autor. No livro Jules Isaac lida
com preconceito antijudaico, sentimentos de desconfiança, desprezo, hostilidade e ódio contra os
judeus.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

alicerces para a posterior pesquisa sobre as relações complexas entreas


duas tradições religiosas (FONSECA, 2011, p. 39).

Os pontos do documento de Seelisberg são: lembramos que o nosso Deus é o mesmo


Deus vivo que nos fala a todos no Antigo e no Novo Testamento; evocamos o fato de Jesus ter
nascido de mãe judia, da raça de Davi, do povo de Israel, de que seu amor eterno e seu perdão
abraçam o seu próprio povo e o mundo inteiro; advertimos que os primeiros discípulos foram
todos judeus; não nos deslembraremos jamais de que o preceito fundamental do cristianismo,
de amor a Deus e ao próximo, promulgado já no Antigo Testamento e confirmado por Jesus,
onera cristãos e judeus, sem exceção, nos seus relacionamentos; evitaremos rebaixar o
judaísmo bíblico ou pós bíblicos com o fito de exaltar o cristianismo; precavenhamo-nos de
usar a palavra “judeus” no sentido específico de “inimigos de Jesus”, como também a locução
“inimigos de Jesus” para designar a totalidade do povo hebreu; evitemos apresentar a Paixão
de tal sorte que sobre todos os judeus ou exclusivamente sobre eles o lado odioso da
condenação à morte recaia. Deveras, não foram eles que exigiram a morte de Jesus; nem se
pode dizer tenham sido os únicos responsáveis, visto, salvando-os a todos, mostrar a Cruz que
foi por causa dos nossos pecados que Cristo morreu; não deixemos de, ao falar das maldições
escriturísticas e do grito da multidão excitada: “que o seu sangue caia sobre nós e sobre nossos
filhos!” – sublinhar que sobre a prece infinitamente mais poderosa de Jesus: “Pai, perdoa-lhes,
por que não sabem o que fazem!” – nada alcançou prevalecer; descreiamos da opinião ímpia
segundo a qual é o povo judeu reprovado, maldito, destinado a um fim de padecimentos;
nunca haveremos de nos referir aos judeus de modo a que deixemos dúvidas quanto ao fato
de terem sidos eles os primeiros a pertencer a Igreja.
Outro fato importante que contribuiu para a abertura do diálogo entre cristãos e
judeus foi a criação do Estado de Israel no ano de 1948 no Oriente Médio. A criação do Estado
deu visibilidade ao povo que outrora era vilipendiado e esquecido. Os judeus antes
espalhados, pela diáspora agora migravam à Israel, o que: “[...] criou condições concretas
favoráveis à dinamização de centros de estudos conjuntos das várias religiões” (PORTO, 1971,
p. 91). De modo particular, criou-se um amplo caminho de pesquisa comum, entre cristãos e
judeus, em torno do Antigo Testamento. Mais um passo dado, rumo à reaproximação das duas
tradições.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

Vemos assim o quanto ajudou o novo Estado de Israel a formar a


consciência de laços mais estreitos e vigorosos entre todos os crentes. Situa-
se o grande evento histórico na categoria dos elementos propiciadores do
encontro fraternal em profundidade entre cristãos e judeus (PORTO, 1971,
p. 91).

Durante o papado de Pio XII pode-se dizer que houve uma atitude indiferente do
Vaticano, “[...] houve pouco ou nenhum contato formal com crenças não-cristãs, nem mesmo
com os judeus, mas o papa apoiou sinceramente o conceito de tolerância para com os outros”
(MCBRIEN, 2000, p. 372). O que contrasta com os heroicos esforços de muitos padres
anônimos que salvaram vidas de judeus, arriscando as suas próprias vidas. Muitos
historiadores e teólogos concordam que a aproximação entre o judaísmo e o catolicismo foi
iniciada pelo papa João XXIII, seu sucessor.
Com o falecimento do papa Pio XII em 9 de outubro de 1958, o conclave composto por
51 cardeais elegeu o cardeal Roncalli em 28 de outubro de 1958, sucedendo Pio XII, o cardeal
Roncalli foi escolhido Papa e adota o nome de João XXIII. Prestes a completar 77 anos de idade,
não se esperava muito desse homem tranquilo e bonachão, no entanto os cinco anos em que
esteve no trono de Pedro foram profundamente marcantes e renovadores. “Coube ao papa
João XXIII enfrentar decisivamente a questão do relacionamento com o judaísmo, movido por
especial interesse, fruto de sua inquebrantável convicção pessoal” (PORTO, 1971, p. 110). No
ano seguinte, em 25 de janeiro de 1959 em reunião com os cardeais o Papa anuncia a
convocação do Concílio Vaticano II.

Alguém perguntou ao Papa João XXIII, após o anuncio oficial no dia 25 de


janeiro de 1959, de que haveria um Concílio Ecumênico: ‘por que convocar
tão grande evento? Qual a finalidade de tanto trabalho que isto exigirá? O
que se poderá reformar, mudar, melhorarem poucos meses?’ Em seu
gabinete o papa havia ouvido sorridente esses comentários. Após alguns
minutos levantou-se, calmamente se dirigiu à janela e, abrindo-a, disse: ‘eis
aqui: é por isto!’ (ALMEIDA, et al, 2013,562).

Abrir as janelas é deixar a luz e o ar entrar, luz e ar que arejam o mundo e a Igreja. O
Concílio foi um marco na história, uma tentativa da Igreja em dialogar com o mundo
contemporâneo. Nos anos em que se preparava a abertura do concílio o papa João XXIII, dá
um salto para a reaproximação e abertura ao diálogo com o povo de Israel.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

O Concilio Vaticano II e o nascimento da Declaração Nostra Aetate.


O Concílio Vaticano II iniciado por João XXIII no dia 11 de outubro de 1962, continuado
e finalizado papa Paulo VI em 7 de dezembro de 1965, foi uma marco na história da Igreja e
na relação entre cristãos e judeus, ele foi determinante por apontar caminhos promissores
para o futuro da Igreja, pois sem ele “[...] as vozes do mundo teriam silenciado de vez a da
Igreja” (ALMEIDA, et al, 2013, p. 562).

O Concílio Vaticano II foi um marco para a abertura da Igreja Católica às


outras religiões e uma expressão de nova sensibilidade dialogal. Registra-se,
em particular, em certos documentos do Concílio, uma mudança na forma
de tratamento das outras tradições religiosas, como é o caso da Declaração
Conciliar Nostra Aetate, que aborda as relações da Igreja Católica com as
demais religiões não cristãs e até mesmo uma abertura para as religiões
cristãs florescem a cada dia de diferentes formas e maneiras [...] (HEISING ,
2004, p. 153).

O texto é o mais breve documento produzido pelo Concílio, contêm apenas cinco
parágrafos, cerca de mil e duzentas palavras. Traz consigo as intenções da Igreja, fruto do
trabalho árduo de homens e mulheres que lutaram para que a Igreja se abrisse ao diálogo e
se aproximasse das religiões buscando uma mútua colaboração. Um texto que sem dúvida
pode ser chamado de revolucionário.
É com a Declaração Nostra Aetate que a Igreja se reaproxima do povo judeu, sobretudo
no capítulo quatro, que se encontra o coração de toda a Declaração, sua origem e também
sua intenção em relação ao povo de Israel. Conduzir o cristianismo a uma atitude cristã de
encontro, sem com isso perder ou enfraquecer a missão universal de Cristo e da Igreja, mas
convidar a todos a comungarem em uma única prece, uma prece de esperança, de unidade e
fraternidade.
A Igreja também reconhece com a Nostra Aetae que os cristãos estão em segundo
lugar, pois reconhecem a Eleição do povo de Israel como premissas da salvação e salienta que
os cristãos são justificados pelo fato de serem enxertados, pela obra da salvação de Cristo na
oliveira da eleição divina. O direito de primogenitura pertence até os dias de hoje aos judeus.
Foi a eles que Deus se manifestou primeiro, “[...] são os israelitas, aos quais pertencem a
adoção filial, a gloria, as alianças, a legislação, o culto, as promessas, aos quais pertencem os
patriarcas [...]” (Rm 9,4-5). A Igreja desse modo é a continuação de uma igreja de judeus e

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pagãos e, é alimentada até hoje e caminha em direção ao futuro com a história da eleição que
parte do Israel eleito por Deus e que está “misteriosamente prefigurada no êxodo do povo
eleito da terra da escravidão” (NOSTRA AETATE, nº 4).
Não se trata de um assunto do passado, entrementes a Igreja é dependente de Israel
em sua fé, “sem Israel, sem sua eleição e sua fé, a fé cristã estaria sem um lugar e se moveria,
em certo sentido, no espaço vazio” (GRÜMMER, 2013, p. 39) e assim também nos afirma a
Declaração:

Segundo o Apóstolo, os judeus continuam ainda, por causa de seus pais,


porque Deus não se arrepende dos dons e da sua vocação. Juntamente com
os profetas e os Apóstolos, a Igreja espera por aquele dia, só de Deus
conhecido, em que todos os povos a uma só voz aclamarão o Senhor e “se
submeterão num mesmo espirito” (Sf 3,9). (NOSTRA AETATE, nº 4).

O texto menciona também que: “[...] os principais dos judeus, com seus seguidores,
insistiram na morte de Cristo [...]” (NA nº 4); no entanto sua morte na cruz não poder ser
imputada a todos os judeus, inclusive os judeus nos tempos de hoje. Aqui se percebe que é
decisiva a ruptura com a infeliz tradição de preconceitos antissemitas. O Concílio diante da
acentuação permanente da eleição divina de Israel rejeita inequivocamente uma teologia
depreciativa. E ressalta que se deve haver cuidado para que: “[...] tanto na catequese como
na pregação da Palavra de Deus, não se ensine algo que não se coadune com a verdade
evangélica e com o espírito de Cristo” (NA nº 4).
E a Igreja como: “o novo povo de Deus” (NOSTRA AETATE nº 4), diante da valorização
da herança comum, exige também a valorização e o respeito mútuos como fruto dos estudos
teológicos e bíblicos assim como: “o diálogo fraterno” (NOSTRA AETATE nº 4). Nenhuma outra
religião está tão próxima do Cristianismo como o Judaísmo, o diálogo entre cristãos e judeus
é um meio que favorece o conhecimento mútuo e aprofunda as riquezas da tradição; é um
diálogo que exige respeito em relação à fé e as convicções religiosas de ambos os lados.
É incomensurável e inegável a importância da Declaração Nostra Aetate para a relação
com o Judaísmo. Não somente pelo fato de que se tenha desautorizado oficialmente pela
primeira vez na história da Igreja o antissemitismo e uma teologia da desvalorização do
judaísmo; que trazia consigo diversos males aos judeus, já que até então ser judeu “[...] era

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

difícil de suportar, porque até então era qualificado como pecador contra Deus e o ser
humano” (GRÜMME, 2013, p. 45-46).

[...] a Igreja que reprova toda perseguição contra qualquer homem,


lembrada do comum patrimônio com o s judeus, não por motivos políticos,
mas impelida pelo santo Amor evangélico, lamenta os ódios, as
perseguições, as manifestações antissemíticas, em qualquer tempo e por
qualquer pessoa, dirigidos contra os judeus (NOSTRA AETATE nº4).

No texto da Nostra Aetate realiza-se, o que Johannes Österreicher, disse sobre o


Concílio, que era a: “redescoberta do Judaísmo pela Igreja” (ÖSTERREICHER, 1971, p. 3). A
Igreja conscientiza-se de sua eleição comum com os judeus e cristãos no plano da salvação de
Deus e também da sua herança judaica. Afinal, Jesus, os Apóstolos, Maria, eram judeus e isso
não se pode negar. Como também não se pode negar que: “o Cristianismo tem uma relação
bem diferente, mais profunda, íntima com o Judaísmo, como não tem com outra religião”
(GRÜMME, 2013, p. 48).

Um novo olhar ao Povo de Israel.


O Concílio acolheu o ecumenismo entre as Igrejas cristãs e se abriu ao diálogo inter-
religioso com as igrejas não cristãs. Na América latina o ecumenismo não visa tanto a
convergência nas doutrinas, mas a convergência nas práticas, ou seja, todas as Igrejas juntas
se empenham pela libertação dos oprimidos. É, portanto, um diálogo de missão. A Igreja
dialoga com as religiões vendo nelas a presença do Espírito que chega antes do missionário e
por isso elas devem ser respeitadas com seus valores e suas tradições. Certamente pode-se
dizer que a América Latina foi o Continente onde mais se tomou a sério o Vaticano II e mais
transformações trouxe, projetando a Igreja do diálogo como grande desafio para os cristãos.
O Vaticano II, sem dúvida, é a voz dos católicos; ele ecoou por todo o mundo cristão, e
diante desse eco não se pode deixar de ressaltar a influência das exortações elaboradas pelos
padres conciliares em todos os âmbitos, entre eles, o diálogo inter-religioso com a Nostra
Aetate. Em 27 de fevereiro de 1981, dezesseis anos após o Concílio, foi criada pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), uma comissão nacional do diálogo religioso católico
judaico (DCJ), que: “[...] tem como objetivo, o diálogo entre católicos e judeus no Brasil”
(BIZON, 2005a, p. 115).

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

A comissão é composta de pessoas pertencentes às comunidades católica e


judaica, interligadas por objetivos a serem alcançados, em quatro níveis de
diálogo: institucional, teológico, de ação conjunta e de Contato Pessoal. É
sempre bom recordar que o diálogo supõe respeito à fé e às convicções
religiosas de cada pessoa (BIZON, 2005a,p. 115).

Em 26 de outubro de 1983, a Comissão elabora as Orientações para os católicos no


relacionamento com os judeus e ressalta a importância da aproximação, do diálogo, e que ele
seja inspirado por um sadio desejo de recíproco conhecimento e compreensão mútua. Para
que o diálogo se estabeleça a condição indispensável é: “[...] da parte dos católicos, o
reconhecimento da consciência que os judeus têm de ser um povo inconfundivelmente
definido por elementos religiosos e étnicos” (BIZON, 2005b, p. 327). O judaísmo deve ser visto
não apenas como mais uma religião das diversas existentes, mas um elemento constitutivo do
povo judeu e foi através desse povo que na história da humanidade que se implanta mais
notoriamente o monoteísmo, a fé no Deus único, já que existem indícios da prática do
monoteísmo no Egito antigo, após a reforma de Amenófis IV – 1397 a 1360 a.C.
Uma das orientações diz respeito ao antissemitismo, ele é duramente condenável e a
Comissão salienta que: “[...] seja banido da linguagem cristã todo o adjetivo ou toda expressão
depreciativa referente ao povo de Israel [...]” (BIZON, 2005b, p. 328) e que não haja campanhas
de violência, sejam elas físicas ou morais, contra o povo de Israel. Que não haja contraste
entre judaísmo e cristianismo, ambos guardam a plenitude do Reino de Deus: “este para os
cristãos, já começou com a vinda de Jesus Cristo, ao passo que os judeus ainda aguardam o
Messias” (BIZON, 2005b, p. 323).
Após o Concílio foram diversos os documentos elaborados pela Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil que tocam no ponto do diálogo inter-religioso entre cristãos e Judeus,
esses documentos certamente são necessários para desenraizar o antissemitismo que foi
incutido durante séculos, mesmo que no Brasil não tenha sido tão notória a perseguição
contra os judeus, como já apresentado. Todavia, faz-se necessário sempre elucidar a visão da
Igreja. Vale apresentar alguns dos pontos que tocam sobre esse tema, publicado nas diretrizes
gerais da ação pastoral da Igreja para o Brasil.
No documento de número 45 publicado em 28 de junho de 1991, para o período de
1991-1994, os bispos do Brasil, reconhecendo a pluralidade e secularização do mundo,

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

admoestam a importância de unir o diálogo inter-religioso e o diálogo ecumênico, dando


maior importância ao diálogo com cristão-judaico, devido seu patrimônio espiritual.

No diálogo religioso (ou inter-religioso), distinto do diálogo ecumênico,


exige-se reconhecer a peculiaridade da relação dos membros de cada uma
das religiões com a Igreja de Cristo. Merece atenção especial o diálogo com
os judeus que tem em comum com os cristãos “um tão grande patrimônio
espiritual” (CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 1991, p.53).

Sempre fiel às grandes inspirações do Concílio Vaticano II, a Igreja do Brasil


reconhecendo a importância do ecumenismo, do diálogo inter-religioso e do diálogo com os
não-crentes e dando uma resposta ao grande pluralismo religioso presente no Brasil, se
propõe abrir-se aos demais credo. Reconhece que o diálogo não é um simples colóquio, mas:
“[...] todo um conjunto de relacionamentos positivos e construtivos com quaisquer grupos e
comunidades” (BIZON, 2005b, p. 307-308). Um diálogo que visa um conhecimento mútuo e
ações comuns em prol da unidade de todo o ser humano.
No diálogo inter-religioso, por motivos históricos há predileção ao judaísmo, a Igreja
abre-se ao diálogo por fidelidade ao homem, mas, sobretudo, por motivos de fé, ela
reconhece o Deus Uno e Trino agindo nas outras religiões, vê nisso o único plano da salvação.
Desse modo, o diálogo não é um estranho e nem contraditório a missão, mas é
completamente integrado a ela.

O diálogo supõe maturidade na fé, pela qual, abrindo-se ao diferente da


própria identidade, o fiel possa oferecer ao interlocutor o testemunho de
uma vida coerente com o Evangelho. Neste contexto, diálogo e missão não
se excluem. Antes, exigem-se mutuamente, de tal forma que o diálogo deve
ser considerado como constitutivo da própria missão. De fato, o
evangelizador se encontra com pessoas humanas, ricas de experiência
cultural e religiosa. (CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL,
1995, p. 58).

É inegável os esforços da Igreja do Brasil por abrir-se ao diálogo cristão-judaico e, com


as demais Igrejas não cristãs, após anos de silêncio, a Igreja como mãe e mestra reconhece
seu erro, no entanto muito ainda precisa ser feito para se dar o verdadeiro valor à tradição
judaica na Igreja. Ainda é grande a dificuldade para o diálogo, muitos padres, bispos e até

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

cardeais, ainda fecham os olhos e mantem-se fechados em não aceitar ainda uma postura de
um espírito de abertura ao diálogo fraterno e recíproco.
Muito ainda precisa ser feito, as relações dos cristãos com os judeus não podem
continuar somente com bases na religião. Para que essas relações sejam profundas, elas deve
ser ampliada de forma a contemplar tudo aquilo que o judaísmo de fato significa, deve basear-
se no comprometimento incondicional com a sobrevivência e permanência do estado judeu,
Israel. O Estado de Israel é o símbolo concreto da liberdade e do direito de autodeterminação,
não apenas dos judeus, mas de todos os povos. Tal comprometimento pressupõe reconhecer
o direito dos povos de viverem livremente; livre da ideologia fundamentalista que fomenta o
terror.
O empenho da Igreja Católica para estabelecer as boas relações com o judaísmo e entre
as diferentes religiões responde a uma exigência do tempo em que vivemos. Esse empenho é
fundamental para combater as causas dos preconceitos contra os povos e as religiões e
também lembrar que a Declaração Nostra Aetate:

Lançou os fundamentos de uma nova compreensão das nossas relações


com os judeus dizendo que ‘segundo o apóstolo (Paulo), os judeus, pela
graça dos Pais, permanecem ainda caríssimos a Deus, cujos dons e cujo
chamado são sem arrependimento (Rm 11,29) (PONTIFÍCIA COMISSÃO
BÍBLICA, 2001, p. 239).

Este esforço de lembrança cabe a todos os católicos e não católicos, judeus e não judeus,
pois assim teremos a certeza de que se deu a contribuição para dar ao mundo uma feição mais
humana, permitindo que as futuras gerações sejam mais justas, que os erros fiquem no
passado e não assombrem o futuro. Somente assim se concretar-se-á a profecia Jeremias:
“Dar-vos-ei um futuro e uma esperança” (Jr 29, 11).

Referencias

ALMEIDA, João Carlos. As janelas, do vaticano. São Paulo: Editora Santuário, 2013.

BIZON, José. Diálogo católico- judaico no Brasil. São Paulo: Loyola, 2005a.

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NOSTRA AETATE E O DIÁLOGO CRISTÃO-JUDAICO NO BRASIL CADERNOS DE SION

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2002.

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. Diretrizes gerais da ação pastoral da Igreja no Brasil 1995-1998. São Paulo:


Paulinas, 1995.
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FONSECA, Gisa. Os doze pontos de Berlim, a história da transformação de um


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GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova. 1998.

HEISING, James W. Diálogos a uma polegada acima da terra. São Paulo: Loyola, 2004.

FAINGOLD, Reuven. Judeus durante a Primeira Cruzada. 2016. Disponível


em: <encurtador.com.br/akstU>. Acesso em: 05 de nov. 2019.

JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. De Abraão à queda de Jerusalém, obra completa. Rio
de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2004.

MIRANDA, Manoel. As relações judeus-cristãs do primeiro século. Curitiba: Editora Primas,


2015.

NOSTRA AETATE Nº 4 Sobre as relações da Igreja com a religião judaica, Vaticano II, 28
de outubro 1965, 25ª edição, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 742.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas sagradas escrituras na Bíblia


Cristã. São Paulo: Paulinas, 2002.

PORTO, Humberto. A fraternidade cristã-judaica. São Paulo: Empresa gráfica da revista


dos tribunais S.A, 1971.

. Os protocolos do Concílio Vaticano II. Sobre os judeus da Declaração Nostra


Aetate. São Paulo: Editora Germape Ltda, 2005.

WIZNITZER, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. Tradução de Olívia Krähenbühl. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, Editora da Universidade de São Paulo, 1966.

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O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO

Raimundo Pereira de Sousa


Especialista em Cultura Judaico-Cristã, História e Teologia pelo Centro Universitário Assunção

RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar um estudo sobre o método midráshico no Novo
Testamento. Destacamos o midrash como método de leitura e a exegese, utilizados pelos hagiógrafos
neotestamentários, para proclamar e confirmar o cumprimento da Escritura na pessoa do Cristo morto
e ressuscitado, sua atualização teológica e moral e sua contribuiçãona formação do Novo Testamento,
uma vez que ele nasce e configura-se no seio do judaísmo. Na verdade, os primeiros cristãos não
criaram um modo próprio de leitura e interpretação das Escrituras, mas fizeram uso do método
existente nas sinagogas, para difundir a proclamação cristã. Nesse sentido, podemos dizer que o
Novo Testamento é uma releitura do Antigo Testamento, a partir da fé em Jesus Cristo, morto e
ressuscitado.

Palavras-chave: Midrash; Exegese; Escritura; Novo Testamento; Judaísmo; Cristianismo.

ABSTRACT
This article aims to present a study on the midráshico method in the NewTestament. Highlighting the
midrash as a method of reading and exegesis used by New Testament hagiographers, to proclaim and
confirm the fulfillment of Scripture in the person of the dead and risen Christ and its theological
update. And moral, as well as its contribution to the formation of the New Testament, since it is born
and shaped within Judaism. In fact, early Christians, as a Jewish culture, did not create their own way
of reading and interpreting the Scriptures, but made use of the synagogues' method of spreading the
Christian proclamation. In this sense, we can say that the Second Testament is a rereading of the First
Testament from faith in Jesus Christ, dead and risen.

Keywords: Midrash; Exegesis; Scripture; New Testament; Judaism; Christianity.

Considerações Iniciais
É evidente o crescimento de pessoas, grupos e comunidades que buscam ler, reler e
interpretar a Bíblia à luz da vida, e a vida á luz da Bíblia. É nela que Israel, o povo de Deus,

92
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

buscou a fonte de inspiração e iluminação para sua sobrevivência em meio aos cativeiros da
história. Este artigo é fruto de estudos, reflexões e sistematizações ao longo da caminhada e
das várias experiências com o povo junto às comunidades, que procuram ler e interpretar as
Escrituras, buscando nelas um sentido para o cotidiano da vida. Ele é o resultado de uma busca
intensa de resposta às grandes indagações e desafios em relação ao judaísmo, cuja fonte
nasceu e desenvolveu o cristianismo e de estudos bíblicos com pequenos grupos, indagados,
inúmeras vezes, sobre como as primeiras comunidades cristãs interpretavam as Escrituras.
Que tipo de leitura os autores do Segundo Testamento 1 e as primeiras comunidades
cristãs utilizaram para apresentar a fé nascente? Teria Jesus rompido com sua cultura e com
o seu povo para dar início a um novo movimento, o Cristianismo? Percorrendo os caminhos
da Exegese e Hermenêutica bíblica existentes, percebe-se que o método midráshico, utilizado
pelos rabinos para conservarem e atualizarem as Escrituras é o ponto de partida dos
hagiógrafos neotestamentários que, com sabedoria, procuraram apresentar os
acontecimentos de Jesus a seus contemporâneos à luz das categorias e técnicas próprias do
judaísmo da época.
Constata-se, pelas pesquisas e sistematizações feitas em torno do Segundo
Testamento, a necessidade da análise destes textos, a partir da tradição rabínica, que era
transmitida nas sinagogas pelos fariseus do século I d.C., por meio do método midráshico. A
busca para compreender o Segundo Testamento pelo midrash se integra fortemente ao
método histórico-crítico, porque permite ampliar o horizonte cultural, que deu origem ao
texto. Sem essa base, tornar-se-ia difícil entender como os hagiógrafos neotestamentários
trabalharam, para dar corpo à fé nascente, afirmando que, na pessoa de Jesus de Nazaré, se
deu o “cumprimento das profecias reveladas”.Contudo, por meio do método midráshico é
possível perceber, com clareza, que as Escrituras têm um sentido próprio para todas as
situações e épocas.

