A Cristologia Do Enviado
A Cristologia Do Enviado
A Cristologia Do Enviado
A CRISTOLOGIA DO ENVIADO
Apoio CAPES
BELO HORIZONTE
FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2011
1
R696c Rodrigues, José Raimundo
A cristologia do enviado no Evangelho segundo João em
vista de uma tendência cristológica atual / José Raimundo
Rodrigues. - Belo Horizonte, 2011.
264 f.
CDU 226.5
2
3
Agradecimento
Ao Prof. Dr. Johan Konings pelo apoio, incentivo e sábia paciência ao longo da pesquisa.
A Romeu de Souza Barata por sua des-crença em Deus e na humanidade, mas que,
discretamente, suportou-me nessa pesquisa.
Aos que, por graça de Deus, foram enviados ao meu caminho, particularmente Patrícia
Ferreira da Costa, e ajudaram-me a descobrir novas formas de anunciar o Enviado, deixando-
me guiar pelo Espírito, sabendo-me filho do Pai.
Aos que reconhecem Jesus, que o Pai enviou na força do Espírito, presente na vida e na
história de todos os seres humanos e insistem em anunciar o amor e a fidelidade de Deus para
conosco.
A esses a quem agradeço e àquele que me será enviado como filho dedico este trabalho.
4
RESUMO
Palavras-chave
5
ABSTRACT
This thesis studies the Christology of the Sent One in the Gospel according to John,
based on an approximation with the popular Christology of the RCC (Catholic Charismatic
Renewal). Starting with popular Brazilian Christologies, it focuses on the Christology sampled
in the Catholic Charismatic movement, attempting to uncover its characteristics, deficiencies
in theological discernment and its implications for Christian self-understanding. Believing
that the sending Christology can fill the gaps present in the “sample case”, the Old Testament
and New Testament tradition of the sending of theological origin is taken up, setting a broad
framework upon which John the Evangelist was able to compile his Christology. Finally, the
instances of the sending in the Gospel according to John are passed on, emphasizing how
Jesus understands himself and presents himself as sent by the Father in the narrative. The
propositions of theological systematization in the last chapter attempt to answer the questions
suggested by Charismatic Christology. This paper aims to contribute to a better understanding
of the sending of Jesus in John whilst relating to current Christological trends.
Key-words
6
LISTA DE ABREVIATURAS
Bibliográficas
Outras
AT Antigo Testamento id. idem
c. capítulo NT Novo Testamento
CEBs Comunidades Eclesiais de Base op.cit. opus citatum
cf. confira p. página
ed. edição RCC Renovação Carismática
Católica
et al. et alii
v., vv. versículo, versículos
ibid. ibidem
7
SUMÁRIO
Agradecimento ....................................................................................................................................... 4
RESUMO................................................................................................................................................ 5
ABSTRACT ........................................................................................................................................... 6
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 15
1 Situando a questão............................................................................................................................ 23
2.2 A “Ofensiva nacional: ...e sereis minhas testemunhas”, contra a evasão católica.. 28
8
4.1 Os milagres enquanto credenciais divinas .................................................................. 46
5.2 Jesus, humilde e manso, servo sofredor: a santidade cristã adquirida pela dor ..... 60
7 Conclusão .......................................................................................................................................... 73
CAPÍTULO II...................................................................................................................................... 74
9
2.1 José do Egito, enviado para salvar ............................................................................. 80
10
OS ENVIADOS NO NOVO TESTAMENTO ................................................................................ 124
2.1 O envio em citações das Escrituras mencionadas pelos sinópticos ........................ 127
2.1.1 Eis, eu envio o meu anjo diante de tua face (Mt 11,10//Mc 1,2//Lc 7,27) ............ 127
2.1.2 O Espírito enviou-me para proclamar a libertação (Lc 4,18) ................................ 129
2.1.3 O enviado rejeitado em sua terra: o exemplo de Elias e Eliseu (Lc 4,26) ............. 130
2.2.1 Jesus como o enviado às ovelhas perdidas de Israel (Mt 15,24) ........................... 131
2.2.3 Quem me recebe, recebe o que me enviou (Mt 10,40//Mc 9,37//Lc 9,48; 10,16). 134
2.3.1 E designou doze para estarem com ele e para os enviar a pregar (Mc 3,14) ......... 148
2.3.2 O envio dos doze e a sua condição de ovelhas entre lobos (Mt 10,5// Mc
6,7//Lc 9,2) ............................................................................................................. 149
2.4 O envio da promessa do Pai sobre os discípulos (Lc 24,49) .................................... 152
2.5 Envio de anjos por parte de Deus (Lc 1,19.26) ......................................................... 153
2.6 Envio de anjos por parte do Filho do Homem (Mt 13,41; 24,31; Mc 13,27) ......... 154
2.7 Envio nas parábolas (Mt 21,34.36.37//Mc 12,1.2.4.5.6//Lc 20,10.11.12.13) ............ 155
3.1 Jesus, o Messias enviado e portador da palavra de Deus (At 3,20; 10,36)............. 156
11
3.3 Pessoas enviadas em missão....................................................................................... 158
3.3.2 Solicitação de que se envie mensageiros a Jope (At 10,5.8) ................................ 159
3.3.4 Paulo envia à Macedônia Timóteo e Erasto (At 19,22) ........................................ 160
3.3.5 Discurso de Paulo em que afirma que foi enviado (At 26,17) .............................. 161
4.1 Jesus, o enviado na plenitude dos tempos em carne semelhante à do pecado para
tornar filhos de Deus (Gl 4,4.6; Rm 8,3) ................................................................... 162
5 Pedro como enviado e o Espírito Santo enviado (1Pd 1,1.12) ..................................................... 165
2 Houve um homem enviado de Deus, seu nome era João (Jo 1,6; 3,28) ...................................... 177
3 Jesus, o enviado do Pai e sua missão no Evangelho segundo João ............................................. 179
3.2 Jesus, o enviado que fala as palavras de Deus (Jo 3,34) ......................................... 181
3.3 Jesus, o enviado que se alimenta da vontade do Pai (Jo 4,34.38) ........................... 185
12
3.4 Jesus, o enviado a ser honrado (Jo 5,23.24.30.36.37.38) .......................................... 188
3.5 Jesus, o enviado que é o pão descido do céu para alimento do povo (Jo
6,29.38.39.44.57) .......................................................................................................... 192
3.7 Jesus, o enviado livre e unido ao seu outorgante (Jo 8,16.18.26.29.42) .................. 199
3.8 Jesus, o enviado santificado como Filho de Deus (Jo 10,36) ................................... 203
3.9 Jesus, o enviado que conduz ao Pai (Jo 12,44.45.49) ............................................... 205
3.11 Jesus, o enviado que revela o rosto do Pai (Jo 14,24.26) ....................................... 208
3.12 Jesus, o enviado consolador dos discípulos (Jo 15,21) ........................................... 211
3.13 Jesus, o enviado que retorna ao Pai (Jo 16,5.7) ...................................................... 212
3.14 Jesus, o enviado que envia os seus ao mundo (Jo 17,3.8.18.21.23.25) .................. 213
3.16 Jesus, o enviado que outorga a continuidade de sua missão aos discípulos (Jo
20,21) ............................................................................................................................ 216
a) Instrumentos.................................................................................................................................. 245
13
14
INTRODUÇÃO
15
vida cristã demonstrou-se como engajamento social. Nos últimos anos, com outro acento,
desenvolveu-se de maneira extrordinária a RCC, expandindo-se graças ao uso dos meios de
comunicação, quase gerando uma uniformização da identidade cristã católica em território
nacional.
1
Dentre as teses de doutorado destacam-se os seguintes trabalhos: DÁVILA, Brenda M. Carranza. Movimentos
do catolicismo brasileiro: cultura, mídia, instituição. Campinas: UNICAMP, 2005. Tese de doutorado. A autora,
com o arcabouço das Ciências Sociais, estuda a recatolização brasileira liderada pela Renovação Carismática
Católica, tendo como objeto específico o fenômeno midático em torno do sacerdote carismático Pe. Marcelo
Rossi. RUBENS, Pedro. Discerner la foi dans des contextes religieux ambigus: enjeux d‟une théologie du croire.
Paris: Cerf, 2004. O autor analisa o cenário religioso brasileiro, marcado por ambiguidades, caracterizado por
quatro figuras principais, dentre elas a Renovação Carismática Católica. A abordagem de Pedro Rubens inova ao
interagir com a teologia da fé de Paul Tillich. BENEDETTI, L. R. Templo, Praça, Coração: a articulação do
campo religioso católico. São Paulo: USP, 1988. O autor centra sua pesquisa na região de Campinas, contudo a
sua análise sociológica acerca do Pentecostalismo, das Comunidades Eclesiais de Base e da Renovação
Carismática Católica tem aspectos que se aplicam a nível nacional. SILVA, Edvania Gomes da. Os
(des)encontros da fé: análise interdiscursiva de dois movimentos da Igreja Católica. Campinas: UNICAMP,
2006. Tese de doutorado. A tese de doutorado em Linguística trata da relação interdiscursiva dos movimentos
Renovação Carismática Católica e Teologia da Libertação, realçando as recíprocas recusas presentes nas
semânticas globais usadas nos discursos dos dois movimentos. SOFIATI, Flávio Munhoz. Religião e juventude:
os jovens carismáticos. São Paulo: USP, 2009. Tese de doutorado. O autor, em sua tese de Sociologia, busca
identificar como se dá a assimilação da formação religiosa pelo jovem carismático e como acontece o fenômeno
de sua fidelização ao movimento.
16
como o Cristo”2. A análise da cristologia presente na Renovação Carismática Católica alerta
para o risco de se permanecer na antiga dicotomia que coloca humanidade e divindade como
concorrentes na vida e história de Jesus. O movimento carismático demonstra séria
dificuldade em aceitar uma das principais afirmações do Evangelho segundo João: “E o Logos
se fez carne” (Jo 1,14a).
2
BINGEMER, M. C. L. et al. Jesus como o Cristo na nova encruzilhada cultural. Concilium. Petrópolis: Vozes,
n. 326, p. 7 [319], 2008.
17
perspectiva para a aceitação da missão de Jesus como realização inequívoca do agir de Deus
no mundo. Em Jesus é o Pai quem age. Nas palavras de Jesus é o Pai quem fala. O quarto
capítulo da tese repassa, em sua sequência narrativa, as ocorrências do verbo enviar, frisando
o seu uso como atribuição ao ser e agir de Jesus.
18
Os quatro capítulos que compõem a tese poderiam se circunscrever em quatro
grandes questões: Quem é Jesus Cristo segundo a Renovação Carismática Católica? Quem
são e como se comportam os enviados do Antigo Testamento? Quem são e como se
comportam os enviados do Novo Testamento? Qual o significado teológico da autorrevelação
de Jesus como enviado no Evangelho de João? As quatro questões respondidas querem
iluminar a realidade eclesial brasileira inicialmente apresentada. Espera-se que este trabalho
em sua totalidade contribua para um discernimento acerca do modo de interpretar a pessoa de
Jesus por parte do seguimento carismático e também um discernimento sobre o modo de agir
dos envolvidos no movimento. A originalidade dessa tese encontra-se no fato de procurar
responder à cristologia carismática com uma cristologia do século primeiro, ressaltando o
valor da fonte bíblica como elemento determinante para o ser e agir cristãos.
Sob o ponto de vista da teologia da práxis cristã, embora não seja a área de
concentração dessa tese, pode-se dizer que o método escolhido se relaciona com a identidade
eclesial brasileira pós-conciliar. Ao se observar uma realidade concreta e buscar a sua análise,
realiza-se o “Ver”. Ao se buscar nas Escrituras elementos para o justo discernimento da
realidade escolhida, realiza-se o “Julgar”. Ao tornar isso público, exercício final da tese, abre-
19
se para a compreensão adquirida para o “Agir”. Todo o trabalho teológico tem por finalidade
contribuir para o crescimento e amadurecimento da fé. Seja a nível pessoal ou comunitário, o
estudo teológico evita o hermetismo e se dispõe ao diálogo.
Ainda sobre o método é preciso notar que o ato de interpretar é sempre um ato de
fé. O teólogo interpreta a realidade a partir deste ponto de vista, o de quem acredita que a
realidade é caracterizada pelo mistério. Sendo assim, o que se analisa a respeito da realidade é
sempre, por parte do teólogo, uma forma de compreender o mistério. É justo ponderar aqui
que a interpretação acerca do fenômeno carismático foi feita por alguém que não está
envolvido com o movimento, mas que contempla o discurso carismático como uma
interpretação também nascida na fé, porém com urgente necessidade de discernimento. O fato
de que interpretar é um ato de fé não justifica que a Renovação Carismática afirme em seu
discurso algo que contrarie a Tradição Católica. Por outro lado, o teólogo ao analisar o
discurso do movimento, especificamente no que se refere à cristologia, não abandona suas
raízes bíblicas, que o levam a pensar que o Cristo anunciado pelo movimento não condiz
plenamente com aquele anunciado pelo evangelho.
O ato de escrever o Evangelho foi para João um exercício de fé, que tinha por
meta levar à maturidade uma comunidade que conheceu a mensagem de Jesus Cristo, para
que o assumisse na sua integridade, com toda a sua humanidade, não deixando escapar
nenhum aspecto de sua vida, enquanto realidade definitiva do agir de Deus na história. A
condição de carne de Jesus é dado essencial para a comunidade joanina e demonstra o quanto
a tentação de acreditar num Filho de Deus desencarnado ameaça a fé cristã. O Evangelho
segundo João frisa isso e também as Cartas de João. O evangelista interpretou, junto com sua
comunidade, a realidade Jesus Cristo.
20
A retomada da cristologia do enviado segundo o evangelho de João em território
brasileiro quer resgatar a plena integração da divindade e humanidade de Jesus a partir de sua
missão de enviado. Em relação aos cristãos é um apelo para assumir a condição de enviados e
realizar na vida e história pessoais o mesmo agir do Enviado no cotidiano do mundo. O
caminho feito pelo evangelista João e sua comunidade é aquele que ora se nos apresenta como
convite a redescobrir a presença imperiosa de Deus na pessoa de Jesus e acolher a vida eterna
que ele nos comunica.
21
CAPÍTULO I
Canção carismática
22
1 Situando a questão
1
BÜHNER, J-A. Der Gesandte und sein Weg im 4. Evangelium: Die kultur- und religionsgeschichtlichen
Grundlagen der johanneischen Sendunschristologie sowie ihre tradiditionsgeschichtliche Entwicklung.
Tübingen: Mohr, 1977.
2
Cf. BORGEN, Peder. God‟s Agent in the Fourth Gospel. In: NEUSNER, J. Religions in Antiquity. Leiden:
Brill, 1968, p. 137-148. Borgen percebeu as semelhanças entre a instituição judaica do envio, apresentada pelas
halakot, e o texto de João.
3
LÉTOURNEAU, Pierre. Jésus, Fils de l‟homme et Fils de Dieu: Jean 2,23-3,36 et la double christologie
johannique. Paris: Cerf, 1992.
4
LOADER, W. R. G. The Central Structure of the Johannine Christology. NTS 30, p. 188-216.
23
No Brasil, o tema do envio foi refletido pelo teólogo José Comblin5. Em seu livro
“O enviado do Pai”, o autor apresenta uma série de meditações sobre temas joaninos.
Constata o uso frequente do tema do envio em João e reflete sobre o caráter missionário de
Jesus Cristo, enquanto enviado de Deus ao mundo. Comblin pressupõe que o tema da missão
é o primeiro ao redor do qual se organiza o Quarto Evangelho. Detém sua reflexão sobre as
seguintes passagens joaninas: 17,21 – “o mundo creia que tu me enviaste”; 1,10 – “o mundo
não o conheceu”; 1,14 – “a Palavra se fez carne” e “vimos sua glória”; 1,17 – “a graça e a
verdade”; 9,39 – “um julgamento”. Portanto, concentra-se principalmente nas premissas do
Prólogo acerca do envio, não tendo elaborado uma reflexão sobre todas as ocorrências e suas
implicações para a cristologia de João.
5
COMBLIN, José. O enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1974.
6
MIRANDA, M. de França. Uma cultura católica, hoje?. In: HORTA, Luiz Paulo (coord.). Sagrado e profano:
XI retratos de um Brasil fim de século. Rio de Janeiro: Agir, 1994, p. 66-69. – Pedro Rubens percebeu a
efervescência religiosa no Brasil e suas ambiguidades, propondo uma leitura do fenômeno a partir da perspectiva
de Paul Tillich. Para o autor, quatro vertentes se apresentam: a do Catolicismo Popular, a da Renovação
Carismática Católica, a da Teologia da Libertação e a do Pentecostalismo. OLIVEIRA, Pedro R. F. de. O rosto
plural da fé: da ambigüidade religiosa ao discernimento do crer. São Paulo: Loyola, 2008.
7
Vale aqui, por analogia, o que Miranda comenta sobre a fé: “A fé cristã vivida, portanto, nunca poderá ser
encontrada em „estado puro‟, mas sempre e necessariamente envolta numa linguagem concreta, e mediatizada
por um horizonte cultural determinado”. MIRANDA, Uma cultura católica, p. 61.
8
Comblin sugere a existência de matrizes sertaneja e cabocla do catolicismo popular. Cf. COMBLIN, José. Os
sinais dos tempos e a Evangelização. São Paulo: Duas Cidades, 1968, p. 289-290. – Melo define o catolicismo
popular como a religiosidade popular no âmbito da Igreja Católica. Cf. MELO, Antônio Alves de. A
Evangelização no Brasil – dimensões teológicas e desafios pastorais: o debate teológico e eclesial (1952-1995).
Roma: PUG, 1996, p. 234.
9
Cf. LEPARGNEUR, Hubert. Imagens de Cristo no catolicismo popular brasileiro. In: BOFF, Leonardo et al.
Quem é Jesus Cristo no Brasil? São Paulo: ASTE, 1974, p. 58-64.
10
Cf. COMBLIN, Os sinais, p. 240.
24
comunhão eucarística, da devoção ao Coração de Jesus, do culto às imagens. O catolicismo
popular valoriza sobremaneira a dimensão humana do sofrimento de Jesus, transformando-o
em protótipo de todo sofrimento cristão. “Um homem no qual cada homem que sofre projeta a
sua própria condição”11, mas que, ao mesmo tempo, é interpretado como vivo e milagreiro12.
O poder de Jesus se revela nos milagres e constante proteção exercida em relação aos fiéis. O
Cristo do catolicismo popular é, a um só tempo, sinal de abnegação e protesto contra a dor e
sofrimento presentes no mundo. A santidade de Jesus figura como apelativo para um
moralismo rígido e incentivo a uma vida cristã de resignação13. A encarnação é vista nesse
contexto como manifestação de uma solidariedade de Deus com os pobres14. Nem sempre se
atribui a Jesus o lugar central da fé cristã15, e muitos fiéis manifestam maior confiança nos
santos ou em Maria.
O Cristo popular das CEBs é aquele que se identifica com os pobres por ser pobre
e ter sido enviado pelo Pai para, através de gestos e palavras, inaugurar um reino de liberdade
para todos os oprimidos16. A prática de Jesus, a sua opção pelos pobres como primeiros
destinatários de sua missão libertadora, é considerada como dado primordial para a
compreensão de sua pessoa e da práxis cristã17. Assim, o Jesus histórico é tido como a
referência para o agir cristão. O Jesus das CEBs é caracterizado solidariamente com todos os
pobres das mais diversas classes: trabalhador, negro, indígena, mulher, criança abandonada,
11
COMBLIN, José. Os sinais, p. 241.
12
Cf. LEERS, B. Catolicismo popular e mundo rural. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 81-82.
13
Leers comenta que esse moralismo foi influenciado pelo discurso clerical neojansenista que concentrou a
atenção do povo na paixão de Jesus e impôs um rigorismo que não combina com o espírito do Evangelho. Cf.
LEERS, B. O triste cristianismo e Jesus de Nazaré. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 61, n. 243, p.
591-597, set. 2001.
14
LEPARGNEUR, Imagens de Cristo, p. 64.
15
Cf. MELO, A Evangelização, p. 238.
16
Cf. GRONCHI, Maurício. Trattato su Gesù Cristo Figlio di Dio Salvatore. Brescia: Queriniana, 2008, p. 798.
– Ezequiel Silva atribui à teologia da libertação a colocação do Reino de Deus no centro do discurso sobre Jesus
Cristo. Isso se daria pela sensibilidade dessa teologia em levar a cabo a reflexão iniciada pelo Concílico Vaticano
II. Cf. SILVA, Ezequiel. A centralidade do Reino de Deus na teologia da libertação. In: VIGIL, José Maria
(org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 273.
17
Acerca de um possível deslocamento de Cristo para os pobres, veja-se a discussão iniciada por Clodovis Boff.
BOFF, C. Teologia da libertação e volta ao fundamento. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 67, n.
268, p. 1001-1022, out. 2007. – SUSIN, L. C. e HAMMES, É. J. A teologia da libertação e a questão de seus
fundamentos. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 68, n. 270, p. 277-299, abr. 2008. – AQUINO
JÚNIOR, Francisco. Clodovis Boff e o método da Teologia da Libertação: uma aproximação crítica. Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 68, n. 271, p. 597-613, jul. 2008. – BOFF, L. Pelos pobres e contra a
estreiteza do método. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 68, n. 271, p. 701-710, jul. 2008. – BOFF, C.
Volta ao fundamento: réplica. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 68, n. 272, p. 892-927, out. 2008.
25
doentes, excluídos sociais etc18. O poder de Jesus é o do articulador sociopolítico que liberta a
sociedade nas suas raízes mais profundas, eliminando o pecado social 19. A santidade de Jesus
e do cristão se demonstra no compromisso com os mais pobres, excluídos do sistema
capitalista vigente. A encarnação de Cristo é compreendida como a concomitância da ação
divina na história humana, instaurando o Reino de Deus, sem que o divino se sobreponha por
irrupções extraordinárias. Popularizou-se uma cristologia pluralista onde Jesus Cristo pode ser
reconhecido como um dos revolucionários e a eles equiparado e aceito como manifestação de
Deus sem prejuízos para a fé. Vê-se nisso um antídoto à exclusividade cristocêntrica da
salvação20.
18
SANDER, L. M. Jesus, o libertador: a Cristologia da Libertação de Leonardo Boff. São Leopoldo: Sinodal,
1986, p. 63.
19
Leonardo Boff frisa que Jesus é o “libertador da consciência oprimida pelo pecado e por toda a sorte de
alienações e libertador da triste condição humana nas suas relações para com o mundo, para com o outro e para
com Deus”. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador: ensaio de Cristologia Crítica para o nosso tempo.
Petrópolis: Vozes, 1972, p. 260.
20
Cf. TEIXEIRA, Faustino. O desafio de uma cristologia em chave pluralista. In: VIGIL, José Maria (org.).
Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 333. – Ainda nessa obra o
seguinte artigo: KNITTER, Paul. F. Uma cristologia libertadora é uma cristologia pluralista, e com garra! In:
VIGIL, José Maria (org.). Descer da cruz os pobres: cristologia da libertação. São Paulo: Paulinas, 2007.
p. 184-188.
21
Cf. LAURENTIN, René. Pentecostalismo entre os católicos: riscos e futuro. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 15-
17.
26
Nos últimos 40 anos a Igreja Católica no Brasil tem experimentado a
efervescência de grupos de oração ligados à Renovação Carismática Católica (RCC), uma
experiência neopentecostal católica nascida no contexto do Vaticano II. A fisionomia do
cristão brasileiro passou por profundas mudanças e, graças à RCC, surgiu também, apesar de
ser uma retomada do catolicismo tradicional, uma nova identidade cristã mais autônoma,
“animada”, espiritualizante, leitora da Bíblia, batizada no Espírito, repleta de dons
carismáticos e que se afirma a serviço da Igreja.
22
Os aspectos históricos sobre a RCC não são aqui tratados por já terem sido amplamente abordados em
pesquisas sobre o movimento. Acerca do surgimento e expansão do movimento no Brasil: PRANDI, J. R. Um
sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo católico. São Paulo: FAPESP, 1998, p. 32-39.
23
Cf. <http://www.rccdobrasil.org.br>. Acesso em: 03 ago. 2010. – Daniel-Ange chega a mencionar que o Brasil
teria cerca de 61 mil grupos carismáticos, atingindo um quantitativo de 8 milhões de pessoas, contudo não
comprova seus dados. Cf. DANIEL-ANGE. A Renovação: primavera da Igreja. São Paulo: Loyola, 1999, p. 61.
24
Cf.<http:// www.pur.com.br>. Acesso em: 03 ago. 2010. – O Projeto Universidade Renovada foi uma
iniciativa da RCC, nascida do desejo do universitário Fernando Galvani, aluno de Zootecnia da UFV, que
ganhou repercussão nacional a partir de 1994. Cf. GABRIEL, Eduardo. A evangelização carismática católica na
universidade: o “sonho” do grupo de Oração Universitário. São Carlos: UFSCar, 2006. Dissertação de Mestrado,
p. 41-46.
25
Cf. PIERUCCI, A. F.; PRANDI, J. R. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996,
p. 34.
26
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. As comunidades de renovação rumo ao terceiro milênio.
Aparecida: Santuário, 1998, p. 142.
27
que a RCC apenas reformula o catolicismo popular e/ou a doutrina oficial da Igreja Católica?
De fato, estes elementos estão fortemente presentes no movimento e justificam a análise desta
vertente para efeito de contraste com a cristologia do envio.
2.2 A “Ofensiva nacional: ...e sereis minhas testemunhas”, contra a evasão católica
No contexto de preparação ao Jubileu da Encarnação27, paralelamente à
movimentação oficial do Projeto Rumo ao Novo Milênio, a RCC intensificou, em 1998, a
“Ofensiva Nacional – ... e sereis minhas testemunhas”. Tal ação teria por finalidade “colocar a
RCC em marcha, na unidade, ajuntando todas as suas expressões, retomando aquilo que é sua
identidade: a vivência da graça do Batismo no Espírito Santo”28.
27
Em 1996, a CNBB, atenta à exortação da Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, propôs em preparação
ao jubileu do ano 2000, o Projeto de Evangelização Rumo ao Novo Milênio. Foram sugeridos temas a serem
vivenciados celebrativamente nos anos que antecederiam ao jubileu. Assim, 1997, 1998 e 1999 tiveram como
temas e conteúdos cada pessoa da Trindade, uma das virtudes teologais; e como pano de fundo, a reflexão sobre
o evangelho dominical do ciclo litúrgico. Houve um grande envolvimento por parte da hierarquia e do laicato
para que fossem implementadas as dimensões apresentadas no projeto: serviço, comunhão, diálogo ecumênico e
inter-religioso, anúncio do Evangelho.
28
RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Identidade da RCC. São José dos Campos: Com Deus, 2000,
p. 15. Distingue-se aqui a preocupação carismática acerca da unidade, identidade e missão do movimento.
Unidade: temia-se que o espontaneísmo e a nova linguagem teológica, marcada por ambiguidades, levassem a
um esfacelamento do ensino ministrado pela RCC. Cf. OLIVEIRA, O rosto plural da fé, p. 120. RENOVAÇÃO,
Identidade da RCC, p. 15.22.52. Identidade: a significação do “batismo no Espírito”, distinta da de ordem
teológica ou sacramental, é de ordem vivencial e remete ao momento, ou momentos, nos quais a presença
operante do Espírito tornou-se sensível na consciência pessoal. As consequências desse batismo são as diversas
expressões dos dons carismáticos efusos: línguas, profecia, interpretação, ciência, sabedoria, discernimento dos
espíritos, cura, fé e milagres (cf. 1Cor 13,8-10). Cf. RENOVAÇÃO, Identidade da RCC, p. 27. Missão: colocar
os dons a serviço – sendo compilada como uma adaptação do Objetivo Geral da Ação Pastoral da Igreja no
Brasil. Cf. RENOVAÇÃO, Identidade da RCC, p. 15.
29
Cf. RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 57.
28
RCC evocou Pentecostes como realidade imprescindível para um “despertar” diante do
espírito missionário adormecido, propondo o “batismo no Espírito” como sua contribuição
para a mudança do cenário letárgico30.
30
“As próprias Comunidades de Base, em muitos casos, nascidas mais da vontade da hierarquia do que da
própria base, acabaram, em certos lugares, por perder seu poder de evangelização, conscientização, mobilização
e transformação, devido a brigas político-partidárias, normalmente fomentadas por mesquinhos interesses
pessoais de oportunistas que querem usar o poder de influência desses grupos” (RENOVAÇÃO, As
comunidades de renovação, p. 59).
31
“A experiência é um conhecimento concreto e imediato de Deus que se aproxima do homem. „Experiência‟é
um conhecimento percebido como um fato e é o resultado de um ato de Deus. O homem se apropria desse ato de
Deus num nível pessoal. Contrasta com o conhecimento abstrato que se tem, ou se acredita ter, de Deus e de seus
atributos: onipotência, onipresença, infinitude” (RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 78). – Vaz
adverte para o falso lugar-comum dessa oposição entre pensamento e experiência, sugerindo que a experiência é
a face do pensamento que se volta para a presença do objeto. Nessa perspectiva, a experiência tem sempre uma
relação ativa entre a consciência e o fenômeno. Cf. VAZ, H. C. Lima. Escritos de Filosofia, I: problemas de
fronteira. São Paulo: Loyola, 1986, p. 243-245. – Há também autores carismáticos que percebem o quanto a
questão da experiência é problemática para as lideranças, cabendo-lhes constante discernimento,
particularmente, quando essa questão não se vincula a uma vivência cristã. Cf. WALSH, Vincent M. Conduzi o
meu povo: manual para líderes carismáticos. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 82.
32
Cf. RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 62.
33
Cf. LIBANIO, J. B. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo: Loyola,
2001, p. 104.
34
Os autores carismáticos têm uma justa percepção de que a RCC conduziu muitos fiéis à substituição da missa
pelo grupo de oração. Afirmam se tratar de “um desvio e demonstra falta de formação contínua dos líderes e
coordenadores da RCC e por outro lado, denuncia a falta de celebrações que atendam as aspirações da
comunidade”. RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 67.
29
Crise de valores
Impacto da modernidade
35
Libanio considera que na cultura contemporânea há evidências de neopaganismo, que tem como maior
adversário a cristandade. Isso posto, pode-se questionar se a alternativa carismática de retorno à cristandade tem
alguma probabilidade de vencer o contexto pagão atual. Cf. LIBANIO, J. B. A religião no início do milênio. São
Paulo: Loyola, 2002, p. 240.
36
“A essa sociedade materialista e secularista, se opõe a experiência de Deus, a que chamamos Batismo no
Espírito Santo. Sabemos que homens e mulheres fortalecidos pela experiência de Deus podem dar uma resposta
de vida e testemunho de santidade, mesmo em situações de „martírio‟ e „perseguições‟ engendradas pelas
circunstâncias do „viver no mundo‟” (RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 70). – Bingemer e
Bartholo consideram que o vazio de referenciais, típico do contexto de relativização de valores, contribuiu para
proliferação desordenada de líderes carismáticos de todos os matizes. Cf. BINGEMER, Maria C. L.;
BARTHOLO, Roberto dos S. Jr. Exemplaridade ética e santidade. São Paulo: Loyola, 1997, p. 10.
37
Cf. ABIB, Jonas. Caminho para a santidade. São Paulo: Loyola/Canção Nova, 1996, p. 10. “Há aqueles que
acham um exagero associar todos os males do mundo ao inimigo (chamam a isso de „demoniomania‟); que não
acreditam que estejamos numa batalha de fato. Sim, nós estamos, mas no final dela. Em breve, o inimigo será
derrotado. Por isso, por saber que pouco tempo lhe resta, é que ele tem sido tão sujo; por isso é que ele veio para
cima de nossa geração com grande furor” (Ibid., p. 19).
38
Cf. RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 83.
30
aos fiéis aquilo que as comunidades evangélicas39 vivenciam: espontaneidade na oração,
valorização dos dons pessoais, redefinição do ministério feminino, leitura bíblica, momentos
de louvor, acolhida e entrosamento num ministério do grupo40.
39
Na história do protestantismo brasileiro e, consequentemente, na prática pentecostal e na neopentecostal que a
seguiu, a crítica feita aos católicos tocava diretamente em pontos da vida religiosa católica como apreço pelas
imagens, devoção mariana, valorização dos sacramentos, respeito pelo papa. Assim, a experiência pentecostal da
RCC procura reafirmar tais práticas católicas e nisso cria também sua distinção em relação ao pentecostalismo e
neopentecostalismo presentes no país. Cf. CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das
ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X/Instituto Mysterium, 2007,
p. 37.39. – HAHN, Udo. O Espírito Santo. São Paulo: Loyola, 2003, p. 52. – Ainda sobre as semelhanças entre
carismáticos e evangélicos: MARIZ, C. L. Estudo de caso no Rio de Janeiro: católicos da libertação, católicos
renovados e neopentecostais. In: Cadernos CERIS. Pentecostalismo, Renovação Carismática Católica e
Comunidades Eclesiais de Base: uma análise comparada. Ano I, n. 2, out. 2001, p. 29-31.
40
O serviço carismático é primordialmente expresso pela participação em algum ministério. Como organização
paralela à da pastoral eclesial brasileira, a RCC propõe os seguintes ministérios: Ágape – família; Cristo
Sacerdote – clero; Davi – arte e música; Gabriel – comunicação; Lucas – universitários; Marcos – juventude;
Marta – obras sociais; Matias – política; Moisés – intercessão; Paulo Apóstolo – evangelização; Pedro –
pregação; Rafael – cura e libertação; Samuel – crianças. Cf. <http://www.rccbrasil.org.br/ministerios.php>.
acesso em: 25 ago. 2010. – MIRANDA, J. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do
político. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 82. – Sales comenta que mudança do termo secretaria, utilizado para se
referir aos diversos trabalhos da Ofensiva Nacional, foi modificado para ministérios por se considerar certa
burocratização do movimento que o termo “secretaria” poderia sugerir. Tal mudança se deu em 2004. Cf.
SALES, Igor Marlon. A autocompreensão da Igreja e a Renovação Carismática Católica (1966-2000). Franca:
UNESP, 2006. Dissertação de mestrado, p. 80, nota 54.
41
A RCC, ao definir a Escola Paulo Apóstolo, a propõe como uma forma de sanar a necessidade de formação
permanente de líderes/servos nas mais diversas dioceses. Coordenada por uma secretaria nacional do mesmo
nome, a Escola tem um programa de formação próprio da RCC e, de acordo com seus formuladores, não visaria
à substituição de programas ou projetos específicos de formação cristã já existentes nas Dioceses. Seu objetivo
fundamental seria: “formar dirigentes e servos para as diversas expressões da RCC” (RENOVAÇÃO, Identidade
da RCC, p. 52).
31
cantos de louvor e, em algumas situações, orações em línguas 42. A formação na RCC não se
separa, em momento algum, da prática da oração, caracterizando-se como testemunhal,
experiencial, com ênfase na vivência dos carismas efusos, inclusive com a realização de
oficinas de carismas43. As publicações carismáticas propõem o conteúdo, imediatamente,
embasado em testemunhos e passagens bíblicas, apresentando breves orações ao final de
capítulos ou sugerindo-as44.
42
Cf. MELO, Árife Amaral. Assim na terra como no céu: a Renovação Carismática Católica, sociedade e
modernidade. Marília: UNESP, 2009. Dissertação de Mestrado, p. 70-72.
43
Cf. RENOVAÇÃO, Identidade da RCC, p. 4.
44
A RCC ousou recuperar a imprensa escrita como espaço de comunicação católica. As palestras dos pregadores
carismáticos foram transformadas em coletâneas publicadas por editoras também carismáticas. Não seria tarefa
fácil mensurar a recepção desse tipo material pela população brasileira, mas certo é que houve um novo apreço
pela leitura de cunho católico.
45
Brakemeier comenta que a reflexão bíblica aparentemente não teve papel de destaque nas origens dos
movimentos carismáticos e afirma que há uma carência de estudos sobre a importância da Bíblia na
espiritualidade carismática. Cf. BRAKEMEIER, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado –
fundamento. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 69-70. nota 114.
46
Wegner recorda que a orientação pessoal é determinante na interpretação do texto bíblico, condicionando-a
pela história de fé, cidadania, condição social, gênero etc. Apesar de inevitáveis, os condicionamentos escondem
o perigo de não mais se ouvir o que o texto quer dizer. Cf. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento:
manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 12.
47
Cf. LIBANIO, J. B. Cenários da Igreja. São Paulo: Loyola, 1999, p. 54. – ALDUNATE, C. et al. A
experiência de Pentecostes: a Renovação Carismática na Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 1992, p. 96. –
Benelli percebeu a influência carismática nos seminários, apontando como neles se passou de uma leitura bíblica
em perspectiva marxista para uma carismática. BENELLI, S. J. Pescadores de homens: estudo psicossocial de
um seminário católico. São Paulo: UNESP, 2005, p. 134-135.
48
Cf. HOORNAERT, E. Anais e séculos – teologia que vem das catacumbas: desafios atuais. In: BOGAZ, A. S.;
COUTO, M. A. www.deus.com: desafios da teologia num mundo virtual – “e o Logos se fez site?”. São Paulo:
Loyola, 2004, p. 71-72.
32
ambíguos, retomando uma metodologia tradicionalista em que as passagens bíblicas são
utilizadas como argumentos de persuasão e exigem uma obediência inquestionável ao que é
sugerido pela RCC. Enfim, é uma leitura espiritualizante, intimista, existencial49,
fundamentalista ou tendente à livre interpretação50.
49
Cf. BARCELLOS, J. C. Mulher da palavra: notas para o estudo da espiritualidade litúrgica em Adélia Prado.
In: BINGEMER, M. C. L.; YUNES, E. L. M. Mulheres de palavra. São Paulo: Loyola, 2003, p. 95.
50
Cf. MACHADO, M. das Dores C. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
ANPOCS, 1996, p. 105, nota 35. – CONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL. A Leitura Orante da
Bíblia. São Paulo: Loyola, 1990, p. 29.
51
Autores carismáticos percebem esse problema, como se pode ver no comentário de Juanes. Contudo, opta-se
por assegurar a obediência à hierarquia por considerá-la em si um carisma. Cf. JUANES, B. Tentações dos
servos na Renovação. São Paulo: Loyola, 2001, p.71-73.
