José de Souza Paim
José de Souza Paim
José de Souza Paim
PUC-SP
Mestrado em Teologia
São Paulo
2019
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Mestrado em Teologia
São Paulo
2019
Banca Examinadora
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Dedicatória
Dedico este trabalho, resultado de minha formação teológica, aos meus pais, Laurindo Paim (in
memoriam) e Maria Rosa, meu apoio em todos os momentos da vida.
Agradecimentos
À Maria Santíssima, minha querida Mãe, pela presença maternal, segura e terna.
Aos meus amados pais, Maria Rosa e Laurindo Paim, minha gratidão e amor pela doação da
vida e dos valores cristãos e humanos.
Aos meus irmãos, Joselita Maria, Joelson, Joanice, João, Jussara, Antônio, Sara, pela
proximidade e amizade, pela partilha da vida e pelos momentos de apoio e carinho.
Pe. Diêgo Alberto, Pe. Joel Nery, Alessandro Silva e Henrique Rodrigues, obrigado pelo
incentivo em todas as horas. A vocês, minha profunda gratidão.
Shirley dos Reis e Karina Alves, obrigado pela amizade e atenção em todos os momentos. A
vocês meu sincero agradecimento.
Aos meus afilhados de batismo – Davi, José Antônio, Snaydder, Reinaldo – e de crisma –
Uelber e Rodrigo, por toda demonstração de amor e carinho.
À Igreja de Deus, presente na Arquidiocese de São Paulo, ao Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer
e a Dom José Benedito Cardoso, bispo auxiliar da Região Episcopal Lapa, por me acolherem e
me permitirem exercer meu ministério sacerdotal nesta Igreja Particular.
Aos padres, irmãos e amigos na Arquidiocese de São Paulo, pela partilha no ministério
sacerdotal e pela amizade.
Ao amado povo de Deus, leigos e leigas com quem tive e tenho a alegria de conviver, partilhar
a fé e esperança em Jesus Cristo, pelas orações, amizade, carinho e atenção.
À Congregação de Santa Cruz e aos Religiosos, Irmãos e Padres em Santa Cruz, pela vida
fraterna e pelo apoio nos estudos.
Aos Superiores em Santa Cruz, Ir. Ronaldo (Superior Distrital) e Thomas A. Dziekan (Superior
Provincial) pela motivação à realização do Mestrado, pelas orações e amizade em Santa Cruz.
Aos Postulantes e Junioristas em Santa Cruz, irmãos e amigos na caminhada, pela alegria que
transmitem, pela sinceridade na convivência, pelo apoio, pelas orações e amizade.
Ao professor Dr. Pe. Pedro K. Iwashita pela orientação e amizade. Agradeço especialmente
pela paciência comigo nestes dois anos e seis meses de orientação.
Ao professor Dr. Matthias Grenzer, pelo incentivo, ajuda e valiosa contribuição ao longo do
Mestrado.
Ao professor Dr. Pe. Valeriano Costa, meus agradecimentos por compor a Banca de
Qualificação do Mestrado e pelas preciosas sugestões para a continuidade do trabalho.
Aos professores Adilson Carvalho, Maria José Leite e Francisco Catão, pelo incansável
incentivo aos estudos, amizade e carinho.
À professora Márcia Regina Savioli, pela revisão do texto, pela amizade e incentivo aos
estudos.
Às bibliotecárias da Unisal – Campus Pio XI, Miriam Ambrósio Silva e Maria de Fátima
Antunes Caires, pela assistência na consulta das obras referenciadas neste trabalho, pelo carinho
e paciência.
Enfim, muito obrigado aos que, direta ou indiretamente, me ajudaram na concretização deste
estudo.
“O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com
nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam, é
nosso tema: a Palavra da vida. A vida se manifestou: nós a vimos,
damos testemunho e vos anunciamos a Vida que estava junto do Pai
e se manifestou a nós”
1João, 1, 1-2
Resumo
Palavras-chave: Revelação, Concílio Vaticano II, Dei Verbum, Palavra de Deus, Fé.
The Revelation of God to man:
Theological reflection on Dei Verbum
Abstract
This paper consists of demonstrating the novelty of the revelation of God to man from the
dogmatic Constitution Dei Verbum on the divine revelation of the Second Vatican Council. For
this, in a first moment, we are going to focus in general aspects of the Second Vatican Council’s
history in which the Dei Verbum has arisen. Our intention is meant to lead you to the realization
that the new way of conveying the revelation, as it will be shown in the course of this paper,
did not come about by chance and did not happen overnight, but it was a result of openness to
the Holy Spirit by both Popes who presided over the Council (John XXIII and Paul VI), the
Conciliar Priests and the effort to read and interpret the signs of God for the Church in that
historical moment. God, through the Holy Spirit, has been bringing signs of renewal in the
Church, they could be seen both in documents from the Church's Magisterium and in the
renewal movements. The Second Vatican Council has wisely welcomed everything that had
already come and indicated the Church the need to return to Jesus Christ, the living Word of
the Father, to listen to him obediently and then seek a new way of conveying the doctrine to the
modern human being. Because of this, the Council has revised the way of conveying the
revelation and realized the need to overcome a conception in which revelation is seen as the
communication of divine truths to present it as the communication of the divine life. The
revelation is, above all, based on the initiative of God who, through goodness and wisdom has
communicated himself to the human being, inviting them to the life of communion with himself.
In Jesus Christ, the divine revelation reaches its consummation and through it man are
introduced into the life of grace. From the novelty of the revelation addressed by Vatican II in
Dei Verbum, there are some practical consequences or fruits in the Church, both in theology
and in the liturgy, in catechesis and in evangelization. One of the most important consequences
was the recovery of the centrality of the primacy of the Word of God in the life and mission of
the Church. In Dei Verbum we notice the central importance given to the Word as the primordial
vehicle of God's communication to man, seen from the title of the document, throughout the
preamble up to its pinnacle in the last chapter of the Constitution number VI – Sacred Scripture
in life of the Church. Reading it in the light of the Holy Spirit, the human being listens to Jesus
Christ, the living Word of the Father, and receives salvation. In this sense, still in this paper, we
will consider the reality of the Word of God, in Dei Verbum and in the liturgical and
evangelizing dimensions of the Church.
Keywords: Revelation, Second Vatican Council, Dei Verbum, Word of God, Faith.
Siglas
Introdução ................................................................................................................................. 14
Capítulo I .................................................................................................................................. 18
Capítulo II ................................................................................................................................. 60
2.1. Novidade.................................................................................................................... 60
Introdução
Este estudo tem por foco principal tratar da revelação divina, a partir da Constituição
Dogmática Dei Verbum. De acordo com o documento conciliar, a revelação é apresentada como
ato pessoal da manifestação de Deus ao homem. O ato da revelação divina é significado como
automanifestação, autocomunicação ou autodoação de Deus ao homem, consumado na
encarnação do Verbo na História. Jesus é o revelador e plenitude da revelação, conforme
afirmação da Dei Verbum. Esse modo de abordar a revelação permitiu ao Concílio, em
continuidade à Tradição da Igreja e aos dois concílios anteriores, como se lê no início da
Constituição Dei Verbum, apresentá-la de maneira nova – abordando-a em chave personalística,
dialógica, cristológica e histórica – em superação a uma concepção teórica, instrucional e
doutrinal.
Mas, como nada acontece de uma hora para outra, assim também pode-se dizer do
Concílio Vaticano II, da elaboração da Dei Verbum e do desenvolvimento do tema principal do
documento conciliar. Para que a revelação pudesse ser dita de modo novo (em relação à maneira
como a concebiam desde a escolástica até o Vaticano II), os padres conciliares, os peritos, os
teólogos envolvidos na revisão e reelaboração dos esquemas até o texto final da Constituição
Dogmática Dei Verbum tiveram um árduo trabalho. Esse trabalho se deu desde o primeiro
período conciliar, quando foi apresentado o primeiro esquema – intitulado De fontibus
revelationis1 – até o último período do Vaticano II, quando foi aprovado o texto final, com o
título De divina revelatione,2 em 18 de novembro de 1965, dias antes do encerramento do
Concílio.
A Dei Verbum, além da importância pelo percurso histórico, é também um documento
chave do Concílio, do ponto de vista da teologia, exatamente em razão de seu tema central: a
revelação. Como diz Latourelle, juntamente com a Tradição e Inspiração, a revelação é
categoria fundamental e primeira do cristianismo3. Além disso, interliga-se a outras dimensões
importantes da teologia, tais como eclesiologia, cristologia, pneumatologia, mariologia e, para
a Igreja, especialmente na tarefa de redescobrir a centralidade da primazia da Palavra de Deus
– fonte primordial da transmissão da revelação –, escutá-la religiosamente e anunciá-la com
coragem, para que o homem atual acolha e responda ao dom do amor de Deus revelado em
1
Cf. RUIZ, Gregorio. Historia de la Const. “Dei Verbum”. In: ALONSO, Luis Schökel (org.). Concílio Vaticano
II. Comentários a la constitución Dei Verbum: sobre la divina revelación. Madri: BAC,1969, p. 4.
2
Idem, p. 34.
3
Cf. LAUTORELLE, René. Teologia da Revelação. São Paulo: Paulinas, 1972, p. 399.
15
Jesus Cristo, Palavra viva do Pai. Esse amplo espectro é possível ao documento pela novidade
da apresentação da revelação.
Em que consiste tal novidade? De acordo com a Dei Verbum, consiste essencialmente
em pontuar a revelação em primeiríssimo lugar a partir de Deus mesmo, ou seja, como ato de
doação amorosa de Deus aos seres humanos, realizado na História. Trata-se de um dar-se
pessoal divino ao ser humano, convidando-o à amizade e comunhão Consigo, por Jesus Cristo,
no Espírito Santo. A Constituição em questão trata, portanto, primeiro da natureza e
concretização da revelação, para depois considerar os conteúdos ou as verdades reveladas.
Deus revela-se a Si mesmo e ao fazê-lo, doa-se ao ser humano. Tudo isso se consuma
no mistério da encarnação do Verbo, dentro da história da humanidade, como projeto de
salvação de Deus para o ser humano.
Lemos em Hb, 1,1s: “Muitas vezes e de muitas formas, Deus falou no passado a nossos
pais por meio dos profetas. Nesta etapa final nos falou por meio de um Filho, a quem nomeou
herdeiro de tudo, por quem criou o universo”4. Gradativamente, a revelação divina se deu na
história da humanidade, desde a criação, quando Deus deu um testemunho de Si, passando pela
sua manifestação aos primeiros pais, pela aliança feita com Abraão, os patriarcas, os profetas,
até atingir sua realização plena em Jesus Cristo. Nele, Palavra Eterna do Pai e encarnada na
plenitude dos tempos, a revelação chega à sua consumação. Ele, presença de Deus entre os
homens, veio manifestar-lhes o resplendor divino e convidá-los à vida de amor com Deus. Nele,
o ato revelador de Deus, além de ser a manifestação da glória do seu Ser, é também a
comunicação da vida divina, uma comunicação pessoal e dialogal. Daí decorre que o homem,
graças à iniciativa divina, é chamado à comunhão plena com Deus, por meio de Jesus Cristo no
Espírito Santo, a partir do acolhimento e da adesão amorosa à Palavra anunciada.
A novidade da revelação corresponde ao anseio do Concílio de retornar à Palavra de
Deus a ser escutada e transmitida pela Igreja, por meio da Tradição e Sagrada Escritura.
Também contribui para o duplo enriquecimento da teologia: como ciência, que aprofunda os
conteúdos da fé e como disciplina, que estabelece laços com outras afins no trato de assuntos
fundamentais e pertinentes para a Igreja no seu todo. Além disso, colabora para o
aprimoramento da linguagem e métodos em favor da transmissão da fé na catequese e na
evangelização e, ainda, impulsiona a Igreja à promoção do diálogo ecumênico e inter-religioso.
Em conformidade com o Concílio Vaticano II e a Dei Verbum, documento conciliar,
propomo-nos demonstrar a novidade da revelação e mostrar, a partir do primeiro capítulo da
4
BÍBLIA do Peregrino. Tradução de Luís Alonso Schökel. São Paulo: Paulus, 2002. (Hb 1, 1-2).
16
Capítulo I
História do Concílio e da Dei Verbum
O Concílio Vaticano II, na linha temporal dos Concílios ecumênicos da Igreja Católica,
ocupa o 21º lugar. Foi anunciado pelo Papa João XXIII em 1959 e convocado em 1961, por
meio da Constituição Apostólica Humanae Salutis. Em fevereiro de 1962, a partir da Carta
Apostólica Dada Motu Proprio Consilium, teve sua data inaugural fixada e, em 11 de outubro
do mesmo ano, com o Discurso Gaudet Mater Ecclesia, João XXIII abriu, solenemente, o
Concílio Vaticano II.
Entre os Concílios ecumênicos, há defesa de que o Vaticano II é o mais relevante pela
sua abrangência, forma pastoral e composição diversa:
5
BEOZZO, José Oscar. Concílio Vaticano II. In: PASSOS, João Décio e SANCHEZ, Wagner Lopes (org.).
Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2015, p. 184. (Doravante, neste texto, mencionada
apenas como DCV).
19
Há apenas três meses de sua eleição como papa, João XXIII, em 25 de janeiro de 1959,
anunciou, de modo inesperado, aos cardeais três eventos a serem realizados na Igreja: Um
Sínodo para Roma, um Concílio para toda a Igreja e a reforma do Direito Canônico. O anúncio
do papa foi uma surpresa para os presentes na sala capitular6, visto que naquele momento não
se esperava um concílio, e a reação surpreendida não se restringiu aos cardeais, posteriormente
estendeu-se para os bispos e o mundo de modo geral.
João XXIII reconheceu, falando aos assistentes da Ação Católica Italiana, em 9 de
agosto de 1959, ter sido a ideia do Concílio como uma “flor de inesperada primavera” 7. Mais
tarde, em maio de 1960, o papa voltou a mencionar sua própria surpresa diante de ideia de um
concílio e, em maio de 1962, João XXIII descreveu detalhadamente a um grupo de venezianos
como surgiu a ideia de convocar um concílio8. Conforme descrição do papa, em conversa
pessoal com o Cardeal Tardini, então Secretário de Estado, sobre os problemas em que se
encontrava o mundo e ao se questionar sobre a atuação da Igreja, surgiu a ideia do concílio.
Conforme as palavras do Papa: “Num momento iluminou-nos a alma uma grande ideia,
percebida precisamente naquele instante e aceita com indizível confiança no Divino Mestre e
6
De modo geral os escritos sobre o Vaticano II acentuam o anúncio do papa como uma notícia inesperada para os
cardeais sobretudo no referente à realização de um concílio para a Igreja. São muitas as bibliografias que
encontramos a este respeito. Eis algumas: KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: Documentário
pré-conciliar. v. I. Petrópolis: Editora Vozes,1962, p. 11; LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca
de uma primeira compreensão. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 57; MORALES, José. Breve Historia del
Concilio Vaticano II. Madri, Rialp, S. A, 2012, p. 23; COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio
Vaticano II. In: TAVARES, Sinivaldo. S (org.). Memória e profecia. A Igreja no Vaticano II. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2005, p. 101.
7
KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. v. I. Op. cit., p. 12.
8
Na obra supracitada, é possível encontrar o discurso do papa contando como surgiu e se desenvolveu nele a ideia
do Concílio Ecumênico.
20
saiu-nos dos lábios uma palavra, solene e empenhadora. Nossa voz exprimiu-a então pela
primeira vez: um Concílio”9.
A ideia de convocar um concílio não foi acolhida sem o temor e receio que um evento
desse porte e a época histórica que se vivia impunham àquele a quem competia anunciá-lo,
convoca-lo e presidi-lo tal evento. A propósito, no mesmo discurso feito aos venezianos, João
XXIII afirmou sua perplexidade, temor e receio diante daquela inesperada ideia. Apesar disso,
deixa-se antever o Concílio como uma ideia original de João XXIII, inspirada por Deus, sem
que sejam desconsiderados os problemas nos quais o mundo estava submergido, o
distanciamento entre Igreja e mundo e, sem eximir todo o trabalho humano exigido no
desenrolar do Concílio.
A ideia, embora original, não foi um ato irreflexivo do papa: não pode ser considerada
no nível do mítico ou imaginativo de João XXIII, como também não pode ser vista como uma
decisão isolada. Como aponta Morales, o papa não se movia nem se comunicava em nome de
um sistema, mas suas intuições e movimentos vinham de um homem obediente a Deus, sensível
aos seres humanos10 e certamente a toda situação vivida pelo mundo. Se não fosse assim,
naturalmente não iria adiante, cairia no esquecimento ou fracassaria, sobretudo diante das
dificuldades a serem enfrentadas. Ademais, o Papa tinha plena consciência do esforço a ser
empreendido, do tempo a ser dispensado para preparar o Concílio e das dificuldades a serem
enfrentadas.
Por outro lado, ao anunciar sua intenção de realizar um concílio, o Papa não tinha em
mente tudo devidamente planejado, completamente articulado e bem delimitado. Como observa
Passos11, a ideia original de convocar um concílio está no nível da não conceituação, mas a
partir dela, sua realização torna-se cada vez mais evidente no pensamento do Papa e começa a
ganhar corpo, permitindo perceber, em João XXIII, iniciativa própria, coragem, autoridade e
liberdade (em relação à própria realidade eclesial da época, como também e sobretudo à Cúria
Romana) para convocar o Concílio.
Em alguns de seus documentos, João XXIII dirá que se trata de uma “inspiração divina”.
Na Carta Apostólica em forma de Motu Próprio Superna Dei, o Papa dirá: “Consideramos
inspiração do Altíssimo a ideia de convocar um Concílio Ecumênico, que desde o início do
9
Ibid., p. 13.
10
Cf. MORALES, José. Breve Historia del Concilio Vaticano II. Op. cit., p. 23.
11
Cf. PASSOS, João Décio. A Construção do Concílio Vaticano II: intuições germinais do papa João XXIII em
vista de um evento renovador. Horizonte, v. 14, n. 43, p. 1012-1038, jul.-set. Belo Horizonte, 2016, p. 1014.
21
Nosso Pontificado se apresentou à Nossa Mente, como flor de inesperada primavera” 12. Mais
tarde, na Constituição Apostólica Humanae Salutis, para convocação do Concílio em 1961,
expressa-se com as palavras: “Obedecendo a uma espécie de instinto do alto ou a uma voz
interior, julgamos ter chegado o momento de proporcionar à Igreja Católica e toda família
humana a oportunidade de um novo Concílio Ecumênico”13.
Diante do exposto até aqui, o momento de gestação do Concílio ainda no pensamento
de João XXIII, pode ser visto como uma decisão puramente pessoal dele ou como fruto de uma
inspiração divina. Mas, conforme o próprio João XXIII relatou algumas vezes, tratou-se de uma
inspiração divina assumida por ele. Dessa ideia original o Concílio se desenvolveu.
A certeza de que Deus o inspirou para tal propósito acompanhou o Papa desde o
primeiro momento até sua morte. Aos Dirigentes da Ação Católica, em agosto de 1959, alguns
meses após o primeiro anúncio do Concílio, João XXIII afirmou:
João XXIII estava convicto que o Concílio era um dom do Senhor para sua Igreja e por
isso, decidiu percorrer tal caminho para vê-lo nascer e crescer.
12
KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., p. 55.
13
JOÃO XXIII. Constituição Apostólica Humanae Salutis. In: CATÃO, Francisco (Trad.). Vaticano II:
mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 13.
14
KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., p. 39.
15
SOUZA, Ney de. Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II. In: GONÇALVES, Paulo
Sérgio Lopes e BOMBONATTO, Vera Ivanise (orgs.). Concílio Vaticano II: análise e prospectivas. São Paulo:
Paulinas, 2004, p. 26.
22
Em outros autores pode-se encontrar a descrição deste cenário desalentador vivido pelo
mundo e outros problemas graves presentes na vida das pessoas e o entusiasmo de boa parte do
mundo ao saber do Concílio. Por exemplo, Alberigo relata esta mesma situação considerando
o anúncio do Concílio como importante oportunidade de renovação tanto da Igreja como de
outras comunidades cristãs e da humanidade em geral, esperançosa de ver outra realidade
diferente da atual19.
Já Passos contribui com o cenário exposto recordando que o anúncio do Concílio foi
bem acolhido também por parte dos cristãos não católicos e outros organismos, como o
16
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., p. 13.
17
CF. MORALES, José. Breve História del Concilio Vaticano II. Op. cit., p. 22.
18
THEOBALD, Christoph. O Concílio e a “forma pastoral” da doutrina. In: SESBOÜÉ, Bernard (dir.);
THEOBALD, Christoph. A Palavra da Salvação: séculos XVIII –XX. História dos Dogmas. Tomo 4. São Paulo:
Loyola, 2006, p. 388.
19
Cf. ALBERIGO, Giuseppe (org.). História dos concílios ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 395.
23
Conselho de Genebra, além de outras lideranças cristãs europeias. Nascia uma esperança, ainda
que todos fossem sabedores dos reais obstáculos postos, no tocante ao diálogo ecumênico20.
Beozzo, além de recordar a perplexidade dos cardeais diante de um anúncio inesperado
e, posteriormente, as indagações e temores que surgiam no meio eclesial, lembra que na opinião
católica e leiga, levantou um sentimento de esperança – num mundo com graves problemas de
fechamento e de divisão política e religiosa – de diálogo, de proximidade dos cristãos e de toda
família humana21.
Mesmo com perplexidades, indagações, preocupações de uns, alegria e entusiasmos de
outros, um concílio não era esperado para aquele momento. Por algumas razões, a saber:
a) uma vez definido o dogma da infalibilidade papal pelo Concílio Vaticano I, começou-
se a difundir a ideia da inutilidade de um concílio. O Romano Pontífice em vista de sua
autoridade máxima poderia resolver questões importantes da Igreja por meio de Cartas e Motu
Próprio e, para questões mais simples, o magistério ordinário poderia atuar. Diante disso,
desenvolveu-se por parte de alguns, na Igreja pós Vaticano I, a tese da irrelevância de um
concílio. Neste sentido, Libanio lembra que eclesiólogos reconhecidos tinham anunciado o fim
da era dos Concílios22. Essa tese não era somente partilhada por estes, mas também por teólogos
da escola romana, conforme afirma Beozzo: “Muitos teólogos, especialmente os da escola
romana, consideravam que, depois do Vaticano I, que concentrara tanto poder nas mãos do
Romano Pontífice, novos Concílios seriam dispensáveis, podendo ao papa tudo resolver
solitariamente”23.
Voltando a Libanio, embora, houvesse questões relevantes, à espera de solução, postas
à teologia no âmbito da moral e da doutrina, a tendência da época era que o papa pudesse
solucioná-las com afirmações definitivas e encaminhassem aos órgãos competentes a execução
de suas tarefas24. Nesse sentido, o Concílio seria o momento importante de discussão,
aprofundamento e direcionamento das questões, de maneira correta e favorável à Igreja e
também de ajudar a corrigir a má compreensão acerca do dogma da infalibilidade papal. Esta
foi a intuição de João XXIII e deu certo.
Mesmo com o anúncio do Concílio, permanecia a pergunta: qual seria a sua função e
qual obrigação teria o papa de convocá-lo? Para alguns, a única importância de um concílio era
20
Cf. PASSOS, Décio João. A Construção do Concílio Vaticano II: intuições germinais do papa João XXIII em
vista de um evento renovador. Op. cit., p. 1028.
21
Cf. BEOZZO, José Oscar. O Concílio Vaticano II: etapa preparatória. Vida Pastoral, v. XLVI, jul.-ago. São
Paulo: Paulus, 2005, p. 3.
22
Cf. LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 57.
23
BEOZZO, Oscar José. Concílio Vaticano II. In: DCV, p. 185.
24
Cf. LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 57.
24
a de mostrar a unidade da Igreja católica, pensamento sustentado não somente por parte de
representantes da Igreja, mas também por representantes não católicos. Ratzinger lembra, como
exemplo dessa opinião, o historiador da Igreja da Universidade de Marburgo, Ernst Benz, para
quem a única necessidade de um Concílio era a da visibilidade da unidade da Igreja Católica25.
Determinada ideia é fruto de uma compreensão teologicamente limitada, puramente
jurídica do dogma da infalibilidade papal, como se o papa atuasse isoladamente na Igreja ou
acima dela. Ainda que aqui não se aborde com profundidade essa questão, é importante
sublinhá-la para perceber a reação de surpresa ou estagnação de autoridades da Igreja diante do
anúncio de um concílio e paradoxalmente a grande oportunidade vista por João XXIII ao
convocá-lo para favorecimento da renovação eclesial.
b) outra razão de empecilho à realização do Concílio era a idade avançada de João
XXIII. Nascido em 25 de novembro de 1881, depois da morte de Pio XII, foi eleito Papa em
outubro de 1958, com 77 anos. Pela sua idade era considerado um Papa de transição e
certamente por isso, nem a Igreja nem o mundo esperavam dele um concílio.
Ao lado da questão da sua idade, soma-se a era dos Pio. Anteriormente ao seu
pontificado, a Igreja foi comandada por dois Papas de nome Pio, Pio XI e Pio XII, uma soma
equivalente a 36 anos de pontificado. No início do século, a Igreja foi governada por Pio X. Ou
seja, desde o início do século XX a Igreja esteve marcada pela longa era dos Pio. Por isso,
depois da morte de Pio XII, os cardeais pensavam num Papa idoso que apenas continuasse o
sólido pontificado de Pio XII.
Ou ainda segundo Libanio, “Depois de um pontificado que vasculhou os diversos
rincões da cultura, da vida da Igreja, deixando as coisas mais ou menos decididas e
encaminhadas, cabiam uns anos de repouso”26. A idade avançada de João XXIII e os seus
antecessores eram elementos suficientes para tranquilizar os irreverentes a um concílio e
igualmente serviam para não alimentar esperanças entre os desejosos da sonhada renovação na
Igreja. João XXIII surpreendeu tanto a uns quanto a outros.
c) por fim, o momento histórico se apresentava desfavorável a uma reunião conciliar. O
mundo passava por grandes transformações, algumas serão tratadas mais amplamente ainda
neste capítulo. A época estava marcada pela pós-guerra e em guerra fria. Durante a segunda
guerra os nazistas cometeram crimes hediondos contra seres humanos nos campos de
concentração. Surgiam correntes de pensamentos com valores contrários aos ensinamentos da
25
Cf. RATZINGER, Joseph. Obras completas VII/1. Sobre la enseñanza del Concilio Vaticano II. Formulación,
transmisión, interpretación. Madrid: BAC, 2014, p. 55.