Escritura e Tradição Oral – Torá Oral e Torá Escrita

Compreende-se por Escritura, aquilo que a literatura cristã designava como “Escritura
hebraica” ou “Antigo Testamento”. No Segundo Testamento, a expressão “Antigo

1
Usaremos o título “Primeiro Testamento” para evitar a conotação negativa que se poderia atribuir a
“Antigo Testamento”, e “Segundo Testamento” para se referir ao “Novo Testamento”. (cf. PCB, p. 52)

93
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

Testamento” aparece somente uma vez, em 2Cor 3,14. É importante compreender que os
primeiros cristãos, que eram judeus, liam as Escrituras da maneira que se fazia na sinagoga,
como observa o Dicionário Internacional do Novo Testamento (2000, p.696):

Para eles, portanto como para todos os demais judeus, a Bíblia era
“Escritura Sagrada”, o fundamento, a regra e o alvo para a fé e a vida. Nela,
encontravam a Palavra viva de Deus, experimentada mediante a
interpretação como mensagem pessoal, e, originalmente, transmitida nesta
forma pela palavra falada, e preservada intacta através do poderda memória.

Para Bloch (1954), do “ponto de vista histórico, é a partir do exílio e, sobretudo com a
restauração e o período persa, que a Torah ocupa o lugar central na vida de Israel”. A
experiência de sofrimento no exílio produziu em Israel, através da profecia, a esperança de
uma transformação nacional. E motivada por esta convicção é que Israel busca nas Escrituras
a base para a reconstrução de sua identidade enquanto povo, e também sua reorganização
política, social, econômica e religiosa.
O teólogo Ramos nos convida a refletir e compreender os diversos significados do
termo hebraico Torá:

No judaísmo a palavra Torah pode alcançar uma vasta abrangência de


significados como, por exemplo, se referindo apenas aos cinco primeiros
livros da Escritura (Pentateuco); pode também se referir à coleção de livros
sagrados que compõem a Tanach, ou ainda, a tradição escrita mais a
tradição oral, Torot (plural de Torah). (RAMOS,2019, p. 25)

A Torá é concebida também por Israel como “ensinamento” e “prática”, “instrução”,


“direção” e também “lei” conforme Is 2,3; Jr 8,8; Ex 13,9; Pr 1,8; Ez 43,11; Jó 22,22. Ela é
“ensinamento” enquanto revelação de Deus a Moisés no Monte Sinai, conforme Ex 19-20, e
“prática”, porque uma vez revelada, exige execução. Para isso, é necessário reconhecê-la
como uma norma de vida, ou melhor, como um caminho %rd (dêrek) a ser seguido, conforme
Gn 24,42; 2Sm 22,22; Jo 13,15; Sl 18,22; 39,2; 119,5.26.59.168; Pr 5,21; Is 55,8.9; Jr 12,16.
Segundo Bloch, tanto a Torá Oral como a Torá Escrita possuem uma autoridade única:
revelação de Deus a Moisés no Monte Sinai.

94
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

Se a Torah escrita é dada diretamente de Moisés e contém uma revelação


recebida por ele no Sinai, a mesma coisa se afirma da Torah oral: ela foi
recebida por ele no Sinai e transmitida por ele a Josué, aos anciãos e
profetas, etc. Sua autoridade está na sua origem, e sua função é dupla: de
um lado, ela completa, de outro, ela interpreta e aplica a Torah escrita.
(BLOCH, 1954, p. 4)

A Torá Oral sempre precede a Torá Escrita, pois ao mesmo tempo em que a lei (Torá)
foi dada no Sinai, esta deve ter sido acompanhada por uma Tradição Oral.
A partir do momento em que as Escrituras são reconhecidas como norma para a vida
de Israel, ela é incessantemente lida, comentada e atualizada em vista da prática. Por isso, ela
é objeto de pesquisa, estudo e interpretação. É nesse estudo da Torá que situamos o midrash
como um dos métodos típicos, utilizados pelos rabinos para investigação, interpretação e
aplicação da Torá.

O midrash
O termo midrash vem da raiz hebraica vrd (darash) que significa “buscar”, “investigar”,
“estudar”, “examinar”, “explicar”, “interpretar” as Escrituras. É frequente sua ocorrência na
Bíblia, significando “busca”, “investigação”, conforme Dt 13,15; Esd 7,10; Is 55,6; Am 5,4; 6,14;
Sl 34,6 etc. Entretanto, midrash, como substantivo, encontra-se pela primeira vez em 2Cr
13,22 e 24,27. Contudo, o sentido nos dois textos é incerto, pois, segundo Avril e Lenhardt
(2018) o midrash é a “Leitura-busca”.
O midrash, no sentido de busca e procura, é utilizado, quando as Escrituras se referem
à procura ou à busca do Senhor: “Procurai o Senhor enquanto pode ser encontrado; e procurei

o Senhor, e Ele me respondeu” conforme Is 55,6; Am 5,4; 5,6; 14; Sl 34,6. O verbo vrd implica
uma pesquisa intensa e um esforço inerente à vontade de encontrar o procurado. Aplicado às
Escrituras, significa pesquisar o sentido da Palavra de Deus, teológica e praticamente e, em
última análise, procurar o próprio Deus em sua Palavra.
Obviamente, essa busca precisa de um espaço concreto para ser realizada. É no texto
de Ben Sirac, Eclo 51,23 que o midrash aparece como uma atividade realizada na Casa de

Estudo – vrdmh tiyb>. Segundo Pérez e Fernandez (2000) é por isso que encontramos na
literatura rabínica o estudo da Torah e da exegese como uma das principais atividades
desenvolvidas na casa de estudo. Na antiga literatura rabínica, o termo designa tanto o

95
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

resultado do estudo quanto uma obra literária, que resulta do estudo interpretativo de um
texto das Escrituras.
Para Rathaus (1976), é precisamente em vista da compreensão da Torá que o midrash
adquire o sentido preciso de interpretação e exposição do texto bíblico. Esse minucioso
trabalho se deve aos Mestres da Mishná e do Talmud que, durante os quatro ou cinco
primeiros séculos de nossa era, se dedicaram exclusivamente ao estudo e interpretação da
Torá. Na mesma direção de pensamento, afirma Bloch:

É este estudo da Torah, cuja finalidade era compreender o sentido de cada


termo, de penetrar no espírito do texto a fim de tirar a significação
profunda para a aplicação prática, que se designaria pelo nome de midrash
ou, mais exatamente, midrash Torah, que se traduziu livremente por
“estudo da Torah”. (BLOCH, 1954, p. 6)

Dois tipos de Midrash

No judaísmo antigo, o midrash é apreendido como Exegese e Hermenêutica. Para Díez


Macho (1975), “o midrash é Exegese, enquanto busca o sentido da Bíblia, e é Hermenêutica,
enquanto utiliza técnicas e procedimentos determinados”. Partindo do princípio de que a Torá
é “ensinamento e prática”, o trabalho dos intérpretes, ao perscrutar as Escrituras, busca nelas
o ensinamento atualizado para a vida da comunidade,e desenvolveu-se em dois tipos de
midrash:
a) Midrash halakah
O sentido de halakah vem do radical $lh: “andar”, “caminhar”. Daí resulta o sentido
de preceito, lei ou norma de conduta, que implica sempre numa maneira de andar, segundo
os caminhos do Senhor e os preceitos da Torá.

Halakah vem da raiz - halak, “ir, caminhar, andar”. Gênero da interpretação


midráshica que consiste em extrair uma norma legal a partir de uma citação
da Escritura. Encontra-se desenvolvido nas obrasde Sifré de Lv, Sifré de Nm e
Sifréde Dt. (TREBOLLE, 1996, p. 125)

96
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

b) Midrash haggadah
O Haggadah vem do radical dgn: narrar, contar, relatar, e diz respeito a tudo o que, na área
da interpretação, não visa à norma de conduta, mas às crenças, à teologia.
Haggadah (plural Haggadot). Vem do verbo Lehaguid “narrar, contar,
referir”. Gênero da interpretação midráshica realizada sobre narrações
bíblicas. Aparece desenvolvida nas obras de Gênesis Rabbah e Levítico
Rabbah. (TREBOLLE, 1996, p. 696)

Na verdade, de acordo com a índole desses tipos de midrash, a halakah se referia quase
que exclusivamente ao Pentateuco, enquanto que a haggadah se estendia a qualquer livro da
Bíblia hebraica. Com o passar do tempo, torna-se a se chamar midrash (VARQUEZ, 1995, p.47).

O Midrash como exegese da Escritura

Depois da volta do exílio, a partir de Esdras, a Palavra de Deus (Torá Oral e Escrita)
ocupa o lugar central na vida da comunidade. Ela precisa ser lida, interpretada e atualizada.
Toda ação rabínica desse período e dos subsequentes foi a atividade exegética de estudo e
interpretação da Bíblia. Segundo Ketterer e Remaud (1996, p.10), “este trabalho intenso de
pesquisa e estudo do texto bíblico desencadeou-se num processo gradativo de maneira
especial nos dois centros importantes da vida judaica: a Sinagoga e a Casa de Estudo”. Foi em
função do estudo e da aplicação da Torá que os rabinos desenvolveram uma técnica e uma
mística de interpretação, pois de um lado, se defrontam com um texto sagrado inalterável e,
de outro, a necessidade de aplicá-lo às situações novas.
Por meio da palavra PaRDeS,2 os rabinos desenvolveram quatro níveis de leitura ou
interpretação das Escrituras. Cada consoante da palavra – P R D S indica um modo de
interpretação das Escrituras, tais como: Peshat, Rémez, Derash, e Sod, respectivamente.3

1ª P – de Peshat: indica o sentido literal do texto. Consiste em ler o texto no


seu sentido puro e literal.

2
A expressão hebraica – sdrp –PaRDeS significa literalmente horta, pomar ou jardim. Esta tradução
simboliza a riqueza de pensamento e inspiração que poderá surgir dos textos sagrados, se soubermos
como cultivá-los e como colher os frutos mais difíceis de alcançar. (Cf. BUNIM. A Ética do Sinai..., p.
5).
3
Para uma melhor compreensão sobre o PaRDeS, enquanto leitura e interpretação da Escritura,
recomendo a leitura do terceiro capítulo - A Sagrada Escritura: um jardim (PARDES) a ser
conhecido (RAMOS. Por trás das Escrituras – uma introdução à exegese judaica e cristã, p. 43-44)

97
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

2ª R – de Rémez: este nível de instauração segue a estrutura sintática de um


versículo, levando em consideração que as palavras possuem um significado
simbólico ou metafórico. Aqui, o texto é interpretado à luz de outros textos
que abordam o mesmo tema.
3ª D – de Derash: este terceiro nível é considerado o nível da busca em
compreender o texto, independente de sua estrutura sintática. É
reconhecido também como o nível de interpretação. É empregado em dois
sentidos: o restrito e o largo. No sentido restrito, derash significa toda
interpretação de caráter não literal, e o sentido largo, é tido como uma
coleção mais formal, oficial, baseado na busca interpretativa de passagens
bíblicas que exprimem o significado por alusão ou associação dos textos,
sendo traduzido por “sermão” ou “homilia”.
4ª S – de Sod: o nível do Sod consiste em buscar no texto o seu sentido mais
profundo, fazendo a experiência do Senhor e da vida no próprio texto.
(BUNIM, 2001, p. 5)

O midrash, como exegese, parte de alguns princípios e procedimentos fundamentais.


Como apresentamos a seguir:
1º A unidade da Escritura: a interpretação midráshica mostra o caráter unitário da
Escritura (Torá oral e escrita). O ponto de partida desta interpretação é, pois, a unidade da
Palavra de Deus.
É na Mishná Abôt 5,22-25 que

O significado do princípio unitário das Escrituras transparece


resumidamente: volva e resolva [vira e revira] a Torah em todos os
sentidos, pois nela tudo está contido; somente ela conceder-ter-á a
verdadeira ciência. Envelhece neste estudo e nunca o abandones; nada
poderás fazer de melhor” (KETTERER, 1996, p. 10).

2º A unidade entre as diversas partes da Escritura: para “os exegetas midráshicos, não
só estão unidas as três partes da Escritura (Pentateuco, Profetas e Escritos), mas também as
diversas partes dos próprios livros da Bíblia” (ÁGUA PÉREZ, 2000).
3º Escritura explica a Escritura: da unidade que liga toda a Bíblia, seus livros e suas
diversas partes, indica que a Bíblia deve ser explicada por ela mesma. É nela que se encontra
a plenitude de sentidos. Tanto Munõz Leon (1987), como Água Pérez (2000) afirmam que o
ponto de partida que justifica a exegese midráshica é a plenitude de sentidos que o texto
bíblico contém. Munõz Leon (1987) sintetiza esta plenitude de sentidos da seguinte forma:

98
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

“Na Torah não há um antes nem um depois; na Torah, há setenta faces e o que não está na
Torah, não está no mundo. Ou a Torah se explica pela Torah”.
Na verdade, a exegese midráshica procura mostrar que a Escritura possui uma
pluralidade de sentidos e, que eles, só serão compreendidos mediante um esforço e uma
busca exegética realizados no processo de “escavar” o texto, para compreender, atualizar
(midrash) e aplicá-lo às diversas circunstâncias da vida.

O midrash como exegese do Novo Testamento

Nota-se que a leitura exegética rabínica das Escrituras possui suas raízes e fontes no
período do final do século I e início do II de nossa era. Segundo Barrera (1996, p.141) “Era
costume ler a Torah na manhã de sábado, no I século, tanto em Israel (At 15,21) como na
diáspora”. O próprio texto do evangelho segundo São Lucas 4,14-22, ressalta este costume de
ler a Escritura aos sábados nas Sinagogas. Para a Pontifícia Comissão Bíblica (PCB, 2002, p.53)
“Jesus ensina nas sinagogas ao modo da cultura do mundo circundante”. Este procedimento
é muito claro em Lucas 4,14-22, mostrando que Jesus entrou em dia de sábado na Sinagoga,
onde lhe foi entregue o livro da Torá, com a profecia de Isaías (Is 61,1-2). Jesus faz a releitura
do texto e, por meio do midrash, afirma que “hoje essa profecia se cumpriu”. O específico
desta releitura é que ela é feita à luz de Cristo.
O midrash como exegese cristã, segundo Água Pérez (1985) é encontrado na
passagem de Lucas 24 (os “discípulos” de Emaús) sob três aspectos fundamentais:

Destaca por primeiro a palavra “hermenêutica” aplicada claramente à


interpretação midráshica cristã da Escritura hebraica. Em segundo lugar,
confirma a pessoa de Cristo como centro do acontecimento, compreensão
que se verifica com a ajuda do Primeiro Testamento. O terceiro aspecto se
refere à Escritura como um todo; todo o Primeiro Testamento faz referência
e converge, como uma grande corrente, emCristo (ÁGUA PÉREZ,1985, p. 86).

Faz-se necessário salientar que o procedimento midráshico, utilizado pelos sagrados


escritores do Segundo Testamento difere do modo rabínico no seguinte aspecto:

Para o judaísmo, a Torah é a revelação por excelência e a forma de


compreender, isto é, perscrutar o próprio texto e, através do midrash,

99
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

atualizá-lo enquanto que, para o cristão, o foco de sua atenção é o


acontecimento na Pessoa de Jesus de Nazaré” (ÁGUA PÉREZ, 1985, p. 85).

Em Jesus Cristo, temos o cumprimento de toda a Torá. Para Munõz Leon (1987, p.55),
“a característica principal do midrash cristão parte da proclamação deste cumprimento,
buscando a confirmação na Escritura”. A diferença entre o midrash cristão e o midrash judeu
ocorre pelo fato de que, para o Judaísmo, as Escrituras são a Palavra de Deus que lida, relida
e atualizada, constitui o princípio normativo e jurídico que conduz a vida do povo. O midrash
é a própria Escritura revelada que, por meio da cadeia de transmissão, será atualizada de
geração em geração como resposta aos acontecimentos presentes.
Para os cristãos, o que ocupa o centro de sua atenção é o acontecimento Jesus Cristo.
Nele e por ele a Torá obteve o seu cumprimento. Segundo Água Perez (1985) o midrash cristão
é caracterizado como o midrash de cumprimento: “parte do dito frontal de Cristo e recorre ao
Primeiro Testamento para explicá-lo e confirmá-lo. O texto, a Palavra de Deus que explica o
dito é tirado de seu contexto para ser referido ao ministério de Jesus” (ÁGUA PÉREZ, 1985,
p. 84).
A natureza específica do midrash neotestamentário reside no fato de ser um midrash
do Cumprimento Messiânico. Para essa afirmação é que se buscam nas Escrituras (Primeiro
Testamento) a explicação e a confirmação. Contudo, os autores Lenhardt e Collin (1994, p.48,)
afirmam que “Jesus é aquele que transmite a tradição, e é, ao mesmo tempo, essa Tradição”.
Nele a Torá ganha seu cumprimento definitivo. Todavia, o midrash tanto no Judaísmo como
no Cristianismo é sempre uma leitura atualizante do texto no seu contexto.
Para uma melhor compreensão do midrash cristão, o Novo Testamento deve ser lido
e analisado no seu conjunto, que têm como o fundamento: “o cumprimento das Escrituras”.
(Collin; Lenhardt, 1994, pp.89-96) identificam três esquemas distintos de midrash nos escritos

neotestamentários: a) modelo promessa – cumprimento; b) inserção – substituição e c)


oposição – contraposição.

a) Modelo promessa – cumprimento


O modelo promessa – cumprimento trata do recurso midráshico do Primeiro
Testamento (Bíblia Hebraica), frequentemente utilizado e difundido no Segundo Testamento.
Consiste em considerar as Escrituras como anúncio, prefiguração, profecia e/ou promessa da

100
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

pessoa e figura de Cristo. Para tal afirmação é que hagiógrafos neotestamentários recorrem à
tradição, buscando nos textos a iluminação que sirva de anúncio ou prefiguração do
acontecimento escatológico cumprido em Jesus de Nazaré. Trata-se de uma autêntica
releitura do Primeiro Testamento, verificada do ponto de vista da fé em Jesus. Segue alguns
exemplos dos textos do Segundo Testamento nos quais se atribuem a Jesus as tradições
messiânicas do Primeiro Testamento:

 Filho do Homem(Mt 13, 36-43; 24, 30; 25, 31; Mc 8, 38;13, 26-27; Atos 7, 56; Ap 1, 13),
aplicado por Jesus mesmo, tirado da tradição apocalíptica por meio de um
procedimento Pêsher;
 Jesus é proclamado o Messias segundo o messianismo davídico (2 Sm7; Is 6-12; 7, 10-
16; 9, 1-7 ; 11, 1-9; Mq 5, 1-4; Lc 1, 32-33; Mt 21,9);
 Filho de Abraão (Mt 1, 1), bem como, os textos que afirmam a prefiguração de Cristo
na figura do Servo Sofredor do Dêutero-Isaías (Is 42, 1-7; 49, 1-6; 50, 4-9; 52, 13; 53,
12).
 A tradição do Melquisedec, Sumo Sacerdote, é usada como tipologia da carta aos
hebreus para expor o sacerdócio de Cristo (Hb 7; remonta o Targum Neophyth I Gn
14, 18);
 A serpente de bronze elevada por Moisés no deserto, como prefiguração da elevação
de Cristo na Cruz (Nm 21, 4-9; Jn 3, 14-15, 8, 28ss; 12, 32-24; 19, 37).

b) O segundo modelo, inserção – substituição.


Este modelo inserção/substituição parte do conteúdo e de componentes das Escrituras
que constituem a Aliança Antiga, utilizando o método midráshico para definir a Nova Aliança.
Por meio do “espírito da aliança”, a história dos atos salvíficos de Deus recebe sua culminância
na Pessoa do Cristo morto e ressuscitado, reconhecido agora pela comunidade cristã como a
“Nova Aliança”.
A Igreja é apresentada como Povo de Deus, o “Novo Israel”, baseado na transposição
midráshica dos conceitos próprios do antigo Israel: “Povo”, “Reino”, “Aliança” e “Lei” (Torá).
O grupo dos doze, representando a totalidade da comunidade, é transposto das doze tribos
de Israel. A instituição da Aliança com o novo povo de Deus se confirma na última ceia como
o banquete da Nova Aliança, conforme os textos de Lc 22, 20; Mc 14, 24; Mt 26, 28; 1Cor 11,

101
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

25; Ex 24,8ss. A comunidade de Pentecostes forma o Novo Povo, em paralelismo midráshico


com a comunidade do Sinai, de acordo com Atos 2,1-12; Ex 19.
O tema da “Nova Aliança”, reconhecido como o Novo Povo e a “Nova Lei”, se
encontram desenvolvidos midrashicamante pela teologia de João, nos discursos da Hora,
conforme Jo 2,5; 7,30; 8,20; 12,23. 27; 13, 1; 17,1. A carta de Pedro 1Pd 2,9 e o Apocalipse Ap
5,10 mencionam a Igreja, a partir da Tradição do Êxodo, “reino de sacerdotes e nação santa”
Ex 19-24. Finalmente, a Carta aos Hebreus Hb 7-8 dedica uma larga haggadá à Nova Aliança
(conteúdo de Jeremias e Ezequiel) na pessoa de Cristo, o Sumo Sacerdote, por meio de seu
próprio sangue, o Sangue da Nova Aliança.
Já o midrash cristológico se caracteriza por apresentar, de modo geral, a pessoa de
Jesus de Nazaré como Cristo. Contudo, o fato de Jesus de Nazaré ser apresentado como Cristo
(cristoj) constitui um aspecto importante do midrash cristológico. Foi precisamente para
interpretar a pessoa de Jesus de Nazaré, como Cristo encarnado, que os cristãos recorreram
às Escrituras, buscando os atributos, nomes e ações aplicados ao Deus de Israel. Esses
atributos, transportados ao Segundo Testamento, afirmam e confirmam a divindade de Jesus
por meio do título de “Senhor”.

Senhor, do grego kurioj. No Antigo Testamento se invocava a Yahveh com o


título de `Adonî (meu Senhor) que adota habitualmente a forma de `Adona
(y) (plural de intensidade) pronunciado por Abraão em Gn 15,2-8.
Convertendo-se no próprio nome de Deus. Com respeito à pronúncia ao
tetragrama (YHVH se lê substituindo por). `Adonai que vem ser seu qeré
perpétuo. Esta é a razão em que os LXX, numa primeira interpretação
derásica-midráshica, traduzem YHVH por  atribuindo a Jesus um
título de soberania divina. (ÁGUA PÉREZ,1985, p. 236)

Esse recurso midráshico de atualização por substituição possibilitou à comunidade


primitiva a confissão de sua fé em ‘Adonai – Yahveh para Cristo–Senhor. Outra transferência
midráshica do nome de Deus, encontramos na Teologia do Quarto Evangelho com a expressão
“Eu Sou”.

Do grego egweimi– Jo 8,24.28.58. A expressão grega procede da


tradição hebraica `anihû. (Is 48, 12: “Eu sou, eu sou o primeiro e sou
também o último” e Is 43,10: ...., “para que conheçais e creiais em
mim, e entendais que eu sou”. Assim também: “Yousoy, yousoy o que

102
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

mostra vossas iniquilidades” (Is 51,12; 42,6; e “YosoyYahveh


(`aniYahveh – LXX egweimi) (ÁGUA PÉREZ,1985, p. 237).

Para Dodd (1977), o sentido de ego eimi- Eu sou nos faz perceber que Deus deu seu
próprio nome a Cristo. Recorda, também, que o nome no Primeiro Testamento está associado
à glória eterna de Deus. Portanto, a glória eterna de Deus, na teologia do Quarto Evangelho,
é atribuída a Cristo.
Na perspectiva dessa abordagem há, ainda, os outros elementos midráshicos,
implícitos como explícitos, atribuídos a Jesus por toda a literatura neotestamentária. Para
comprovar, encontramos no Evangelho segundo João as seguintes perícopes:

1. “Eu sou o bom Pastor” (Jo 10,11-18) midrashEz 34,1-16; Jr 23,1-4.