52
Prandi comenta a recepção do Documento 53 da CNBB nos meios carismáticos, tido pelos mais fervorosos
como uma manifestação de autoritarismo e cerceamento por parte da Igreja. Cf. PRANDI, Um sopro do Espírito,
p. 57-59. – O texto da CNBB sinalizava, por exemplo, para os exageros comuns em grupos carismáticos quanto
à manifestação dos carismas de cura e glossolalia (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL.
Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica. São Paulo: Paulinas, 1995). – Libanio comenta
sobre o risco de recusa aos ensinamentos sociais e displicência diante das urgências suscitadas pela globalização.
Cf. LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005, p.
200.
33
Em se tratando de um movimento que tem como lema “Jesus é o Senhor”, é
impactante o fato de que nos catálogos das editoras carismáticas e nas obras de seus
pregadores não se encontram escritos específicos acerca da pessoa de Jesus. Como os autores
carismáticos se afirmam fervorosos defensores da doutrina cristã, talvez não tenham a
preocupação de escrever obras cristológicas, por considerarem que o conjunto dos evangelhos
é a obra cristológica inquestionável por excelência. Ao fazerem essa opção, recusam-se a
também acompanhar as grandes reflexões teológicas sobre a cristologia. É das entrelinhas de
certos textos da Escola Paulo Apóstolo e de alguns autores carismáticos que se pode esboçar a
cristologia popularizada pelo movimento. Três temáticas se destacaram ao longo da pesquisa
da bibliografia carismática: encarnação destinada à paixão, poder divino e santidade
espiritual.
53
Cf. ABIB, Jonas. Céus novos e uma terra nova. 3. ed. São Paulo: Loyola/Canção Nova, 1997, p. 26-29. O
autor se serve da interpretação de Is 14,12, em sua versão da Vulgata, combinada com a leitura de Lc 10,18,
“vejo satanás cair do céu como um raio”. – É interessante perceber como a mesma narrativa da perversão de
Lúcifer também é popularizada entres os pentecostais: MARTINS, S. A. Manual de discipulado: esboço das
doutrinas cristãs fundamentais na perspectiva pentecostal. Paio Pires: Letras d‟ouro, 2009, p. 139-140.
– Recente publicação popular aborda toda a trajetória da interpretação de Is 14,12 pelos Padres da Igreja:
KELLY, Henry Ansgar. Satã: uma biografia. São Paulo: Globo, 2008, p. 227-244. – Quevedo mostra que a
aplicação desse texto à origem de Lúcifer, embora pertença ao patrimônio cultural cristão, não se sustenta.
Cf. QUEVEDO, O. G. Antes que os demônios voltem. São Paulo: Loyola, 2005, p. 321-322.
54
Cf. ABIB, Céus novos, p. 26-29.
34
Noutra versão, frisa-se que o mundo foi entregue a Lúcifer para preparar a
chegada do Filho de Deus, contudo, após a queda, o inimigo opta por criar nele os seus
súditos55. Se o mundo foi entregue a Lúcifer, consequentemente a humanidade não poderia
resistir à força de suas investidas tentadoras. Diante disso, o pecado original é apresentado
como o grande motivo da encarnação.
Por outro lado, há a afirmação de que o Reino de Deus foi comunicado pela
encarnação, e utiliza-se também a citação de Jo 1,14a como recordação da habitação desse
Reino junto da humanidade57. A condição humana de Jesus indicaria que a salvação por ele
oferecida atinge todas as áreas da vida da humanidade58, pois é o mistério da encarnação que
permite que toda a vida de Jesus seja salvífica.
55
Como é comum nas pregações carismáticas, dá-se voz aos personagens, nesse caso concreto, Pe. Jonas
reproduz a fala de Lúcifer: “É aqui que vou criar os meus súditos. Aqui vou ter súditos que vão me seguir e
implantarei o meu reino. Aqui o Filho de Deus não terá lugar”. ABIB, Céus novos, p. 29. – Também Prado
Flores recupera a questão da queda como princípio norteador da ação amorosa do Pai. PRADO FLORES, J. H.
Ide e evangelizai os batizados. São Paulo: Loyola, 1996, p. 29.
56
Prado Flores comenta que: “O homem é de natureza pecadora, por isso peca. Portanto não pode modificar-se a
si mesmo. Por suas próprias forças não é capaz de renovar-se, de tornar-se nova criatura, de mudar seu coração,
de solucionar o problema da sua existência. O homem não pode salvar-se a si mesmo, porque todo aquele que
quer salvar sua vida a perde. Nenhum homem pode salvar-se por si mesmo”. PRADO FLORES, Ide e
evangelizai, p. 29. – O autor não considera aqui a ideia de natureza pecadora como herança de Adão, mas sim
como um constitutivo do humano. O estudo sobre o conceito de “imagem de Deus” poderia ajudar na
compreensão carismática a perceber que o ser humano carrega em si a imagem de Adão, mas também a do
Cristo Ressuscitado. Cf. LADARIA, Luis F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 52.
57
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Oração: caminho de santidade. São Paulo: Loyola, [19--],
p. 24.
58
Cf. ibid., p. 15.
59
Cf. AQUINO, Felipe R. Q. de. Em busca da perfeição. 3. ed. Lorena: Cléofas, 1998, p. 90.
35
assunção de tal reino parece passar pela dinâmica do pessoal para o ambiental, no sentido de
espaço de atuação cristã, mas não para o social.
O cristão convertido é aquele que permite que o Senhor reine em seu coração e
que, com isso, muda o ambiente que o circunda, acreditando que aí já se dá a mudança do
mundo. Desta forma, nega-se a necessidade de compromisso ou engajamento social. A plena
confiança no Senhor torna-se, para o carismático, garantia de que a providência divina tudo
soluciona60 e que as preocupações com o sustento material, por exemplo, devem ser evitadas.
Além disso, os problemas são facilmente atribuídos às ações do demônio61, pois se vive no
reinado de Jesus, mas sob as interferências do reinado do inimigo.
60
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 91.
61
Sílvia Fernandes fez um interessante monitoramento da revista carismática “Jesus vive e é o Senhor!”. Para os
carismáticos, a opressão do demônio sobre o ser humano pode se manifestar também na área da saúde, assim as
doenças existem em função da malignidade do mundo e só se extinguirão quando o malígno for destruído. Cf.
FERNANDES, S. R. A. Renovação Carismática e demônio: notas do monitoramento da revista Jesus vive e é o
Senhor. Mneme – Revista de humanidades. v. 6, n. 3, out./nov. 2002, p. 7.
62
Jonas Abib o afirma da seguinte forma: “Quando o Filho de Deus chegou aqui, já havia um reino implantado.
Assim, em vez de encontrar sacerdotes, sumos sacerdotes, chefes do povo preparados para receber o Filho de
Deus que nascia em sua terra, a fim de implantar o reino de Deus, Jesus encontrou perseguidores, traidores que o
julgaram, condenaram e entregaram à morte. Lúcifer já havia trabalhado no coração deles”. ABIB, Céus novos e
uma terra nova, p. 30. – Acerca da abordagem teológica do problema do mal: GOMES, Paulo Roberto. O Deus
im-potente: o sofrimento e o mal em confronto com a Cruz. São Paulo: Loyola, 2007.
36
o responsável pelo sofrimento? A espiritualização da resposta não é convincente e demonstra
certo pessimismo carismático em relação ao mundo63.
O Salmo 9,2-7a é invocado como palavra profética sobre a luta entre esses dois
reinos. Jesus é aqui apresentado como o Messias Rei a quem compete assumir o poderio do
mundo e torná-lo definitivamente parte do Reino de Deus. A pregação carismática sugere a
urgência da decisão do fiel:
63
“Nós nos perguntamos: „Mas Deus é menor? Deus é impotente?‟ Não! É que o príncipe deste mundo já o
estava governando. Deus lhe deu a direção deste mundo, e até agora não a tirou. Mas, saiba, vai tirar!”. ABIB,
Céus novos, p. 33.
64
Ibid., p. 40. O reinado, seja de Jesus ou do malígno, é uma realidade interior, pois é no coração que eles podem
reinar. O tom de pregação estabelece com o leitor um questionamento e a necessidade de se responder
decididamente. Nas assembleias carismáticas essa resposta não é uma decisão tomada no discernimento da fé,
mas uma reação de auditório à provocação do pregador.
65
JURKEVICS, Vera Irene. Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade
popular. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2004. Tese de doutorado, p. 65. – Para Algayer, o diabo e o
mal são materializados nas drogas, no divórcio, na livre orientação sexual e até em letras de músicas ou
programas de TV. Cf. ALGAYER, Carla. “Por hoje não vou pecar”: o corpo jovem como santuário do
catolicismo carismático. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Dissertação de mestrado, p. 92.
66
Cf. ABIB, Céus novos, p. 45-46.
37
A figura de Satanás, na RCC, não é compreendida “como o conjunto de poderes maléficos
que estão entre os homens e que pervertem suas relações pessoais”67.
67
RUIZ DE GOPEGUI, J. A. As figuras bíblicas do diabo e dos demônios em face da cultura moderna.
Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, v. 29, n. 79, set-out. 1997, p. 344.
68
Cf. ZILLES, Urbano. Anjos e demônios. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 17.
69
Cf. MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola,
1999, p. 111.
70
“Foi preciso que o Senhor descesse à terra, assumisse a nossa carne, com a Sua morte destruísse essa nódoa
apegada à nossa natureza e com a Sua ressurreição nos desse uma nova vida. [...] É com o Seu preciosíssimo
Sangue que o Senhor nos lava dessa nódoa da alma” (AQUINO, Em busca da perfeição, p. 33).
71
Cf. ibid., p. 35.
38
Deus teria escravizado sua divindade e limitado sua onipotência72. O Cristo, pregado pelos
carismáticos, é um sensível, mas não pleno de humanidade. Segundo Prado Flores,
O Filho de Deus, sendo de condição divina, assumiu uma carne pecadora e habitou
entre nós, fazendo-se semelhante a nós em tudo, exceto no pecado (Hb 4,15).
Assumiu todas as nossas limitações humanas e viveu plenamente nossa vida com
sua grandeza e sua miséria: chorou, cantou, sentiu-se só e abandonado, encheu-se de
gozo, e seu rosto refletia esperança; mas não lhe faltou o momento do pavor e da
angústia. Admirava os campos, o céu e os animais, mas sofria até as lágrimas a
dureza do seu povo. Enfim, ao fazer-se homem, uniu em si mesmo, numa só pessoa,
toda a vida do homem e toda a vida de Deus. A ruptura entre Deus e o homem,
originada pelo pecado de nossos primeiros pais, ficou unida para sempre no Deus-
Homem a quem chamavam Jesus73.
A justificativa para a encarnação tem sua base numa interpretação superficial da
soteriologia da satisfação. A nódoa humana é interpretada como culpa gravíssima contra
Deus, atingindo-o em sua honra74. Jesus, enquanto Filho de Deus, deve realizar a salvação que
é interpretada como o ajuste de contas entre uma divindade infinitamente ofendida e uma
humanidade essencialmente incapaz e ofensora.
Deus salva porque sua honra foi ofendida, portanto não é o seu amor que, em
última análise, move seu desejo de comunicação com a humanidade, mas sim a sua
necessidade de reparação da ofensa recebida75: “o Homem ao desobedecer, havia adquirido
uma dívida para com Deus que jamais poderia pagar. O Salário do pecado é a morte; a
natureza do homem é pecadora, portanto jamais poderia pagar o preço do pecado”76.
Jesus é enviado pelo Pai para morrer pela humanidade e, assim, redimi-la do peso
do pecado77. Ele vem morrer no lugar daqueles que além de terem ofendido a Deus, mereciam
pagar por seus crimes78. O mistério da morte de Jesus, sacrifício redentor, é que dá o real
significado da encarnação. O Filho de Deus se encarna para morrer e assim estabelecer um
novo pacto da humanidade com o seu Criador.
72
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 35.
73
PRADO FLORES, Ide e evangelizai, p. 40-41.
74
AQUINO, Felipe R. Q. de. Porque sou católico. Lorena: Cléofas, 2002, p. 37-38.
75
Cf. ibid., p. 38. 41. 97.
76
RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Batismo no Espírito Santo. Aparecida: Santuário, 1994, p. 15.
77
Cf. RENOVAÇÃO, Identidade da RCC, p. 18.
78
Acerca da justa compreensão da soteriologia da satisfação em Anselmo, veja-se: SESBOÜE, Bernard e
WOLINSKI, J. O Deus da salvação: séculos I-VIII. São Paulo: Loyola, 2002, p. 414-415.
39
humanidade. É por causa desse Jesus que o fiel deve ser capaz de renunciar às práticas
demoníacas ou idolátricas. Não se contempla em Jesus o judeu que esteve em contato extremo
com a humanidade por se fazer humano, mas sim o Messias salvador que, aos moldes de um
anjo vingador, entra na humanidade para combater as insídias de satanás. A encarnação está
em função da redenção do pecado e não em ordem da comunicação divina com a humanidade.
O sangue do Senhor derramado na cruz é apresentado como mistério a ser meditado
continuamente pelo fiel, pois foi por ele que a humanidade encontrou a salvação79.
Consideram-se outros modos de Deus salvar a humanidade, mas é seu amor que o
motiva a salvar-nos sofrendo; e se afirma numa interpretação romântica: “Jesus amou mais do
que sofreu – eis o segredo da vitória”81. “O mistério da encarnação do Filho de Deus em meio
à pequenez e à dor humana é chave para entender e viver a fé cristã”82. Insiste-se em que o
Filho de Deus sentiu na própria carne todas as dimensões do sofrimento humano.
79
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 136.
80
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Santidade. São Paulo: Loyola, [19--], p. 49; Idem. Igreja.
São Paulo: Loyola, [19--], p. 18.
81
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 15. A imagem do “Deus amor” parece ser ofuscada pela de um “Deus
justiceiro” ou “Deus, Pai castigador”. São comuns as aproximações com as imagens populares e quase
“marcionitas” do “Deus do Antigo Testamento” – que com o Deus da Aliança nada têm a ver.
82
RENOVAÇÃO, Santidade, p. 48.
83
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 38.
84
Cf. ibid., p. 41. – Também: RAHM, Haroldo J.; LAMEGO, Maria. Sereis batizados no Espírito. 9. ed. São
Paulo: Loyola, 1991, p. 39. – Na Toca de Assis há uma identificação com a paixão de Cristo pela adoração do
Santíssimo Sacramento. Acerca de algumas dessas características, veja-se: Cf. PORTELLA, Rodrigo. Em busca
do dossel sagrado: a toca de Assis e as novas sensibilidades religiosas. Juiz de Fora: UFJF, 2009. Tese de
doutorado, p. 64.
40
embora seja um ato de confiança oriundo da relação entre Deus e a pessoa e carregue consigo
uma dimensão de expectativa, ou seja, de uma esperança ainda não realizada85.
“Somente pela cruz, que significa morte ao próprio eu, à própria vontade, para
acatar com fé, alegria e ação de graças a vontade de Deus, poderemos nos salvar”86. Felipe
Aquino não toma os aspectos teológicos de uma estaurologia, mas sim os sentimentais em que
se aponta a cruz pessoal como elemento essencial para que um cristão esteja em comunhão
com Deus87. “Cristo nasceu para morrer! Sabia disso, e nada podia impedi-lO de derramar
Seu sangue por nós”88.
85
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 116-117.
86
Ibid., p. 131.
87
Cf. ibid., p. 131.
88
Ibid., p. 137.
89
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Grupos de oração. São Paulo: Loyola, [19--], p. 37.
90
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 62.
91
Ibid., p. 63.
92
Ibid., p. 120.
41
Há uma compreensão da vida que prescinde de qualquer mecanismo de resistência
ao sofrimento e que interpreta como negativa ou perigosa a revolta diante da dor 93. Fazer a
vontade de Deus, ou seja, acolher o sofrimento em sua vida,é tema comum entre os
carismáticos e parece ser um novo eco da resignação subjacente ao catolicismo popular94.
93
“Olhando para o Senhor, devemos nos envergonhar de nossas atitudes de impaciência, reclamação e revolta
contra as situações da vida [...]. Se ele sendo Deus, foi humilhado, esmagado... e „não abriu a boca‟, como então
nós, que queremos ser Seus imitadores e discípulos, vamos fazer o contrário? Precisamos examinar nossa vida e
pedir perdão” (AQUINO, Em busca da perfeição, p. 76.132).
94
Ibid., p. 91.
95
Cf. ibid., p. 100. – Libanio credita esse toque de eclesialidade à percepção de alguns orientadores de que há
fluidez doutrinal e pastoral na RCC. Cf. LIBANIO, J. B. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola,
2002, p. 35.
96
Cf. AQUINO, Porque sou católico, p. 103.
97
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 68.
42
de vir”. Portanto, a verdade plena a ser alcançada pelo seguimento de Jesus é aquela que o
Espírito concederá, ou melhor é descobrir que o Espírito Santo é o Espírito da verdade
(cf. Jo 14,17).
98
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Carismas. São Paulo: Loyola, [19--], p. 50.
99
Cf. RENOVAÇÃO, Grupos de oração, p. 19.
100
Cf. ibid., p. 46.
101
Cf. RENOVAÇÃO, Oração, p. 27.
43
realização de Deus de comunicar-se plenamente com a humanidade, a fim de gerar filhos no
Filho. Tal interpretação carismática periga negar a encarnação concreta vivida por cada
crente, ou seja, a inegável condição humana desses homens e mulheres que fazem a
experiência do sagrado pelo conhecimento e vivência do mistério cristão.
Por fim, a RCC valoriza mais o aspecto sobrenatural da encarnação que suas
consequências imediatas para a fé cristã. As referências, embora consonantes com a doutrina
cristã, não extraem da encarnação a radicalidade da própria vida humana assumida pelo Filho.
Tem-se até mesmo a impressão de que a encarnação hoje seria tão somente o tornar-se corpo
102
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Liderança em serviço na RCC. São Paulo: Loyola, s.d., p.
13.
103
Fraga comenta sobre os perigos de dominação por parte de lideranças carismáticas, de acordo com o conceito
de Weber, que se consideram em santidade ou em condição de exemplaridade e com ordenações tidas como
reveladas. Cf. FRAGA, Rogério. Dominação e ética em Max Weber. In: TESKE, Ottmar (coord.). Sociologia:
textos e contextos. Canoas: ULBRA, 2005, p. 128.
104
Cf. RENOVAÇÃO, Liderança, p. 21.
105
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Doutrina Social. São Paulo: Loyola, [19--], p. 17.
44
de Jesus106 enquanto grupo visível, organizado e preparado para o embate com quaisquer
opositores ou pensamentos distintos ao catolicismo. O “estabelecer morada” do Verbo passa a
ser justificativa para uma emblemática manifestação do Espírito Santo, decorrente do
“batismo no Espírito”. Daí que, a nosso ver, a encarnação só pode ser compreendida na RCC
se aproximada e articulada com o tema do poder.
A leitura carismática concentra sua atenção nos relatos evangélicos que traduzem
a experiência cristã de conhecimento do poderio e senhorio de Jesus. Enquanto Deus
Encarnado, ele se torna o mediador, o intermediário entre as duas esferas opostas: a de Deus e
a da humanidade. Ele é a realização dos tempos messiânicos, nos quais o poder de Deus foi
manifestado com esplendor em sua pessoa109.
106
Cf. RENOVAÇÃO, Identidade da RCC, p. 17.
107
Cf. ibid., p. 16.
108
Cf. ibid., p. 18.
109
Cf. RENOVAÇÃO, Carismas, p. 49.
110
Cf. ibid., p. 49.
45
plenitude espiritual, Jesus é quem batiza no Espírito a comunidade de fiéis. Inclusive, o
“batismo no Espírito” é também chamado de “batismo messiânico”111.
Opta-se por uma leitura dos milagres fundada no mágico, no excepcional; evita-se
uma hermenêutica dialogal com o texto, que permita verificar a incidência desses sinais
enquanto grandes retomadas das tradições de Israel e manifestação literária de uma
comunidade religiosa acerca da compreensão do Messias. A pregação sobre os sinais ganha
caráter de pregação sobre a parusia e reforça também entre os carismáticos a certeza de que a
humanidade está chegando ao seu limite de pecados. As catástrofes são sinais também da ira
divina, epidemias e pandemias são castigos e alertas para conversão, os milagres e curas entre
os carismáticos sinalizariam a proximidade da vinda do grande juiz da história, o Senhor
Jesus115.
111
Cf. RENOVAÇÃO, Identidade da RCC, p. 31.
112
Ibid., p. 39.
113
Cf. ABIB, Céus novos, p. 51.
114
Ibid., p. 51. [grifo do autor]
115
Cf. ibid., p. 53.99.114.
46
A RCC considera ainda que o maior de todos os sinais tem sido o derramamento
do Espírito Santo nas últimas décadas, graças ao movimento carismático116. “Se não
estivermos repletos do Espírito Santo quando vierem os momentos difíceis, vamos acabar
negando a Jesus, mesmo que hoje digamos que não vamos fazê-lo. Não podemos ter apenas
boa vontade! A provisão de Deus para nós é o Espírito Santo!”117.
Ao tratar do dom dos milagres, Pe. Jonas afirma que “o Senhor pode tudo no
campo das finanças, no campo da libertação de vícios, da libertação da prostituição, do
adultério”118. Essa expectativa de milagres funciona como paliativo diante dos problemas,
acalma o indivíduo que estava aflito com uma dada realidade e evoca a ideia de “vontade de
Deus”, de cuja hora e conteúdo nem sempre o cristão pode ter acesso. O plano da realidade
terrestre é totalmente definido e determinado pelo plano/vontade da realidade celeste, nem
sempre se contando com a ajuda do ser humano para a sua execução119, exceto pelo dom da
fé, compreendido como dom recebido no batismo e não necessariamente com uma dimensão
também da vontade pessoal120.
116
Cf. ABIB, Céus novos, p. 96.
117
Ibid., p. 102.
118
ABIB, Jonas. Aspirai aos dons espirituais. São Paulo: Loyola/Canção Nova, 1995, p. 99.
119
Bento XVI configura a vontade de Deus como unidade do querer e do pensar em coincidência com a vontade
de Deus. Desta maneira, a vontade de Deus já não é algo estranho, mas passa a ser a própria vontade do fiel. Cf.
BENTO XVI, Papa. Deus caritas est. São Paulo: Canção Nova, 2006, p. 27.
120
Cf. ABIB, Aspirai aos dons espirituais, p. 107.
121
Ibid., p. 134.
122
Cf. AQUINO, Porque sou católico, p. 25.
47
matéria, sobre a natureza, sobre a morte, sobre a doença, sobre os demônios, etc”123. Sobressai
o aspecto mágico da narrativa miraculosa e não o do despertar para adesão ao Cristo.
Esse Jesus com credenciais divinas carrega consigo a hipótese de um Deus que
desce até a humanidade, mas que com ela não se mistura. Isso se dá porque a humanidade está
marcada pelo pecado e o movimento de Jesus tem por finalidade libertá-la das trevas. O nexo
carismático fica pois articulado da seguinte forma: Jesus desce dos céus > prova que é Deus
(milagres) > imola-se na cruz > funda a Igreja Católica125. Sendo assim, toda e qualquer outra
denominação religiosa é qualificada como falsidade ou engano e a Igreja Católica é
apresentada como necessária para a salvação126.
123
Cf. AQUINO, Porque sou católico, p. 25.
124
Cf. ibid., p. 101.
125
Cf. ibid., p. 35.
126
Cf. ibid., p. 40-41.
127
Cf. ABIB, Caminho para a santidade, p. 32.
128
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 85.
48
autossuficiência é o caminho para ser útil a Deus129. Pertencer a Deus é servir, contudo tal
serviço é apenas compreendido como pregação ou missão proselitista. Há certo consenso de
que a RCC demonstra séria dificuldade em atuar em obras sociais, o que, talvez, se justifique
pela sua compreensão do mundo e do ser humano, ou seja, respectivamente, uma realidade
corrompida e uma alma imortal encarcerada num corpo perecível.
129
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 113-114.
130
Mariano destaca que o neopentecostalismo sustenta suas ações a partir da tríade cura, exorcismo e
prosperidade. O fato de dedicar-se a Deus ao modo de um investimento retorna para o fiel como melhorias em
sua condição de vida. Cf. MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.
São Paulo: Loyola, 1999, p. 100). – Matos aborda os riscos do apego ao subjetivismo e emocional enquanto
sedução para modismos como a teologia da prosperidade. Cf. MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da
teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 230. – Dias resume qual o impacto da teologia da
prosperidade no pentecostalismo: “A Teologia da Prosperidade produz uma ruptura radical com as relações que
os pentecostais mantinham com a sociedade. Se antes o dinheiro, o sucesso, a prosperidade material, o consumo
eram considerados elementos perigosos, dos quais o fiel deveria se afastar para não cair nas tentações mundanas,
com a Teologia da Prosperidade esta concepção é invertida e, de fontes de tentação e pecado, os elementos
apontados antes se convertem em provas da fé do indivíduo nos poderes de Deus, e o mundo passa a ser
considerado o lugar da fruição dos prazeres, da riqueza, do consumo e do lazer. A pobreza, esta sim, passa a
significar falta de fé” (DIAS, Camila C. N. A igreja como refúgio e a Bíblica como esconderijo: religião e
violência na prisão. São Paulo: Humanitas, 2008, p. 99). [grifo nosso]
131
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 141.
132
Cf. ABIB, Aspirai aos dons espirituais, p. 77-78.
49
Antigo Testamento133. Uma dessas alusões é ao Messias glorioso que entra em Jerusalém,
carregando os despojos dos inimigos.
133
Cf. ABIB, Caminho para a santidade, p. 42.
134
Ibid., p. 42.72.
135
Cf. ibid., p. 55-56.
136
Cf. ibid., p. 91. Há uma preocupação do movimento carismático em conter o crescimento das comunidades
evangélicas.
137
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 26.
138
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 97.
50
Escrituras, mas por outro lado, nega-se também a organização literária do texto ao pensá-lo
como relato factual reproduzido pelo evangelista.
139
A palavra deriva do verbo inglês “to empower” que significa: dar poder ou autoridade, obter mais controle
sobre a própria vida ou sobre uma situação em que vivem as pessoas, ativar as forças e as capacidades que a
pessoa já tem, mas que não foram desenvolvidas ainda. No campo teológico a expressão traduz a ideia de força
assumida. Uma tradução melhor seria “investidura”.
140
Cf. RENOVAÇÃO, Oração, p. 9. – Pe. Jonas afirma que tudo é possível pela oração, que por ela tudo pode
ser mudado, pois é daí que se origina o poder carismático. A oração nesse caso é a invocação do nome de Jesus,
pois: “rezar no nome de Jesus é ter a certeza de que ele está no nosso meio” (ABIB, Aspirai aos dons espirituais,
p. 68). – Faz parte dessa oração a verbalização das necessidades, precedida ou concluída com alguma oração
tradicional católica; quase sempre intermediada pela oração em línguas. Esse poder carismático estaria associado
a uma vida de santidade, ou seja, sob os moldes carismáticos, uma vida de cumprimento de preceitos religiosos e
da moral cristã.
141
Cf. RENOVAÇÃO, Carismas, p. 89.
142
Cf. RENOVAÇÃO, Liderança em serviço, p. 26.
143
Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA. Igreja. São Paulo: Loyola, [19--], p. 21. Id. Carismas,
p. 63.
144
ABIB, Céus novos, p. 41-48.
51
Jo 14,12, de que “aquele que crer em mim fará também as obras que eu faço; ele fará até
obras maiores, porque eu vou para o Pai”, Pe. Jonas afirma que: “É por isso que estamos
fazendo. Claro, não somos nós, é o Senhor! Mas o Senhor está fazendo por meio de nós.
Somos as mãos, os braços, a boca do Senhor. Somos os membros do corpo de Cristo”145.
145
ABIB, Céus novos, p. 61. – cf. Id., Aspirai aos dons espirituais, p. 95. Pe. Jonas fala dessa ação de cura pela
participação no corpo místico de Cristo.
146
RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 29.
147
Cf. CHALITA, G. Eu acredito em milagres: a história de Padre Jonas Abib. São Paulo: Canção Nova, 2006,
p. 14.
148
Cf. ABIB, Aspirai aos dons espirituais, p. 95. – Gopegui alertou para o fato de que a experiência com o
“divino” em movimentos carismáticos foi, para algumas pessoas, o passo inicial em direção a experiências
esotéricas. Cf. RUIZ DE GOPEGUI, J. A. A linguagem sobre o Espírito Santo na catequese. In: PALÁCIO,
Carlos (org.). Cristianismo e história. São Paulo: Loyola, 1982, p. 215.
149
ABIB, Aspirai aos dons espirituais, p. 119.
52
O ser humano, enquanto não convertido, é apenas um joguete nas mãos dos dois
gladiadores: Deus e o diabo. A realidade humana fica desprovida de qualquer outro sentido a
não ser o de espaço de decisão por Deus ou pelo diabo. O Jesus encarnado interessa apenas
por comprovar que é possível escolher e ser fiel ao projeto de Deus, desde que guiado pelo
Espírito. O mundo físico, da corporeidade, por exemplo, é desprezado, pois o que se considera
como determinante e definitivo no humano é sua alma imortal. Cria-se uma dicotomia entre
mundo espiritual e mundo real, entre alma e corpo. Exorta-se o cristão a sacrificar toda a sua
vida nesta terra como uma diligente preparação para se viver eternamente com Deus que é
amor150.
150
O dualismo corpo-alma subjacente a essas ideias é explicitado quando retoma a reflexão de Santo Afonso de
Ligório sobre o encontro da alma com Deus no paraíso. Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 81-82.
151
Cf. RENOVAÇÃO, Liderança em serviço, p. 25.
152
Prado Flores, líder carismático, comenta sobre o risco de uma liderança superespiritual. Cf. PRADO
FLORES. J. H. Formação de líderes: Renovação Carismática. São Paulo: Loyola, 1996, p. 57.
153
Cf. RENOVAÇÃO, Liderança em serviço, p. 25.
53
carregada de subjetividade e que o “revelador”, ao traduzir sua experiência, coloque nela
também seus preconceitos, ideais, angústias, histórias de seu passado. Essa “comunicação
direta” permite ao carismático descuidar-se de qualquer formação teológica acadêmica, pois
tem certa desconfiança de que o estudo da teologia conduziria a uma perda da fé.
Há que ressalvar que a RCC consegue com essa proposta de relação autônoma do
fiel com o Mestre dar um passo grandioso de afirmação da subjetividade católica, retomando
o dado emocional. Num país de formação católica em que a relação com Deus se dava de
forma bastante mecanicista e repetitiva, a prática carismática de um diálogo vivo com o
Mestre permite ao fiel expressar-se numa linguagem espontânea, emocional e pessoal. A
experiência funda-se numa relação de intimidade e rompe com formalismos e regras. As
palavras sagradas não são mais as ensinadas pela instituição, mas aquelas oriundas do
coração, expressão de confiança legítima e abandono do crente nas mãos de seu Mestre.
54
O múnus profético154 convoca o cristão a assumir o papel de testemunha de Jesus.
A pregação carismática, nos grupos e na abordagem pessoal, já seria a vivência do profetismo
de Jesus. Ser profeta, na compreensão carismática, oscila entre o ter acesso a revelações
prévias de acontecimentos através da oração e a capacidade de em todos os lugares,
independente dos públicos, assumir-se como convertido e converter a outros. O dom da
profecia estaria ainda mais ligado à íntima comunhão com Deus, de tal maneira que se
reproduz no fiel aquela comunicação da palavra divina a ser dirigida à assembleia155.
Considera-se o aspecto profético “no sentido de denunciar o pecado do mundo e suas
instituições e isto se realiza através da coerência entre fé e vida, bem como também em
atitudes concretas de opção, como no sentido de dom carismático, pelo qual o Senhor Deus
fala ao seu povo”156.
Insiste-se que Jesus não apresentou uma proposta concreta acerca do sistema de
produção e distribuição dos bens, mas que propõe uma reorganização da sociedade em torno
da ideia de partilha160. A RCC entende que Jesus não abordou diretamente a questão política,
154
A RCC compreende a profecia de maneira distinta da tradição profética bíblica. A possível revelação de Deus
não se dá em função de uma transformação da realidade, mas sim enquanto manifestação da presença do Espírito
e diz respeito mais às questões pessoais que sociais.
155
Cf. ABIB, Aspirai aos dons espirituais, p. 83-85.
156
RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 140.
157
Cf. Id., Igreja, p. 51.
158
Cf. Id., Identidade da RCC, p. 46.
159
Cf. Id., Grupos de oração, p. 14.
160
Cf. Id., Doutrina Social, p. 18.
55
nem organizou nenhum movimento relacionado com a tomada de poder161. Assim também, as
comunidades renovadas carismáticas:
Servem, a um só tempo, para que se renove e renasça hoje e aqui a Igreja santa e
eterna de Cristo, e para que se realize a promoção humana e cristã do Homem a
partir de uma evangelização, que supõe a ação poderosa do Espírito de Cristo. Com
o coração mudado pela realidade do Evangelho, o homem se torna capaz de mudar
também a realidade que o cerca. A justiça nasce da Fé. Uma evangelização que
estabeleça o Reino de Deus, que deve nascer primeiro no coração do homem 162.
Essa postura concilia a prática política conservadora cristã, de que o mundo
religioso não pode imiscuir-se no campo político, com a postura emergente do cristão que se
lança candidato e, no caso carismático, a própria candidatura política reveste-se de uma
mística de apostolado163. A política é vista como possibilidade de expansão da evangelização,
contudo, não pode ser confundida ou trabalhada pela religião164.
De pouco adianta dar comida, roupa e casa a um morto. A grande maioria dos
nossos irmãos está espiritualmente morta. Eles estão escravizados, amarrados,
feridos, semimortos. Para serem libertados, curados, ressuscitados, precisam do
poder de Deus, cujos instrumentos somos nós. Não existe outra maneira. É por isso
que precisamos usar todos os dons. Recebestes de graça, de graça dai. “Vai e faze o
mesmo”166.
161
Apenas nessa abordagem sobre o Reino de Deus é que os escritos da RCC fazem referência à questão política
da morte de Jesus. Cf. RENOVAÇÃO, Doutrina Social, p. 18.
162
RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 105-106. – Cf. PEDDE, Valdir. Carismáticos luteranos e
católicos: uma abordagem comparativa da performance dos rituais. Porto Alegre: UFRGS, 2000. Dissertação de
mestrado, p. 68.
163
O engajamento carismático na política parece retomar princípios da cristandade e há forte intenção de fazer
frente à crescente ascensão de políticos evangélicos. De acordo com Alessandra Rosa, a construção da
“civilização do amor” seria viabilizada pelo ministério “Fé e política”, que engendraria uma mobilização social
cuja base seria os grupos de oração universitários. Cf. ROSA, Alessandra Cristina. A Renovação Carismática
Católica no espaço laico: um estudo sobre o Grupo de Oração Universitário (GOU). Juiz de Fora: UFJF, 2007.
Dissertação de mestrado, p. 136.
164
Cf. FERNANDES, Sílvia R. A. Diferentes olhares, diferentes pertenças: Teologia da Libertação e MRCC.
REVER – Revista de Estudos da Religião. São Paulo, n. 3, 2001, p. 88.
165
ABIB, Aspirai aos dons espirituais, p. 49.
166
Ibid., p. 32
56
Na meditação intitulada “Somos cidadãos do céu”, Felipe Aquino critica a
Teologia da Libertação por incitar o cristão a pôr sua esperança em Cristo apenas nesta vida,
buscando apenas seguranças terrenas, esquecendo-se da condição cristã de cidadãos do céu.
Felipe Aquino alerta para o perigo de certo humanismo exagerado que chega a dispensar a
graça de Deus, como se essa não fosse imprescindível no sucesso das obras espirituais167. O
autor afirma que:
É por essa razão que a Teologia da Libertação, pelo menos como a ensinam seus
principais líderes, é totalmente subversiva e condenável, pois quer um Cristo apenas
terreno, libertador social (não redentor), descompromissado com aquele que disse:
„O meu reino não é deste mundo‟ (Jo 18,36a)168.
Insiste-se em que não adianta querer construir o céu aqui nesta terra169 e que
“aqueles que não crêem na eternidade jamais se conformarão com a precariedade desta vida
terrena, pois sempre sonharão com a construção do céu nesta terra”170. O discurso sobre a
transitoriedade das coisas terrenas se reafirma assim:
A razão profunda dessa realidade tão transitória é a lição cotidiana que Deus nos
quer dar de que esta vida é apenas uma passagem, um aperfeiçoamento, em busca de
uma vida duradoura, eterna, perene. Em cada flor que murcha e em cada homem que
falece, sinto Deus nos dizer: “Não se prendam a esta vida transitória. Preparem-se
para aquela que é eterna, quando tudo será duradouro, e nada precisará ser renovado
dia a dia”171.
Se, para a RCC, todo o poder dado a Jesus e manifestado na encarnação é para
unir a humanidade a Deus, tal se dará pela santificação, então, faz-se necessário agora
aproximar os dois assuntos já tratados (encarnação e poder) com o tema da santidade.
167
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 100.
168
Ibid., p. 81.
169
Cf. ibid., p. 21. Felipe Aquino compilou um opúsculo com a instrução Libertatis Nuntius e algumas críticas à
Teologia da Libertação: AQUINO, Felipe (org.). Teologia da Libertação. Lorena: Cléofas, 2002.
170
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 22. – Brakemeier, ao tratar das interpretações da Bíblia na América
Latina, recorda que, embora o Reino de Deus não se identifique com determinado projeto político, a esperança
desse reino compromete com o direito e a justiça social, inspirando novos profetas pela leitura bíblica.
BRAKEMEIER, A autoridade da Bíblia, p. 70.
171
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 21.
172
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 10.
57
pessoa de Jesus a perfeita realização dessa relação e o modelo a ser seguido. “Ser santo é
testemunhar a fidelidade à lei santa de Deus, levando às últimas consequências esta
fidelidade”173.