26
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 59.
25
27
ALBERIGO, Giuseppe. História dos concílios ecumênicos. Op. cit., p. 397.
26
Nesse Documento, o Papa apresenta alguns pontos que serão, por ele mesmo, retomados
posteriormente e aprofundados. Alguns merecem destaque: a) o incremento da fé católica; b) a
renovação dos costumes no povo cristão; c) favorecimento da disciplina eclesiástica; d) melhor
adaptação às necessidades atuais. Três objetivos maiores são evidenciados pelo Papa: promoção
da verdade, unidade e caridade.
Passada a fase antepreparatória, deu-se início à fase preparatória propriamente dita, com
o Motu Próprio Superno Dei, com data de 5 de junho de 1960, festa de Pentecostes.
O Documento apresenta quatro pontos importantes:
a) recorda a terceira parte da Encíclica Ad Petri Cathedram sobre os objetivos do
Concílio, de promover a fé, renovar os costumes, adaptar a disciplina da Igreja aos tempos
atuais e a promoção da verdade, unidade e caridade.
28
BEOZZO, Oscar José. Concílio Vaticano II. In: DCV, p. 186.
29
JOÃO XXIII. JOÃO XXIII. Carta Encíclica ad Petri Cathedram. Vaticano: 1959. Disponível em:
https://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_29061959_ad-petri.html.
Acesso em 14 de agosto de 2018.
27
b) determina que o Concílio se chamará Vaticano II, extirpando qualquer dúvida sobre
a continuação ou não do Concílio Vaticano I, interrompido em 1870, em razão da guerra franco-
prussiana, sem ter sido oficialmente encerrado.
c) criação de dez Comissões para estudar e organizar os assuntos acolhidos na consulta
feita. Cada Comissão deveria eleger um Presidente e um Secretário. Compor-se-ia de um
determinado número de membros. As comissões: Comissão Teológica, para tratar das questões
referentes à Sagrada Escritura, Tradição, fé e costumes; Comissão dos Bispos e dos governos
das dioceses; Comissão para disciplina do Clero e do povo cristão; Comissão dos Religiosos;
Comissão da disciplina dos Sacramentos; Comissão da Sagrada Liturgia; Comissão dos Estudos
e dos Seminários; Comissão para a Igreja Oriental; Comissão para as Missões; Comissão do
apostolado dos leigos para tratar de todas as questões relativas à ação católica, religiosa e social.
d) criação de três Secretariados: um, para a divulgação das notícias, outro, para
administração e o terceiro, para a unidade dos cristãos. Instituição da Comissão Central,
presidida pelo Papa e escolha do Secretário geral do Concílio30.
Merecem destaque a criação do Secretariado para a unidade dos cristãos e o trabalho
das Comissões. O Secretariado foi fruto do esforço de João XXIII e desempenhará um papel
importante sobre o caráter ecumênico que o Papa quis imprimir ao Concílio. O cardeal
escolhido para presidir o Secretariado foi Augustin Bea que, de modo geral, teve influência no
Concílio e grande participação na elaboração da Constituição Dogmática Dei Verbum. As
Comissões espelhavam os dicastérios romanos, cujos prefeitos foram seus respectivos
presidentes.
Essa fase preparatória, oficialmente iniciada em 2 de junho 1960 através do Superno
Dei teve fim em 1962 com o motu próprio Consilium, com o qual João XXIII fixava a
inauguração do Concílio Ecumênico Vaticano II para 11 de outubro do mesmo ano.
30
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., p. 55-56.
31
JOÃO XXIII. Constituição Apostólica Humanae Salutis. Op. cit., p. 16.
28
Após ser entregue ao Papa em 25 de dezembro, a Bula foi por ele assinada e passada ao
Secretário Geral do Concílio, Péricles Felici. Imediatamente e de modo solene o documento foi
promulgado e lido na Basílica de São Pedro. Semelhante ato foi realizado nas Basílicas de São
Paulo, Lateranense e Santa Maria Maior32.
Esse documento é importante não somente pelo seu aspecto de convocação do Concílio,
mas também pelo que vem sendo dito sobre a clareza do Papa a respeito dos objetivos do
Concílio. À medida que avança o tempo, o entusiasmo de João XXIII, a ‘flor de inesperada
primavera’ como o mesmo afirmou em várias ocasiões, o ‘instinto do alto’ ou ‘voz interior’,
conforme aparecem também nessa Bula de convocação, vai se tornando cada vez mais claro os
objetivos e melhor visto o desenho do Concílio.
Na Bula, o Papa menciona os graves problemas que afetam a humanidade, o
desenvolvimento da ciência e da técnica por um lado e o encolhimento da moral, como também
e por consequência disso, o desinteresse pela busca dos bens do Alto. Reconhece ademais, o
fortalecimento do ateísmo, operando em plano mundial.
Consciente de tudo isso, João XXIII não se manifestou pessimista em relação à missão
da Igreja no mundo e contrariamente aos desesperançados, visionários somente de trevas
envolvendo a terra, percebeu uma oportunidade para a Igreja manifestar sua vitalidade e
contribuição na atualidade. A visão do Papa foi positiva em relação ao mundo, primeiro porque
acreditava na presença de Jesus na vida da Igreja operando no mundo e também porque toda
experiência, mesmo as mais amargas, não se produzem sem deixar úteis ensinamentos às
pessoas. Mas foi positiva também em relação à Igreja. João XXIII acreditava na jovialidade da
Igreja, sempre chamada a manifestar o rosto de Jesus Cristo.
[A Igreja] Sempre viva e sempre jovem, que sente o ritmo do tempo e que, em cada
século, se orna de um novo esplendor, irradia novas luzes, realiza novas conquistas,
permanecendo, contudo, sempre idêntica a si mesma, fiel à imagem divina impressa
em sua face pelo Esposo que a ama e a protege, Jesus Cristo 33.
A partir da visão do Papa é possível notar, na Bula Humanae Salutis, alguns objetivos
do Concílio: a) apresentar ao mundo a Igreja de Jesus Cristo em seu vigor e jovialidade; b)
ajudar a Igreja a contribuir mais eficazmente na solução dos problemas da idade moderna; c)
favorecer a unidade visível de todos os cristãos e evidenciar pontos principais da doutrina; d)
promover a paz no mundo; e) tratar pontos sobre a doutrina, a instituição e a moral e adequá-
32
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., p. 83.
33
Idem, p. 85-86.
29
los à verdadeira doutrina cristã, à edificação e ao serviço do corpo místico e de sua missão
sobrenatural.
34
BEOZZO, José Oscar. O Concílio Vaticano II: etapa preparatória. Op. cit., p. 9.
30
Igreja); 14 de junho de 1960: ao Conselho Geral da Ação Católica (apresentar ao mundo a Igreja
de Deus em seu perene vigor de vida. Esse objetivo será aprofundado, mais tarde, na Bula de
Indicação do Concílio Humanae Salutis); 19 de abril de 1960: ao Conselho diretor da Pax
Christi (contribuir de modo eficaz e notavelmente na promoção da paz no mundo); 28 de maio
de 1960, Carta ao Cardeal Alfrink (reorganização do organismo eclesiástico); 11 de setembro
de 1960, aos fiéis de Castel Gandolfo (adaptar as normas da Igreja para a vida individual,
coletiva e social, difundir mais e tornar melhor compreendida a doutrina, clarificar e ordenar as
normas morais); 13 de novembro de 1960, cerimônia de rito bizantino-eslavo na Basílica de
São Pedro (manifestar de modo novo e jovem a beleza da Igreja de Cristo); 14 de novembro de
1960, abertura das Comissões Preparatórias (contribuir no revigoramento da fé, doutrina,
disciplina eclesiástica, da vida religiosa e espiritual e reafirmar os princípios cristãos onde se
inspira e se orienta o desenvolvimento da vida civil, econômica, política e social); 3 de
dezembro de 1960, após o retiro espiritual (promoção da renovação das almas, da santificação
pessoal para apresentar a Igreja ao mundo atual); 20 de junho de 1961, à Comissão Central
Preparatória do Concílio (promover o fulgor e santidade do clero; instruir eficazmente o povo
nas verdades da fé e da moral cristã; cultivar o apostolado social e promover a dimensão
missionária na vida das pessoas)35.
Por fim, na Carta Apostólica Oecumenicum Concilium, de 28 de abril de 1962, João
XXIII apresenta a finalidade social do Concílio:
Estava posto o alicerce do Concílio. Certamente, João XXIII estava certo da estrada a
ser percorrida, mas ao expressar os objetivos da Assembleia Conciliar numa ordem de clareza
sempre maior e de maneira contínua, apontava para um novo modelo e uma nova direção para
o Concílio em relação aos anteriores e o esboço conciliar melhor explicitado foi ganhando
adesão e contribuição de cardeais e bispos. Graças a essa maior clareza, é possível abordar
algumas características do Concílio.
35
CF. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., p. 15-18.
36
Idem, p. 101.
31
37
No discurso de abertura do segundo período do Concílio, em 29 de setembro de 1963, Paulo VI, eleito papa após
três meses do falecimento de Joao XXIII, fala aos participantes do Concílio sobre os rumos que o mesmo deve
tomar. Em certa parte de sua exposição, ocupa-se da renovação da Igreja a ser realizada através do Concílio. Disse
Paulo VI: “Busca-se a renovação da Igreja, é claro. Mas cuidado! Isto não quer dizer que pensamos ter a Igreja
católica se afastado de algum ponto maior, da vontade de seu fundador. Verifica-se ao contrário, com alegria, sua
fidelidade a Cristo, em tudo que há de mais importante, assim como sua plena disposição de corrigir os erros
eventuais, provenientes da fraqueza humana. A renovação, pois, a que visa o Concílio, não é uma evolução na
Igreja, nem uma ruptura com suas tradições, no que têm de mais vigoroso e venerável, pelo contrário, é uma
tentativa de melhor respeitar a tradição, despindo-a de formas caducas e mentirosas, em favor de modos mais
genuínos e fecundos de vivê-la”. (PAULO VI. Discurso na abertura do segundo período do Concílio: 29/09/1963.
In: CATÃO, Francisco (Trad.). Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 53).
Conforme a fala de Paulo VI, o Concílio tende a favorecer uma nova reforma na Igreja e neste sentido é um
Concílio de reforma onde rupturas serão necessárias, mas não no sentido de romper com os outros Concílios, senão
no sentido de desfazer-se de elementos que impedem a manifestação genuína da tradição.
Nesta mesma linha de pensamento transita o monsenhor Roxo: “O Vaticano II não foi contra o Concílio de Trento;
mas foi contra interpretações feitas superficial e unilateralmente deste Concílio, pela apologética posterior”.
(ROXO, Roberto Mascarenhas. O Concílio: teologia e renovação. Petrópolis: Vozes, 1967, p.15). Para este autor,
a renovação situa-se no nível da teologia, não na dimensão de ruptura radical, mas de purificação de leituras
erradas, rasas ou unilaterais.
Para Theobald, a reforma conciliar está na orientação pastoral do Concílio, percebida a partir dos discursos de João
XXIII. (Cf. THEOBALD, Christoph. O concílio e a “forma pastoral” da doutrina. Op. cit., p. 389).
Para Amaral, “alguns viram a renovação como efeito de um feliz retorno às origens, já existente, mas impulsionado
pelo Concílio, que nos anos posteriores floresceu em muitos frutos pastorais; outros viram nesta renovação a
libertação de uma situação de rigidez desconfiada, típica da vida da Igreja dos quatro séculos anteriores” e conclui:
“O objetivo da renovação era tornar mais compreensível ao homem moderno a mensagem da salvação revelada
plenamente em Cristo”. (AMARAL, Miguel de Salis. Hermenêutica da Reforma. In: HACKMANN, Geraldo Luiz
Borges e AMARAL, Miguel de Salis (org.). As Constituições do Vaticano II ontem e hoje. Brasília: Edições
CNBB, 2015, p. 33).
32
1.2.1. Aggiornamento
38
Libanio, nesse sentido, afirma: “Há duas leituras possíveis de um fato novo. Considerá-lo na linha da
continuidade com os dados anteriores ou atender ao aspecto novo de ruptura. Assumiremos neste estudo essa
segunda leitura do Concílio Vaticano, e não o consideraremos na linha de Trento e Vaticano I”. (LIBANIO, João
Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 13).
39
Bento XVI no seu discurso de Natal à Cúria Romana, falando das interpretações do Concílio, destacou duas
hermenêuticas que chamou de: hermenêutica da ruptura e da reforma da renovação na continuidade do sujeito
histórico. No início do segundo capítulo serão aprofundados elementos do discurso do Papa. (Cf. BENTO XVI.
Discurso aos cardeais, arcebispos e prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos de natal: 22/12/2005.
Vaticano: 2005. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/benedict-
xvi/pt/speeches/2005/december.index.html. Acesso em 20 de agosto de 2018).
40
É sabido que o Concílio foi muito abrangente e vários termos poderiam ser lembrados para qualificá-lo: por
exemplo: comunhão, diálogo, colegialidade, povo de Deus, ecumenismo, mundo, missão, liberdade.
41
ALMEIDA, Antônio José de. Aggiornamento. In: DCV, p. 8.
33
maneira nova. Publicamente, o termo foi mencionado por ele no primeiro anúncio do Concílio
feito aos Cardeais em janeiro de 1959, como sinônimo de atualização, naquele momento em
referência ao Código de Direito Canônico42. O termo aggiornamento é o mais apropriado por
João XXIII para traduzir o projeto do Concílio a serviço da reforma na Igreja, compreendida
em dois sentidos: primeiro, como retorno às fontes e segundo, como a capacidade de apresentar
de maneira nova a doutrina do evangelho, em atenção a uma leitura autêntica aos “sinais dos
tempos” e ao processo de renovação vivido pela humanidade.
Assim como os objetivos, amadurecidos aos poucos no pensamento do Papa, foram
sendo por ele manifestos, o mesmo se deu com o termo aggiornamento. Ele foi evoluindo
progressivamente e, aos poucos, adquirindo significado para João XXIII e sinonimamente,
notoriedade nos seus escritos e alocuções, associado primeiramente à forma pastoral a ser
acolhida pelo Concílio, lembrado e revistado após cada etapa conciliar.
O projeto de aggiornamento traçado por João XXIII foi acolhido por Paulo VI. Falando
aos participantes na XIII Semana de Atualização Pastoral, em 6 de setembro de 1963, Paulo VI
explicou o significado do termo aggiornamento43.
Mais tarde, na Carta Encíclica Ecclesiam Suam, publicada em 6 de agosto de 1964,
portanto, durante o Concílio, Paulo VI retomou o termo, definindo-o como critério de
direcionamento do Vaticano II em vista da reforma da Igreja44. Deste modo ao acolher o termo
42
Cf. KLOPPENBUG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. cit., 38.
43
“Procurando ler em vossas almas, parece-nos descobrir que esperais nossa aprovação, nossa confirmação,
daquilo que, qual oferta rica de sentido, a vossa visita vem apresentar diante de nós. Antes de tudo, vindes
levantando uma palavra introdutória como estandarte que define o método de vosso trabalho: “aggiornamento”,
palavra esta que teve a honra de ser aceita por nosso venerado e sofrido predecessor João XXIII, de feliz memória,
e que foi gravada por ele no programa do Concílio Ecumênico.
Aplicada ao campo eclesiástico, é uma palavra que indica a relação entre os valores eternos da verdade cristã e sua
inserção na realidade dinâmica e extraordinariamente mutável da vida humana, que na história atual, inquieta,
turbulenta e fecunda, é contínua e diversa. É a palavra indicadora do aspecto relativo e experimental do mistério
da salvação, o qual nada diga além do que é ser eficaz, e percebe quão condicionada é sua eficácia para o estado
cultural, moral e social das almas às quais ele se dirige, e quão oportuno para a boa cultura, e especialmente para
o desenvolvimento prático do apostolado, conhecer as experiências distantes e fazer suas as boas: “Provai tudo e
ficai com o bom” (1Ts 5,21). É a palavra que teme aos hábitos superados, aos cansaços que retardam, às formas
incompreensíveis, às distâncias neutralizantes, à ignorância presunçosa e inconsciente sobre os novos fenômenos
humanos, como também a minguada confiança na perene atualidade do Evangelho. É a palavra que pode parecer
servil à moda caprichosa e passageira, ao existencialismo que não acredita nos valores objetivos transcendentes e
somente aspira uma plenitude subjetiva e momentânea, mas que dá a devida importância à sucessão rápida e
inexorável dos fenômenos, nos quais se desenvolvem nossa vida, e procura seguir o conselho do Apóstolo:
“Aproveitai o tempo, pois os dias são maus” (Ef 5, 16).
É, por tanto, a palavra que aceitamos com gosto, como manifestação da caridade desejosa de testemunhar sobre a
perene e a moderna vitalidade do ministério eclesiástico”.
(PAULO VI. Discurso aos participantes na XIII Semana de Atualização Pastoral: 06/09/1963. Castel Gandolfo:
1963. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/paul-vi/es/speeches/1963/documents/hf_p-
vi_spe_19630906_ministri-dio.html. Acesso em 20 de agosto de 2018). Tradução nossa.
44
Na versão portuguesa da Encíclica Ecclesiam Suam, o termo aggiornamento aparece traduzido por
“atualização”. As versões espanhola e francesa conservam o original como no italiano.
34
A modernização contemplou um aspecto externo que chamou muita atenção, mas não
tocou o coração da novidade do Concílio. Ela afetou a linguagem, a vestuário, muitos
ritos, o modo de viver do clero e dos religiosos. Passou como um tufão por várias
casas de formação religiosa, quebrando costumes ancestrais e introduzindo nelas
hábitos e formas de viver modernizados47.
Nenhuma das interpretações chega ao âmago da questão posta por João XXIII e
aprofundada por Paulo VI sobre a autêntica renovação promovida pelo Concílio em favor da
Igreja, chamada a se compreender a partir da escuta de Jesus Cristo, Palavra do Pai e da escuta,
tornar-se mediadora e anunciadora da Palavra no mundo e na vida do ser humano na atualidade.
45
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 73.
46
É sobretudo Bento XVI que aprofunda este aspecto ao revisitar pelo menos duas leituras vigentes sobre o
Concílio, tratadas por ele no discurso dirigido aos membros da Cúria Romana por ocasião das festividades natalinas
em 2005. Teremos a oportunidade de aprofundar aspectos de seu discurso na passagem deste para o segundo
capítulo deste trabalho.
47
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 75.
35
Nesse sentido esta é a verdadeira compreensão da renovação da Igreja a ser assumida pelo
Concílio e, sob esse mesmo princípio, considera-se se o enfoque pastoral.
1.2.2. Pastoral
Não há dúvidas que um dos enfoques importantes do Concílio Vaticano II foi seu caráter
pastoral. Desde o primeiro anúncio de João XXIII e seus contínuos pronunciamentos, onde
eram traçados os objetivos e as finalidades do Concílio, notava-se que o mesmo tomaria este
rumo. O acento pastoral, junto aos elementos fundamentais afirmados de maneira sistemática
pelo Papa, qualifica a natureza do Concílio e unido ao termo aggiornamento, possibilita uma
compreensão adequada e ampla da tarefa do mesmo de promover a reforma na Igreja.
O termo pastoral é abrangente no campo dos significados. Pode ser compreendido como
práxis pastoral, as inúmeras e distintas atividades realizadas numa determinada diocese,
paróquia e comunidade no âmbito ad intra ou ad extra, de cunho missionário, caritativo ou
social; pode ser acolhido como “teologia pastoral”, fundamentação e estudo teológico sobre a
prática pastoral nas diversas realidades da Igreja; pode ser também um novo modo de dizer a
doutrina da fé. Este último foi o enfoque dado por João XXIII e nesse sentido o Concílio
Vaticano II foi de caráter pastoral.
Etimologicamente, conforme Brighenti,
O termo “pastoral” deriva do substantivo “pastor”, que, por sua vez, remete a Jesus,
“o Bom Pastor”, imagem oriunda da prática corrente do povo de Israel, o pastoreio de
ovelhas. O pastor que vai à frente das ovelhas, bastão ou cajado, verdes pastagens,
lobos ameaçadores, ovelhas no redil ou descarregadas, pastor com ovelhas nos ombros
etc., são todas imagens que aludem à
pessoa e à práxis de Jesus, que inaugura seu Reino de Vida em abundância para toda
humanidade (cf. Jo 10,10), e que seus discípulos, ovelhas suas, estão chamados a
acolher e tornar presente, na concretude da história 48.
Essa perspectiva etimológica foi conservada na Igreja primitiva. Nos escritos dos
primeiros séculos, a pastoral emergia da doutrina da fé e estava ordenada à eficácia da missão.
No centro do serviço pastoral, estava a imagem evangélica do Bom Pastor e o anúncio da
Palavra. Com o avançar do tempo e com novas definições eclesiológicas, sobretudo a partir da
cristandade até às portas do Concílio, os conteúdos da fé ficaram mais centralizados à doutrina,
esta reduzida a definições de verdades indiscutíveis e condenações de erros, enquanto que a
pastoral ficou reduzida a práticas devocionais ou execuções de normas morais e canônicas.
48
BRIGHENTI, Agenor. Pastoral. In: DCV, p. 717.
36
Era urgente que a Igreja revisse esta situação que a mantinha fechada ao diálogo e
distante de todo processo de transformação vivido pela humanidade. João XXIII, sensível a
tudo isso, indicou ao Concílio, como tarefa urgente e primeira, transmitir a doutrina de sempre
de maneira nova a ser compreendida pelo homem moderno:
Ao apontar a direção pastoral a ser assumida pelo Concílio, João XXIII se distancia de
uma ideia fixa e cumulativa da doutrina, isto é, da sua repetição inalterada e apresenta, como
importante para o momento, a necessidade de fazer a passagem do conteúdo para o acolhimento
da doutrina. Este é o sentido de pastoral conferido pelo Papa ao Concílio, não acolhido por
todos com tranquilidade no decorrer de sua realização e, posteriormente interpretado por grupos
tradicionalistas radicais de modo equivocado.
O fato do Concílio não ter definido novos dogmas ou condenado erros levou alguns a
interpretar o magistério pastoral em oposição ao dogmático e outros a desqualificar a autoridade
do Concílio, afirmando que o mesmo por causa de sua natureza pastoral, não poderia ser
reconhecido como infalível. Nenhum dos modos de interpretá-lo se adequa ao pensamento e
aos escritos do Papa. Depois de apresentar o rumo pastoral do Concílio, o Papa complementa:
A doutrina certa e imutável, à qual o fiel é chamado a aderir pela fé, deve, pois, ser
investigada e exposta pela razão, de acordo com a exigências da atualidade. Uma coisa
é o deposito da fé, as verdades que constituem o conteúdo doutrinário propriamente
dito. Outra, o modo como são expressas, mantendo-se sempre o mesmo sentido e a
mesma verdade50.
O excerto citado define bem o entendimento do Papa pelo caráter pastoral a ser dado ao
Concílio. Pastoral não significa referência somente às realidades práticas da Igreja, sujeitas a
constantes mudanças e nem uma ruptura ou uma oposição ao magistério praticado desde sempre
pela Igreja. Ao contrário, significa tornar perene o ensinamento de sempre em matérias de fé e
doutrina, tiradas da Sagrada Escritura e Tradição, dizendo-as de maneira a favorecer a missão
da Igreja de anunciar ao homem, situado no contexto histórico, a salvação revelada por Deus.
49
JOÃO XXIII. Discurso Gaudet Mater Ecclesia: 11/10/1962. In: CATÃO, Francisco (Trad.). Vaticano II:
mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 31.
50
Idem, p. 32.
37
Em suma, João XXIII não pensou um concílio de natureza pastoral reduzida a um fazer
de coisas, nem desamparada dos conteúdos da fé e da doutrina ou dissociada dos concílios
anteriores. O Concílio deveria ser de cunho pastoral com fundamentação dogmática para
apresentar a doutrina de tal modo a contribuir mais eficazmente no exercício da transmissão da
fé de modo a ter importância na vida das pessoas.
Dessa forma, os termos aggiornamento e pastoral consagram a novidade e originalidade
do Vaticano II: um concílio com uma visão positiva do mundo, da história e da cultura e, que,
ao invés de combater ou condenar erros, preferiu o caminho do diálogo com o mundo, com a
história e a cultura e assim encontrar novas formas de anunciar a verdade perene do evangelho,
ajudando o homem a se compreender à luz de Jesus e com Ele caminhar rumo a salvação de
Deus, prometida a todos.
51
Idem, p. 28.
52
Cf. LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 21.
53
Idem, p. 32-48.
38
sentido, apresentaremos aspectos gerais de dois dos vários movimentos de renovação eclesial,
o litúrgico e o bíblico, por dois motivos: porque o movimento litúrgico contempla vários
aspectos de outros movimentos, inclusive do movimento bíblico e este porque contribui na
elaboração da Dei Verbum, documento principal de nossa pesquisa.
Junto à defesa de que os movimentos de renovação eclesial ajudaram a preparar o
ambiente para a realização do Concílio, é importante recordar que nos pontificados de Pio XI e
Pio XII foi cogitada a hipótese de realizar um concílio, mas não vingou. Pio XI governou a
Igreja entre os anos 1922-1939 e Pio XII, de 1939-1958. Durante o papado de Pio XI realizou-
se, em Roma, o Congresso Eucarístico Internacional, com a participação de 300 bispos. O
evento foi motivo de se pensar um concílio para continuar o Vaticano I, interrompido em 1870.
Foi constituída uma comissão para iniciar os trabalhos de consulta, depois de realizadas e, não
obtendo apoio majoritariamente favorável, o projeto foi arquivado.