2. “Eu sou o pão da vida... Eu sou o pão descido do céu” (Jo 6,30-51) midrash Êxodo 16
o “Dom do Maná” reflete a prefiguração da Eucaristia e do mesmo Cristo como o pão
descido do céu. A interpretação e a atualização do texto consistem em mostrar Jesus
como o “Novo Êxodo”. Neste sentido, o Êxodo é uma etapa da história da salvação que
culmina no Evangelho.

3. “Eu sou a videira verdadeira” (Jo 15,1-8) o texto reflete midrashicamente a perícope
de Isaías 5,1-6, que mostra a designação de Judá e Israel como a “Vinha do Senhor”.

4. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 6,4) é interpretado sob a luz de toda a
Torá, as categorias: Caminho, Verdade e Vida são assumidas pela comunidade de Israel
como verdadeira realidade que conduz ao Senhor. A Torá é concebida por Israel como
Caminho da Verdade, que orienta a vida para o Senhor. É nessa perspectiva que João
afirma ser Jesus a Torá, Palavra encarnada e revelada plenamente para aqueles que
queiram andar nos caminhos da verdade e da vida.

c) O terceiro modelo oposição/contraposição


Este modelo se fundamenta na radicalização das exigências evangélicas em sua
interpretação das prescrições da Torá, as quais são retomadas por hagiógrafos
neotestamentários como contraposição ou oposição frente às realidades da Nova Aliança
prefiguradas em Cristo. São consideradas modelo oposição/contraposição “aquelas
formulações que proclamam o cumprimento como marca de contraposição entre a realidade

103
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

cumprida em Cristo e a realidade citada do Primeiro Testamento. Esta contraposição é


considerada também como aquela que realça o caráter da novidade do Evangelho” (MUÑOS
LEÓN, 1987, p. 240). O procedimento midráshico desse modelo, para expressar o
cumprimento, é abordado por meio de antíteses. Seguem alguns exemplos das principais
formulações de contraposição que encontramos no Segundo Testamento:

1. Não é o Maná, mas sim Cristo (Jo 6,27.32-33.38);


2. Não é aos descendentes – em plural – mas à tua descendência – em singular (Gl 3,19);
3. Não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do coração (2 Cor 3,3);
4. Não obras, masa fé (Rm 3-4; Gl 2-3)
5. Não é o Monte Sinai, mas sim, A Jerusalém Celeste (Hb 12, 18-24).

Nessas fórmulas e em muitas outras que poderíamos examinar, percebemos que a


contraposição/oposição aparece numa realidade ou situação prevista no Primeiro
Testamento, indicando sua incompatibilidade com a nova realização na situação cristã. Sem
dúvida, o princípio que postula o recurso ao Primeiro Testamento emprega os três modelos
ou esquemas do midrash cristão. Contudo, os três são aspectos de uma mesma e única
realidade, pois afirmam que a Tradição Veterotestamentária converge para Cristo, em função
do qual devem ser estudadas e investigadas as Escrituras. Para Água Pérez,

a sistematização a que se referem os três modelos propostos, não significa


que se trate de estabelecer categorias puras. Pois nas composições ou
unidades midráshicas, o recurso ao Antigo Testamento se verifica em
ocasião segundo vários modelos”(ÁGUA PÉREZ,1985, p. 95).

O Midrash no Evangelho segundo João

O midrash neotestamentário parte do princípio de que Jesus é a chave interpretativa


das Escrituras. Nele está o cumprimento da profecia revelada. Para esta afirmação é que os
hagiógrafos recorrem às Escrituras, utilizando-se dos mesmos procedimentos e técnicas de
hermenêutica judaica.

104
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

O processo de transmissão e adaptação das palavras de Jesus às novas circunstâncias


da comunidade cristã, assim como as fases da redação dos diversos livros do Segundo
Testamento tiveram, como Sitz in Leben, os mesmos processos das instituições religiosas e
socioculturais do Judaísmo do qual precediam: a sinagoga (bet-sêfer) e a casa de estudo
(bethá-midrash). Foi, com base nesse procedimento de continuidade e cumprimento, que
cada evangelista desenvolveu a sua teologia. No caso de João, podemos falar de uma teologia
desenvolvida, a partir de uma escola targúmica-midráshica.
Para Água Pérez (1985), o ambiente do estudo e a formação da literatura
neotestamentário têm como princípio o substrato judaico do qual procede à literatura cristã.
A configuração desta literatura se deu por um meio criativo de índole escolar. A criatividade
com que a comunidade primitiva desenvolveu seu trabalho exegético há de ser buscado no
marco escolar, onde o “escriba cristão” realizou seu trabalho de recopilação, criação e
sistematização dos seus materiais, através do meio criativo já existente: o das escolas
rabínicas.
Sabe-se que no início da era cristã havia no judaísmo duas escolas nas quais se
estudava a Torá: a primeira, bet há-sêfer, tinha como preocupação maior a instrução
elementar, baseada na Torá escrita (miqrá); a segunda escola, bet há-midrash, tinha por
princípio o ensino da Torá Oral e Escrita.
Determinar quando começaram a existir estas escolas não é tarefa fácil. Para Água
Pérez (1985), a bet há-sêfern parece ter começado como uma instituição privada,
provavelmente com o intuito de instruir os filhos de Israel no ensinamento da Torá, conforme
Dt 6,7s;11,19. Com a bet há midrash se encerra um conjunto de escolas que vai, desde as
elementares, até as academias existentes na Palestina e Babilônia. Essas escolas eram tanto
de nível superior como elementar. Basta recordar as famosas escolas atribuídas a Hillel e
Shammay: a bet Hillel e a bet Shammay.
É sabido, pela ampla literatura dedicada ao evangelho de João, que o evangelista
manifesta um profundo conhecimento, tanto da Tradição bíblica como extra bíblica. A este
respeito a escola joanina parece oferecer a grande síntese da tradição neotestamentária.
Segundo Água Pérez (1985) “o contexto intelectual da escola parece ser a de uma grande
multiplicidade: judaico, helênico, gnóstico”
Para Água Pérez (1985) “a proposta da existência de uma escola midráshica por trás
do quarto evangelho foi apresentada pela primeira vez por W. Heitmuller, em 1914, com a

105
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

intenção de determinar o autor do evangelho. Todavia não é possível estudar as


características desse grupo a partir da crítica direta. Há que considerar o contexto interno da
literatura joanina para perceber o meio intelectual criativo da mesma. A razão de qualificar
esta escola como targúmica-midráshica, afirma Água Pérez:

Deve-se às abundantes influências mostradas pela tradição targúmica, como,


por exemplo: o prólogo (Jo 1,1-18) que apresenta o conceito teológico de
Memrá em sua função reveladora, assim como as sucessivas aplicações do
conceito teológico targúmico ‘Iqar Sehiná’ (Glória da presença) através de
expressões unidas a “permanecer”, “habitar”; bem como a referência ao
targum palestinense Gênesis 3,15, em Apocalipse 12,17, o contexto da
mulher e a serpente...; também a aplicação feita a Jesus da visão de Jacó
em Gênesis 28,10- 17 com uma alusão a Gênesis 28,12, em João 1,15. (ÁGUA
PÉREZ,1985,p. 286)

Este transfigurado cultural judaico, bem como a atividade literária desta escola são
percebidos particularmente na transposição cristã das grandes tradições de Israel por meio
dos discursos que constituem uma narrativa. Na mesma linha de pensamento o biblista
Konings vai afirmar:

Que o autor do quarto evangelho pensa em termos da tradição judaico-


bíblico; pois, em cada imagem, de cada expressão mais acentuada, está a
tradição bíblica, ora aplicada conforme o texto hebraico, ora conforme o
texto grego, ora conforme o comentário aramaico (o Targum). Dada à
influência destas raízes judaicas que é possível afirmar obra joanina como
uma obra midráshica. Assim sendo diz ele, “o Evangelho de João pode ser
considerado o mais judaico de todos”. (KONINGS, 2000, pp. 23-48)

Percebe-se, na cristologia do quarto evangelho, todo este substrato da tradição: a


forma semítica “Messias” usada para apresentar Jesus e o seu caráter revelador conforme Jo
1,41; a designação de Cristo como “cordeiro de Deus” Jo 6,35.48.51, a combinação das
tradições do cordeiro pascal e o “Servo de Yahweh”; “o Filho do Homem” da tradição
apocalíptica; os discursos em torno das fórmulas de identificação: “Eu sou o pão da vida” Jo
6,35.48.51; “Eu sou a luz do mundo” Jo 8,12; 9,5; “Eu sou bom pastor” Jo 10,11.14; “Eu sou a
ressurreição e a vida” Jo 11,25; “Eu sou a videira verdadeira” Jo 15,1.5, e a própria designação
do nome do Deus de Israel aplicado a Jesus sob a formula de “Eu Sou” Jo 8,24.27.57; 13,19.

106
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

Indubitavelmente, a tradição do Êxodo: os milagres teologizados como sinais através


do midrash de Sb 10ss em torno das pragas; a tradição da serpente de bronze (cf. Nm 21,4-9)
como tipo da exaltação de Cristo na cruz; o maná como prefiguração da Eucaristia (cf. Jo 6). A
aplicação da profecia da Nova Aliança em Jeremias (cf. Jr 31,31-34 em Jo 13,13-17), como
também a transposição das festas principais do calendário judeu: Páscoa, Tabernáculos,
Pentecostes, segundo Água Pérez (1985) são todos exemplos de releituras.
De fato, o Evangelho de João está baseado em toda a Torá, não só no Pentateuco, mas
nos Profetas (Nebim) e Escritos (Ketubim). Esta é a garantia de poder afirmar ser João um
evangelho tipicamente midráshico.
Portanto, a literatura neotestamentária e, em nosso caso, o Evangelho segundo João,
procuram apresentar, por meio da tipologia cristológica, soteriológica e eclesiológica, a
pessoa de Jesus Cristo como “aquele sobre quem escreveram Moisés, na Torá, e os Profetas”
1,45, como um israelita 1,47; como um judeu 4,9; como Rei de Israel 1,47; como o Senhor
4,11.15.19; Profeta 4,19; Messias chamado Cristo 4,25. 29; Homem 4,29; Rabi, o mestre vindo
de Deus 3,1; 4,31; Salvador do mundo 4, 42 e como Rei dos judeus 19,19-22).

Considerações finais

O caminho percorrido, por meio do midrash, nos fez perceber que o método
midráshico é todo um conjunto de passos que proporciona ao exegeta o meio para que possa
entender, com maior clareza, o modo e a forma com que os hagiógrafos neotestamentários
leram, interpretaram e compreenderam as Escrituras.
Notamos que o midrash, enquanto método exegético caracteriza-se por duas palavras-
chave: “atualizar” e “cumprir”. Foi a partir destas palavras que os hagiógrafos
neotestamentários sistematizaram o seu kerygma, a proclamação de sua fé.
O midrash, enquanto método exegético teve grande importância na formação e
transmissão das Escrituras: primeiro no interior do Judaísmo que através da leitura midráshica
desenvolveu toda uma técnica de interpretação, atualização e aplicação da Torá na vida
cotidiana; segundo, no Cristianismo que, por meio de seus leitores no contato com a Literatura
Rabínica, procuraram apresentar a pessoa de Jesus Cristo morto e ressuscitado como o

107
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

midrash por excelência. Ele é o princípio hermenêutico para a compreensão de toda a


Escritura.
Ao estudarmos o método midráshico no Novo Testamento, percebemos a relação de
dependência e complementaridade existente entre os dois Testamentos. O estudo levou-nos
a compreender o quanto os hagiógrafos neotestámentarios se utilizaram dos elementos
midráshicos para a sistematização de suas teologias.
Percebemos que a leitura dos textos neotestamentários se torna difícil sem esta base
teológica midráshica. Reconhecemos também que um método não diminui o outro, pelo
contrário, ambos se complementam, e que a aplicação da leitura ou do método midráshico
abre um grande leque aos pesquisadores (as) da literatura neotestamentária, semelhante aos
demais métodos.
Este estudo sobre o método midráshico no Novo Testamento é importante no ponto
de vista social, na medida em que ela ajuda a relação entre judeus e cristãos em uma
determinada sociedade, onde possam conviver como irmãos. E, no ponto de vista religioso,
contribui num diálogo inter-religioso em que as duas religiões possam se respeitar nas
diversidades e exaltando a unidade em torno do mesmo patrimônio histórico que são as
Sagradas Escrituras. Pode-se ainda dizer que este estudo contribui muito para os estudos
teológico-bíblico, como vai afirmar o documento da Pontifícia Comissão Bíblica, cujo título é
“A Interpretação da Bíblia na Igreja”. Esta afirma ser
uma riqueza à erudição judaica colocada a serviço da Bíblia, desde suas origens na
antiguidade até nossos dias, é uma ajuda muito valiosa para o exegeta do dois
Testamentos, com a condição, no entanto, de empregá-la com conhecimento de
causa. (PCB 2002, p.206)

108
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

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109
O MÉTODO MIDRÁSHICO NO NOVO TESTAMENTO CADERNOS DE SION

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TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã: introdução à história da


Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1996.

110
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA INSTITUIÇÃO DA
EUCARISTIA

Robin Dominicio Januário


Bacharel em Química pela Universidade do Grande ABC (UniABC). Mestre em Ciência e
Tecnologia pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

RESUMO
O propósito deste artigo é estabelecer uma comparação entre a perícope da epístola paulina: 1Cor
11,23-25 e as perícopes dos evangelhos sinóticos: Mc 14,22-25; Mt 26,26-29 e Lc 22,19- 20, sobre a
narrativa da instituição da eucaristia. Aplicou-se, de maneira introdutória, metodologias do campo da
exegese bíblica: disposição dos textos em sinopse, delimitação do texto bíblico e a análise de
quiasmo. A percepção deste estudo é que, apesar de mantida a tradição, cada autor sagrado tem
uma intencionalidade teológica diferente: Na epístola de Paulo, a prática da caridade é o núcleo da
mensagem. Nos Evangelhos sinóticos, a comunidade de Marcos e Mateus revela a mesma a
comunicação central: a vida de Jesus é a grande Ação de Graças, contudo Mateus considera novas
perspectivas em relação a Marcos. A fonte do evangelho Lucas é historicamente tardia, por isso
recebe grandes contribuições de: Marcos, Mateus, Fonte Q e tradição teológica própria. Por isso,
Lucas tem maiores condições de perceber e reconhecer que a Eucaristia é o memorial do sacrifício de
Cristo.
Palavras-chave: Exegese; Eucaristia; Exegese; Sinóticos; Literatura Paulina.

ABSTRACT
The purpose of this study is to establish a comparison between the pericope of the Pauline epistle: 1
Cor 11,23-25 and the pericopes of the synoptic gospels: Mc 14, 22-25; Mt 26,26-29 and Lc 22,19-20,
on the narrative of the institution of the Eucharist. Methodologies in the field of biblical exegesis were
applied in an introductory manner: provision of texts in synopsis, delimitation of the biblical text and
the analysis of chiasmus. The perception of this study is that, despite the tradition being maintained,
each sacred author has a different theological intent: In Paul's epistle, the practice of charity is the core
of the message. In the synoptic Gospels, the community of Mark and Matthew reveals the same central
communication: the life of Jesus is the great Thanksgiving; however Matthew considers new
perspectives in relation to Mark. The source of the Gospel Luke is historically late, so it receives great
contributions from: Mark, Matthew, source of information Q and its own theological tradition.
Therefore, Luke is better able to perceive and recognize that the Eucharist is the memorial of Christ's
sacrifice.
Keywords: Exegesis; Eucharist; Synoptics; Pauline Literature.

Considerações iniciais

A ciência teológica hodierna produz diferentes métodos e procedimentos de análise


de textos bíblicos, utilizando ora a crítica textual, a literária, a histórico-crítica, a arqueológica,
entre outros; além disso, infere, com certo grau de confiabilidade, a cronologia dos escritos

111
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

do Segundo Testamento. Por meio desses diferentes procedimentos, sabe-se, atualmente,


que a tradição paulina, epístolas e tradição oral, seja de autoria de Paulo ou pseudepígrafos,
escritos das comunidades atribuídos ao apóstolo, constituem as mais antigas fontes do
cristianismo primitivo. O propósito da carta destinada à comunidade de Corinto era a
conservação da tradição oral e ensinamentos recebidos pelos discípulos de Jesus
(MORESCHINI; NORELLI, 2005).
Tem-se a referência de que as fontes da literatura paulina, juntamente com as fontes
de tradição oral, possivelmente a onte Q (Logia), a vivência das comunidades pelo querigma,
a pregação das testemunhas oculares e de gerações posteriores aos apóstolos, são anteriores
aos escritos dos evangelhos (MORESCHINI; NORELLI, 2005). Sabe-se dessa informação, pelas
datas apresentadas pelos especialistas em Sagradas Escrituras, citadas na literatura teológica,
especialmente a partir dos recursos disponíveis na atualidade. Assim, a literatura evangélica
absorve diretamente dessas complexidades de fontes de transmissão escrita e oral, sobretudo
das cartas de Paulo, para compor os escritos de literatura própria.

A palavra Evangelho deriva do grego, que quer dizer: Boa Nova ou Boa
Notícia. Em sua origem, o vocábulo indica a declaração de vitórias de caráter
militar e os grandes feitos do Império. Sua significação religiosa intervém no
contexto do culto ao imperador. Paulo herda este termo de um uso forjado
pela tradição cristã helenista. A utilização dessa palavra em Paulo designa a
proclamação da Boa-Nova da salvação em Jesus Cristo (MARGUERAT, 2015,
p. 36).

Nos primórdios do cristianismo, o termo evangelho é o anúncio do querigma (tradição


oral). Somente anos mais tarde, é que o vocábulo abarcará também a tradição escrita.
Os três primeiros evangelhos escritos (Marcos, Mateus e Lucas), são
chamados de “sinóticos”, porque sua grande semelhança permite analisá-
los em conjunto. Dá-se o nome de sinopse, a forma e o modo que, dispondo
os três textos em colunas paralelas permitem a visão simultânea e
comparações de suas estruturas (MARGUERAT, 2015, p.15).

O objetivo deste estudo é estabelecer uma comparação entre os três relatos da


Instituição da Eucaristia, em Mc 14,22-25, Mt 26,26-29 e Lc 22,19-20, à luz do testemunho
paulino em 1Cor 11,23-25:
“23
Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em
que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão 24e, depois de dar graças,
partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei

112
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA
isto em memória de mim’. 25 Do mesmo modo, após a ceia, também tomou
o cálice, dizendo: ‘Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as
vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim”.1

Naturalmente, as comunidades cristãs primitivas acolheram esta mensagem, somando


ao emaranhado complexo de tradições. E, ao recebê-la, amplia suas perspectivas,
compreensões e concepções teológicas, conforme a situação histórica e problemática
vivenciada na comunidade.

METODOLOGIA
Para melhor compreensão dos conteúdos e mensagens contidos nas perícopes,
aplicou-se uma metodologia de análise de conjunto e isolada dos textos. Na análise de
conjunto, foi empregado respectivamente os seguintes procedimentos: Disposição dos textos
em colunas (DATTLER, 1986); comparação de repetições de palavras, análise de mudança nas
conjugações e tempos verbais nas orações, vocabulário próprio contido em cada texto.
Verificado o número de ocorrências, extraíram-se as palavras-chave contidas nos quatro
textos e pesquisou-se seus diversos significados no Primeiro Testamento.
Na análise individual das perícopes, foram utilizadas, de maneira introdutória,
ferramentas aplicadas no campo da exegese bíblica: delimitação do texto bíblico e a análise
estilística de quiasmo.
Finalmente com a obtenção das informações extraídas pelas duas análises e seus
respectivos tópicos, foi proposta, para cada uma das perícopes, uma reflexão teológica acerca
dos textos estudados, tendo como eixo principal de raciocínio a mensagem encontrada na
análise de quiasmo.

DISPOSIÇÃO EM SINOPSE (VISÃO DE CONJUNTO)


1Cor 11,23-25 Mt 26,26-29 Mc 14,22-25 Lc 22,19-20
23 26 22 19
Com efeito, eu Enquanto comiam, Enquanto comiam, E tomou um
mesmo recebi do Jesus tomou um pão e, ele tomou um pão, pão, deu graças,
Senhor o que vos tendo-o abençoado, abençoou, partindo-o partiu e distribuiu-
transmiti: na noite em partiu-o e, e distribuiu-lhes, o a eles, dizendo:
que foi entregue, o distribuindo-o aos dizendo: “Tomai, isto “Isto é meu corpo

1
Todas as citações bíblicas contidas neste estudo são retiradas da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

113
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Senhor Jesus tomou o discípulos, disse: é o meu corpo”. que é dado por
pão 24e, depois de dar "Tomai e comei, isto é 23
Depois, tomou um vós. Fazei isto em
graças, partiu-o e o meu corpo". cálice e, dando graças, minha memória”.
27 20
disse: "Isto é o meu Depois, tomou um deu-lhes e todos dele E, depois de
corpo, que é para vós; cálice e, dando graças, beberam. 24E disse- comer, fez o
fazei isto em memória deu-lhes dizendo: lhes: “Isto é o meu mesmo com o
de mim". 25Do mesmo "Bebei dele todos, sangue, o sangue da cálice, dizendo:
28
modo, após a ceia, pois isto é o meu Aliança, que é “Este cálice é a
também tomou o sangue, o sangue da derramado em favor nova Aliança em
cálice, dizendo: "Este Aliança, que é de muitos.25Em meu sangue, que
cálice é a nova Aliança derramado por muitos verdade vos digo, já é derramado em
em meu sangue; todas para remissão dos não beberei do fruto favor de vós”.
as vezes que dele pecados. 29Eu vos digo: da videira até aquele
beberdes, fazei-o em desde agora não dia em que beberei o
memória de mim". beberei deste fruto da vinho novo do Reino
videira até aquele dia de Deus”.
em que convosco
beberei o vinho novo
no Reino do meu Pai".

Análise comparativa e verificação de vocabulário próprio


O objetivo da utilização dessa metodologia é a comparação das palavras comuns nos
textos, examinando as semelhanças e diferenças. Essas comparações podem iluminar as
questões de manutenção da tradição recebida, bem como acréscimos de novos elementos e
significados.
Comparativo entre os Textos- Palavras Literais
1Cor/ Mc/Mt/Lc Mc/Mt Mc/Lc Mt/Lc 1Cor/Lc
Em de dar graças/deu
Tomou um pão Enquanto comiam -
favor graças

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ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Isto é o meu corpo,


Isto é meu corpo Tomai - - que é para vós/ que é
dado por vós

fazei isto em memória


Depois, tomou um cálice e,
Aliança - - de mim/ Fazei isto em
dando graças, deu-lhes.
minha memória

tomou o cálice,
sangue, que é Isto é o meu sangue, o dizendo: "Este cálice é
- -
derramado sangue a nova Aliança em
meu sangue;
Cálice Não beberei - - -
Fruto da videira até aquele
Dando graças - - -
dia em que
- Beberei o vinho novo - - -
- Reino - - -
Tabela 1: Palavras literais encontradas no texto.

Vocabulário próprio de cada perícope


1Cor Mc Mt Lc
Com efeito, eu mesmo recebi do
Senhor o que vos transmiti: na Remissão dos
Reino de Deus que é dado por vós
noite em que foi entregue, o pecados
Senhor
que é derramado em
após a ceia, - Desde agora
favor de vós.
todas as vezes que dele
beberdes, fazei-o em memória - Convosco E, depois de comer
de mim".
no Reino do
- - -
meu Pai

115
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Tabela 2: Palavras únicas de cada perícope.


Constatou-se neste estudo que, em muitas orações, ocorrem mudanças nas
conjugações e/ou tempos verbais. Tem-se a ciência de que todas as palavras, modos de
escritas e expressões na Sagrada Escritura são consideradas importantes e até vitais para a
compreensão do texto; contudo, por ser um estudo introdutório, optou-se por considerar de
igual signo as orações que sofrem tais mudanças. Um pequeno exemplo analisado é descrito:
 1 Cor 11,24: Partiu-o e disse.
 Mc 14,22: Partindo-o e distribuiu-lhes, dizendo.
 Mt 26,26: Partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse.
 Lc 22,19: Partiu e distribuiu-o a eles, dizendo.
Posteriormente, este estudo poderá ser enriquecido com outras ferramentas de
análise exegética, por exemplo: análise literária, semântica, gramatical, crítica textual e outras
metodologias, aprofundando e examinando melhor o texto bíblico.