Jesus é apresentado como o único caminho e medida para a conduta moral e ética
da comunidade. O que se propõe ao cristão é o viver na força do Espírito Santo uma vida
sobrenatural176. Ao mesmo tempo em que se constata o problema social atual, demonstrando
certa acuidade em relação ao contemporâneo, a reação carismática parte para um retorno ao
passado e um apego à moral cristã tradicionalista como sinal de santidade. A ideia de vida
sobrenatural tende a menosprezar a vida humana na sua totalidade, que é multidimensional e
exige respostas no tempo e história presentes.
173
RENOVAÇÃO, Santidade, p. 55.
174
Cf. ibid., p. 54.
175
Cf. ibid., p. 55.
176
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 55-56.
177
Cf. RENOVAÇÃO, Liderança em serviço, p. 26.
178
Um exemplo de comunidade de vida é a Toca de Assis. Embora se afirme como fraternidade leiga
independente da RCC, seu fundador tem vínculos com esse movimento. Os seguidores do Pe. Roberto Lettieri
optam por uma vida de radical abnegação e consagração a Deus inspirada numa atualização da opção franciscana
pelos pobres. Portela aponta para o fato de que, paradoxalmente, a Toca de Assis concilia espontaneidade com
normatividade e estruturação institucional. Cf. PORTELLA, Em busca do dossel, p. 383.
179
Acerca da descrição dessas comunidades: DÁVILA, Brenda Carranza. Renovação Carismática Católica:
origens, mudanças e tendências. Aparecida: Santuário, 2000, p. 63.
58
Nesse espaço eles podem ajudar-se mutuamente, porém não terão como meta
nenhuma transformação da sociedade, mesmo nas realidades que lhes são mais imediatas
como vida familiar, trabalho, escola, bairro. Portanto, a RCC, em meio a sua crítica às
características da pós-modernidade, assume um dado pós-moderno que é o apego ao
individualismo. Por mais que num ou noutro discurso carismático se fale de cuidar ou salvar a
família, o que parece estar em jogo é a salvação estritamente pessoal180.
180
Libanio sugere que a RCC, apesar de propor uma relação comunitária, não cria vínculos entre as pessoas,
chegando até mesmo a espiritualizar o individualismo do sistema capitalista dominante. Cf. LIBANIO, A
religião, p. 34. – Gonzalez considera que a RCC concilia uma intensa vivência eclesial, típica do catolicismo
tradicional, com uma perspectiva individual, pois responde às angústias existenciais do fiel. Cf. GONZALEZ,
Keila Patrícia. A Renovação Carismática Católica: continuidade e rupturas no catolicismo brasileiro (1969-
2005). Assis: UNESP, 2006. Dissertação de mestrado, p. 145.
181
RENOVAÇÃO, Batismo no Espírito, p. 18.
182
Cf. id., Santidade, p. 55.
183
Cf. ibid., p. 70
184
Cf. id., Oração, p. 10.
59
orante, aos moldes de uma oração em que nem sempre a vida como um todo é matéria para a
vivência da fé e a experiência espiritual. A separação entre sagrado e profano é, para um
carismático, muito nítida e, por isso, afugentar-se das realidades mundanas é assegurar-se de
santidade.
A graça de Deus vem em auxílio da fraqueza humana para que surja então no
convertido uma nova vida moral185. Isso se dará por uma aplicação à “oração constante,
meditação, vida sacramental, a aceitação da vontade de Deus em tudo o que acontece, a
paciência, a reta intenção em fazer tudo para Deus e a persistência em prosseguir sempre, sem
nunca desanimar”186. Apresenta-se novamente uma linha de santidade que se configura por
aspectos religiosos pessoais, revalorização dos sacramentos e docilidade à vontade de Deus. A
linguagem utilizada parece pré-conciliar e fundada num medo diante do mundo.
5.2 Jesus, humilde e manso, servo sofredor: a santidade cristã adquirida pela dor
Ao Cristo orante segue-se o Jesus humilde e manso, servo sofredor. A humildade
de Jesus é recordada pela etimologia de “húmus”, aquilo que se acha na terra. Acena-se para a
realidade humana que deveria encontrar a motivação de sua humanidade no fato de ser
totalmente dependente do Criador189. A assertiva é correta, pois o que permite a Jesus salvar a
humanidade é justamente colocar-se na condição de humano, de pó, de carne, de dependente
185
Para Edênio Valle, a RCC propõe uma moral do indivíduo que tem visão conservadora acerca dos processos
sociais e da história. Cf. VALLE, Edênio. A Renovação Carismática Católica: algumas observações. Estudos
avançados. São Paulo, v. 18, n. 52, set-dez./2004, p. 102.
186
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 9.
187
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 56.
188
Cf. ibid., p. 57.
189
Cf. ibid., p. 10.
60
do Pai; porém, ao não compreender ou não aceitar que é na condição humana que isso se dá, a
RCC espiritualiza a ideia de humildade como um sentimento apenas estético, perceptível no
discurso, no vestuário, nos hábitos, mas distante daquela imagem bíblica.
Pe. Jonas, ao tratar da atualização do martírio cristão, parte do fato de que Jesus é
o primeiro mártir, pois ao proclamar-se Deus, Rei, Senhor, Messias, desencadeia o processo
de sua perseguição e morte. Morte que se justificará pela necessidade de salvar a
humanidade194. Dar testemunho desse Jesus é a tarefa do carismático que, no seu contexto,
experimentará também o martírio, afinal o sofrimento do cristão estaria a serviço da
purificação pessoal.
190
Cf. ABIB, Caminho para a santidade, p. 29-30.
191
Cf. ibid., p. 30.
192
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 14.
193
Ibid., p. 15.
194
Cf. ABIB, Caminho para a santidade, p. 9.
61
Somente assumindo o sofrimento, a humilhação e a dor, aquilo que Jesus sentiu
na cruz, é que o cristão poderá se salvar195. Esta visão parece se confirmar quando na
Ofensiva Nacional da RCC se afirma que:
“Tudo em Jesus está orientado para o momento supremo de sua morte, que
culmina na ressurreição”200. A RCC deixa explícito que o Cristo adorado no movimento é
justamente o do sofrimento e que, mesmo no sacramento da Eucaristia, o que se enfatiza é sua
presença redentora (crucificado)201. Contudo, a ressurreição, enquanto corolário da vida e
missão de Jesus, é interpretada como atitude poderosa do próprio Filho diante da morte e
motivo imediato para a alegria e otimismo dos membros da RCC.
195
Cf. ABIB, Caminho para a santidade, p. 11.
196
RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 101.
197
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 8.
198
Cf. ibid., p. 8-9.
199
Cf. RENOVAÇÃO, Santidade, p. 47.
200
Id., Liderança em serviço, p. 30.
201
Cf. Id., Oração, p. 13.
62
Aquilo que o Cristo viveu é aplicado imediatamente na vida do leigo carismático
e, assim, chega-se a afirmar que “[...] o sofrimento acelera o processo de redenção e
santificação do ser humano, pois a santidade é o objetivo máximo de Deus para a
humanidade, conduzindo-a à eterna felicidade. Todos os santos sofreram, seja uma dor física
ou moral”202. A experiência da ressurreição é apenas sentimentalismo, explosão emocional,
mas os olhares detêm-se fixos no futuro.
202
RENOVAÇÃO, Santidade, p. 47.
203
Id., Liderança em serviço, p. 34.
204
Cf. ABIB, Jonas. Sim, sim! Não, não!: reflexões de cura e libertação. 93. ed. São Paulo: Canção Nova, 2008,
p. 16-20. Esse livro de Pe. Jonas vendeu 400 mil exemplares, confome nota a essa edição.
63
revisão de vida, não só pessoal, mas também dos antepassados, com a finalidade de averiguar
se num ou noutro momento algum membro da família frequentou sessões espíritas ou de
religiões afro-descendentes.
A RCC propõe ajuda às pessoas que passam por dificuldades com dependência
química, porém a radicalidade com que apresentam essa necessária conversão chega a
extremos de rejeição à pessoa ou ameaças de sofrimento eterno a quem tem recaídas. O
discurso carismático aqui se assemelha ao neopentecostal, onde se prega a negação de toda a
vida passada, renúncia radical a todos os erros, e não sua integração à história pessoal.
205
ABIB, Céus novos, p. 48.
64
Essa radicalidade na conversão reveste-se de uma pedagogia divina, de uma ação
que vem para corrigir as falhas dos fiéis. “Deus nos ama „até ao ciúme‟, Ele não quer nos
perder para esses ídolos, para os quais somos arrastados pelas nossas más inclinações. Para
nos educar e quebrar em nós o impulso dessas más inclinações, Ele usa as provações da
vida”206. E ainda, “Deus nos ama e por isso nos educa através das provações da vida [...].
Assim Deus destrói em nós os ídolos que querem tomar o Seu lugar em nosso coração, que
lhe pertence”207.
6 Sistematização teológica
206
AQUINO, Em busca da perfeição, p. 119.
207
Ibid., p. 120. – Tampouco as questões sociais que afligem a vida de milhares, causa imediata de uma série de
doenças, são contempladas, pois no discurso da RCC, além da força do diabo, algumas enfermidades podem ser
permitidas pelo próprio Deus com o fim de santificar e purificar as pessoas. Cf. RENOVAÇÃO, Carismas, p. 50.
208
Cf. AQUINO, Em busca da perfeição, p. 143.
65
renovação sugerida pelo nome do movimento. Há uma assimilação imediata da pessoa de
Jesus por parte do fiel carismático. Desta forma, o que se pode inferir da cristologia esteve
quase sempre associado imediatamente à vivência cristã. Diante disso, propõe-se uma
sistematização que dê conta dessas duas vertentes.
A RCC oferece um acesso a esse Jesus por um caminho alegre, suave, entusiasta.
Também a imagem de Jesus sofrerá influências desse entusiasmo. O movimento justifica sua
alegria na ressurreição de Jesus, porém não a assume como chave hermenêutica para sua
cristologia. O sofrimento da paixão é mais coerente com as premissas da soteriologia da
satisfação. A ressurreição é traduzida pela compreensão de que Jesus está vivo no interior de
quem acolhe o Espírito Santo.
Somente poderia reparar o erro humano à honra divina alguém que fosse dotado
de forças especiais. Jesus é plenificado de poder para exercer sua missão. O combate ao reino
de Satanás só seria possível com o poder de Deus manifestado na pessoa de Jesus. Os
milagres por ele realizados testemunham a sua divindade e são exercidos como
credenciamento divino. Mas, acima de tudo, eles demonstram que Jesus goza da presença do
Espírito. Ele é o Deus encarnado e cheio do Espírito, distinguindo-se de todo e qualquer
humano por possuir dons extraordinários. Desta forma, Jesus é o primeiro “carismático”, no
sentido restrito da RCC, como aquele que experimenta os dons do Paráclito.
O poder de Jesus se revela também na sua capacidade de ensinar. Por ela Jesus
expõe ao mundo uma ciência, sabedoria, inspirada diretamente pelo Espírito, como que ditada
66
pelo Pai. Novamente, rompe-se com a liberdade de Jesus e tem-se nele um simples veículo de
comunicação. A ênfase na preexistência do Filho distingue-o como um Deus que se veste de
humano, mas que devido à sua condição divina, não poderia caber nos limites da humanidade
corrompida em sua raiz.
209
Cf. ABIB, Caminho para a santidade, p. 24. – Inclusive se vê alguns membros da hierarquia como incrédulos.
“Devemos viver pela fé e não apenas pelo raciocínio. Por isso o dom carismático da fé é tão precioso”. Id.,
Aspirai os dons espirituais, p. 39.
67
teologia expressa pela RCC é aquela oficial, embora, por vezes, retomando reflexões
tradicionalistas e evitando dialogar com novas tendências.
210
Cf. MASSARÃO, Leila Maria. Combatendo no Espírito: a Renovação Carismática na Igreja Católica (1969-
1998). Campinas: UNICAMP, 2002. Dissertação de mestrado, p. 87.
211
Cf. PRANDI, Um sopro do Espírito, p. 50-51.
68
notar no meio carismático uma autonomia na interpretação dos textos bíblicos, na expressão
orante pessoal e comunitária, na participação religiosa. Além, é claro, do forte resgate da
autoestima, feito por longas sessões de oração, cantos, louvor, pedidos de perdão. Vê-se a
assunção de uma nova pessoa, diferente do católico tradicional que era menos aplicado à
leitura bíblica e que se mantinha sempre submisso às orientações do “catecismo de primeira
comunhão”.
212
RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 25.
213
SILVA, Sélcio de Souza. Uma leitura interpretativa das “Orientações pastorais sobre a Renovação
Carismática Católica” à luz da teoria da Religião. Horizonte. Belo Horizonte, v. 6, n. 11, dez. 2007, p. 60.62.
214
RENOVAÇÃO, As comunidades de renovação, p. 99.
215
TEIXEIRA, Faustino. Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo. REVISTA USP, São Paulo, n. 67, p. 20,
set./nov. 2005.
69
Deus, vindo do coração do Pai, que entra na realidade terrena, mas que não deve com ela se
misturar. O Jesus carismático torna-se paradigma para o cristão que se isola no seu grupo
renovado como numa redoma protetora frente às inúmeras ameaças do mundo. Mais uma vez
o aspecto mágico se sobrepõe, já que o resguardar-se do mundo se dá pela acolhida do
Espírito com seus dons extraordinários. Dons esses que devem ser cultivados pelas práticas
dos carismáticos.
216
Cf. PRANDI, Um sopro do Espírito, p. 37.
217
Cf. DÁVILA, Brenda M. Carranza. Movimentos do catolicismo brasileiro: cultura, mídia, instituição.
Campinas: UNICAMP, 2005. Tese de doutorado, p. 332-338.
218
MARIZ, Cecília L. A Renovação Carismática Católica: uma igreja dentro da Igreja? Civitas – Revista de
Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 3, n. 1, jun/2003, p. 181.
219
Hébrard considera que essas comunidades de vida formam um novo estilo de ordem religiosa em moldes
laicais. Cf. HÉBRARD, Monique. Os carismáticos. Porto: Perpétuo Socorro, 1992, p. 40.
70
Apesar de sugerir uma liberdade a partir da posse do Espírito, a RCC exige de
seus membros o seguimento bastante rígido de várias regras que vão desde o modo de se
vestir, falar, até ao controle social, fazendo, na verdade, o fiel perder a sua liberdade de
expressão220. O carismático, apesar de todas as manifestações de louvor, é sempre uma pessoa
temerosa de sua salvação. Mas uma salvação que não passa pela prática da vida, mas sim por
um contínuo cuidado, escrupuloso, na vivência da piedade cristã. O carismático não é um
cristão a partir dos Evangelhos, mas sim um devoto do Deus apresentado por Jesus.
O carismático é aquele que sente em sua vida um poder especial por se fazer dócil
ao Espírito. O poder dado a Jesus tem por finalidade comunicar a salvação e o carismático
sente que os dons extraordinários que julga exercer são também uma extensão dessa salvação.
Poder que se expressa por carismas vividos no próprio grupo e para o benefício dos seus
membros. O poder não é um dom natural humano, mas sim um processo de empoderamento
220
Cf. OLIVEIRA, Luciane Cristina de. Corpos à procura do mundo sagrado: sujeição às normas da Renovação
Carismática Católica. Araraquara: UNESP, 2009. Tese de Doutorado, p. 45.
221
Cf. SILVA, Edvania Gomes da. Os (des)encontros da fé: análise interdiscursiva de dois movimentos da Igreja
Católica. Campinas: UNICAMP, 2006. Tese de doutorado, p. 217. – CORDES, Paul Josef. Reflexões sobre a
Renovação Carismática Católica. São Paulo: Loyola, 1999, p. 53.
71
que se instala quando a pessoa deixa-se guiar pelo Espírito. A RCC mantém, portanto, toda
sua confiança de que em Deus se encontra essa fonte de poder capaz de sustentar sua ação,
posto que reconhece também as suas fragilidades enquanto grupo humano.
Essa cidadania celeste é suficiente para que o carismático concentre seus esforços
numa salvação de cunho individualista, bastante consonante com a ideologia capitalista, onde
mais se investe para melhor receber retorno ou lucro. Com essa concentração no individual
não se almeja nenhuma mudança de ordem social, a não ser aquela de tornar o mundo mais
santo aos moldes carismáticos. Os problemas e flagelos sociais pedem do carismático apenas
oração e nunca ações efetivas. A providência divina é invocada sem que se valorize a
dimensão práxica da fé.
Acredita-se que com o exposto no “caso amostra” evidenciou-se também, seja por
semelhança ou distinção, a cristologia popular no pentecostalismo e neopentecostalismo. O
Cristo proposto pelas comunidades evangélicas também é compreendido como enviado em
missão de salvar, concretizando seu objetivo pela morte na cruz. O radicalismo pentecostal e
neopentecostal é assumido pelos fiéis como sinal de plena adesão à pessoa de Jesus. O apego
aos milagres, curas físicas ou psíquicas, a liberdade de expressão nas orações, o
espontaneísmo nos cantos e momentos de louvor demonstram que o Cristo anunciado é
aquele vivo e vivificado no fiel pela força do Espírito. A relação do fiel com Jesus é
caracterizada por uma radical conversão e configuração à comunidade pela prática da religião.
Os perigos de instrumentalização da pessoa de Jesus, enquanto representante poderoso de
Deus e único intermediário, apresentam-se quando se vislumbra no ambiente pentecostal a
222
SOFIATI, Flávio Munhoz. Elementos sócio-históricos da Renovação Carismática Católica. Estudos de
Religião, São Paulo, v. 23, n. 37, jul./dez. 2009, p. 221.
72
livre associação entre religião e prosperidade. Não há desejo de acolhida da vida de Jesus
como referência para a práxis cristã. A santidade de Jesus é aceita como apego individual à
salvação. Jesus é o Deus de poder que se manifesta agora na vida do crente.
7 Conclusão
O percurso realizado nesse capítulo nos situou diante das cristologias populares,
particularmente, a carismática, demonstrando a atualidade de um processo de evangelização
que retorne às Escrituras como fonte segura de fidelidade ao projeto proposto por Jesus.
Nenhuma das cristologias populares leva em consideração a concepção do essencial para
João. A RCC necessita de uma evangelização cristã, pois apresenta traços neopagãos223.
Como a compreensão cristológica revela imediata aplicação antropológica como
se percebe pela manifestação carismática, é urgente uma revisão da cristologia para se propor
um jeito de ser cristão. O pneumatocentrismo carismático instrumentaliza Jesus para que o
fiel seja portador de dons especiais. A vivência cristã carismática só se remete à pessoa de
Jesus por sua condição espiritual. O verdadeiro enviado, na concepção carismática, parece ser
o Espírito e não o Filho.
223
Cf. LIBANIO, Cenários, p. 65.
73
CAPÍTULO II
Ex 3,10
1
Cf. KONINGS, J. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 25.
74
Deseja-se determinar, mesmo que provisoriamente, a base sobre a qual João
constrói sua cristologia do envio, identificando suas ocorrências, retomadas de
personagens, episódios fundantes, características teológicas e novas implicações
hermenêuticas. A etapa inicial dessa revisão diz respeito ao verbo šlḥ (enviar). Depois,
aponta como esse verbo se torna designativo da ação de alguns personagens
veterotestamentários e como se associa a alguns atributos divinos que se personificam e
realizam missões no mundo.
2
Cf. AUSTEL, Hermann J. xlv (shālaḥ) I, enviar, mandar embora, deixar ir. In: DITAT, p. 1567.
75
determinar agora o novo espaço e as possíveis novas relações que o “enviado” poderá
experimentar.
Percebe-se no uso do verbo šlḥ como “soltar”, libertar, que há clara definição
acerca do papel daquele que tem essa autoridade, seja ele o próprio Deus ou um amo.
Inclusive explicita-se certa hierarquia ou confronto de forças, quando se menciona que
Deus será mais forte que o faraó e diante da obstinação deste enviará os sinais. Outro
elemento digno de nota é que as mensagens enviadas, no caso concreto dos sinais, têm
um objetivo que é despertar para a conversão e propor um retorno ao Senhor. Elas não
têm significado e sentido nelas mesmas, mas o recebem tão somente na medida em que se
conhece quem as enviou.
3
Cf. BARTELT, Andrew H. Gramática do hebraico bíblico: fundamentos. Canoas: ULBRA, 2006, p. 145.
4
Cf. DELCOR, M.; JENNI, Ernst. xlv šlḥ Enviar. In: DTMAT, p. 1148.
5
Cf. CLIFFORD, R. J. Proverbs. Lousville: Westminster John Konx Press, 1999, p. 76.
76
imagem, lembrando a semeadura, demonstra como a discórdia pode se instaurar no
interior de uma pessoa e contaminar a comunidade.
1.2 Enviar
O verbo šlḥ significando envio é usado muitas vezes para se referir a
mensagens, produtos ou presentes que são destinados a alguém (cf. Gn 38,20; Nm 22,5;
2Cr 16,2-3)8. Nas narrativas bíblicas, a menção a envio nesses casos não se reveste de um
sentido religioso, mas apenas cotidiano. São várias as referências a envios nos livros
históricos, por exemplo, mostrando a contínua comunicação entre reinos ou entre o
rei e seus súditos (cf. Js 2,3; Jz 11,12.17.19; 1Rs 5,1-2.8.14). O envio de pessoas com
determinadas tarefas de representação também é corriqueiro e, nesses casos, a missão
6
Cf. DELCOR; JENNI, xlv šlḥ Enviar, p. 1142.
7
Acerca da comparação da Torah com a água na tradição judaica: MIRANDA, E. E. de; MALCA, J. M. S.
Sábios fariseus: reparar uma injustiça. São Paulo: Loyola, 2001, p. 93. – REMAUD, Michel. Evangelho e
tradição rabínica. São Paulo: Loyola, 2007, p. 153, nota 8. – SCHMIDT, Francis. Pensamento do templo:
de Jerusalém a Qumran. São Paulo: Loyola, 1998, p. 51.
8
Delcor e Jenni mencionam que tal uso chega a 450 vezes no Antigo Testamento. Cf. DELCOR; JENNI,
xlv šlḥ Enviar, p. 1145.
77
realizada parte do pressuposto de que o enviado é um procurador de seu emissor, podendo
de forma legal, decidir em nome dele (cf. 2 Sm 19,11; 2Rs 6,32).
9
Cf. DELCOR; JENNI, xlv šlḥ Enviar, p. 1146.
78
Na tradição bíblica, Deus é aquele que envia e determina também o auditório
ao qual será comunicada, por gestos e palavras, a sua mensagem. Possivelmente o
esquema literário do Antigo Testamento, no que se refere à formulação dos relatos de
envio, recebeu influências de uma compreensão de envio típica dos países do Antigo
Oriente Médio, com características de uma embaixada móvel10. Bühner acredita que o
envio se relaciona tanto ao âmbito cotidiano como ao religioso, pois “o envio de
mensageiros e procuradores tinha um enorme significado na vida cotidiana, porque eles
representavam na antiguidade o principal meio de comunicação”11. Sendo assim, partindo
da realidade concreta das embaixadas, os narradores bíblicos elaboraram uma categoria
religiosa aplicável ao contexto veterotestamentário.
10
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L. A palavra inspirada: a Bíblia à luz da ciência da linguagem. São Paulo:
Loyola, 1992, p. 51.
11
BÜHNER, Der Gesandte, p. 273.
12
Cf. NÜTZEL, J. M. Vocação (NT). In: DBT, p. 448.
79
2.1 José do Egito, enviado para salvar
A história de José, construída e narrada sob o modelo da história de Israel em
que Deus é sempre o protagonista13, apresenta o verbo šlḥ na autocompreensão de José
como enviado divino.
Quando José se revela aos irmãos, faz uma revisão de sua história e afirma ser
ele mesmo um enviado de Deus ao Egito com a finalidade de salvar a vida de seu clã
hebreu (Gn 45,5.7). O nexo entre envio e missão se evidencia, permitindo, inclusive, que
fatos do passado sejam reinterpretados. José cumpriu a sua missão de cuidar dos irmãos.
Kidner comenta que a afirmação de José aponta para o governo providencial de Deus,
pois o enviado vê os dois aspectos do fato: a) foi vendido pelos irmãos; b) nisso se realiza
a plena vontade de Deus14. Podemos ainda completar essa reflexão, aproximando-nos do
motivo pelo qual José não acusa os seus irmãos, conforme diz Ibáñez Arana:
13
Cf. IBÁÑEZ ARANA, Andrés. Para compreender o livro do Gênesis. São Paulo: Paulinas, 2003, p.
470.471. O autor precede tal conclusão sobre a história de José no contexto da história de Israel, afirmando
que o reconhecimento de que a mão de Deus, ocultamente, como já em outros episódios da história dos
patriarcas, sobretudo de Jacó, tinha sabido escrever certo por linhas tortas, para preparar, com a semente dos
patriarcas, um grande povo na terra do Egito, é a essência de toda a história. Assim, segundo o autor, o fato
de Deus enviar os sonhos a José já faz parte de seu plano salvífico.
14
Cf. KIDNER, Derek. Gênesis: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 191-192. –
Também Felix Gradl concorda com essa interpretação e realça o controle divino por detrás dos
acontecimentos. Cf. GRADL, F.; STENDEBACH, F. J. Israel e seu Deus: guia de leitura para o Antigo
Testamento. São Paulo: Loyola, 2001, p. 17. – Perani recorda que a tradição judaica interpreta a história de
José pela perspectiva sapiencial, em que “Deus é capaz de trazer o bem do mal; e que tudo é para o bem de
quem ele ama e escolheu para cumprir seu plano de salvação” (PERANI, Mauro. Personaggi biblici
nell‟esegesi ebraica. Firenze: Giuntina, 2003, p. 74).
15
IBÁÑEZ ARANA, Para compreender, p. 567.
16
Cf. RAD, Gerhard von. A história de José do Egito. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 19-20. – Sobre a
justificativa de José de que não está no lugar de Deus para julgar seus irmãos, Rashi expõe: “„talvez‟ esteja
eu em Seu lugar? É uma simples interrogação. [Mesmo] Se eu quisesse prejudicá-los, acaso eu poderia?
Acaso não pensastes todos vós mal de mim e o Divino, Abençoado seja Ele, pensou por bem? E como eu
sozinho poderia prejudicá-los?”. E acerca da expressão “falou-lhes ao coração”, comenta Rashi: “palavras
80
cancelar da história a ação pecaminosa do homem; mas, no seu plano de salvação, ele
pode transformá-la numa „felix culpa‟ (eventualmente também para quem a praticou)”17.
No aspecto que nos interessa, acerca do envio, José aponta para o seu emissor,
pois sua missão, embora sem nenhum relato vocacional, é interpretada como oriunda do
próprio Deus, mostrando que o Senhor tem pleno domínio sobre o mundo humano e o
conduz com o auxílio de seus enviados. O Sl 105 também afirma que José foi enviado
por Deus (cf. Sl 105,17). Na condição de enviado, José não age com plena consciência
sobre a vontade de Deus, mas a história vivida por ele é compreendida como se fosse um
evento dentro do plano divino.
O envio, no caso de José, caracteriza-se por uma intensa ação divina e uma
inconsciente ação humana que é historicamente conduzida. O enviado não se sabe
enviado, não conhece sua missão, nem tem claro o status de sua relação com Deus
enquanto outorgante. O que permite ao enviado tomar ciência de sua história no
panorama da história de seu povo é a interpretação que faz dos acontecimentos. No
contexto de uma transcendência onipresente, Deus interfere na vida humana, mas não o
faz de modo participativo consciente. Não há escusas humanas diante de um
chamamento, pois não se dá tal processo.
que penetram no coração [como por exemplo]: „antes que vós descesseis para cá, estavam murmurando
sobre mim que eu era um escravo. Através de vós, soube-se que eu era [um homem] livre. E se eu fosse
matá-los, o que diriam as pessoas? Um grupo de jovens viu [José], e disse: „eles eram seus irmãos, mas no
fim matou-os! Há um irmão que mata seus [próprios] irmãos?‟ Outra explicação: dez velas não puderam
extinguir [apagar] uma [vela], etc. [como então um vela poderia extinguir dez?]” (BÍBLIA/ com
comentários de Rashi. Bereshit com Rashi traduzido. São Paulo: I. U. Trejger, 1993, p. 255).
17
RUPPERT, Lothar. O Eloísta, teólogo do povo de Deus. In: SCHREINER, J. Palavra e mensagem:
introdução teológica e crítica aos problemas do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 171.
18
Cf. RAVASI, G. Il libro della Genesi: 12-50. 2. ed. Roma: Città Nuova, 2001, p. 203.
81
José, ao final de sua vida, anuncia que seu povo retornará à terra prometida aos patriarcas
(cf. Gn 50,24). Isso vincula Gn a Ex e aproxima os enviados José e Moisés.
19
VOGELS, Walter. Moisés e suas múltiplas facetas: do Êxodo ao Deuteronômio. São Paulo: Paulinas,
2003, p. 32. – Ausubel cita o comentário do filósofo moderno judeu Achad Há-am: “Não me interessa se
esse homem, Moisés, tenha realmente existido; se a sua vida e sua atividade realmente correspondem à
nossa idéia tradicional a respeito dele; se foi realmente o salvador de Israel e deu a seu povo a Torah na
forma em que ela está preservada por nós até hoje... Pois mesmo que vocês, críticos bíblicos, consigam
demonstrar, de maneira conclusiva, que o homem Moisés nunca existiu, ou que ele não foi o homem que
nós supomos, não poderiam diminuir em nada a realidade histórica do Moisés ideal – o Moisés que foi o
nosso líder, não só durante quarenta anos no Deserto do Sinai, mas durante milhares de anos no deserto
total em que vagamos desde o Êxodo” (AUSUBEL, Nathan. Moisés. Conhecimento Judaico II. Rio de
Janeiro: Koogan, 1989, p. 569).
20
Cf. VOGELS, Moisés, p. 90. O relato, segundo Vogels, é organizado conforme a tipologia chamado,
objeção, confirmação, sinal.
21
Cf. COATS, George W. Exodus: 1-18. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1999, v. 2a, p. 14.
82
considerando sua onipotência e transcendência, mas resguardando o seu respeito à
liberdade humana e também sua intervenção pontual quando necessária. “Deus atua na
história, mas não se identifica totalmente com ela”22. É nesse contexto que se pode
compreender a vocação de Moisés: uma intervenção divina ou teofania que atribui ao
humano uma participação intensa na realização dos planos do Senhor.
22
SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p.148.
23
COLE, R. Alan. Êxodo: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 65.
24
Cf. SETERS, John van. The life of Moses: the Yahwist as Historian in Exodus-Numbers. Kampen: Kok
Pharos, 1994, p. 52.
25
Gottwald conclui sua análise sobre o nome divino em Ex 3,14 afirmando que: “Apesar de estudos
exaustivos, não há meio algum de descobrir exatamente o que significava o nome Iahweh para Moisés ou
para o círculo de tradição que deu seu nome à confederação tribal de Israel em Canaã. [...] A etimologia de
Ex 3,14 não é só uma racionalização do nome, mas também uma circunlocução, já que ela é
deliberadamente vaga e críptica, talvez insistindo, com isso, na reticência e mistério do Deus de Israel”
(GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulus, 1988, p. 208).
26
Cf. CHILDS, Brevard S. The book of Exodus. Lousville: Westminster John Knox, 2004, p. 77.
27
Cf. COATS, Moses, p. 58. A recordação do agir histórico de Deus tem a intenção de conectar o êxodo
com os patriarcas.
83
sua tarefa. O enviado não age em nome próprio, mas sabe-se no papel de emissário. Não
se trata de um Deus desconhecido, mas sim do interventor histórico.
28
COLE, R. Alan. Êxodo: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 66.
29
Cf. DOZEMAN, Thomas B. Exodus. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2009, p. 131-132.
30
“O relato dos sinais do Egito não faz parte de um manual de história, ele se encontra dentro de uma
história da salvação” (VOGELS, Moisés, p. 23).
31
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 286-287. Bühner cita o midrash sobre Ex 3,10 em que se lê: “Moisés
respondeu e falou: „Santo, louvado seja ele, Senhor do mundo, você fala comigo: desce ao Egito e leva os
filhos de Israel do Egito. Sou eu, então, um enviado ignorante? Duas missões através de um único homem,
meu Senhor, não é uma missão boa, mas manda dois filhos de homens juntos, porque dois são melhor que
um (Ecl 4,9), como está escrito: pelo testemunho de dois uma causa será estabelecida (Dt 19,15)‟”.
84
A exclusividade da relação de Moisés, diferente de Aarão, parece residir no
contato com a palavra do Senhor. Assim, também ganha sentido a objeção de Moisés
quanto à sua dificuldade para falar (cf. Ex 4,10), pois sua missão será, eminentemente, a
de transmitir a palavra recebida do Senhor. Moisés é o enviado que se transforma em
boca de Deus (Ex 4,15), pois comunica seus desejos. Ao mesmo tempo, Aarão será a
boca de Moisés que, por sua vez, exercerá a função similar à que Deus exerceu em
relação a ele32.
32
Cf. VOGELS, Moisés, p. 108. – Gerstenberger aproxima a aplicação do nome “deus” a seres humanos
como ação que assinalará no Antigo Testamento a glorificação de um governante terreno como
representante plenipotenciário de Deus (cf. Sl 45,7). Cf. GERSTENBERGER, Erhard. Teologias do Antigo
Testamento: pluralidade e sincretismo da fé em Deus no Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2007,
p. 222.
33
Cf. STUART, Douglas K. Exodus. Nashville: Broadman & Holman, 2006, p. 138.
85
equívocos. Diante do faraó, poder institucional dominante, Moisés tem apenas a garantia
da palavra do Senhor e pode se valer dos sinais com que foi credenciado. Contudo, tais
sinais não despertam, a princípio, a compaixão do faraó. Há uma crise de autoridade
quando Moisés pede, em nome do Senhor, que se deixe o povo sair para prestar culto ao
seu Deus. São divindades em confronto: o Deus dos hebreus, representado por Moisés, e
o deus egípcio.
34
Cf. SILVA, Cássio M. Dias da. Aquele que manda a chuva sobre a face da terra. São Paulo: Loyola,
2006, p. 170.
35
BÜHNER, Der Gesandte, p. 279.
36
Cf. MARTIN-ACHARD, Robert. Moïse, figure du médiateur selon l‟Ancien Testament. In: MARTIN-
ACHARD, Robert et al. La figure de Moïse. Paris: Labor et Fides, 1978, p. 14. – Inspirado em Rad,
Schmidt recorda que Moisés desempenha diversas funções que se alternam ao longo das narrativas. Assim,
o Javista o apresenta como um pastor inspirado por Deus que anuncia a salvação; o Eloísta teria uma visão
mais elaborada teologicamente sobre Moisés, chegando a considerá-lo como salvador; o Deuteronomista o
propõe como um porta-voz de Deus; o Sacerdotal o tem associado à revelação do Sinai e como
regulamentador dos preceitos cultuais. Cf. SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São
Leopoldo: Sinodal, 2004, p.114. – Gunneweg assinala que as funções e cargos referidos a Moisés
ocorreram em estágios posteriores aos relatos. Cf. GUNNEWEG, A. H. J. Teologia bíblica do Antigo
Testamento: uma história da religião de Israel na perspectiva bíblico-teológica. São Paulo:
Teológica/Loyola, 2005, p. 90.
86
apresentar a Deus aquilo que essa nação em constituição escolhe, deseja ou pede. É um
ser humano na condição de participante da esfera divina, pois tem consigo a certeza de
que o Senhor o ouvirá. Por outro lado, o povo ouve na voz de Moisés a voz de Deus37.
37
Cf. GOLDINGAY, John. Old Testament Theology: Israel‟s Gospel. Downers Grove: IVP Academic,
2003, p. 434.
38
Cf. COATS, Moses, p. 66.
39
BÜHNER, Der Gesandte, p. 278.
40
Cf. GALBIATI, Enrico. La fede nei personaggi della Bibbia. Milano: Jaca Book, 2000, p. 55. Para
Galbiati só é possível compreender a fé manifestada por Moisés na sua relação com a glória de Deus.
87
se confunde com um êxito do enviado. Moisés guiará o povo, mas não entrará na terra
prometida, pois pecou contra o Senhor (cf. Nm 20,12.24; Dt 32,51; 34,4-5)41.
41
Acerca da interpretação do pecado de Moisés: KOK, Johnson Lim T. The sin of Moses and the staff of
God: a narrative aproach. Assen: Van Gorcum, 1997.
42
Cf. DELOCHE, Pascale. Moïse face à Pharaon, Moïse face à son peuple: le théme de l‟endurcissement.
Lumière&vie. v. 49, n. 237, Avr. 1998, p. 23.
43
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 290.
88
Moisés pode, inclusive, intervir junto a Deus para que os prodígios sejam
extintos. Assim, será Moisés quem suplicará ao Senhor para que cessem as rãs (cf. Ex
8,8s), os mosquitos (cf. Ex 8,26s), o granizo (cf. Ex 9,33s), os gafanhotos (cf. Ex 10,18s).
Nessas situações aparece o faraó, que pede a intervenção de Moisés, mas talvez o mais
surpreendente seja o fato de que o autor insiste em afirmar que Deus agiu de acordo com
a palavra de Moisés. O emissor parece não querer contradizer uma solicitação do enviado.
A reciprocidade de respeito entre ambos assegura a confiança e fidelidade. A palavra de
Moisés e do seu emissor ficam unidas inseparavelmente44.
2.2.3.2 A palavra
O poder de Deus em Moisés não se dá primordialmente pelos sinais. A
narrativa bíblica evidencia que a missão de Moisés diz respeito à palavra eficaz, prenhe
de poder. Não se trata de uma elaboração humana, mas sim daquela palavra eterna,
nascida da boca de Deus e ouvida pelo ser humano. A palavra de Deus – que possui uma
força criacional, como se pode ler no livro do Gênesis – é confiada a Moisés que,
doravante, se torna um portador da palavra divina45. A palavra é, a um só tempo, forte
(pois foi proferida pelo Senhor) e fraca (pois foi confiada, interpretada e comunicada por
um humano que nem sempre terá assegurada a anuência do seu auditório).
44
Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Kampen: Kok Publishing House, 1996, v. 2, p. 34.