Depois de Pio XI, com Pio XII, surgiu novamente a ideia de convocar um concílio, desta
vez sugerida pelo Cardeal Ruffini:
Há vinte anos eu tive a ousadia, como último dos padres, de propor a Pio XII um
Concílio Ecumênico. Parecia-me que as circunstâncias o exigiam com urgência e a
matéria a ser tratada teria sido tão abundante como no Concílio de Trento. O
venerando Pontífice não rejeitou a sugestão; ele tomou mesmo nota, como costumava
fazer quando se tratava de questões importantes. E sei também que, depois, ele falou
disso com um outro prelado54.
De fato, Pio XII conversou posteriormente com o cardeal Ottaviani sobre o assunto.
Outras informações deram crédito ao testemunho do cardeal Ruffini sobre a acolhida favorável
do Papa em convocar um concílio: um grupo chegou a elaborar um projeto para o cogitado
concílio e um esquema para sua possível realização chegou a ser escrito pelo cardeal Costantini.
Pio XII deixou os trabalhos preparatórios do futuro concílio sob a custódia do Santo
Oficio. Pensava-se um concílio que continuasse o Vaticano I, mas devido a desacordos sobre
pontos importantes, Pio XII decidiu não levar adiante o projeto. Nesse sentido, é importante
recordar que, embora o Papa não tenha levado adiante o projeto de um concílio, seu pontificado
gerou documentos de referência bíblica e litúrgica, como as encíclicas Divino Afflante Spíritu
(1943) e Mediator Dei (1947), fortalecendo ou ajudando os movimentos que acenavam para
uma renovação da Igreja, dentre eles, os movimentos litúrgico e bíblico.
54
KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I. Op. Cit., p. 9.
39
O movimento litúrgico teve início a partir do séc. XIX e se estendeu até o Vaticano II.
Foi o movimento de retorno à liturgia, na sua dimensão pastoral, científica e magisterial 55. A
semente do movimento foi plantada pelo abade de Solesme, D. Própero Guéranger, situado na
época do restauracionismo francês e se desenvolveu com Dom Lambert Beauduin, abade da
Abadia de Mont-César56.
Com Dom Guéranger viu-se mais um retorno à liturgia e a acentuação de seu caráter
espiritual e santificante; a descoberta do mistério da Igreja e a importância da leitura das
Sagradas Escrituras. A partir de Dom Lambert, enfatizou-se a dimensão pastoral da liturgia,
com publicações de material sobre a missa traduzida e comentada; publicação da revista
Questions Liturgiques, destinada à formação litúrgica do clero; promoção de formação sobre a
liturgia. As ações protagonizadas por Dom Lambert contaram com a participação de outras
abadias, na Bélgica e em outros países.
A dimensão científica da liturgia que prima pela teologia litúrgica foi iniciada na França
e na Alemanha. Na França, os estudos se concentraram sobretudo no Centro de Pastoral
Litúrgico de Paris e na Alemanha, na Abadia de Maria Laach 57. Dentre as publicações e
realizações de eventos sobre o tema, merece destaque a Primeira Semana Internacional de
Estudos, realizada em 1951 na abadia de Maria Looch, em contato direto com dicastérios
romanos58.
O magistério da Igreja também participou do movimento, quer seja apoiando-o, quer
seja orientando-o ou intervindo em momentos de conflitos ou de excessos, algo comum a todo
movimento. Nesse sentido ganham destaque os pontificados de Pio X e Pio XII. Ambos a seu
modo, contribuíram para a realização da reforma litúrgica, consumada no Vaticano II. Pio X
promoveu a reforma do breviário e a revalorização da liturgia dominical; favoreceu a renovação
da música ligúrica e do ano litúrgico e publicou a Constituição Apostólica Divino Afflatu, sobre
a reforma do Breviário. Pio XII, dentre vários feitos de promoção da reforma litúrgica, publicou
a Carta Encíclica Mediator Dei, considerada o documento magistral do movimento litúrgico de
55
Cf. BASURKO, Xabier e GOENAGA, José Antônio. A vida litúrgica sacramental da Igreja em sua evolução
histórica. In: BOROBIO, Dionisio (org.). A celebração na Igreja I. liturgia e sacramentologia fundamental. São
Paulo, Edições Loyola, 1990, p. 126.
56
Cf. COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio Vaticano II. Op. cit., p. 101.
57
Cf. BASURKO, Xabier e GOENAGA, José Antônio. A vida litúrgica sacramental da Igreja em sua evolução
histórica. Op. cit., p. 131-132.
58
Cf. COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio Vaticano II. Op. cit., p. 102.
40
59
BASURKO, Xabier e GOENAGA, José Antônio. A vida litúrgica sacramental da Igreja em sua evolução
histórica. Op. cit., p. 135.
60
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 24.
61
Idem, p. 25.
41
62
Cf. COSTA, Sandro Roberto da. Contexto histórico do Concílio Vaticano II. Op. cit., p. 95-96.
42
63
Cf. RATZINGER, Joseph. Obras completas VII/1. Op. cit., p. 44.
43
compreendido e vivido pelo ser humano. No referente à religião e à fé, estas se viram desafiadas
diante do homem de consciência técnica, mas também se acharam diante de uma possibilidade
de se proporem mais austeras e mais sólidas em seus conteúdos e em suas formas e, assim
poderem certamente ajudar o homem a se relacionar corretamente com Deus e a se compreender
melhor. Também se verifica um processo de purificação de elementos em vista do diálogo com
o homem moderno. Em suma, ainda conforme Ratzinger, a Igreja não deve temer à ciência e o
homem tem que sentir isso nela64. Foi assim que João XXIII a viu, convocando um concílio a
fim de lança-la para o anúncio do Evangelho e o diálogo com o mundo.
À luz dessa premissa, consideraremos o desenvolvimento do Concílio Vaticano II, desde
aspectos gerias do discurso de inauguração do mesmo, passando pelos quatro períodos da
assembleia conciliar até sua conclusão em 8 de dezembro de 1965.
64
Idem, p. 47.
65
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano: Primeira Sessão (Set-dez.1962). v. II. Petrópolis: Editora
Vozes,1963, p. 33-34.
44
Ao gênero humano, oprimido sob tantas dificuldades, a Igreja fala como Pedro, ao
pobre que lhe pedia esmolas: “Não tenho ouro nem prata, mas te dou o que tenho: em
nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta e anda” (At 3,6). Aos seres humanos de hoje
a Igreja não oferece riquezas caducas, nem promete felicidade terrena. Compartilha
com eles os bens da graça divina, os quais, elevando-os à dignidade de filhos de Deus,
constituem defesa e sustento para que levem todos uma vida mais humana 68.
66
JOÃO XXIII. Discurso Gaudet Mater Ecclesia. Op. cit., p. 30.
67
Idem, p. 31.
68
Idem, p. 32.
45
XXIII apontou como missão pastoral do Concílio a promoção da unidade entre todos os cristãos
e de toda família humana. O céu deve espelhar-se na vida dos humanos na terra.
Por fim, João XXIII, por meio da Gaudet mater ecclesia, aponta à Igreja, através do
Concílio, um caminho novo, de revisão de si mesma à luz de Cristo, olhando-se como realidade
mística-espiritual com a missão de interpretar coerentemente a doutrina e dizê-la, a partir de
elementos atuais, de modo a ser compreendida e acolhida pelo ser humano na sua realidade, de
promover o diálogo com o mundo e a unidade entre os seres humanos. As rotas do caminho
estavam traçadas; cabia ao Concílio acolhê-las e trabalhá-las.
Adiada a votação da eleição dos membros das comissões de trabalhos – a partir de uma
lista previamente apresentada, cada uma devendo ser composta de 16 membros, por sugestão
do Cardeal Liénart – para os participantes do Concílio se conhecerem melhor e, depois disso
indicar os nomes para as comissões, começou o debate sobre cinco esquemas: “sobre a liturgia,
as duas fontes da revelação, os meios de comunicação social, o projeto Ut unum sint (Que eles
sejam um), preparado pela comissão das Igrejas Orientais, e, por fim, a Igreja”70.
69
Idem, p. 34.
70
THEOBALD, Christoph. O concílio e a “forma pastoral” da doutrina. Op. cit., p. 394.
46
71
MORALES, José. Breve Historia del Concilio Vaticano II. Op. cit., p. 94.
72
Cf. SOUZA, Ney de. Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II. Op. cit., p. 41.
47
Você, Papa João, além de reunir como irmãos os sucessores dos apóstolos, convidou-
os a deixar de lado suas preocupações pessoais e empenho administrativo, para que,
em uníssono com o pontífice supremo, formassem um só corpo e se beneficiassem de
seu vigor e de seu equilíbrio, a fim de que o sagrado depósito da doutrina cristã se
consolide e seja proposto aos nossos contemporâneos de maneira mais consistente 74.
Como pode ser notado, a distinção da doutrina de suas expressões não é vista como
aparece no discurso de João XXIII. Em Paulo VI, é mais visto o aspecto eclesiológico do que
o doutrinário-pastoral. O enfoque eclesiológico é fortalecido pelo Papa quando ele precisa um
novo princípio organizador das atividades conciliares, a partir de quatro objetivos:
73
PAULO VI. Discurso na abertura do segundo período do Concílio. Op. cit., p. 47.
74
Idem, p. 47-48.
75
Idem, p. 50.
48
Papa à luz dos quatro objetivos, apontava que, embora em continuidade com a condução de
João XXIII, como era de se esperar, Paulo VI exerceria maior protagonismo nos debates.
Nesse segundo período nada se tratou publicamente sobre o esquema das duas fontes da
revelação. O assunto central do referido período foi a Igreja. Tratou-se, também, da relação
entre Primado e Colegialidade. Considerou-se ainda o esquema sobre o ecumenismo, liberdade
religiosa e judaísmo. Foi votada a substituição do esquema sobre a Virgem Maria por um
capítulo da Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja. Por fim, votou-se a
promulgação da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia e o Decreto
sobre os meios de comunicação social, Inter mirifica76.
No discurso de encerramento desse período, Paulo VI considerou o tema da revelação
na ordem dos trabalhos da próxima etapa77.
76
Cf. THEOBALD, Christoph. O concílio e a “forma pastoral” da doutrina. Op. cit., p. 398.
77
Cf. PAULO VI. Discurso no encerramento do segundo período do Concílio: 04/12/1963. In: CATÃO, Francisco
(Trad.). Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 64.
49
o texto foi bem recebido, cabendo a Comissão mista levar em conta as propostas de emendas
dos padres conciliares e acrescentá-las ao esquema para sua aprovação e promulgação na quarta
e última etapa do Concílio.
78
Cf. THEOBALD, Christoph. O concílio e a “forma pastoral” da doutrina. Op. cit., p. 399.
79
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. LATOURELLE, René e FISICHELLA, Rino (org.). Dicionário de
Teologia Fundamental. Tradução de Luiz João Baraúna. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 170. (Doravante,
neste texto, mencionada apenas como DTF).
80
Cf. SOUZA, Ney de. Dei Verbum: notas sobre a construção do texto conciliar. Revista de Cultura Teológica,
São Paulo, ano XXIII, n. 85, jan.-jun. 2015, p. 177-190.
50
81
Cf. LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Dei Verbum. In: DCV, p. 249.
82
Cf. TAVARES, Sinivaldo S. Revelação e história: implicações recíprocas. O legado da Dei Verbum e da
Gaudium et spes. In: AGOSTINI, Nilo (org.). Revelação e História: Uma abordagem a partir da Gaudium et Spes
e da Dei Verbum. São Paulo: Paulus, 2007, p. 58.
83
LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 170.
84
Sobre o número de consultados ver citação 28, p. 26.
85
OLIVEIRA, Flávio Martinez de. A Constituição Dogmática Dei Verbum e o Concílio Vaticano II. Cadernos
Teologia Publica, v.12, n.102. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2015, p. 9.
51
Passado o período de consultas, João XXIII, com o Motu Próprio Superno Dei86 instituiu
10 Comissões para se ocuparem das diversas sugestões enviadas pelos consultados. Dentre elas,
foi criada a Comissão Teológica, composta, a princípio, de sete membros: Tromp, Piolanti,
Garofalo, Ciappi, Gagnebet, Hürth, Balic, mais dois consultores: Staffa e Philippe, presidida
pelo Cardeal Ottaviani87, também prefeito do Santo Ofício, ulterior Congregação para a
Doutrina da Fé, com a função de tratar as questões referentes à doutrina, dentre elas, o tema da
revelação.
A Comissão Teológica tratou de esboçar um esquema com 13 pontos sobre o tema da
revelação, considerando a questão da inspiração e da inerrância das Escrituras Sagradas; o
Magistério da Igreja como o guardião das Escrituras e apresentando a Tradição como fonte da
revelação88. Dessas proposições, nasceu o primeiro esquema sobre a revelação intitulado
Schema compendiosum Constitutionis de fontibus Revelationis89.
Esse primeiro esquema foi discutido de 14-11-1962: 19ª Congregação Geral a 21-11-
1962: 24ª Congregação Geral. O esquema apresentado estava estruturado em cinco capítulos:
o primeiro capítulo sobre as duas fontes da revelação, o próximo, inspiração e inerrância da
Sagrada Escritura, o terceiro, a respeito do Antigo Testamento, o quarto, referente ao Novo
Testamento e o quinto, tratava da Sagrada Escritura na Igreja90. De modo geral, o esquema não
foi bem aceito pela maioria dos padres conciliares e entre eles surgiram opiniões divergentes
sobre o texto, favoráveis e desfavoráveis, alguns, inclusive, pedindo a reelaboração do esquema.
A minoria mostrava-se satisfeita com a proposta do texto por seguir o mesmo caminho
do Concílio de Trento e do Vaticano I sobre o tema da revelação. Já a maioria achou o projeto
excessivamente apologético, jurídico, intelectualista e pouco preocupado com a dimensão
pastoral e ecumênica que o Concílio deveria assumir. Sobre a natureza da revelação, o esquema
nada apresentava. O modo de expor sobre a inspiração, inerrância e historicidade da Escritura,
colocava empecilhos aos estudos da Bíblia. Também outros elementos que apontavam um
caminho de renovação eclesial, enfraqueciam a aprovação do texto, tais como: movimento
86
Para maiores informações sobre o Motu Próprio Superno Dei, ver p. 26-27.
87
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 170.
88
Cf. OLIVEIRA, Flávio Martinez de. A Constituição Dogmática Dei Verbum e o Concílio Vaticano II. Op. cit.,
p. 10.
89
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 170.
90
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. I I. Op. cit., p. 162.
52
91
Sobre o movimento bíblico, p. 40-41.
92
Nada chegamos a dizer referente ao movimento ecumênico, mas é importante observar, sobretudo a partir de
Libanio, que o mesmo teve início no séc. XX. Diante da dificuldade de evangelizar por causa da divisão reinante
entre católicos e protestantes, causada pela Reforma protestante e a Contrarreforma, a partir do séc. XVI, os
missionários protestantes deram os primeiros passos no diálogo em vista da evangelização. O ecumenismo foi uma
das tarefas importantes para o Concílio conforme as orientações de João XXIII. (Cf. LIBANIO, João Batista.
Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. Op. cit., p. 29-32). É bom recordar que em 1960
o Papa criou o Secretariado para a União dos Cristãos sob a presidência do Cardeal Bea, importante exegeta que
desempenhou um notável papel junto ao Concílio de modo geral e particularmente colaborou ativamente na
reelaboração do texto sobre a revelação. Portanto, o movimento ecumênico junto ao bíblico, foi fator determinante
para que o primeiro esquema sobre a revelação fosse revisto.
93
Sobre o tema ver p. 32-35.
94
Já nos reportamos ao discurso de João XXIII, proferido na abertura solene do Concílio. Nas p. 43-45, antes de
discorrer sobre os períodos da Assembleia Conciliar, nos referimos a ele novamente. O discurso de João XXIII foi
de suma importância para promover entre os padres o clima de aggiornamento, contrário à proposta inicial do
esquema De fontibus revelationis.
95
De 22-10-1962, da 4ª Congregação Geral a 13-11-1962, até a 18ª Congregação Geral, iniciou o debate sobre a
liturgia em geral, avançou sobre o uso do latim, a renovação litúrgica, a língua litúrgica, a participação na liturgia.
Ao iniciar os debates sobre as Fontes da Revelação, os padres já estavam mais familiarizados e motivados pelo
clima de renovação, de maneira que a proposta do esquema estava incompatível com o cenário do Concílio.
96
Ademais de tudo isso, na Assembleia Conciliar circulavam outros três esquemas: “O primeiro deles fora
elaborado pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos, preparado com a contribuição determinante de Stakemeir
e Feiner; o segundo, preparado com rapidez incrível, fora redigido por Karl Rahner, sob o patrocínio das
conferências episcopais austríaca, belga, francesa, holandesa e alemã e tinha por título De revelatione Dei et
hominis in Jesu Christo facta; o terceiro era um documento redigido por Y. Congar, com o título de Traditione et
Scriptura”. (LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 171).
97
O problema das duas fontes foi-se construído aos poucos na história da Igreja. A Reforma protestante formulou
o princípio da sola Scriptura, ou seja, que a Escritura é suficiente para o ser humano conhecer as verdades da fé.
O Concílio de Trento, na 4ª sessão em 8 de abril de 1546 no Decreto Sacrosancta (sobre os livros sagrados e as
tradições a serem acolhidas), afirmou que a Igreja tem a missão de conservar o Evangelho de erros e que toda a
verdade do mesmo, chega a nós por meio dos livros do Antigo e Novo Testamentos e tradições não escritas (cf.
Denz. n. 1501 e 1504). Depois de Trento, “Escritura e Tradição” foi sendo compreendidas como dois grupos de
verdades, o grupo das verdades escritas e o das verdades transmitidas oralmente, chegando com isso, a uma
compreensão quantitativa da revelação (cf. RATZINGER, Joseph. Obras completas VII/1. Op. cit., p. 418). Esse
modo de expressão: duas fontes da revelação se arrastou até o Concílio vaticano II, sendo superado pelo texto final
da Constituição Dei Verbum.
53
Escritura e tradição são para nós as fontes para o conhecimento da revelação, mas não
são em si fonte da revelação, se não que, em si, a fonte da Escritura e da tradição é a
revelação. A revelação não é uma realidade de segunda ordem a respeito das
grandezas da Escritura e tradição, mas ela é o falar e o atuar de Deus mesmo que
precede a todas as versões históricas desse falar: é a fonte unitária que alimenta a
Escritura e a tradição98.
98
Idem, p. 118.
99
SOUZA, Ney de. Dei Verbum: notas sobre a construção do texto conciliar. Op. cit., p. 186.
100
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 171.
54
passava a ser De Verbo Dei revelato”101. Mas, sobre outros pontos, como, por exemplo, sobre
a relação entre Escritura e tradição, não se chegava a um denominador comum. Diante de tais
circunstâncias, levantaram-se vozes sugerindo repetir as fórmulas de Trento e do Vaticano I
para ao menos conseguir a aprovação da maioria dos padres conciliares. Enfim, foi afirmada,
no novo esquema, a relação mútua entre Escritura e Tradição, em oposição à primeira
formulação sobre a questão das duas fontes da revelação.
Feitas as mudanças consideradas importantes, o texto foi encaminhado à Comissão de
coordenação, aprovado por ela em 27 de março de 1963 e enviado aos padres conciliares para
ser por eles apreciado. O texto não agradou. Logo verificaram-se pequenos acréscimos, fruto
de acordos, mas não uma mudança fundamental de sua estrutura102. Alguns padres observaram
a falta de maior desenvolvimento do ato da revelação de Deus, faltava dar maior ênfase a Jesus
como mediador e consumador da revelação divina; deveria expor mais sobre a Tradição,
originada no envio de Jesus aos apóstolos como transmissores da revelação, tratar de sua relação
com a Igreja e não somente com o magistério eclesial, de sua realidade dinâmica, viva, atual;
solicitava a superação de uma linguagem escolástica por uma mais bíblica e atual; desenvolver
mais a respeito da história da salvação e ao tratar da Escritura na Igreja, lembrar de uni-la à
Tradição103.
Com tudo isso a ser feito, o texto revisado não foi enviado para discussão no segundo
período do Concílio. Chegou-se a sugerir que o assunto da revelação fosse abandonado ou, pelo
menos, segundo a opinião de alguns padres do episcopado italiano e francês, que os pontos mais
importantes da revelação fossem inseridos no texto sobre a Igreja104. No encerramento do
segundo período do Concílio, em 4 de dezembro de 1962, Paulo VI colocou a revelação na
ordem dos trabalhos do terceiro período conciliar:
Ficaram ainda por ser discutida muitas outras questões, a se abordar na terceira sessão,
que se reunirá no outono do próximo ano e nos permitirá, quem sabe chegar ao fim.
Assim, por exemplo, na questão da revelação divina. O Concílio busca preservar o
depósito sagrado das verdades por Deus reveladas, contra erros, abusos e dúvidas, que
vêm à tona a partir de exigências subjetivas105.
101
Idem, p. 171.
102
Cf. SOUZA, Ney de. Dei Verbum: notas sobre a construção do texto conciliar. Op. cit., p. 187.
103
Cf. RUIZ, Gregorio. Historia de la Const. “Dei Verbum”. Op. cit., p. 15-16.
104
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 172.
105
PAULO VI. Discurso no encerramento do segundo período do Concílio. Op. cit., p. 64.
55
106
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 172.
107
Cf. RUIZ, Gregorio. Historia de la Const. “Dei Verbum”. Op. cit., p. 16 e 17.
108
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 172.
56
109
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: Quarta sessão (set. – dez. 1965). v. V. Petrópolis:
Editora Vozes, 1965, p. 344 a 348.
110
Cf. RUIZ, Gregorio. Historia de la Const. “Dei Verbum”. Op. cit., p. 25.
111
Idem, p. 26.
112
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 172.
113
Cf., p. 18-19 do texto.
114
Sacrosanctum Concilium (liturgia), Lumen Gentium (Igreja), Dei Verbum (Revelação) e Gaudium et spes
(Igreja e mundo).
115
Assim lemos no Proêmio da Constituição Dei Verbum: “Este Concílio, seguindo as pegadas dos concílios de
Trento e do Vaticano I, quer propor a verdadeira doutrina da revelação divina e de sua transmissão”. Nesse sentido,
das Constituições promulgadas pelo Concílio, a Gaudium et Spes (Igreja e mundo), se diferencia por ser de caráter
fundamentalmente pastoral.
57
caracterizar a Dei Verbum como Constituição dogmática, o Vaticano II quis lhe dar a devida
importância, especialmente pelo tema central nela exposto: a revelação divina116.
Além da importância do documento por causa do tema central em si, outros a veem
importante pela abrangência e relação com outras questões consideradas importantes para a
Igreja e a teologia. Na introdução do verbete Dei Verbum, no Dicionário do Concílio Vaticano
II, Lima apresenta uma síntese mostrando como a Constituição se relaciona com outros
documentos conciliares e o tema da mesma, se relaciona com outros temas importantes
abordados pelo Concílio:
A Constituição Dogmática Dei Verbum (DV), uma dentre as quatro promulgadas pelo
Vaticano II, trata de questões cruciais que desembocaram no Concílio desde o século
XIX, no tocante à relação da Igreja com o mundo, às relações entre fé e ciência no
contexto moderno e ao lugar das Escrituras na vida do povo de Deus. Significou
também o esforço de dialogar com as tradições protestantes, com relação à primazia
da Palavra na reflexão teológica, na liturgia e na pastoral de um modo geral. A
Constituição ocupa, nesse sentido, um lugar fundamental no propósito de
aggiornamento do Concílio e abre uma nova etapa para a teologia e para os estudos
bíblicos117.
116
Encontramos, em escritos de alguns estudiosos, referências sobre a importância da Dei Verbum, justamente
pelo tema nela tratado: “Com este documento, o concílio percorreu os grandes temas da fé cristã, propondo uma
leitura que representa ao mesmo tempo um progresso do ensinamento dogmático e sua nova apresentação ao
homem contemporâneo” (LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 170). Ainda de acordo com o mesmo
autor em outra obra, lemos: “A constituição Dei Verbum apresenta-se logicamente como o primeiro dos grandes
documentos do Vaticano II” (LAUTORELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 369). Para PIAZZA, a
Dei Verbum “trata do assunto mais fundamental do cristianismo, como seja: autenticidade, natureza, objeto da
revelação cristã” (PIAZZA, Waldomiro O. A Revelação cristã na constituição dogmática “Dei Verbum”. São
Paulo, Loyola, 1986, p. 15).
117
LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Dei Verbum. In: DCV, p. 249.
58
dos evangelhos. Todo trabalho realizado pelo Concílio permite notar uma sistematização do
tema principal da Dei Verbum:
118
LAUTORELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 399.
119
Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina. In: CATÃO,
Francisco (Trad.). Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 345. (Doravante,
neste texto, a Constituição Dogmática Dei Verbum será mencionada apenas como DV).
120
Cf. OLIVEIRA, Flávio Martinez de. A Constituição Dogmática Dei Verbum e o Concílio Vaticano II. Op. cit.,
p. 14.
59
Capítulo II
Reflexão teológica da Revelação a partir da Dei Verbum
Este capítulo pretende ser o “coração” de nosso texto por referir-se ao objetivo central
de nossa pesquisa, isto é, apresentar a novidade121 trazida pela Dei Verbum acerca da revelação.
Ainda que muitos autores tenham apontado para a singularidade do tema, pretendemos
ir além, como indicamos: em primeiríssimo lugar e, embora tenhamos acenado para tal
realidade no primeiro capítulo deste trabalho, esclareceremos sobre em que consiste tal
novidade. Num segundo momento, consideraremos o tema da revelação nos concílios de Latrão
IV, Trento e Vaticano I, onde o tema é mencionado e tratado, no intuito de mostrar a evolução
da compreensão da revelação no estudo da tradição eclesial. Num terceiro e último momento,
faremos o estudo da revelação de acordo com o primeiro capítulo da Constituição Dogmática
Dei Verbum, apontando sempre para o caráter da novidade da revelação conforme a abordagem
do documento.