Análise dos textos individuais


Para melhor compreensão de cada perícope, optou-se pela utilização de técnicas
analíticas empregados no campo da exegese bíblica: análise de quiasmo e delimitações do
texto bíblico, de acordo com os procedimentos descritos segundo a literatura teológica (SILVA,
2009). Neste sentido, é possível analisar o texto com maior critério de expressividade e
vivacidade. No quiasmo, basicamente o texto é submetido ao seguinte procedimento: “a
organização em dois blocos consecutivos, de modo que apareçam os mesmos signos ou
elementos do primeiro bloco em ordem inversa” (SILVA, 2009. p. 67-163). Utilizou-se destes
recursos, e, apesar de os elementos não repetirem os mesmos signos, foi identificada
existência de concordâncias e coesão nos sentidos das orações.

Análise da perícope 1Cor 11,23-25


A primeira carta aos Coríntios foi escrita provavelmente nos anos em próximos de 55
d.C. (MORESCHINI; NORELLI, 2005). “A carta tem por objetivo responder e instruir os membros
da comunidade, frente aos problemas internos de ordem moral, comportamental, litúrgica e
de maturidade de fé” (DOUGLAS, 2006, p. 263).
(a) 23a- Com efeito,
(b) 23b- eu mesmo recebi do Senhor

116
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

(c) 23c- o que vos transmiti:


(d) 23d- na noite em que foi entregue,

(e)23e- o Senhor Jesus tomou o pão


(f)24a- e, depois de dar graças,
(g)24b- partiu-o
(h)24c- e disse:
24d- "Isto é o meu corpo,
(h’)24e- que é para vós;
(g’)24f- fazei isto em memória de mim".
(f’’)25a- Do mesmo modo, após a ceia,
(e’)25b- também tomou o cálice,
(d’)25c- dizendo:
(c’)25d- "Este cálice é a nova Aliança em meu sangue;
(b’)25e- todas as vezes que dele beberdes,
(a’)25f -fazei-o em memória de mim".
Ao aplicar o procedimento de delimitação do texto bíblico e a estrutura de quiasmo
(SILVA, 2009), encontrou-se a centralidade da mensagem em 1Cor 11,23-25: Isto é o meu
Corpo. Esta mensagem ajuda na compreensão geral do texto.

“O corpo (também expressado como “carne”) é colocado em paralelo com a


vida, sendo concebido como o próprio “eu”. É a existência concreta. No
pensamento bíblico, o corpo não é distinto da alma ou do espírito. O
homem é corpo, realidade concreta (DOUGLAS, 2006, p.269-270).”

Ao verificar-se as motivações da escrita da carta pela ciência bíblica e aplicar os estudos


propostos, pode-se concluir que a instrução na perícope de 1Cor 11,23-25 é de advertência e
retomada na unidade da comunidade, visto que estava em processo de divisão. É perceptível
nos comentários bíblicos que cada um queria viver de acordo com sua maneira, seu jeito, não
pensando uns nos outros, mas no bem-estar individual (MARGUERAT, 2015). Há uma clara
crise de valores na comunidade de Corinto: deturpação da vivência da comunhão e da
caridade.
É certo que Paulo, percebeu que as ações que Jesus realizou antes de sua ressureição
(conhecida por Paulo através da tradição apostólica e experiência com a comunidade cristã

117
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

primitiva), continuam presentes no meio da comunidade após a ressureição de Jesus, (visto


que Paulo experimentou o Messias ressurreto); é o mesmo Jesus que se manifesta e age na
comunidade. Alguns elementos descritos na própria perícope corroboram com essa análise;
os termos: aliança, ceia, corpo, pão, sangue e memória possuem sentidos profundos na
tradição judaica.
Paulo, sendo fiel à tradição que recebeu, quer mostrar que a ceia derradeira de Jesus
não está em ruptura com o judaísmo, mas lhe dá seu pleno cumprimento. A instrução de Paulo
para a comunidade é que comendo a ceia do Senhor, a comunidade está ligada a Jesus, em
comunhão (Koinonia) com Ele. Não se deve desvincular ceia e vida. No ensinamento de Paulo,
quando a comunidade celebra a ceia, tornam-se presentes as ações, ensinamentos, caridade,
partilha, participação, enfim todo o projeto de Jesus e sua pessoa integralmente.

”A consequência das cisões que dividem a ceia do Senhor é que os


membros da Igreja não esperam uns pelos outros para comer (11,33) e cada
um come e bebe o que trouxe (11,22a), de sorte que uns se regalam
enquanto outros ficam com fome (11,22b). Trata-se de simples clivagem
social ou o desprezo da comensalidade provém de uma compreensão
sacramentalista da ceia? Paulo vê aí um problema teológico fundamental:
enquanto os membros desprezarem o Corpo de Cristo constituído por eles
(11,29) não haverá como tomar a ceia do Senhor (11,20) (MARGUERAT,
2015, p. 246).”

A mensagem teológica, portanto, em 1Cor 11,23-25, nos primeiros anos do


cristianismo, é a vivência da caridade (amor/ágape) e a comunhão da comunidade de acordo
com o projeto de Cristo. Ele se faz presente na ceia plenamente.

Análise da perícope Mc 14, 22-25


Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito, por volta do ano 70 d.C. em clima de
tensões e conflitos anteriores à destruição do templo de Jerusalém (MARGUERAT, 2015). A
comunidade certamente conservou a tradição oral, paulina e outras em seu meio. A perícope
Mc 14,22-25 estudada, também foi submetida ao procedimento anterior:
(a)22a- Enquanto comiam,
(b)22b- ele tomou um pão,
(c)22c- abençoou,
(d) 22d- partindo-o,

118
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

(e) 22e- e distribui-lhes,


(f)22f- dizendo:
(g) 22g- “Tomai,
(h) 22h- isto é o meu corpo”.

(i)23a- Depois, tomou um cálice


23b- e, dando graças, deu-lhes,
(i’)23c- e todos dele beberam.
(h’)24a- E disse-lhes:
(g’)24b- “Isto é o meu sangue,
(f’)24c- o sangue da Aliança,
(e’)24d- que é derramado
(d’)24e- em favor de muitos.
(c’)25a- Em verdade vos digo,
(b’)25b- já não beberei do fruto da videira até aquele dia
(a’)25c- em que beberei o vinho novo do Reino de Deus”.

O centro da perícope é: e, dando graças, deu-lhes. “Este termo, no Primeiro


Testamento, é ligado frequentemente com rituais de sacrifício e agradecimento” (MCKENZIE,
1984, p. 314). O termo terá muitas variações semânticas ao longo da história bíblica, para
indicar a presença e participação de Deus com o povo. O povo realiza a prática de sacrifícios.
Nas culturas antigas, os rituais de sacrifícios, são um modo de realizar a comunhão entre a
divindade e o povo. Dar graças na cultura judaica é aproximar-se de Deus (MCKENZIE, 1984).

“O termo Ação de Graças/ Dar Graças, em grego é “Eucaristia”. Usado pela


primeira vez na Didaché (Fim do século I), sendo também usado por Inácio
de Antioquia e Justino. (MCKENZIE, 1984, p. 314).”

A centralidade dessa mensagem em Marcos pode nos comunicar que Deus aceitou, de
bom grado, a oferta de Jesus e por sua Ação de Graças, estamos em comunhão com Deus.
Marcos, sendo o primeiro escritor evangélico, também tem a preocupação de anunciar a
urgente conversão dos crentes, pois em sua concepção teológica, a segunda vinda de Jesus
(parusia) estaria muito próxima; por isso, o evangelista não se prende em debates. A palavra
sangue é empregada três vezes: duas no sentido de aliança de sangue e uma no sentido de

119
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

martírio. O evangelho de Marcos foi escrito para justificar e dar uma resposta à comunidade
pela morte do apóstolo Pedro (MARGUERAT, 2015).
Se Pedro, que esteve bem próximo de Jesus, teve um fim trágico, quanto mais os
crentes que ainda estavam no início do caminho. Como seria também o fim deles? Valeria a
pena seguir Jesus? O contexto histórico é que a comunidade estava passando momentos de
perseguições. O objetivo de Marcos é mostrar que Pedro percorreu o caminho, seguiu Jesus
até as últimas consequências. O evangelho também tem o intuito de mostrar quem é Jesus, e
que vale a pena o seu seguimento (MARGUERAT, 2015). Não seria então equivocado dizer que
Marcos escreve para exortar à comunidade que permaneça firme nas promessas de Deus, pois
a aliança com Jesus foi feita e o Reino de Deus está próximo. Deus não volta atrás nas suas
promessas.
Em Mc 14,25 é dito: “Em verdade vos digo, já não beberei do fruto da videira até aquele
dia em que beberei o vinho novo do Reino de Deus”, as palavras: aquele dia/Vinho Novo/Reino
de Deus, é possível que tenha denotações imediatistas. Esta conclusão pode ser respaldada
pelo fato de este evangelho ser anterior à destruição do Templo de Jerusalém, considerado a
morada de Deus. Certamente, os conflitos, tensões, perseguições, formas da escrita e
concepções de movimento apocalíptico na época sinalizaram a urgência da conversão.
O Centro da mensagem teológica na perícope de Mc 14,22-25 é dar graças (Eucaristia).
O evangelista quer transmitir perseverança e firmeza na fé, mesmo diante das perseguições e
dificuldades das comunidades em seu contexto histórico, pois em Jesus, Deus mostrou que
cumpre e cumprirá a sua fidelidade às promessas. “A comunidade anseia pela parusia de Jesus
e a conclusão escatológica da história” (DOUGLAS, 2006, p. 222).

Análise da perícope Mt 26,26-29


O evangelho de Mateus recebeu a influência de Marcos (DOUGLAS, 2006), sendo sua
data provável de redação em torno de 80 a 90 d.C. (MARGUERAT, 2015). Mateus é um
evangelho escrito para a comunidade judaica e posteriormente aos acontecimentos
referentes à destruição do templo e à diáspora. Nesse período, ocorreram muitos conflitos
internos na comunidade. O evangelho mateano interpela a comunidade da época, para
mostrar que Jesus é o Messias (GASS, 2005). Aplicando a análise de quiasmo na perícope de
Mt 26, 26-29, temos:
(a) 26a- Enquanto comiam,

120
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

(b) 26b- Jesus tomou um pão,


(c)26c- e, tendo-o abençoado,
(d)26d- partiu-o
(e)26e- e, distribuindo-o aos discípulos,
(f)26f- disse:
(g)26g- “Tomai,
(h)26h- e comei,
(i)26i- isto é o meu corpo”.
(j)27a- Depois, tomou um cálice
27b- e, dando graças, deu-lho,
(j’)27c- dizendo:
(i’)27d-"Bebei dele todos,
(h’)28a- pois isto é o meu sangue,
(g’)28b- o sangue da Aliança,
(f’)28c- que é derramado por muitos,
(e’)28d- para a remissão dos pecados.
(d’)29a- Eu vos digo:
(c’)29b- desde agora
(b’)29c- não beberei deste fruto da videira até aquele dia
(a’)29d- em que convosco beberei o vinho novo no Reino do meu Pai".
O centro da perícope é: e, dando graças, deu-lho. Esta expressão mostra semelhança
com a perícope do evangelho de Mc 14, 23b. Isto é um grande indício que a comunidade
mateana recebe e conserva a tradição da comunidade de Marcos. Contudo, há algumas
colocações e elementos em Mateus que são apresentados de modo diferente em Marcos.
Dois elementos importantes requerem notoriedade: O primeiro é que há um elemento
significativo em Mt 26,28d: “Remissão dos pecados”. Esta expressão faz referência direta à
festa de Yom Kippur.2 Com a destruição do templo, no ano 70 d.C. o sacrifício feito nesta festa
não era mais realizado. Seria possível inferir, então, que a comunidade mateana estivesse
amadurecendo teologicamente e que o sacrifício de Jesus, sua paixão morte e ressurreição
seria o triunfo de sangue e purificação do povo, bem como a instituição de um novo

2
“A festa de Yom kipur é o dia em que Deus perdoa os pecados do Povo. Esse dia é conhecido pelos os judeus
como o grande dia, os dias terríveis, o dia do julgamento” (NETO, 2007, p.32).

121
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

sacerdócio? É possível pensar que a comunidade estava percebendo que Jesus seria o novo
Yom Kippur? Certamente, as epístolas de Paulo vão influenciar diretamente esse olhar sobre
Jesus. Em Mc 14,24e está escrito: em “favor de muitos”. O segundo elemento refere-se ao
que vem escrito em Mt 26,29d “deste fruto da videira até aquele dia em que convosco beberei
o vinho novo no Reino do meu Pai". A palavra “convosco” é nova em relação a Marcos: indica
estar junto, com vocês. Possivelmente o evangelista quer mostrar a presença de Jesus na
comunidade e ressaltar a comunicação de seu Espírito. Provavelmente fosse um passo para
responder à superação da parusia imediata? Sabe-se que videira, vinho e reino são termos
teológicos e que possuem uma profundidade imensa no Primeiro Testamento, ligadas ao povo
de Israel, tempos messiânicos e soberania de Deus (STERN, 2007).
Outra citação que em Mateus é colocado de modo diferente, se dá por meio da
expressão: “Reino do meu Pai”. Em Marcos está escrito: “Reino de Deus”. Mostra que a
comunidade de fato vê em Jesus uma relação de proximidade com Deus (Abba - paizinho em
hebraico). Para Jesus, Deus não é somente Deus (que é claramente grandioso), mas é também
“paizinho”. Indica, portanto essa íntima relação singular de Jesus com Deus.
A mensagem teológica, portanto, em Mt 26, 26-29 é semelhante a Mc 14, 22-25, pois
possui a mesma comunicação central, porém há indícios de uma nova perspectiva da atividade
de Jesus: que a comunidade estivesse substituindo o ritual de Yom Kippur, pelo perdão dado
por Jesus, já que Jesus possuía uma íntima relação com o Deus de Israel? Ainda que seja uma
ideia embrionária, essa última afirmação é bastante plausível pois, ao longo da narrativa
mateana, mostra que Jesus é capaz de perdoar pecados, sendo que para a tradição judaica,
somente Deus é capaz de tal gesto. Um trecho do evangelho de Mateus que pode alcançar
essa compreensão é a perícope de Mt 9, 1-8:

“1E entrando em um barco, ele atravessou e foi para a sua cidade. 2Aí lhe
trouxeram um paralítico deitado numa cama. Jesus, vendo tão grande fé,
disse ao paralítico: ‘Tem ânimo, meu filho; os teus pecados te são
perdoados.’ 3Ao ver isso alguns dos escribas diziam consigo: ‘Está
blasfemando’. 4Mas Jesus, conhecendo os seus pensamentos, disse: ‘Por
que tendes esses maus pensamentos em vossos corações? 5Com efeito, que
é mais fácil dizer 'Teus pecados são perdoados', ou dizer 'Levanta-te e
anda'? 6Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem poder na
terra de perdoar pecados...’, disse então ao paralítico: ‘Levanta-te, toma tua
cama e vai para casa’. 7Ele se levantou

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ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

e foi para casa. 8Vendo o ocorrido, as multidões ficaram com medo e


glorificaram a Deus, que deu tal poder aos homens.”

Análise da perícope: Lc 22, 19-20


Para alguns especialistas em sagradas escrituras, o evangelho de Lucas é também
chamado de Lucas-Atos, composto de dois volumes: o primeiro volume é o evangelho,
descreve o tempo terreno de Jesus; o segundo volume é o livro dos Atos dos Apóstolos, relata
o início da Igreja (MARGUERAT, 2015). Sua redação é colocada por volta de 85 d.C., pela
terceira geração de cristãos (MARGUERAT, 2015), portanto, último evangelho sinótico a ser
escrito. Em algumas obras, coloca-se a redação em torno do ano 60 d.C., ou logo após os
escritos de Marcos (Douglas, 2006). Apesar das discordâncias entre datas e meios de
produção, os especialistas concordam que Lucas conserva muito a tradição de Marcos, mas
também possui características próprias. “Seu objetivo é apresentar Jesus como o Salvador do
mundo” (GASS, 2005, p. 42).
Lucas apresenta perícopes mais sintéticas em comparação com Marcos e Mateus.
Aplicando a análise de quiasmo à perícope, tem-se:
(a)19a- E tomou um pão,
(b)19b- deu graças,
(c)19c- partiu
(d)19d- e distribuiu-o a eles,
(e)19e- dizendo:
(f) 19f- “Isto é meu corpo
(g) 19g- que é dado por vós.
(h) 19h- Fazei isto em minha memória”.

(g’)20a- E, depois de comer,


(f’)20b- fez o mesmo com o cálice,
(e’)20c- dizendo:
(d’)20d- “Este cálice é a nova Aliança
(c’)20e- em meu sangue,
(b’)20f- que é derramado
(a’)20g- em favor de vós.

123
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

O centro da perícope é: Fazei isto em minha memória, pois carrega uma profundidade
ímpar no judaísmo.

“Para o judaísmo, o passado tem significado diferente do que se costume


ver em outras culturas, como a cultura ocidental. O passado não é somente
registros de eventos ou informações que aconteceramem uma determinada
época, em um ponto específico do tempo e do espaço. [...] A cultura judaica
olha seu passado, em suas tradições (orale escrita) e as histórias e conteúdos
contidos nelas, como modo de aprendizagem e ensino. [...] Portanto o
passado tem caráter pedagógico. A história do povo de Israel está na sua
memória coletiva, que é partilhada pelos indivíduos do passado e
transmitida para gerações seguintes. (SMITH, 2006, p. 183-201).”

Essa transmissão de memória é feita, sobretudo, por experiências comunitárias, como,


por exemplo, comemorações, atos litúrgicos e rituais que são realizadas em comunidade.
Nessas experiências, elementos como moral, valores, ideais e juízos são transmitidos da
geração passada para a posterior. Esses elementos são confrontados com a similaridade entre
o passado e o presente, sempre em busca de novas realidades e respostas contínuas às
circunstâncias da vida, sempre mantendo a unidade dos elementos do passado (SMITH, 2006).
A memória na tradição bíblica é um ato destinado a influenciar o presente, é a atualização
desses elementos que rompem o tempo. Esse rompimento é realizado através do memorial,
em hebraico: Zikkaron (SILVA, 2015).
A concepção do memorial no judaísmo (Zíkkaron) tem sentido atemporal; é como viver
a eternidade no momento. Presente, passado e futuro se integram em uma unidade; é viver
o Kairós (eternidade) e não o Cronos (tempo cronológico). O povo judeu realizava o ato cultual
como memorial, para rememorar um evento dos seus antepassados, que teve a ação salvífica
de Deus: o Êxodo, no Egito, a vocação de Abraão, o sacrifício de Isaac, a Aliança do Sinai, as
numerosas intervenções de Deus em defesa do seu Povo; e revivê-lo no presente, tendo assim
a mesma força e a mesma graça do evento que ocorreu outrora. Se, no passado, Deus libertou
Israel no Egito, a mesma libertação ocorre no “agora”, no momento da celebração. Portanto,
memorial, não é somente lembrança no sentido de recordação do fato, mas é a “atualização
deste fato no momento presente. Celebra-se o dom e a graça de Deus, sua intervenção
libertadora na história” (NETO, 2017, p. 21). No Segundo Testamento a palavra Zikkaron em
hebraico é traduzido pela palavra grega anamneses (SILVA, 2015).

124
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Vários elementos deixam transparecer que, na perícope Lc 22, 19-20, Lucas faz
referência ao ritual de Seder da Pessah,3 pois há a presença de elementos intrínsecos. Neste
ritual, o evangelista estabelece uma comunicação nova: Jesus é nova Páscoa.
“Lucas é o único dos quatro escritores que descreve o estabelecimento da
Nova Aliança (B’rit Chadashah) que menciona tanto um cálice antes da
refeição [...] e outro depois [...] O seder requer quatro cálices: dois antes da
refeição e dois depois. Cada um está relacionado com uma das promessas
de Deus em Êxodo 6, 6-7 [...] O terceiro dos quatro cálices (Lc 22,17a),
correspondendo a Êxodo 6,6-7 “e vos resgatarei”. Assim Yeshua usou o
“cálice da redenção”, como o terceiro cálice é chamado, para inaugurar a
Nova Aliança, a qual redime do Egito, da escravidão do pecado, a todos que
confiam em Deus e em seus Messias. [...] A Nova Aliança renova e restaura o
que a Aliança Mosaicaprometeu ao povo judeu. (STERN, 2007, p. 106-107).”

Lucas assimila que as ações de Jesus e a Ceia Pascal estão intimamente ligadas. Comer
o pão e beber do cálice é restaurar a Aliança de libertação. A partir da experiência do
ressuscitado, Jesus se torna critério para seus seguidores, de releitura e interpretação das
tradições de Israel. Lucas conserva a tradição recebida de diversas fontes, e retoma a tradição
paulina, ampliando a sua interpretação histórica e teológica, conforme visto na análise da
perícope 1Cor 11,23-25, ressignificando, de maneira mais clara, o ritual da Páscoa do Primeiro
Testamento. O evangelista vai percebendo e amadurecendo teologicamente que Jesus se
utiliza do memorial judaico, da sagrada ação litúrgica do judaísmo e de elementos
previamente conhecidos na tradição de Israel, para exercer a sua ação libertadora e salvadora,
realizada de uma vez por todas.
A Eucaristia é a nova Páscoa, a nova Aliança, não no sentido de substituição da Páscoa
do Primeiro Testamento, mas de sua plenificação. A Páscoa de Jesus não tem ruptura ou
descontinuidade com a antiga (Êxodo), mas ao contrário, é seu cumprimento absoluto. É a
continuidade da História da Salvação, prometida desde o Primeiro Testamento, agora
concretizada em Jesus de Nazaré. A celebração da Ceia do Senhor vai tomando forma e
ganhando novos elementos ao longo da história e da literatura dos evangelhos.

Considerações Finais

3
“Refeição da Páscoa: É o ritual estabelecido em Êxodo 12,1-16, para celebrar a libertação dos judeus da
escravidão egípcia e seu estabelecimento como uma nação e como povo de Deus” (STERN, 2007, p. 101).

125
ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Ao comparar os quatro relatos da instituição da Eucaristia: uma carta apostólica e três


Evangelhos, e ainda que se valendo, de um modo introdutório, de alguns métodos da Exegese
bíblica, pode-se perceber as peculiaridades e intencionalidades teológicas de cada escritor em
questão. Ficaram evidenciadas as semelhanças e diferenças entre suas perspectivas,
sobretudo o sentido e o público a quem foram destinados os seus textos, levando a cada
situação histórica a resposta de problemas concretos, através de mensagens e conteúdos
próprios.
Paulo instrui a comunidade na vivência da caridade e na comunhão de acordo com o
projeto de Jesus. Cristo se faz presente na ceia celebrada pela comunidade. As ações
vivenciadas na ceia pelos membros da comunidade devem ter ressonância na vida prática.
Marcos quer mostrar para a comunidade que ela deve permanecer firme na fé e na esperança,
mesmo diante das perseguições pois, em Jesus, Deus se mostrou que a promessa foi
cumprida. A comunidade espera pela segunda vinda de Jesus e a conclusão escatológica da
história. Mateus, mantêm a centralidade da mensagem de Marcos, com outro foco: o
evangelista vê a profundidade de relacionamento singular de Jesus com Deus e,
possivelmente, vê gestos de Cristo, como triunfo de sangue e purificação do povo (yom
kyppur). Por último, Lucas, que recebendo as contribuições das tradições oral e escrita de:
Paulo, Marcos, Mateus, Fonte Q e sua tradição própria; consegue perceber e reconhecer nos
gestos de Jesus um estabelecimento da sua aliança com a comunidade, povo de Deus, e pede
para que esta mesma comunidade dê continuidade em seu projeto: “Fazei isto em Memória
de Mim” (Lc 22,19h), retomando e dando maior amplitude de compreensão teológica às
tradições paulinas 1Cor 11,23-25, primeira narrativa escrita sobre a Eucaristia.
A Eucaristia é a celebração do sacrifício de Cristo: vida, paixão, morte e ressurreição,
que mostra para toda a humanidade o plano de salvação de Deus, tendo a Igreja, como a
continuadora de sua obra. Jesus mesmo instituiu a Eucaristia, como memorial de sua
presença. A celebração Eucarística é o centro e o ápice do exercício do sacerdócio de Cristo
através do Zikkaron/anamnese. Participar da Eucaristia é fazer a atualização da fé em Jesus
Cristo, é tornar-se um com Deus e abraçar o seu projeto.

REFERÊNCIAS

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ANÁLISE EXEGÉTICA E TEOLÓGICO-COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS DA CADERNOS DE SION
INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.