45
Rashi interpreta a expressão “que conhecia o Eterno face a face” (Dt 34,10), mostrando a ênfase dada à
missão de porta-voz de Deus: “Que o seu coração era familiar a ele, e ele conversava com Ele o tempo que
desejava, como o assunto no qual está dito (Êxodo 32,30): „e agora eu subirei ao Eterno, fiquem aqui e eu
escutarei o que ordenará a vocês‟ (Números 9,8)” (BÍBLIA/ com comentários de Rashi. Devarim com Rashi
traduzido. São Paulo: I. U. Trejger, 1993, p. 178-179).
46
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 294-296.
47
CF. MIRGUET, Françoise. La représentation du divin dans les récits du Pentateuque: médiations
syntaxiques et narratives. Danvers: Brill, 2009, p. 417.
89
precisão. Nesse contexto é digna de nota a repetição da expressão “Disse o
Senhor a Moisés” (cf. Ex 30,11.17.22.34; 31,1.12;32,7.9). A expressão “como o Senhor
ordenara a Moisés” aparece sete vezes num só capítulo (cf. Ex 40,19.21.23.25.27.29.32).
Elas demonstram o quanto Moisés vive intensamente em comunicação com o Senhor, e
como reproduz com fidelidade o que lhe é solicitado. Não há dúvida de que tal argumento
foi muito útil para determinar a legalidade do culto de Israel, retroprojetando alguns
costumes à época mosaica e associando-os a um mandato divino48.
48
Cf. GERSTENBERGER, Teologias, p. 255. Para o autor, na comunidade exílica foram os líderes do culto
que assumiram o papel de Moisés, enquanto porta-voz de Deus. Assim, possivelmente, a imagem de Moisés
foi idealizada à própria imagem deles.
49
De acordo com Polzin, seria inútil tentar distinguir o que Moisés teria recebido de Deus daquilo que ele
legisla junto do povo, pois o que conta na narrativa é a sua condição de porta-voz autorizado de Deus. Cf.
POLZIN, Robert. Deuteronômio. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. São
Paulo: UNESP, 1997, p. 109.
50
Cf. WIDMER, Michael. Moses, God, and the dynamics of intercessory prayer. Tubingen: Mohr Siebeck,
2004, p. 74. Moisés se distingue dos outros profetas por relacionar-se com Deus face a face.
51
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 298.
52
Cf. SPREAFICO. A. El libro de Êxodo. Barcelona: Herder, 1995, p. 61. O autor comenta que “Deus não
se comporta como um mago. Atua através dos homens. Na missão que encarrega a Moisés, a palavra tem
90
tendo em vista a execução plena da mensagem (libertação do povo) que será interpretada
como realização do próprio Deus.
uma importância determinante: Moisés não só deve atuar, deve falar aos anciãos de Israel e ao faraó. A
palavra é o dom mais precioso confiado aos homens”.
53
Cf. BOILY, Roger; MARCONI, Gilberto. Vedere e credere: le relazioni dell‟uomo con Dio nel Quarto
Vangelo. Milano: Paoline, 1999, p. 20. – Cf. COURTH, Franz. Il mistero del Dio Trinità. Milano: Jaca
Book, 1993, p. 107-108.
54
Cf. SERRETTI, Massimo. Il discernimento di Dio. Roma: Città Nuova, 2003, p. 43. – Para Fornara, a
possibilidade de se ver a Deus se concretiza no Sinai e no templo, contudo será sempre um ver ambivalente,
marcado pela visibilidade e invisibilidade de Deus. Cf. FORNARA, Roberto. La visione contraddetta: la
dialettica fra visibilità e non-visibilità divina nella Bibbia ebraica. Roma: PIB, 2004, p. 400.
55
SPREAFICO, El Libro de Êxodo, p. 192.
56
Cf. COLE, Êxodo, p. 218.
57
Cf. DOZEMAN, Exodus, p. 95.
91
através da palavra58. Acerca dessa intimidade com Deus, note-se que a tradição judaica
compreendeu que Moisés fez uma experiência extraordinária na teofania da sarça,
considerada uma elevação ou êxtase59.
Esse [Deus] é igual a um sacerdote que tinha um pomar de figos, mas havia ali
um lugar para túmulos. Quando ele queria comer figos dizia a seus servos: “Vá
e fale ao administrador do pomar: „o dono do pomar manda dizer a você que
leve dois figos para ele‟”. Então, ele foi e disse isso ao outro. Mas o
administrador respondeu: “Quem é esse proprietário do pomar? Vá trabalhar!”.
Aí o sacerdote disse para o servo: “Eu mesmo irei, você foi num lugar impuro e
se tivesse cem coisas impuras lá, eu iria lá para não envergonhar o meu
mensageiro”61.
A parábola é aplicada a Deus que se dispõe a ir onde o seu enviado foi
mandado, assegurando-lhe a sua credibilidade:
58
Cf. FORNARA, La visione contraddetta, p. 418.
59
“O midrash Gedulat Mošeh amplia o relato da sarça ardente, baseando-se além do texto bíblico numa
sugestão de Exodus Rabbah 3,1. [...] Assim trata da ascensão de Moisés ao céu. Essa viagem é
acompanhada de cantos e músicas e o corpo de Moisés é transfigurado como em fogo. No primeiro céu,
Moisés vê que a estrutura é constituída de várias janelas e anjos postados junto a elas. No segundo céu, ele
vê os anjos encarregados das chuvas e ventos. No terceiro céu, o anjo intérprete Metraton mostra-lhe
maravilhosos seres angélicos. No quarto céu, ele vê um templo apoiado em colunas de fogo. No quinto céu,
são mostrados os seres angélicos chamados de Išim. No sexto céu, ele viu miríades de anjos que oram a
Deus e, finalmente, no sétimo céu vê anjos de estatura enorme, criados no começo do mundo, os serafins e
os animais sagrados que apóiam o templo” (PERANI, Personaggi biblici, p. 83).
60
Müller destaca que o significado de santo comporta uma presença do numinoso e decorre disso o fato de
sua separação em relação aos outros como sinal de proteção tanto do santificado quanto dos que com ele
irão se relacionar. Cf. MÜLLER, H.-P. vdq qdš Santo. In: DTMAT, p. 741.
61
BÜHNER, Der Gesandte, p. 292.
92
o eterno a quem eu deveria obedecer a sua voz? Eu não conheço o eterno, volte
para o seu trabalho”. Aí disse Deus: “Agora eu mesmo vou para o Egito, como
está escrito: sentença sobre o Egito (O Senhor vem numa nuvem sobre o Egito,
Is 19,1)”. Os anjos responderam-lhe: “Quer ir ao Egito, um lugar impuro?”. Ele
lhes respondeu: “Eu irei lá para que meu emissário Moisés não seja
envergonhado”62.
Moisés foi humilhado em sua missão porque o faraó não acolheu, em sua voz,
a vontade divina. No entanto, Deus age sobre o Egito para mostrar que Moisés deve ser
respeitado. O tema da glorificação do enviado se insere aqui, pois Deus é glorificado no
seu emissário. Deus protege o seu enviado e isso demonstra também que o plano de Deus
será executado63.
62
Ibid., p. 292.
63
Cf. GIMÉNEZ-RICO, Enrique Sanz. Cercanía del Dios distante: imagen de Dios en el libro del Éxodo.
Madrid: Universidad Pontifica Comillas, 2002, p. 96.
64
Cf. BÜHNER, J-A. Der Gesandte, p. 293.
65
Cf. BÜHNER, J-A. Der Gesandte, p. 298.
93
morte de Moisés encerra sua missão na terra, mas o coloca numa condição especial junto
de Deus:
Neste momento Moisés bradou fortemente a Deus. Ele disse: Senhor dos dois
Mundos, se Tu tomas minha alma neste mundo, devolver-me-la-ás no Futuro?
E Deus respondeu: Pela tua vida! Assim como foste o guia de todos eles neste
mundo, assim o serás no Futuro, como está dito, Ele marchou adiante do seu
povo (Deut. 33:21). E por quê? Pelo justo que foi com Israel, como está dito,
Ele executou a justiça do Senhor e os Seus julgamentos para com Israel (Deut.
33:21). O Rabi Nehemias explicou: O que ele fez? Ensinou-lhes a Torah, as leis
e a justiça66.
A glória de Deus acompanha o emissário e perpassa todos os lugares aonde
ele for. Além disso, as esferas celeste e terrestre se tocam numa profunda relação. A
dimensão temporal também é vislumbrada, pois eterno e passageiro se encontram no
enviado. Percebe-se também que uma dimensão relacional se explicita, permitindo
entrever na pessoa do enviado a presença e a pessoa do próprio outorgante.
De forma resumida, Moisés é o enviado de Deus que tem uma missão divina a
ser realizada no âmbito terreno. Para tal é convocado e vocacionado, participando da
glória divina pelo acesso ilimitado ao próprio Deus e por ser uma arca viva onde se
transporta a palavra de Deus.
66
MANDELBAUM, Benjamin. Quatro mortes segundo o midrash. <www.cjb.org.br/bina/cabala/
benjamin/Textos%20Gerais/Quatro%20mortes%20segundo%20o%20Midrash.pdf.> Acesso 18 agosto
2010. [grifo do autor]. – Rashi comenta que Dt 34,7 ao mencionar que Moisés, mesmo morto, não teve
enfraquecido seu olho e não desapareceu o seu vigor, quer dizer que “a umidade dele, não teve domínio do
processo de apodrecimento do corpo, e não mudou a aparência da face dele” (BÍBLIA/ com comentários de
Rashi. Devarim com Rashi traduzido. São Paulo: Trejger, 1993, p. 178). Percebe-se na interpretação de
Rashi uma brecha para a compreensão da imortalidade de Moisés.
67
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 307. Bühner vê na anábase e na catábase um aspecto apocalíptico de
comunicação entre os mundos terrestre e celeste, determinado pela transformação do enviado (ser terrestre)
através de uma experiência pneumática (condição celeste).
94
Apesar de a tradição bíblica apresentar Deus como onisciente, em Ex 19 ele
necessita ouvir de Moisés a decisão do povo. A compreensão do enviado o exige, pois
ela concebe que o escolhido de Deus é o intermediário que deve a ele retornar com a
decisão. A decisão do povo de tudo fazer conforme o desejo do Senhor confirma a
aliança, despertando a promessa de Deus de falar a Moisés junto do povo numa nuvem
espessa (cf. Ex 19,9). O objetivo de Deus é evidente, pois deseja confirmar que Moisés é
o seu enviado. Diz o v. 9 que Deus falará para que o povo ouça e creia nele e em Moisés.
A voz do enviado torna-se preferível pelo povo, pois se teme a morte diante
da força da voz de Deus (cf. Ex 20,19). O temor bíblico é também manifestação de
encontro com o sagrado. Moisés é tido como um canal por onde a mensagem pode ser
comunicada sem riscos para o povo. Mas isso exige do povo um santo respeito para com
Moisés, pois é ele o enviado capaz de ouvir o Senhor e permanecer vivo.
A tarefa do enviado não se conclui até que ele faça o movimento de retorno,
em que comunica o resultado de sua missão; assim, o mensageiro, obrigatoriamente, tem
68
BÍBLIA com comentários de Rashi. Shemot com Rashi traduzido. São Paulo: I. U. Trejger, 1993, p. 100.
95
de voltar àquele que o enviou. A cada encontro uma nova mensagem, uma nova tarefa,
uma nova expectativa, um novo relatório. O serviço de Moisés se assemelharia ao dos
anjos (ml‟km), permitindo que Philo, inclusive, interpretasse que a morte do enviado foi
sua última subida, conferindo-lhe então um aspecto escatológico69.
69
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 312. A tradição bíblica conhece também o arrebatamento de Henoc e
Elias, fornecendo a Philo material para sua compreensão de Moisés. Anterior a isso convém recordar que
Philo interpretou a subida de Moisés ao Sinai como elevação extática, no decorrer dela Moisés soltou-se de
suas limitações terrenas e tornou-se celeste: seu corpo entrou no fogo em que Deus mora, e se tornou ele
mesmo como luz divina. Na subida Moisés nasceu de novo. Ele deixou suas características terrenas e foi
transformado no divino. Moisés adapta-se ao mundo celeste para possuir o conhecimento esotérico. Cf.
ibid., p. 359-360.
96
2.3 O profeta anônimo e Guideon no livro dos Juízes
Em Jz 6,8, o narrador informa que um profeta foi enviado aos filhos de Israel
por causa da opressão imposta pelos madianitas. Diante da infidelidade de Israel, as
palavras do profeta anônimo recordam a fidelidade do Senhor e sua intervenção histórica
(libertação do Egito e posse de Canaã) (cf. Jz 6,8-10). Evoca-se assim a tradição mosaica
e confirma-se que o mesmo Deus que atuou no passado está agora ao lado de seu povo70 e
espera dele obediência como única resposta possível. Contudo, o povo se inclina a seguir
o culto da religião local, a adoração a Baal, em vez de servir ao Senhor71. Essa
indignidade de Israel contrasta com o cuidado e fidelidade do Senhor, que se revela no ato
de enviar profetas para orientar seus filhos.
70
Álvares Barredo vê uma conexão entre os versículos 7 e 8 do capítulo 6 pela forma verbal yhyw (v. 7) que
se liga com xlv (v. 8). Segundo o autor isso mostra a relação entre a súplica dos israelitas e a resposta
de Deus. Cf. ÁLVARES BARREDO, Miguel. La iniciativa de Dios: estúdio literário y teológico de Jueces
1-8. Murcia: Espigas, 2000, p. 186.
71
Cf. HERTZBERG, Hans Wilhelm. Giosuè, Giudici, Rut. Brescia: Paideia, 2001, p. 296.
72
Cf. SOGGIN, J. Alberto. Judges. Philadelphia: Bowden, 1981, p. 119.
73
Cf. HERTZBERG, Giosuè, p. 301.
74
Cf. SAVRAN, George W. Encountering the Divine: theophany in Biblical Narrative. New York: Clark
International, 2005, p. 78. – Os encontros envolvendo anjos, quase sempre, são ambíguos devido à
dificuldade de identificação se realmente se tratam de anjos ou de uma manifestação do próprio Deus. A
97
os personagens só descobrem a identidade divina do visitante ao final da aparição (cf. Gn
18,1-15; 32,23-33; Js 5,13-15).
expressão “anjo do Senhor” frequentemente é descrição da presença do Senhor. Cf. GUILEY, Rosemary.
Gideon. In: GUILEY, Rosemary. The encyclopedia of angels. New York: Sisionary Living, 2004, p. 141.
75
BÜHNER, Der Gesandte, p. 344.
98
(2Rs 2,12), compreende que foi agraciado com os poderes proféticos que antes havia
pedido (2Rs 2,10)”76. O mesmo espírito do Senhor que conduziu Elias acompanha Eliseu.
76
MENCHÉN CARRASCO, Joaquín. Libros de los Reyes: texto y comentario. Salamanca: Sigueme,
1991, p. 160.
77
Cf. CROCETTI, Giuseppe. 1-2 Samuel; 1-2 Reis. São Paulo: Paulus, 1994, p. 144.
78
BUIS, Pierre. O livro dos reis. São Paulo: Paulus, 1997, p. 67.
79
Sweeney apresenta a proposição de Habel sobre os seis elementos que confirmam o relato de Is 6 como
vocacional: a confrontação divina; a palavra introdutória; o comissionamento; a objeção; a garantia da
missão. O sexto elemento seria um sinal que confirma o profeta, no caso de Isaías, o sinal de Emanuel (cf.
Is 7,10-25). Cf. SWEENEY, Marvin Alan. Isaiah 1-39: with an introduction to prophetic literature. Grand
Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1996, p. 134. – Cf. HABEL, N. “The form and significance of the call
narratives”. ZAW 77, 1975, p. 297-323.
80
Cf. BRETÓN, Santiago. Vocación y misión: formulário profético. Roma: PIB, 1987, p. 107.
81
Cf. KAISER, Otto. Isaia: Capitoli 1-12. Brescia: Paideia, 1998, p.170.
82
Cf. MOBERLY, R. W. L. „Holy, Holy, Holy‟: Isaiah‟s vision of God. In: BARTON, Stephen C.
Holiness: past and present. New York: T&T Clark, 2003, p. 125. A linguagem utilizada para descrever o
espaço sagrado em que Deus se manifesta foi influenciada pela linguagem de corte real. A menção a morte
de Uzias (Is 6,1) e a apresentação da visão do trono revelam uma teologia que propõe Deus como o único,
verdadeiro e santo rei de um povo que necessita se converter.
99
percebida essencialmente no plano histórico quando de sua relação com Israel” 83. É esse
contato com o sagrado que qualificará Isaías para a sua tarefa. É como se ele fosse
transportado a um espaço distinto do humano e lá recebesse a sua incumbência. As
esferas espaciais são unidas no templo como lugar onde o Senhor se manifesta
diretamente. Por uma experiência mística cria-se uma ponte entre eternidade e
temporalidade84.
O homem Isaías é purificado para exercer sua missão. Isso denota o quanto o
enviado necessita estar na intimidade com o seu emissor. Os lábios purificados serão o
instrumento divino de comunicação e é como se a boca do profeta se transformasse, após
a purificação com a brasa do altar, na própria boca de Deus. Assim, ao final de uma
profecia, Isaías pode dizer “oráculo do Senhor!”. O que o profeta anuncia deve ser aceito
como oriundo de outro que o enviou, o próprio Deus. O Senhor estabelece com o profeta
uma relação de proximidade, tornando-o partícipe de sua santidade e de sua força. A
experiência desse encontro com o Santo é fundante para o ministério de Isaías, pois o ato
de purificação o torna também idôneo para a missão85. E, de alguma forma, é a
possibilidade de unificação entre o desejo do Senhor e a percepção crítica do profeta em
relação à sociedade de sua época.
83
MONTAGNINI, Felice. Il Libro di Isaia: parte prima (capp. 1-39). 2. ed. Brescia: Paideia, 1982, p. 235.
84
Cf. ibid., p. 231.
85
Ibid., p. 237.
100
A sua autoridade deve ser reconhecida porque nele se faz presente o Deus fiel
e seus interesses, ou seja, assegura a libertação de seu povo como o fizera em outros
momentos da história. O poder do profeta é aquele oriundo desse Espírito e destinado
para a proclamação da libertação que será concedida por Ciro86. Se cada pessoa vive
somente em função do fato de ter em si uma centelha do Espírito divino, o profeta é o
capacitado para instruir e agir guiado pelo Espírito de Deus, no sentido de que mais
amplamente ele goza de uma convivência íntima com esse Espírito e dele recebe as suas
inspirações.
86
Cf. HANSON, Paul D. Isaiah 40–66. Louisville: John Knox Press, 1995, p. 124.
87
ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas (I): Isaías, Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1988, p.
437.
101
Senhor”88. Artur Weiser recorre ao ato de obediência para explicar que a angústia inicial
do vocacionado só pode ser superada com a ordem divina que assegura sua predestinação
à missão89. Na vocação de Jeremias já sobressai aquilo que irá acontecer ao reino,
portanto no seu envio se descreve, relaciona, antecipa a destruição e a restauração da
nação90.
Jeremias é o intrépido enviado91 que falará em nome de Deus diante dos mais
diversos auditórios, sem nunca temer; por isso, de maneira similar a Isaías, tem seus
lábios tocados (cf. Jr 1,9). Abrego de Lacy vê no gesto a transformação dos pensamentos
humanos em mensagem divina, constituindo o porta-voz; afinal a tarefa profética depende
de Deus que põe a palavra, define o auditório e concede a força necessária92.
88
BERG, Meint van den. Jeremías: una introducción a sus profecias. Barcelona: FELiRe, 2000, p. 21.
89
Cf. WEISER, Artur. Geremia: Capitoli 1-25,14. Brescia: Paideia, 1987, p. 76-77.
90
Cf. BRUEGGEMANN, Walter. The theology of the book of Jeremiah. New York: Cambridge University
Press, 2007, p. 61.
91
Cf. ibid., p. 26. Brueggemann demonstra como a relação do enviado com a mensagem determina o
profeta não como o sujeito, mas sim como o objeto primordial dos verbos usados por Deus no relato da
vocação de Jeremias.
92
Cf. ABREGO DE LACY, José María. Jeremias: texto y comentário. Salamanca: Sigueme, 1993, p. 37.
93
Cf. WEISER, Geremia, p. 77.
102
Moisés e de Samuel94. A narrativa de Jeremias ganha contornos que o levarão a ser o anti-
Moisés que conduzirá o povo ao Egito (cf. Jr 42–44).
No v. 5 se diz que Jeremias foi constituído profeta das nações, mas será no v.
10 que isso se explicitará, evidenciando que sua tarefa é a de julgar e restaurar as
nações95. O enviado é confirmado na sua missão e os verbos apresentados sugerem a
força da ação do Senhor através de seu escolhido. Desta maneira, a ação de Deus
determina a identidade do enviado, tornando-o seu instrumento fortificado (v.18). Fischer
explica que “„te constituí‟ (v.5) e „te converto‟ (v.18) têm em hebraico a mesma raiz e
assinalam a nova identidade de Jeremias”96.
94
Cf. ABREGO DE LACY, Jeremias, p. 38.
95
Cf. BRACKE, John M. Jeremiah 1–29. Louisville: Westminster John Knox Press, 2000, p. 18. Cf.
PIXLEY, Jorge V. Jeremiah. Danvers: Chalice Press, 2004, p. 10.
96
FISCHER, Georg. El libro de Jeremías. Barcelona/Madrid: Herder/Ciudad Nueva, 1997, p. 47.
97
ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (I), p. 554.
98
Cf. WEISER, Geremia, p. 435.
103
saber ou percepção política, mas sim por obediência ao Senhor que o enviou. Alonso
Schökel e Sicre Diaz comentam:
99
ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (I), p. 559.
100
Ibid., p. 560.
101
Cf. WEISER, Geremia, p. 436.
102
Cf. BERG, Jeremías, p. 206-207.
104
foi enviado por Deus (Jr 28,9). O envio tem suas insígnias de identificação, mas também
exige do auditório uma dimensão de acolhida que pode ultrapassar o meramente factual.
O enviado age, mas nem sempre tem como provar que sua mensagem é a verdadeira.
103
WEISER, Geremia, p. 456.
104
Cf. ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (I), p. 569. Os autores propõem um esquema
simplificado diferenciando a falsa da verdadeira profecia:
Falsa profecia Verdadeira profecia
A curto prazo A longo prazo
Mudança exterior de situação Mudança interior de atitude
Predição simples Análise dos motivos
105
Romper a palavra é negar a possibilidade de começo, é afirmar que Deus não pode
salvar”105.
Jeremias reclama que o rei não acolhe a mensagem divina. Ao mencionar isso
ele se refere à sua própria palavra como sendo a palavra de Deus agora rejeitada (cf. Jr,
42,21). Há uma identificação entre aquilo que o profeta diz e aquilo que Deus deseja. Tal
identificação só é possível porque na condição de enviado o profeta pode comunicar a
mensagem de duas formas: apenas repetindo o que o Senhor lhe inspirou, ou
interpretando a realidade, dando-lhe significados. O plano divino está confiado ao profeta,
pois enquanto enviado ele tem autoridade suficiente para negociar os encaminhamentos
para que o projeto se concretize. Essa postura contempla a liberdade do profeta no seu
agir e sua autonomia que nasce da intimidade com Deus. Essa forma de agir como um
intérprete ou repetidor do oráculo também pode ser percebida em Jr 49,14a quando se
afirma que “ouvi uma mensagem do Senhor enviada às nações”.
105
Cf. ABREGO DE LACY, Jeremias, p. 203.
106
Os destinatários são chamados de: filhos de Israel, nações rebeldes, eles e seus pais pecaram contra mim,
filhos de semblante duro e coração obstinado. Cf. PIKOR, Wojciech. La comunicazione profetica alla luce
di Ez 2–3. Roma: PUG, 2002, p. 78-79.
106
demonstra o papel de Ezequiel como intermediário entre Deus e o povo, superando a
distância entre eles. Chama atenção na cena o fato de que o epíteto usado para se referir a
Ezequiel é “Filho de Adão”, ou seja, da descendência humana, mortal107. É nessa suposta
fragilidade que ele deve agir frente ao povo rebelde e endurecido de Israel, sabendo que o
que o manterá firme será o espírito de Deus, cuja experiência já faz no momento de sua
vocação (cf. v. 2).
a missão profética tem como objetivo a palavra e ela depende da ordem divina,
não da aceitação humana; carrega em si própria uma força tal que, ainda que
rejeitada, impõe-se: os exilados, até à força, haverão de reconhecer que Deus
lhes envia um profeta. Envio de dois gumes: para que se salvem caso o aceitem,
para que não tenham desculpa, caso o rejeitem108.
O rolo ingerido por Ezequiel (Ez 2,9-3,15) é talvez a imagem mais evidente
do seu papel como enviado, pois o profeta não deve formular por si mesmo a mensagem,
mas, sim comunicar aquilo que recebeu e da forma e nos termos como recebeu. Confirma
o conteúdo do rolo aquilo que o Senhor irá falar ao profeta, tal como pede para que escute
atentamente e aprenda de cor a mensagem (Ez 2,10). Esse procedimento pedagógico
demonstra ainda que o enviado é aquele que assimila a mensagem a ponto de torná-la sua,
identificando-se com ela, da mesma forma como se identifica com o seu emissor.
Eichrodt compreende que a ordem de comer o livro, de um lado, representa uma prova de
obediência, na qual o homem chamado a ser profeta demonstra sua disposição em realizar
a vontade do Senhor, e, de outro, delimita que a palavra é preexistente, tem sua origem
divina, independente do sentimento e opinião do profeta109.
107
Cf. MONARI, Luciano. Ezequiel: um sacerdote-profeta. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 28. – Cf.
TAYLOR, John B. Ezequiel: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1989, p. 57. Taylor menciona
a ideia de insignificância.
108
ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas (II). São Paulo: Paulinas, 1991, p. 709. – Taylor
complementa afirmando que “o testemunho fiel do mensageiro era mais importante do que uma resposta
bem-sucedida da parte dos seus ouvintes” (TAYLOR, John B. Ezequiel: introdução e comentário. São
Paulo: Vida Nova, 1989, p. 59).
109
Cf. EICHRODT, Walther. Ezechiele: Capitoli 1-24. Brescia: Paideia, 2001, p. 83.
107
firmado. O grupo a que está destinado é o dos seus compatriotas deportados e isso
assinala mais uma vez o quanto Deus é fiel ao seu povo, apesar de contumaz rebeldia.
Ainda sobre o destinatário, diz Ez 3,5 que se trata de um povo conhecido, de língua e
idioma familiares, possivelmente, explicitando que o enviado não traz a mensagem numa
forma estranha ao seu auditório, mas antes comunica aquela mensagem do Senhor na
mesma língua e idioma de seus ouvintes110. Mas, ironicamente, o oráculo menciona que,
caso o profeta fosse enviado a povos estrangeiros (cf. Ez 3,6), lá a mensagem divina
encontraria acolhida.
110
Cf. ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (II), p. 709.
111
Cf. MCKEATING, H. Ezekiel the “prophet like Moses”?. JSOT, Sheffield, n. 61, 1994, p. 97-109.
112
Cf. MONARI, Ezequiel, p. 51.
108
Os falsos profetas abusaram de maneira irresponsável da sua função,
modificaram o direito do mensageiro, que era aquele de se referir apenas à palavra que
lhe foi confiada, não pondo na mensagem sua própria opinião, segundo sua vontade e sem
ter aguardado uma visão do Senhor113. Um “filho de Adão” pode ser enviado, mas carece
para isso de receber o encargo das mãos daquele que tem autoridade, o Senhor. Caso
contrário, o que afirma se perde, gerando apenas falsas expectativas e colocando o povo
mais uma vez em dúvida acerca do poder de Deus. “A tarefa dos autênticos profetas
sempre foi, diante de uma ameaça e condenação divina, convocar a misericórdia de Deus
e a penitência do povo”114.
113
Cf. EICHRODT, Ezechiele, p. 200.
114
LAMELAS MÍGUEZ, Julio. Ezequiel: texto y comentario. Salamanca: Sigueme, 1993, p. 66.
115
Cf. SOLANO ROSSI, L. A. Abdias. São Paulo: Loyola, 2008, p. 24.
116
ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (II), p. 1032.
109
2.10 Os cavaleiros enviados e a mediação angélica (Zc 1,10)
Zc 1,10 fala dos cavaleiros enviados por Deus para percorrer a terra. A
revelação recebida pelo profeta é intermediada por um anjo. Se, por um lado, o profeta
pode penetrar por alguns instantes no mundo superior, por outro, não consegue perceber
tudo o que ocorre e, por isso, necessita de um mensageiro intérprete. Boggio vê nisso uma
distinção de Zacarias em relação aos profetas do pré-exílio, em que as mensagens eram
comunicadas diretamente por Deus. Em Zacarias, segundo Boggio, há um distanciamento
do transcendente, e assim “a divindade se acha confinada num mundo inacessível ao
homem; mas, ao mesmo tempo, é reforçada a convicção de que Deus domina todos os
aspectos da vida humana e que o homem depende total e absolutamente de Deus”117.
117
Cf. BOGGIO, G. Joel, Baruc, Abdias, Ageu, Zacarias, Malaquias: os últimos profetas. São Paulo:
Paulus, 1995, p. 73.
118
Cf. ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (II), p. 1188.
119
BALDWIN, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1986, p.
75.
110
de comunicação funcionava muito bem e agilmente, executando a supervisão e o controle
do poder, evitando também que os sátrapas assumissem o comando120.
120
Cf. GORGULHO, Gilberto. Zacarias: a vinda do Messias pobre. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 28. –
Segundo Gorgulho, Heródoto teria escrito acerca das patrulhas de correio persa: “Nem a chuva, nem o frio,
nem o calor do dia, nem a escuridão da noite deterão estes correios de seu percurso fixado”.
121
Cf. ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (II), p. 1203. – Também interpreta dessa forma:
GORGULHO, Zacarias, p. 33.
111
2.11 O enviado que prepara o caminho (Ml 3,1)
O profeta fala de um enviado pelo Senhor dos exércitos para preparar o seu
caminho (Ml 3,1). Esse “meu mensageiro” manifestaria a cólera do Senhor e viria
revestido de poder, talvez não sendo suportado pela população pecadora, pois tanto a vida
social como religiosa seriam transformadas em sua essência122. Talvez a referência ao
Senhor dos exércitos se justifique em função dessa grande reviravolta. Não fica claro no
texto se o enviado se identifica a todos os três personagens mencionados (meu
mensageiro; o senhor; o mensageiro da aliança) ou se se refere apenas ao primeiro123.
Para Baldwin, Malaquias tinha em vista alguém com a missão única de precursor (cf.
4,5)124.
122
BOGGIO, Joel, p. 112.
123
Cf. ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, Profetas (II), p. 1254. – Cf. MERRILL, Eugene. Haggai,
Zechariah, Malachi: an exegetical commentary. Chigaco: Moody, 1994, p. 371. Não haveria uma simples
coincidência entre o nome do profeta e a menção ao mensageiro. Malaquias seria o tal mensageiro enviado.
124
Cf. BALDWIN, Ageu, p. 203.
125
Cf. SILVA, C., Aquele que manda a chuva, p. 225.
112
Rejeitar uma palavra da Torah é rejeitar o Deus que por ela se comunica.
Assim sua autoridade nasce da voz de quem a pronunciou. Como chamas, as letras trazem
a inspiração de que ali se encontra a luz para o caminho. Acolher a Torah é colocar-se em
movimento místico, sabendo-se protegido. Na voz do leitor da Torah ressoa novamente a
voz de Deus, que não cansa de se comunicar.
2.12.2 A Sabedoria
Os escritos sapienciais parecem desconhecer homens e mulheres enviados por
Deus com tarefas junto ao povo de Israel. Talvez, justamente pelo fato de que a Torah já
126
LADARIA, L. F. O Deus vivo e verdadeiro: o mistério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 128.
113
se encontrasse mais canonizada nos círculos judaicos, será por ela que Deus continuará a
se comunicar.
127
Cf. ROBERT, A. Les attaches littéraires bibliques de Prov. I-IX. Apud. LEPROUX, Alexis. Un discours
de sagesse: étude exégétique de Sg 7-8. Roma: PIB, 2007, p. 198.
128
De acordo com Vílchez Líndez, o método estilístico de personificação foi a alternativa encontrada pelo
judaísmo para conciliar o monoteísmo com interpretações pagãs onde a sabedoria era considerada uma
divindade. Cf. VÍLCHEZ LÍNDEZ, José. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999, p. 244. –
Ainda sobre as teorias acerca do pano de fundo do uso literário da personificação da sabedoria:
CLIFFORD, Richard J. Proverbs: a commentary. Louisville: Westminster John Knox, 1999, p. 23-28.
129
Cf. BAUMANN, Gerlinde. A figure with many facets: the literary and theological functions of
personified wisdom in Proverbs 1-9. In: BRENNER, Athalya; FONTAINE, Carole. Wisdom and Psalms.
Sheffield: Sheffield Academic, 1998, p. 57.
114
O humano deve procurar pela sabedoria, mas, acima de tudo, deve ter a
certeza de que a sabedoria se antecipa ao encontro de quem a procura. Ela não é
inalcançável, está disponível, passa nas almas santas, formando amigos de Deus e
profetas (cf. Sb 7,27). A sabedoria tem tarefas claras e precisas, orientando passo a passo
a vida do fiel a Deus. Nesse sentido, a sua missão assemelha-se à dos enviados. Além
disso, ela faz o intercâmbio entre as esferas celeste e terrestre130. Esse caráter dinâmico da
sabedoria denota sua autonomia e, ao mesmo tempo, fidelidade a Deus.
130
Cf. TARAZI, Paul Nadim. The Old Testament: Psalms and Wisdom. New York: St. Vladimir‟s
Seminary, 1996. v. 3, p. 125.
131
Cf. SCHIMIDT, Alaid Schiavone. Sabedoria. In: SCHIMIDT, Alaid Schiavone. Pequena enciclopédia
bíblica de temas femininos. São Paulo: Arte Editorial, 2007, p. 325.
132
Cf. SINNOTT, Alice M. The personification of Wisdom. Burlington: Ashgate, 2005, p. 174.
133
Cf. GISEL, Pierre. La subversion de l‟Esprit: réflexion théologique sur l‟accomplissement de l‟homme.
Genève: Labor et Fides, 1993, p. 21.
134
Cf. YODER, Christine Roy. Wisdom as a woman of substance: a socioeconomic reading of Proverbs 1-9
and 31,10-31. New York: Walter de Gruyter, 2001, p. 108.
115
2.12.3 O Espírito
O Sl 104,30 afirma que o Senhor envia o seu Espírito e que por ele tudo é
criado e a face da terra renovada. O hálito divino é comunicador da vida existente em
Deus. Já na criação é esse hálito insulflado no humano, fazendo-o viver e tornando-o
partícipe da criação (cf. Gn 2,7). A morte foi compreendida como o momento em que
Deus retira o seu hálito vivificante (cf. Sl 104,29; Is 42,5).
No confronto entre Assíria e Judá a reação do Senhor para defender seu povo
eleito foi a de enviar um anjo que fez desaparecer os exércitos assírios (cf. 2Cr 32,21). O
enviado divino, o anjo que age sobre o exército assírio, confirma que o Senhor permanece
em favor de Judá e não se compara a outros deuses de povos derrotados. Aqui a conexão
entre o sinal e o outorgante pode ser percebida, pois o anjo age em nome e na força do
Senhor, sendo uma presença representativa de Deus.
116
O relato da ação do anjo Rafael no livro de Tobias apresenta o pensamento
místico judaico e a crença na manifestação dos anjos135. Rafael assume a forma humana
para realizar a sua missão: acompanhar Tobias numa viagem ao estrangeiro. A narrativa
permite ao leitor saber que Rafael é um anjo e caberá a ele auxiliar Tobias para vencer as
ameaças de Asmodeu e recuperar a visão de Tobit (cf. Tb 5,4). Essa intervenção divina
torna familiar aquela presença divina, através dos anjos, manifestada na história de Israel.
Rafael tem conhecimentos para além da sabedoria humana, antecipando-se aos fatos e
compreendendo-os na sua profundidade teológica. A sua aparência humana faz com que
os personagens experimentem nele um humano de caráter especial, um verdadeiro
israelita. Ao leitor sobressai que o anjo tem pleno domínio dos acontecimentos 136. Por
fim, na revelação de sua identidade, Rafael menciona que apenas parecia se alimentar
(12,19) e despede-se afirmando que retorna para aquele que o enviou.
3 Sistematização bíblico-teológica
135
Cf. ENGEL, Helmut. O livro de Tobias. In: ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 243. O livro de Tobit é um modelo de teologia judaica popular narrativa, com o
intuito de expressar a convicção de que Deus atende as orações, acompanha pessoas em perigo e está
próximo delas tanto no sofrimento e na diáspora quanto na alegria e na Terra Santa.
136
Pela ação do anjo se revela a vontade misericordiosa de Deus. Como enviado de Deus, o anjo conhece
todos os caminhos, revelando-se um guia experiente para o necessitado Tobias. Cf. VÍLCHES LÍNDEZ,
José. Tobias e Judite. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 125.225.
137
Cf. MITCHEL, Larry A. et al. xlv. In: PDLB, p. 43.
117
constituído por uma vocação, mas tem-se na condição de enviado por sua interpretação da
história pessoal no conjunto da história de seu povo. A narrativa de José é fundamental
como cena preparatória para a compreensão do envio de Moisés, pois assegura que Deus
age na história humana de forma a garantir que seu povo seja salvo.
Moisés é ainda referência pela sua obediência fiel ao Senhor como sinal de
sua resposta à fidelidade de Deus139. Essa obediência é explicitada quando o Senhor dá as
orientações ao seu enviado, e a narrativa demonstra que tudo se confirma como o
desejado por Deus. É também em função da obediência que o enviado fica atento à
palavra que lhe é transmitida140, assegurando também sua autoridade junto a seus
destinatários. Se o outorgante assegura que não se separará do seu enviado, este precisa
ser obediente e, desta forma, caso seja desrespeitado, será o próprio emissor o rejeitado
em seu enviado.
Por fim, vale lembrar que em Moisés Deus manifesta seus sinais ou prodígios.