2.1. Novidade
121
Entre os comentadores da Dei Verbum é unânime a afirmação de que a Constituição Conciliar, ao tratar da
revelação, traz uma novidade em relação ao modo como a mesma foi tratada nos concílios anteriores,
especialmente de Trento e do Vaticano I. Salientamos alguns: SOARES, Afonso Maria Ligorio. Revelação. In:
DCV, p. 841; BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de
Deus e da revelação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 287; LATOURELLE, René. Teologia da revelação. Op. cit.,
p. 405; SESBOÜË, Bernard. A Comunicação da Palavra de Deus: Dei Verbum. In: SESBOÜÉ, Bernard (dir.);
THEOBALD, Christoph. A Palavra da Salvação: séculos XVIII –XX. História dos Dogmas. Tomo 4. São Paulo:
Loyola, 2006, p. 434.
122
Pelo menos duas hermenêuticas podem ser vistas a partir do Concílio Vaticano II: hermenêutica da
descontinuidade ou da ruptura e hermenêutica da reforma.
61
Assim sendo, na tarefa de interpretar o Concílio Vaticano II pelo menos duas leituras se
destacaram. Em 2005, o Papa Bento XVI proferiu um discurso à Cúria Romana por ocasião das
festividades natalinas e, nele, dentro do panorama de interpretações do Concílio, distinguiu duas
hermenêuticas: a primeira, definiu como “hermenêutica da descontinuidade ou da ruptura” e a
outra, como “hermenêutica da reforma”, da renovação na continuidade do único sujeito-
Igreja123.
Sobre a primeira forma de interpretar o Concílio, Bento XVI chamou a atenção para o
risco de fragmentar a Igreja, conferindo ao Concílio um papel de “divisor de períodos”, como
se existisse uma Igreja pré-conciliar e outra Igreja pós-conciliar124. Na análise do Papa, essa
forma de leitura conciliar é fruto do pensamento de que os textos do Vaticano II, de modo
maior, provêm da “fórmula de compromissos”. Tal afirmação significa acordos feitos para se
chegar à aprovação final dos textos conciliares. A “fórmula de compromissos”, além de
comprometer a autoridade do Concílio e de favorecer certa ambiguidade na leitura dos textos,
“conduziu às conhecidas discussões entre interpretações segundo o “espírito” e segundo a
“letra” do Concílio, entre autores mais atentos às fontes oficiais, e autores mais atentos àquelas
oficiosas, entre uma leitura histórica e uma leitura teológica125.
As interpretações segundo o “espírito” e segundo a “letra” encaixam-se bem na
hermenêutica da descontinuidade ou da ruptura. Para os defensores de tal leitura, embora o
“espírito” do Concílio esteja subjacente nos textos, estes não manifestam a totalidade do
Concílio e por isso, faz-se necessário ir além dos textos para captar a verdadeira novidade
trazida pelo Vaticano II. Em suma, atender ao “espírito” do Concílio seria o mesmo que romper
com a “fórmula de compromissos”. Nesse modo de compreensão, a novidade trazida pelo
Vaticano II situa-se no nível da descontinuidade ou da ruptura.
Em oposição à “hermenêutica da descontinuidade ou da ruptura”, Bento XVI apresenta
a “hermenêutica da reforma”, da renovação na continuidade do único sujeito Igreja. Para
estabelecer tal oposição ele recorre ao discurso de João XXIII na abertura do Concílio126 e ao
discurso de Paulo VI no encerramento do Vaticano II127. Como é sabido (e Bento retoma a
afirmação), João XXIII no seu discurso de abertura falou da importância de distinguir a fé de
123
Cf. BENTO XVI. Discurso aos cardeais, arcebispos e prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos
de natal. Op. Cit.
124
Idem, p. 4.
125
Cf. AMARAL, Miguel de Salis. Hermenêutica da Reforma. Op. cit., p. 37.
126
No primeiro capítulo deste texto, diversas vezes foi feita a referência ao discurso de João XXIII na abertura do
Concílio.
127
O Discurso de Paulo VI foi proferido em 7 de dezembro de 1965, no encerramento da nona sessão do Concílio.
O encerramento do Concílio deu-se no dia seguinte em 08 de dezembro de 1965, com a Celebração Eucarística na
Praça de São Pedro.
62
suas expressões, de conservá-la e propô-la ao mundo de maneira mais eficaz, apontando essa
tarefa como primordial do Concílio. No encerramento do Vaticano II, Paulo VI recordou a
afirmação de João XXIII:
Ressoam ainda nesta Basílica de São Pedro as palavras de nosso predecessor João
XXIII, principal autor do Concílio, na sua abertura: O Concílio deve cuidar sobretudo
de conservar e propor de maneira mais eficaz o depósito da doutrina cristã (…). Tudo
que aconteceu foi decorrência desse primeiro proposito128.
O Vaticano II deve ser entendido à luz da tradição global da Igreja. Essa é a intenção
que preside ao Vaticano II. Por conseguinte, seria absurdo distinguir entre a Igreja
pré-conciliar e pós-conciliar, como se esta fosse uma Igreja completamente nova ou
como se, depois de um prolongado período de escuridão na história da Igreja, o último
concílio houvesse descoberto o evangelho original. Ao contrário, o Vaticano II mesmo
encontra-se na tradição de todos os concílios precedentes e quis renová-la. Assim,
pois, há que interpretar o Vaticano II no contexto dessa tradição, especialmente da
confissão trinitária e cristológica da Igreja antiga 131.
128
PAULO VI. Discurso pronunciado na nona sessão do Concílio: 07/12/1965. In: In: CATÃO, Francisco (Trad.).
Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 119-120.
129
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja. In: CATÃO, Francisco
(Trad.). Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 185.
130
DV, 1.
131
KASPER, Walter. El desafio permanente del vaticano II. Hermenéutica de las aseveraciones del Concílio, 409.
Apud VILLAR, José R. Diccionario Teológico Del Concilio Vaticano II. Navarra, Ediciones Universidad de
63
No concílio não se deu uma descontinuidade dogmática, senão uma maior penetração
teológica e pastoral no interior da tradição mesma e sem recusar seus elementos
permanentes. O concílio não mudou a doutrina, senão que, com efeito da
impressionante renovação da teologia do s. XX, desenvolveu a potencialidade da
tradição em ordem à vida da Igreja e ao anúncio do Evangelho na época
contemporânea134.
Navarra, 2015, p. 95. (Doravante, neste texto, o Diccionario Teológico Del Concilio Vaticano II será mencionado
apenas como DTCV).
132
BENTO XVI. Carta Apostólica Porta Fidei. São Paulo: Paulus; Loyola, 2011, n. 4. (Doravante, neste texto,
mencionada apenas como PF).
133
Cf. BENTO XVI. Discurso aos cardeais, arcebispos e prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos
de natal. Op. cit., p. 7.
134
VILLAR, José R. Introducción. In: DTCV, p. 96.
64
135
Cf. BENTO XVI. Discurso aos cardeais, arcebispos e prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos
de natal. Op. cit., p. 4.
65
que o Vaticano II foi o primeiro Concílio a tratar o tema de maneira abrangente, reservando-
lhe um documento.
Antes do Vaticano II, no entanto, o termo havia sido considerado em três concílios: no
Concílio de Latrão IV, no Concílio de Trento e no Concílio Vaticano I – sendo que, no último,
de maneira mais abrangente que nos dois anteriores. Devido a isso, recordaremos bastantes
elementos da Constituição Dogmática Dei Filius, para melhor compreender a novidade do tema
da revelação desenvolvido pela Constituição Dogmática Dei Verbum.
Como pode ser verificado, o termo revelação não aparece neste Concílio. Aparece
relacionado à Trindade, que revela ao homem a “doutrina da salvação” e em chave apologética,
como era de se esperar, devido ao combate à doutrina dos cátaros e albigenses. A revelação
aparece como doutrina, ressaltando que o termo doutrina, de acordo com Libanio, naquela
época, não tinha o mesmo sentido de rigidez que tem hoje. “O termo doutrina tem muita
densidade significativa, no sentido de comunicação, ensinamento, manifestação do mundo de
verdades”138.
136
“Os membros dessa seita fundam seu ensino em uma Bíblia, da qual excluem quase todo AT (Antigo
Testamento) e que interpretam a seu modo, concedendo um interesse particular ao evangelho de João. A doutrina
repousa na crença na existência de dois deuses, um bom e outro mau, hostis um ao outro desde toda eternidade.
Eles criam dois mundos, um deles material, e o outro espiritual e invisível”. (GOBILLIARD-PALLES, Annette e
THREEPWOOD, Galahad. Catarismo. In: LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário Crítico de Teologia.
Tradução: Paulo Meneses. São Paulo: Paulinas: Loyola, 2004, p. 360). (Doravante, neste texto, mencionado
apenas como DCT).
137
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral; traduzido por José
Marino e Johan Konings. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007, n. 8000. (Doravante, neste texto, mencionado
apenas como Denz.).
138
LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992, p. 381-
382.
66
A revelação é acordada como iniciativa de Deus. Dele ela parte e por Ele é confiada a
alguns e acontece de acordo com o desejo de Deus. Não é fruto do desejo de alguns, aqui no
caso, dos espiritualistas cátaros ou albigenses.
139
LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 290.
67
princípio da sola Scriptura, o Concílio não opôs o princípio da Tradição como depois se
desenvolveu na teologia católica e desembocou na teoria das duas fontes da revelação, que se
estendeu até o Concílio Vaticano II, mas a tratou como realidades oriundas da mesma fonte,
portanto, unidas, pelas quais o Evangelho é transmitido em toda sua pureza. Eis o texto do
Concílio:
140
Denz. 1501.
141
Cf. LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 295.
68
142
“Surgido no s. XVI na França em oposição a “empírico”, o adjetivo “racionalista” (rt) teve primeiramente uma
carreira filosófica: é rt aquele para quem o pensamento puro tem mais poderes cognitivos do que a experiência.
Foi somente no s. XVI que começou a história teológica (teol.) do racionalismo (rm)”. (LACOSTE, Jean-Yves.
Racionalismo. In: DCT, p. 1484).
René Descartes é um dos primeiros e mais conhecidos proponentes do racionalismo, que é frequentemente
conhecido como cartesianismo (e seguidores da formulação do racionalismo de Descartes como cartesianos). Ele
acreditava que o conhecimento das verdades eternas (por exemplo, a matemática e os fundamentos
epistemológicos e metafísicos das ciências) poderia ser alcançado apenas pela razão, sem a necessidade de
qualquer experiência sensorial. Outro conhecimento (por exemplo, o conhecimento da física), exigia a experiência
do mundo, auxiliado pelo método científico – uma posição racionalista moderada. Por exemplo, sua famosa
máxima "Cogito ergo sum" ("penso, logo existo") é uma conclusão a priori e não através de uma inferência a partir
da experiência. Descartes sustentou que algumas ideias (ideias inatas) vêm de Deus; outras ideias são derivadas
da experiência sensorial; e ainda outras são fictícias (ou criadas pela imaginação). Destas, as únicas ideias que são
certamente válidas, segundo Descartes, são aquelas que são inatas. (Cf. NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica:
de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995, p. 40).
143
O panteísmo é a crença de que Deus e o universo são um e o mesmo. Não há linha divisória entre os dois. O
panteísmo é um tipo de crença religiosa, e não uma religião específica, semelhante a termos como monoteísmo e
politeísmo. (Cf. ASLAN, Reza. Deus: Uma história humana. Rio de Janeiro: Zahar editores, 2018, p. s/s).
144
O deísmo é uma forma de monoteísmo em que se acredita que um Deus existe, mas que este Deus não intervém
no mundo, nem interfere na vida humana e nas leis do universo. Ele postula um criador não-intervencionista que
permite que o universo funcione de acordo com as leis naturais. O deísmo deriva a existência e a natureza de Deus
da razão e da experiência pessoal, em vez de confiar na revelação das escrituras sagradas (que os deístas veem
como interpretações feitas por outros humanos e não como uma fonte autorizada) ou no testemunho de outros. Isso
está em contraste direto com o Fideísmo (a visão de que a crença religiosa depende da fé ou da revelação, e não
da razão). Pode ser melhor descrito como uma crença básica e não como uma religião em si, e atualmente não há
religiões deístas estabelecidas. (Cf. ZILLES, Urbano. Religiões: Crenças e Crendices. Porto Alegre: Edipucrs,
2012, p. 10).
145
“Na história da teologia católica, indica-se com esse termo um movimento de pensamento que se desenvolveu
na França no início do século XIX, como reação ao racionalismo e ao liberalismo do século precedente. A principal
característica desse movimento foi a de uma atitude crítica rigorosa diante da razão humana tomada como critério
único de verdade entre os enciclopedistas, substituindo-a por uma exagerada exaltação da fé, fundamento de si
mesma e capaz de reconhecer a verdade da revelação sem necessidade de quaisquer sinais exteriores ou de motivos
69
Na verdade, na base do fideísmo está a concepção de uma fé cega e com isso ele surge
como o extremo oposto do racionalismo radical que, por sua vez, dedica à razão a competência
exclusiva e certa de conhecer toda a verdade. O Vaticano I se dá em meio a esses dois polos e
deve buscar uma resposta equilibrada para afirmar a realidade da revelação em oposição ao
racionalismo e ao fideísmo. Tal realidade foi tratada na Constituição Dei Filius nos termos:
A mesma Santa Mãe Igreja sustenta e ensina que Deus, princípio e fim de todas as
coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, a partir das
coisas criadas; “pois o invisível dele é divisado, sendo compreendido desde a criação
do mundo, por meio do que foi feito” [Rm 1, 20]. Mas ensina que aprouve à sua
sabedoria e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os eternos decretos da sua
vontade, por outra via, e esta sobrenatural, conforme diz o Apóstolo: “Havendo Deus
outrora em muitas ocasiões e de muitos modos falado aos pais pelos profeta,
ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho” [Hb 1, 1s]148.
de credibilidade”. (OCCHIPINTI, G. Fideísmo. In: PACOMIO, Luciano e MANCUSO, Vito (orgs.). LEXICON:
Dicionário teológico enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003, p. 300). (Doravante, neste texto, mencionado apenas
como LDTE).
146
Cf. LIBANIO, João Batista. Teologia da Revelação a partir da modernidade. Op. cit., p. 384.
147
NEUFELD, Karl Heinz. Fideísmo. In: DCT, p. 733.
148
Denz. 3004.
70
149
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação. op. cit., p. 259.
150
Idem, p. 260.
151
FRIES, Heinrich. A Revelação. In: FEINER, Johannes; LÖHRER, Magnus (ed.). Mysterium Salutis.
Compêndio de Dogmática Histórico-Salvífica. Vol. I/1. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971, p. 178.
71
acolhimento ao Deus revelado. Mas, também é importante fazer um esforço para notar algo de
positivo em tudo isso, especialmente perceber que as correntes de pensamento da época
“obrigaram” a Igreja a repensar a revelação, o modo de dizê-la e aprofundar elementos da
natureza e concretização da mesma, conforme a Dei Verbum trabalhará.
O Concílio lidou com a revelação a partir de toda problemática do racionalismo e
fideísmo (e seus elementos fortalecedores) e, por isso, deixou sobressair mais o aspecto formal
da revelação do que o existencial, como será visto no estudo em consonância com a Dei
Verbum. Apesar disso, de acordo com Latourelle, é possível ver já a partir do Vaticano I, a
revelação como uma “ação pessoal de sujeito a sujeito, e não de objeto a objeto; histórica,
progressiva, culminando com a ação do Filho; salvífica, universal, desejando associar a
humanidade toda aos bens da vida divina”152.
Após tratar a questão da revelação, a Dei Filius debruçou-se sobre a realidade da fé.
Como na Dei Verbum, também aqui, a fé é compreendida como decorrente da revelação:
resposta do homem a Deus que se revela. Assim como o Vaticano I acentuou mais o caráter
conceitual da revelação, o mesmo se pode dizer da fé:
Visto que o homem depende inteiramente de Deus como seu criador e Senhor, e que
a razão criada está inteiramente sujeita à Verdade incriada, somos obrigados a prestar,
pela fé, a Deus que revela, plena adesão do intelecto e da vontade. Esta fé, porém, que
é o início da salvação humana, a Igreja a professa como virtude sobrenatural, pela
qual, sob a inspiração de Deus e com a ajuda da graça, cremos ser verdade o que ele
revela, não devido à verdade intrínseca das coisas conhecida pela luz natural da razão,
mas em virtude da autoridade do próprio Deus revelante, o qual não pode enganar-se
nem enganar153.
152
LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 312.
153
Denz. 3008.
72
O Concílio Vaticano II elaborou, sem romper com os concílios anteriores, uma doutrina
da revelação cristã de maneira nova. Assim se deu de forma a superar a disputa com as correntes
do racionalismo, do historicismo, do avanço das ciências e da linguagem, que questionavam a
validade da revelação, sua natureza, sua objetividade e punham em cheque o caráter científico-
histórico dos textos sagrados.
Uma leitura atenciosa do documento em comparação com outros textos magisteriais ou
vista a partir do século XVI,155 fará perceber a novidade trazida pela Constituição Dogmática
Dei Verbum sobre a revelação, unanimemente confirmada por seus comentadores.
Além disso, outro elemento importante para a clareza de determinada realidade foi o
próprio processo histórico até a construção final do documento sobre a revelação cristã156.
Devido a isso, alguns autores defendem que a Constituição é o documento central do Concílio
pois, em razão do tema abordado, o documento contempla os grandes temas da fé cristã. É
possível que seja desse modo, mas, indo além, e como já lembrado, o texto faz pontes com
outros temas importantes para a teologia e a Igreja. Ou ainda, como afirma Böttigheimar: “No
Plano doutrinal, a DV [Dei Verbum]é o documento-fonte da obra conciliar, a chave
hermenêutica de todos os demais textos. Do ponto de vista ecumênico, é de importância muito
grande”157.
Enfim, diante do exposto, que novidade traz a Dei Verbum acerca da revelação? E como
pode ser abordada?
154
Cf. BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação. Op. cit., p. 265.
155
Nesse recorte temporal, do lado católico se firmava a distinção entre a Escritura e as tradições; do lado
protestante, só se concebia a Escritura como princípio único válido para a fé, notando-se o empenho das filosofias
em tributar à razão humana a única norma válida para admitir algo como verdadeiro.
156
Como tratado no primeiro capítulo deste trabalho, do ponto de vista histórico o documento referido foi o mais
importante, pois ocupou desde o primeiro período até o último do Concílio, sofrendo a redação do texto mudanças
significativas e ajustes importantes. Ademais, passou também por várias mãos, no sentido de que a medida que o
Concílio avançava, mais pessoas eram responsabilizadas para ajudar na construção do texto. Mas, não podemos
pensar na importância do documento somente a partir de sua história, e sim também sua relevância se deve ao
tema da revelação, fundamental para a fé cristã, como para outros temas com os quais a revelação se une, como
por exemplo: pneumatologia, trindade, escatologia, cristologia. Ainda o documento tem importância pela sua
contribuição na valorização da Bíblia na vida das comunidades, entre outras razões.
157
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação. Op. cit., p. 173.
73
158
Conforme Piazza diz: “A posição assumida pelo Vaticano II foi positiva e independe, tendo em vista apenas a
auto comunicação recebida de Deus e fielmente transmitida pelas Escrituras e pela Tradição. Não debateu as
posições gratuitas do positivismo e do racionalismo, mas deu maior ênfase ao caráter histórico e salvífico da
revelação nas Escrituras”. (PIAZZA. Revelação cristã na constituição dogmática “Dei Verbum”. Op. cit., p. 17).
159
João XXIII no discurso de abertura do Concílio, Gaudet Mater Ecclesia, fala sobre o “desprezo de Deus, da
confiança cega nos progressos da técnica e à ideia de que o bem dependeria apenas de fatores materiais”. Em
contrapartida, percebe-se o esfriamento da fé e o distanciamento da mesma da vida das pessoas. Consequentemente
minguam os valores morais e cresce a desconfiança entre os seres humanos.
74
de abertura do Concílio, tais como: ler os sinais dos tempos à luz da fé, olhar a história e o
mundo como lugar de atuação de Deus, ir ao encontro do homem na sua realidade concreta para
unir-se a ele, ouvi-lo e lhe falar de Jesus, revelador do mistério do Pai e do destino final do
homem160.
O Concílio quis apresentar uma doutrina positiva e propositiva de maneira a favorecer
o encontro do homem com Deus em Jesus no Espírito Santo161, chamado para viver em relação
de amor com Deus a partir da resposta da fé, resposta a ser dada a Deus de maneira total e livre
e a ser vivida no concreto da vida e na relação com o semelhante.
160
Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In:
CATÃO, Francisco (Trad.). Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 485.
161
Cf. DV, n. 2.
162
Cf. RUIZ, Gregorio. Historia de la Const. “Dei Verbum”. Op. cit., p. 5.
163
Para mais informações, consultar: KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II: v. II. Op. cit., p. 161-
196.
164
Para consultar o discurso de João XXIII na abertura do Concílio. In: CATÃO, Francisco (Trad.). Vaticano II:
mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 27-35.
75
Ao apresentar a doutrina da revelação a partir das duas fontes, o primeiro texto trazido
em aula conciliar era teologicamente deficiente em sua base, conforme afirma Ratzinger, por
apresentar a Escritura e a Tradição como fontes da revelação. Com efeito, como recordou o
teólogo165, a Escritura e a Tradição não são fontes da revelação, mas são canais pelos quais o
homem conhece a revelação. Nesse sentido, esta
não é uma realidade de segunda ordem das magnitudes de Escritura e tradição, senão
que é o falar e atuar mesmo de Deus que procede a todas as versões históricas desse
falar: é a fonte unitária que alimenta a Escritura e a tradição… antes de dizer algo
sobre os testemunhos da revelação, há que dizer primeiramente algo sobre a revelação
mesma166.
De acordo com Ribeiro167, a doutrina das duas fontes, embora tenha se firmado a partir
de Trento, remonta ao tempo da patrística, mas, na tentativa de reparar o unilateralismo do
princípio protestante da sola Scriptura, levou a teologia católica a reconhecer na tradição oral
a mesma autoridade dada pelo protestantismo à Escritura. A distinção feita levou à separação e
finalmente à afirmação da doutrina das “Duas Fontes”.
Como é sabido, a questão das duas fontes da revelação começou após o Concílio de
Trento e se arrastou até as portas do Vaticano II. Em Trento, houve a tentativa de distinguir, no
Depósito da fé, duas partes. A revelação é comunicada: uma parte vinda das Escrituras e outra,
vinda da Tradição168. O objetivo de tal tentativa é claro: opor ao princípio protestante da sola
Scriptura com o princípio católico da sola Traditio. O Concílio de Trento não seguiu este
caminho, mas afirmou que o Evangelho, prometido pelos profetas, promulgado por Jesus Cristo
e por ele dado aos apóstolos, está nos livros escritos e tradições não escritas169.
Tratando sobre a forma sobrenatural da revelação, a Constituição Dogmática Dei Filius
do Vaticano I retomou Trento e reafirmou:
Esta revelação sobrenatural, pois, segundo a doutrina de Trento, está contida “nos
livros e nas tradições” não escritas”170 e sobre a realidade da fé, considerou a mesma
coisa: “Deve-se pois, crer com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra
de Deus escrita ou transmitida…171.
165
Conforme a citação 98, p. 53.
166
RATZINGER, Joseph. Obras completas. VII/1. Op. cit., p. 118-119.
167
Cf. RIBEIRO, Ari Luís do Vale. A superação da doutrina das “duas fontes”. Revista de Cultura Teológica,
São Paulo, v. 16, n. 64, jul.-set. 2008, p. 49.
168
Cf. ROXO, Roberto Mascarenhas. O Concílio: teologia e renovação. Op. cit., p. 41.
169
Cf. Denz. 1501.
170
Denz. 3006.
171
Denz. 3001.
76
Mesmo que Trento e o Vaticano I tenham caminhado para a não oposição entre Sagrada
Escritura e tradição, a questão das “Duas fontes” persistiu e coube ao Vaticano II superá-la,
primeiro pela rejeição do esquema De fontibus revelationis no início das discussões sobre a
revelação e, depois, afirmando a unidade íntima entre a Tradição e Escritura, conforme se lê no
segundo capítulo da Dei Verbum:
Aqui se nota não só a superação da doutrina das “Duas Fontes”, presente no esquema
De Fontibus Revelationis que se quis definir como dogma católico, mas também um
reordenamento da teologia e de toda a Igreja para o seu centro que é o Evangelho de
Cristo, a fonte da Revelação divina. E a motivação teológica de tal superação está na
confissão da comum origem divina da Tradição e da Escritura, e que Deus dispôs que
ambas fossem os meios da transmissão da Revelação 174.
172
DV, 9.
173
LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 389.
174
RIBEIRO, Ari Luís do Vale. A superação da doutrina das “duas fontes”. Op. cit., p. 59.
77
175
Ruiz salienta que o documento tende para a organicidade e essa é sua primeira característica. “À diferenciação
analítica, à delimitação antitética, o Concílio preferiu a visão orgânica… Isto significava a superação da teologia
polêmica”. (RUIZ, Gregorio. Historia de la Const. “Dei Verbum”. Op. cit., p. 5).
176
“A constituição oferece bases sólidas para um trata dogmático sobre a revelação. Examinam-se todos os pontos
fundamentais: a natureza, o objeto, a finalidade, a economia, o progresso e a pedagogia da revelação; a posição
central do Cristo como Deus que revela e como Deus revelado; a resposta da fé, a transmissão da revelação, as
formas dessa transmissão; as relações da Escritura e da Tradição ante a Igreja e o Magistério”. (LATOURELLE,
René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 400).
177
Essa é a intuição de Joseph Ratzinger ao comentar o Proêmio da Dei Verbum: “O texto do Concílio indaga os
pressupostos formais do anúncio – Revelação, Tradição, Inspiração –, que, como categorias fundamentais,
determinam sem dúvida todo discurso teológico e querigmático”. (RATZINGER, Joseph. Obras completas. VII/2.