DATTLER, F. Sinopse dos Quatro Evangelhos. 1º Ed. São Paulo: Paulus, 1986.
DOUGLAS, J.D (Org.). O Novo Dicionário da Bíblia, 3º Ed. São Paulo: Vida Nova, 2006.
GASS. I.B. Uma introdução à Bíblia. As comunidades Cristãs a partir da segunda geração. Vol.
8. Elaboração: Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). São Paulo: Paulus, 2005
MARGUERAT, D. Novo Testamento. História, escritura e teologia. 3º ed. São Paulo: Loyola,
2015.
MCKENZIE, J.L. Dicionário Bíblico. 5º ed. Tradução: Álvaro Cunha, São Paulo: Paulus, 1984.
MIRANDA NETO, M.F. As festas Judaicas (apostila de curso). CCEJ, SP, 2017.
MORESCHINI, C; NORELLI, E. Manual de Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. Aparecida:
Santuário, 2005.
SILVA, C. M D. Metodologia de Exegese Bíblica. 3º ed. São Paulo: Paulinas, 2009.
SILVA, V. S. Teologia da anamnese: aspectos bíblicos e teológicos. Revista Eletrônica PUC-RS.
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 45, n. 3, p. 269-284, set-dez. 2015. Acessado em: 20 de
Agosto de 2019. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/teo/ojs/index.php/teo/article/download/14428/14503
SMITH, M.S. O Memorial de Deus. História e a experiência do divino no Antigo Israel, São
Paulo, Paulus, 2006.
STERN, D.H. Comentário Judaico do Novo Testamento. 1º ed. Belo Horizonte: Atos, 2007.

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LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO CADERNOS DE SION
DISCURSIVA RELIGIOSA
LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO DISCURSIVARELIGIOSA

Jarbas Vargas Nascimento


Doutor em Letras (Semiótica e Linguística Geral) pela Universidade de São Paulo (USP);
Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP); Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Faculdade Nossa Senhora Medianeira – SP.

Judson de Carvalho Vieira


Mestrando em Administração pela PUC-SP, Bacharel em Economia pela PUC-SP.

RESUMO
Este artigo tem como tema uma leitura do discurso religioso católico, considerando a cenografia
que movimenta o gênero de discurso sermão, proferido durante o rito sacramental. Nosso
objetivo é propor uma leitura do discurso religioso, identificando a forma como o enunciador
constrói uma cenografia, cujos recursos linguístico-discursivos conferem eficácia a seus
enunciados. O aporte teórico-metodológico que fundamenta nosso estudo é da Análise do
Discurso de linha francesa (AD), nas perspectivas enunciativo-discursivas propostas por
Maingueneau (2000, 2002, 2008). Selecionamos como corpus um sermão proferido oralmente
pelo Padre Antonio Geraldo Della Costa, sacerdote gaúcho da Congregação dos missionários de
São Carlos, durante a missa de Páscoa, no dia 31 de março de 2013 e postado no dia seguinte
em Liturgia Diária Comentada, blog católico de reflexões sobre a liturgia diária. Partimos da
constatação de que os discursos sobre manifestações de religiosidade devam se beneficiar das
pesquisas linguísticas, para acionar a produção de efeitos de sentido materializados em textos
desse campo discursivo. A análise evidenciou que o teológico e o religioso dialogam na
cenografia e garantem unidade ao discurso, estabilizando-o em um acordo tácito, referendado
no/pelo enunciado assim seja, celebrado e firmado no sermão. Por isso, o evento bíblico e o dito
no sermão se sustentam reciprocamente como verdade e instauram um crer-dever-fazer.

ABSTRACT
This article is about the reading of catholic religious discourse, considering the scenography that
moves the sermon discourse genre, pronounced during the sacramental rite. Our purpose is
offering a reading of religious discourse, identifying the mode of how the enunciator build the
scenography, whose linguistic-discursive resources gives effectiveness to his statements. The
theoretical-methodological contribution that grounds our study is the French line discourse
analysis, in enunciative-discursive perspectives proposal by Maingueneau (2000, 2002, 2008).
We selected the sermon corpus orally read by the Priest Antonio Geraldo Della Costa, priest of
the missionary congregation of São Carlos, during the easter mass, on march 31, 2013, and
posted the following day at the “Liturgia Diária Comentada”, a catholic blog with reflections
about daily liturgy. We started from the findings that the discourses about manifestations of
religiosity should benefit from linguistic research to trigger the production of sense effects
materialized in texts from this discursive field. The analysis evidenced that the theological and
the religious dialogue in the scenography and guarantee unity to discourses, stabilizing him in a
unspoken agreement, endorsed in/by the statement so be it, celebrated and signed in the
sermon. Therefore, the biblical event and the saying in the sermon are mutually supportive as
truth and establish a believe - to owe - do.
Keywords: discourse analysis, scenography, sermon, reading

128
LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO CADERNOS DE SION
DISCURSIVA RELIGIOSA

Neste artigo propomos uma leitura do discurso religioso católico com especial
atenção à dupla cenografia que ocorre no gênero de discurso sermão, proferido no rito
sacramental. Partimos da constatação de que os discursos sobre manifestações de
religiosidade devam se beneficiar das pesquisas linguísticas, para acionar a produção de
efeitos de sentido materializados em textos desse campo discursivo. Nas últimas
décadas, a emergência de novas igrejas e os estudos delas e de suas expressões de fé
têm evoluído muito, principalmente pela interdisciplinaridade que opera com diferentes
campos do conhecimento de modo particular, com as vertentes linguísticas mais
estabilizadas e validadas na academia.
Nosso objetivo é propor uma leitura do discurso religioso católico, procurando
mostrar a forma como o enunciador constrói a cenografia no gênero de discurso
sermão, proferido no rito sacramental, cujos recursos linguístico-discursivos conferem
eficácia a seus enunciados. Buscamos, também, contribuir com as discussões que
abordam a leitura como uma negociação de efeitos de sentido, enfocando as regras de
organização do gênero de discurso sermão que, por meio de uma dupla encenação -
ritualizada e social – legitima as formações discursivas da Religião católica, na
enunciação. A partir da hipótese do primado do interdiscurso, ou seja, de que o
interdiscurso precede o discurso (Maingueneau, 2008), queremos mostrar como o
enunciador se apropria da constituência do discurso teológico para organizar o espaço
de interlocução, onde transitam estratégias de tomada da palavra.
No que se refere aos procedimentos metodológicos adotado, nosso percurso se
organiza em dois momentos: em primeiro lugar, apresentamos as condições sócio-
históricas de produção do discurso que selecionamos, considerando sua situação
retextualizada, a forma como o rito sacramental, por meio de gestos simbólicos, faz
presentificar o divino e o secular, resultando na condição religiosa do discurso, que se
configura, in essentia, por meio do interdiscurso teológico; em seguida, apresentamos
as noções de interdiscurso e cenografia que retiramos de Maingueneau (2008). Para ele,

129
LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO CADERNOS DE SION
DISCURSIVA RELIGIOSA

a cenografia funciona como uma estratégia de envolvimento discursivo entre o


enunciador e o co-enunciador; por fim, analisamos um sermão, que apreendemos como
discurso religioso, considerando sua condição genérica, a interdiscursividade e a dupla
cenografia que molda a organização do discurso.
O sermão selecionado para a análise foi proferido oralmente pelo Padre Antonio
Geraldo Della Costa, sacerdote gaúcho da Congregação dos missionários de São Carlos,
durante a missa de Páscoa, no dia 31 de março de 2013 e postado no dia seguinte em
Liturgia Diária Comentada, blog católico de reflexões sobre a liturgia diária, disponível
na internet. Esse discurso foi retextualizado e disponibilizado em
https://liturgiadiariacomentada2.blogspot.com.br/2013/03/a-vida-venceu-morte-pe-
antonio.html. Por isso, em nosso trajeto de leitura, ao mesmo tempo em que
apreendemos o discurso em situação ritualizada, mas sabemos que,
concomitantemente, podemos apreendê-lo por meio na mídia, cuja situação
enunciativa nos possibilitaria negociar outros efeitos de sentido. Compreender esse
discurso religioso em sua condição midiatizada configuraria uma nova condição de sua
produção e circulação (Poster,1996,2000), ressignificando o campo discursivo da
religiosidade o que mereceria do analista de discurso um procedimento investigativo
diferente daquele que faremos de ora em diante. O que nos motiva, nesse momento, é
proceder à leitura desse discurso religioso inserido no rito sacramental, onde ele se
torna legitimado e potencializado como expressão de credibilidade da religiosidade
católica.
Resta-nos acrescentar que o fato de este discurso encontrar-se no blog permite
que os fiéis ou outras pessoas interessadas consultem-no várias vezes, em ocasiões
diversas como meio de doutrinamento e de fidelização institucional. As Igrejas, de modo
geral, vêm recorrendo aos meios de comunicação digital como um espaço eficiente de
evangelização. Até mesmo na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo
VI (1975) sobre a evangelização no mundo, já se anunciava a necessidade de utilização
da mídia para a propagação da fé, como podemos observar no artigo 45 desse
Documento.

No nosso século tão marcado pelos "mass media" ou


meios de comunicação social, o primeiro anúncio, a

130
LEITURA E NEGOCIAÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NA ENCENAÇÃO CADERNOS DE SION
DISCURSIVA RELIGIOSA

catequese ou o aprofundamento ulterior da fé, não podem


deixar de se servir destes meios conforme já tivemos
ocasião de acentuar.
Postos ao serviço do Evangelho, tais meios são susceptíveis
de ampliar, quase até ao infinito, o campo para poder ser
ouvida a Palavra de Deus e fazem com que a Boa Nova
chegue a milhões de pessoas. A Igreja viria a sentir-se
culpável diante do seu Senhor, se ela não lançasse mão
destes meios potentes que a inteligência humana torna
cada dia mais aperfeiçoados. É servindo-se deles que ela
"proclama sobre os telhados", (72) a mensagem de que é
depositária. Neles encontra uma versão moderna e eficaz
do púlpito. Graças a eles consegue falar às multidões.
Entretanto, o uso dos meios de comunicação social para a
evangelização comporta uma exigência a ser atendida: é
que a mensagem evangélica, através deles, deverá chegar
sim às multidões de homens, mas com a capacidade de
penetrar na consciência de cada um desses homens, de se
depositar nos corações de cada um deles, como se cada
um fosse de fato o único, com tudo aquilo que tem de mais
singular e pessoal, a atingir com tal mensagem e do qual
obter para esta uma adesão, um compromisso realmente
pessoal.

Não mencionar a adesão da Religião à mídia seria ignorar a invasão da


comunicação de massa e os meios seculares de sua utilização na evangelização de
milhares de pessoas. Na atualidade, a mídia dá visibilidade e credibilidade àquilo que
ela expõe e, por isso, as igrejas vêm usufruindo desses meios de comunicação para
legitimar seus posicionamentos. Nesse sentido, considerando o ponto de vista teórico-
metodológico que assumimos, a leitura do discurso religioso no ritual e no blog produz
efeitos de sentido diferentes, pois que o fato de eles estarem em condições espaço-
temporais diferenciadas, seus enunciados se abrem a efeitos de sentido específicos
decorrentes da ambiência do ritual e do suporte midiático, conforme acenamos
anteriormente.
É bom lembrar, também, que, em relação à retextualização, na literatura
linguística, há várias e conflitantes abordagens a respeito desta noção. No entanto, para
os objetivos deste capítulo, recorremos aos estudos de Marcuschi (2001) e tomamo-la
aqui como o processo que transforma em modalidade escrita os enunciados proferidos
pelo sacerdote na modalidade oral, durante o rito sacramental. Trata-se do refazimento
e reescrita do sermão oralizado para a modalidade escrita, processo que envolve

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DISCURSIVA RELIGIOSA

operações que evidenciam o funcionamento social da linguagem, conforme afirma


Dell´Isola (2007:10). Esclarecemos, ainda, que o que garante a cientificidade do exame
do discurso religioso retextualizado é que, para qualquer discurso, em qualquer
condição de sua produção e pela própria circunstância de ser um enunciado linguístico,
pressupõe-se a ação da memória e do interdiscurso como constitutivos da exterioridade
que torna esse discurso legítimo.
As condições sócio-históricas de produção do discurso consideram que ele fora
proferido no domingo de Páscoa, centro do Ano Litúrgico e de toda a Vida da Igreja. A
Páscoa é uma grande festa cristã em que a Igreja celebra a ressurreição de Jesus Cristo,
sua vitória sobre a morte e sua passagem transformadora na vida dos cristãos. O evento
discursivo registrado em João 20 se repete constantemente na vida da Igreja e está
reatualizado no sermão que analisamos. Antes de examiná-lo, apresentamos alguns
pontos teóricos que nos ajudarão a negociar efeitos de sentido de religiosidade como
tributo à memória da páscoa.
A AD fundamenta nossas reflexões pelas motivações acima enunciadas. Tal
opção teórico-metodológica se justifica, ainda, pois tomamos essa disciplina em uma
perspectiva enunciativo-discursiva, conforme Maingueneau (2015), que postula o
discurso no entrecruzamento da prática linguageira e o lugar social. Em adição a esse
postulado, o autor esclarece que o discurso é uma forma de ação, é interativo,
contextualizado, pressupõe a relação entre sujeitos e instâncias enunciativas e implica
o lugar social e o discursivo, como espaços em que os sujeitos se inscrevem para
enunciar. Por isso, para Maingueneau, o discurso, tomado em um interdiscurso, é uma
prática linguística, comunicacional e de conhecimento em que os sentidos se constroem
socialmente. Por particularizar essa concepção de discurso, a abordagem proposta por
Maingueneau faz com que a AD se distancie de outras disciplinas que também assumem
o discurso como objeto de estudo.
Já a respeito do primado do interdiscurso, Maingueneau (2008a) postula sua
hipótese, a partir da noção de heterogeneidade mostrada e constitutiva apresentada
anteriormente por Authier-Révuz (2004). Desse modo, o autor propõe o interdiscurso
como o lugar de origem de todo e qualquer discurso, pois que todo discurso se constitui
como produto do interdiscurso, ou seja, com base no cruzamento entre outros
discursos. Logo, o discurso religioso se constitui como porta-voz do discurso teológico,

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DISCURSIVA RELIGIOSA

que segundo Nascimento (2020) é constituinte e partilha de determinadas propriedades


quanto às suas condições de emergência, de funcionamento e circulação. Para dar conta
da noção de interdiscurso e buscando tornar clara essa categoria primordial,
Maingueneau (2010) apresenta um quadro metodológico que operacionaliza a noção
de interdiscurso, substituindo-o por universo discursivo, campo discursivo e espaço
discursivo.
Por universo discursivo, Maingueneau (2008a) assegura tratar-se de um
conjunto de formações discursivas de todos os tipos, um todo caótico de pouca utilidade
para o analista. No interior de um universo discursivo, o analista tem acesso ao campo
discursivo, ou seja, a um conjunto de formações discursivas, que se encontram em
concorrência, se delimitam reciprocamente. (MAINGUENEAU, 2008b, p.34). Para
completar a tríade, Maingueneau define espaço discursivo como subconjuntos de
formações discursivas, mais delimitado que o campo discursivo, pois que é nesse espaço
que ocorre a atividade do analista. Nesse sentido, entende-se por interdiscurso o
conjunto das unidades discursivas com as quais um discurso particular entra em relação
implícita ou explícita (MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2004, p. 286). De fato, a categoria
de interdiscurso é que me possibilita relacionar, por exemplo, a memória social ao
conteúdo do sermão. Além disso, ele operacionaliza enunciados já ditos, que se
reatualizam no funcionamento discursivo do sermão, abrindo-os para novos efeitos de
sentido. Com isso, o sermão selecionado ganha identidade, no momento em que
operacionaliza o discurso constituinte teológico, conforme veremos mais à frente.
Interessa-nos dizer, também, que o discurso se constitui pela construção de uma
cena imposta no enunciado. De modo conciso, podemos dizer que isso implica que a
enunciação mobiliza o funcionamento do discurso, instaurando a subjetividade da
linguagem. Neste sentido, a categoria de cenas de enunciação (MAINGUENEAU 1997;
2008) enquadra um evento enunciativo em três dimensões distintas denominadas cena
englobante, cena genérica e cenografia. Estas dimensões permitem a apreensão do
gênero de discurso sermão em seu funcionamento social, em sua manifestação como
ritual sociolinguageiro e, a partir dos lugares instituídos pelo próprio discurso religioso
em sua cenografia. Em Maingueneau (2006, p. 251), a cena englobante corresponde ao
que se costuma entender por tipo de discurso. A cena genérica refere-se ao gênero de
discurso e, vinculada à cena englobante, juntas definem o quadro cênico do texto.

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DISCURSIVA RELIGIOSA

Afirma, também, Maingueneau (2008) que a noção de cena de enunciação faz com que
o discurso se organize em um espaço que, ao mesmo tempo, é instituído pelo gênero
de discurso e pelo próprio discurso. Deste modo, o gênero é a instituição de fala que
une o discurso ao social, pois nele e por ele os interlocutores assumem determinados
papéis.
A cenografia é a encenação que, ao desenvolver-se, instala seu próprio
dispositivo de fala. Ou seja, no discurso, a cenografia se desenvolve para se legitimar e
concretizar seu processo de inscrição no discurso, por meio de um enunciador e um co-
enunciador, um ethos, um código linguageiro, uma topografia e uma cronografia. Esses
elementos, de certo, sustentam a cenografia, à medida que emergem no discurso como
os mais apropriados para aquele evento comunicativo. Temos, então, o que
Maingueneau (2013; p. 98) chama de enlaçamento paradoxal, ou seja, o que é dito
legitima o modo de dizer e vice-versa.
O sermão, em análise, é tomado como uma prática discursiva, está
necessariamente contextualizado e, segundo Maingueneau (2001), inserido em uma
cronologia e em uma topografia que possibilitam ao leitor associar a cena englobante, a
cena genérica e a cenografia. A cena englobante do discurso selecionado é do tipo
religioso, na medida em que operacionaliza o interdiscurso teológico e destaca em sua
organização o comportamento humano em relação a Deus, princípio e fim. Isso revela
que, no funcionamento discursivo, há marcas e mecanismos, que indiciam
interlocutores, espaços e tempos da enunciação, bem como posicionamentos que são
de responsabilidade do enunciador e da instituição a que ele filia. O interdiscurso,
revelado pelo discurso constituinte teológico, retirado de João 20, 1-9, confirma-nos o
quadro cênico do discurso. O tema do discurso - a vida vencendo a morte - recupera o
acontecimento do Cristo ressuscitado relatado por João, mobiliza o evento pascal, que
é compartilhado na enunciação pelas instâncias que interagem no ritual, formando, por
conseguinte, uma memória coletiva em torno da páscoa.
Embora pareça que a cena englobante defina o tema do discurso, o que, de fato,
o define são as peculiaridades das formações discursivas impostas pelo sujeito no
tratamento do tema e os procedimentos que ele realiza para se comunicar na
cenografia. É bom esclarecer, também, que, a condição de estabelecer uma tipologia
para esse discurso, não significa que a cena englobante sozinha seja suficiente para lê-

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lo. Desse modo, faz-se necessário identificar, no processo de leitura, a cena genérica, os
papéis assumidos pelo sacerdote e pelos fieis, na enunciação, e considerar a condição
de ritualização, quando da apreensão da cenografia. Ainda que o gênero de discurso
sermão seja uma forma de enunciar já conhecida nos meios culturais e religiosos pelas
funções que o viabiliza é a cenografia que o leitor coloca em primeiro plano. Por isso,
com base em Maingueneau, asseguramos que é a cenografia que torna possível ao leitor
sua conduta no processo de negociação de efeitos de sentido no discurso.
Observamos, ainda, no funcionamento discursivo que o sacerdote, sujeito da
enunciação, no sermão, encena uma dupla cenografia: uma decorrente do ritual onde
circulam ele próprio, o enunciador e os coenunciadores, e outra cenografia decorrente
de um evento social, marcado por fatores sociais e religiosos reveladores do cotidiano
dos participantes da missa. Para esclarecer melhor a importância do ritual sobre o
enunciador e a cenografia, lembramos Foucault (2003, p 39), quando afirma que:
O ritual define a qualificação que devem possuir os
indivíduos que falam [...]; define os gestos, os
comportamentos, as circunstâncias, e todo o
conjunto de signos que devem acompanhar o
discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta
das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se
dirigem os limites de seu valor de coerção.

Desse modo, pelo ritual, o enunciador projeta uma cenografia em que há uma
manifestação de um evento espiritual e outra em que é construído um evento secular.
Neste sentido, espiritual e temporal se impõem coercitivamente na enunciação e criam
duas encenações paradoxalmente complementares, que instauram um ato de leitura a
ser lançado sobre o sermão. Os efeitos de sentido possíveis produzidos neste discurso
dependem de um processo de negociação que advém também do posicionamento
enunciativo do leitor.
Assim, para os objetivos deste artigo, é importante reafirmar que esse discurso
religioso se constitui na condição de ritualizado e define-se na relação entre Deus e o
homem, que, no/pelo ritual, atualiza pelo interdiscurso a manifestação terrena/humana
da transcendência. Ora, no ritual, quebra-se a assimetria entre o sagrado e o profano,
entre o espiritual e o temporal, fazendo com que o sacerdote assuma a ordem do divino,
que se atualiza no humano. Por isso, é pressuposto fundamental para a leitura do

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sermão a vinculação extraordinária entre Deus e o sacerdote, ou seja, Deus se


presentifica no sacerdote. Em vista disso, a missa, o locus onde o discurso é enunciado,
é a presentificação do sacrifício de Jesus no Calvário. Não é repetição e nem
multiplicação desse acontecimento; é a sua renovação/atualização. Trata-se, então, de
considerar a encenação discursiva como a representação de um lugar construído a partir
da morte e vida de Jesus, onde a vida se redefine por relações interdiscursivas pautadas
pelo ritual.
Isto posto, no recorte (1) Hoje celebramos a FESTA DA VIDA... O túmulo está
vazio... Cristo está vivo para sempre, o enunciador inicia o discurso, criando uma
cenografia, onde presentifica e reatualiza o evento pascal, quebrando a temporalidade,
no mesmo instante em que se eterniza a espacialidade. Como o homem sacraliza tudo,
movido pela fé, a missa surge como um locus, onde ele reconstrói pela
interdiscursividade o acontecimento da ressurreição. E, como tudo ali é sagrado, desde
a ambiência, a existência dos co-enunciadores e tudo a seu redor, o enunciador institui
uma cenografia em que convida os co-enunciadores, representados simbolicamente por
Maria Madalena, Pedro e João a professarem a fé no ressuscitado e a reconstruir um
novo sentido para a vida, conforme depreendemos no recorte (2): Como Madalena,
Pedro e João, nós professamos a fé no Senhor ressuscitado. No Evangelho, seguidores de
Cristo procuram o Ressuscitado e são convidados a manifestar a sua fé nele. Neste
recorte, opera-se ainda um apelo à memória social, na medida em que a cenografia se
reatualiza, com base em uma cena validada, já instalada na memória coletiva, conforme
Maingueneau, 2002, num evento ocorrido no tempo passado em que Maria Madalena,
Pedro e João eram participantes do evento original, de acordo com o interdiscurso
reinvestido por captação em João, 20, 1-9. Por isso, essa memória recobre a esfera do
ritual e incide sobre a organização da cenografia o que nos leva a identificar a comunhão
entre o divino e o humano, entre o real e o simbólico, entre o que está na memória e o
que se faz presente no discurso.
Pondo em funcionamento uma estratégia didática, o enunciador recorre a um
movimento narrativo para identificar os sujeitos que transitam no interdiscurso,
indicando a atitude que eles manifestam ao encontrarem o sepulcro vazio, espaço onde
deveria estar Jesus. Além disso, o enunciador movimenta, na cenografia, uma instância
absoluta, um hiperenunciador, que legitima e da veracidade e credibilidade de seu