Esses têm por finalidade demonstrar a veracidade do enviado e o poder do emissor. O
138
Cf. SICARI, Antonio. Chiamati per nome: la vocazione nella scrittura. 2. ed. Milano: Jaca Book, 1990,
p. 29.
139
Cf. CALTAGIRONE, Calogero. Teologia della fede e antropologia fundamentale. In: LORIZIO,
Giuseppe (org.). Teologia fondamentale: fondamenti. Roma: Città Nuova, 2005, p. 349.
140
Cf. FISICHELLA, Rino. Gesù di Nazaret: profezia del Padre. Milano: Paoline, 2000, p. 70.
118
poder de Moisés está submetido à sua capacidade de sempre agir da forma como Deus o
exige. O sucesso de sua missão também depende disso. Moisés tem nos sinais a grande
testemunha de que é um enviado do Senhor. A santidade de Moisés, manifesta pela face
brilhante, por exemplo, não é um atributo pessoal do enviado, mas uma concessão do
emissor. Moisés é santo porque se deixa separar por Deus para sua missão e não oferece
resistência.
141
Cf. XAVIER, Thadeu. Deus e a história: história da salvação e experiência de fé segundo o rabino A. J.
Heschel. In: BIZON, José. Diálogo Católico-Judaico no Brasil: Comissão Nacional de Diálogo Religioso
Católico-Judacio. São Paulo: Loyola, 2005, p. 79-80.
142
Cf. SCHÖNBORN, Christoph. God sent his Son: a contemporary Christology. San Francisco: Ignatius,
2010, p. 117. O profeta não só proclama a palavra de Deus, pois é, a um só tempo, a representação de Deus
na história por sua palavra.
143
Cf. ALONSO SCHÖKEL, A palavra inspirada, p. 62-63.
119
no âmbito da palavra recebida já que antecipam o porvir anunciado pela pregação 144. A
comunicação com o Senhor acontece de maneira diferenciada, não constituindo o profeta
como enviado indeterminadamente, mas sim com uma missão clara, específica. O fim
trágico de alguns profetas é interpretado como confirmação do envio. Distinto do
caminho do mensageiro, onde um lugar é utilizado como espaço de comunicação com o
Senhor, os profetas experimentam essa comunicação no cotidiano, e as visões ganham a
conotação de epifanias.
144
Cf. HOSSFELD, Frank-Lothar. O livro de Ezequiel. In: ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p.
435.
145
Cf. WOOD, Leon J. Los profetas de Israel: un estudio de los profetas, escritores o no, como personas.
Grand Rapids: Portavoz, 1996, p. 116.
146
Cf. KOCH, R.; BAUER J. B. Arrebatamento. In: DBT, p. 30.
147
Cf. THOMPSON, Marianne Meye. The God of the gospel of John. Grand Rapids: Wm. B. Eerdemans,
2001, p. 134. Thompson discorda dessa interpretação por considerar que a sabedoria não é uma entidade
120
humana e concede aos justos e sensatos a dádiva de conhecer a vontade divina. Mais uma
vez o envio tem dimensão prática, não sendo uma sabedoria alheia à vida; ao contrário,
existe para dar significado e razão à existência humana. Por isso, parte da vida e
demonstra uma acuidade observadora e um processo de reflexão em que a revelação não
se dá imediatamente do alto, mas sim na meditação constante da Lei.
separável de Deus, mas sim a manifestação de sua vontade, expressão de sua mente. A sabedoria não seria
uma enviada, mas sim quem estabelece uma relação entre Deus e os seres humanos.
121
divinas. Para o leitor afeito ao Antigo Testamento, os sinais expressam o poder de Deus, e
não o dos enviados. Não há preocupação com a historicidade positivista, mas sim com a
teologia que a afirmação de um sinal traz consigo. Os enviados são empoderados porque
recebem de Deus a força para agir, porque nos sinais se evidencia a confirmação da
missão, porque são obedientes ao Senhor e se tornam seus canais de ação.
4 Conclusão
148
Cf. BARREIRO, Álvaro. Igreja, povo santo e pecador: estudo sobre a dimensão eclesial da fé cristã, a
santidade e o pecado na Igreja, a crítica ea fidelidade à Igreja. São Paulo: Loyola, 2001, p. 86.
122
enviado e seus destinatários. Mesmo quando o enviado realiza algum gesto ou sinal, será
pela palavra o estabelecimento da relação, pois por ela é que o gesto é interpretado.
123
CAPÍTULO III
Lc 9,2
Imediatamente pode-se perceber com a simples listagem das ocorrências que, nos
Sinópticos, o envio não se refere tanto à pessoa de Jesus, mas sim à dos seus discípulos. Ele
não é apresentado como o enviado, mas sim como quem envia os apóstolos e discípulos para
executarem uma missão similar àquela por ele realizada. Não será pelo uso do verbo enviar
que se caracterizará a autoridade de Jesus, mas sim pela recordação de sua exousía, que
significa na realidade o pleno poder do enviado1.
Para Paulo, Cristo é o Filho enviado na carne, mas não há uso freqüente do verbo
enviar para designar a missão de Jesus. O próprio Paulo se considera como enviado de Cristo,
1
Exousía: do grego exestin = “é autorizado”.
124
exigindo para si o tratamento de apóstolo. Em suas cartas são recordados alguns envios de
missionários em que se demonstra o papel do enviado como mensageiro constituído para
representação do apóstolo.
2
Cf. RENGSTORF, K. H. Apostéllō (pémpō). In: TDNT, p. 68.
3
Cf. BÜHNER, J-A. avposte,llw apostellō enviar. In: DENT, Tomo I, p. 425-426. O objeto da ação expressada
por apostellō são pessoas e está relacionado o seu significado na LXX enquanto “fazer-se representar”. O
significado de enviar, quando vinculado a uma missão ou execução de um encargo, adquire o sentido de
comissionar, encarregar.
125
porém enfatizando a presença ou participação do outorgante no envio, como por exemplo,
Gl 4,14, em que é Deus quem envia o Filho4.
4
Cf. VINE, W. E. Enviar. In: DEPANT, p. 334.
5
Cf. SPICQ, Ceslas. Lexique théologique du Nouveau Testament. Fribourg: UEF, 1978, p. 191-192.
6
KÜHSCHELM, R. Apóstolo. In: DBT, p. 24. Šaliaḥ, enquanto representante plenipotenciário do Sinédrio,
visita as comunidades e colhe os tributos. O judaísmo pós-bíblico também reivindicou para esse termo a função
profética.
7
Cf. RENGSTORF, Apostéllō (pémpō), p. 68.
126
O Novo Testamento faz uso de pémpō em 79 ocorrências8, porém concentram-se
no Evangelho segundo João, como veremos no capítulo seguinte. Em Lucas onde há grande
uso de pémpō, nota-se que seu significado, como para Josephus, funciona como um sinônimo
de apostéllō, porém não realçando o vínculo com a figura de Jesus9.
2.1.1 Eis, eu envio o meu anjo diante de tua face (Mt 11,10//Mc 1,2//Lc 7,27)
Em Mateus e Lucas encontramos a citação: “eis, eu envio meu mensageiro diante
de tua face, que preparará o teu caminho perante ti” (Mt 11,10//Lc 7,27). Marcos cita com
algumas diferenças. Primeiramente, porque baseia sua citação no profeta Isaías, depois,
porque omite o “perante ti” (cf. Mc 1,2).
Parece que Mateus e Lucas sabem que o texto citado não pertence a Isaías, e por
isso preferem apenas remeter a citação através da fórmula “este é a respeito de quem está
8
Cf. RITT, H. pempō enviar. In: DENT, Tomo I, p. 873. Das 79 ocorrências de pempō, 32 se encontram em
João e 24 destas têm o Cristo como enviado.
9
Cf. RENGSTORF, Apostéllō (pémpō), p. 68.
127
escrito”. O versículo é uma compilação de Ex 23,20 com Ml 3,1a de acordo com a tradução
da Septuaginta10. Ex 23,20 diz: “Eis que envio um anjo diante de vós para vos guardar no
caminho e para vos levar à terra que preparei para vós”11. Ml 3,1a afirma: “Eis que mando o
meu mensageiro para abrir um caminho diante de mim”12. Assim, para os Sinópticos, chegou-
se à formulação: “Eis, envio meu mensageiro diante de tua face, que preparará o teu caminho
perante ti”13.
Parece que, para Marcos, essa combinação de Ex 23,20 e Ml 3,1a serviu para a
leitura midráxica de Is 40,314: “Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor;
endireitai no ermo a vereda a nosso Deus”. Também Mateus e Lucas utilizarão o texto
isaiano, mas em outro contexto sem a aproximação feita por Marcos, manifestando uma maior
dependência de Q 7,27 (Mt 11,10//Lc 7,27)15.
Evocar a ideia de envio, atribuindo-o a Isaías, funciona para Marcos como forma
de assegurar a vivacidade da profecia, contrariando a opinião corrente de que os profetas
haviam silenciado, associando a voz de João Batista à deles, caracterizando-o como Elias16.
Em Mateus e Lucas também se atribui a João Batista a missão de precursor, colocando-o na
esteira dos profetas e elogiando-o como o maior entre os nascidos de mulher, juntamente com
10
Cf. TAYLOR, Vincent. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1980, p. 164.
11
kai. ivdou. evgw. avposte,llw to.n a;ggelo,n mou pro. prosw,pou sou i[na fula,xh| se evn th/| o`dw/| o[pwj eivsaga,gh| se
eivj th.n gh/n h]n h`toi,masa, soi...
12
ivdou. evgw. evxaposte,llw to.n a;ggelo,n mou kai. evpible,yetai o`do.n pro. prosw,pou mou..
13
Cf. SOARES, S. A. Gameleira; CORREIA JUNIOR, João Luiz. Evangelho de Marcos: refazer a casa
(capítulos 1-8). Petrópolis: Vozes, 2002, v. 1, p. 49.
14
Cf. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 163.
15
Cf. KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas da “Fonte Q”. São Paulo: Loyola,
2005, p. 91.
16
Cf. ROTH, Wolfgan. Hebrew Gospel: cracking the Code of Mark. New York: Meyer Stone books, 1988,
p. 85. – Pagliara analisa como a associação de João Batista a Elias no início de Marcos se complementa com a
menção a Elias em Mc 15,35. Sugere que se apresenta aí um caminho de conversão que exige do cristão sair da
pretensa revivificação de Elias para o seguimento de Jesus. Cf. PAGLIARA, Cosimo. La figura di Elia nel
Vangelo di Marco: aspetti semantici e funzionali. Roma: PUG, 2003, p. 46.58.
128
o menor entre os do Reino de Deus/dos Céus17 (cf. Mt 11,11//Lc 7,28). Carter conclui que, no
caso de Mateus, o versículo originalmente aplicado ao povo é, agora, aplicado a Jesus:
“Assim como o mensageiro prepara o povo para entrar na terra, assim Deus envia João (meu
mensageiro) para prepará-los a entrar no império de Deus revelado por Jesus (ti)”18. Os
Sinópticos, mais que a questão do envio, parecem frisar o tema do caminho, na sua clara
referência a Is 40,3 e seu contexto de libertação pós-exílica19.
O texto diz explicitamente que se trata de uma unção. O Espírito de Deus que
ungia os profetas do Antigo Testamento está agora presente em Jesus, e será pelo Espírito que
o enviado poderá desempenhar sua tarefa. O Espírito é fonte do poder de Jesus na realização
de curas e inspiração para o seu ministério23. O comissionamento de Jesus fica, portanto,
17
Overman recorda que um conflito primitivo entre os seguidores de Jesus e os de João deve estar na base da
afirmação de Jesus sobre a condição importante do Batista, porém ainda menor que os nascidos do Reino. Cf.
OVERMAN, J. Andrew. Igreja e comunidade em crise: o Evangelho segundo Mateus. São Paulo: Paulinas,
1999, p. 185.
18
CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens.
São Paulo: Paulus, 2002, p. 327. [grifo do autor]
19
Cf. GOLDINGAY, John; PAYNE, David. Isaiah 40–55. New York: T&T Clark, 2006. v. 1. p. 74.
20
Cf. CASALEGNO, Alberto. Lucas: a caminho com Jesus missionário. São Paulo: Loyola, 2003, p. 106.
Casalegno recomenda cuidado em relação à pontuação na leitura do v. 18: “Provavelmente a evangelização da
boa nova aos pobres relaciona-se com o envio de Jesus, e não com sua unção. Por isso, deve-se ler „para
evangelizar os pobres enviou-me‟, e não „me ungiu para evangelizar os pobres‟”.
21
A homilia realizada por Jesus dá o sentido pleno do texto tanto para aquele momento presente quanto para o
futuro. Cf. SACHOT, Maurice. A invenção do Cristo: gênese de uma religião. São Paulo: Loyola, 2004, p. 39.
– De acordo com Fitzmayer, Is 61,1-11 é parte de um poema que explica a missão do profeta como consolador
de Sião. Jesus ao atualizar a profecia, identificando-se com tal profeta, assume esse papel de consolador. Cf.
FITZMYER, Joseph A. El Evangelio según Lucas: traducción y comentarios - capítulos 1–8,21. Madrid:
Cristiandad, 1986. v. 2, p. 434.
22
Cf. AUGUSTA, Maria de Lourdes. Jesus: Boa-nova para os pobres: uma releitura de Lc 4,16-30 a partir da
América Latina e do Caribe. Belo Horizonte: FAJE, 2008. Dissertação de Mestrado, p. 51.
23
Cf. FREYNE, Sean. A Galiléia, Jesus e os Evangelhos: enfoques literários e investigações históricas. São
Paulo: Loyola, 1996, p. 95.
129
vinculado ao seu batismo, quando o céu se abriu24, e ao fato de ter se tornado repleto do
Espírito Santo (cf. Lc 3,22; 4,1).
2.1.3 O enviado rejeitado em sua terra: o exemplo de Elias e Eliseu (Lc 4,26)
As palavras de Jesus na sinagoga causam incômodo aos seus compatriotas, que
não o veem como um enviado de Deus, mas tão somente como um conterrâneo cuja fama já
se espalhava. A rejeição de Nazaré sinaliza a rejeição que Jesus sofrerá em Jerusalém,
simbolizando a resistência do povo judeu à sua mensagem. Diante disso, Jesus recorda Elias
como enviado de Deus25. Trata-se de uma citação indireta das Escrituras, pois o evangelista
não a precede com uma fórmula que evoque sua fundamentação.
O episódio da visita de Elias à viúva de Sarepta, narrado em 1Rs 17,9, era bem
conhecido do auditório. O evangelista o associa à fala de Jesus como forma de mostrar que,
apesar da rejeição dos compatriotas, a missão do enviado será cumprida e atingirá a outros
que, inicialmente, não eram vistos como dignos de participar da salvação26. Isso se confirma
com o argumento seguinte que recorda Eliseu e o leproso Naamã, o sírio (cf. 2Rs 5,14). Nas
duas situações, os estrangeiros se tornaram exemplos de fé.
Lucas apresentou Jesus como o enviado de Is 61,1, portanto, nada mais justo que
evocar os enviados bíblicos como forma de assegurar que sua tarefa no mundo se compara à
daqueles que o precederam, porém será ainda mais profunda, pois nele as profecias se
realizam em plenitude. Os da sinagoga ficam ainda mais irritados diante dos argumentos de
Jesus, desejando precipitá-lo, “mas ele, passando no meio deles, seguiu o seu caminho”
(Lc 4,30). A expressão seguir o seu caminho alude à concretização da missão a que foi
enviado e, como no Antigo Testamento, está vinculada ao verbo enviar. Nada há que possa
impedi-lo de exercer sua tarefa de enviado, pois está pleno do Espírito Santo.
24
Na literatura apocalíptica os céus abertos apontam para o conhecimento de segredos celestes. O batismo de
Jesus aparece como resposta à súplica de Is 64,1. Cf. STUHLMUELLER, Carroll. Evangelio según San Lucas.
In: BROWN, Raymond E. at al. Comentario bíblico San Jeronimo: Nuevo Testamento I. Madrid: Cristiandad,
1972, p. 329.
25
Cf. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, p. 445. O uso da voz passiva em Lc 4,26 se refere
indubitavelmente à atuação de Deus.
26
Cf. TUCKETT, C. M. Luke. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996, p. 52.54. A referência a Elias e Eliseu
funciona como prefiguração da missão gentílica.
130
Deus para agir em seu nome e em seu lugar, defendendo a sua causa, testemunhando a sua
justiça.
Após a investida dos discípulos para que Jesus despedisse a mulher, ele proclama
que foi enviado para as ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15,24). A palavra de Jesus
coloca a cena no seu clímax. O evangelho está ou não aberto aos pagãos? 29 As ações da
mulher cananeia serão fundamentais para o desfecho da cena. Ela se prostra diante de Jesus,
claro reconhecimento de sua autoridade e divindade, chama-o de “Senhor” e pede que ele a
socorra, ou seja, considera-o como seu salvador imediato (cf. Mt 15,25). Jesus diz que não
fica bem tirar o pão dos filhos para atirá-lo aos cachorrinhos (cf. v. 26). Os pagãos eram
considerados pelos fariseus como míseros cães.
27
Mc 7,24-30 narra a cura da filha da mulher cananeia, contudo não se menciona ali o mesmo que em Mt 15,24,
ou seja, que Jesus foi enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel. Como o objeto de nossa pesquisa versa sobre
o envio, consideramos aqui a perícope de Mateus de forma isolada, sabendo, porém, de sua dependência da
tradição marcana.
28
Cf. OVERMAN, Igreja, p. 252.
29
Cf. CHAE, Young S. Jesus as the Eschatological Davidic Shepherd. Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 214.
Jesus age como enviado de Deus, limitando a sua missão, conforme a fraseologia do Antigo Testamento, ao
contexto de Israel.
131
salvação30; contudo, ela o chama mais uma vez de “Senhor”31 e argumenta que os
cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos, ou seja, aos pagãos
também é facultado experimentar a salvação.
A declaração de Jesus afirma a eleição de Israel por Deus, a fidelidade de Deus aos
propósitos da aliança de Deus, a prioridade de Israel nesses propósitos, a identidade
de Jesus como comissionado por Deus, e a persistência de Jesus na missão para
Israel apesar da hostilidade dos líderes religiosos e do interesse descomprometido
das multidões32.
Mateus, que escreve para uma comunidade cristã de procedência judaica, elaborou
a cena de forma a não contrariar as prerrogativas judaicas de prioridade de salvação, mas
estendendo essa salvação aos pagãos, pois a cananeia passa a ser referência de fé (cf.
Mt 15,28).
30
Cf. SCHMIDT, A fé do Antigo Testamento, p. 443. Interessante notar como em Is 19,25 há uma abertura para
a salvação dos egípcios e assírios. Ali a primazia da salvação de Israel é considerada como instrumento da
revelação.
31
Cf. DAVIES, W. D.; ALLISON, D. C. Matthew: 8–18. New York: Clark, 1991, p. 555. Trata-se de uma
confissão de fé, apresentada em três momentos (Mt 15,22.25.27).
32
CARTER, O Evangelho de São Mateus, p. 410.
132
2.2.2 Enviado para anunciar o Reinado de Deus às outras cidades
(Lc 4,43//Mc 1,38)
Lc 4 apresenta, por um lado, o fracasso de Jesus em Nazaré (cf. Lc 4,14-30), sua
cidade natal, e, por outro, a sua crescente fama em Cafarnaum (cf. Lc 4,31-41). Jesus é
procurado pelas multidões, que o queriam reter em Cafarnaum, cidade onde se concretiza o
que foi proclamado na sinagoga de Nazaré33. É diante dessas pessoas que ele proclama que foi
enviado para anunciar o Reinado de Deus às outras cidades e, diz o texto, ele pregava nas
sinagogas da Judeia (cf. Lc 4,42-44). A resposta de Jesus, de que é necessário que ele vá para
outras cidades, se associa ao envio por ele mencionado e mostra a sua condição de andar em
obediência a um imperativo divino34.
Essa assertiva de Jesus demonstra que, para o evangelista Lucas, a saída de Jesus
de Cafarnaum se justifica pela amplitude de sua missão. Ele foi comissionado para anunciar
algo muito concreto, o Reinado de Deus35, ou seja, a superação de todo império humano que
impedisse a plena liberdade dos filhos de Deus. Assim, tal anúncio é a concretização do que
ele proclamara na sua leitura de Isaías 61,1. Jesus não se anuncia, mas, sim, cumpre a sua
tarefa de enviado, proclamando que o Reinado de Deus está inaugurado em sua pessoa.
O evangelista Marcos narra tal situação de forma similar, mas não utiliza o verbo
enviar. Em Mc 1,38, Jesus diz que deve ir aos povoados vizinhos proclamar (= “fazer a
proclamação”, o querigma), pois foi para isso que ele saiu. O verbo “sair” o coloca na
condição de enviado, pois por ele se justifica a sua necessária movimentação como uma
estratégia36 e, de certa forma, se remete a uma autoridade maior que o impede de paralisar a
missão em Cafarnaum, local onde sua fama crescia, conforme Mc 1,28. Outro indício do
33
Cf. CASALEGNO, Lucas, p. 112.
34
Cf. ROSSÉ, Gérard. Il Vangelo di Luca: commento esegetico e teologico. Roma: Città Nuova, 2006, p. 167.
– Fitzmeyer, além de recordar a “passiva teológica”, afirma que: “a formulação de Lucas sublinha decididamente
o plano salvífico do Pai e relaciona a pregação do reino com uma missão cujo objetivo é levar ao pleno
cumprimento esse plano de Deus” (Cf. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, p. 476). – Para Freyne, a
Galileia de Lucas é o espaço verdadeiro da história e atuação de Jesus. Assim, mesmo quando menciona em Lc
4,44 que Jesus pregava pela Judeia, Lucas tem em mente de maneira generalizada todo o território judaico,
passando, facilmente, do sentido amplo da Judeia ao restrito, regional. Cf. FREYNE, A Galiléia, p. 84-85.
35
Cf. RIBEIRO, Luis Felipe. A ameaça de Jesus ao templo herodiano: expectativa do Templo celeste. In:
NOGUEIRA, Paulo Augusto de S. (org.). Religião de visionários: apocalíptica e misticismo no cristianismo
primitivo. São Paulo: Loyola, 2005, p. 159. Marcos e Lucas preferem o termo reino de Deus ao Reino dos céus
usado abundantemente (32x) por Mateus. – Acerca dessa distinção: VOUGA, François. Une théologie du
Nouveau Testament. Genève: Labor et Fides, 2001, p. 41-52.
36
Cf. SOARES; CORREIA JUNIOR, Evangelho de Marcos, p. 97.
133
envio é que sua tarefa é a de porta-voz itinerante de uma mensagem37. Ele deve proclamar. A
omissão do objeto não impede de associar tal proclamação à Boa-Nova, pois kērýssein, verbo
intransitivo, é usado em outras passagens com tal complemento (Mc 1,14; 13,10; 14,9).
2.2.3 Quem me recebe, recebe o que me enviou (Mt 10,40//Mc 9,37//Lc 9,48;
10,16)
As ocorrências de envio em Mc 9,37 e seus paralelos Mt 10,40 e Lc 9,48; 10,16
dizem respeito a Jesus, mas servem também de autorizações para o trabalho dos apóstolos.
Desta forma, ao falar da autoridade de Jesus, o evangelista estabelece também a condição de
“enviados” dos discípulos. Em respeito à divisão que fizemos, essas ocorrências também já
introduzem a questão do envio dos apóstolos.
37
Cf. MANICARDI, Ermenegildo. Il cammino di Gesù nel Vangelo di Marco. Roma: PIB, 2003, p. 27.
38
OVERMAN, Igreja, p. 158.
134
seu emissor. Jesus não é o ponto de parada da missão a que se destinam os apóstolos, pois ao
serem acolhidos tornam presente, além de Jesus que os comissionou, também o outorgante de
Jesus, não nomeado, mas clara referência a Deus39.
Em Marcos e Lucas encontra-se o mesmo dito, mas com uma introdução distinta.
Para Mc 9,37 a ideia do envio corrobora para definir as relações dos membros do grupo de
Jesus. Ela é colocada no final do ensinamento feito por Jesus diante das atitudes ambiciosas
dos apóstolos que discutiam quem seria o maior dentre eles. Além de mencionar que, na
lógica do Reino, quem quiser ser o primeiro deverá ser o último (cf. Mc 9,35), Jesus toma
uma criança e a apresenta como referência do acolhimento dado a ele. Assim, para Marcos,
quem acolher em nome de Jesus uma criança estará acolhendo a ele e, conforme, o restante do
dito, quem o acolhe, acolhe aquele que o enviou. É clara a intenção do evangelista de citar um
modelo concreto a ser mirado, no caso a criança, uma não entidade40, antes de fazer a
associação dos apóstolos como “enviados” de Jesus e, consequentemente, agentes em seu
nome. Lucas procede de forma similar, apenas colocando ao final que o menor dentre os
apóstolos é quem se torna o maior (cf. Lc 9,48), respondendo à questão levantada em
Lc 9,4641. Também Mt 18,5; 25,40 menciona a criança como referência do reino, porém não
repete na cena o versículo sobre o envio.
Numa alusão à rejeição que o enviado pode sofrer no desempenho de sua tarefa,
Lc 10,16 estabelece a conexão entre escutar os apóstolos e escutar Jesus. Assim, fica evidente
que, para o evangelista, os apóstolos desempenham um papel específico de porta-vozes de
Jesus. Contudo, Lucas redireciona tal comissionamento dos apóstolos ao seu próprio envio,
fazendo nova aproximação, agora na forma negativa, de que quem rejeita os apóstolos, rejeita
a ele e a seu outorgante.
39
Cf. CARTER, O Evangelho de São Mateus, p. 319.
40
Cf. MYERS, O Evangelho de São Marcos, p. 316.
41
Cf. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, p. 166.
135
conduzir os que o aceitam para essa nova condição em que o reconhecem como Senhor,
agindo em nome de Deus.
2.2.4.1 A autoridade de Jesus e seu poder sobre os espíritos impuros (Mc 1,21-28//
Lc 4,31-37//Mt 7,29)
Após apresentar o chamado dos primeiros discípulos, Marcos narra o início do
ministério de Jesus em Cafarnaum (cf. Mc 1,21-28). O evangelista afirma que Jesus,
acompanhado dos discípulos, dirige-se a Cafarnaum e entra na sinagoga no dia de sábado. O
objetivo dessa entrada na sinagoga é apresentado pelo verbo “ensinar”. Ali, na sinagoga, Jesus
ensinava e despertava assombro nos ouvintes.
42
Cf. TAYLOR, Evangelio según San Marcos, p. 189. – Cf. PESCH, Rudolf. Il vangelo di Marco. Brescia:
Paideia, 1980, p. 209.
43
GRASSO, Santi. Vangelo di Marco: nuova vesione, introduzione e commento. Milano: Paoline, 2003, p. 62.
136
consagrado (hágios) por Deus44. O “santo” de Deus é aquele que está a serviço do
Altíssimo45. Essa exclamação do possuído será proclamada pelo centurião ao pé da cruz,
atribuindo a Jesus a condição de “filho” de Deus (cf. Mc 15,39). Na boca do possesso ela
indica a resistência do demônio para evitar que Jesus o controle46.
Só pode enfrentar o mal e destruí-lo quem está pleno de autoridade, quem foi
consagrado por Deus. A afirmação de que Jesus é o consagrado de Deus mostra que os
espíritos impuros não o reconhecem como messias apenas, mas como quem tem uma
autoridade que vem de junto de Deus48. Contrapondo-se às ações de Jesus que entrou e falou
na sinagoga, Marcos apresenta os imperativos de Jesus ao espírito imundo que deve se calar e
sair do homem (cf. Mc 1,25). A cena ganha em dinamismo quando o espírito sacode o
homem, dá um forte grito e sai. Marcos indica com essa ação de Jesus que por sua palavra
44
É o possesso quem responde à pergunta da autoridade de Jesus, afirmando que trata-se do “Santo de Deus”. “O
título não ocorre na tradição sinóptica a não ser no paralelo em Lc 4,34. Ao contrário ocorre na tradição joanina
(Jo 6,69; 1Jo 2,20; Ap 3,7). O título foi aplicado a Aarão (Sl 106,16)” (HAMERTON-KELLY, R. G. Pre-
Existence, wisdom, & the Son of Man: a study of the idea of pre-existence in the New Testament. Cambridge:
Cambridge Univeristy Press, 2004, p. 48). – “É, pois, provável que o endemoninhado use a expressão o` a[gioj
tou/ qeou/ com significado messiânico e que expressa com ela o sentido e a presença de um ser sobrenatural”
(TAYLOR, Evangelio según San Marcos, p. 191-192).
45
Sobre o título “Santo de Deus”, Schnackenburg afirma que a comunidade cristã reconhece esse título como
expressão da messianidade de Jesus, realçando também uma proximidade tal com Deus que faz de Jesus um ser
de natureza superior. Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Vangelo secondo Marco. Roma: Città Nuova, 2002,
p. 45.
46
Cf. HEALY, Mary. The Gospel of Mark. Grand Rapids: Baker, 2008, p. 46.
47
Cf. RADERMAKERS, Jean. La bonne nouvelle de Jésus selon Saint Marc: 2. Lecture continue. Bruxelles:
Institut D‟Etudes Théologiques, 1974, p. 81. A cena recorda também as teofanias quando, diante de Deus o
humano reconhece a sua condição de impuro e a distância que os separa.
48
Cf. IWE, John Chijioke. Jesus in the synagogue of Capernaum: the pericope and its programmatic character
for the gospel of Mark. An Exegetico-Theological Study of Mk 1:21-28. Roma: PUG, 1999, p. 172. O autor
mostra como os espíritos impuros identificam Jesus como consagrado de Deus (1,24); Filho de Deus (3,11) e
Filho do Deus Altíssimo (5,7).
137
Deus está agindo. A autoridade de Jesus parece ser uma exousía da palavra49, retomando a
originalidade da palavra divina que é poderosa e eficaz, despertando estupor na assembleia,
fazendo espalhar a fama de Jesus por toda a Galileia.
Demarca-se também que em Jesus o ser humano reencontra sua legítima vocação:
a de ser imagem e semelhança de Deus. A expulsão do espírito imundo é retificação da obra
começada por Deus, mas prejudicada pelas forças do mal. A liberdade humana só é possível
quando o verdadeiro espírito habita no humano e o conduz. Outra é a situação de exploração e
opressão quando espíritos imundos se apossam da criatura de Deus. No evangelho de Marcos
também isso se revelará com frequência, pois Jesus fará diversas curas e exorcismos e por
eles se explicitará a sua intimidade com Deus, objetivando conduzir à fé, pois os milagres em
Marcos vão demarcando a oposição entre os que creem e os que não acreditam em Jesus52.
49
Cf. DONAHUE, John R.; HARRINGTON, Daniel J. The Gospel of Mark. Collegeville: Liturgical Press, 2002,
p. 81.
50
Cf. SOARES; CORREIA JUNIOR. Evangelho de Marcos, p. 83.
51
Cf. IWE, Jesus in the synagogue, p. 59. De acordo com John Iwe, ensinar e autoridade são reservados em
Marcos somente para Jesus, dessa forma no texto do possesso de Cafarnaum fica evidente a oposição entre o
ensino de Jesus e o ensino dos escribas. O termo “autoridade” serve como elemento comparativo entre o ensino
de Jesus e o dos escribas, sendo que aquele de Jesus se revela por palavras e atos.
52
Cf. WITHERINGTON, Ben. The Gospel of Mark: a socio-rhetorical commentary. Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans, 2001, p. 92.
138
rejeitado e expulso. Em Lc 4,31-37, ao adaptar a narrativa marcana em sua obra, Lucas
demonstra que na sinagoga de Cafarnaum sua pregação é aceita e há o reconhecimento de sua
autoridade. Será a partir desse episódio que Jesus iniciará seu ministério de curas.
Outra ênfase que parece ser particular a Lucas é a de que a autoridade de Jesus, na
segunda ocorrência de exousía, está vinculada não ao seu ensinamento, mas sim à sua palavra
(lógos) que ganha também o complemento de que é plena de poder (dýnamis) (vv. 32.36).
Lucas descreve o evangelho como uma pregação da palavra55. O milagre está vinculado ao
poder escatológico da palavra de Jesus e à fé das pessoas que acreditam nesse poder56.
Mateus demonstra que a multidão fica maravilhada após o discurso de Jesus (cf.
Mt 7,29). Bonnard explica essa atitude da multidão da seguinte forma:
O que chama a atenção dos ouvintes de Jesus não é seu extenso conhecimento nem
sua submissão escrupulosa à tradição dos pais (as fontes de autoridade rabínica),
senão no sentido mais forte, a originalidade de sua interpretação da lei de Deus.
Jesus, sem dúvida, apoiado em um extenso conhecimento do Antigo Testamento,
apresenta as exigências divinas em sua radicalidade e simplicidade originárias 57.
No contexto do sermão da montanha, o reconhecimento da autoridade de Jesus,
em contraposição ao ensinamento dos escribas, é caracterizado pela iniciativa do evangelista
de propor a pessoa de Jesus sob os moldes de um novo Moisés58. Assim, após apresentar a
nova lei, Jesus desce da montanha e é reconhecido pela multidão. O centro da autoridade
53
Cf. CASALEGNO, Lucas, p. 110.
54
Cf. GREEN, Joel. B. The gospel of Luke. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1997, p. 221.
55
Cf. SABOURIN, Léopold. L‟Évangile de Luc: introduction et commentaire. Roma: PUG, 1992, p. 138.
56
Cf. MINNERATH, Roland. Jésus et le pouvoir. Paris: Beauchesne, 1987, p. 45.
57
BONNARD, Pierre. Evangelio segun San Mateo. Madrid: Cristiandad, 1976, p. 173.
58
Cf. KONINGS, Sinopse dos Evangelhos, p. xiii.
139
permanece no ensinamento de Jesus que, conforme suas palavras, não veio para abolir a lei e
os profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento (cf. Mt 5,17). Ao determinar que Jesus leva a
lei e os profetas ao pleno cumprimento, Mateus designa Jesus como enviado escatológico de
Deus, que seria como Moisés e conduziria à revelação definitiva59.
2.2.4.2 A autoridade de Jesus e seu poder de perdoar pecados (Mc 2,1-12//Mt 9,1-8//
Lc 5,17-26)
Os Sinópticos apresentam outra ocorrência sobre a autoridade de Jesus. Trata-se
da narrativa da cura do paralítico de Cafarnaum (cf. Mc 2,1-12; Mt 9,1-8; Lc 5,17-26).
Distintamente da narrativa do possesso, o lugar da ação de Jesus é uma casa63 onde ele ensina.
59
Cf. MINNERATH, Jésus et le pouvoir, p. 16. – Cf. SEGALLA, Giuseppe. Redação e teologia dos evangelhos
sinóticos. In: FABRIS, Rinaldo (org.). Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. São Paulo: Loyola, 1993,
p. 262-263.
60
Cf. SEGUNDO, J. L. El caso Mateo: los comienzos de una ética judeo-cristiana. Santander: Sal Terrae, 1994,
p. 68-80.
61
Cf. MINNERATH, Jésus et le pouvoir, p. 15-16.
62
Cf. ibid., p. 17.
63
Cf. GRASSO, Vangelo di Marco, p. 84. A casa em Mc é o lugar da escuta da palavra, da ação de Jesus e onde
se reúne a multidão.
140
Sem dúvida, uma marca da complexidade do lugar religioso entre judeus da sinagoga e judeu-
cristãos que se reuniam em casas de família64.
Mc 2,8 sugere o vínculo íntimo de Jesus com Deus pela afirmação de que Jesus
advinha os pensamentos dos escribas66. De acordo com Pr 15,11, Deus, que tem toda a criação
diante de si, é aquele que manifesta seu poder também no fato de conhecer os pensamentos
humanos. O clímax é dado quando Jesus interroga os escribas sobre o porquê de pensarem
daquela forma. E apresenta uma pergunta cuja resposta se dará na execução da cura do
paralítico: “O que é mais fácil? Dizer ao paralítico que os pecados estão perdoados, ou dizer-
lhe que carregue o leito e comece a andar?” (Mc 2,9).
Além da pergunta, Jesus justifica que a cura será realizada para que conheçam o
poder do Filho do Homem (cf. Mc 2,10). O título designa uma dignidade transcendente e
reclama para Jesus a força da autoridade nele significada67. A ação, que é própria de Deus, foi
realizada por Jesus, e a cura não tem outra finalidade senão a de confirmar que ele se encontra
investido de autoridade pelo Senhor68. A ênfase do evangelista não é colocada na cura, mas
64
Cf. MANNS, Frédéric. Le judéo-christianisme: mémoire ou prophétie. Paris: Beauchesne, 2000, p. 292. A
casa é a igreja onde se manifesta o perdão de Deus, rompendo com as doutrinas tradicionais que somente
contemplavam o perdão vinculado ao ritualismo judaico.
65
MYERS, O Evangelho de São Marcos, p. 197.
66
Cf. FRANCE, R. T. The Gospel of Mark. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2002, p. 126.
67
Cf. LANE, William L. The Gospel of Mark. Grand Rapids: Wm B. Eerdmans, 1995, p. 96.
68
Cf. HOOKER, Morna D. The Gospel according to St. Mark. London: Continuum, 1991, p. 87. Essa autoridade
exercida por Jesus não fica restrita à parusia, já na terra ela é exercida e demonstra que os atos de Jesus são
representativos de Deus e carregados de divina autorização. – “É opinião praticamente unânime entre os
pesquisadores que estudam o uso e o significado da expressão aramaica correspondente a Filho do Homem, que
não se tratava de um título messiânico, nem tinha conotação apocalíptica; se Jesus fez uso de uma expressão
idiomática aramaica, então ganha nova força a hipótese de que também a associava com as situações por ele
vividas durante o seu ministério: a contestação de sua autoridade messiânica, o desprezo e a oposição das
autoridades e a ameaça da morte violenta” (SCHERER, Odilo Pedro. “Justo sofredor”: uma interpretação do
caminho de Jesus e do discípulo. São Paulo: Loyola, 1995, p. 146).