Sobre la enseñanza del Concilio Vaticano II. Formulación, transmisión, interpretación. Madrid: BAC, 2016, p.
682).
178
Cf. IZQUIERDO, César. La forma e los médios de la revelación. Theologica, 2.ª Série, v. 47, n. 2. Pamplona
(España): Universidad de Navarra, 2012, p. 285-297.
179
Outros autores trabalham a revelação destacando os aspectos de novidade apresentados na Dei Verbum em
comparação a Dei Filius.
180
DV, 1.
78
PIAZZA, Waldomiro O. A Revelação cristã na constituição dogmática “Dei Verbum”. Op. cit., p 36.
181
182
Essa é uma conclusão possível do que foi sugerido por Latourelle. (Cf. LATOURELLE, René. Teologia da
Revelação. Op. cit., p. 420-423).
79
A partir do proêmio, nota-se que o texto conciliar fará passagens importantes na maneira
de conceber a revelação cristã. Nota-se que a revelação, em sua dimensão primeira, não se trata
de comunicação de verdades ou de instrução de Deus, mas da manifestação do dom pessoal de
Deus aos homens, gerador de comunhão e de diálogo com os homens e entre eles. Também o
proêmio unir-se-á ao segundo capítulo do documento sobre a transmissão da revelação divina,
dimensão a ser contemplada no terceiro capítulo deste texto.
A citação acima é central para entender o ato da revelação, seu objeto e sua natureza,
como também para ver os primeiros elementos da novidade contemplada no documento ao
trabalhar o tema, possibilitando ao Concílio remontar às origens bíblica e patrística, para
descrever a revelação como ato de Deus, que livremente se doa. Na descrição da natureza da
revelação, como será percebido, aprofunda-se ainda mais a dimensão pessoal e dialógica da
mesma.
Antes de falar sobre qualquer outra realidade da revelação ou a ela relacionada, como,
por exemplo, sobre os meios de sua realização na história, das verdades por ela transmitida ou
dos canais de sua transmissão, a Dei Verbum quis abordar o fato mesmo da revelação, referindo-
se diretamente a Deus como agente revelador. Assim, o documento parte primeiramente da
fonte para chegar aos meios de realização, de conhecimento e de transmissão.
“Quis Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e manifestar o mistério
de sua vontade”184. Essa primeira frase do documento retoma a afirmação do Vaticano I, no
capítulo II da Dei Filius: “aprouve à sua sabedoria e bondade revelar-se à humanidade a si
mesmo e os eternos decretos da sua vontade”185. Como se vê, enquanto que a Dei Filius, refere-
se a Deus por meio das categorias abstratas sabedoria e bondade, a Dei Verbum faz referência
em primeiríssimo lugar a Deus. Nesse sentido, já de início, o Concílio faz uma passagem
importante no modo de falar da revelação, apresentando-a como um acontecimento de
183
DV, 2.
184
DV, 2.
185
Denz. 3004.
80
186
Cf. CONSECA, Francisco. La naturaleza de la revelación según el Concilio Vaticano II. Scripta Theologica,
v. 45, n. 2, Pamplona (España): Universidad de Navarra, 2013, p. 367.
187
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação. Op. cit., p. 287.
188
DV, 2.
81
O fato de pôr em evidência o termo pessoal “Deus”, mais do que os seus atributos de
sabedoria e bondade, como também a escolha da expressão bíblico-paulina
“sacramentum” (= “mistério”) contribuem para afirmar ainda mais claramente que o
Deus pessoal é, ao mesmo tempo, o sujeito vivo e o objeto transcendente da revelação,
a qual, deste modo, aparece em plena luz como o evento da auto comunicação livre e
gratuita dele aos homens191.
Compõe o quadro do objeto da revelação sua dimensão trinitária: “os homens têm acesso
ao Pai e se tornam participantes da natureza divina por Cristo, Verbo encarnado, no Espírito
189
Cf. RATZINGER, Joseph. Obras completas. VII/2. Op. cit., p. 686.
190
Cf. Ef 3,3-6; Col 1,25-27.
191
FORTE, Bruno. Teologia da história: ensaio sobre a revelação, o início e a consumação. São Paulo: Paulus,
1995, p. 141.
82
Santo (cf. Ef 2,18; 2 Pd 1,4)”192. O texto, além de orientar para a dimensão trinitária da
revelação, especificando a missão das pessoas divinas no acontecimento da revelação – o Pai é
o iniciador, o Filho, o consumador da revelação, o iniciador da comunhão dos homens com o
Pai e o Espírito, consumador da comunhão iniciada pelo Filho –, une as categorias de revelação
e salvação193 e afirma – segundo Alonso – a dimensão pessoal da revelação: “Deus revela o
mistério de sua vontade salvadora. Esta salvação tem uma estrutura trinitária, de modo que o
pessoal retorna com toda força”194. A revelação é fundamentalmente revelação de pessoas: do
mistério de amor e comunhão das pessoas divinas, da pessoa de Cristo e do homem chamado
por Cristo à filiação divina.
A origem e o objeto da revelação cristã são de caráter trinitário. Ao elaborar assim a
revelação, o Concílio supera uma concepção fechada do monoteísmo restrito que atribui a
origem da revelação à ação do Deus absolutamente uno. Assim seria difícil afirmar o enfoque
pessoal e dialógico da revelação, como também sua dimensão histórica, como fez o Concílio.
Ademais, sem a dimensão trinitária da revelação, se reforçaria a tese da “verdade da
representação”195. Deus interviria na história, mas sempre a partir de mediadores humanos, seria
uma intervenção sempre externa a si, não a partir de si mesmo e a revelação tratar-se-ia de
transmissão de conhecimentos. Com efeito, Deus é alguém que se doa. Com isso, também o
Concílio superou uma concepção da revelação de viés “cristomonista”196 e acentuou o caráter
cristocêntrico da revelação.
192
DV, 2.
193
Para Izquierdo, revelação e salvação se manifestam unidas na vontade amorosa de Deus sobre os homens. Ao
se revelar, Deus manifesta sua intenção salvífica. No entanto, a revelação, que é elemento fundamental da salvação
é distinta desta. Para o teólogo, enquanto que a salvação tem um caráter de universalidade, a revelação consumada
em Cristo, não. Nisso consiste o aspecto mais relevante para tal distinção. (Cf. IZQUIERDO, César. La forma e
los médios de la revelación. Op. cit., p. 286).
194
ALONSO, Luis Schökel. Naturaleza de la Revelación: unidad y composicion. In: ALONSO, Luis Schökel
(org.). Concílio Vaticano II. Comentários a la constitución Dei Verbum: sobre la divina revelación. Madri: BAC,
1969, p. 135-136.
195
Para Izquierdo, se na revelação, Deus é considerado em sua unicidade restrita, ele atuaria na história sempre
por meios de mediadores humanos, não podendo fazer a partir de si mesmo. (Cf. IZQUIERDO, César. La forma e
los médios de la revelación. Op. cit., p. 289).
196
Cristomonismo: “Termo um tanto recente no campo teológico com o qual se designam diversas coisas.
Etimologicamente, deriva de Christós (Cristo) e mónos (só, unicamente). Historicamente tem-se o “solus Christus”
de M. Lutero e do luteranismo. Com isso, quis-se e quer-se ainda significar o primado e a unicidade da mediação
de Jesus Cristo para que o homem alcance e viva uma relação de graça com Deus…. Todavia, com o termo
cristomonismo indicam-se formalmente algumas posições ou tendências ideológicas bem determinadas. A
tendência teológica católica, na opinião de alguns teólogos ortodoxos deste século (V. Losky e N. Nissiotis), de
relacionar a realidade da Igreja unilateralmente a Jesus Cristo como seu fundador e princípio de vida, não
valorizando suficientemente a missão e função originais do Espírito Santo…”. (IAMMARRONE, G.
Cristomonismo. In: LDTE, p. 161).
83
197
DV, 2.
84
Na dimensão divina, a palavra tem uma função essencial no papel da revelação e ocupa
o segundo nível de comunicação descrito acima. Ela domina o modo primordial da revelação
de Deus ao homem. Deus é o Deus que fala. Não, porém como os homens. De fato, se for levado
em conta que o Verbo encarnado “estava junto de Deus e era Deus” (Jo 1, 1), o falar de Deus é
desde toda eternidade, portanto divino, absoluto e original, coisa impossível ao homem. Fala
desde Si mesmo, de modo a ser compreendido pelo homem, do seu mistério de amor e do seu
projeto de salvação para tornar o homem participante de sua vida divina. Ao falar, Deus chama
o homem à obediência da fé, à amizade Consigo; fala de sua intimidade à intimidade do homem
para que este possa responder-Lhe na fé desde seu interior e por ela entrar no mistério de sua
Palavra. Do modo do falar divino, decorre o termo “analogia” ligado à realidade da Palavra de
Deus.
O uso do termo “analogia” aplicado à Palavra de Deus, como lembrou Bento XVI,
refere-se aos vários modos de manifestação da Palavra, mas em primeiro lugar, “diz respeito à
comunicação que Deus faz de Si mesmo e assume significados diversos que devem ser
atentamente considerados e relacionados entre si, tanto do ponto de vista da reflexão teológica
como do uso pastoral”198. Assim, com a expressão Palavra de Deus se compreende também as
etapas da história da revelação em que Deus falou, dando testemunho de Si na criação, quando
se manifestou a Abraão, a Moisés, aos profetas e, por meio dos profetas, ao seu povo e por fim,
falou definitivamente por Cristo, Verbo encarnado.
Tendo falado da analogia da Palavra de Deus a fim de tratar da dimensão interpessoal
da revelação, o Concílio, conforme afirma Latourelle, “nada disse quanto à disposição concreta
adotada por Deus para se pôr em intercambio pessoal com o homem”199. Para explicitar o modo
concreto de Deus pôr-se em relação pessoal e dialógica com o homem, o Concílio falou sobre
a economia da revelação, realizada pelas vias da encarnação e da história, feita a partir de gestos
e palavras, intimamente unidos:
Por um lado, o uso dos termos “economia” – evocado várias vezes na Dei Verbum: (DV
2, 4, 14 e 15) – e “história da salvação” levou o Concílio a considerar como dimensão essencial
198
BENTO XVI. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 17.
(Doravante, neste texto, mencionada apenas como VD).
199
LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 373.
200
DV, 2.
85
da revelação o plano universal salvífico de Deus, conservado por Ele e posto em execução na
história; por outro, mostrou que a revelação não se deu somente na história, mas se concretizou
e se desenvolveu a partir de acontecimentos históricos. A partir dos termos “economia” e
“história da salvação”, a revelação é descrita como acontecimento histórico-salvífico. Como
afirma Latourelle, é a primeira vez que um Concílio assim se expressa sobre a economia da
revelação201.
Concretamente a “economia” e a “história da salvação” se realizam por obras e palavras.
Trata-se de categorias importantes na Constituição, vistas várias vezes na mesma (DV 2, 7, 14,
17, 18) e sempre de forma unitária. Segundo Conseca, os dois termos referidos compõem a
estrutura básica da revelação202. Ou seja, de um lado contempla-se as intervenções salvíficas de
Deus na história, não aleatórias, mas a partir de um plano conservado e traçado por Ele e posto
em prática a favor da humanidade; do outro, a palavra de Deus, testemunhada na criação e
dirigida a Abraão, Moisés, aos profetas e, por meio deles ao povo e por fim, dirigida aos homens
por meio do Filho, plenitude da revelação divina.
As obras manifestam o agir de Deus ao longo da história da salvação, as intervenções
divinas em favor de um povo ou de alguém. Algumas são realizadas diretamente por Deus e
outras, por meio de mediadores. Elas são também milagres realizados por Ele no meio do seu
povo ou também por seus mensageiros, mas não se reduzem a milagres. No Antigo Testamento,
há várias passagens em que são descritas as obras de Deus, por exemplo: o êxodo, o exílio, a
constituição da monarquia, a repatriação do povo para Israel. Todas manifestam o agir livre
divino em favor do povo eleito por Ele, realizadas por Ele ou por sua deliberação. As palavras
são de Deus, dirigidas a Abraão, Moisés, aos profetas e ao povo, por meio de seus mensageiros;
são as palavras dos profetas recebidas d’Ele, para serem transmitidas ao povo.
No Novo Testamento, os gestos são as inumeráveis obras de Jesus Cristo, são seus
milagres, os sinais por Ele realizados em favor do ser humano. São as obras dos discípulos aos
quais Jesus ordenou realizá-las. Elas manifestam o poder salvífico do Cristo. As palavras são
as de Cristo comunicadas a tantas pessoas: discípulos, apóstolos, homens, mulheres, crianças,
jovens; palavras de curas, de ordem, de libertação, de apelo, de chamamento, de perdão, de
advertência, de correção fraterna, palavras reveladoras do Reino e da missão de Jesus. São
também as palavras dos discípulos recebidas de Jesus e comunicadas aos homens,
especialmente em forma de anúncio do Evangelho.
201
Cf. LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 374.
202
Cf. CONSECA, Francisco. La naturaleza de la revelación según el Concilio Vaticano II. Op. cit., p. 371.
86
203
Cf. LATOURELLE, René. Revelação. In: DTF, p. 695.
204
DV, 2.
205
Cf. LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. Cit., p. 376.
87
Ao dizer que gestos e palavras estão intimamente unidos, o Concílio propôs uma
doutrina integral da revelação e com isso, superou a concepção intelectualista da neoescolástica,
para quem a revelação tratava fundamentalmente de uma instrução misteriosa, sobrenatural.
Consequentemente apresentou uma nova maneira de compreensão da fé, concebida pela
neoescolástica como adesão ao conhecimento misterioso e sobrenatural divino, passando a ser
considerada, primordialmente, como ato de entrega total do homem a Deus que se revela.
Por fim, a concretude da revelação a partir da unidade profunda entre gestos e palavras
alcança seu sentido pleno em Jesus Cristo. Com efeito, ele é, ao mesmo tempo, “mediador e
plenitude da revelação”206, isto é, a superabundância do agir e do falar de Deus à humanidade.
O desdobramento disso é o que vem a seguir no primeiro capítulo da Constituição conciliar: a
dimensão histórica da revelação e a centralidade de Cristo na revelação. Ambos aspectos, não
deixam escapar, como veremos, a novidade da Dei Verbum em relação à dimensão pessoal e
dialogal da revelação.
Criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1,3), Deus dá aos homens
testemunho perene de si mesmo, nas próprias coisas criadas (cf. Rm 1,19s). No intuito
de abrir caminho à salvação, manifestou-se ainda, desde o início, a nossos primeiros
pais. Depois que caíram, solicitou-lhes a esperança, prometendo a redenção (cf. Gn
3,15). Não deixou, em momento algum de cuidar do gênero humano, para que todos
os que praticam pacientemente o bem (cf. Rm 2, 6s) possam alcançar a salvação.
Chamou Abraão a seu tempo, para constituir, a partir dele, um grande povo (cf. Gn
12,2s), a quem, depois, pelos patriarcas, por Moisés e pelos profetas, ensinou a
reconhecê-lo como único Deus vivo e verdadeiro, pai providente e justo juiz, e a
esperar o salvador prometido, preparando assim, através dos séculos, o caminho do
Evangelho207.
206
DV, 2.
207
DV, 3.
88
208
Cf. LATOURELLE, René. Dei Verbum. In: DTF, p. 175. É importante salientar que a expressão “revelação
cósmica” não aparece no documento conciliar.
209
Idem, p. 175.
210
CONSECA, Francisco. La naturaleza de la revelación según el Concilio Vaticano II. Op. cit., p. 374.
211
DV, 3.
89
Concílio considera a história no seu todo e ademais, põe o acento na promessa de salvação de
Deus para o homem. O pecado do homem não é capaz de romper ou interromper o plano
salvífico de Deus e a história em nenhum momento sofre da carência da automanifestação de
Deus aos homens em seu desejo de salvá-los. De fato, como explica Sesboüë, “em todos os
tempos e lugares, em todas as situações, Deus “vela” pelo gênero humano, para conduzi-lo a
uma única salvação: a vida eterna em Cristo”212.
Em referência ao desejo de Deus de salvar o homem, o Concílio se limitou a fazer uso
do texto de Rm 2,6s, mas nada mencionou a respeito das condições, em nível objetivo ou
subjetivo, para a verificação da salvação. Apenas afirmou que quem deseja a salvação deve
perseverar na prática das boas obras. Mais uma vez, nota-se que o acento recai na promessa da
salvação de Deus, não no pecado ou no mérito do homem.
A terceira etapa é destacada pelo próprio texto conciliar. Ela se estende de Abraão até o
Evangelho. Com o chamado de Deus a Abraão, a revelação inicia-se na história do povo de
Israel. Por meio do patriarca, Deus constituiu seu povo; pelos patriarcas, por Moisés e pelos
profetas, Deus ensinou, preparou seu povo para reconhecê-lo e acolhê-lo como único – vê-se
aqui o conteúdo fundamental da revelação veterotestamentária – e para aguardar o Salvador
prometido. Aparece o sentido da dimensão pedagógica da revelação, que se dá na história de
modo progressivo, por etapas, num processo orgânico até Cristo, ápice da revelação. Como o
Concílio deixa perceber, de maneira gradual e paciente Deus ensina, forma e acompanha seu
povo. Esse modo pedagógico de Deus conduzir seu povo é fundamentalmente dialógico. O
diálogo de Deus com o ser humano dá-se de maneira gradual e lenta até alcançar seu ponto
máximo em Cristo.
“Depois de falar muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, Deus “nos falou agora
pelo Filho” (Hb 1,1s). Enviou seu Filho, Verbo eterno, que ilumina todos os seres humanos,
para morar entre nós e falar-nos da vida de Deus (cf. Jo 1,1-18)”213.
Entre os comentadores da Dei Verbum converge a afirmação que um dos aspectos
inovadores e importantes da Constituição trata da centralidade de Cristo na revelação. De fato,
a partir do texto acima, nota-se o destaque central dado a Cristo na revelação como um todo. O
n. 4 da Constituição retoma o último parágrafo do n. 2, desenvolve-o e aprofunda-o,
212
SESBOÜË, Bernard. A Comunicação da Palavra de Deus: Dei Verbum. Op. cit., p. 427.
213
DV, 4.
90
convergindo tudo para Cristo. Além disso, o texto acima é uma espécie de “recapitulação” de
tudo que foi afirmado até agora acerca da revelação. Recapitulação não no sentido de repetir
algo de maneira resumida ou de destacar os pontos mais importantes do que foi dito, mas no
sentido de que, em Cristo, há a consumação de todo processo revelatório. O caminho para tal
percepção pode ser visto em consonância com o próprio texto conciliar.
O primeiro elemento importante é a afirmação de Cristo como mediador e plenitude da
revelação. Nessa direção compreende-se o texto de Hb [Carta aos Hebreus] referido a Cristo
como ápice da revelação. O texto bíblico recorda o modo do revelar-se de Deus na história da
humanidade, narrado a partir do Antigo Testamento. Progressivamente, pacientemente e de
diversas maneiras, isto é, por meio dos profetas, mas também por meio dos patriarcas e de
outros acontecimentos – sinais, palavras, gestos, milagres, Deus se comunicou com seu povo.
Mas, como diz o autor sagrado, “nos falou agora pelo seu Filho”. Portanto, falou de modo como
nunca tinha feito antes, de modo pessoal e insuperável em Jesus de Nazaré, Verbo eterno feito
carne, presença e morada de Deus entre os homens.
Nesse sentido, Latourelle comenta que a Carta aos Hebreus, ao afirmar Cristo como o
ápice da revelação, salienta a superioridade da revelação nova sobre a antiga, possibilitando
perceber entre ambas, aspectos de continuidade, diferença e superação. Para o teólogo, a palavra
de Deus constituiu o elemento de continuidade. A palavra de Jesus continua a palavra de Deus;
o elemento de diferença situa-se nas épocas e modos de revelação. No Antigo Testamento, há
uma sucessão de palavras de Deus, enquanto que Jesus é a Palavra única do Pai; e, finalmente,
o elemento de superação encontra-se na realização da revelação entre o falar de Deus no Antigo
e o Novo Testamento. Lá os profetas falam as palavras de Deus e no Novo testamento quem
fala é o Filho214.
Outro elemento do processo de recapitulação é a explicação sobre a afirmação de Jesus
como mediador e plenitude da revelação. Ele é o mediador da revelação porque, conforme lê-
se em Jo 1,1-18, citação utilizada pelo Concílio, Cristo é o Verbo eterno do Pai, em quem Deus
se fez homem, vindo ao mundo cheio de graça e verdade. Como Verbo encarnado, Jesus não
somente fala de Deus, mas ele é a própria revelação de Deus, porque é Deus e por isso, pode
pessoalmente revelar Deus e seu mistério de comunhão de Pessoas divinas. Deus vindo de Deus,
tem a prorrogativa de contar os segredos da vida divina aos homens e chamá-los à amizade com
214
Cf. LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 380-381.
91
o Pai no Espírito Santo. Jesus é também a plenitude da revelação. “Ele – explica Gomes – não
é só o Mediador da Revelação, mas sua plenitude”215.
Como se vê, o Filho é o Tudo do Pai para a humanidade e, por isso, é o cumprimento
pleno de toda revelação de Deus na história. Ele não é somente a presença de Deus entre os
homens, mas é o revelador e a revelação de Deus; o cumpridor e cumprimento do plano de
salvação de Deus para a humanidade; o início e a consumação da história; “Cristo – explica
Böttigheimer – não só fala de Deus, mas ele mesmo é o discurso de Deus e leva a história da
salvação ao seu cume”216; o revelador do destino final do homem. Em suma, a revelação não
somente se dá através de Cristo, mas se cumpre nele e dele deve ser compreendida.
Depois de afirmar que Cristo é o mediador e a plenitude da revelação e, em seguida,
explicar por que ele o é, o segundo parágrafo do n. 4 da Dei Verbum diz como Ele é o mediador
e a plenitude da revelação. Ocupa o centro do parágrafo a afirmação do princípio da encarnação,
conferindo a Cristo centralidade absoluta na concretização da revelação:
Verbo encarnado”, “homem enviado aos seres humanos”, Jesus Cristo “fala as
palavras de Deus” (Jo 3,34) e realiza a obra da salvação, de que foi encarregado pelo
Pai (Jo 5,36; 17,14). Quem o vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9). Por sua presença e manifestação
da sua pessoa, por suas palavras e ações, por seus sinais e milagres e, especialmente
por sua morte, gloriosa ressurreição e missão do Espírito da verdade, Jesus Cristo
completa a revelação e a confirma com testemunho divino: Deus está conosco para
nos libertar das trevas do pecado e da morte e nos ressuscitar para a vida eterna. A
“economia” cristã, aliança nova e definitiva, jamais passará. Não se deve esperar
nenhuma nova revelação pública antes da vinda gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo
(cf. 1Tm 6,14; Tt 2,13)217.
215
GOMES, Cirilo Folch. A revelação divina. Perspectivas da Constituição Conciliar “Dei Verbum”. REB, v. 26,
fasc. 4, dez. 1966, Petrópolis (RJ), p. 816-837.
216
BÖTTIGHEIMER, Christoph. Manual de Teologia Fundamental. A racionalidade da questão de Deus e da
revelação. Op. cit., p. 376.
217
DV, 4.
92
pela Dei Verbum é que a revelação divina é pessoal e dialógica. Com efeito, Jesus pessoalmente
manifesta Deus entre os homens e dialoga com eles.
Assim, tratando de como Cristo é o mediador e a plenitude da revelação, o Concílio, em
primeiro lugar, apresenta a mediação da palavra. Ele é a Palavra de Deus e fala as palavras de
Deus. O falar de Jesus é distinto do modo dos profetas, embora ele fale as mesmas palavras de
Deus ditas pelos profetas. Ele é a Palavra substancial do Pai, enviada aos homens e como tal
vem do mistério íntimo de Deus para o homem. Mas, Ele é a Palavra que se fez homem.
Portanto, também fala como homem para homem. Nesse sentido, ninguém pode falar de Deus
como Jesus Cristo fala: de Deus como Deus ao homem como homem. É o fato inaudito da
encarnação que une de modo insuperável Deus e o homem. Em uma de suas catequeses, o Papa
Bento XVI chamou a atenção para este fato impensável pelo humano, realizado por Deus no
mistério da encarnação:
O Verbo fez-se carne’ é uma daquelas verdades com as quais estamos tão habituados
que já quase não nos impressiona pela grandeza do acontecimento que ela exprime…
algo absolutamente impensável, que só Deus podia realizar, e no qual podemos entrar
só mediante a fé. O Logos, que está em Deus, o Logos que é Deus, o Criador do mundo
(cf. Jo 1, 1), por Quem foram criadas todas as coisas (cf. 1, 3), que acompanhou e
acompanha os homens na história com a sua luz (cf. 1, 4-5; 1, 9), torna-se um no meio
dos outros, adquire morada entre nós, torna-se um de nós (cf. 1, 14)… é importante
recuperar a reverência diante deste mistério… 218.
Sendo assim, a revelação alcança sua plenitude em Jesus por meio de sua presença e
manifestação. Os termos utilizados pelo Concílio são de raiz bíblica: presença tem o sentido de
parusia e manifestação, de epifania. Referem-se ao ser mesmo de Cristo. A revelação levada a
cabo por Cristo não se trata de algo, de uma doutrina em primeiro lugar, mas de alguém, dele
mesmo e de sua presença concreta na história. Não se trata também primeiramente de um fazer
ou transmitir de coisas, mas de uma presença pessoal concreta. Com isso, nota-se a ênfase dada
pelo Concílio à perspectiva personalista da revelação.
O que vem a seguir decorre do que foi dito: as palavras e ações, os sinais e milagres
estão profundamente unidos ao ser de Cristo, à sua presença e manifestação na história. Não
teriam sentido de revelação, se fossem realidades externas a Cristo. O primeiro binômio recorda
a mesma estrutura geral da revelação conferida ao modo da revelação de Deus do n. 2 do
documento. No entanto, referidas a Cristo, a ordem dos termos muda. Primeiro, vêm palavras
e ações. Como explica Sesboüë, “as palavras de Jesus são essenciais à sua revelação. São as
218
BENTO XVI. Audiência Geral: Fez-se Homem: 09/01/2013. Vaticano: 2013. Disponível em:
<http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt.html>. Acesso em 08 de fev. 2019.