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discurso. Esta condição faz com que esse hiperenunciador preencha a cenografia e
possibilite a presença cênica de seguidores de Jesus. Essa atitude do hiperenunciador
confere ao sermão um enquadramento simbólico, configurando uma topografia em que
a manifestação de Maria Madalena, Pedro e João pode levar os co-enunciadores a se
identificarem com eles e aderirem a uma ou outra de suas atitudes de fé, conforme
retomamos nos recortes a seguir. Maria Madalena, Pedro e João cada um de uma
maneira e segundo sua disposição interior tem em comum pressa para encontrar Jesus.
Retomamos agora o recorte (3) Maria Madalena, no "primeiro dia da semana"
(ou de um novo tempo), ainda "no escuro" procura no túmulo o Cristo morto. Diante do
túmulo vazio, pensa que haviam roubado o corpo do Senhor. Mas quando ela o encontra,
a fé desponta em seu coração. * Ela representa a nova comunidade, que inicialmente
acredita que a morte triunfou e vai procurar Jesus morto no sepulcro. Diante do sepulcro
vazio, percebe que a morte não venceu e que Jesus continua vivo.
Neste recorte, é possível observar que, no domingo de manhã, Maria Madalena,
a discípula mais dedicada a Jesus, acostumada a andar pelo jardim onde Ele havia sido
sepultado, fora surpreendida pelo túmulo vazio. Este aspecto narrativo da cenografia,
embora legitime, valide e traduza a narrativa do evento bíblico, traz à memória uma
mulher afetuosa, que assume no discurso teológico e no funcionamento do discurso
religioso uma atitude de fé no Cristo vivo, capaz de suscitar efeitos de credibilidade
decorrentes da interdiscursividade e da ritualização. Neste sentido, Maria Madalena,
nesta nova encenação, é reatualizada pelo enunciador do sermão para convidar os co-
enunciadores a lembrarem da figura de Jesus vivo e em sua plenitude. Maria Madalena,
certa de que o túmulo estava vazio, questiona-se a si e sua fé para confirmá-la e corre
para lembrar os sujeitos Pedro e João. Os enunciados que organizam a cenografia
evocam, na memória discursiva, o interdiscurso teológico e, por ele,
reatualizam/recriam, no sermão, o mito do jardim do Éden, denotando uma dimensão
criativa da leitura discursiva. O jardim em que Maria Madalena constatara o sepulcro
vazio expande o processo de leitura e possibilita-nos transcender a racionalidade
humana e relacionar esta narrativa com a história primordial de Adão e Eva em que
Madalena é identificada pecadora como Eva, mas Maria como a Virgem.
Além disso, de um lado, Maria Madalena encerra a certeza da ressurreição de
Jesus e, de outro, Pedro mostra lentidão em crer na páscoa de Jesus, conforme

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encenado no recorte (4) - Pedro, para quem a morte significava fracasso, recusava
aceitar que a vida nova passasse pela humilhação da cruz. Para ele a Ressurreição de
Jesus era uma hipótese absurda e sem sentido. Com surpresa, ele viu o túmulo vazio e os
panos dobrados... Mas continuou "no escuro": "Viu e não creu". * Ele representa o
discípulo que tem dificuldade em aceitar que a vida nova passe pela humilhação da cruz.
Chamado por Maria Madalena, Pedro, o chefe dos apóstolos, vai até o jardim
onde se encontrava o sepulcro de Jesus, examina-o cuidadosamente, mas demorou a
acreditar que ele estivesse vazio. Os fatos postos em cena ganham condição de
realidade e de acontecimento real, pois que o enunciador, para validar o sermão, evoca
a voz a um hiperenunciador, identifica-se com ele e mobiliza a cenografia. Da mesma
forma que Maria Madalena, assim Pedro e João são construídos no sermão como
sujeitos reais, criando nos co-enunciadores um efeito de verdade sobre a narrativa que
integra a cena enunciativa. Assim, como uma atividade discursiva, as relações entre
Maria Madalena, Pedro e o discípulo que Jesus amava legitimam a enunciação, ao
mesmo tempo suas atitudes particulares garantem não somente a pertinência do
interdiscurso teológico, mas também o reatualiza na cenografia do sermão,
reivindicando dos co-enunciadores uma adesão particular e comunitária do que se vive
no ritual.
No entanto, a referência ao discípulo que Jesus amava no interdiscurso e a
omissão de seu nome (João) expressa uma relação de alteridade que esse sujeito
assume na cenografia. Neste sentido, João, o escritor do texto do evangelho,
interpelado como sujeito, mostra-se como se somente ele pudesse ser vislumbrado, a
partir do olhar de Jesus, com o qual estabelece ainda uma unidade na cenografia,
conforme lemos no recorte seguinte:
Recorte (5) - "O Discípulo que Jesus amava" (João), diante do sepulcro vazio,
compreende os sinais e percebe que a morte não pôs fim à vida. Descobre que Jesus está
vivo. Por isso, ele "viu e acreditou". É a primeira profissão de fé na Ressurreição. * Ele
representa o "discípulo ideal", que está em sintonia total com Jesus. É o paradigma do
homem novo recriado por Jesus. O "Amor" conduz o discípulo pelo itinerário da fé...* Por
que não tem nome? Para que cada um de nós possa incluir o seu nome e compreender o
que deve fazer para ser como Jesus quer. - E nós conseguimos ver apenas os sinais de
morte como Pedro, ou sabemos descobrir os sinais da Ressurreição?

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Assim, a cenografia é invadida por mais um sujeito que transitou no espaço


enunciativo do evento bíblico. Cria-se um jogo de cenas entre o que se desenrola no
discurso teológico e no sermão, discurso religioso: o discípulo amado aproximou-se do
sepulcro e viu que Jesus não estava mais lá e acreditou. No entanto, ele, assim como
Pedro, ainda não tinha compreendido totalmente o evento da ressurreição; por isso,
mostra-se um sujeito crente, embora se interrogue sobre a legitimidade daquele
acontecimento. Contudo, em seguida, reflete e acredita; tudo lhe faz sentido e
possibilita-lhe a compreensão daquele acontecimento. Para João a esperança não está
morta.
Por informações guardadas na memória, o enunciador recorre a outros
interdiscursos, dentro do posicionamento específico ali abordado e integra na
cenografia do sermão em análise, as mulheres e os guardas, alinhando-os aos sujeitos
enunciados no interdiscurso, de forma abrangente, a fim de atualizar e incluir todos os
co-enunciadores no evento pascal e produzir novos gestos de leitura, conforme está
apresentado nos recortes (5) As Mulheres: abandonam depressa o lugar da morte e
correm para anunciar aos irmãos que Cristo está vivo e (6) - Os Guardas: deixam-se
corromper pelo dinheiro. Simbolizam os que, por amor aos bens desse mundo, preferem
mais a mentira do que a Verdade, mais a morte do que a Vida.
Essa atitude do enunciador organiza uma cenografia que joga com o divino e o
humano, com o imaginário e o real, com o crente e o não-crente, dissolvendo a
dicotomia entre a narrativa encenada e a realidade representada. Neste sentido, na
designação dos seguidores de Jesus, o enunciador procura envolver os co-enunciadores,
ligando-os necessariamente ao objetivo do discurso: páscoa é o Cristo ressuscitado,
vivo.
Os recortes seguintes não têm um caráter conclusivo, mas exortativo, como em
(7) PÁSCOA: É o maior acontecimento celebrado pela Igreja, na Liturgia. - Mas a Páscoa
não é apenas um FATO PASSADO... Cada festa Pascal é um novo apelo de Deus, que nos
convida a morrermos com Cristo, a nos separarmos do homem velho do pecado, a fim
de nos revestirmos do homem novo e ressurgir para uma vida nova na graça e na
santidade. A Páscoa não é apenas UM DIA DO ANO... É um processo permanente que
deve acontecer dentro de nós. Todos os dias o cristão celebra a Páscoa, quando combate
o homem velho do pecado, para se revestir do homem novo, em Cristo. E no recorte (8)

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TODO DOMINGO, revivendo os mistérios pascais na Eucaristia, deve ser um momento


forte dessa Páscoa, que parece não ter fim...
Obviamente, esses enunciados refletem sobre o acontecimento encenado no
evento bíblico e transportam para o sermão a realidade social, principalmente se
considerarmos algumas marcas do código linguageiro. O enunciador joga com
enunciados da própria cenografia para argumentar que a páscoa não é um fato passado.
Embora ela se reatualize constantemente no ritual, ela se constitui como um apelo de
Deus, para que os co-enunciadores morram, mas ressuscitem com Jesus. A amplitude
dos efeitos de sentido resultantes do imbricamento da cena validada, da
interdiscursividade, dos elementos do quadro cênico e da ritualização age sobre os co-
enunciadores, exortando-os a entender a páscoa como um evento enunciativo sem fim
e que deve ser revivido todos os dias.
No recorte (9) Prezado irmão, desejo-lhe uma FELIZ PÁSCOA... não é a de um
Cristo morto, perdido no passado, mas sim de um Cristo vivo, glorioso, atual, que faz
vibrar o seu coração e dar um sentido novo ao seu viver.
Seguindo a esteira do deslocamento ritualístico, o enunciador é motivado a
saudar os co-enunciadores como irmãos. Tal item lexical deve ser ampliado na produção
de leitura, pois carrega um conteúdo semântico e um conteúdo ideológico decorrentes
de um processo sociointerativo e outro religioso legitimados pela ritualização. Ao tratar
o co-enunciador como irmão, o enunciador aproxima-se dele e provoca, na cenografia,
uma condição de igualdade, construída a partir de um saber partilhado e compartilhado
no ritual. Neste momento, cria-se uma situação enunciativa de internalização, que firma
o tema do discurso, que se define como um argumento de credibilidade, ancorado em
um modo de ser social e religioso de viver a páscoa. Do que antecede, ressaltamos,
ainda, que o léxico irmão, uma das dimensões da semântica global, condensa um
sentido próprio, porque supõe uma relação com Deus, que é Pai e estabelece o outro
como irmão. Esse jogo de relações implica que se leve em conta que o Outro, o Pai, gera
também os outros, que irmanados se associam a Ele e a Jesus ressuscitado. E nessa
perspectiva, o imbricamento dessa relação evidencia a sacralização de tal unidade-
diversidade no contexto do ritual.
O recorte (10) Que assim seja!...encerra o sermão. Ao enunciar assim seja, por
meio desse enunciado, o enunciador atualiza o já dito anteriormente no interdiscurso e

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no sermão, ativa a memória discursiva de seus coenunciadores e exorta-os a legitimar o


evento da páscoa como ato enunciativo de fé. Como todo discurso é uma ação sobre o
outro e isso se dá também com o discurso religioso. O enunciador, neste recorte, visa à
adesão dos co-enunciadores, conscientizando-os de uma nova maneira de viver a
páscoa. Desse modo, o enunciador argumenta sobre a verdade enunciada na cenografia,
conduz um processo de adesão em que os efeitos de sentido negociados entre ele e co-
enunciadores se unificam. Além disso, o teológico e o religioso dialogam e garantem
unidade ao discurso e, consequentemente, estabilizam um acordo tácito, referendado
no/pelo enunciado assim seja, celebrado e firmado no sermão. Entendemos, portanto,
que o que foi enunciado no evento bíblico e o dito no sermão se sustentam
reciprocamente como verdade e instauram um crer-dever-fazer.
Por fim, torna-se evidente que a prática da leitura discursiva se distancia de uma
perspectiva da Hermenêutica Clássica e da Exegese Bíblica. Na perspectiva que
assumimos aqui, enfatizamos o discurso, o sujeito, o interdiscurso e a cenografia. Essas
noções foram relevantes em nosso processo de leitura, que se fundou na Linguística,
mas particularmente, na Análise do Discurso de linha francesa, na abordagem de
Maingueneau. É bom lembrar que esta perspectiva de leitura rompe a estabilidade do
texto teológico e, consequentemente, possibilita diferentes efeitos de sentido
acordados no texto religioso, que estão inscritos e podem ser apreendidos por
diferentes formações discursivas.

REFERÊNCIAS

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CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São
Paulo: Contexto, 2004.
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Martins Fontes, 2001.

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DISCURSIVA RELIGIOSA

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----------------------------------------. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P.
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MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da Fala para a Escrita: Atividades de Retextualização. São
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PAPA PAULO VI. Evangelli Nuntiandi. Disponível
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POSTER, Mark. The mode of information. Chicago: The University of Chicago:
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---------------------. A segunda era dos media. Tradução Maria J. Taborda e
Alexandra Figueiredo. Oeiras: Celta:, 2000.

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LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36

Michel Sakr
L’auteur est un prêtre diocésain maronite de Byblos (Liban). Il a fait un premier cycle
d’études de théologie à l’Université Saint-Esprit de Kaslik (Liban) et un deuxième cycle à
l’Université Catholique de l’Ouest, Angers (France). Suite à une expérience de pastorale et
d’enseignement de deux ans au Nigeria, il a achevé son doctorat en 2005 en théologie
biblique à l’Université Pontificale Grégorienne à Rome. Après avoir rendu un service pastoral
et académique pendant quatre ans en São Paulo (Brésil) il est revenu au Liban et il enseigne
actuellement le Nouveau Testament dans les Universités Catholiques à Beyrouth et dans le
Centro Cristão de Estudos Judaicos em São Paulo, Brésil.

RÉSUMÉ

La problématique principale de cet article trouve son point de départ dans l’analyse du caractère
sévère de Jésus dans l’évangile. Des synoptiques, c’est Matthieu qui met le plus l’accent sur la
tension entre les pharisiens et Jésus. Le point culminant est le discours dans le temple dont le noyau
est constitué des sept «Ouai» (Mt 23,13-36). Pour expliquer cette sévérité, l’auteur utilise comme
approche méthodique la «pragmatique» au sein de la science de la communication et de la
linguistique. L’objectif principal de la recherche est d’offrir au lecteur une nouvelle perception de la
réalité et de l’interpeller sur son agir moral.

RESUMO
A principal problemática deste artigo encontra seu ponto de partida na análise do caráter severo de
Jesus no evangelho. Dos sinóticos, é Mateus quem mais enfatiza a tensão entre os fariseus e Jesus. O
clímax é o discurso no templo, cujo núcleo é constituído pelos sete «Ai» (Mt 23,13-36). Para explicar
essa severidade, o autor usa como prospectiva metodológica a "pragmática" dentro da ciência da
comunicação e da linguística. O objetivo principal da pesquisa é oferecer ao leitor uma nova
percepção da realidade e desafiá-lo em sua ação moral.

Introduction

L’évangile de Matthieu met l’accent plus que les autres synoptiques sur la tension entre
Jésus et les pharisiens. Les paroles sévères (Mt 23,13-36) proférées par Jésus dans le temple
contre ces derniers peuvent choquer le lecteur habitué à concevoir Jésus sous l’angle de

143
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

l’humilité et de la douceur (Mt 11,29 ; 12,19-20). Ce n’est pas tant la bonté de Jésus qui pose
problème aux croyants que le caractère sévère de certaines de ses énonciations. C’est
pourquoi cet article vient mettre le doigt sur la double face de Jésus : sévère Sauveur1!
A un niveau méthodologique, étudier un texte biblique dans la prospective pragmatique
se fait de plus en plus actuellement dans les milieux exégétiques2. Ceci consiste à dégager la
force inhérente aux textes, interpellant les lecteurs à avoir un comportement cohérent avec
ce qu’ils lisent.
Voyons dans ce qui suit comment se présente l’apport de la lecture pragmatique à Mt
23,13-36, situant tout d’abord cette approche dans le domaine exégétique et déduisant
ensuite, après l’analyse du texte, les principes théologiques qui en découlent.

–—————————
1
Cet article résulte d’une thèse doctorale défendue par l’auteur dans l’Université
Pontificale Grégorienne à Rome et publiée sous ce même titre : M. S AKR, Le sévère Sauveur,
Lecture pragmatique des sept «Ouai» dans Mt 23,13-36, EH XXIII/808, Bern 2005.
2
A titre d’indication, voire les travaux des membres de l’Association Biblique Interna-
tionale «Evangile et Culture» publiés dans le site www.evangeliumetcultura.org.
144
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

1. Le genre «Ouai»3 dans le contexte de la communication

Dans la Bible, le genre «Ouai» n’est principalement ni narratif ni poétique (17 fois), mais
spécialement il est utilisé dans la littérature prophétique (71 fois), quoique sa présence soit
attestée presque dans tous les livres de l’Ancien et du Nouveau Testament.
A un niveau communicatif, concernant ses stratégies narratives et syntaxiques, «Ouai»
est utilisé la plupart des fois comme une interjection ou un cri, rarement comme un
substantif féminin (Ap 9,12; 11,14) et une seule fois comme un adjectif (1Co 9,16). Dans les
cas où «Ouai» est une interjection accompagnée de la deuxième personne ou d’un vocatif
ou d’un nominatif, il donne une impression très emphatique, contrairement à son usage
avec la troisième personne ou le datif. Une proposition causale introduite par «oti», parce
que, est présente parfois à cette construction indiquant généralement le réquisitoire
énumérant les motifs du «Ouai» qui ne sont autres que les défauts du destinataire (Ez 24,6-
7; Jr 4,13; Tb 10,5). Et enfin, nous signalons qu’il est possible de trouver aussi, surtout dans
les oracles prophétiques, à la fin du réquisitoire, une annonce du châtiment introduite par
«C’est pourquoi dit le Seigneur» avec un emploi du verbe au futur (Is 5,24). Ce châtiment ne
fait que consacrer la mauvaise situation du destinataire dans une condamnation éternelle,
pire que sa situation actuelle.
Au niveau sémantique-pragmatique, le genre de «Ouai» peut communiquer trois
messages divers que nous exposons dans une graduation croissante:
– Le sens de lamentation ou de peur à cause d’un événement quelconque; le «ouvai,» est
accompagné généralement de la première personne, par exemple: «Malheur à nous car
nous sommes perdus» (Jr 4,13).
– Le sens d’invective ou de malédiction qui n’est autre qu’un reproche sévère dit au
destinataire à cause de ses méchancetés, dans une amertume profonde, ressemblant à un
cri de douleur; quand même, il y a encore une chance de salut, vue que l’annonce du
châtiment n’est pas faite: «Malheur à vous, hommes impies, qui avez délaissé la loi du Dieu
Très-Haut» (Si 41,8).
– Le sens de menace, ceci est dû à la gravité de la situation pervertie du destinataire. La
menace est mise en évidence par les verbes conjugués au futur: «Malheur à vous qui riez
maintenant, car vous serez en deuil et vous pleurerez» (Lc 6,25). Elle pourrait être vue
comme une invitation à la conversion en vue d’éviter le châtiment éternel. Elle pourrait être
une menace faible dans le sens d’une mise en garde.
Dans le tableau suivant, sont exposés les 46 emplois du mot «Ouai» dans le Nouveau
Testament, suivant l’endroit, la catégorie des destinataires et le message particulier
communiqué par un tel genre4. Le chiffre entre parenthèse indique la fréquence du terme
«Ouai» dans l’endroit correspondant.

Endroits Catégories des destinataires Fonctions du genre «Ouai»


Mc 13,17 (1) Aux enceintes et allaitantes Lamentation
Mc 14,21 (1) A cet homme par qui le F. de l’H. est livré Menace

–—————————
3
Dans ce qui suit, nous traduisons «Ouai» par «Malheur à» car la langue française manque
d’un équivalent correspondant aux lettres grecques, comme en est le cas par exemple pour
l’italien «Guai», le portugais «Ai», l’espagnol «Ay», l’allemand «Wehe» et l’anglais «Woe».
4
Pour l’occurrence de «Ouai» dans l’A.T. cf. M. SAKR, Le sévère Sauveur, 61-67.
145
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

Mt 11,20-24 A Chorazin et Bethsaïda Invective menaçante


(2)
Mt 18,7a (1) Au monde Lamentation
Mt 18,7b (1) A l’homme par qui arrivent les scandales Mise en garde ou faible
menace
Mt 23,13-28 Aux scribes et aux pharisiens Invective
(6)
Mt 23,29-36 Aux scribes et aux pharisiens Menace
(1)
Mt 24,19 (1) Aux enceintes et allaitantes Lamentation
Mt 26,24 (1) A cet homme par qui le F. de l’h. est livré Menace

Lc 6,24-26 (4) Aux personnes opposées aux «makaryoy» Menace


Lc 10,13-15 A Chorazin et Bethsaïda Lamentation
(2)
Lc 11,37-54 3 aux pharisiens et 3 aux scribes Invective
(6)
Lc 17,1b (1) A celui par qui arrivent les scandales Mise en garde ou faible
menace
Lc 21,23 (1) Aux enceintes et allaitantes Lamentation
Lc 22,22 (1) A cet homme par qui il est livré Menace

1Co 9,16 (1) A moi; «Ouai» est adjectif: cas unique Menace
Jude 11 (1) A eux (les hommes impies) Invective

Ap 8,13 (3) Aux habitants de la terre Menace


Usage rare de l’accusatif après «Ouai»
Ap 9,12 (2) «Ouai» est substantif féminin: cas unique; Usage particulier dans le sens
Ap 11,14 (2) sans destinataire! de malheur ou de catastrophe
Ap 12,12 (1) A la terre et à la mer Lamentation
Usage rare de l’accusatif après «Ouai»
Ap 18,10b (2) A la grande ville Lamentation
Ap 18,16 (2) A la grande ville Lamentation
Ap 18,19 (2) A la grande ville Lamentation

146
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

2. Dans Mt, lecture pragmatique des invectives au temple (Mt 23,13-36)

Dans ce qui suit, nous allons présenter la construction du lecteur 5 jusqu’au texte (Mt
23,13-36), appelée aussi le contexte de situation, et faire ensuite l’analyse de la stratégie
narrative et syntaxique démontrant une réécriture intelligible du texte, et à la fin, faire
l’analyse de la stratégie sémantique révélant la fonction des «Ouai» à un niveau historique
et actuel6. Ainsi, la pragmatique s’emploie à chaque étape de l’analyse 7, offrant au lecteur
une nouvelle vision de la réalité et interpellant son comportement moral.

2.1 La construction du lecteur de Mt 23,13-36

Mt 23,13-36 est l’apogée ou le point culminant vers lequel confluent principalement les
éléments constitutifs de la formule stéréotypée, répétée six fois au début des séquences
textuelles. Ces éléments sont à voir dans la narration précédente, comme étant les
«attentes» du lecteur auxquelles le texte (23,13-36) est en mesure de répondre. Les indices
les plus importants pour le lecteur se trouvent donc réunis dans la formule semblable à un
refrain «Malheur à vous scribes et pharisiens hypocrites». Ainsi, tout au long du récit
évangélique, le texte a construit un lecteur implicite capable de reconnaître le genre «Ouai»,
la «confrontation avec les scribes et les pharisiens», et la thématique de «l’hypocrisie»:
– Les premiers emplois de «Ouai» dans la narration matthéenne revêtent la fonction de
menaces de jugement si l’on ne se convertit pas (11,20-24) et celle de lamentation sur le sort
de ceux qui seront attirés par les scandales (18,7).
– La «confrontation» avec les pharisiens a vu le jour déjà avec le Baptiste (3,7-10), et les
scribes réunis entrent en scène comme critiquant Jésus conférant au paralytique le pardon
des péchés (9,1-8). Les controverses qui ont eu des thèmes variés et les prises de position
contre l’action salvifique de Dieu ont déclenché quelques invectives primordiales dans le
ministère galiléen: engeance de vipères (12,34) et génération mauvaise et adultère
(12,39.45; 16,4).
– Dans ses enseignements, Jésus a mis en garde contre «l’hypocrisie» et le fait de pratiquer
sa justice devant les hommes pour se faire remarquer. Et autour d’un sujet concernant la
tradition – le fait de manger sans se laver les mains – Jésus a prononcé pour la première fois
en face des scribes et des pharisiens l’invective «hypocrites!» (15,7).

–—————————
5
Cf. J.D. KINGSBURY, «Reflections on “The Reader” of Matthew’s Gospel», NTS 34
(1988) 442-460; J.-L. SKA, “Our Fathers Have Told Us”. Introduction to the Analysis of
Hebrew Narratives, SubBi 13, Roma 1990, 42-43.
6
Dans l’analyse de la stratégie narrative et syntaxique du texte appelée aussi analyse des
éléments de cohésion et de cohérence, ce qui nous importe n’est pas seulement ce qui est dit
ou comment il est dit (l’étude narrative), mais surtout ce qu’on veut dire avec ce qui est utilisé
(la pragmatique). Et dans l’analyse de la stratégie sémantique, il ne s’agit pas seulement de
savoir «qu’est-ce que cela veut dire?» (la sémantique) mais surtout «qu’est-ce que l’auteur a
voulu dire avec cela?» (la pragmatique).
7
Si autrefois, avec Charles Morris en 1938, la pragmatique constituait le troisième cadre
de recherche à côté de la syntaxique et de la sémantique, aujourd’hui cette ligne de
démarcation nette entre la pragmatique et les autres disciplines est à éliminer. Pour ceci, voir
l’apport du nouvel article sur l’ancien de M. GRILLI, «Evento comunicativo e interpretazione
di un testo biblico», Gr. 83 (2002) 655-678; «Autore e lettore. Il problema della comunica-
zione nell’ambito dell’esegesi biblica», Gr. 74 (1993) 447-459.
147
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

A ces trois éléments constituant le contexte de Mt 23,13-36 dans le ministère de Jésus en


Galilée, s’ajoutent les stimulations du «cadre» temporel et géographique du contexte proche
dans le ministère à Jérusalem. En effet, les traits, par lesquels le narrateur fixe un cadre,
comme le temps, le lieu, ou le contexte social, ne sont pas anodins mais d’une extrême
importance8. Entre Mt 21,23 et 24,1 le lecteur remarque que les codes9 spatio-temporels
s’arrêtent deux chapitres et demi, ce qui rend la vitesse du récit proche de zéro 10. Ainsi, le
cadre géographique et temporel donne un certain poids très particulier aux invectives
(23,13-36); il ne serait pas le même si elles auraient été dites ailleurs. Tout ceci advient en
effet dans une tension in crescendo, tenant son point de départ dans la question d’autorité à
laquelle Jésus expose à ses interlocuteurs trois paraboles suivies de trois discussions 11. Et
dans le grand silence apparu brusquement sur scène (22,46), il fait son réquisitoire (23,1),
après lequel il quitte le temple (24,1) pour ne plus y remettre les pieds.