141
sim no perdão dos pecados, revelando uma resposta à fé dos que creem em Jesus69. A
autoridade de Jesus é a de quem foi enviado por Deus para executar uma obra de salvação que
já não mais exige sacrifícios e cumprimento de preceitos 70. Essa obra se dá já no perdão dos
pecados e na recuperação da saúde. A cura demonstra também que o desejo de Deus é o ser
humano em movimento, na condição de liberdade, sem nada que o paralise. É Jesus rompendo
com a ordem do mal e afirmando a plenitude do humano.
Os opositores de Jesus não têm, na narrativa, tempo para responder sobre o que
seria mais fácil. A cena está montada de maneira a evidenciar que Jesus tem o domínio de
toda a situação. Bovon, ao comentar a narrativa paralela em Lucas, afirma que o perdão não é
mais fácil que o milagre; ao contrário, pois no perdão se revela uma dimensão mais profunda,
de natureza incontrolável, o que é diferente do milagre, que parece ter uma natureza visível e
controlável71.
69
Cf. TROCMÉ, Étienne. L‟Évangile selon saint Marc. Genève: Labor et Fides, 2000, p. 66.
70
Cf. NOUIS, Antoine. L‟aujourd‟hui de l‟Evangile: lecture actualisée de l‟évangile de Marc. Lyon: Réveil-
Publications, 2003, p. 63.
71
Cf. BOVON, François. L‟évangile selon Saint Luc: 1-9. Gèneve: Labor et Fides, 1991, p. 243.
72
Cf. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, p. 523.
142
autoridade exercida pelos dominadores, os reis, os governadores. Autoridade essa que é
caracterizada pela imposição de domínio sobre os súditos (cf. Mc 10,42//Mt 20,25)73.
73
Cf. FABRIS, Rinaldo. O Evangelho de Lucas: tradução e comentários. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI,
Bruno. Os Evangelhos (II). 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 221. Lucas edita o final do v. aludindo ao fato de
que, entre os pagãos, os que dominam sobre os povos são chamados de benfeitores (cf. Lc 22,25). O domínio
realizado pelos governantes recebia respaldo ideológico através da autoproclamação de que eram “benfeitores”.
74
Cf. MANICARDI, Il cammino di Gesù, p. 33.
75
Cf. SCHNACKENBURG, Vangelo secondo Marco, p. 275. Jesus não é um revolucionário político, mas visa
uma revolução no interior do discípulo, capaz de evidenciar uma superação do instinto de domínio. – Cf.
GRASSO, Vangelo di Marco, p. 231.
76
MYERS, O Evangelho de São Marcos, p. 338.
143
tornar essa atitude a referência para quem assimila o espírito do Reino. Esse poder-serviço se
expressará de maneira inequívoca pela sua entrega na cruz. Contrariando as expectativas
messiânico-políticas, Jesus será o servo sofredor, que se doa integralmente. A sua vida
ganhará significado não pelo exercício do poder maravilhoso dos milagres, mas sim pela
vitória sobre o mal pelo exercício do poder-serviço, expresso no amor e nas suas opções pelos
mais humildes.
2.2.4.4 A autoridade de Jesus e seu poder de agir em nome de Deus (Mc 11,27-33//
Mt 21,23-27//Lc 20,1-8)
Numa cena bastante complexa, em que Jesus é confrontado por diversas
lideranças religiosas, diante do auditório dos discípulos e do povo, os Sinópticos recriam uma
atmosfera de animosidade, preparam para o relato da paixão e definem a autoridade do
enviado a partir de uma discussão sobre as credenciais de Jesus. A versão lucana demonstra
que o interesse não reside apenas n a autoridade de Jesus, mas também numa justa explicação
para sua entrada messiânica em Jerusalém, a aclamação dos discípulos e a purificação do
templo77.
77
Cf. STUHLMUELLER, Evangelio según San Lucas, p. 393.
78
Cf. TROCMÉ, L‟Évangile selon saint Marc, p. 292.
79
Cf. PEGUERO PÉREZ, Javier. La figura de Dios en los diálogos de Jesus con las Autoridades en el Templo:
lectura de Mc 11,27-12,34 a partir de su instancia comunicativa. Roma: PUG, 2004, p. 82.
144
O diálogo é iniciado pelos opositores, ganhando uma tonalidade de inquérito80 que
tem como questão básica a pergunta pela autoridade de Jesus (cf. Mc 11,28//Mt 21,23//
Lc 20,2), procurando determinar se se trata de uma autoridade profética, sacerdotal, régia ou
messiânica e quem lha concedeu81. A postura das lideranças é compatível com o universo
religioso de então em que, diante de alguém que se apresenta como enviado de Deus, se pode
questionar a legitimidade de seus atos e a fonte de sua autoridade. A pergunta remete ao
contexto dos envios bíblicos, pois manifesta a convicção de que Jesus não age por própria
autoridade. Exigem dele a fundamentação de sua prática. Isso não significa que haja
manifestação de fé por parte dos interrogadores. Eles tão somente parecem proceder de
acordo com as expectativas de sua época82.
Essa narrativa demonstra que a fé poderia interferir nas decisões dos líderes
religiosos. Caso acreditassem em Jesus, assumiriam que ele foi enviado por Deus e que em
Deus reside, em última instância, a sua autoridade. Deveriam respeitá-lo como emissário que
torna presente o seu outorgante. No entanto, a sua recusa, presente ao longo de todo o
evangelho, ganha maior vivacidade quando Jesus toma a palavra e lhes propõe um dilema.
Jesus condiciona a revelação da fonte de sua autoridade à resolução ou resposta ao dilema em
torno da autoridade do batismo realizado por João Batista (cf. Mc 11,29//Mt 21,24),
manifestando que ele possui autoridade e por isso pode interrogar83. A pergunta feita por
Jesus o recoloca no centro da narrativa e aumenta a tensão, pois ele menciona que pode
revelar sua fonte de autoridade. Tanto nos versículos anteriores como agora, não se explicita o
que Jesus fez.
80
Cf. GRAY, Timothy C. The Temple in the Gospel of Mark. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008, p. 59-60. O tema
da autoridade é apresentado num contexto de julgamento onde a imagem de Jesus é proposta como a do Filho do
Homem que tem plena autorização para agir, inclusive para condenar o templo. Na boca de Jesus o termo
exousía será repetido quatro vezes (cf. Mc 11,28 [2x].29.33).
81
Cf. PÉREZ, La figura de Dios, p. 163.
82
Cf. BOVON, L‟Évangile selon Saint Luc, p. 53.
83
Cf. PÉREZ, Op.cit., p. 165.
84
Cf. TAYLOR, Evangelio según San Marcos, p. 564. Principalmente, em função do lugar onde a cena se dá, a
pergunta pela autoridade tem significado tanto de autoridade divina quanto de direito legal ou político.
145
Jesus. A pergunta proposta por Jesus remonta ao papel de João Batista como precursor e
coloca as lideranças religiosas num impasse, forçando-as a assumir que não sabem se o
batismo realizado por João era dos céus ou dos homens (cf. Mc 11,33//Mt 21,27//Lc 20,7).
A ignorância assumida das lideranças permite que Jesus não se revele àqueles que
não têm fé, que não acreditam em suas palavras e em seu projeto. Ao mesmo tempo, reforça
que Jesus é cônscio de sua autoridade, pois não se intimida diante do interrogatório, inverte as
posições ao colocar-se como um rabino que apresenta um enigma e é coerente ao que havia
proposto. Os “sábios” de Jerusalém assumem que não conseguem discernir entre um
verdadeiro e um falso profeta85, exonerando Jesus de submeter-se aos seus julgamentos86.
Jesus evoca quem lhe concedeu autoridade porque somente os que nele acreditarem
conseguirão aceitar que ela lhe foi dada pelo Pai. A narrativa se encaminha para que os
discípulos e o povo assumam esse processo de ver nas ações de Jesus as ações de Deus.
Mateus também a precede com o sinal da figueira seca (cf. Mt 21,18-22), mas a
complementa com a parábola dos dois irmãos (cf. Mt 21,28-32). Nessa parábola, Jesus
reafirma a sua legitimidade como enviado por Deus e mostra como aqueles que foram,
inicialmente, chamados a trabalhar na vinha não cumpriram o combinado, não aceitando as
exortações tanto de João Batista quanto de Jesus; enquanto que os tidos como pecadores
realizam a vontade de Deus. É Jesus agindo como um legislador que determina, pelo esquema
da parábola, aqueles que buscam o arrependimento e conversão.
Lucas conservou a parábola dos vinhateiros (cf. Lc 20,9-19) como texto sucessivo
a essa polêmica sobre a autoridade de Jesus, contudo o precedeu pela purificação do templo
(cf. Lc 19,45-48). O confronto estabelecido por esse ato de Jesus é apresentado como o
motivo para as lideranças tramarem a sua morte. Ele, que entrou em Jerusalém como rei
messiânico, age como quem zela pelo templo, correspondendo ao seu papel. Como em
Marcos e Mateus, o debate sobre a autoridade de Jesus prepara para o relato da paixão.
85
Cf. BARCLAY, William. Mateo. Barcelona: CLIE, 1997, v. 2, p. 300.
86
Cf. MACKENZIE, John L. Evangelio según San Mateo. In: BROWN, Raymond E. et al. Comentario bíblico
San Jeronimo. Madrid: Cristiandad, 1972, v. 3, p. 257.
146
2.2.4.5 A autoridade de Jesus e seu poder de curar pela palavra (Mt 8,5-17//Lc 7,1-10)
Mateus e Lucas narram a cura do servo do centurião. O tema da autoridade
aparece na introdução ao pedido feito pelo centurião. Este evoca a sua condição de poder
hierárquico para manifestar sua fé no poder de Jesus sobre a enfermidade de seu servo. O
episódio se passa em Cafarnaum, porém o centurião é o personagem que representa o poder
romano e a condição pagã. A fé do centurião é elogiada por Jesus e o pagão é colocado como
modelo de fé.
Um elemento novo nesse caso é que Jesus, autorizado a agir pelo próprio Deus,
estabelece um vínculo entre sua autoridade e a fé dos que desejam experimentar a salvação.
87
CARTER, O Evangelho de São Mateus, p. 268-269. [grifo do autor]
88
Cf. BOVON, L‟évangile selon Saint Luc, p. 342. – Cf. L‟EPLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de
Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 78. Para o autor, a perícope definiria os novos destinatários da salvação
como os pequenos, os “sem-direito”.
89
Cf. OVERMAN, Igreja, p. 132.
147
Evidencia-se que o milagre tem por objetivo afirmar a autoridade de Jesus e despertar para a
inclusão dos pagãos. A salvação oferecida por Jesus é movimento dinâmico que exige uma
resposta humana. O texto ainda oferece contrastes com as ocorrências em que os líderes
religiosos, legítimos representantes de Israel, o rejeitam 90. O poder de Jesus contra a
enfermidade é anúncio da ação transformadora de Deus que age por sua pessoa. Vencer as
forças do mal é tarefa do messias.
O lugar desse relato em Mateus se contextualiza por outras curas, pois é precedido
pela cura de um leproso logo quando Jesus conclui o sermão da montanha (cf. Mt 8,1-4) e
sucedido pela cura da sogra de Pedro (cf. Mt 8,14-17). Lucas apresenta a narrativa da cura do
servo do centurião depois do sermão da planície, que foi concluído com a exortação sobre a
prática da palavra (cf. Lc 6,47-49). A narrativa é seguida pela ressurreição do filho da viúva
de Naim (cf. Lc 7,11-17), colocando Jesus nos moldes dos profetas do Antigo Testamento que
realizaram ressurreições (cf. 1Rs 17,17-24; 2Rs 4,32-37).
2.3.1 E designou doze para estarem com ele e para os enviar a pregar (Mc 3,14)
Jesus subiu ao monte e chamou a si os que quis para designá-los apóstolos. “Subir
ao monte” lança o leitor no ambiente do Antigo Testamento, onde as manifestações de Deus
estavam associadas com montanhas sagradas. Assim, é a apresentação de Jesus como quem
está no Sinai e vai formar um novo povo de Deus. Mc 3,14 fala que Jesus designou doze,
número que evoca o passado tradicional de Israel, com dupla função91. Primeiramente, para
estarem com ele, ou seja, para estabelecerem intimidade com Jesus, participando de sua vida,
não segundo os moldes do rabinato, mas para chegar a ter a mesma autoridade de Jesus,
90
Em Lc, só o v. 9b; em Mt os vv. 10b-12.
91
Cf. TAYLOR, Evangelio según San Marcos, p. 260.
148
caminho possível para a fé92. E, depois, para serem enviados a pregar. O v. 15 menciona o
poder de expulsar demônios, portanto o agir dos enviados tem em vista a libertação do mal93.
2.3.2 O envio dos doze e a sua condição de ovelhas entre lobos (Mt 10,5//
Mc 6,7//Lc 9,2)
Em Mt 10,5 os doze são enviados com instruções sobre o caminho aos
destinatários prioritários, o conteúdo a proclamar e o modo de se comportar. Essas instruções
combinam com o verbo “enviar”, pois demonstram que os enviados foram devidamente
instruídos sobre a totalidade da missão, não se permitindo pensar que estejam procedendo por
livre iniciativa ou de forma contrária ao seu emissor. É Jesus quem dá de sua autoridade aos
discípulos e só depois os envia96.
92
Cf. SOARES; CORREIA JUNIOR, Evangelho de Marcos, p. 171. – Cf. PESCH, Il vangelo di Marco, p. 33.
Da comunhão com Jesus é que resulta o envio missionário dos doze. Desta forma, o vínculo entre a missão da
comunidade e a pessoa e o anúncio do evangelho é demonstrado.
93
Cf. GRASSO, Vangelo di Marco, p. 110.
94
Cf. MYERS, O Evangelho de São Marcos, p. 207.
95
Cf. MAZZEO, Michele. I Vangeli sinottici: introduzione e percorsi tematici. Milano: Paoline, 2001, p. 83.
96
Cf. LUZ, Ulrich. El Evangelio Según San Mateo: Mt 8–17. Salamanca: Sígueme, 2001, v. 2, p. 126.
149
O que eles são exortados a fazer parece ser uma assimilação da vida de Jesus.
Segundo Mateus, as duas primeiras recomendações (cf. Mt 10,5-6) estão associadas ao
privilégio salvífico de Israel, daí a recomendação de evitarem os gentios e samaritanos e
procurarem as ovelhas perdidas de Israel97. O próprio Jesus utilizou esse último argumento
quando da cura da filha da mulher cananeia (cf. Mt 15,24); contudo, lá a aparente resistência
de Jesus servia para mostrar a adesão dos pagãos. Jesus fora apresentado em Mt 2,6 como
aquele que apascentaria o povo de Israel, mas depois da ressurreição os discípulos são
enviados a todos os povos e, de alguma forma, revivem os encontros que Jesus teve também
com os pagãos (cf. Mt 8,5-13 – centurião; Mt 8,28-34 – endemoninhados gadarenos; Mt
15,21-28 – mulher cananeia). Para Carter, as “ovelhas perdidas de Israel” são Israel na sua
totalidade, enquanto nação desgovernada e abusada por falsos pastores98.
Em relação à forma de proceder, o texto diz que devem se abster de posses, tendo
apenas o necessário para o sustento, e que devem entrar nos povoados, permanecendo onde
foram acolhidos, testemunhando contra os que não os acolherem (cf. Mt 10,9-14). Essas
instruções estão relacionadas com a organização das primeiras comunidades cristãs.
97
Cf. KEENER, Craig S. The Gospel of Matthew: a socio-rhetorical commentary. Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans, 2009, p. 315.
98
Cf. CARTER, O Evangelho de São Mateus, p. 306.
99
Cf. FABRIS, Rinaldo. O Evangelho de Lucas: tradução e comentários. In: FABRIS, Rinaldo e MAGGIONI,
Bruno. Os Evangelhos (II). 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 98. A dýnamis de Jesus se manifesta presente nos
apóstolos e por meio dos gestos de salvação o reino de Deus é revelado.
150
refere às aldeias como a totalidade conhecida de povoados e também por mencionar que as
curas eram realizadas por toda parte. Na perspectiva lucana, que depois em Atos amplia o
aspecto missionário, certamente se tem a intenção de mostrar o avanço do evangelho, apesar
das dificuldades e que os apóstolos são colaboradores do Messias100.
Mateus e Lucas ainda complementam esses relatos de envio com uma exortação
sobre a condição dos doze. São enviados como ovelhas em meio a lobos (cf. Mt 10,16a//
Lc 10,1.3). A comparação feita por Jesus aponta para o conflito entre a comunidade cristã e a
judaica, tendo, sem dúvida, como pano de fundo a polêmica de Jesus com as autoridades
religiosas de sua época. Assim, da mesma forma como ele, uma ovelha, acabou sendo atacado
pelos lobos, também os seus discípulos podem experimentar a mesma situação. Desta
maneira, a recomendação de Jesus é complementada em Mateus com o “sede prudentes como
as serpentes e simples como as pombas” (cf. Mt 10,16b). Lucas, além de fornecer um aspecto
metodológico da missão, ao afirmar que são enviados de dois a dois (cf. Lc 10,1), opta por
retomar as recomendações sobre o comportamento dos missionários, manifestando certa
urgência do anúncio do Reino de Deus (cf. Lc 10,4-12). Mc 6,7 fala do envio de dois a dois,
constituídos de autoridade sobre os espíritos imundos. Assim, a autoridade de Jesus, enquanto
prerrogativa divina, é transmitida à comunidade na constituição dos Doze101.
100
Cf. ROSSÉ, Il Vangelo di Luca, p. 313.
101
Cf. AZEVEDO, Walmor Oliveira de. Comunidade e missão no Evangelho de Marcos. São Paulo: Loyola,
2002, p. 175. – Cf. SOARES; CORREIA JUNIOR. Evangelho de Marcos, p. 246.
102
Cf. CARTER, O Evangelho de São Mateus, p. 576. O autor menciona que a expressão “vossas sinagogas”
traduz ideia de distância e hostilidade.
151
Os versículos seguintes, tanto em Mateus quanto em Lucas, retomam assassinatos
de justos no Antigo Testamento (cf. Mt 23,35//Lc 11,50-51), criando uma conexão de rejeição
aos enviados do Senhor que parte de Abel (cf. Gn 4,8-10) e chega ao sacerdote Zacarias (cf.
2Cr 24,20-22), evidenciando o comportamento resistente do povo e o agir assassínio de seus
líderes diante das propostas do Senhor103. Mateus amplia sua crítica com uma condenação à
cidade de Jerusalém em que se afirma que a cidade mata os profetas e apedreja os que lhe
foram enviados (cf. Mt 23,37) e revela uma assimilação de Mt 10,17-22104. Em Lc 13,34
encontramos a mesma acusação contra a cidade, precedida pela afirmação de Jesus de que não
convém ao profeta morrer fora de Jerusalém105.
103
Cf. OVERMAN, Igreja, p. 350. Para o autor, Mateus responsabiliza as autoridades judaicas pelo caos e pela
destruição ligados à primeira revolta judaica contra Roma, em 66-67 d.C.
104
Cf. TRILLING, Wolfgang. Vangelo secondo Matteo. Roma: Città Nuova, 2001, p. 402.
105
Cf. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, p. 580.
106
Cf. FABRIS, O Evangelho de Lucas, p. 246.
107
Cf. L‟EPLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 264. – O
Espírito de Deus que deu poder a Jesus durante sua missão é agora prometido à comunidade e em At 2,1-21
manifestará a fidelidade de Deus ao Filho. Cf. BYRNE, Brendan. The hospitality of God: a reading of Luke‟s
Gospel. Strathfield: St Pauls, 2000, p. 192.
152
mesmo Espírito para agir em nome de Jesus. O Senhor ressuscitado continua a sua obra na
comunidade pela ação do Espírito108.
O fato de Jesus enviar o Espírito demonstra sua alta posição junto do Pai. É pela
pessoa de Jesus que a promessa do Pai se realiza. Jesus pode ofertar à comunidade aquele
dom que recebeu do Pai. O versículo precede a narrativa da ascensão quando Jesus, tendo
cumprido sua missão, é elevado ao céu enquanto é adorado pelos seus discípulos (cf.
Lc 24,50-53). “A potência do Espírito é a habilitação carismática dos enviados, não como
força anônima ou mágica, mas como sinal da presença permanente do Senhor
ressuscitado”109. Isso torna-se ponto determinante da identidade cristã, pois o Espírito Santo é
aquele que manifesta a presença atualizadora de Cristo e não o contrário110.
108
Cf. ROSSÉ, Il Vangelo di Luca, p. 120.
109
FABRIS, O Evangelho de Lucas, p. 246.
110
Cf. BOVON, François. Luc le théologien. Genève: Labor et Fides, 2006, p. 224. Bovon resume a discussão
iniciada por Schweizer acerca da relação entre Jesus e o Espírito. Para Eduard Schweizer, diferente de Mateus e
Marcos, em Lucas Jesus não é um submisso ao Espírito, mas sim o seu mestre. Bovon ressalta que Jesus só será
mestre do Espírito na hora de sua elevação, quando o transmite a seus discípulos.
111
Cf. CASALEGNO, Lucas, p. 77. Lucas recorre aos modelos interpretativos do Antigo Testamento,
demonstrando que há continuidade entre a história da ação de Deus no passado e no presente de sua narrativa.
112
Cf. ROSSÉ, Il Vangelo di Luca, p. 48. – Cf. HILL, Brennan R. Jesus, the Christ: contemporary perspectives.
Mystic: Twenty-Third Publications, 2004, p. 95.
113
Cf. FITZMYER, El Evangelio según Lucas, p. 85. Ressalta o uso da “passiva teológica” na narrativa dos
anúncios.
153
anúncio propriamente dito. O nome das duas crianças é acompanhado daquilo que
representam e, no caso de Jesus, Lucas já o apresenta como Filho de David e Filho de Deus,
colocando Maria como sua primeira discípula114. A missão de Gabriel na narrativa do anúncio
a Maria se distingue da anterior por revelar a gratuidade de Deus. Se para Zacarias o anúncio
é uma resposta de Deus às suas preces, para Maria ele é a revelação de quem é o salvador que
continua agindo junto de seu povo115.
Interessante notar que, tão logo o anjo cumpre sua missão, realiza-se o que foi
anunciado e ele desaparece da narrativa116. Gabriel é o enviado para comunicar os desejos de
Deus, estabelecendo o intercâmbio entre as esferas celeste e terrestre. É o mensageiro que
transita entre céu e terra e comunica aos humanos uma mensagem/palavra de Deus que é
eficaz, pois se realiza prontamente, mesmo quando o interlocutor não acredita naquilo que
ouviu, como é o caso de Zacarias (cf. Lc 1,18-20).
2.6 Envio de anjos por parte do Filho do Homem (Mt 13,41; 24,31; Mc 13,27)
Em Mt 13,41, na explicação sobre a parábola do joio, Jesus afirma que, da mesma
forma como se junta o joio para queimá-lo, no fim dos tempos o Filho do Homem mandará os
seus anjos para colher tudo o que causa escândalo. A imagem é de uma purificação da terra,
pois os anjos extirparão todas as causas de queda e todos os que cometem iniquidades117.
Esses não participarão do Reino do Filho do Homem. É uma imagem do triunfo de Deus
sobre o mal presente no mundo118. Os enviados cumpririam essa missão, realçando o poderio
de Deus e evitando que os discípulos sejam vencidos por algum tropeço.
114
Cf. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 331-332.
115
Cf. GERBER, Daniel. « Il vous est né un Sauveur »: la construction du sens sotériologique de la venue de
Jésus en Luc-Actes. Genève: Labor et Fides, 2008, p. 62.84.
116
Westermann afirma que os anjos estão ligados a um momento mais primitivo da história da humanidade,
estabelecendo a relação entre Deus e história. Duas observações são importantes: a) as narrativas dos anjos são
pontuais, elas não permitem por si mesmas estabelecer um contexto, daí que sua atuação junto da humanidade é
sempre no momento presente, não estando vinculados nem ao passado nem ao futuro; b) os anjos pululam
morbidamente em tempos de retorno ao “infantil”, ao irreal. Cf. WESTERMANN, Claus. O anjo de Deus não
precisa de asas: o que a Bíblia diz sobre os anjos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 62-65.
117
Cf. OVERMAN, Igreja, p. 221. Segundo Overman, iniquidade (anomi,a) é todo “tipo de ação, comportamento
ou atitude contrário à interpretação mateana da Lei e da natureza do seguimento ensinado por Jesus”.
118
Cf. CARTER, O Evangelho de São Mateus, p. 376.
154
Mt 24,31 e Mc 13,27 falam do envio de anjos pelo Filho do Homem com a
finalidade de reunir os escolhidos dos quatro cantos da terra119. O envio de anjos seria uma
atribuição própria de Deus, e então os evangelistas querem realçar a autoridade de Jesus
enquanto Filho do Homem, pois lhe foi dado todo o poder tanto no céu como na terra (cf.
Mt 28,18). Reunir os eleitos recorda a ação de Deus que promete em Dt 30,4 que, mesmo que
o povo se dispersasse, ele o congregaria. Zc 2,6 fala da dispersão do povo120.
É uma clara alusão à rejeição sofrida pelos profetas enviados a Israel, que se
verifica também em relação a Jesus e que culminará com sua execução 123. Sob a perspectiva
do envio o texto demonstra o quanto o enviado se dedica à sua missão, a ponto de dar a vida
119
Cf. SCHNACKENBURG, Vangelo secondo Marco, p. 339. O teor apocalíptico do texto esconde uma palavra
de exortação e conforto para o tempo presente. Mais que influência da apocalíptica judaica, o texto demonstra
coerência com o anúncio da paixão de Mc 8,31 onde o título Filho do Homem é aplicado a Jesus no sentido de
que ele possui uma autoridade divina, pois é o Messias (p. 191).
120
Myers vê na referência às extremidades de céu e da terra a aurora de um novo mundo, um universo renovado,
onde permanece apenas o poder de Deus. Cf. MYERS, O Evangelho de São Marcos, p. 409. – Para Taylor, a
reunião do povo disperso era uma esperança bastante familiar à tradição bíblica: Is 11,11.16; 27,12; Ez 39,27;
Zc 2,6-11; Sl 105,47; 146,2. Cf. TAYLOR, Evangelio según San Marcos, p. 625-626.
121
Cf. FRANCE, R. T. The Gospel of Mattew. Grand Rapids: Eerdmans, 2007, p. 809.
122
Cf. JOHNSON, Luke Timothy. The Gospel of Luke. Collegeville: Liturgical Press, 1991, p. 305.
123
Cf. OVERMAN, Igreja, p. 325. Overman vê, além da questão da morte dos enviados, e, particularmente, a
morte de Jesus; outra relacionada à teodiceia, que é a da destruição de Israel que aconteceu na época de Mateus.
Assim, o texto responderia também à pergunta: “Como e por que Jerusalém foi destruída e quem foi o
responsável por isso?”.
155
para concretizar a tarefa que lhe foi proposta. A fidelidade do enviado o impede de qualquer
negociação que seja contrária aos interesses do proprietário124.
Os Atos dos Apóstolos nos dão uma visão de como a comunidade cristã
compreendeu sua tarefa de continuadora da missão de Cristo. Nessa segunda parte da obra
lucana há apenas duas menções ao envio de Jesus ou da palavra de Jesus. As demais tratarão
do envio de pessoas para realizar alguma obra ou tarefa ligada à expansão do Evangelho.
3.1 Jesus, o Messias enviado e portador da palavra de Deus (At 3,20; 10,36)
A primeira ocorrência de envio relacionada a Jesus se dá quando Pedro faz seu
discurso no Templo. Em At 3,20, Pedro exorta os ouvintes à conversão apresentando Jesus
como o Messias que é enviado da parte de Deus, ligando o momento presente à toda história
da salvação125. O verbo “enviar” está no futuro, permitindo a compreensão de que o envio já
dado se repita àqueles ouvintes, não remetendo à encarnação mas sim à parusia126. Trata-se de
uma compreensão apocalíptica, expressa pelas imagens de renovação e da vinda de Jesus
caracterizada como um envio127. É preciso converter-se para que o Senhor envie o Cristo que
já foi pregado, o conhecido Jesus, ou seja, converter-se para acolher aquele que vem como
salvador. Para Lucas, “conversão, fé e perdão dos pecados são três momentos do processo
salvífico que têm a sua iniciativa em Deus e o centro de realização em Jesus”128.
124
Cf. ALETTI, Jean-Noel. Jesu-Cristo: ¿factor de unidad del Nuevo Testamento?. Salamanca: Cervantes, 2000,
p. 216, nota 34. Aletti, de maneira precisa, afirma que o tema do envio do Filho por Deus está presente na
parábola apenas de modo indireto.
125
Cf. BOVON, Luc le théologien. Genève: Labor et Fides, 2006, p. 154.
126
Cf. MARGUERAT, Daniel. Les Actes des Apôtres: 1-12. Genève: Labor et Fides, 2007, p. 133. Uma tradição
do retorno de Elias pode ter influenciado tal uso do envio.
127
Cf. ROLOFF, Jürgen. Hechos de los Apostoles. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 107-108. – Também Bianchi
concorda que a imagem de restauração presente no texto é devedora da escatologia judaica. Assim, a referência
de Pedro à segunda vinda de Jesus, obedecendo a um desejo de Deus, corrobora para uma ideia de restauração da
ordem primordial, inclusive, com a ideia de recondução de Israel à própria terra. Cf. BIANCHI, Francesco. Atti
degli Apostoli. Roma: Città Nuova, 2003, p. 47.
128
FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola, 1991, p. 90.
129
Cf. KÜRZINGER, Josef. Atti degli Apostoli. 3. ed. Roma: Città Nuova, 1982, p. 103-104. Se Moisés é o
salvador e guia de Israel na libertação da escravidão e da miséria, Jesus é o salvador e guia do novo povo de
Deus. Em Jesus Cristo se decide tanto a salvação quanto a condenação do mundo.
156
havia anunciado que outro profeta semelhante a ele seria suscitado por Deus e quem não o
ouvisse seria exterminado (cf. Dt 18,15.18). Moisés, o enviado, está colocado como o profeta
que fala desse novo profeta messiânico, chamado por Pedro como aquele que será enviado por
Deus aos que se converterem.
Após recordar os dois enviados, Estêvão relembra que todos os profetas foram
perseguidos e mortos (cf. At 7,52) e que os seus ouvintes se tornavam também homicidas e
traidores por não aceitarem Jesus como o Filho do Homem, salvador da humanidade (cf.
130
Cf. CASALEGNO, Alberto. Ler os Atos dos Apóstolos: estudo da teologia lucana da missão. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 166.
157
At 7,55-56). Colocando Estêvão na mesma condição dos profetas bíblicos, os Atos
apresentam o seu apedrejamento, manifestação clara da rejeição sofrida pelos primeiros
cristãos (cf. At 7,57-60).
O relato dessa visita de Ananias ilustra como o envio se deu e como a sua ação só
tem sentido se vinculada ao outorgante que o enviou. Ao mencionar que foi enviado, Ananias
valida aquilo que está realizando e confere, pela autoridade de seu comissionamento, um
poder a Saulo. Ananias é um enviado do Senhor, ou seja, de Cristo, porém o relato está
organizado de maneira similar aos enviados de Deus. Isso aponta para a nova condição de
Cristo junto do Pai.
131
Cf. MARGUERAT, Daniel. A primeira história do Cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São Paulo:
Loyola/Paulus, 2003, p. 213.
158
Além disso, o relato da visão de Ananias faz paralelo com a visão que Saulo teve
no caminho de Damasco. Então, a partir dessas visões se estabelece a função dos enviados e
as atividades a serem realizadas por eles se vinculam a uma ação divina 132. Ananias cumpre
seu papel de enviado e somente será recordado por Paulo em At 22,12. Fica evidente que o
envio de Ananias é pontual, para uma tarefa específica, tendo suprimida sua procuração,
imediatamente após a realização da tarefa.
132
Marguerat, inspirado em Aletti, define que nos Atos dos Apóstolos “as intervenções divinas podem assumir
três funções distintas. Ou elas precedem os acontecimentos, e assumem uma função programática (em forma de
visão, sonho ou oráculo); [...]. Ou elas exercem uma função performativa, no momento em que Deus intervém
salvando, punindo ou guiando o curso dos acontecimentos; [...]. Ou então elas cumprem um função
interpretativa, quando se situam após os acontecimentos, para lhes indicar o sentido ou para justificá-los; [...]”
(Ibid., p. 98.). [grifos do autor]
133
Cf. ROLOFF, Jürgen. Hechos de los Apostoles. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 224.
134
Cf. MARGUERAT, A primeira história, p. 215.
159
a assembleia de Jerusalém e o acordo acerca dos preceitos a serem seguidos pelos cristãos
(cf. At 15,5-21), é enviada uma comitiva a Antioquia, região onde surgiu o conflito, com o
objetivo de esclarecer alguns pontos da vivência cristã e sua identidade (cf. At 15,1-4).
A decisão tomada pela assembleia é comunicada por escrito, mas será levada
pelos membros da comunidade, acompanhados por Paulo e Barnabé. Os enviados Judas e
Silas têm a tarefa de comunicar de viva voz o conteúdo da carta (cf. At 15,27), sendo,
portanto, mensageiros autorizados para interpretar a mensagem apresentada, cuja reputação é
afirmada como a de notáveis entre os irmãos (cf. At 15,22).
Por três vezes se utiliza o verbo enviar (cf. At 15,22.25.27), sendo que nas duas
primeiras se usa pémpō e na última apostéllō. A comunidade de Jerusalém quer evidenciar
que os seus representantes têm legitimidade suficiente para definir as práticas religiosas a
serem assumidas em Antioquia, Síria e Cilícia (cf. At 15,23). O fato de serem acompanhados
por Paulo e Barnabé corrobora tal autoridade, ainda mais por se ter mencionado que esses
dois são homens que expuseram suas vidas pelo nome de Cristo (cf. At 15,26).
135
Cf. RIUS-CAMPS, Josep. El camino de Pablo a la misión de los paganos: comentario lingüístico y exegético
a Hch 13-28. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 81.
136
Cf. CASALEGNO, Ler os Atos dos Apóstolos, p. 287.
160
acordo com Murphy-O‟Connor, a viagem à Macedônia tinha por finalidade controlar os
judaizantes, tarefa que será realizada posteriormente por Paulo, conforme 2Cor 1,16137.
3.3.5 Discurso de Paulo em que afirma que foi enviado (At 26,17)
No discurso de Paulo diante do rei Agripa encontramos o uso do verbo apostéllō.
Paulo reconta a visão que teve no caminho para Damasco e como experimentou a revelação
de Cristo à sua pessoa. Em At 26,17 Paulo recorda que uma das falas do Senhor na visão era a
de que ele é enviado aos gentios. No relato de At 9,15 é a Ananias que se informa sobre o
envio de Paulo aos gentios. Mas na defesa diante de Agripa, Paulo apresentará sua missão
como o argumento que o qualifica como enviado (cf. At 25-26). Marguerat credita isso ao
futuro papel de Paulo e, citando Bechter, assinala que, diferente de At 9, o comissionamento
de Paulo provém exclusivamente do Jesus celeste138. A sua missão é clara: abrir os olhos dos
gentios e convertê-los das trevas para a luz, de Satanás para Deus, a fim de santificá-los
(cf. At 2,18). Paulo reconhece que, antes de lançar-se no anúncio do Evangelho junto aos
gentios, permaneceu em Damasco, em Jerusalém e regiões da Judeia (cf. At 26,19-20).
Paulo é o enviado de Cristo, pois foi por ele comissionado, segundo esse relato
junto de Agripa. Na verdade, importa ressaltar aqui que Lucas faz releituras da revelação do
Senhor a Paulo, permitindo compor uma imagem do apóstolo que se coadune com a de um
enviado. Contudo, o termo apóstolo usado por Paulo diz respeito ao seguimento de Jesus
Cristo e não de um envio direto da parte de Deus ou por ele outorgado.
A cristologia paulina, embora considere o envio de Jesus, geralmente, não faz uso
dos verbos apostéllō e pémpō para designar sua missão. Os envios mencionados por Paulo
estão mais relacionados aos colaboradores da missão do apóstolo. Existem também textos
análogos em que se subentende a ideia de envio ou de uma missão do Filho (cf. Fl 2,6-11;
Ef 1,3-14 ).
137
Cf. MURPHY-O‟CONNOR, Jerome. Paulo: biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000, p. 302.
138
MARGUERAT, A primeira história, p. 219.
161
4.1 Jesus, o enviado na plenitude dos tempos em carne semelhante à do pecado
para tornar filhos de Deus (Gl 4,4.6; Rm 8,3)
Em Gl 4,4 Paulo menciona que Deus sempre se comunicou com a humanidade,
mas na plenitude dos tempos Deus enviou139 o seu Filho, nascido de uma mulher. Paulo quer
falar da condição humana de Jesus e de sua sujeição à lei140. Contudo, ao usar o verbo enviar
Paulo remete o leitor à profunda convivência do Filho com Deus, distinguindo-o daqueles que
serão adotados por meio dele141. O envio do Filho de Deus marca a transitoriedade da Lei. A
Lei tem sua função apenas no tempo anterior, aquele do aprisionamento da humanidade ao
pecado142. Ferreira chama a atenção para o fato de que o envio do Filho é uma intervenção
divina, como o será o envio do Espírito, que rompe com o messianismo judaico e apresenta o
projeto libertador do Pai143. Enviar o Filho é promover a adoção desejada por Deus144.
É em função de se terem tornado filhos no Filho, uma adoção realizada pelo Filho,
que o Pai envia o Espírito Santo sobre os crédulos em Jesus (Gl 4,6)145. Essa intervenção
divina cria um vínculo de intimidade entre a humanidade e o Pai, passando pelo Filho. É o
Espírito do filho146 que então permite aos humanos redimidos chamar a Deus de Abba e agir
como maduros na fé147.
139
Cf. FUNG, Ronald Y. K. The epistle to the Galatians. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1988, p. 181. O fato
de usar o verbo enviar, embora não seja uma declaração cristológica de Paulo, revela seu pensamento acerca da
preexistência do Filho (cf. 1Cor 9,6; 10,4; Col 1,15-17).