93
219
SESBOÜË, Bernard. A Comunicação da Palavra de Deus: Dei Verbum. Op. cit., p. 429-430.
220
DV, 4.
221
DV, 4.
94
Porque em dar-nos, como nos deu, seu Filho, que é sua palavra única (e outra não há),
tudo nos falou de uma só vez nessa única Palavra, e nada mais tem a falar, (…) pois
o que antes falava por partes aos profetas agora nos revelou inteiramente, dando-nos
tudo que é seu Filho. Se atualmente, portanto, alguém quisesse interrogar a Deus,
pedindo-lhe alguma visão ou revelação, não só cairia numa insensatez, mas ofenderia
muito a Deus por não dirigir os olhares unicamente para Cristo sem querer outra coisa
ou novidade alguma222.
Isso não significa que nada possa ser dito sobre a revelação. Pelo contrário, como lê-se
no proêmio da Constituição, aquilo que aconteceu, a Igreja deve escutar religiosamente e
proclamar com confiança e fidelidade. O que pode ser visto na vida da Igreja como decorrência
da revelação divina será objeto do terceiro capítulo deste trabalho.
Finalmente, em Cristo, a revelação assume um caráter pessoal e dialogal de modo pleno.
A Palavra eterna, presente na criação, comunicada na história da salvação e na economia da
revelação, em Cristo tornou-se homem: “Aqui a Palavra não se exprime primariamente num
discurso, em conceitos ou regras. Mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de
Jesus”223. Temos, assim, a dimensão pessoal da revelação considerada em sua realidade plena.
Sem a presença e a manifestação de Jesus na história, a revelação seria instrução.
Jesus Cristo, ao entrar na história humana, estabeleceu um diálogo, primeiro desde si,
com a humanidade, depois a partir de tudo que disse e fez, convidando aos homens à vida de
amor com Deus. Com isso, estabeleceu um colóquio de salvação de Deus com o gênero humano
e um novo diálogo entre os seres humanos. Ele inaugurou uma nova e definitiva forma de
diálogo em sua verticalidade e horizontalidade, um diálogo para sempre, que nem mesmo o
pecado poderá romper. Sem o diálogo de Jesus com os seres humanos, a revelação seria
irracional e incompreensível. E porque a “condescendência de Deus realizou-se, de modo
insuperável, na encarnação do Verbo”224, o homem pode acolher Deus, entendê-lo e responder
pelo ato de fé.
“A Deus que se revela, deve-se prestar a obediência da fé (cf. Rm 16,26; Rm 1,5; 2Cor
10,5s), pela qual o ser humano se entrega livre e inteiramente a Deus, “com total submissão da
222
CRUZ, João da. Subida del Monte Carmelo 22,2. Apud CATECISMO da Igreja Católica. Edição típica
Vaticana. São Paulo: Loyola, 2000, n. 65. (Doravante, neste texto, mencionada apenas como CIC).
223
VD, 11.
224
VD, 11.
95
inteligência e da vontade a Deus que se revela”, voluntariamente acolhendo a revelação por ele
comunicada”225.
Assim como o Concílio trabalhou a revelação primando pela linguagem teológica
bíblica e patrística, também a fé terá um tratamento primordialmente desse tipo. Ela não será
tratada a partir de uma linguagem teológica racional, como fez o Vaticano I, devido à sua luta
com o racionalismo reinante na época, mas a partir de uma linguagem bíblica teológica. Uma
teologia suportada primeiramente pela linguagem racional considerará a fé partindo de sua
dimensão subjetiva, intelectual. Ao contrário, uma teologia amparada pela linguagem bíblica
apresentará a fé partindo de sua dimensão objetiva, isto é, como uma totalidade concreta. Dada
a ênfase ao caráter teológico-bíblico da fé, e como a revelação solicita “a obediência da fé”, o
Concílio, ao abordá-la, põe o enfoque na sua dimensão pessoal e dialógica. Ela é ato de entrega
do homem a Deus e, como tal, inaugura entre Deus e o homem uma relação acima de tudo vital,
de pessoa a pessoa, num acolhimento e adesão total.
Por sua vez, como entrega, ela é também resposta e como tal, inaugura entre Deus e o
homem um diálogo de amizade e salvação, conforme Paulo VI explicitou na Encíclica
Ecclesiam Suam:
Como se vê, o Concílio apresentou, em primeiro plano, a dimensão objetiva da fé, isto
é, considerou, primeiramente, sua realidade em si mesma, deixando sobressair seu caráter
pessoal e dialogal. No entanto, tal afirmação não significa que o Concílio tenha anulado a
dimensão subjetiva da fé. Ao contrário, acima de tudo, tratou de unir ambas as dimensões.
Nesse sentido, deve ser recordado que o Vaticano I combatia tanto o racionalismo quanto o
fideísmo e, por isso, além de afirmar as duas formas da revelação de Deus – a primeira, natural
e a outra, sobrenatural – acentuou o caráter intelectual da fé, para responder sobretudo ao
fideísmo, que negava à razão humana qualquer possibilidade de conhecer Deus. Por sua vez, o
Vaticano II tratou de articular revelação e fé, retomando o Vaticano I, apresentando esta última,
225
DV, 5.
226
PAULO VI. Carta encíclica Ecclesiam Suam. In COSTA, Lourenço (trad.). Documentos de Paulo VI. São
Paulo: Paulus, 1997, n. 41.
96
primordialmente, como ato de entrega e de obediência do homem a Deus, mas nem por isso,
deixou de olhá-la como assentimento, isto é, na sua dimensão intelectual, como pode ser lido
em Ashton:
Se a Palavra de Deus está encarnada na pessoa viva de Cristo, também está encarnada
no seu ensinamento, tal como foi registrada na Escritura e transmitida pela Igreja. Não
há inconsistência nestas duas formas de “encarnação”: ao contrário, a resposta
existencial do homem (que é uma fé viva é sempre primordial) está condicionada e
afetada radicalmente pelo que ele crer acerca de Cristo e do seu ensinamento. Porque
a vida espiritual depende particularmente dos dogmas centrais da Trindade e a
Encarnação227.
Se se concebe uma realidade isolada ou em oposição à outra, no fim fica uma fé sem
conteúdo ou uma fé despersonalizada, impossível de ser articulada com a revelação, conforme
trabalhada pelo Concílio. Pela revelação, Deus vem e se doa ao homem, comunica-lhe os
segredos de sua vida íntima, a verdade de seu amor e o chama a viver na amizade Consigo.
Deus deseja unir-se ao ser humano numa reciprocidade de amor. Pela fé, o homem responde a
condescendência divina, entregando-se todo a Deus e prestando-lhe um obséquio pela
inteligência, vontade e liberdade. Ou seja, a fé é também convite ao conhecimento, não de
verdades abstratas, mas de Deus e de seus ensinamentos. Trata-se, antes de tudo, de um
conhecimento concreto, conforme encontra-se dito por Schillebeecks:
A partir do que foi dito até aqui vêm à mente as duas concepções clássicas da fé
trabalhadas pela teologia: “fides quae” e “fides qua”. A primeira está voltada para os conteúdos
da verdade revelada, trata-se mais da dimensão subjetiva da fé: é a fé crida, situada no nível do
pensar teológico. A partir dos conteúdos da fé, falamos da teologia como ciência da fé e como
ensino. A segunda está voltada para o ato da fé, em sua dimensão existencial e afetiva. É a fé
pela qual se crê. O Vaticano II tratou de unir ambas realidades, partindo da fides qua até alcançar
227
ASHTON, John. Cristo, mediador y plenitud de la revelación. In: ALONSO, Luis Schökel (org.). Concílio
Vaticano II. Comentários a la constitución Dei Verbum: sobre la divina revelación. Madri: BAC, 1969, p. 170.
228
SCHILLEBEECKS, E. Approches théologiques, 1. Révélation et théologie, Bruxelas, p. 184. Apud SESBOÜË,
Bernard. A Comunicação da Palavra de Deus. op. Cit., p. 432.
97
a fides quae. Uma é importante para outra. Se falta o contributo de uma à outra, a reflexão sobre
a fé será sempre incompleta. Com efeito, o homem que responde a Deus, que se lhe revela, deve
também acolher as verdades por Ele reveladas.
No entanto, a fé – em sua realidade global, isto é, tanto o ato de entrega do homem
quanto o assentimento prestado a Deus pela inteligência e vontade – não é simples produto da
atividade humana. Para acontecer, depende, obviamente, da revelação divina e da graça do
Espírito que age anteriormente no coração, fazendo com que o ser humano se volte e se abra
para Deus e, age em seguida, levando o ser humano a entregar-se e assentir livre e
amorosamente a Deus.
Em decorrência da fé, o Concílio falou das verdades reveladas.
2.4.7. Verdades da fé
229
DV, 6.
230
LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. Op. cit., p. 386-387.
98
Capítulo III
Contribuição teológica da Dei Verbum para a Igreja
231
Exortação Apostólica do Santo Padre Bento XVI sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. A
Verbum Domini foi escrita após a conclusão da XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, ocorrida
entre 5 a 26 de outubro de 2008, no Vaticano. (Já referenciada no segundo capítulo deste trabalho).
232
O Documento é fruto da V Conferência Geral dos Bispos da América Latina e Caribe, acontecida na cidade de
Aparecida - SP, de 13 a 31 de maio de 2007, com o tema: Discípulos e Missionários de Jesus Cristo, para que nele
nossos povos tenham vida. (Doravante, neste texto, mencionada apenas como DA).
233
Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre a o anúncio do Evangelho no mundo atual. A Evangelii Gaudium
é fruto da XIII Assembleia sinodal sobre “A Nova Evangelização para a Transmissão da Fé Cristã”, realizada entre
os dias 7 e 28 de outubro de 2012, no Vaticano. Por se tratar da primeira Exortação Apostólica do Papa Francisco,
afirma-se que, além de colher as reflexões dos padres sinodais, também representa seu projeto de pontificado.
(Doravante, neste texto, mencionada apenas como EG).
234
Trata-se da Carta Apostólica do Papa Bento XVI com a qual se proclama o Ano da Fé, aberto pelo Pontífice
em 11 de outubro de 2012 e encerrado em 24 de novembro de 2013, pelo Papa Francisco na solenidade de Cristo
Rei de universo. (Já citada no segundo capítulo deste trabalho).
235
Refere-se ao Instrumentum Laboris, o documento de trabalho da Assembleia Sinodal. Ele é fruto do
recolhimento da consulta feita às Igrejas Particulares para a realização do sínodo. Nesse sentido, serve como
subsídio aos Padres Sinodais.
236
Os Lineamenta são documento importante para a preparação de uma assembleia sinodal. Têm como finalidade
suscitar uma reflexão no nível de Igreja universal em vista do tema a ser tratado numa assembleia sinodal. O
100
Instrumentum Laboris da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos237, Evangelii
Nuntiandi238.
Concluiremos falando da “nova evangelização” na vida da Igreja, desde o Concílio
Vaticano II até os dias atuais, com o pontificado de Francisco.
Ao conferir papel central à Palavra na Igreja, não estaria o Concílio prejudicando outras
realidades eclesiais também importantes? Ou, como diz Martini (2008), a centralidade da
Palavra não traria prejuízo à centralidade de Cristo?239. Ademais, por ser reconhecida pelo
Concílio como realidade primeira na Igreja, que relação a Palavra estabelece com outras
realidades também importantes na Igreja, tais como a Sagrada Escritura, Tradição e Magistério,
o papel da teologia, o anúncio da fé, seu lugar na liturgia, na catequese e na missão da Igreja?
Para tentar compreender tudo isso, faz-se necessário olhar para o lugar que a Palavra de
Deus ocupa na Dei Verbum. Antes de tudo, devemos ter em mente que o documento citado tem,
como tema fonte, a revelação, apresentada desde o Proêmio da Constituição como a
comunicação da Vida divina, uma revelação de caráter pessoal e dialógica (como chegamos a
afirmar no capítulo anterior), realizada plenamente em Jesus, Verbo encarnado de Deus no
Espírito, Palavra viva do Pai, vinda ao mundo para tornar os homens participantes da Vida
divina.
Antes de sua consumação em Jesus Cristo, desde a criação, seguida da manifestação aos
primeiros pais, depois aos patriarcas, profetas e por meio destes, ao povo escolhido240, Deus
sempre falou. A Palavra é a fonte da comunicação de Deus na história da humanidade. Tudo
começou por meio da Palavra divina. Conforme pode ser lido em Gn 1, 1ss, Deus tudo criou
proferindo sua palavra. É interessante observar que a Constituição conciliar não fala da função
criadora da Palavra a partir do Gn, mas se reporta ao prólogo joanino, para atribuir a Cristo a
mediação da criação. No documento conciliar, lê-se: “Criando e conservando todas as coisas
Sínodo em questão teve lugar no Vaticano de 5 a 26 de outubro de 2008, sobre o tema: "A Palavra de Deus na vida
e na missão da Igreja".
237
O documento é a síntese do recolhimento das reflexões vindas da consulta feita às Igrejas Particulares em vista
da realização do Sínodo dos Bispos. A XIII Assembleia Geral dos Bispos teve lugar no Vaticano de 7 a 28 de
outubro de 2012, sobre o tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã.
238
Exortação Apostólica do Papa Paulo VI sobre a evangelização no mundo contemporâneo, publicada em
dezembro de 1975. (Doravante, neste texto, mencionada apenas como EN).
239
Cf. MARTINI, Carlo Maria. La centralidade de la Palabra de Dios en la vida de la Iglesia. Pastores: Cuadernos
para la formación sacerdotal permanente, n. 42, ago. Buenos Aires, 2008, p. 30.
240
Cf. DV, 3.
101
pelo Verbo (cf. Jo 1,3)…”241. Nesse sentido, como diz Bento XVI: “A expressão “Palavra de
Deus” acaba por indicar aqui a pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai feito homem”242.
Desejamos, com isso, lembrar duas coisas: o modo do Concílio tratar a revelação divina
exige alargar o sentido da expressão “Palavra de Deus” e, em sua realidade primeira, relacioná-
la a Jesus Cristo; cuidar para não limitar a expressão “Palavra de Deus’ à Escritura ou a qualquer
outra realidade que a manifeste.
Lembrando a pergunta de Martini (ainda que o mesmo não tenha aprofundado no mesmo
texto esta questão, por preferência de outro itinerário): “Como é obvio, não posso aprofundar
cada uma das questões apresentadas… me limitarei a sublinhar alguns aspectos práticos
relativos sobre tudo a animação bíblica da pastoral”243, é fundamental unir a Palavra de Deus
em sua realidade primeira a Jesus Cristo para reconhecer, por isso mesmo, sua centralidade na
vida da Igreja e para ampliar o sentido do termo “Palavra de Deus” em relação à revelação
divina segundo a abordagem da Dei Verbum.
Não podemos negar outras dimensões da Palavra vistas na Dei Verbum e ulteriormente
na Verbum Domini – algumas delas apresentadas de maneira mais abrangente neste último
documento – tais como: dimensão cósmica da Palavra, dimensão criadora da Palavra, dimensão
real da Palavra, dimensão cristológica da Palavra, dimensão escatológica da Palavra, dimensão
pneumatológica da Palavra, a Palavra na Escritura e na Tradição da Igreja244. Mas, como é
descrito no Instrumentum Laboris para o Sínodo sobre a Palavra de Deus, “à luz da Revelação,
a Palavra é o Verbo eterno de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho do Pai,
fundamento da comunicação intra-trinitária e ad extra”245.
Além de considerar as diversas dimensões da Palavra, deve-se ter em conta também
suas modalidades, isto é, os vários modos como a Palavra se manifesta. Nesse sentido, tanto o
Instrumentum Laboris para a XII Assembleia Sinodal quanto a Verbum Domini usam a imagem
de um canto para falar das várias manifestações da Palavra. Ela, afirmam os Padres sinodais:
“É como um canto a várias vozes”246, ao que acrescenta Bento XVI, “uma Palavra única que se
exprime de diversos modos”247. Assim, a expressão “Palavra de Deus” diz respeito primeiro à
revelação mesma de Deus, ao testemunho de Deus na criação, Palavra de Deus na história,
241
DV, 3.
242
VD, 7.
243
MARTINI, Carlo Maria. La centralidade de la Palabra de Dios en la vida de la Iglesia. Op. cit., p. 30.
244
Cf. VD, 8-18.
245
SÍNODO DOS BISPOS. Instrumentum Laboris. A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. XII
Assembleia Geral Ordinária. Vaticano: 2008. SEDOC, Petrópolis, v. 41, n. 331, nov.-dez. 2008, p. 259-329, n. 9.
246
Idem, n. 9.
247
VD, 7.
102
Palavra de salvação, Palavra anunciada aos profetas, Palavra anunciada pelos apóstolos, Palavra
guardada pela Tradição, interpretada pelo Magistério e transmitida pela Igreja, Palavra contida
nas Sagradas Escrituras e Palavra culminada na encarnação do Verbo. Trata-se de usos
analógicos da expressão “Palavra de Deus”, que, porém, encontram sua unidade em Jesus
Cristo:
248
VD, 7.
249
MATEOS, Manuel Díaz. A Palavra de Deus no Concílio Vaticano II. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte,
v. 18, n. 45, 1986, p. 175-192.
103
A grande conquista do Vaticano II foi, sem dúvida, colocar no centro da vida da Igreja
a palavra que dá vida. É uma conquista indiscutível e facilmente observável na
renovação litúrgica e teológica e na proliferação de grupos bíblicos, comunidades de
base, cursos e palestras sobre assuntos referentes à Bíblia. Uma expressão dessa
centralidade viveu o próprio Concílio na ação litúrgica de entronização da Bíblia no
início das sessões. Mas a centralidade está assinalada sobretudo no título, no proêmio
e no cap. VI da Constituição 250.
250
Idem, p. 177.
104
Palavra no início do ato revelador de Deus. De fato, a expressão inicial Dei Verbum será o fio
condutor de todo o documento. A Palavra de Deus estará desde o início da Dei Verbum até o
final da mesma em relação com o ato revelador de Deus, iniciado na criação até atingir seu
cume na encarnação do Verbo eterno. Esta Palavra ainda que tenha alcançado seu ápice em
Jesus Cristo, não se ausentou da Igreja. Pelo contrário, é ela quem a sustenta e a renova, sempre.
Isso significa que a Palavra de Deus tem preeminência sobre todas as demais realidades
da Igreja, a começar por esta última. A Igreja, no seu todo, é constituída do gesto de escuta
obediente à Palavra e pelo anúncio de Jesus Cristo ao homem nos dias de hoje. Desse modo,
Kasper afirma:
251
DV, 1.
252
DV, 10.
105
Não poderia ter sido melhor expressada “a superioridade da Palavra de Deus, seu estar
acima de qualquer discurso e ação dos homens de Igreja”. Enquanto que, em certas
passagens, poder-se-ia ter a impressão de que o Concílio tende para uma imagem
eclesiológica de reflexo, naquela em que a Igreja gira em torno de si mesma e faz de
si mesma o objeto central do anúncio evangélico, na formulação do início da Dei
Verbum, “se abre para o alto toda a existência da Igreja, sua essência plena está
resumida no gesto de escutar, o único gesto do onde pode vir seu anúncio 253.
Trazer a Palavra para o centro não é deferência que a Igreja lhe presta, mas é, acima de
tudo, o reconhecimento de que se trata [a Palavra] de uma realidade que lhe é anterior. Palavra
viva e eficaz, mais cortante do que espada de gois gumes254. Assim, a Igreja vive alimentada
pela Palavra recebida e é, por isso mesmo, convidada a deixar-se purificar, renovar e guiar pela
Palavra, para anunciar a vida divina que se manifestou para a salvação de todos.
Assim, mais do que qualquer outra coisa, conforme o proêmio da Dei Verbum, a
primeira tarefa da Igreja é redescobrir a Palavra de Deus, para anunciar a perene novidade do
Evangelho ao ser humano. Para tanto, nunca se deve perder de vista aquele sentido primeiro da
expressão ‘Palavra de Deus’, isto é, radicalmente compreendida como ato pessoal, dialógico e
amoroso da revelação mesma de Deus ao homem, para chamá-lo ao seu amor e à sua vida,
culminado na encarnação do Verbo na história, Palavra viva do Pai. Revelação realizada por
obras e palavras de Deus e consumada pelas palavras e obras de Jesus Cristo, ambas realidades
internamente unidas. A partir daí, deve-se buscar entender como a mesma expressão se
manifesta em diversas outras realidades da Igreja, mas que sempre estejam estritamente
relacionadas a Jesus Cristo, centro da Palavra e Palavra única e definitiva de Deus.
A Eucaristia sempre foi considerada o centro da Igreja e de toda a vida cristã. Junto à
Eucaristia, o Concílio reconheceu a realidade central da Palavra de Deus na vida e missão da
Igreja, portada de modo especial pela Sagrada Escritura. Por isso, de maneira análoga (não
idêntica) à Eucaristia, o Vaticano II recomendou a veneração da Sagrada Escritura, não devido
ao papel e a tinta, diante de que não nos genufletamos, mas à mensagem que Deus, para a
salvação nossa, quis comunicar.
Se a partir do título e do proêmio da Constituição, a expressão “Palavra de Deus” esteve
radicalmente relacionada ao ato revelador de Deus e a encarnação do Verbo divino em Jesus
253
KASPER, Walter. Escuchar la Palabra de Dios com devoción y proclamarla con valentía. Pastores: Cuadernos
para la formación sacerdotal permanente, n. 42, ago. Buenos Aires, 2008, p. 39.
254
Cf. Hb 4, 12.
106
255
Cf. Col. 1, 16-17.
256
Mencionamos dois exemplos: “Ainda antes de falarmos sobre a interpretação da Bíblia na Igreja Católica após
a DV, convém dar atenção ao subtítulo da DV: “Constituição dogmática sobre a Revelação Divina”, e não
“Constituição dogmática sobre a Sagrada Escritura”, o que seria muito redutivo. Com efeito, a Sagrada Escritura
deve ser interpretada como um canal privilegiado da Revelação”. (SILVA, Cássio Murilo Dias da. O impulso
bíblico no Concílio: A Bíblia na Igreja depois da Dei Verbum. Teocomunicação, v. 36, n. 151, mar. 2006, Porto
Alegre, p. 25-53); “O título do documento, decidido pouco antes de sua aprovação final, expressa bem o seu
conteúdo. A constituição, na realidade, não é um documento sobre a Sagrada Escritura, mas sobre a Palavra de
Deus revelada e transmitida. Certamente a Escritura ocupará a maior parte do texto, mas será tematizada dentro
de um cenário mais amplo, que se constitui, outrossim, como o quadro dentro do qual ela pode ser adequadamente
enfocada e seu valor mais bem definido. Essa Palavra é uma grandeza maior que a Escritura, pois refere a
comunicação íntima de Deus que se revela (cf. DV, n. 2), algo, portanto, que não pode jamais ser totalmente
expresso em modo humano. No entanto, ela está presente de modo ímpar na Sagrada Escritura, o que justifica o
peso dado a ela no documento”. (LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Novas leituras na Dei Verbum: a centralidade
da Escritura na Igreja. In: AGOSTINI, Nilo (org.). Revelação e História: Uma abordagem a partir da Gaudium et
Spes e da Dei Verbum. São Paulo: Paulus, 2007, p. 122).
257
No último tópico do primeiro capítulo está apresentada a estrutura da Constituição. Cf., p. 58.
258
DV, 9.
259
DV, 24.
260
DV, 14.
261
DV, 17.
262
LLAGUNO, Miren Junkal Guevara. A los 40 años de la Dei Verbum: la palavra recuperada? Proyección, v.
52, n. 219, ed. 219, out.-dez. 2005, Granada (Esp), p. 356.
107
graças ao modo novo de conceber e revelação divina e pela impostação cristológica vista na
Constituição Dei Verbum. Se Jesus Cristo, Verbo encarnado é por excelência a Palavra viva do
Pai e se as Escrituras falam Dele, pois “a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo”263,
é, antes de tudo, óbvio intuir que a Escritura deva ocupar um lugar de destaque como expressão
viva da Palavra de Deus. Ademais, junto à Tradição, ela é fonte privilegiada de transmissão da
Revelação.
Mas, mais do que óbvio, ao tratar da Escritura na vida da Igreja, o Concílio quis acenar
para a importância da redescoberta e do acolhimento da Sagrada Escritura como Palavra de
Deus na Igreja. Se o Concílio fez este resgate, é de se supor que a Sagrada Escritura estava à
margem da Igreja e da vida dos fiéis. A importância dada à Escritura pelo Concílio nos obriga
a, em primeiro lugar, olhar para alguns aspectos históricos do processo de resgate da mesma na
Igreja e posteriormente ver algumas consequências práticas desse processo depois do Vaticano
II.
263
DV, 25.
108
bíblicas vividas pela Igreja antes do Vaticano II. Junto a essa questão teológica de fundo,
corrigida e superada pelo Concílio, havia outras questões históricas e, portanto, importantes.
Dentre as questões de ordem bíblica, havia o distanciamento das pessoas do Texto
Sagrado, fruto da restrição das autoridades da Igreja aos leigos à leitura e manuseio da Sagrada
Escritura, vista, conforme informações tanto de Lima264 quanto de Martini265, a partir do Sínodo
regional de Toulouse (1229), seguido do Sínodo de Oxford (1408). Até esse período, não há
registro histórico de embargo dos leigos ao uso da Escrituras, muito pelo contrário, conforme
aponta Lima,
Dos inícios do cristianismo até a Idade Média tardia, a Sagrada Escritura foi sempre
muito viva na Igreja, sendo o texto a inspirar tanto a pregação, o estudo, a teologia,
como a espiritualidade. Não somente bispos, sacerdotes, monges, mas também os fiéis
em geral mantinham um contato assíduo com a Escritura, pela leitura ou, para os fiéis
em geral, dado que os meios escritos eram parcos, pela escuta da Palavra. A Sagrada
Escritura ocupava um lugar central na Igreja, em sua pregação, fé e vida 266.