2.2 Le potentiel pragmatique de Mt 23,13-36

Analyser le «potentiel pragmatique» présent dans le texte revient à détecter l’efficacité


des stratégies syntaxiques et sémantiques. Partant du principe qui dit que le texte est un
tissu linguistique codifié en vue d’être communiqué, notre rôle serait d’activer
l’intentionnalité de l’auteur en assumant un comportement cohérent avec ce qui est écrit.
Etudier la stratégie syntaxique des sept «Ouai» revient à définir les effets des éléments de
cohésion et de cohérence sur le lecteur. Les résultats de cette décodification du texte, formé
d’un ensemble de signes et structuré d’une manière intelligible, permettent de faire ensuite
une étude sémantique plus sûre et plus scientifique; en voici les résultats:
– La formule stéréotypée introduite par «Malheur à vous» permet de voir dans Mt 23,13-36
sept séquences textuelles, à l’intérieur desquelles se trouvent des expressions appellatives
jouant le rôle de scission.
– La répétition de certains termes caractéristiques permet de considérer les premiers six
«Ouai» comme liés en trois paires successives.
– La dernière séquence (23,29-36) constitue par sa grandeur un climax pour tout le texte.
L’utilisation de la première personne du singulier seulement deux fois dans le texte confère
aux derniers versets (23,34-36) la fonction privilégiée d’une deuxième sous-séquence à
l’intérieur du septième «Ouai» et d’une pointe ou d’un sommet à la série des sept «Ouai».
A un niveau sémantique, la dernière sous-séquence (23,34-36) a le ton de menaces à
cause de l’emploi des verbes au futur, mais les sept «Ouai» sont à considérer généralement
comme ayant la fonction d’invectives. Il s’agit d’un cri de douleur né de la compassion de
Jésus pour son peuple égaré à cause de ses méchants pasteurs; et comme en Ez 34,2,
l’invective naît ici aussi de l’amour et de l’anxiété à donner le salut. En effet, Jésus fait un
réquisitoire aux scribes et aux pharisiens en énumérant des attitudes et des faits concrets
–—————————
8
Cf. D. MARGUERAT, ed., Quand la Bible se raconte, Lire la Bible 134, Paris 2003, 27.
9
Cf. U. ECO, I limiti dell’interpretazione, Milano 1990, 268-269.
10
Ce ralentissement de vitesse dit au lecteur l’obligation de focaliser l’attention sur des
précisions et des détails qui, dans une vitesse plus grande, risqueraient de disparaître. La
notion de «vitesse» est expliquée par G. GENETTE, Figures, III, Paris 1972, 122-134. Par
vitesse, on comprend le rapport entre la durée de l’histoire (deux jours) et la longueur du texte
(actions, controverses, discours: mesurés en paroles).
11
Ceci l’a montré comme un redoutable controversiste. Cf. Ch. L’EPLATTENIER, «La
séquence matthéenne de Jésus au temple, Mt 21,10 – 24,2», ETR 53 (1978) 516.
148
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

négatifs dans leur «enseignement» et leur «halakha». Il a dénoncé leur péché en les
menaçant d’un jugement qui peut être encore évité par la conversion. Ceci signifie que Jésus
n’a ni maudi ni condamné ses destinataires mais il a constaté que s’il ne va pas y avoir de
conversion, les malheurs viendront. En effet, les dénonciations avaient les thèmes suivants:
fermeture du Royaume des cieux (23,13), stratégie missionnaire menant à la perdition
(23,15), jurement invalide (23,16-22), accomplir des lois secondaires et en négliger les plus
importants (23,23-24), et s’occuper du bien-être extérieur (23,25-26) tout en ayant un
intérieur impur (23,27-28). Disposées dans un crescendo dramatique, ces invectives
culminent dans ce qui est le plus ample et le plus violent (23,29-36): le meurtre des envoyés
de Dieu, proclamant ainsi que la mesure de l’iniquité est déjà comblée et que l’annonce du
châtiment est rendue explicite.
Tout ceci s’applique aux scribes et aux pharisiens, mais aussi à la génération de Jésus et
de Matthieu, et à la communauté ecclésiale à travers les siècles. C’est là l’apport de la
pragmatique qui voit, par exemple, à travers la fermeture du Royaume (23,13) par des clés
donnés à Pierre (16,19) l’idée d’une mauvaise responsabilité religieuse et ecclésiale de
laquelle le lecteur de tout temps est appelé à s’éloigner !
Cette page (Mt 23,13-36) est à considérer comme un miroir pour tout l’évangile de Mt,
car vers elle, convergent les diverses confrontations avec les chefs religieux juifs, et les
différents enseignements de Jésus durant son ministère public, spécialement le Sermon sur
la montagne (Mt 5 – 7). Par ses menaces du jugement, le texte prépare déjà le discours
eschatologique (24,31; 24,51; 25,28.30.41.46), et le vocabulaire de la persécution des
envoyés suscite déjà chez le lecteur l’attente de l’histoire de la passion et de la résurrection.
L’étude exégétique de Mt 23,13-36 fait émerger quelques points théologiques inhérents à
la narration matthéenne. Cet évangile destiné à une communauté judéo-chrétienne expose
des paroles sévères contre les chefs juifs! Comment à partir de ce texte pourrait-on donc
évaluer la christologie matthéenne et quelle est la figure modèle de l’Eglise et de ses
responsables voulue par Mt?

149
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

3. Synthèse théologique

Dans ce qui suit, nous allons détecter la visée théologique et herméneutique, vers
laquelle tend l’analyse exégétique de Mt 23,13-36, dans une réflexion touchant à la
christologie et à l’ecclésiologie de Mt, les deux éléments les plus importants de son évangile.

3.1 Le Christ matthéen n’est pas anti-juif!

Certains auteurs, en lisant de tels paragraphes (Mt 23,13-36), accusent l’évangile de Mt à


être anti-juif à cause de cette sévérité explicite du Christ matthéen 12. Cet anti-judaïsme a été
classé dans l’une ou l’autre des trois catégories suivantes: un anti-judaïsme «prophétique»,
vu comme une critique interne ressemblant aux prophéties bibliques dans leur espérance du
salut pour le peuple juif; un anti-judaïsme «judéo-chrétien», vu aussi comme une critique
interne mais l’on devrait remplacer les symboles juifs principaux, comme la Torah ou le
Temple, par la christologie de l’évangile; et un anti-judaïsme «paganisé», vu comme une cri-
tique externe qui supprime l’espérance du salut promis aux Juifs et remplace ces derniers
par le nouveau et le vrai Israël: l’Eglise. Notre lecture va stimuler une compréhension tout à
fait diverse; les raisons pour lesquelles l’évangile se présente comme «non» anti-juif sont les
suivantes:
– Une première raison regarde l’évangile lui-même de Mt reconnu universellement comme
étant l’évangile le plus juif, présentant Jésus comme le Messie d’Israël, ne voulant éliminer
aucune lettre de la Loi et des prophètes (5,17-18).
– Une deuxième raison est sociologique-historique: dans la société juive du premier siècle il
y avait beaucoup de sectes ou de mouvements religieux dont chacun s’auto-définissait par
sa lecture de la Torah et revendiquait pour soi l’héritage de la Loi et des prophètes 13. Un de
ces courants était la communauté de Mt voyant dans le Jésus de Nazareth le Messie attendu
accomplissant les Ecritures.
– Une troisième raison consiste à voir la sévérité de Jésus de Mt comme étant dans le
prolongement de la sévérité prophétique. En effet, la contradiction entre l’aspect de
l’humilité de Jésus et celui de la sévérité à l’intérieur de la même narration saute aux yeux.
C’est vrai que c’est seulement Mt qui parle de Jésus comme étant «doux et humble de
cœur» (11,29) et qu’il accomplit la prophétie d’Isaïe «…Il ne fera point de querelles…»
(12,19) mais ceci ne demeure qu’un seul aspect à compléter par celui de la Seigneurie et de
la Majesté du Jésus de Mt: étant Fils de Dieu, il est le seul interprète légitime de la Torah; il
–—————————
12
Cf. W. TRILLING, Das wahre Israel. Studien zur Theologie des Matthäus-Evangeliums,
EThSt 7, Leipzig 19752, 213 où il dit «Die Kirche ist das wahre Israel». Pour U. Luz, le
dialogue entre la communauté de Mt et la synagogue a échoué: la rupture est définitive; ainsi
la communauté chrétienne décida d’abandonner l’hébraïsme et de ne prêcher que les païens
(Allez à toutes les nations (28,19) signifie Allez chez les païens), cf. U. LUZ, «L’Antigiudais-
mo nel vangelo di Matteo come problema storico e teologico», Gr. 74 (1993) 432-433; ID.,
Das Evangelium nach Matthäus, III, EKK, Zürich 1997, 395-396. Vor aussi A.-J. LEVINE,
«Anti-Judaism and the Gospel of Matthew», in W.R. FARMER, ed., Anti-Judaism and the Gos-
pels, Harrisburg PA 1999, 9-36; D. FLUSSER, Judaism and the Origins of Christianity,
Jerusalem 1988, 552-587.
13
Cf. spécialement les travaux de D. MARGUERAT, «Quand Jésus fait le procès des Juifs.
Matthieu 23 et l’anti-judaïsme», 101-125; ID., «Le Nouveau Testament est-il anti-juif?
L’exemple de Matthieu et du livre des Actes», RTL 26 (1995) 145-164.
150
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

essaye de prévenir les siens de la damnation surtout quand ils continuent à aller dans le
chemin du refus. A l’instar des prophètes de l’ancienne alliance il proclame à la fois un
message de jugement et de salut (Jr 31,28; Is 60,10), complétant ainsi la structure formelle
des «Ouai», dont ils sont les principaux utilisateurs, par un contenu adéquat.

3.2 Une ecclésiologie de contraste

Le texte de Mt 23,13-36 est fondamental pour le thème ecclésiologique de l’évangile:


L’Eglise est appelée à faire le contraire de ce qui y est déclaré. En effet, bien que les versets
13-36 aient comme destinataires les scribes et les pharisiens, ceci n’épargne pas l’Eglise à
écouter un tel discours, surtout car elle est présente à la situation (23,1). Le contraste ou
l’opposition est à voir dans les valeurs négatives des chefs juifs dont l’Eglise est appelée à
vivre le contraire. Le contraste est à voir aussi à l’intérieur même de l’Eglise composée de
bon et de mauvais (13,48). Dans le cas où elle ne produit pas les fruits requis du Royaume,
elle recevra, elle aussi, le jugement (22,11-14).
Ainsi, Israël ne serait pas à être vu comme un faux modèle de l’Eglise, car tous les deux
reçoivent, à travers Mt 23,13-36, un avertissement les faisant redécouvrir le noyau essentiel
des commandements dans le contexte de la volonté originelle de Dieu. En effet, les in-
vectives de Mt 23 ont à la fois une fonction polémique et parénétique. Le contraire de ce qui
est dénoncé par Jésus constitue le fondement du comportement humain et chrétien à
travers les siècles.
Par conséquent, quel que soit le lecteur de ce texte, ayant la charge d’une certaine
responsabilité ou non, l’apport pragmatique du texte le sollicite à s’éloigner de l’hypocrisie,
de la cécité et des premières places:
– Jésus étant le modèle de tout disciple du Royaume, ce dernier est appelé donc de
s’éloigner de toute hypocrisie et dichotomie, et de vivre dans la vérité devant Dieu (23,25-
28).
– Imiter Jésus consiste ensuite à percevoir ce qui est original et fondamental dans la Loi, en
s’éloignant de toute «cécité» et en ne choisissant pas seulement ce qui plaît en
l’interprétant subjectivement à sa manière (23,16-24).
– Si Jésus a vécu la position du Serviteur, il revient donc à ses disciples de chercher toujours
la diaconia de la communion fraternelle, en s’éloignant des premières places (23,8-12).

151
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

Conclusion

A un niveau méthodologique, nous avons supposé, dans ce travail, que le lecteur de Mt


ne connaisse ni l’évangile de Mc ni celui de Lc. En effet, postuler le fait que Mc ou Q aient
été sources principales pour Mt n’implique pas que le lecteur soit inclus dans de telles
connaissances présupposées de la narration. En plus, Mt ne contient pas d’indices suggérant
que son lecteur doive connaître de telles sources. Par contre, il renferme beaucoup
d’éléments à travers lesquels ce dernier se présente comme un projet narratif construit par
le texte. Par exemple, en ce qui concerne l’Ancien Testament, qui est une autre source bien
explicite dans la narration, il ne peut pas être méconnu du lecteur matthéen car il est
suggéré par les diverses citations et allusions, imposant une autorité, une fois mentionnées.
Quant au thème de la sévérité de Jésus dans les évangiles qui est un peu choquant pour
celui qui est habitué à considérer Dieu seulement dans l’aspect de la miséricorde, de la
bonté et de la docilité, l’étude des sept «Ouai» dans Mt 23,13-36 a voulu présenter l’aspect
positif d’une telle sévérité qui ne condamne pas les destinataires dans un feu éternel mais
qui leur présente un dernier cri prophétique de «conseils» avant que ce ne soit trop tard,
stimulant l’urgence de la conversion. Ainsi, nous avons pris en considération la portée à la
fois polémique et parénétique de tels dits, tout en voyant que l’Eglise se situe dans le
prolongement d’Israël, avec un retour à la pensée originale de la Loi comme elle est
interprétée définitivement par Jésus.
Enfin nous signalons que cette lecture dans le processus communicatif de la Parole de
Dieu, qui est toujours vivante et efficace (He 4,12), ne se présente que dans la direction du
fait de laisser parler le texte, et non dans celle de mettre la main sur14, afin qu’il reflète ses
propres appels pragmatiques et non ceux de notre subjectivité.

–—————————
14
«Dès lors, comprendre, c’est se comprendre devant le texte. Non point imposer au texte
sa propre capacité finie de comprendre, mais s’exposer au texte et recevoir de lui un soi plus
vaste», P. RICŒUR, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Paris 1986, 116-117.
152
LECTURE PRAGMATIQUE DE MT 23,13-36 CADERNOS DE SION

Sigles et abréviations utilisés dans les notes


CEv Cahiers Evangile
EKK Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament
EThSt Erfurter Theologische Studien
ETR Etudes Théologiques et Religieuses
Gr. Gregorianum
MoBi Le Monde de la Bible
NTS New Testament Studies
RTL Revue Théologique de Louvain
SubBi Subsidia Biblica
TGr.T Tesi Gregoriana. Serie Teologia.
ThGl Theologie und Glaube

153
ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO

Realizada pelo Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento

Padre Donizete Luiz Ribeiro relata, na entrevista, pontos de sua trajetória pessoal,
religiosa e acadêmica, fala do carisma da Congregação dos Religiosos de Sion, do diálogo
judeu-cristão e das atividades assumidas pelos religiosos em relação à educação básica
e àquelas desenvolvidas no Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCDEJ) de São Paulo.

1. O senhor poderia contar um pouco sobre sua trajetória religiosa e acadêmica e


as contribuições da Congregação de Nossa Senhora de Sion para o diálogo
judeu-cristão?

Eu venho de Bueno Brandão, sul de Minas Gerais e entrei jovem na Congregação


dos Religiosos de Sion. Após minha licenciatura em Filosofia em São Paulo, fui enviado
a França e Israel para os estudos de Teologia, de línguas bíblicas e de formação ao
carisma de Sion. Passei 18 anos entre França e Israel, tornando-me um “produto” da
escola francesa de formação, visto que fiz todo o percurso estudantil, da licença em
Teologia ao Doutoramento, dedicando-me à pesquisa e às atividades docentes no
Instituto Católico de Paris e no Collège des Bernardins. Escrevi uma tese de doutorado
sobre o pano de fundo bíblico e judaico das controversas sobre o Shabbat nos
Evangelhos sinóticos e acabei me aprofundando em história, línguas bíblicas e tradição
rabínica.
Descobri ao mesmo tempo com alegria e surpresa a contribuição da Congregação
de Sion à Igreja e ao diálogo judaico-cristão antes mesmo do concílio Vaticano II. A figura
de Paul Demann, padre da Congregação de Sion, me marcou por suas pesquisas e seus
escritos. Ele escreveu Os judeus: fé e destino e fez uma imensa pesquisa, nos anos de
1950, portanto antes do Concílio, para mostrar a imagem negativa do “povo judeu”
veiculada nos manuais de catequese e no ensino da Igreja Católica. Juntamente com o
historiador judeu, Jules Isaac, Paul Demann trabalhou para combater o antissemitismo,
para ensinar a estima do povo judeu e desenvolver dentro da Igreja a noção de

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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

“ecumenismo”, estendendo-a até ao povo da Bíblia e da Tradição judaica. Esta foi, no


meu entendimento, a maior contribuição de Sion à Igreja, antes do Concílio Vaticano II.
Com o advento do Concílio (1963-1965), uma revolução coperniciana se operou: a
Igreja foi capaz de rever sua teologia, sua história e abrir as janelas do Vaticano para
acolher os novos tempos de fraternidade, de ecumenismo e de aggiornamento de sua
vida religiosa e litúrgica. Neste contexto conciliar, veio à luz a Declaração Nostra Aetate
que, no seu parágrafo nº 4, perscruta a própria Igreja como Mistério de Salvação, em
acordo com a Constituição dogmática Lumen Gentium, e afirma seus vínculos profundos,
intrínsecos com o Povo da Bíblia, entendendo que a Única Aliança de Deus com seu Povo
é irrevogável. Assim sendo, a Igreja, na declaração para nosso tempo (Nostra Aetate),
afirma a importância do “patrimônio comum” aos judeus e cristãos e busca incentivar e
fomentar o diálogo fraterno e os estudos bíblicos e teológicos entre judeus e cristãos.
Nossa Congregação de Sion se inscreve, hoje, de maneira profunda e irreversível, nesta
orientação fundamental da Igreja Católica.

2. Qual a missão dos fundadores da Congregação e como ela se adapta a esses


novos tempos da Igreja?

Os fundadores dos religiosos e religiosas de Sion, os irmãos Theodoro e Afonso


Ratisbonne, sendo de origem judia, trouxeram para a Igreja uma dupla preocupação: a
educação do humano e o cuidado de seu povo, o povo judeu. Neste sentido, Sion se
desenvolveu por meio de seus inúmeros colégios e traz ao mesmo tempo a “meditação
constante das Escrituras iluminada pela Tradição de Israel e da Igreja” como o elemento
motor de sua vida e de sua prática. Com a recepção pela Igreja da Declaração Nostra
Aetate e seus documentos ulteriores, o carisma e/ou a missão de Sion se tornou mais
límpida para seus membros e para toda a Igreja: aprofundar as raízes judaicas de nossa
fé cristã por intermédio das Escrituras e fomentar na Igreja o amor pelo povo judeu,
partilhando o “patrimônio comum” com apreço e grande interesse pela Tradição de
Israel e da Igreja.
Tudo isto, no campo dos estudos acadêmicos e das pesquisas, abre-se para
inúmeras possibilidades e eixos de pesquisas: qual a imagem do povo judeu hoje? Como
a Igreja passa do desprezo ao apreço do povo de Israel? Como os Testamentos (Antigo

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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

e Novo) se encontram, se respondem e se articulam mutuamente? A existência do povo


judeu hoje constitui uma riqueza e um desafio para a fé cristã? A Antropologia judaico-
cristã tem ainda alguma coisa a dizer para o nosso mundo em crise antropológica?

3. Gostaria que o senhor comentasse sobre o papel de sua Congregação para a


educação brasileira, refletido nos colégios de educação básica e no Centro
Cristão de Estudos Judaicos.

Começando pelo nível superior da educação, algumas das questões e temas que
levantei acima ilustram bem a complexidade das coisas e a contribuição de Sion por
meio dos estudos e pesquisas de seus alunos nos Centros de Estudos, no Brasil, como
no exterior. A Igreja assume seriamente a herança que ela recebeu do povo judeu e
como ela devemos tirar as consequências para nossa vida e ação cristãs.
No campo da educação básica, os colégios de Sion, da educação infantil às portas
das universidades, oferecem uma educação humana integral, formando os jovens para
a vida, para o diálogo com o Outro e com os outros. Sabemos que a educação sendo
integral respeita e promove o humano, combate do interior toda de forma de exclusão
e ajuda cada pessoa a ser mais “gente”, mais humana a serviço dos outros e da
construção da cidadania.
Que todo esse grande patrimônio de Sion possa se desenvolver ainda mais em
nossos colégios e Centros de Estudos. Assim, estaremos firmes em Sion, como dizemos,
citando Sirácida 24, 10: In Sion firmata sum.

4. Quando foi que a Congregação instituiu o CCDEJ e como ele se legitimou como
um espaço de pesquisa teológica? Quais as atividades desenvolvidas no CCDEJ
e como elas atendem ao carisma da Congregação?

Fortalecida pela sua experiência na França e em Israel, a Congregação, há doze


anos, iniciou em São Paulo de forma acadêmica seu Centro Cristão de Estudos Judaicos.
Trata-se de um centro de pesquisas onde cristãos, acompanhados por professores e
especialistas cristãos e judeus, desenvolvem estudos acadêmicos na área de Teologia e
outras áreas afins (História, Sociologia, Arqueologia, Educação, etc.) e produzem livros

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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

e pesquisas como resultantes desta caminhada acadêmica. Essa formação acadêmica,


em suas diferentes vertentes, tais como História, Teologia e Cultura judaico-cristã, leva
a pessoa inscrita a aprofundar o conhecimento dessas áreas, a produzir uma pesquisa
pessoal e ao mesmo tempo a sistematizar um pouco mais o conteúdo daquilo que ela
vive na sua experiência cristã, fundamentando-o na Tradição de Israel e da Igreja.
Assim sendo, estudos, pesquisas e releituras de sua experiência existencial e
social, à luz da grande Tradição judaico-cristã, conduzem cada candidato a se aprofundar
em um dos quatros eixos ou atividades acadêmicas propostas pelo CCDEJ e adquirir
assim a formação acadêmica por ele buscada e preparada pela Congregação do Sion
mediante a competência e a dedicação de seus professores e pesquisadores.
Os eixos ou atividades acadêmicas que o CCDEJ disponibiliza, em nível de pós lato
sensu e extensão, são por enquanto os seguintes: a) Historia, Cultura e Teologia
judaico-cristã; b) Ciências Religiosas; c) Mariologia e os diversos rostos de Maria na
Igreja; d) Sagradas Escrituras como alma da Teologia judaico-cristã.

5. A Congregação dos religiosos de Nossa Senhora de Sion tem espaços de


pesquisas como o CCDEJ em outros países?

Sim. Na verdade, esta experiência docente iniciou-se nos anos 70 em Jerusalém,


que é coração do carisma de Sion. Desenvolveu-se em Israel o Instituto São Pedro de
Sion Ratisbonne que paulatinamente foi passando de escola secundária e profissional,
dita “Ars et Métiers”, para um espaço cristão de estudos e contatos com a Tradição, o
país e a Terra de Israel. Assim nasceu o Centro Ratisbonne e se desenvolveu, em seguida,
em Lyon, Paris, Madrid e no Brasil. Sempre como Centro Cristão de Estudos Judaicos,
visa à iniciação, ao desenvolvimento e ao aprofundamento dos estudos bíblicos e
teológicos em contato com a Tradição e os mestres judeus e cristãos, para melhor
enraizar a fé cristã da Bíblia, dos patriarcas, da história de Israel e da Igreja, para melhor
conhecer o Jesus judeu, filho de David e de Abraão e que nos salva e nos introduz como
filhos adotivos na Única Aliança de Deus.
Atualmente, o ISPSR – Instituto São Pedro de Sion Ratisbonne – Bat Kol, em
Jerusalém, possui diversos cursos e propostas de formação para pessoas e cristãos
interessados pela Bíblia pelo aprofundamento nas Escrituras à luz da Tradição de Israel

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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

e em contato com os lugares ditos santos, ou melhor, com os Lugares do Santo


(hebraico: eretz ha-kodesh), Bendito seja Ele que nos legou sua Palavra de Vida e na qual
descobrimos nossa vocação e missão na Igreja e no mundo.
Em Madrid e Paris, há também propostas de formação nos CCDEJ, sempre
almejando a melhor preparação e formação de nossos cristãos que à luz de Nostra
Aetate estão sedentos de aprofundar as raízes judaicas de nossa fé cristã e de renovar
sua vida, “meditando as Escrituras” em contato com a Tradição de Israel e da Igreja.