140
Cf. BIANCHINI, Francesco. Lettera ai Galati. Roma: Città Nuova, 2009, p. 104. A modalidade de envio do
filho não é gloriosa, mas apresenta sim um aspecto de humilhação. Ao dizer “nascido de mulher” indica
condição humana e também a sua fragilidade.
141
Cf. VANHOYE, Albert. Lettera ai Galati. Milano: Paoline, 2000, p. 107. A sugestão da preexistência do
Filho funciona para distingui-lo dos outros humanos, contudo, ele permanece sujeito à lei, num claro sinal de
humildade. Também a preexistência do Espírito será suposta em Gl 4,6.
142
Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. Carta aos Gálatas. In: BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo (II). São
Paulo: Loyola, 1991, p. 79.
143
Cf. FERREIRA, Joel Antônio. Gálatas: a epístola da abertura de fronteiras. São Paulo: Loyola, 2005, p. 130.
– Matera também concorda que as menções ao envio em Gl 4,4.6 expressam a iniciativa do Pai. Cf. MATERA,
Frank J. Galatians. Collegeville: Liturgical Press, 2007, p. 150.
144
Cf. REUMANN, John. Adopt, Adoption. In: GOWAN, Donald E. The Westminster Theological Wordbook of
the Bible. Lousville: Westminster John Knox, 2003, p. 4.
145
Cf. TARAZI, Paul Nadim. Galatians: a commentary. New York: St. Valdimir‟s Seminary, 1994, p. 200.
146
Cf. ZORZOLI, Ruben O. Gálatas, Efesios, Filipenses, Colosenses y Filemón. El Paso: Mundo Hispano, 2001,
p. 69. Embora existam expressões similares (Fl 1,19; Rm 8,9), “espírito do Filho” ocorre somente em Gl 4,6.
147
Cf. BARCLAY, William. Gálatas e Efésios. Barcelona: CLIE, 1995, p. 58. – Cf. VANHOYE, Lettera ai
Galati, p. 110.
162
Em meio à distinção entre espírito e carne, Paulo, em Rm 8,3, afirma que Deus
enviou o Filho à semelhança da carne do pecado, condenando por ele, na carne, o pecado 148.
No caso de Romanos tal uso ajuda a compreender a condição espiritual de Jesus, não em
oposição à condição humana, mas como fundamento necessário para que o pecado seja
destruído. Rm 8,3 pode ser melhor compreendido se aproximado de Gl 4,4, trata-se do envio
do Filho na condição humana149.
Ao dizer que o Filho foi enviado numa carne semelhante à do pecado, Paulo
expõe sua compreensão da encarnação. O Filho de Deus vem ao mundo por ação de Deus. Em
Jesus os dois mundos antagônicos, o do Espírito e o do carne se encontram e este, marcado
pelo pecado, é redimido. Para Pitta, o uso do verbo “enviar” evoca a Sabedoria e o Espírito de
Deus de Sb 9,10.17150. A encarnação enquadra-se num amplo desejo de Deus de comunicar-se
e o Filho cumpre sua parte nesse desígnio ao abandonar sua condição divina e fazer-se
humano servidor (cf. Fil 2,6-7).
Tal entendimento de sua missão se deve, acima de tudo, ao fato de que Paulo se
compreende como “apóstolo” de Cristo, chamado para uma missão específica (cf. Rm 1,1;
148
Cf. LYONNET, Stanislas. Etudes sur l‟Epître aux Romains. Roma: PIB, 2003, p. 240. O autor interpreta
Rm 8,2-4 à luz de Jr 31,31-37 e Ez 35-39. Realça que, segundo a compreensão judaica, a aliança proposta
em Jr 31,31-37 indicaria um tempo messiânico marcado pelo fiel cumprimento da lei. O que Jesus faz é libertar
o fiel da lei, manifestando o seu julgamento contra o pecado.
149
Cf. BYRNE, Brendan. Romans. Collegeville: Liturgical Press, 1996, p. 243. – Cf. RITT, pempō enviar,
p. 874. Para Ritt, Rm 8,3 interpreta soteriologicamente o envio do Filho de Deus ao mundo da existência
humana, criada e mortal, pressupondo a preexistência do Filho de Deus e prevendo a entrega do Filho à morte.
150
Cf. PITTA, Antonio. Lettera ai Romani: nuova versione, introduzione e commento. Milano: Paoline, 2001,
p. 289.
151
Cf. BRAKEMEIER, Gottfried. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto: um
comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008, p. 28.
163
1Cor 1,1; 2Cor 1,1 e Gl 1,1152). O substantivo originado de enviar traduz a condição daqueles
que experimentaram uma convivência com o Senhor (no caso de Paulo, com o Ressuscitado).
Acerca do termo “apóstolo” usado em Rm 1,1, Rodrigues descreve como nessa atribuição se
explicita a condição de enviado, enquanto chamado para uma missão:
152
Cf. FERREIRA, Joel Antônio. Gálatas: a epístola da abertura de fronteiras. São Paulo: Loyola, 2005, p. 34.
Paulo se nomeia apóstolo enviado por Jesus Cristo e Deus Pai, frisando que sua missão não nasce de uma pessoa
humana, sendo portanto autorizado, apesar de não pertencer ao grupo dos Doze.
153
RODRIGUES, Antonio M. A. Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado a ser apóstolo (Rm 1,1): a
autocompreensão da missão apostólica de Paulo na introdução das maiores epístolas. Belo Horizonte: CES,
2001. Dissertação de Mestrado, p. 65. [grifo do autor]
154
Cf. KÜHSCHELM, R. Apóstolo. In: DBT, p. 26-27.
155
Cf. RICHARD, Earl J. First and Second Thessalonians. Collegeville: The Liturgical Press, 1995, p. 335. Em
outras passagens bíblicas pode-se ver atuação de Deus semelhante à proposta em 2Ts. Nelas Deus permite que
determinados eventos aconteçam, apesar da natureza deles ser contrária ao jeito e agir de Deus (cf. 1Rs 22,23;
Sl 81,12; Ez 14,9; Rm 11,25; Mc 4,11-12).
156
Cf. SIMPSON, J.W. Jr. Tessalonicenses, Cartas aos. In: HAWTHORNE, G. et al. Dicionário de Paulo e suas
cartas. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 1198.
164
5 Pedro como enviado e o Espírito Santo enviado (1Pd 1,1.12)
157
Cf. MAZZEO, Michele. Lettere di Pietro, Lettera di Giuda. Milano: Paoline, 2002, p. 52.
158
Cf. THEVISSEN, G. A Primeira Carta de Pedro. In: THEVISSEN, G. et al. As Cartas de Pedro, João e
Judas. São Paulo: Loyola, 1999, p. 32.
159
COTHENET, Edouard. As Epístolas de Pedro. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 22.
160
Cf. VANHOYE, Albert. A mensagem da Epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 53.
161
A superioridade de Cristo sobre os anjos aparece também em Ef 1,20-21; Cl 1,16; 2,10.15; 1Pd 3,22.
165
Os anjos, certamente, têm o seu lugar na realização do desígnio de Deus, mas é um
lugar subordinado. Cristo glorificado é incomparavelmente mais importante que
eles. Ele é, para nós, mais que um simples intermediário, pois é no nível mais
profundo de seu ser que ele se tornou para nós, por sua paixão, o mediador entre
Deus e a humanidade162.
Desta forma, os anjos estão a serviço de Jesus Cristo e obedecem às suas ordens.
Eles, que sempre foram considerados como enviados da parte de Deus, são também, na
perspectiva cristã, enviados da parte do Filho de Deus. A tarefa que devem realizar diz
respeito não a um anúncio do Evangelho, mas sim à cooperação dos crédulos para que
alcancem a salvação.
7 Sistematização bíblico-teológica
162
VANHOYE, Albert. Structure and Message of the Epistle to the Hebrews. Roma: PIB, 1989, p. 49.
163
Cf. KRINETZKI, Leo. A relação do Antigo Testamento com o Novo. In: SCHREINER, J. Palavra e
mensagem: introdução teológica e crítica aos problemas do AT. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 483.
164
Cf. MALANGA, Eliana Branco. A Bíblia Hebraica como obra aberta: uma proposta interdisciplinar para
uma semiologia bíblica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 232.
166
verdadeiro profeta165. Assim, ter fé é também acreditar em Jesus e ter esperança é participar
de seu projeto, confiando na plena realização do que ele anunciou.
165
Cf. FREYNE, A Galiléia, p. 94. – Cf. PESTANA, Álvaro César. Provérbios de Jesus: frases poderosas de
Jesus de Nazaré. São Paulo: Vida Cristã, 2002, p. 171.
166
“A história é distinta de Deus, mas permanece sempre intimamente relacionada com Ele porquanto teve sua
origem em Deus, desenvolve-se sob o impulso da força e da promessa dele e se ordena para Ele, sem que por
isso dependa de Deus” (RUIZ ARENAS, Octavio. Jesus, epifania do amor do Pai. São Paulo: Loyola, 1995, p.
63).
167
Sobre o passivo teológico, Barbaglio comenta que “permitia à língua bíblica evitar habilmente a menção
explícita de Javé, nome sagrado e impronunciável pelo judaísmo pós-exílico. A construção tornou-se, depois,
uma constante literária, não alterada no NT” (BARBAGLIO, Giuseppe. À comunidade de Corinto: Primeira
Carta. In: BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo (I). São Paulo: Loyola, 1989, p. 169). – Também:
ZERWICK, Max. Biblical Greek: ilustrated by examples. Roma: PIB, 1963, p. 76.
168
Cf. DURRWELL, F. X. Lo Spirito Santo. Apud: GAŠPAR, Veronika. Cristologia pneumatologica: in alcuni
autori postconciliari (1965-1995). Status quaestionis e prospettive. Roma: PUG, 2000, p. 260.
167
pessoa de Jesus nos evangelhos não se afasta nunca do fato de que ele é o Cristo, ungido com
o Espírito de Deus. As narrativas sobre o batismo de Jesus o projetam como quem está
cumulado do Espírito de Deus, a exemplo dos profetas bíblicos, e que se deixa guiar por ele
no exercício de sua tarefa de inaugurar uma nova era169.
169
Cf. DUNN, James D. G. Baptism in the Holy Spirit. Philadelphia: The Westminster Press, 1970, p. 32.
170
Cf. FISICHELLA, Rino. Gesù di Nazaret profezia del Padre. Milano: Paoline, 2000, p. 138.
171
Cf. GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Liberationis mysterium: o Projeto sistemático da teologia da
libertação. Um estudo teológico na perspectiva da regula fidei. Roma: PUG, 1997, p. 54.
172
Cf. SEGALLA, Giuseppe. A cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1992, p. 57.
173
Cf. LORIZIO, Giuseppe. Teologia della rivelazione ed elementi di cristologia fondamentale. In: LORIZIO,
Giuseppe (org). Teologia fondamentale: fondamenti. Roma: Città Nuova, 2005, p. 84. – “Os milagres fazem
parte integrante do anúncio do Reino. Jesus inaugura o Reino não apenas na Palavra, mas também no combate
contra as potências do mal, „vivificando‟, seja corporal como espiritualmente” (Cf. DUQUOC, Ch. Cristologia:
ensaio dogmático I – o homem Jesus. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 80).
168
Os relatos em que aparece o termo exousía evidenciaram a melhor forma de
compreender os milagres de Jesus. Eles são atos de dynamis que revelam a autorização de
Jesus para agir em nome de Deus174. Eles não o colocam imediatamente como Deus, mas
como um agente, alguém a quem foi dado um poder destinado a manifestar a salvação. Não se
trata de um exibicionismo do poder de Deus, mas sim um anúncio claro de que era chegada a
hora da conversão, pois o autorizado demonstrava o momento oportuno de se voltar para
Deus. Nesses relatos de exousía se evidencia a dependência de Jesus em relação a Deus. As
perguntas sobre sua autorização conduzem o leitor à única resposta possível: Jesus pode agir
como Deus porque ele foi constituído legitimamente para isso. O reconhecimento de que
Jesus é o “Santo de Deus” (cf. Mc 1,24) indica que a comunidade cristã só pode compreender
sua exousía numa relação de proximidade com o Pai175. A consagração de Jesus não se
destina também a uma autosuficiência, mas se dá para que o mundo reconheça no enviado
aquilo que é característico de seu emissor.
174
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 113.
175
Cf. HASENHÜTTL, G. Carisma: princípio fondamentale per l‟ordinamento della chiesa. Bologna: EDB,
1973, p. 9.
176
Cf. SCHERER, “Justo sofredor”, p. 203.
177
Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. À comunidade de Filipos, p. 378.
178
Cf. GORMAN, Michael J. Apostle of the Crucified Lord: a theological introduction to Paul & his letters.
Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2004, p. 211.
169
Percebe-se que, embora o Novo Testamento tenha feito uso do verbo “enviar”
para designar a missão de Jesus, não se pode construir por ele uma cristologia do envio. Não
há dúvida de que num título como “Filho do Homem” há nítida revelação de envio. Em
Marcos, por exemplo, o Filho do Homem179 é aquele que vem da parte de Deus para realizar a
consumação da obra de salvação. Ainda em Marcos, é perceptível que “Filho do Homem” é a
autodesignação de Jesus180. Em Atos dos Apóstolos Jesus é chamado de enviado enquanto
consumação da parusia. Compilado sob os moldes de um novo Moisés181, Jesus é o enviado
de Deus para conduzir o povo à plena libertação, extrapolando as esferas materiais com uma
salvação que é integral.
Se o verbo enviar não foi tão utilizado para designar a ação de Jesus, seu uso será
privilegiado para definir a ação dos apóstolos como mensageiros de salvação 184. Também é
em função de uma concepção da glorificação de Jesus que os autores neotestamentários
apresentam o Cristo como quem envia os seus discípulos e lhes concede a sua exousía. Há
uma constante preocupação dos sinópticos em propor que o envio dos apóstolos está em
conformidade com o que o Mestre faz. Cria-se então uma referência de envio sob os moldes
179
Cf. DUNN, James D. G. Jesus y el Espiritu. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1981, p. 139.
180
Cf. KIM, Seyoon. “The „Son of Man‟” as the Son of God. Tübingen: Mohr, 1983, p. 1-3. O título “Filho do
Homem” (cf. Mc 2,10.28; 8,31.38; 9,9.12.31; 10,33.45; 13,26; 14,21.41.62) funciona como uma afirmação de
“Filho de Deus”. A forma de ação do “Filho do Homem” revela algo mais de sua pessoa, que ultrapassa a
condição humana e o caráter meramente apocalíptico, demonstrando aquilo que será a profissão de fé do
centurião em Mc 15,39 junto da cruz: “Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus”.
181
Cf. FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola, 1991, p. 141-142.
182
Cf. ALONSO SCHÖKEL, A palavra inspirada, p. 69. “Para que sua palavra – e ele mesmo enquanto Palavra
– continue ressoando, Cristo envia os apóstolos, em continuidade sem termo, e envia-lhes o Espírito Santo. Os
apóstolos são „enviados‟ por nome, apóstolos, e por tarefa: não é jogo de palavras dizer que a sua missão é
missão.” [grifo do autor].
183
Cf. LADARIA, O Deus vivo e verdadeiro, p. 102.
184
Cf. ZILLES, Urbano. Profetas, apóstolos e evangelistas. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1992, p. 10.
170
de Cristo, no sentido de que o apóstolo deve realizar o que Jesus fez. Desta forma, curar os
enfermos, expulsar os demônios, são ações próprias da missão dos apóstolos. Mas, acima de
tudo, isso faz parte da tarefa deles de anunciar o reino de Deus185. Inclusive, o fato de
poderem realizar as mesmas ações milagrosas de Jesus só pode ser compreendido porque isso
faz parte do anúncio do Reino. As ações dinâmicas de Jesus expressam seu poderio contra o
mal. As ações dos apóstolos demonstram que a força de Jesus, por intermédio do Espírito,
permanece na comunidade para que possam continuar no mundo a vencer o império do mal.
8 Conclusão
Como vimos, sob a perspectiva sinóptica, o verbo “enviar” não tem grande
relevância para afirmar a autoridade de Jesus. Não há uma cristologia do envio nos sinópticos,
mas sim uma cristologia da exousía. O poder e autoridade de Jesus são demonstrados não pela
185
Cf. BARBAGLIO, G. O Evangelho de Mateus. In: Cf. BARBAGLIO, G. et al. Os Evangelhos (I). São Paulo:
Loyola, 1990, p. 178.
186
Cf. MARGUERAT, A primeira história, p. 61. A expressão usada em Lc 24,49, “revestidos de poder do alto”,
é metáfora do Espírito Santo. O evangelista fez uso deste septuagintismo também em Lc 1,17.35; 4,14; At 8,10;
10,38.
187
Cf. ibid., p. 123. Lucas evita relacionar a atividade taumatúrgica de Jesus com o pneuma. Também os
milagres realizados pelos apóstolos e discípulos são atribuídos à uma força (dynamis). Sugere-se, pois, que a
obra do Espírito é exclusivamente a de uma pregação profética. Marguerat segue aqui o pensamento de
Schweizer.
188
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p. 323.
171
afirmação de uma outorga ou mandato de Deus, mas sim pela realização de ações que são
próprias e características de Deus, tais como perdoar pecados, curar enfermos, expulsar
demônios. Além disso, o uso do verbo enviar, poucas vezes, aplicado a Jesus, não tem valor
de comissionamento. Por outro lado, no que diz respeito ao envio dos discípulos, os
Sinópticos asseguram que eles são “apóstolos” porque foram comissionados por Cristo para
anunciar o Reino, sendo-lhes concedidos os mesmos poderes sobre os espíritos impuros e
sobre as doenças. Desta maneira, a condição de enviados dos discípulos está intimamente
associada à pessoa de Jesus e, por ele, a Deus. Os apóstolos são enviados de Jesus, não se
podendo afirmar diretamente que sejam enviados de Deus. Nas parábolas é clara a alusão ao
envio do Filho de Deus como derradeiro dos enviados, colocando-o na linhagem dos outros
enviados bíblicos, vislumbrando que a sorte de Jesus é a mesma que a eles foi dada:
perseguição e morte.
Na leitura dos Atos dos Apóstolos o envio de Jesus não é apresentado como uma
categoria teológica relevante. Enquanto continuadora da missão de Jesus, a comunidade cristã
é uma comunidade de enviados de Jesus. A preocupação de Lucas é a de apresentar a
expansão da Boa Nova através dos diversos envios relatados. As missões são realizadas quase
sempre em parcerias, de maneira coerente com o princípio comunitário lucano de que viviam
em comum e que a unidade era um designativo dos cristãos.
A cristologia paulina não enfatizou a condição de enviado de Jesus pelo uso dos
verbos relacionados à missão (apostéllō e pémpō). Não há dúvida de que a compreensão
paulina da encarnação tem como referência certa ideia de envio, pois o Filho se encarna para
realizar a vontade do Pai e manifestar a salvação. A kênosis do Filho aponta para o seu
movimento de saída de junto de Deus, abandono da condição divina e vitória sobre o pecado a
partir da carne. Nas ocorrências de envio, no contexto paulino, demarca-se o papel de
mensageiros do apóstolo que, num determinado ambiente, devem manifestar o seu
posicionamento.
172
A amostra de “enviados” desse capítulo sugere também uma necessária correção
em alguns pontos da cristologia popular apresentada pela RCC. Apesar do acento dado ao
papel do Espírito na vida dos enviados de Jesus, eles continuam anunciando Jesus e o Reino.
A revelação do Espírito Santo só foi possível pelo Cristo e é ele quem autentica a atuação de
seu espírito na comunidade. O poder de Jesus concedido aos seus discípulos é para que com
ele estejam configurados. A santidade se expressa pela fidelidade ao anúncio do evangelho.
173
CAPÍTULO IV
Jo 20,21
1
Cf. BLANK, Josef. O Evangelho segundo João, 1ª parte B. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 37.
174
enviado de Deus. João, o “Batista”, é enviado na condição de testemunha de Jesus. Será dele a
proclamação que lança Jesus na vida pública como “Filho de Deus” (cf. Jo 1,34).
A relação de Jesus com seu Pai será marcada pela concessão do Espírito Santo
como aquele dom de Deus que consagra o Filho para a sua missão. O poder e a santidade de
Jesus não são oriundos de seus méritos pessoais, mas são manifestações da predileção e
capacitação de Deus em relação ao seu enviado. Ao final de sua missão Jesus retornará ao Pai
e concederá à comunidade o Espírito para que os seus discípulos continuem a obra que ele
consumou com sua entrega na cruz e que se atualiza na manifestação do amor aos irmãos.
175
1 O uso de pémpō e apostéllō como sinônimos2
Létourneau, em sua tese, distingue dois grupos de textos onde o verbo apostéllō é
apresentado tendo Deus como sujeito e Jesus como o objeto: a) o que o uso constitui uma
designação de Jesus como enviado; b) aquele em que se acentua o envio como tal de Jesus,
geralmente aproximados da ideia de que Jesus deve ser o objeto da fé por ser o enviado.
Complementa esse quadro o fato de que 18 das 28 ocorrências de apostéllō se vinculam ao
tema teológico do envio5. Quanto a pémpō, caracterizado pela fórmula ho pempsas me6, em
26 de suas 32 ocorrências, designa o Pai como autor e origem da missão de Jesus7. Contudo,
essa fórmula também é utilizada em relação a outros personagens, como os diversos
emissários (Jo 1,22); João “Batista” (Jo 1,33)8.
2
Cf. SEYNAEVE, J. Les verbes avposte,llw et pe,mpw. In: JONGE, M. de. L‟Évangile de Jean: sources, rédation,
théologie. Louvain: Leuven University Press, 1977, p. 386.
3
Cf. ABBOTT, E. A. Johannine vocabulary: a comparison of the words of the Fourth Gospel with those of the
Three. London: Adam and Charles Black, 1905, p. 226-227.
4
Cf. RENGSTORF, K. H. Apostéllō (pémpō). In: TDNT, p. 73.
5
Cf. TUÑI-VANCELLS, José O. O testemunho do Evangelho de João: introdução ao estudo do quarto
Evangelho. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 103.
6
Cf. RITT, H. pempō enviar. In: DENT, v. 1, p. 874. Segundo Ritt essa construção permite reconhecer o
teocentrismo cristológico da relação entre Pai e Filho.
7
Cf. LÉTOURNEAU, Jésus, Fils de l‟homme, p. 233-235. O autor parece seguir o mesmo esquema de
Rengstorf. – Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 136. Bühner considera a fórmula como uma intencional expressão
do papel de Jesus como embaixador de Deus. – Pasquetto demonstra que a associação de pempein com pisteuein
(Jo 5,24. 6,39; 12,44); he didakhé (Jo 7,16); martyrein (Jo 8,18); lalein (Jo 8,26;12,49); ergázestai – érga (Jo
9,4;cf. 9,3.5); theōrein (Jo 12,45); ho lógos (Jo 14,24); akouein (Jo 14,24), fazem de pempein um vocábulo
relacionado à revelação que se dá pela pessoa de Jesus. Segundo o autor, também o verbo apostéllō teria esse
aspecto revelatório. Cf. PASQUETTO, Virgilio. Incarnazione e comunione con Dio: la venuta di Gesù nel
mondo e il suo ritorno al luogo d‟origine secondo il IV vangelo. Roma: Teresianum, 1982, p. 94-97.
8
Cf. PAINTER, J. The quest for the Messiah: the history, literature and theology of the Johannine Community.
Nashville: Abingdon, 1993, p. 247.
176
alguns lugares joaninos como simples alternância estilística, como por exemplo, em
Jo 1,19.22.24; 7,28.29.33; 13,16; 20,219. Devillers, baseado em Painter, pondera que o uso de
pémpō se concentra nos capítulos 5-12, onde se dá claramente o conflito com as autoridades
religiosas judaicas10. Waldstein classifica o uso dos dois verbos em relação à pessoa de Jesus,
da seguinte forma:
Sempre na boca de Jesus como proposição relativa, com “apostello” como verbo no
infinitivo: 3,34; 5,38; 6,29;10,36; 17,3. Sempre na boca de Jesus com “pempo”, na
frase principal: 4,34; 5,23,24,37; 5,30; 6,38,39,44; 7,16,18,28,33; 8,16,18,29; 9,4;
12,44,45,49; 13,20;14,24; 15,21; 16,511.
É importante, por fim, notar aqui que não se encontra no Evangelho segundo João
nenhuma ocorrência em que Jesus seja chamado de “enviado” com o verbo apostéllō
particípio perfeito passivo. Possivelmente, isso manifesta que sua cristologia não se constrói a
partir de Jesus (o passivo), mas a partir do Pai que o envia12.
2 Houve um homem enviado de Deus, seu nome era João (Jo 1,6; 3,28)
João Batista é definido no Prólogo como um homem enviado de Deus (cf. Jo 1,6).
Se os vv. anteriores falavam da Palavra, o v. 6 afirma a existência de um ser humano que foi
enviado por Deus. O uso de egéneto (aoristo) assegura que se trata de uma realidade palpável,
histórica, visível, realizada plenamente. A condição humana mencionada pelo uso de
ánthrōpos reforça a condição de ser criado13, mortal. A humanidade do enviado distingue-o
dos mensageiros angélicos. Essa distinção propõe João Batista como um dos profetas.
O Batista deve ser compreendido como a continuidade e a consumação da
9
Cf. PACK, Frank. O Evangelho segundo João. São Paulo: Vida Cristã, 1983, p. 320. Pack ao comentar Jo
20,21 assegura que ao longo do evangelho os dois verbos foram usados como sinônimos.
10
Cf. DEVILLERS, Luc. La fête de l‟envoyé: la section johannique de la fête dés tentes (Jean 7,1-10,21) et la
christologie. Paris: Gabalda, 2002, p. 456.
11
WALDSTEIN, Michael. A missão de Jesus e os discípulos no Evangelho de João. Communio. Rio de Janeiro,
Ano 7, n. 3, 1990, p. 217.
12
Cf. DEVILLERS, La fête de l‟envoyé, p. 457-458. – Cf. LA POTTERIE, Ignace de. Studi di cristologia
giovannea. Genova: Marietti, 1992, p. 38.
13
Cf. BROWN, Raymond E. El Evangelio según Juan I-XII: introducción, traducción y notas. Madrid:
Cristiandad, 1999, p. 200.
177
profecia veterotestamentária. Nisso há similaridade com os sinópticos, que também o
apresentam como um dos profetas. A afirmação de que fora enviado14 por Deus define o ser e
a missão do Batista. Ele foi comissionado para uma tarefa, portanto sua ação só poderá ser
assimilada enquanto ação de seu outorgante. A condição de enviado do Batista se configura
ao longo da narrativa do evangelho enquanto testemunha a ser ouvida. Sua missão é ser
testemunha15. O enviado do Pai, Jesus, recebe o testemunho do enviado chamado João16.
Não se menciona como se deu o seu comissionamento, mas se afirma que foi
Deus quem o enviou (apestalménos para Theou), curiosamente contrastando com a menção
ao Verbo que está junto de Deus (prós ton Theon)17. A coesão textual é perfeita se tomarmos
em consideração que os vv. 4-5 mencionam a luz e ela é, dentre tantas caracterizações
divinas, uma das mais valorizadas pelo evangelista e aplicada a Jesus. O enviado, o Batista,
veio para dar testemunho da luz (cf. Jo 1,8)18.
14
Cf. WENGST, Klaus. Il Vangelo di Giovanni. Brescia: Queriniana, 2005, p. 53. Dizer que João foi enviado
por Deus pode, a princípio, causar estranheza, pois no Evangelho segundo João essa designação será usada para
se referir a Jesus e ao Paráclito.
15
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 90-91. – A ideia de testemunho em João tem um
caráter jurídico vinculado a uma linguagem do Antigo Testamento. Ela denuncia também a hostilidade e debate
que caracterizarão o conflito de Jesus com os judeus. Cf. TRITES, Allison A. The New Testament concept of
witness. Cambridge: University Press, 1977, p. 80.
16
Cf. GRASSO, Santi. Il Vangelo di Giovanni: commento esegetico e teologico. Roma: Città Nuova, 2008,
p. 47. – O Evangelho segundo João não denomina o precursor como João Batista. Ele é apenas João. O nome
João explicita a ação misericordiosa de Deus: João = “Deus fez a graça”. Cf. BRUCE, F. F. The Gospel of John.
Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1983, p. 34-35.
17
Cf. LA POTTERIE, Ignace de. Studi di cristologia giovannea. Genova: Marietti, 1992, p. 38.
18
As pesquisas sobre o fundo histórico de Jo 1,6-8 sugerem o processo de assimilação da pessoa de João em
sintonia com a pessoa de Jesus. Possivelmente, um confronto inicial teria existido entre posturas distintas de um
grupo que via no Batista a luz (cf. Jo 5,35) da realização messiânica e outro que vislumbrava em Jesus a resposta
plena de Deus aos seus filhos. Jesus será insistentemente evocado como luz no Evangelho segundo João (cf.
referências a Jesus como luz: Jo 1,8.9; 3,19; 12,35.36; autoproclamação de Jesus como luz: Jo 8,12; 9,5). Cf.
WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 54. – Cf. PHILLIPS, Peter M. The Prologue of the Fourth Gospel: a
sequential reading. London: T&T Clark, 2006, p. 179.
178
Espírito que paira sobre Jesus (cf. Jo 1,32), quem se define como enviado de Deus, dando
testemunho de que não é o Cristo.
Em Jo 3,16 se insiste no amor de Deus que é capaz de dar seu Filho unigênito para
que os que nele crerem tenham a vida. Não se trata de um ato de satisfação a uma ofensa
19
Cf. WINK, Walter. John the Baptist in the Gospel Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1968,
p. 111. O autor compreende a representação de João Batista no Evangelho segundo João como uma tipologia do
cristão: testemunha Cristo, o indica a outros, reconhece nele o Cordeiro ungido com o Espírito, sabe desaparecer
para que ele, o Cristo, apareça.
20
Cf. PASQUETTO, Incarnazione e comunione con Dio, p. 67-68. Jesus é o lugar privilegiado da presença do
reino.
179
recebida, mas de realização e cumprimento da obra começada de tornar a humanidade
participante plena do amor de Deus. A expressão “não pereça” demonstra que o amor de Deus
é de um nível cuidadoso, pois não quer um simples julgamento baseado na ira21 e na punição.
Além disso, que o enviado é aquele que demonstra esse zelo da parte de Deus. A relação do
tema do envio com o título “Filho de Deus”22 reforça a característica decisiva da missão de
Jesus como Filho único que vem para salvar23.
É no v. 17 que se encontra a menção ao envio do Filho. Ele não foi dado (didomi)
ao mundo, mas sim enviado, atestando seu estatuto de enviado, segundo o qual em tudo
representa o seu outorgante24. A missão de Jesus é expressa como destinada à salvação do
mundo. Há um universalismo de salvação e clara prevalência da salvação em relação à
condenação25. De acordo com Konings, João conhece a associação da morte de Jesus aos
sacrifícios de expiação (1Jo 2,2), mas não explica a morte de Jesus assim:
A verdade é que Jesus é um “dom” de Deus para manifestar o seu amor e sua graça.
Decerto, isso o levará a ser fiel até a morte, quando tiver que enfrentar a oposição
mortal, mas quem quis essa morte não foi Deus, e sim, os homens. Deus e Jesus só
quiseram mostrar amor e fidelidade (cf. 1,14)26.
Diz-se explicitamente que Jesus não veio para julgar, mas sim salvar do pecado e
da desordem que fez com que a humanidade se afastasse de seu Criador e não mais
reconhecesse o seu amor. Por que não vem para julgar? 27 Diferente dos profetas do Antigo
Testamento que pregavam sobre o dia do Senhor como ocasião de um julgamento de
restabelecimento da justiça sobre a terra, o enviado vem para conduzir à vida.
21
Cf. STÖGER, A.; BAUER, J. B. Ira. In: DBT, p. 198. João utiliza a palavra ira apenas uma vez (3,36),
demarcando que ter ou não ter fé em Jesus é o que decide se a pessoa está sujeita à ira de Deus. A aceitação de
Jesus já é estar livre da ira. No c. 6, no contexto do sinal dos pães, novamente se mencionará que não se deseja
perder nenhum daqueles que foram dados ao Filho pelo Pai (cf. Jo 6,39).
22
Cf. DUNN, James D. G. Christology in the making: a New Testament inquiry into the origins of the doctrine
of the incarnation. 2. ed. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1989, p. 213-214. – Cf. SMITH, D. Moody. The
theology of the Gospel of John. Cambridge: University Press, 1995, p. 127-131.
23
Cf. LÉTOURNEAU, Jésus, Fils de l‟homme, p. 235.
24
Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 164-165.
25
Cf. BLANK, Josef. O Evangelho segundo João, 1ª parte A. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 276-277.
26
KONINGS, Evangelho segundo João, p. 132.
27
Não é possível fazer aqui a exegese de Jo 5,19-30, mas veja adiante o comentário relacionado ao “enviado”
nessa perícope.
180
feito por Jesus foi um caminho de encontro de Deus com o mundo, fundamentado na pessoa
do enviado; ali se explicita a sua vontade salvífica em relação ao mundo 28. Morgen, seguindo
o esquema de Miranda e Schweizer, vê no v. 17 uma fórmula de envio com quatro membros:
a) um sujeito: Deus; b) um objeto: seu Filho; c) um termo técnico de envio: apostéllō, pémpō;
d) uma expressão soteriológica hina29. Léon-Dufour sublinha essa vontade ao assinalar que
nos vv. 16-17 Deus é o sujeito da frase, evidenciando que é nele que se encontra a origem da
salvação, motivada por seu extremo amor30. Ao olhar o Filho do Homem elevado na cruz o
crente vê Deus que ama o mundo.
28
Cf. WENGST, Klaus. Interpretación del evangelio de Juan. Salamanca: Sigueme, 1988, p. 139-140.
29
Morgen compreende o v. 17 com três matizes: teocêntrico, cristocêntrico e soteriocêntrico, p. 109-111. Cf.
MORGEN, Michèle. Afin que le monde soit sauvé: Jésus révèle sa mission de salut dans l‟évangile de Jean.
Paris: Cerf, 1993, p. 106.
30
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (I): capítulos 1-4. São Paulo: Loyola,
1996, p. 235.
31
BROWN, El Evangelio según Juan I-XII, p. 384. A ética joanina proporá o amor como ação decisiva para a
salvação, e escolher Jesus é escolher amar, servindo aos irmãos (cf. Jo 13,17).
32
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João (II): capítulos 5-12. São Paulo: Loyola,
1996, p. 242.
33
Cf. LA POTTERIE, Ignace de. La vérité dans saint Jean: le croyant et la vérité. Roma: PIB, 1977, v. 2, p. 514.
“Fazer a verdade” descreve o papel do humano na sua adesão à fé.
181
seu outorgante e o prólogo menciona que o único a ver a Deus foi o seu Filho unigênito
(cf. Jo 1,18). É nessa condição de quem pertence às alturas que Jesus é apresentado como
superior.
Enquanto enviado, ele afirma que dá testemunho do que viu e ouviu da parte de
Deus (cf. Jo 3,32). O verbo “ver” (horáō)34, diversas vezes usado em João, estabelece que
Jesus teve uma convivência com o seu emissor, habitou junto dele por um período, conheceu-
o em profundidade35. Lembre-se aqui o fato de Moisés pedir para ver a Deus. O “vinde e
vede” de Jo 1,39 sugere essa familiaridade. O verbo ouvir (akóuō)36, por sua vez, dá a Jesus a
autoridade necessária para ensinar. Ele é o porta-voz autorizado de Deus.
Quando ele fala é o próprio Deus quem fala por ele. Não fala o que aprendeu por
si mesmo ou por sua formação religiosa, mas tão somente apresenta aquilo que ouviu daquele
que o enviou. A sua palavra tem, portanto, o mesmo valor da palavra de Deus. Note-se que
João Batista ocupou esse lugar de palavra de Deus enquanto referência ao Antigo Testamento,
sendo associado aos profetas, mas recusando a condição de profeta messiânico37. Jesus torna-
se a palavra de Deus em complemento ao Antigo Testamento. Deus não fala mais apenas na
Torah, mas Jesus é a Torah expandida, é a personificação da voz de Deus na terra38.
34
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo:
Paulinas, 1989, p. 289. O verbo horao é usado 75 vezes em João.
35
Cf. LIMA, João Tavares de. “Tu serás chamado KHΦAΣ”: estudo exegético sobre Pedro no Quarto
Evangelho. Roma: PUG, 1994, p. 229. O verbo horáō traduz uma experiência ou visão profunda, que deixa
impressão durável.
36
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (I), p. 253. O verbo encontra-se no aoristo,
diferente de horáō, que está no perfeito. Contudo, a junção dos dois verbos coloca Jesus na condição de
testemunha imediata de Deus.
37
Cf. DUQUOC, Ch. Cristologia: ensaio dogmático I – o homem Jesus. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 120.
38
Cf. BRAUN, F-M. Jean le théologien: les grandes traditions d‟Israel et l‟accord des écritures selon le
Quatrième Évangile. Paris: J. Gabalda, 1964, p. 145-146.
182
Aqueles que aceitam o enviado reconhecem nele que Deus é verdadeiro. A
verdade de Deus assegura também a autenticidade do enviado. Para o evangelista João,
verdade sempre se relaciona com a realidade própria de Deus 39. Acolher a verdade no
enviado, no entanto, exige fé, pois ele não se apresenta com provas indubitáveis. “Aceitar o
testemunho de Deus significa reconhecer a Deus e com ele operar, ao mesmo tempo, a própria
salvação”40. Quem rejeita o enviado está rejeitando Deus e impedindo a si mesmo de conhecer
que Deus é verdadeiro e seu desejo de salvação torna-se realidade nas palavras e ações do
enviado41.
39
Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 181. – Cf. SCHNACKENBURG, R. El Evangelio según San Juan:
version y comentario: capítulos 5-12. Barcelona: Herder, 1980, v. 2, p. 269. Schnackenburg conclui que a
afirmação de Jo 3,33 coloca Deus em estreita relação com a verdade. É mediante o envio do Filho que Deus se
revela como verdade. Jesus encarna em sua pessoa a verdade de Deus, realidade divina que se manifesta nele,
com uma força e vontade salvadoras.