264
Cf. LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Novas leituras na Dei Verbum: a centralidade da Escritura na Igreja.
Op. cit., p. 126.
265
Cf. MARTINI, Carlo Maria. La centralidade de la Palabra de Dios en la vida de la Iglesia. Op. cit., p. 34.
266
LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Novas leituras na Dei Verbum: a centralidade da Escritura na Igreja. Op.
cit., p. 125.
267
ONAIYEKAN, J. De Dei Verbum a Novo Millenio Ineunte. El processo de recepción de Dei Verbum a la luz
del cambio de paradigma en los últimos 40 anõs, en La Sagrada Biblia en la vida de la Iglesia. Apud LLAGUNO,
Miren Junkal Guevara. A los 40 años de la Dei Verbum: la palavra recuperada? Op. cit., p. 350.
109
Tudo isso, além do distanciamento dos fiéis das Escrituras, ocasionou outras
dificuldades. Claro, há de se considerar que, se por um lado houve o distanciamento dos
católicos da Escritura devido a preocupação pastoral, não doutrinal, do magistério em relação
ao uso da Sagrada Escritura, por outro, gerou uma supervalorização da Tradição e do próprio
Magistério. Chegou-se até mesmo a considerar o Magistério como uma realidade
autossuficiente em relação à Sagrada Escritura.
Além disso, como já recordamos, desenvolveu-se também, de uma teologia pós-
tridentina, a questão das duas fontes da revelação que se arrastou até o Concílio Vaticano II, o
que, de certo modo, tocava também a questão da relação entre Revelação, Tradição e Escritura
e a derivação dos dogmas dessa relação. A Igreja poderia se valer também da Tradição para
embasar seus dogmas ou deveria somente fundamentá-los na Escritura? Essas e outras questões
importantes sobre a Escritura perduraram até o Vaticano II.
Algumas delas foram sanadas somente no Vaticano II e outras, como por exemplo, o
acesso dos leigos à Escritura, teve início antes do Concílio, por iniciativa do Magistério da
Igreja e dos movimentos de renovação eclesial, especialmente do movimento bíblico, aliado ao
movimento litúrgico268. Aos poucos, a Escritura foi ocupando seu lugar e se tornando familiar
aos católicos novamente. Nesse sentido, a Dei Verbum, além de primar por um novo modo de
dizer a revelação – em primeiríssimo lugar como ato pessoal e dialógico de Deus, comunicação
de sua vida aos seres humanos, em superação ao modelo teórico-instrucional, de uma concepção
de revelação como comunicação de decretos divinos –, tornou-se ponto de chegada e também
ponto de partida da renovação bíblica e sua relação com a revelação, ou seja, o papel da
Escritura na revelação. Certamente, se supera uma visão da Sagrada Escritura como fonte da
revelação e recupera-se uma visão da Bíblia não como um livro de verdades, mas, junto à
Tradição, como canal privilegiado de transmissão da manifestação de Deus, meio fundamental
pelo qual o ser humano vive sua relação pessoal com Jesus Cristo.
Mas, como nada se constrói da noite para o dia, o mesmo pode-se dizer a respeito do
destaque da Escritura na Dei Verbum. Para entender melhor o valor dado pelo documento
conciliar a Bíblia, deve-se ter em conta alguns elementos. Ao menos dois deles são importantes
para nós: o papel do Magistério em referência a Escritura anterior ao Concílio Vaticano II e os
frutos da renovação bíblica na Igreja.
268
Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. O impulso bíblico no Concílio: A Bíblia na Igreja depois da Dei Verbum.
Op. cit., p. 31.
110
Mediante estes desafios, se situa a Providentissimus Deus de Leão XIII. A Encíclica não
visava somente responder aos questionamentos das correntes de pensamento moderno, mas
também a incentivar o estudo da Escritura. Leão XIII deixava notar que a Igreja não deveria se
guiar pelo racionalismo científico da época, nem pela exegese liberal no condizente à leitura e
à interpretação da Bíblia, mas conforme as palavras de João Paulo II,
Vemos que João Paulo II apresenta um saldo positivo da Encíclica no seu papel de
corrigir uma postura equivocada da leitura da Escritura e de promover uma correta leitura da
mesma. Nesse sentido, Lima contribui, afirmando que a Providentissimus Deus teve um saldo
positivo, sobretudo pela liberdade concedida aos exegetas para a pesquisa bíblica, ainda que
nos anos sucessivos nem todos tenham gozado de tal liberdade. Lima cita, como exemplo disso,
269
LLAGUNO, Miren Junkal Guevara. A los 40 años de la Dei Verbum: la palavra recuperada? Op. cit., p. 351.
270
JOÃO PAULO II. Discurso do Papa João Paulo II por ocasião do centenário da Encíclica “Providentissimus
Deus” e cinquentenário da “Divino Afflante Spiritu”. In: PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A Interpretação
da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 09-10.
111
a oposição inicial aos estudos de Marie-Joseph do Pentateuco, tendo como base uma
preocupação de caráter mais pastoral do que doutrinal para tal restrição271.
Se Leão XIII buscou, por meio da Providentissimus Deus, responder ao racionalismo
científico e sua crítica à leitura e à interpretação da Escritura, Pio XII, a partir da Encíclica
Divino afflante Spiritu, buscou responder à leitura espiritualista da Escritura. Se por um lado, a
Providentissimus Deus situa-se numa época da desvalorização da Escritura como palavra de
Deus, a Divino afflante Spiritu de Pio XII situa-se no tempo da desvalorização da exegese
bíblica e dos métodos literários. Como reação a tendências espiritualizantes da época, Pio XII
na sua Encíclica não somente defendeu a importância das ciências humanas no estudo da
Escritura, mas estimulou os exegetas a utilizarem os recursos das ciências humanas e dos
gêneros literários, cuidando para não esvaziar a verdade da Escritura como Palavra de Deus,
reduzindo-a ao puramente científico.
Ambas Encíclicas, cada uma situada no seu contexto e tendo que responder aos desafios
de sua época, se unem, não somente por pertencerem ao magistério eclesiástico, mas também
porque evitam a divisão da Escritura e o modo de lê-la, ora de modo “espiritual”, ora de modo
“científico”. Ou ainda, como disse João Paulo II,
Mesmo com todo esforço da Igreja de sanar as lacunas que iam surgindo em torno da
Escritura e, ao mesmo tempo, de promover os estudos bíblicos e de motivar, ainda que aos
poucos, o acesso dos católicos ao uso da Bíblia, outras questões permaneciam abertas, cabendo
a Dei Verbum trabalhá-las de maneira que fosse recuperada e guardada a unidade da Escritura,
seu lugar na Igreja e sua relação com a Tradição e o Magistério. Nesse sentido, a Dei Verbum
apresenta-se como uma espécie de síntese. No VI capítulo, a Constituição trata do valor da
Escritura na vida da Igreja e a partir do segundo capítulo ao trabalhar questões teológicas
importantes, todas elas em relação à Escritura, fundamenta o último capítulo do documento
conciliar.
Uma vez que a Dei Verbum situa a Sagrada Escritura como canal privilegiado da
revelação divina e associa ambas realidades à expressão “Palavra de Deus”, a Constituição
271
Cf. LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Novas leituras na Dei Verbum: a centralidade da Escritura na Igreja.
Op. cit., p. 128-129.
272
JOÃO PAULO II. Discurso do Papa João Paulo II por ocasião do centenário da Encíclica “Providentissimus
Deus” e cinquentenário da “Divino Afflante Spiritu”. Op. cit., p. 11.
112
conciliar abre perspectivas novas para a recepção da Escritura na Igreja, vistas de modo
concreto na vida eclesial.
Dentre os diversos frutos produzidos pelo Vaticano II, um dos mais importantes é
certamente o da renovação bíblica, visto com muita força nos anos sucessivos ao Concílio:
A primeira conquista da Dei Verbum a respeito da Sagrada Escritura foi o seu resgate
como Palavra de Deus na economia da transmissão da revelação. Se, no primeiro capítulo, o
documento tratou da revelação em si mesma, realizada a partir de Deus e consumada em Jesus
Cristo, nos capítulos seguintes tratou da transmissão ou do testemunho da revelação na Igreja,
realizada por diversas realidades, especialmente pela Tradição e Escritura, ambas inseparáveis
na sua origem e constitutivas do único depósito da Palavra de Deus.
Contudo, o Concílio reconheceu que a Sagrada Escritura ocupa um lugar de primazia
no exercício da transmissão da revelação divina pelo seu caráter de inspiração. Ela o faz como
Palavra de Deus inspirada. A inspiração reside na verdade do que Deus, por meio do Espírito
Santo amorosamente quis comunicar para a salvação da humanidade nas páginas da Sagrada
Escritura. Por diversas vezes, o Concílio vincula inspiração da Escritura e sua realidade como
Palavra de Deus274.
Por causa de tamanha dignidade, no início do VI cap., a Dei Verbum afirma que a
Sagrada Escritura deve reger toda a vida da Igreja.
Toda pregação eclesial, como a própria religião cristã, deve-se alimentar e ser
orientada pela Escritura. Nos livros sagrados, o Pai que está no céu vem
amorosamente falar a seus filhos. É tão grande a força e a virtude da palavra de Deus
que ela sustenta e dá vigor à Igreja, corrobora a fé de seus filhos, alimenta a alma,
jorra como fonte pura e perene da vida espiritual 275.
273
SÍNODO DOS BISPOS. Lineamenta. A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Vaticano. XII
Assembleia Geral Ordinária. SEDOC, Petrópolis, v. 39, n. 322, mai.-jun. 2007, p. 634-679, n 2.
274
Cf. DV, 9, 14, 17, 21 e 24. Em todos estes números, o Concílio lembra que a Sagrada Escritura é palavra de
Deus e a vincula com a realidade da inspiração divina.
275
DV, 21.
113
276
A Dei Verbum fala de traduções apropriadas da Escritura para facilitação da leitura por parte dos leigos, do
trabalho desenvolvido pelos exegetas, da importância da Escritura para a teologia e da leitura da Sagrada Escritura.
277
Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. O impulso bíblico no Concílio: A Bíblia na Igreja depois da Dei Verbum.
Op. cit., p. 42.
278
Exemplos disso são os Documentos do CELAM, especialmente o da V Conferência de Aparecida, a Exortação
Apostólica pós-sinodal Verbum Domini de Bento XVI, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do Papa
Francisco, outros documentos papais. Aqui no Brasil, os mais variados documentos da CNBB. Esses documentos,
especificamente os nominados, não são de natureza bíblica, mas a ela se referem de maneira abrangente.
279
Para consulta da lista das traduções da Bíblia em português: KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua
leitura. Introdução ao estudo da Bíblia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 24-26.
114
Os métodos são não somente auxílios indispensáveis para uma correta leitura e
interpretação da Bíblia, mas também elementos pelos quais a Bíblia pode sair de uma condição
de marginalização para dialogar com as ciências humanas e também com outros campos de
reflexão teológica. Eles também evitam uma leitura tendenciosa, unilateral ou fundamentalista
da Bíblia.
A Dei Verbum em seguimento com o ensinamento da Divino afflante Spiritu de Pio XII,
no n. 12, aponta para importância do uso dos gêneros literários na leitura da Escritura, a fim de
conservar o sentido autêntico dos textos bíblicos e a unidade da Escritura e propõe alguns
critérios na aplicação dos gêneros literários no estudo bíblico: considerar o texto no seu
contexto, isto é, conhecer a mentalidade da época e a cultura em que o texto foi escrito, para
saber aplicar corretamente o gênero literário àquele texto, em respeito à sua escrita da época;
ter em conta a unidade da Escritura, lendo-a a partir do Espírito com que a mesma foi escrita e,
finalmente, levar em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé281.
Nem sempre é fácil respeitar os critérios indicados pelo Concílio, mas é de salutar
importância para que a Sagrada Escritura não seja descaracterizada de sua realidade primeira,
isto é, de Palavra de Deus inspirada, que contém a verdade revelada por Deus para a nossa
salvação, conforme a afirmação da Dei Verbum no n. 11:
280
SÍNODO DOS BISPOS. Instrumentum Laboris. A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. op. cit., n.
18.
281
Cf. DV, 12.
115
Como se considerada dita pelo Espírito Santo tudo aquilo que dizem os autores
inspirados ou os hagiógrafos, deve-se confessar que os livros das Escrituras ensinam
firme e fielmente e sem sombra de erro a verdade que Deus quis transmitir nos livros
sagrados, para nossa salvação282.
Em suma, o trabalho dos exegetas e a aplicação dos gêneros literários servem a essa
realidade primeira da Sagrada Escritura.
Acima de qualquer crítica bíblica ou de aspectos exegéticos ou teológicos, a Sagrada
Escritura contém a Palavra de Deus, realidade viva e divina. Foi essa consciência que o Concílio
quis recobrar, quando abordou a importância de levar em conta os gêneros literários no estudo
da Escritura. Acontece que não são poucas as vezes que, no exercício de interpretação e leitura
da Escritura, se considera, em primeiro lugar, aspectos exegéticos ou determinada visão de
leitura, às vezes secundários e unilaterais. Dá-se a impressão que a mensagem de salvação de
Deus é desconsiderada, em vista das muitas hipóteses e palavras humanas.
Da importância dada aos gêneros literários pelo Concílio para a leitura da Sagrada
Escritura, como Souza e Ferreira283 fazem notar, a Igreja no Brasil promoveu a Leitura popular
da Bíblia entre as camadas mais simples, protagonizada pelo Frei Carlos Mesters. Segundo
Mesters,
Embora o método proposto por Carlos Mesters tenha tido sua importância e tenha
certamente atingido as pessoas mais simples, levando-as ao entendimento e acolhimento da
Palavra de Deus por meio da Sagrada Escritura, na atualidade, dadas as novas realidades –
históricas e eclesiais – e ao surgimento de novos movimentos e Novas Comunidades na Igreja,
o método de Leitura Popular da Bíblia não é aceito por uma significativa parcela de grupos
282
DV, 11.
283
SOUZA, Ney de e FERREIRA, Reuberson Rodrigues. Dei Verbum: 50 anos depois, ainda um renovado
estímulo ao estudo da Bíblia na Igreja. Revista de Teologia e Ciências da Religião. v. 7, n. 2, p. 270-287, jul.-dez.
2017, Recife, Unicap.
284
MESTERS, Carlos. Leitura popular da Bíblia. In: DCV, p. 533.
116
eclesiais, o que, de acordo com Souza e Ferreira, “dado que a mudança/conversão vem do
interno dos movimentos ou pessoas, seria oportuno vestir de uma nova roupagem essa
pedagogia, acrescer-lhe outros instrumentais e propô-lo às comunidades”285.
O Concílio quis promover também a renovação da vida espiritual por meio da leitura da
Sagrada Escritura. Dessa intenção, embora a Dei Verbum não tenha mencionado o termo Lectio
Divina, recomendou a leitura espiritual da Escritura: “Lembrem-se de que a leitura da Sagrada
Escritura deve ser acompanhada da oração para que se estabeleça um colóquio entre Deus e o
homem, pois “falamos quando oramos e a ele ouvimos quando lemos as suas palavras” 286. A
Lectio Divina pela sua própria natureza é o aperfeiçoamento do diálogo entre Deus e o ser
humano. Nesse sentido, Kasper diz:
Por isso considero que a sugestão prática mais importante da “Dei Verbum” é a
renovação da tradição bíblica e patrística da “Lectio Divina”, que consiste na leitura
espiritual, feita em comunidade ou individualmente, da Sagrada Escritura,
acompanhada da oração; nela, Deus vem ao nosso encontro com seu amor e estabelece
conosco um diálogo. Nela está presente o mesmo Jesus Cristo 287.
Se a Dei Verbum, mesmo que tenha tratado da importância da leitura espiritual da Bíblia,
não citou o termo Lectio Divina, no Sínodo sobre a Palavra de Deus, Bento XVI corrigiu esta
falta e, na Verbum Domini, tratou da Lectio Divina nos n. 86 e 87 do documento. No n. 86,
Bento XVI falou da Leitura orante como elemento importante para a vida espiritual, a ser
praticado de modo individual ou comunitário, acentuando a importância de uma Leitura orante
comunitária. Também chamou a atenção para não confundir o sentido pessoal da leitura bíblica
com uma leitura subjetivista do texto sagrado. A leitura pessoal do texto não pode ser feita em
prejuízo à comunhão eclesial: “A este propósito, porém, deve-se evitar o risco de uma
abordagem individualista, tendo presente que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para
construir comunhão, para nos unir na Verdade no nosso caminho para Deus” 288. No n. 87, o
Papa aborda brevemente os quatro passos fundamentais para a realização da Lectio Divina:
leitura, meditação, oração e contemplação do texto bíblico.
285
SOUZA, Ney de e FERREIRA, Reuberson Rodrigues. Dei Verbum: 50 anos depois, ainda um renovado
estímulo ao estudo da Bíblia na Igreja. Op. cit., p. 285.
286
DV, 25.
287
KASPER, Walter. Escuchar la Palabra de Dios com devoción y proclamarla con valentía. Op. cit., p. 47.
288
VD, 86.
117
A repetição da leitura do texto bíblico em cada passo dado, como é indicado fazer, tem
a intenção de mergulhar o orante de modo profundo no sentido do texto bíblico e de levá-lo ao
diálogo íntimo e amoroso com Jesus Cristo, situando o texto no seu contexto, trazendo o texto
para sua realidade pessoal, respondendo a Deus por meio do texto e olhando o mundo a partir
do olhar de Deus.
(...) o Sínodo convidou a um esforço pastoral particular para que a Palavra de Deus
apareça em lugar central na vida da Igreja, recomendando que se incremente a pastoral
bíblica, não é justaposição com outras formas de pastoral, mas como animação bíblica
da pastoral inteira290.
289
RETAMALES, Santiago Silva. A “Palavra de Deus” na V Conferência de Aparecida. Atualidade Teológica,
ano XI, n. 27, set.-dez. 2007, Rio de Janeiro, p. 363.
290
VD, 73.
118
A Palavra de Deus não pode ser um ramo a mais do conjunto da árvore que é a Igreja,
mas a seiva que corre por seu tronco e nutre todos os ramos. Onde quer que haja
evangelização, ali deverá estar a Palavra de Deus com sua multiforme presença,
iluminando e animando o anúncio do Reino. Os bispos em Aparecida falam da
Escritura como farol que ilumina o caminho e a atuação da Igreja de Cristo 291.
Por fim, feita uma leitura atenta da Dei Verbum e considerado o tempo histórico desde
o Concílio até os dias atuais, muitos frutos poderão ser percebidos nestes anos sucessivos ao
Vaticano II em decorrência do que já vinha e do que se seguiu depois dele na vida da Igreja.
Até aqui lembramos alguns frutos, todos ligados a realidade da Sagrada Escritura. Em seguida,
trataremos da Palavra de Deus na liturgia, na catequese e evangelização.
291
RETAMALES, Santiago Silva. A “Palavra de Deus” na V Conferência de Aparecida. Op. cit., p. 367.
292
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: CATÃO,
Francisco (Trad.). Vaticano II: mensagens, discurso e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 141-174.
(Doravante, neste texto, mencionada apenas como SC).
119
tímido, dos estudos bíblicos, dos métodos de exegese, da correção de exageros na interpretação
da Sagrada Escritura quando necessário, motivados também pelo movimento bíblico e litúrgico,
em que houve todo trabalho de devolver às mãos dos fiéis a Sagrada Escritura –, acolhê-los e
aperfeiçoá-los, no sentido de discutir e superar temas polêmicos sobre a Sagrada Escritura –
que se arrastavam desde o séc. XVI – e promover a redescoberta da centralidade da primazia
da Palavra de Deus na Igreja.
Ouvir religiosamente e proclamar com confiança a Palavra de Deus, de acordo com o
Concílio, deve ser a primeira tarefa da Igreja para que haja uma autêntica atualização ou
transformação daquilo que pode e deve ser mudado, em vista de tornar o Evangelho mais
límpido em sua manifestação e de fazer resplandecer Cristo na vida da Igreja e na vida de cada
dia do ser humano.
Ouvir e anunciar. Em ambas atitudes, a Palavra de Deus é eco da voz de Jesus Cristo,
mensagem de salvação, transmissão e testemunho da revelação de Deus para a humanidade.
Por meio da escuta da Palavra advinda do anúncio da Igreja, discípula e mestra da mesma, o
ser humano escuta, acolhe e dialoga com o próprio Jesus Cristo, com ele se encontra, dele se
alimenta e nele encontra forças para perseverar no caminho dos mandamentos e na vida de
caridade.
A escuta e a proclamação da Palavra que gera o encontro e o diálogo com Jesus Cristo
se dá especialmente na celebração litúrgica, tanto da missa quanto dos outros sacramentos.
Ambas as atitudes se esticam nas mais variadas realidades ou situações onde o ser humano está
inserido, mas de modo todo especial, como afirmou o Concílio, a Palavra de Deus deve ecoar
de modo particular na liturgia da Igreja293. Na liturgia da Igreja, a Palavra proclamada não é só
veículo de diálogo entre Deus e o homem, mas ela é, sobretudo, sacramento de salvação.
No início do n. 21 da Dei Verbum, encontra-se a afirmação: “A Igreja sempre honrou as
Escrituras como corpo do Senhor, especialmente na santa liturgia, em cuja mesa não deve faltar
nem a palavra de Deus, nem o corpo do Senhor, para serem dados aos fiéis”294. Este número da
Dei Verbum pode ser lido em relação com o n. 7 da Sacrosanctum Concilium:
Para realizar tal obra, Cristo está sempre presente à sua Igreja, especialmente nas
ações litúrgicas. Presente ao sacrifício da missa, na pessoa do ministro, “pois quem o
oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que então se ofereceu na cruz”, mas,
especialmente presente sob as espécies eucarísticas. Presente, com sua força, nos
sacramentos, pois, quando alguém batiza é o próprio Cristo que batiza. Presente por
sua palavra, pois é ele quem fala quando lê a Escritura na Igreja295.
293
Cf. DV, 24.
294
DV, 21.
295
SC, 7.
120
Dizei-me, irmãos e irmãs, segundo vós o que é mais importante, a Palavra de Deus ou
o Corpo de Cristo? Se quereis responder bem, deveis dizer, sem dúvida alguma, que
a Palavra de Deus não é inferior ao Corpo de Cristo. Portanto, se nós temos tanto
cuidado para que nada caia das nossas mãos quando recebemos o Corpo de Cristo,
não devemos também nós termos os mesmos cuidados para que nada da Palavra de
Deus, que nos é oferecida e doada, escape dos nossos corações, o que aconteceria se
estivéssemos a pensar em outras coisas? Não é menos culpável escutar a palavra de
Deus de forma negligente do que deixar o Corpo de Jesus cair na terra 298.
Ou ainda, em:
296
Cf. KASPER, Walter. Escuchar la Palabra de Dios com devoción y proclamarla con valentía. Op. cit., p. 46.
297
ANTIOQUIA, Inácio de. Carta aos Filadélfios. Apud PONTIFÍCIO COMITÊ PARA OS CONGRESSOS
EUCARÍSTICOS INTERNACIONAIS. A Eucaristia: comunhão com Cristo e entre nós. Dublin: 2012. Disponível
em: http://www.vatican.va/roman_curia/pont_committees/eucharist-
congr/documents/rc_committ_euchar_doc_20110215_50-testo-base_po.html. Acesso em 10 de abril de 2019.
298
ARLES, Cesário de. Sermão 78, 2. Apud PONTIFÍCIO COMITÊ PARA OS CONGRESSOS
EUCARÍSTICOS INTERNACIONAIS. A Eucaristia: comunhão com Cristo e entre nós. Dublin: 2012. Disponível
em: http://www.vatican.va/roman_curia/pont_committees/eucharist-
congr/documents/rc_committ_euchar_doc_20110215_50-testo-base_po.html. Acesso em 10 de abril de 2019.
299
JERÔNIMO, São. Prólogo ao Comentário do profeta Isaías: PL 24, 17. Apud PONTIFÍCIO COMITÊ PARA
OS CONGRESSOS EUCARÍSTICOS INTERNACIONAIS. A Eucaristia: comunhão com Cristo e entre nós.
Dublin: 2012. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pont_committees/eucharist-
congr/documents/rc_committ_euchar_doc_20110215_50-testo-base_po.html. Acesso em 10 de abril de 2019.
121
nas espécies eucarísticas, está presente, de modo análogo, na Palavra anunciada na liturgia da
Igreja. Esse sentido da sacramentalidade da Palavra, como recorda Bento XVI na Verbum
Domini, ajuda a entender mais profundamente a realidade da revelação de Deus, realizada na
história em “ações e palavras intimamente unidas”300.
Ao sublinhar tamanha importância da Palavra de Deus na liturgia, relacionando-a com
a Eucaristia, o Concílio fez também um resgate de alguns elementos importantes até então não
vistos, mas primordiais para o destaque da Palavra:
300
Cf. VD, 56.
301
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Geral
do Missal Romano e Introdução ao Lecionário. Brasília: CNBB, 2008, n. 309.
122
Schmidt, “tanto se desprezava a liturgia da Palavra que a missa, na mentalidade da época, era
válida a partir do ofertório em diante. Os homens saiam para fumar e voltavam depois do
ofertório ou já se chegava naquele momento no ofertório”302.
A partir da Dei Verbum, o Vaticano II, acolhendo o que já vinha dos movimentos de
renovação da Igreja e especialmente do movimento bíblico, promoveu a valorização da Sagrada
Escritura como Palavra de Deus que comunica a salvação, vinculada à Tradição e ao Magistério
da Igreja. Desse trabalho do Concílio, a Sagrada Escritura começou a ser valorizada na liturgia
e o Ambão passou a ser destacado para a proclamação da Palavra.
302
SCHMIDT, Gerson. A mesa da Palavra: resgate do Concílio: 15/03/2018. Vaticano: 2018. Disponível em:
https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2018-03/concilio-vaticano-ii-sacrosanctum-concilium-palavra-
ambao.html. Acesso em 14 de maio de 2019.