6. Nos últimos anos, o senhor assumiu o cargo de superior geral da Congregação


de Nossa Senhora de Sion, em meio às dificuldades do mundo contemporâneo,
especificamente, no diálogo inter-religioso. Embora o documento Nostra
Aetate seja bem realista, mas aprovado lá em 1965, o senhor acha que ele é
ainda atual? A Nostra Aetate renova a perspectiva da Igreja Católica sobre a
religião judaica?

A pedido da Congregação que me elegeu para a função de Superior Geral, deixei


temporariamente grande parte das atividades docentes que desenvolvia para me
ocupar da Congregação, do desenvolvimento de seus religiosos e de seu apostolado,
buscando superar as dificuldades e ser uma presença de Sion em consonância com seu
carisma e vocação na Igreja. Em sendo assim, a bússola de nossa vida e do diálogo
católico-judaico permanece sendo o documento Nostra Aetate e suas orientações
ulteriores. Isto está muito claro no livro que publicamos por ocasião do Jubileu de ouro
do diálogo católico-judaico e que tem o seguinte subtítulo: primeiros frutos e novos
desafios. De fato, 55 anos após esse importante documento da Igreja, Nostra Aetate já
produziu inúmeros frutos de diálogo e de reconhecimento do patrimônio comum aos
judeus e aos cristãos. Mas são apenas os primeiros frutos dessa recepção eclesial. Há
ainda inúmeros desafios a serem enfrentados. Desafios ligados ao mundo dos estudos
bíblicos e teológicos. Eis apenas alguns exemplos: a questão da Única Aliança de Deus;
a significação do Messianismo de Jesus para cristãos e judeus; a única mediação de Jesus
Cristo e a missão da Igreja e da Sinagoga; as exigências da ética judaico-cristã para um
mundo em crise de valores e sedento de felicidade. Alguns desses temas foram apenas
apontados pelo último documento da Pontifícia Comissão para a Unidade dos Cristãos

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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

e o Diálogo como Judaísmo: Os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis (Rm


11,29) . (Reflexões sobre questões teológicas atinentes às relações católico-judaicas
por ocasião do 50º aniversário de Nostra Aetate (n 4). Edições CNBB (Doc. da Igreja
29): Brasília, 2016.).
Portanto, mesmo Nostra Aetate tendo renovado a perspectiva do diálogo
católico-judaico e já produzidos alguns frutos, resta ainda grandes desafios para
o diálogo religioso da Igreja com o Judaísmo. Inúmeros temas e questões ainda
não foram abordados e as próximas décadas serão frutuosas para judeus e cristãos
que, estando no mesmo barco e cada vez mais marginais, isto é, deixados às
margens, serão convocados e provocados a revisitar sua Tradição e a avançar para
testemunhar juntos e oferecer ao mundo em crise antropológica e social uma visão
crível e pertinente de sua fé.
7. O que a Congregação e o CCDEJ pretende, ao lançar a Revista Cadernos de Sion?

A revista “Cadernos de Sion” nasce inscrevendo-se em uma longa tradição de Sion


que começou com a “Questão de Israel” e depois os “Cahiers sioniens” na França. Ambos
precederam o Concílio Vaticano II e contribuíram, à sua maneira, para a mudança de
mentalidade na Igreja e no mundo europeu. Com os “Cahiers Ratisbonne” e doravante
com esta Revista Cadernos de Sion, esperamos que a equipe do CCDEJ, juntamente com
os professores, pesquisadores e outros acadêmicos de instituições nacionais e
estrangeiras, levem à cabo, à luz de Nostra Aetate e recentes documentos da Igreja, a
missão eclesial de Sion. Esta consiste em fomentar a estima mútua entre judeus e
cristãos, em aprofundar as raízes judaicas da fé cristã e em responder aos novos desafios
lançados a Igreja e a Israel para demonstrar que a ética cristã-judaica, iluminada pela
Tradição oral e escrita de Israel e da Igreja, ainda constitui a essência e o horizonte de
uma vida longa e feliz à qual todo ser humano de boa vontade aspira.

Dados dos autores

Pe. Donizete Luiz Ribeiro, NDS, Doutor em Teologia e Estudos Judaicos pelo Instituto
Católico de Paris. Professor do CCDEJ de São Paulo e Professor convidado no CCDEJ
da Faculdade Notre-Dame de Paris. Dentre seus escritos, destacam-se Convidados
ao banquete nupcial. Uma leitura de Parábolas nos evangelhos e na tradição Judaica.
São Paulo: Fons Sapientiae/CCDEJ, 2015; e “As obras de Misericórdia como Imitatio
Dei.
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ENTREVISTA COM O PROF. DR. PADRE DONIZETE LUIZ RIBEIRO CADERNOS DE SION

As fontes judaicas e a resposta ético-escatológica em Mt 25”, in Nascimento, J.V


(org.), Misericórdia e vida acadêmica. São Paulo: EDUC, 2016.

Lattes ID
http://lattes.cnpq.br/0636122199551695 Entrevistador:

Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS

José Benedito de Campos

Graduado em Letras e suas literaturas pela FAFI de Itajubá, Minas Gerais. Graduado em
Teologia pela FACAPA (Faculdade Católica de Pouso Alegre). Cursos de Estudos Judaicos no
Ratisbonne Centre.

HADDAD, Rabino Philippe. JESUS FALA COM ISRAEL: uma leitura judaica de parábolas de
Jesus. São Paulo: CCEJ; Fons Sapientiae, 2015. 152 p., 160 x 230mm – ISBN 978-85-63042-21-
7

Esta recensão se ocupa da segunda obra da “Coleção Judaísmo e Cristianismo” do


Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCEJ), mantido pelos Religiosos de Nossa Senhora de Sion
(NDS) de São Paulo-SP, publicada pelas Edições Fons Sapientiae da Distribuidora Loyola. A
primeira se intitula “O Ciclo de Leituras da Torah na Sinagoga, de autoria de GROSS, Fernando.
Trata-se de uma coleção que tem como principal objetivo “publicar textos originais e
traduções, a fim de cultivar o conhecimento mútuo entre judeus e cristãos, valorizando-se o
enraizamento judaico das Sagradas Escrituras e o diálogo entre eles, a partir de seu
‘patrimônio espiritual comum’” (p. 5).
É uma obra composta de apenas dois capítulos e prefaciada pelo Rabino Ruben
Sternschein, da Congregação Israelita Paulista (CIP). Expressa, por fim Rabino Sternschein ao
autor, Rabino Philippe Haddad e aos editores em português do Centro Cristão de Estudos
Judaicos, a admiração pelos diálogos alcançados e a gratidão pelo presente que implica se
sentir, após este livro, mais capacitado e motivado a viver uma vida de encontro verdadeiro
que se enriquece e revela constantemente ‘com’ e ‘no outro’ (p. 15).
Em sua Introdução tece o Autor comentários sobre “Jesus, filho do seu povo”, pois
“nesses três milênios passados tudo o que foi dito, contado, escrito, pintado, cantado, filmado
sobre Jesus foi o de um judeu impregnado de Tradição de Israel”. Isto porque “a maior parte
das obras, judaicas ou cristãs, que investigaram os Evangelhos na sua dimensão histórica,
mostrou em que o gestual, as palavras, até os subentendidos de Jesus se inscrevem na
coerência do judaísmo”. p. 19).
Elenca a seguir uma série de atos praticados por Jesus desde o seu nascimento até a
sua morte, que comprovam ter Ele praticado a Tradição judaica (cof. p.19-20). “Sem dúvida, a

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

Torah corria em suas veias, no seu sangue, sobre os seus lábios. Jamais pensou Jesus em anular
a Torah, reformá-la, substituí-la. Para Jesus, a reforma devia ser aquela do coração, não aquela
da Lei (Mt 5,18). Ele queria modificar o homem no interior, ensinando-lhe o caráter ilusório
dos bens materiais e da vaidade humana” (p. 21). Ademais, prossegue “Impregnado desta
tradição de Israel, Jesus preconizou o ‫ חידוש‬- hidush, a “renovação do sentido”, fiel à Tradição
de seus pais” (p. 22).
Afirma o Autor: “ser esta uma obra de amizade para com minhas irmãs e meus irmãos
cristãos, obra benevolente com relação a Jesus. Não o Jesus teológico, não o Jesus origem da
discórdia e frequentemente o pretexto do ódio” (p. 28). Ressalta que, “pessoalmente, se aterá
antes ao que Jesus disse do que ao que se diz sobre ele; estará atento antes mais ao que Jesus
fez do que ao que se fez dele” (p. 29).
Finalmente, espera que esta modesta obra possa enriquecer o cristão, assim como lhe
permitiu a compreender melhor os Evangelhos, pois foi o espírito de um autêntico diálogo
que o guiou (p. 31).
No capítulo primeiro, antes de discorrer e analisar cada uma das cinco parábolas no
capítulo segundo, apresenta o Autor uma interessante e didática explanação, que introduz o
leitor nos Estudos Judaicos. Seu objetivo é fazer com que ele compreenda melhor as parábolas
de Jesus. Destarte, discorre o Autor com maestria, experiência de Rabino, em uma linguagem
simples, direta, clara e ilustrada com muitas citações bíblicas e talmúdicas sempre acrescidas
de seus ricos e interessantes comentários.
Ressalta ainda, com sua experiência pessoal, o estado atual das relações entre judeus e
cristãos e a grande contribuição propiciada pelo Concílio Vaticano II para um diálogo regular
e confiança entre os crentes que estão dispostos a compartilhar em uma escuta mútua e
respeitar o que eles sugerem lendo e discutindo as fontes de seus vários textos da tradição
judaico-cristã. Afirma também que este livro é fruto de vários anos de estudos conjuntos,
debates e palestras públicas, de modom particular na sinagoga de Ulis (Essonne), onde ele é
Rabino.
Apresenta ainda o Autor detalhes sobre as principais etapas da história do judaísmo e
sua prática de interpretação de textos bíblicos, atribuindo grande importância à tradição oral
e o debate (p. 41).
No Capítulo II, intitulado As Parábolas de Jesus, discorre o autor sobre cinco parábolas:
1) As Parábolas da Misericórdia de Lc 15,1-32 (A ovelha reencontrada, A dracma reencontrada

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

e O filho reencontrado pelo pai pródigo de misericórdia); 2) As duas casas de Mt 7,15-27; 3) O


bom Samaritano de Lc 10,25-37; 4) O semeador de Mc 4,1-20; e 5) A figueira de Mc 13,28-33.
Ao analisar e comentar sobre cada uma dessas cinco parábolas do Evangelho, faz o Autor
uso constante da Bíblia hebraica, cita abundantemente a literatura rabínica, tece comentários
sobre os rituais litúrgicos, e mostra como a palavra original de Jesus deixa transparecer uma
tradição viva assaz preocupada com a atualização e a renovação – ‫חידוש – עדכון‬. Ademais,
aborda o Autor sobre diversos temas, como a criação (referindo-se a Gn 1), a Torah, o tempo
e o messianismo, o arrependimento, a sabedoria e a ética.
Ao situar essas três parábolas, afirma ser “a parábola do filho pródigo a mais conhecida
e hodiernamente é denominada pelos homiliastas de parábola do pai pródigo de
misericórdia”. A seguir afirma que “ela se apresenta no início de um colar de três perolas,
denominadas “parábolas da Misericórdia”, três parábolas, em 32 versículos, em que o
numeral 32 corresponde à palavra hebraica ‫( לב‬leb), coração e expressa uma temática que
convoca o coração do leitor” (p. 49).
Discorre a seguir sobre A conversão, que “se trata do que a tradição denomina de ‫תשובה‬
- teshuvah do radical ‫ שוב‬- shuv, ‘voltar’, termo que leva essencialmente a um retorno para
Deus”. Elenca a seguir vários ensinamentos rabínicos sobre a conversão ‒ teshuvah (p. 55).
Para o Autor “a conversão seria entendida como um movimento de Deus para o homem
(antropocentrismo) e não o homem para Deus (teocentrismo)”. Assim, as duas primeiras
parábolas destacariam o primeiro movimento, a terceira o segundo, sem que, porém, o
movimento de um não oculte o movimento do outro (p. 60)
Propõe o Autor em sua análise da parábola d’O filho pródigo um possível final para essa
parábola: “O pai abre amplamente os seus braços e convida os seus dois filhos a se
aproximarem. Os dois irmãos se olham. Seu olhar revela a suspeita. Eles quase se tornaram
estranhos entre si. O pai lhes sorri. Este sorriso é oferecido como reconforto, faz com que
todas as incertezas sejam eliminadas. Os dois irmãos esboçam timidamente um sorriso. Eles
se encontram apertados contra o peito daquele que lhes havia dado a vida. Ambos ouvem
este murmúrio: Eu amo todos os dois” (p. 75)
Na parábola das Duas casas, cita inicialmente Mt 7,15-27, que relata sobre os falsos
profetas e os verdadeiros discípulos (p. 76).
Afirma a seguir o Autor que o Talmude Babilônico, Berakot 47a, ensina que estudo da
Torah (tradição escrita) e da Mishná (tradição oral) sem a orientação dos mestres “deve ser

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

considerado como um ignorante”. Isto porque “O sábio ensina e comenta, mas ajuda também
a agir conforme a palavra divina”. Jesus em seus ensinamentos destaca essa prática judaica
de que “ouvir Suas palavras, mas não praticá-las é um a obra estéril, isso se assemelha a uma
casa sem fundamentos, a uma casa sobre a areia. Mas praticá-las é voltar a plantar as
fundações sólidas sobre uma rocha ‫( ̶ תצוּﬧ‬tsur) ̶ que redireciona sempre à firmeza, à
permanência e então a Deus, pois o Eterno é o “rochedo da libertação (p. 93).
Na parábola do Bom Samaritano, apresenta o Autor sucinto conhecimento histórico
sobre os Samaritanos e qual o seu relacionamento com os Judeus da época do segundo
Templo. Discorre a seguir sobre Cohen e Levi, sobre as funções e a escolha desses dois
personagens importantes na sociedade hebraica. Informa ainda o autor que “os deveres
específicos do Cohen em relação a Levi, pois aos ‫ כהנים‬- cohanim cabia o dever de purificar os
israelitas que se tornavam impuros segundo a legislação do Levíticos” (p. 102).
Destarte, ao findar sua análise sobre esta parábola mostra o Autor “que Jesus realiza
uma verdadeira revolução de consciências, um despertar para responsabilidade. Com essa
parábola Jesus inova – ‫ – חידוש‬hidush, pois a questão não é mais de saber “quem é meu
próximo”, mas em saber “tu te consideras como próximo do outro?” e principalmente se este
outro está sofrendo. Destarte, aprendemos através desta parábola que não podemos
selecionar os nossos amigos, nossos próximos, mas procurarmos ser nós mesmos o ponto de
partida da fraternidade e do amor” (p. 115).
Na parábola do Semeador, assinala o Autor, dentre outras coisas, que “Ao discípulo não
basta receber passivamente o ensinamento, mas precisa trabalhar, segundo seu nível, à sua
medida, a palavra do mestre. Cada homem digere o alimento que absorve, o mesmo ocorre
para o espírito e o coração que devem acolher o ensinamento” (p. 117). De igual modo, afirma
que “Jesus ensina à margem do lago de Genesaré em um barco a fim de convidar aqueles que
o escutam a avançar nas águas da Torah, a não permanecer tímidos sobre a margem das
duvidas. Jesus quis, através desse deslocamento, obrigar o ouvinte a modificar o seu olhar
sobre o mundo. Nossos espíritos se fecham sobre as nossas verdades ligadas à nossa
educação, ao nosso espaço” (p. 120).
A seguir mostra que “Jesus oferece aos seus discípulos a chave da parábola: O que é
semeado é a palavra, a palavra divina” (p. 124)
No que se refere à Estrutura da parábola do semeador, apresenta o autor um quadro
esquemático dessa parábola e sua interpretação feita por Jesus através em quatro níveis (a

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

terra, a consequência e o sentido) em que os grãos são lançados: à beira do caminho, em terra
pedregosa, entre espinhos e em terra boa (p. 127). De acordo com um trecho da Mishna Avot
(5,15) aqueles quatro níveis acima citados correspondem às quatro atitudes que existem entre
os estudantes: “os estudantes esponjas, que absorvem tudo, bons e maus raciocínios;
estudantes peneiras, que filtram o melhor e rejeitam os resíduos, pois o filtro guarda a borra
e deixa passar o vinho; e por último os estudantes funis, que recebem de um lado e derramam
do outro” (p. 128).
Apresenta por último o Autor as quatro escolhas propostas por Jesus: 1) Ser uma beira
de terreno; 2) Ser um terreno cheio de pedras; 3) Ser um terreno espinhento; e 4) Tornar-se
uma terra boa (pp. 128-132).
Na análise da Parábola da Figueira, situa o Autor esta parábola ao aproximar-se da
Páscoa – Pessah – ‫פסח‬, a festa dos pães ázimos, as ‫ חג המצות‬hag hamatsot, a festa do
nascimento do povo de Israel (p. 133). Essa parábola “fala de sinais, de paciência, da vinda do
filho do homem”. Ela implica uma visão da História. Ela convida a pensar no começo e no fim
(p. 134).
Afirma a seguir o Autor, que “o primeiro ensinamento da Torah é de ordem teológica:
Deus é o Criador do mundo. Existe um começo no tempo e no espaço. O Deus de antes a
criação, o Deus a-histórico nós não o conhecemos, jamais podemos conhecê-lo. Mais: este
Deus a-histórico, criando tempo e o espaço, tornou-se um Deus da História, um Deus na
História” (p. 135).
O que nós podemos notar é que o mundo não se fez num dia”. Destarte, “Deus confia
a Sua obra ao Homem, ele entra no Seu ‫ – שבת‬shabat – descanso, repouso ,não num repouso
letárgico, mas num tempo contido. O Shabat de Deus significa que os homens dispõem de
uma margem de liberdade para manter a ordem divina ou engendrar a desordem. Os anjos
não possuem esta liberdade, os animais também. O tempo da História humana corresponde
ao Shabat de Deus. Deus repousa... sobre o Homem” (p. 136).
A seguir ao abordar sobre a História em três tempos, mostra que segundo o TB
Sanhedrin 97a, “o profeta Elias ensinava que o mundo duraria 6.000 anos, sendo 2000 anos
de ‫ תוהוּ ובהוּ‬- tohu vbohu - sem forma e vazia -2000 anos de Torah e 2000 anos para os dias do
Messias. Rashi assim interpreta esta passagem talmúdica: a) 2000 anos de tohu: porque a
Torah ainda não havia sido revelada, o mundo parecia ao tohu.; b) 2000 anos de Torah: os dois
milênios se estendem desde Abraão até os dias do Messias; c) 2000 mil anos do Messias: Após

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

os dois milênios de Torah é possível que o Messias venha, que o reino ímpio (Roma) despareça
e que termine a opressão de Israel” (p. 139). Embora esse tempo messiânico se situe ainda
‫ בעולם הזה‬- baolam haze - neste mundo, em que a humanidade possa chegar a um nível de
sabedoria que sem conflitos (as espadas serão transformadas em relhas (Is 2,4), a economia
militar transformada em economia de partilha). Assim, o reino de Deus é proclamado na terra,
os homens se reconhecerão fraternalmente” (p.141). De igual modo, afirma que “a
ressurreição dos mortos faz a transição com o ‫ – עולם הבא‬o olam haba = o mundo vindouro,
que corresponde ao oitavo dia, embora segundo Is 64,3 “nenhum olho o viu, exceto Deus” (p.
141).
Assevera o autor que sobre o Messias, conforme um trecho talmúdico sobre a vinda do
Messias (TB Sanedrin 98) e ainda o Sl 95,7 e de Is 60,22, não importa quando o Messias virá.
O que importa é que ele virá como um Messias sofredor de maneira não triunfal. Mas virá
somente “se vós escutardes a voz de Deu” e se os homens merecerem, Sua vinda será
apressada. O homem espera um Messias que espera o homem!” (p. 142).
Em “A figueira do inicio, a figueira do fim”, discorre o autor sobre a importância da
figueira na Bíblia, pois ela e seu fruto, o figo, que é considerado entre os sete frutos que
exaltam a beleza de Israel: “Terra do trigo, da cevada, da uva, do figo, da romã, terra da oliva
oleosa e do mel - da tâmara-” (Dt 8,8) (p. 143).
Afirma o Autor que a chegada do Verão é indicada por tornarem-se tenros seus ramos
e pela caída de suas folhas. Verão em hebraico significa ‫ קיץ‬kaïts, da mesma raiz do verbo ‫הקיץ‬
h. k. ts = (se) acordar, e de ‫ קץ‬kets “fim”, fim de uma época, fim de um período, fim deste
mundo” (p. 145). Os sinais, anunciadores de acontecimentos que se aproximam, dos quais
Jesus fala, não evocam um doce mês de maio” (p. 146). Por fim, afirma que “as palavras de
Jesus enquanto palavras da Torah permanecem eternas, interpelando a sua geração”. Os
discípulos são chamados a permanecer vigilantes. Eles verão com seus próprios olhos se
permanecerem às espreitas. Jesus não se proclama abertamente como Messias; mas fosse ele
o “Filho do homem”, sua vinda não se confundiria como o “dia do Eterno que ninguém, exceto
o Pai, conhece” (p. 147).
Finda o autor esta obra enfatizando que “depois das parábolas da misericórdia, do
anúncio da parábola da figueira e nosso tempo contemporâneo, dois mil anos se passaram,
onde a incompreensão superou o diálogo. Felizmente, graças ao Céu, depois de 50 anos, um
reconhecimento, uma escuta se faz entre judeus e cristãos. Eis aqui um dos sinais eloquentes

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JESUS FALA COM ISRAEL: UMA LEITURA JUDAICA DE PARÁBOLAS DE JESUS CADERNOS DE SION

da figueira, o tempo de uma fraternidade entre os “filhos” do “Pai”, comprovando que existe
um encontro da História que nós não podemos falhar, pois toda graça é um tesouro único...”
(p. 148).
Com certeza a publicação desta obra constitui um fato inédito hodiernamente. Isto por
tratar-se de um trabalho sobre as cinco parábolas evangélicas lidas, analisadas e discutidas
por um judeu francófilo. Trata-se de uma amostra dos frutos do Concílio Vaticano II, com a
publicação da Declaração Apostólica Nostra Aetate, que propiciou, incentivou e fez com que
o diálogo interrreligioso viesse a acontecer realmente. Não resta dúvida, tratar-se de uma
obra estimulante, que em muito ajudará o leitor a compreender melhor toda a riqueza da fé
judaico-cristã, ilustrada e com suas citações bíblicas, talmúdicas e rabínicas, tão
apropiadamente explicitadas e comentadas pelo Rabino Haddad. Constitui ainda uma
oportunidade de levar o leitor a ter uma visão original, séria, bem embasada sobre o quanto
Jesus viveu intensamente como verdadeiro judeu. Ademais, quem sabe esse primeiro trabalho
poderá despertar o leitor cristão ou não, a se aprofundar nos Estudos Judaicos-Cristãos, a fim
de poder compreender os Evangelhos e demais livros da Bíblia. Que outras obras deste nível
venham a ser publicadas futuramente! Parabéns ao Autor pelo magno e singular trabalho e
de igual modo aos Editores, ao Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCEDJ pela publicação
dessa obra, tão bem traduzida pelo Pe. Faustino Tonini, NDS).

167
CADERNOS DE SION

Os autores desse livro, de maneira clara e


singular, apresentam cada uma das oito
festas de Israel, presentes na Escritura e na
Tradição judaico- cristãs. O ciclo das festas
bíblicas tem fundamentos mosaicos na
Escritura e rabínicos na Tradição oral do povo
judeu. Ambos, Escritura e Tradição, estão
enraizadas na acolhida fundamental da
Palavra de Deus, como Tradição oral e
escrita. As festas, como Encontros, são,
portanto, momentos privilegiados e
favoráveis de visão, de experiência espiritual
e de constituição da comunidade, seja como
Israel, seja como Igreja.

O mundo atual se fecha cada vez mais aos


excluídos que gritam por vida e justiça.
Recepcionar de novo a trilogia social do
Deuteronômio é voltar ao coração da tradição
bíblica que tem sua fonte na passagem da
escravidão à liberdade. Judeus e cristãos são
descendentes éticos do arameu errante e dos
escravos do Egito, são defensores dos tempos
messiânicos da justiça e da paz, são
promotores da igualdade inegociável.

Publicação
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