303
Os livros litúrgicos são os que contêm as celebrações litúrgicas, tanto da missa quanto dos demais sacramentos:
Missal Romano, Lecionário Dominical, Lecionário Semanal, Lecionário Santoral, Evangeliário, Pontifical
Romano, Rituais em geral, Ritual da iniciação cristã, Ritual do Batismo, Ritual do Matrimônio, Ritual da Unção
dos enfermos, Ritual da Penitência, Ritual de bênçãos e Ritual de exorcismos.
123
304
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Geral do
Missal Romano e Introdução ao Lecionário. Op. cit., n. 6.
305
DV, 24.
124
(...) a exposição dos mistérios sagrados e das normas da vida cristã, a partir dos textos
sagrados, no decurso do ano litúrgico. Recomenda-se vivamente a sua prática com
parte integrante da liturgia. Nas missas dos domingos e festas de preceito, com a
presença do povo, não se deve omiti-las306.
306
SC, 52.
307
Cf. VD, 59.
125
tudo, diálogo entre Jesus Cristo e o pregador. Nesse sentido, o Papa Francisco na Evangelii
Gaudium faz suas as palavras de João Paulo II na Pastores dabo Vobis, quando afirma:
O pregador deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com
a Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem
dúvida necessário; precisa se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a fim
de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova
mentalidade308.
Como vimos, a partir da Dei Verbum, a Sagrada Escritura voltou a ocupar seu devido
lugar na dimensão litúrgica da Igreja, como Palavra de Deus que, ao ser proclamada na liturgia
transmite a revelação, como bem recordou Santana: “…Sabemos, outrossim, que não se pode
atingir o cerne da proposta conciliar no tocante a revelação que Deus faz de si mesmo sem
considerá-la em total sintonia com o mistério da liturgia”309. A palavra de Deus manifesta e
atualiza a salvação de Deus realizada na história, cumprida plenamente em Jesus Cristo310 e por
ele no Espírito Santo, dada sua realidade sacramental, tão bem trabalhada pelo Vaticano II, a
partir do que já vinha acontecendo em favor do resgate da importância da Sagrada Escritura e
do impulso dado para a valorização ainda maior da Palavra contida na Escritura. Ao ouvir a
Palavra de Deus na liturgia, o ser humano é conduzido pelo Espírito ao encontro com Jesus
Cristo e ao aprofundamento do diálogo com Deus, que se prolonga na concretude da vida.
A partir da redescoberta do valor da Palavra de Deus na Igreja, vimos em três aspectos
da dimensão litúrgica, como ela ocupou seu lugar de centro. Há outros aspectos da dimensão
litúrgica em que a Palavra de Deus recebeu a devida vênia, como por exemplo, a valorização
do leitorado e a devida preparação dos leitores para o anúncio da Palavra, formação do grupo
de liturgia (que evita chamar alguém para proclamar a leitura minutos antes de iniciar a
celebração litúrgica), a valorização da Palavra na Liturgia das Horas, a Celebração da Palavra
dominical em muitas comunidades onde não há a presença do ministro ordenado, a relação entre
Palavra e silêncio, uso frequente da Sagrada Escritura nos retiros e nos momentos de oração em
comunidade. Apesar disso, sobre o último ponto, falta ainda um longo caminho a percorrer, no
sentido de levar a assembleia litúrgica a interiorizar e saborear a Palavra divina por meio do
silêncio sagrado.
308
EG, 149.
309
SANTANA, Luiz Fernando Ribeiro. Bíblia e Liturgia: da Dei Verbum à Verbum Domini. Atualidade Teológica,
Rio de Janeiro, v. 21, n. 56, p. 243-263, mai.-ago. 2017, p. 244.
310
Cf. Idem, p. 254.
126
Finalmente, o trabalho da Dei Verbum sobre o modo novo de dizer a Revelação trouxe
consequências para a evangelização, compreendida como anúncio da Palavra para a transmissão
da fé.
Como aparece no proêmio da Constituição conciliar, a revelação, que é a comunicação
da vida divina, consumada em Jesus Cristo e por ele comunicada, deve ser anunciada pela Igreja
por meio da Palavra de Deus, portada preeminentemente pela Tradição e pela Sagrada Escritura,
nos mais diversos espaços onde a Igreja realiza sua missão. O anúncio, como aparece na Dei
Verbum, não se dá de qualquer maneira, mas é fruto da escuta religiosa, uma escuta obediente
da Igreja à Palavra de Deus, entendida como ao próprio Jesus Cristo, Palavra viva do Pai. Escuta
e anúncio da Palavra de Deus constituem, assim, o ser e o agir da Igreja.
Como tem sido dito, a guinada do Vaticano II, vista especialmente em relação ao
desenvolvimento da revelação divina, conforme aparece na Dei Verbum, foi a redescoberta da
Palavra de Deus como centro da vida da Igreja e não a Igreja como centro de si mesma, antes
vista mais como instituição perfeita, centrada mais na sua estrutura externa, confundida em suas
expressões com o Reino, do que como sacramento do Reino de Deus na humanidade chamada
à comunhão com Deus, como comunidade dos seguidores de Jesus e do seu Evangelho,
chamada a anunciar a Palavra de Deus. Nesse sentido, afirma Catão:
Ora, percebe-se hoje, com nitidez cada vez maior, que o centro do Vaticano II, na
história do cristianismo não é propriamente a Igreja, mas a Palavra de Deus, atuante
na natureza e na História, presença de que nasce a Igreja, constitutiva do próprio
mistério cristão. À luz da recepção do Vaticano II, deve-se reconhecer que o Vaticano
II passará à história como o concílio que recolocou no centro da vida e da missão da
Igreja a Palavra de Deus…311
311
CATÃO, Francisco. A Nova Evangelização. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. 19, n. 74, abr.-jun.
2011, p. 19.
127
312
VD, 2.
313
Cf. VD, 2.
314
BENTO XVI. Carta Encíclica Deus Caritas Est. São Paulo: Paulus; Loyola, 2006, n. 1.
315
Cf. DA, 246-265.
316
De acordo com o Instrumentum Laboris para a XIII Assembleia geral dos bispos sobre “A Nova evangelização
para a transmissão da fé cristã”, o termo ‘nova evangelização” ganhou notoriedade pelo Papa João Paulo II no
discurso dirigido aos bispos do continente latino-americano. Assim se expressou o Papa: “A comemoração de
meio milênio de evangelização terá seu pleno significado se for um empenho vosso como Bispos, em conjunto
com o vosso Presbitério e os vossos fiéis; um empenho, não certamente de reevangelização, mas de uma nova
evangelização. Nova no seu ardor, nos seus métodos, nas suas expressões” (JOÃO PAULO II. XIX Discurso à
Assembleia do CELAM. Port au Prince. Apud SÍNODO DOS BISPOS. Instrumentum Laboris. A Nova
128
Apesar do termo ter sido fruto da intuição profunda de João Paulo II sobre a realidade
pastoral da Igreja, não pode ser compreendido em dissonância com o Vaticano II e com os anos
seguidos ao Concílio, por um lado de grande fervor por causa de todo frescor do Concílio e,
por outro lado, de desafios, devido ao crescente e acelerado processo de secularização e, por
conseguinte, do distanciamento ou esfriamento de muitas pessoas da vida de fé, conforme se lê
no Instrumentum Laboris:
João XXIII, desde a convocação do Concílio até sua abertura, vendo o rápido
crescimento da secularização por um lado e o esfriamento de muitos na fé, por outro, sentiu a
necessidade de despertar na Igreja a importância de se empenhar na transmissão da fé, de tal
modo que o homem atual pudesse sentir Deus perto de si, como amigo e Pai e a ele se entregasse
livremente. Assim também Paulo VI, na esteira do Vaticano II e da intuição de João XXIII, via
a necessidade da Igreja perseverar na obra da evangelização. Além disso, Paulo VI apresentava
como problema de fundo o “como evangelizar”318.
Neste “como evangelizar”, vê-se para Paulo VI o sentido de uma nova evangelização.
A Igreja não deve se interessar somente pelo conteúdo a ser transmitido, o que é de suma
importância, mas necessita buscar novas maneiras de transmissão do anúncio, em sintonia
profunda com a mensagem da salvação e se esforçar para adequar a mensagem do Evangelho à
compreensão do homem atual. Para tanto, é fundamental ter ciência do ser humano na sua
realidade concreta, conhecer sua história e sua cultura.
Evangelização para a transmissão da fé cristã. XIII Assembleia Geral Ordinária. São Paulo: Paulinas, 2012, n.
45).
317
INSTRUMENTUM LABORIS. A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã. XIII Assembleia Geral
Ordinária. Op. cit., n. 10.
318
Cf. EN, 40.
129
319
Cf. EN, 42.
320
EN, 41.
130
de outubro de 2012 a novembro de 2013, em toda a Igreja. Os três acontecimentos estão, como
se nota pelo próprio título de cada um, em perfeita sintonia. Da Palavra ao novo anúncio e deste
à transmissão ou renovação da fé.
O coroamento dos eventos com o Ano da Fé, convocado por Bento XVI, na celebração
do 50º aniversário do Vaticano II, indica sua compreensão do que a Igreja deva priorizar na
nova evangelização: a fé. Não, porém, os conteúdos da fé, mas o ato de crer, conforme o
ensinamento do Concílio no primeiro capítulo da Dei Verbum, como já tratamos no nosso
segundo capítulo deste texto e como aprece na primeira seção da primeira parte do Catecismo
da Igreja Católica, “Eu creio” – “Nós cremos”321.
O Catecismo, em continuidade com a Dei Verbum, reconhece a prioridade do ato de
crer, no qual se fundam os conteúdos e as consequências da fé. Bento XVI na Carta Apostólica
Porta Fidei continua no mesmo rumo ao reconhecer como consequência primeira da revelação
para o homem, a interpelação à fé que o guia na vida de amor e de união com Deus, em Jesus
no Espírito Santo e à vida de caridade e de justiça, na relação com o próximo e para o
compromisso social e ético322.
321
Cf. CIC, 26-184.
322
Cf. PF, 1.
323
PF, 2.
131
e políticas da fé do que com a própria fé, considerando-a como um pressuposto obvio da sua
vida diária”324.
A prioridade das consequências práticas da fé sobre o ato de crer não foi capaz de suprir
o vazio deixado pela anterior acentuação dos conteúdos da fé na evangelização da Igreja em
detrimento da fé em si mesma: a profunda crise de fé continua ainda a atingir muitas pessoas.
É preciso levar a sério a proposta de Bento XVI na redescoberta do caminho da fé, priorizando
o ato de crer. O convite da Papa encaixa-se perfeitamente naquilo que mais tarde o Documento
de Aparecida chamou de encontro pessoal com Jesus Cristo325 e que o Papa Francisco
confirmou ao dizer que o núcleo central do anúncio do Evangelho é a beleza do amor salvífico
de Deus manifestado em Jesus Cristo326, ou seja, que o anúncio deva levar o ser humano ao
encontro com Jesus Cristo. Ademais, partir das consequências práticas da fé é o mesmo que
considerar a evangelização primeiramente a partir do externo da instituição e das inumeráveis
atividades que devam ser desenvolvidas pela Igreja e tirar o acento do ato de crer, gerado da
Palavra revelada, única realidade capaz de tocar em profundidade o coração do ser humano e
de garantir uma autêntica conversão pessoal a Jesus Cristo e uma sincera renovação eclesial.
Se não se renova a partir da Palavra, que gera a fé no ser humano, o Evangelho fica
comprometido em sua adesão no coração, em seu anúncio e em sua vivência nas diversas
realidades da vida. A falha produzida pela mudança de perspectiva nos anos seguidos ao
Concílio deve ser revisada nos nossos dias. Naqueles anos, entendia-se que a Igreja deveria em
primeiro lugar, buscar responder aos problemas de ordem social, política, econômica e se
empenhar por algumas causas mais urgentes. Precisamos considerar a história e nos perguntar
se esta decisão tem surtido efeito na vida das pessoas no tocante à realidade do acolhimento da
Palavra, na adesão e vivência da fé na Igreja e nos diversos âmbitos da vida.
Não é que a Igreja deva se isolar do mundo ou tornar-se indiferente aos acontecimentos
da vida das pessoas, aos dramas da humanidade, aos questionamentos e desafios do homem
moderno na sua realidade concreta, mas na compreensão de Bento XVI, para o desempenho e
a eficácia de tão importante missão, a Igreja deve priorizar, na evangelização, o ato de crer,
nascido da escuta da Palavra revelada. Ou em outras palavras, conforme Catão: “O centro de
gravidade da Igreja, de sua vida e missão, é a Palavra de Deus, que vem a nós no Espírito e
preside o acolhimento de Deus no coração. A Palavra de Deus, que é o Cristo Jesus, é a luz
324
PF, 2.
325
Cf. DA, n. 240-245.
326
Cf. EG, 11.
132
interior de nossa vida, oferece-nos como o Amado que inspira todo nosso agir como pessoas
humanas”327.
Por último, o Papa Francisco, na linha do Vaticano II continua o projeto de
evangelização da Igreja, propondo a passagem de uma Igreja centrada em si mesma para uma
Igreja em saída missionária, centrada em Jesus Cristo para o anúncio do Evangelho, a ser feito
na alegria de quem se encontrou com o Cristo e decidiu segui-lo. A partir do encontro com
Jesus, a evangelização deve ser feita em dinâmica missionária e não se trata primeiramente de
uma transmissão de doutrina, mas do anúncio do que é mais importante, da beleza do amor
salvífico de Deus, manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado328.
A acentuação da evangelização em chave missionária-cristológica é a grande
contribuição do Papa Francisco no projeto evangelizador da Igreja impulsionado pelo Concílio
e continuado nos pontificados seguidos ao Vaticano II na transmissão da fé pelo anúncio do
Evangelho. A partir dessa perspectiva, o Papa Francisco contempla duas realidades: de um lado,
quando a evangelização é feita em chave missionária, o anúncio se concentra no essencial, no
belo, no mais importante a ser dito e a fé cristã manifesta vigor na vida das pessoas porque
manifesta mais diretamente o coração do Evangelho329; do outro, o Papa observa as
transformações culturais e nesse cenário, identifica a pouca incidência da fé na vida das pessoas
e por isso chama a atenção para a necessidade de revisão da linguagem e de alguns costumes
que já não tem a mesma eficácia no serviço da transmissão do Evangelho. No entanto, não se
deve perder de vista a dimensão da cruz conservada na fé e na transmissão do Evangelho 330.
Como se pode ver, o Papa Francisco identifica uma dificuldade na transmissão do
Evangelho, devido a vários fatores, como aponta Moraes:
327
CATÃO, Francisco. O ato de crer. Adesão a Deus pelo acolhimento de sua Palavra no Espírito. Revista de
Catequese, São Paulo, ano 36, n. 141, pp. 22-30, jan.-jun. 2013, p. 28.
328
Cf. EG, 35-36.
329
Cf. EG, 34-39.
330
Cf. EG, 40-45.
331
MORAES, Abimar Oliveira de. O anúncio do Evangelho na atualidade: uma introdução à Evangelii Gaudium.
In: AMADO, Joel Portella e FERNANDES, Leonardo Agostini (orgs.). Evangelii Gaudium em questão. Aspectos
bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014, p. 44.
133
Considerações Finais
332
“Em 1962, João XXIII havia proposto à assembleia um novo “princípio hermenêutico” que transferia os debates
do conteúdo dogmático para sua forma pastoral”. (THEOBALD, Christoph. O concílio e a “forma pastoral” da
doutrina. Op. cit., p. 400).
333
Cf. JOÃO XIII. Discurso Gaudet Mater Ecclesia: 11/12/1962. Op. cit., p. 32.
135
Por experiência pessoal, sabemos que não é fácil se inovar em questões recentes,
imagine em se tratando de realidades seculares até então consideradas por muitos como
imutáveis. Não foi fácil, a princípio, para a proposta inicial de João XXIII sobre a incumbência
do Concílio de trilhar um caminho novo, encontrar espaço no coração e na mente de muitos da
Igreja. Tiveram muitas resistências, medos, dúvidas e questionamentos sobre aonde tudo isso
levaria. Por outro lado, como alguns já esperavam uma renovação eclesial, sobretudo em
relação ao anúncio e testemunho do Evangelho no mundo atual e também à promoção do
diálogo entre todos, a proposta inicial de João XXIII para o Concílio encontrou acolhida,
incentivo e apoio em muitos corações. Um sinal de esperança despontava. Por sua vez, João
XXIII, mesmo diante de alguns obstáculos e desafios, caminhava na certeza da presença do
Espírito para a realização do Concílio, com ânimo e coragem avançava nas etapas de execução
do mesmo confiante de que, por meio do Vaticano II, o aggiornamento tão esperado na Igreja
e já visto nos movimentos de renovação eclesial, impulsionaria ainda mais a Igreja rumo a uma
conversão a Jesus Cristo e seu Evangelho e a uma renovação doutrinal, entendida como um
novo modo de transmitir a fé pelo anúncio da Palavra.
Como sabemos, a partir do que se pode interpretar dos discursos de João XXIII e
também de Paulo VI, o significado da reforma conciliar ou do aggiornamento, conforme os
dois pontífices costumavam mencionar, não representava ruptura ou divisão de uma Igreja em
duas, como se houvesse uma Igreja pré-conciliar e outra pós-conciliar. Além de caracterizar o
que já afirmamos sobre a necessidade de atualizar as manifestações da fé, adequando-as para o
serviço da missão da Igreja na atualidade, tratava-se primordialmente do movimento de retorno
ao Evangelho, núcleo central da novidade e da reforma eclesial e, consequentemente, por ele,
voltar às fontes: bíblica a patrística. O convite ao retorno às fontes da Escritura e da Patrística
não representava de maneira alguma um tipo de saudosismo334. Na verdade, João XXIII
desejava tirar a Igreja do anacronismo335 das expressões da fé. Hoje corremos o risco de vivê-
lo em relação as dimensões da fé, por meio de alguns gestos e sinais litúrgicos já ultrapassados,
de uma determinada linguagem teológica e catequética acentuadamente moralista, de um certo
334
“Tendência, gosto fundado na valorização demasiada do passado; mistura de filosofia e religiosidade nacional,
baseada no sentimento mais característico da alma portuguesa, a saudade; [Literatura] movimento literário,
defendido por Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e inserto entre o Simbolismo e a geração modernista…”.
(HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001, p. 2526).
335
“Anacronismo (do grego ἀνά “contra” e χρόνος “tempo”) é um termo empregado para designar um erro
cronológico, quando conceitos, pessoas, objetos, pensamentos, eventos, vocábulos, pensamentos ou eventos são
erroneamente utilizados para retratar uma época diferente daquela a que verdadeiramente pertencem. Tal erro é
caracterizado pelo desalinhamento e falta de correspondência ou consonância entre as particularidades de
diferentes épocas, que são associadas a um período específico no tempo”. Escrito por SILVA, Débora.
Anacronismo: 25/09/2017. São João del-Rei: 2017. Disponível em: https://www.estudopratico.com.br/o-que-e-
anacronismo/. Acesso em 05 de maio de 2019.
136
336
“… tenho insistido na necessidade de retornar, por assim dizer, à «letra» do Concílio – ou seja, aos seus textos
– para também encontrar o seu verdadeiro espírito; e tenho repetido que neles se encontra a verdadeira herança do
Concílio Vaticano II. A referência aos documentos protege dos extremos tanto de nostalgias anacrônicas como de
avanços excessivos, permitindo captar a novidade na continuidade. BENTO XVI. Homília del Papa Benedicto
XVI en la Eucaristía de apertura del Año de la Fe. Revista Seminarios. “La luz de la fe”: Diagnóstico tras el Año
de la Fe. Vol. LX, 2014, n. 210, jan..-abr. Salamanca: Ediciones Sígueme, p. 123.
337
O termo aparece no discurso que o Santo Padre Bento XVI proferiu por ocasião das festas natalinas aos cardeais
e prelados da Cúria Romana em 12 de dezembro de 2005, disponível em: https://w2.vatican.va/content/benedict-
xvi/pt/speeches/2005/december.index.html.
137
338
Cf. DV, 1.
138
O que caracteriza a revelação descrita no Vaticano II? Se poderia dizer que o que
caracteriza é que parte do ponto de vista de Deus, por isso a revelação se pode
descrever desde si mesma. O tom do Vaticano I permite afirmar que ali se concebia a
revelação desde o ponto de vista intelectual: a revelação é uma locutio, uma instrução
de Deus aos homens, uma instrução na que Deus livremente manifesta os decretos de
sua vontade. Em Dei Verbum, este motivo noético se substitui pelo motivo do amor:
Deus “movido de amor, fala aos homens como amigos para convidá-los e recebê-los
em sua companhia339.
O Vaticano I era resultado de fatores externos: nasceu num contexto polêmico contra
o racionalismo e o agnosticismo; por isso, seu horizonte gnosiológico não se guiava
pela exigência da reflexão sobre a revelação em si mesma, mas era uma apologética
da verdade do revelado. Nos tempos do Vaticano II, essas condições negativas
desapareceram. A descrição da revelação quer ser expressiva para o mundo
contemporâneo, por isso se faz desde si mesma, com um recurso constante a
categorias e a textos bíblicos340.
339
BALAGUER, Vicente. La economía de la Palabra de Dios. A los 40 años de la Constitución dogmática Dei
Verbum. Scripta Theologica, v. 37, n. 2, mai.-ago. 2005, Navarra (Esp), p. 415.
340
Idem, p. 415.
139
Palavra de Deus e a reconheceu como realidade sobre a qual a Igreja se centra e da qual se
define e se renova sempre.
A novidade da revelação apresentada pelo Vaticano II, descrita no primeiro capítulo da
Dei Verbum, a partir de sua natureza e realização na História, trouxe consequências para a Igreja
em sua dimensão teológica, pastoral, litúrgica e missionária. A consequência mais importante
foi, sem dúvida, a redescoberta da centralidade da primazia da Palavra de Deus na vida da
Igreja. Da Palavra, centro da Igreja, vem a autêntica e perene renovação e novidade eclesial,
como também a renovação dos corações e das mentes pelo acolhimento à Palavra anunciada.
À luz desse princípio fundamental, olhamos a centralidade da Palavra na Constituição
conciliar Dei Verbum e depois em duas dimensões maiores da vida eclesial: na liturgia, em que
a Palavra, além de ser centro pela sua própria realidade, também é corpo do Senhor, venerada
como sacramento em analogia à Eucaristia, pela salvação que manifesta e realiza na
comunidade reunida para celebrar o mistério pascal de Jesus Cristo e na evangelização,
entendida como toda ação missionária e catequética da Igreja. Tudo deve ser permeado pela
Palavra de Deus, para que ambas realidades sejam eficazes na vida das pessoas.
Da evangelização, consideramos o projeto de “nova evangelização” continuado do
Vaticano II pelos Papas, desde Paulo VI até nossos dias atuais, no Ministério Petrino do Papa
Francisco. Vimos como cada Papa, sem romper com a fé professada pela Igreja, contribuiu para
a promoção da evangelização, quer seja aprofundando o sentido do termo “nova
evangelização”, quer seja convocando eventos eclesiais, como os sínodos, as conferências
episcopais, quer seja apoiando eventos de inciativas das Igrejas Particulares.
No centro da evangelização ou da “nova evangelização” – nova sobretudo porque deve
partir sempre do encontro pessoal com Jesus Cristo, Palavra viva do Pai, de uma adesão do
coração para a transmissão e testemunho da fé pela acolhida da Palavra; nova também por causa
dos novos métodos e dos novos cenários a serem considerados no serviço evangelizador; nova
especialmente porque é o Espírito o impulsionador da Igreja no anúncio de Jesus Cristo,
Evangelho vivo do Pai – está a Palavra de Deus.
O desafio maior tanto a nível eclesial quanto pessoal está em considerar a centralidade
da Palavra na vida da Igreja, especialmente pela valorização da Sagrada Escritura em todas as
pastorais ou movimentos da Igreja. Valorizá-la, mas também saber utilizá-la e, para tal tarefa,
exige o empenho em promover uma adequada formação ao povo de Deus sobre o Texto Sagrado
para ser multiplicador da Palavra de Deus. Acontece que, mesmo com todo impulso dado pelo
Concílio ao estudo, leitura, oração, meditação e contemplação da Sagrada Escritura, há muito
a ser feito neste sentido.
140
A Sagrada Escritura ainda não é manuseada adequadamente por muitos católicos, não é
devidamente valorizada, isto é, como Palavra de Deus e muitas vezes sua leitura é desvirtuada
da orientação da Igreja, é reduzida tão somente a uma maneira de lê-la, como por exemplo, se
destacou muito aqui no Brasil, uma leitura e interpretação de cunho primordialmente social da
Sagrada Escritura que hoje já não toca o coração das pessoas como tocava num determinado
período. É importante ter consciência da orientação da Igreja para uma correta leitura e
interpretação da Escritura.
Por outro lado, vê-se também uma leitura muito espiritualizada, que não gera
compromisso para a vida diária ou fundamentalista da Escritura, o que atualmente é crescente
também entre os católicos. Quando não é assim, lê-se a Escritura como se fosse um livro de
receita ou de consulta para determinados sintomas emocionais, sem o devido discernimento ou
ainda, para confirmar certos tipos de profecias incompatíveis com a fé professada pela Igreja,
esquecendo-se de que, na Escritura, está a mensagem que Deus amorosamente quis comunicar
para nossa salvação.
Diante de tudo dito até aqui, lembramos a afirmação da Primeira Carta de João assumida
pela Dei Verbum:
O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que
contemplamos e nossas mãos apalparam, é nosso tema: a Palavra da vida. A Vida se
manifestou: nós a vimos, damos testemunho e vos anunciamos a Vida que estava junto
do Pai e se manifestou a nós. O que vimos ou ouvimos vo-lo anunciamos também a
vós, para que partilheis nossa vida, como nós a partilhamos com o Pai e com seu Filho
Jesus Cristo341.
341
Cf. 1Jo, 1, 1-3.
141
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