40
SCHNACKENBURG, R. El Evangelio según San Juan: version y comentario: introducción e capítulos 1-4.
Barcelona: Herder, 1980, v. 1, p. 436.
41
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte A, p. 260. Qualquer ação de repúdio, humilhação ou
desacato ao enviado, pode desencadear sérias consequências contra o agressor, pois no enviado encontra-se
pessoalmente o emissor.
42
Cf. Ibid., p. 261. “Deus não mandou o Cristo com uma missão restrita ad hoc, mas com poderes irrestritos e
absolutos. Mediante uma concessão irrestrita de superabundância de Espírito, portanto por seu „carisma
messiânico‟, a autoridade de Jesus como enviado e porta-voz de Deus está mais do que legitimada e assegurada”.
Pode-se concluir daí que, segundo Blank, João constitui o poder revelador de Jesus carismaticamente e não
metafisicamente. – Sobre as controvérsias acerca do sujeito que dá o Espírito veja: BROWN, op.cit., p. 404.
Brown ainda recorda que João prefere dizer que os dons dados pelo Pai ao Filho são plenos, por isso usa os
verbos no perfeito (17 vezes) e no aoristo (8 vezes) e só uma vez no presente (Jo 6,37). Cf. BROWN, op.cit.,
p. 400. – Mateos e Barreto traduzem o v. 34 da seguinte forma: “é que o enviado de Deus propõe as exigências
de Deus, uma vez que comunicam o Espírito sem medida”. Assim, seriam “exigências de Deus” o sujeito que dá
o Espírito. Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário
exegético. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 209.
43
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, introducción, p. 437-438. Em função do envio e do já
mencionado em Jo 3,32, o fato de Jesus ter visto e ouvido de junto do Pai, a afirmação da doação do Espírito sem
reservas demonstra que em Jesus acontece algo extraordinário, muito distinto do que ocorreu com os outros
profetas. Outorgar ao enviado a plenitude do Espírito é conceder que por ele se manifeste a salvação de forma
que aos humanos compete crer em Jesus.
183
imagem anabática-pneumática comum nas anábases proféticas44. Contudo, Jesus inaugura um
novo estilo de enviado ao possuir a plenitude do Espírito de Deus45.
Pode-se interpretar que, como João tem o plano completo do seu evangelho, o
estabelecimento da relação do enviado com o Pai é mediado pelo Espírito de Deus. Isso é
possível porque esse enviado distingue-se também de todos os antecessores por uma relação
filial com Deus. Assim, será ele também quem batiza com o Espírito Santo (cf. Jo 1,34) e
quem doa o Espírito à comunidade (cf. Jo 20,22). Léon-Dufour e La Potterie preferem
interpretar Jesus como o sujeito da frase de Jo 3,34b46. Contudo, acreditamos que, ao se
afirmar que é o Pai quem concede o Espírito com largueza a Jesus, não se impede de
compreender que, para a comunidade, é Jesus quem o concederá. Essa relação com o Pai,
mediada pela ação do Espírito, confere a Jesus um grau de autoridade superior aos enviados
do Antigo Testamento.
44
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 304. O ato de delegar os empossados com o Espírito faz parte das anábases
proféticas.
45
Cf. FERRARO, Giuseppe. Lo Spirito Santo nel quarto vangelo. Roma: Borla, 1981, p. 82. Há uma
dependência e intimidade grandiosas entre Pai e Filho ordenadas para a salvação e mediadas pelo Espírito. É isso
que permite a Jesus dizer as palavras do Pai.
46
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (I), p. 254. – Cf. LA POTTERIE, Studi di
cristologia, p. 282-283.
47
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 298.
48
LÉTOURNEAU, Jésus, Fils de l‟homme, p. 238. – Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 195-196. De acordo com
Bühner, o termo “casa” designa a família instituída segundo o modelo jurídico judaico, desta forma, o “filho” é
aquele que tem pertença total ao grupo familiar, que deve ser tratado como o filho real ou outro membro da
família. Pode ainda designar o príncipe herdeiro da casa real.
49
Cf. ASHTON, John. Understanding the Fourth Gospel. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 318. Pai é o
nome de Deus no Evangelho segundo João. O outro nome é “aquele que me enviou”. Essa forma de se referir a
Deus explicita a condição de Jesus como o Filho enviado.
184
A repercussão da afirmação é claramente sentida na afirmação seguinte sobre
quem crê e quem rejeita o enviado (v. 36). Os destinos de ambos são distintos, pois suas
escolhas foram divergentes, conferindo então, ao crente, a vida eterna, e, ao rebelde, a ira de
Deus. Como se viu, todo o texto está marcado pela ideia de julgamento 50; contudo, João fará
referência à punição de Deus somente nesse versículo, pois importa mostrar que é a salvação
que o Pai quer oferecer ao seu povo através do enviado, mediado pelo Espírito.
Após iniciar sua missão o enviado não tem outra preocupação senão cumprir o
que lhe fora ordenado. Dizer que seu alimento é realizar a vontade de Deus significa que todo
50
Cf. MOLONEY, Francis J. The Gospel of John. Collegeville: Liturgical Press, 1989, p.107.
51
Cf. QUAST, Kevin. Reading the Gospel of John: an introduction. Mahwah: Paulist Press, 1991, p. 3.
52
Cf. LA POTTERIE, Ignacio de. La verdad de Jesús: estudios de cristología joanea. Madrid: Editorial Católica,
1979, p. 308.311. Verdade tem o sentido judaico de comunicação e transmissão dos segredos divinos, enquanto
revelação dos mistérios. Jesus é a verdade porque tem uma função reveladora.
53
Cf. BEIRNE, Margaret. Women and men in the Fourth Gospel. New York: Sheffield Academic Press, 2004,
p. 67-104. A mulher samaritana participa ativamente da obra de Jesus ao se colocar como missionária. Ela e
Nicodemos são apresentados como modelos de discípulos. Beirne analisa os diversos elementos comuns nas
duas narrativas, como por exemplo, a questão da vida eterna e do nascer de novo, o símbolo da água e do
nascimento espiritual, as ironias contidas nas narrativas, o reconhecimento de Jesus como mestre e profeta.
54
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte A, p. 324-325.
55
Cf. CRAIGIE, Peter C. The book of Deuteronomy. Grand Rapids: Eerdmans, 1976, p. 186. Dt 8,3 recorda o
agir providente de Deus que sacia a fome do seu povo, mas espera dele uma obediência filial que se demonstra
pela vivência do que lhe foi comunicado na Escritura. Em Jesus essa obediência torna-se protótipo de todo o
humano. O texto de Dt 8,3 faz parte da resposta de Jesus a uma das sugestões do tentador (cf. Mt 4,11).
185
o seu ser, a sua pessoa como um todo, está envolvido em profunda comunhão com o projeto
que está sendo executado, aceitando tal vontade e cooperando para a sua realização 56. Ele,
realmente humano, porque encarnado, tem como prioridade para a sua vida a realização do
plano do Pai. Trata-se de um anulamento radical nascido da obediência do homem Jesus, que
não possui nada de si e se considera “somente” enviado de Deus57.
O enviado tem consciência de que sua tarefa não é a realização de sua vontade59, e
que deve mover todos os esforços para que sua missão obtenha sucesso. O verdadeiro enviado
não se descuida de sua tarefa: no caso de Jesus, a de salvar a humanidade; para tanto, cada
instante torna-se precioso nesse processo e os encontros de Jesus com os que se decidem pela
fé no enviado despertam, outrossim, novas conversões. O enviado está à disposição do seu
emissor, não lhe competindo uma preocupação consigo senão a da boa execução de sua
missão.
56
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (I), p. 291.
57
Cf. LA POTTERIE, Studi di cristologia, p. 77.
58
Cf. THOMPSON, Marianne Meye. The God of the Gospel of John. Grand Rapids: Eerdmans, 2001, p. 95.
59
Cf. LA POTTERIE, La verdad de Jesús, p. 49.
186
Deus. Assim, em Jesus, a vontade de Deus é acima de tudo atuação60. Jesus, enquanto
enviado, é quem faz a obra de Deus. Em Jo 6,29 se afirmará que a obra de Deus é crer naquele
que foi enviado. Sendo assim, parte da missão que Jesus veio realizar corresponde a que a
humanidade faça a sua opção pelo enviado, assumindo-o na fé.
Mas a obra de Jesus é aquela confiada a ele pelo Pai (cf. Jo 17,4), sendo,
novamente, fruto de sua inteira intimidade com o outorgante. Desta feita, Jesus aparece como
aquele que age junto com o Pai. No Prólogo já se fez menção ao Logos como palavra criadora
e sabedoria ordenadora do cosmos (cf. Jo 1,2.3.10). Jesus é o parceiro de Deus na terra, sua
ação é a ação de Deus nele. Pelo agir de Jesus se revelam as obras do Pai, porque são feitas
em Deus (cf. Jo 3,21), como por exemplo, a cura do cego de nascença (cf. Jo 9,3)61.
60
O termo érgon (27x) adquire sentido cristológico em João que, diferente de Mateus, Lucas e Atos, não utiliza
ergasia. Usado no singular sintetiza a complexidade do mandato de Jesus. A obra alude à vontade salvífica de
Deus para com a humanidade. A realização da obra mostra o seu caráter de completa dependência a Deus, pois
João utiliza teleióō. Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 211. – A criação é a obra por excelência de Deus.
(Gn 2,2). Jesus incluirá sua atividade, pelo argumento da delegação recebida, na grande corrente da atividade do
Pai. Cf. ALETTI, Jean-Noël; LÉON-DUFOUR, Xavier. Los milagros de Jesús según el Nuevo Testamento.
Madrid: Cristiandad, 1979, p. 268.
61
Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho de São João, p. 234. Os autores consideram um esquema
intrepretativo do Evangelho segundo João em que o dia do Messias é o sexto dia da criação, concluindo que se
trata do término da obra da criação do humano.
62
Cf. BENNEMA, Cornelis. The power of saving wisdom: an investigation of Spirit and Wisdom in relation to
the soteriology of the Fourth Gospel. Tübingen: Mohr Siebeck, 2002, p. 115. Jesus não recebe um título
relacionado à sofía, porém, é perceptível como o evangelista o apresenta como quem oferece água e pão que são
símbolos da sabedoria (cf. Pr 9; Sr 24).
63
Cf. KELLY, Anthony J.; MOLONEY, Francis J. Experiencing God in the Gospel of John. Mahwah: Paulist
Press, 2003, p. 108.
187
A missão de Jesus, enquanto seu alimento, pode ser comparada a uma ceifa, onde
o fruto é representado pelos samaritanos que o acolhem64. Os vv. 35-38 permitem que a
reflexão iniciada, que tem Jesus como enviado, se abra para o envio dos discípulos. Diz o
v. 38: “Eu vos enviei a ceifar onde vós não trabalhastes; outros trabalharam, e vós entrastes no
seu trabalho”65. A imagem dos campos maduros, prontos para a ceifa, simboliza o tempo da
plenitude que se dá com a missão de Jesus. Ele é o ceifeiro que completa a obra do semeador,
alegrando-se conjuntamente com ele. Daí parte para a aplicação de que os discípulos são
enviados quais ceifeiros, para colher aquilo que não semearam, tornando-se parte ativa do
trabalho iniciado por outros66.
Fica evidente que, para a comunidade joanina, a obra iniciada por Jesus deve ser
continuada pelos seus seguidores. Assim, eles também, como o enviado, participam da obra
de Deus, podendo fazer as obras que ele faz e outras ainda maiores (cf. Jo 14,12). Potterie
considera que o v. 38 sublinha o contraste entre a pregação cristã e a abundância de seus
frutos na Igreja, e, ainda, uma passagem do tempo de Jesus para o tempo da Igreja 67. “Assim
como Jesus é o enviado do Pai, os discípulos são enviados de Jesus. Doravante, se eles
existem, é por ele. Mas a sua atividade só prolonga um aspecto da dele: a colheita”68.
64
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan I-XII, p. 428.
65
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte A, p. 330-331. Blank recorda que a linguagem presente no
texto, com expressões “trabalho”, “trabalhar”, “esforçar-se” pertencem à linguagem missionária da Igreja
Primitiva. Cf. LA POTTERIE, Studi di cristologia, p. 79. Em João, diferente dos Sinópticos, não há nenhum
envio missionário dos discípulos durante a vida terrena de Jesus, pois o envio se dá no domingo da ressurreição.
66
Cf. CARSON, D. A. The Gospel according to John. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1991, p. 231. Carson
interpreta a expressão “outros” como referência aos que evangelizaram a Samaria (cf. At 8,14-17) antes da
chegada dos apóstolos.
67
Cf. LA POTTERIE, Studi di cristologia, p. 80. Potterie recorda que a exegese tradicional interpreta “os
outros” como os Patriarcas e Profetas.
68
LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João ( I), p. 296. – Cf. KONINGS, Evangelho segundo João,
p. 146. O autor realça o aspecto da alegria contido no v. 38. Tanto quem semeia quanto quem ceifa, os que se
cansaram e os que não se cansaram se alegram juntos, sinal da realidade do tempo final.
188
Evangelho segundo João é extremamente bem concatenado, essa indisposição torna-se
oportunidade para o evangelista apresentar uma explicação sobre a missão de Jesus.
Jo 5,19 confirma o que foi apresentado em Jo 3,32; 4,34: ele age conforme o agir
do Pai porque o vê agir daquela forma e só o faz porque o Pai o autoriza. O vínculo de
unidade da vontade de Jesus com a do Pai expressa-se por essa simetria de ação. O Filho age
de maneira semelhante ao Pai, ou seja, o evangelista resguarda a autonomia do Pai sobre o
Filho, ao mesmo tempo em que demonstra que no agir do Filho se realiza mais que o
meramente visível: ali se dá por extensão o agir do próprio Pai. Chamando atenção para o uso
de blepe, Nicolaci afirma que:
69
NICOLACI, Marida. Egli diceva loro il Padre: i discorsi con i Giudei a Gerusalemme in Giovanni 5-12.
Roma: Città Nuova, 2007, p. 162.
70
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 157.
71
Cf. ANDRZEJEWSKI, Januz Maria. La cristologia di Gv 5,16-30: studio di teologia biblica. Roma:
Angelicum, 2005, p. 135.
72
Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho de São João, p. 277.
73
Cf. SCHNACKENBURG, R. El Evangelio según San Juan: versión y comentario: capítulos 5-12. Barcelona:
Herder, 1980, v. 2, p. 145-146. – Cf. BULTMANN, R. The Gospel of John: a commentary. Oxford: Basil
Blackwell, 1971, p. 256. “Não podemos prescindir do Filho querendo honrar o Pai, pois a honra do Pai e do
Filho é uma só e idêntica. No Filho se encontra o Pai, e o Pai só é acessível no Filho”.
189
Afirma-se em Jo 5,24, de forma solene e com característica de autoridade, que
quem ouve e crê no emissor de Jesus possui a vida eterna e não será condenado, pois sua
palavra é vivificadora74. O enviado, além de ser porta-voz de Deus e conduzir à realização de
sua obra, que é que todos creiam nele (cf. Jo 6,29), é também o dispensador do dom supremo
próprio de Deus, que é a vida eterna. Crer no enviado assegura a plena libertação e a
passagem da morte para a vida. Se é Deus quem pode vivificar os mortos (cf. Jo 5,21), aquele
que por ele foi enviado tem agora o mesmo poder. O enviado é o Filho do Homem constituído
com exousía para julgar (cf. Jo 5,27)75.
74
Cf. BLANK, Josef. O Evangelho segundo João, 1ª parte B. Petrópolis, Vozes, 1990, p. 31. – Cf. GRASSO, Il
Vangelo di Giovanni, p. 247. A escuta da palavra de Jesus conduz à fé em Deus.
75
Cf. REYNOLDS, Benjamin E. The Apocalyptic Son of Man in the Gospel of John. Tübingen: Mohr Siebeck,
2008, p. 134.139. João toma a figura apocalíptica de Dn 7, que a princípio não tinha o encargo de julgar, pois
essa tarefa competia ao rei; e a associa ao tema do messianismo e do julgamento. O tema do julgamento já estava
presente em Dn 7, afinal o Filho do Homem foi constituído com uma autoridade plena. O título “Filho do
Homem” em Jo 5,27 corrobora a imagem de Jesus como juiz apocalíptico.
76
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 39. “Na obra de Jesus nada acontece por arrogância ou
capricho. Jesus age muito mais como delegado de Deus. Em virtude do consenso absoluto do julgamento de
Cristo como o julgamento de Deus, o julgamento de Jesus participa da particularidade específica do julgamento
de Deus. Isto quer dizer que, em todo caso, o „julgamento é justo‟ e portanto também verdadeiro.
Consequentemente, nesta crise, os homens se revelam como na verdade são. E nisto precisamente se realiza a
„vontade daquele que me enviou‟.
77
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 157. – Cf. GONZÁLEZ MORFÍN,
Adalberto. Jesucristo-Palavra y palavra de Jesucristo: algunos elementos para la teología de la palavra en el
Evangelio de San Juan. México: Jus, 1962, p. 53-54. Propõe que ouvir o que Cristo diz é sempre ação que
envolve a totalidade do humano, não se limitando ao sentido físico da audição, tendo claros reflexos na vida do
ouvinte.
78
Vários são os testemunhos a favor de Jesus ao longo do Evangelho segundo João, porém no c. 5 privilegiam-
se: a) João Batista (cf. 5,33-35); b) as obras do Pai realizadas por Jesus (cf. Jo 5,36); o Pai (cf. Jo 5,37). Acerca
das obras do Pai, observa Riedl: “As obras que Jesus realiza como enviado do Pai, para levar a termo a obra
salvífica sua e do Pai, nada mais são do que o cumprimento obediente da missão que Jesus recebeu do Pai como
seu Filho. Como as obras atestam que Jesus é o enviado, remetem consequentemente à própria pessoa de Jesus
que as leva a cabo. Por isso podemos deduzir do seu testemunho quem e o que é Jesus: o enviado de Deus, o
revelador, o salvador e juiz” (RIEDL, J. Das Heilswerk Jesu nach Johannes. Freiburg, 1973, p. 246; apud
BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 48).
190
(cf. Jo 5,31) porém, é outro quem dá testemunho dele e, apesar disso, há incredulidade entre
os seus ouvintes. O testemunho desse outro é verdadeiro (cf. Jo 5,32).
As obras dão testemunho de que Jesus é o enviado do Pai. As obras são sinais
evidentes de que em Jesus o poder de Deus se faz presente, operando no mundo. As obras
foram dadas ao Filho para que as leve a termo (teleióō)79, ou seja, nessa entrega e plena
realização é que elas encontram o seu significado. Sendo assim, o leitor atento a Jo 1,3
recorda-se que tudo foi feito pelo Logos e nada foi feito sem ele. A participação do Logos na
criação estende-se pela participação de Jesus na consumação da obra. Jesus é aquele que por
seu agir sinaliza, aponta para o Pai. Como para o enviado Moisés os sinais serviram como
testemunhas de que seu envio era legítimo, também em Jesus eles têm esse significado80.
Não reconhecer as obras de Jesus como coerentes com a de Deus é agir de má fé,
pois o testemunho visível das obras é testemunho de Deus81. O Pai, que o enviou, cuja forma
jamais foi vista (cf. Jo 1,18; Dt 4,12), é colocado como testemunha. De acordo com a
dinâmica do envio, o emissor testemunha a favor de seu enviado, sendo capaz de, inclusive,
intervir para defendê-lo ou, caso seja necessário, aceitar e configurar em seu plano uma ação
do enviado que não fora solicitada.
79
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 180.
80
Morujão comenta acerca dos sinais em João: “Em São João, os milagres de Jesus jamais aparecem, segundo
sublinham os Sinópticos, como um acto de compaixão do coração de Cristo para com os necessitados, ou como
manifestação da sua força e omnipotência. Eles são designados habitualmente por dois termos que põem em
relevo o seu valor simbólico e profundo significado teológico: „obras‟ e „sinais‟” (MORUJÃO, Geraldo.
Relações Pai-Filho em S. João: subsídios para a teologia trinitária a partir do estudo de sintagmas verbais
gregos: Jo 5 e 17. Viseu: Instituto Superior Politécnico, 1989, p. 68).
81
Cf. MATEOS; BARRETO, O Evangelho de São João, p. 286.
82
É preciso notar que Jesus não se autodefine como a “Palavra do Pai” em nenhum lugar no Evangelho segundo
João. Cf. LA POTTERIE, Studi di cristologia, p. 273.
191
significavam o caminho para a vida eterna, em Jesus já se encontra a vida eterna. O que elas
anunciam se concretiza na pessoa do enviado83.
Jesus é identificado como aquele que dá a vida (cf. Jo 5,40), da mesma forma
como a Torah era compreendida como lugar da vida (cf. Dt 32,45). Porém, é frisada aqui a
resistência dos incrédulos, pois a vida (Jesus) é oferecida, mas eles não a procuram. A escolha
feita pelos incrédulos demonstra que têm, por vezes, um pretenso conhecimento das
escrituras, mas não são capazes de reconhecer a voz de Deus no enviado. O enviado poderia
impor-se pelo poder de Deus que nele se faz presente ou pelo seu direito de mensageiro
qualificado84, contudo Jesus revelará seu poder na cruz. No encarnado, a glória de Deus
revela-se por sua extrema humanidade e afinidade com o projeto do Pai.
3.5 Jesus, o enviado que é o pão descido do céu para alimento do povo
(Jo 6,29.38.39.44.57)
Por cinco vezes Jesus se apresentará como o enviado do Pai ao longo de Jo 6. A
narrativa do sinal dos pães tem profundas associações com o passado do povo de Deus,
83
“[A] descrença do Deus que fala e atua em Jesus é a prova de que, em todo caso, não perceberam na Escritura
as exigências do Deus vivo, pois de outro modo, através de ambas as fontes – a Escritura e Jesus – deveriam ter
ouvido o próprio Deus que falava” (BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 49).
84
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 286.
85
Cf. PANCARO, Severino. The Law in the Fourth Gospel. Leiden: E. J. Brill, 1975, p. 258. Moisés não é
nomeado como testemunha a favor de Jesus.
86
Cf. ibid., p. 258. Moisés passa de intercessor a acusador, enquanto que Jesus é apresentado como o novo
Paráclito para o novo povo de Deus.
192
particularmente o êxodo87, diferencia-se das narrativas sinópticas das multiplicação dos pães88
(Mt 14,13-21. 15,32-39; Mc 6,30-44. 8,1-10; Lc 9,10-17) e tem características de uma liturgia
eucarística89.
Os títulos que Jesus receberá ao longo do c. 6, não somente as opiniões que sobre
ele vão se formando, criam uma sequência em que se apresenta Jesus como o profeta
messiânico91 que ensina o caminho para a vida eterna. Os saciados pelos pães o consideram
um profeta (cf. Jo 6,14b) e querem proclamá-lo rei (cf. Jo 6, 15), fazendo com que Jesus se
afaste da multidão, e só o encontrarão do outro lado do lago, atribuindo-lhe o título de Rabi
(cf. Jo 6,25b). Jesus percebe as intenções da multidão que o procura apenas em função da
saciedade e não busca o verdadeiro alimento que dá vida eterna (cf. Jo 6,27b). Jesus é quem
pode dar o sustento duradouro, pois nele Deus pôs o seu selo (cf. Jo 6,27d). O título real
confirma a identidade de Jesus como enviado, pois ele traz consigo o selo de Deus. Trata-se
aqui de um reconhecimento oficial, como o selo que autentica e valida um documento.
Portanto, rejeitar o que Jesus diz e faz é considerar Deus como um mentiroso92. Tal selo
87
Acerca da relação de êxodo com Jo 6: HYLEN, Susan. Alusion and meaning in John 6. Berlin: Walter de
Gruyter, 2005, p. 119-156. Jesus é apresentado como enviado de Deus, da mesma forma que Moisés, e
comparado ao maná. Após situar a cena na outra margem do lago da Galileia (cf. Jo 6,1), o evangelista fala de
uma multidão que segue Jesus (v. 2). A menção à festa da Páscoa (v. 4) reforça a característica exodal do relato e
demonstra que a popularidade de Jesus concorre com uma festividade judaica.
88
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 43-45. João elabora um relato independente
que, apesar de algumas coincidências com os sinópticos (Jesus toma a iniciativa; acomoda o povo; faz a oração;
cinco pães e dois peixes; cinco mil pessoas; o afastamento de Jesus para o monte), está organizado
teologicamente sob a perspectiva do “sinal”.
89
Cf. VERDIERE, Eugene la. The Eucharist in the New Testament and the early church. Collegeville: The
Liturgical Press, 1996, p. 112-116. O ato de Jesus de levantar os olhos é litúrgico e se repete em Jo 11,41
(ressurreição de lázaro) e Jo 17,1 (oração sacerdotal).
90
Jo 6,10b menciona que havia grama no lugar, imagem contrastante com a do maná no deserto, mas claramente
orientada pelo Sl 23,2.
91
Cf. VOORWINDE, Stephen. Jesus‟ emotions in the Fourth Gospel: human or divine? New York: Clark, 2005,
p. 71. nota 11.
92
Cf. LÉTOURNEAU, Jésus, Fils de l‟homme, p. 216.
193
demonstra a legitimidade de sua tarefa, preparando para a explícita afirmação de seu envio no
v. 29.
Se Moisés era considerado como o enviado que alimentou o povo, agora Jesus é o
enviado que é alimento do povo96, pois afirma que o pão de Deus é aquele que desce do céu e
dá a vida ao mundo (cf. Jo 6,32s). Dentro da leitura contínua do evangelho, o prólogo já
anunciara quem estava ao lado do Pai (cf. Jo 1,18) 97; no discurso com Nicodemos, Jesus se
referiu a subir e descer do céu (cf. Jo 3,13); o Filho vê o que Pai faz (cf. Jo 5,19d). Em
Jo 6,51.58 Jesus afirma ser o pão descido do céu.
93
Cf. RAMOS PÉREZ, Fernando. Ver a Jesús y sus signos, y creer en él: estudio exegético-teológico de la
relación “ver y creer” en el evangelio según san Juan. Roma: PUG, 2004, p. 53-56. A estrutura pisteuo + eis com
acusativo se encontra 36x em João e pode ser traduzida como “crer em”. Tal estrutura ocorre apenas 9x nos
outros escritos do NT. A preposição eis indica sempre um verdadeiro movimento que enfatiza a adesão à pessoa
que diz ou manifesta algo verdadeiro, não se limitando a ser uma simples acolhida da verdade proclamada.
94
LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (II), p. 99.
95
SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 66.
96
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. La fracción del pan: culto y existencia en el Nuevo Testamento. Madrid:
Cristiandad, 1983, p. 325. Jesus afirma que sua palavra é o alimento a ser aceito pela fé, da mesma forma como
se aceitou no passado que o maná foi uma intervenção de Deus. Traz ainda eco das profecias de Am 8,11 e
Ez 3,3. E a fartura dos pães recorda o banquete de Is 55,1. Também apresenta características sapiencias como o
banquete da sabedoria (Pr 9,1-5).
97
Cf. WAETJEN, Herman C. The Gospel of the Beloved Disciple: a work in two editions. New York: Clark,
[2005], p. 212. A identificação de Jesus com o Logos que desceu do céu e que viu a Deus é imediata e indica
parte do conflito com as autoridades judaicas que não suportarão aceitar que Jesus é o pão que dá a vida para a
humanidade.
194
nenhum dos que lhe foram confiados (cf. Jo 6,38-39)98. Essas ocorrências do verbo enviar
atribuídas a Jesus mostram mais um elemento da cristologia do envio. Jesus, como enviado, é
aquele que administra em nome do Pai. As pessoas são confiadas a ele pelo Pai e compete a
ele, o Filho, zelar por elas, evitando que se percam e concedendo-lhes a ressurreição no
último dia (cf. Jo 6,39)99. Conceder a ressurreição é atributo de Deus, mas, como enviado, é a
Jesus que compete fazer essa concessão. Ainda mais, a vontade do Pai, desejada por Jesus, é
de que aqueles que veem o Filho e nele crerem tenham a vida eterna (cf. Jo 6,40).
Jesus é o alimento enviado por Deus para o seu povo, mas isso exige
compromisso dos ouvintes e decisão por ele, pois consumir a carne e o sangue de Jesus
98
Cf. SEGALLA, Giuseppe. Volontà de Dio e dell‟uomo in Giovanni (Vangelo e Lettere). Brescia: Paideia,
1974, p. 126. O Pai é chamado de emissor e a condição de outorgante é determinante na relação entre ele e o
Filho. – “Jesus não pode deixar que ninguém se perca, não pode entregar ninguém à desgraça eterna, mas há de
conduzir a todos à meta suprema e definitiva da salvação, isto é, à „ressurreição no último dia‟. A realização total
da vontade salvífica de Deus, desde o começo até o fim, esta é a vontade divina que Jesus deve cumprir até o
fim, como enviado ao mundo” (BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 394).
99
Também em Jo 5,21 Jesus é apresentado como o Filho de Deus que pode conceder a ressurreição.
100
A afirmação, já apresentada em Jo 1,45, na voz dos incrédulos judeus tem por finalidade desacreditar a
pretensão de Jesus como enviado. É clara a ironia de João ao permitir que os personagens vejam Jesus apenas
como o “filho de José”, pois o evangelista não menciona o pai de Jesus segundo a carne. Cf. BARRET, Charles
K. El evangelio según San Juan: una introducción con comentario y notas a partir del texto griego. Madrid:
Cristiandad, 2003, p. 446. – Acerca da interpretação do título “Filho de José” nos círculos de Enoque e no
Talmud babilônico, onde é apresentado como o “ungido para a guerra”: ANDRADE, Aíla L, P. de. À maneira de
Melquisedeque: o Messias segundo o Judaísmo e os desafios da Cristologia no contexto neotestamentário e hoje.
Belo Horizonte: FAJE, 2008. Tese de Doutorado, p. 81-85.
101
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 399.
102
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (II), p. 113-114. Jr 38,3 e Os 11,4 falam desse
amor que atrai a si.
103
Cf. BORGEN, Peder. Bread from heaven. Leiden: E. J. Brill, 1965, p. 152. O pão descido do céu alude à
função vivificadora da Torah. A alusão à teofania do Sinai também estaria no fundo da narrativa de Jo 5,27-47.
195
significa identificar-se com sua causa. A verdadeira comida (carne) e a verdadeira bebida
(sangue) quando consumidas permitem uma associação vital com o enviado, pois se trata de
comer a totalidade da personalidade e do destino de Jesus (cf. Jo 6,53-58)104. Estabelece-se
uma lógica em que da mesma forma como o Pai vive naquele que ele enviou, o enviado vive
pelo Pai e essa comunhão se abre para que os que creem possam viver por Jesus
(cf. Jo 6,57)105. Soteriologia e eclesiologia são enraizadas na cristologia a partir do esquema
do envio106.
104
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 277.
105
“O Filho é a figura central em torno da qual gira a imanência e em quem tem seu fundamento. Nele se revela
o essencial princípio cristológico da imanência; sempre se trata de um entrelaçamento no Filho e com o Filho; e
só pelo Filho e no Filho podem os discípulos chegar à comunhão com Deus, como também Deus só se comunica
aos discípulos no Filho, a fim de permanecer com (em) ele neles” (BORIG, R. Der Wahre Weinstock. Munique,
1967, p. 217; apud BLANK, O Evangelho segundo João: 1ª parte B, p. 409).
106
Cf. LÉTOURNEAU, Jésus, Fils de l‟homme, p. 252.
107
Barret, ainda que não descarte a possibilidade de associação com o prólogo, acredita que o termo “princípio”
se refere mais ao início do ministério de Jesus. Em 8,25 o termo faz parte da resposta de Jesus sobre sua
identidade; em 8,44 realça a constante oposição entre ele e o diabo; em 15,27 refere-se ao testemunho dos
discípulos, demonstrando que o início da missão de Jesus ultrapassa o limite histórico; em 16,4 aponta para o
início da convivência com os discípulos e tem o mesmo caráter de lançá-la alhures no tempo. Cf. BARRET, El
evangelio según San Juan, p. 461.
108
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 123.
109
Cf. FARELLY, Nicolas. The disciples in the Fourth Gospel. Tübingen: Mohr Siebeck, 2010, p. 107-108.
196
3.6 Jesus, o enviado que ensina a doutrina daquele que o enviou
(Jo 7,16.18.28.29.33)
Outras cinco menções ao envio de Jesus se encontram no c. 7. Durante a festa dos
Tabernáculos110, no Templo, Jesus se autointitulará como enviado e se revelará como mestre
que ensina a doutrina do Pai (cf. Jo 7,14-44). A admiração que esse ensino desperta não tem
sentido positivo, pois denuncia o escândalo e a má vontade diante da afirmação de Cristo111.
Enquanto mestre que ensina num lugar sagrado, Jesus deveria apresentar suas credenciais, sua
autorização, a sua formação escolar rabínica. Contudo, o evangelista lança o conhecimento de
Jesus em outra esfera (cf. Jo 7,15).
De onde advém o seu conhecimento? Para o leitor do evangelho fica evidente que
o enviado recebeu do seu emissor uma mensagem a ser transmitida e, como se demonstra ser
fiel à missão, não ousaria apresentar outro ensino senão aquele que lhe foi solicitado. A
resposta de Jesus fala da origem e posse do conhecimento: “O meu ensino não é meu, e sim
daquele que me enviou” (Jo 7,16). Logo, o que ele expressa no templo não é sua opinião, mas
a vontade de seu outorgante112.
110
Cf. MAGGIONI, Bruno. O evangelho de João. In: FABRIS, Rinaldo e MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos
(II). 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 357. A festa originariamente de caráter agrícola pela colheita dos frutos
no outono ganhou posteriormente um significado histórico, recordando os quarenta anos que o povo de Israel
passou no deserto. Um dos momentos culminantes da festa era a expectativa do libertador enviado por Deus.
111
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 63.
112
Anterior a Bühner, Meeks apontava para o paralelismo de ação entre Moisés e Jesus. Para Meeks, o
comissionamento caracteriza o verdadeiro profeta. Cf. MEEKS, Wayne A. The prophet-king: Moses traditions
and the Johannine Christology. Leiden: E. J. Brill, 1967, p. 301-305. – Bühner acredita que a tradição samaritana
de Moisés oferece interessante paralelo porque nela se apresenta um fundo cósmico, onde o profeta valia por ser
uma encarnação do Logos preexistente. João consegue ultrapassar o nível jurídico do envio e propor o enviado
com características além dos limites terrenos. Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 305-306.
113
González Morfín afirma que o uso de lalein em Jo 7,17; 8,26.28.38.40 revela que no evangelho segundo João
esse verbo indica a linguagem de Jesus enquanto enviado, enquanto mediador e transmissor. Cf. GONZÁLEZ
MORFÍN, Jesucristo-Palavra, p. 55. – Pasquetto também considera o sentido revelatório de lalein em João.
Cf. PASQUETTO, Incarnazione e comunione con Dio, p. 38.
114
Cf. SEGALLA, Volontà de Dio, p. 200.
197
termo que retoma o hebraico kbd, riqueza, esplendor de Deus que irradia amor115. No caso
joanino, essa glória será progressivamente apresentada como amor.
O que caracteriza Jesus como verdadeiro116 e justo é que sua doutrina tem origem
no seu outorgante (cf. Jo 7,18)117. Também 1Rs 17,24 nos ajuda a compreender o versículo
joanino na sua relação com o envio. Pela boca do profeta a mulher acessa a verdade de Deus
e, portanto, seria possível ao auditório de Jesus alcançar por seu ensinamento o próprio Deus
que o enviou. Essa recordação põe ainda mais em questão a incredulidade dos ouvintes de
Jesus e sua resistência em assumir o que ele ensina. Em uma lógica bastante simples: eles não
querem fazer a vontade do Pai, por isso não conhecem/aceitam a doutrina de Jesus e não
reconhecem nele a verdade, a justiça e a consequente glória do Senhor118.
Jesus faz uma pergunta retórica sobre a lei dada por Moisés 119 e afirma que
ninguém a segue, pois procuram, inclusive, matá-lo (cf. Jo 7,19). A reação da multidão diante
da acusação feita por Jesus é vê-lo como um possesso e mentiroso (cf. Jo 7,20), características
contrárias aos atributos divinos. A discussão em torno do que é lícito no dia de sábado
manifesta o desejo de Jesus de curar o homem na sua totalidade (cf. Jo 7,21-23)120. O v. 24 é
uma sentença de Jesus, na condição de enviado: “não julgueis segundo a aparência, e sim pela
reta justiça”.
115
O tema da glória recorda Jo 5,41-44. Mais uma vez Jesus não pode apresentar provas externas, senão somente
testemunhar com sua consciência de enviado. Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2,
p. 192.
116
Cf. LA POTTERIE, La vérité dans saint Jean: le croyant, p. 514. Jesus é verdadeiro porque proclama a
verdade, ou seja, a revela.
117
Para o leitor judeu, as duas atribuições são facilmente assimiladas como referências ao Altíssimo,
particularmente nos salmos (cf. Ex 34,6; 2Sm 7,28; Sl 24,5; 25,5; 31,5; 35,24; 45,7; 48,10; 50,6; 57,3; 61,7;
69,13; 71,19.22; 86,15; Is 41,10; 65,16). A verdade e a justiça de Deus são ainda explicitamente mencionadas
numa simetria muito próxima de Jo 7,18 com as seguintes passagens: a) Dt 32,4 (“Ele é a Rocha cuja obra é
perfeita, porque todos os seus caminhos são justos; Deus é a verdade, e não há nele injustiça; justo e reto é”);
b) Jr 10,10 (“Mas o Senhor Deus é a verdade; ele mesmo é o Deus vivo e o Rei eterno; do seu furor treme a terra,
e as nações não podem suportar a sua indignação”); c) Zc 8,8 (“eu os trarei, e habitarão no meio de Jerusalém; e
serão o meu povo, e eu serei o seu Deus em verdade e em justiça”).
118
AGOSTINHO, Santo. Tratados sobre el Evangelio de San Juan (1-35). Madrid: Editorial Catolica, 1955, p.
713. Agostinho propõe que Jesus é a doutrina do Pai encarnada. Recorre ao Prólogo e sua menção de que no
princípio o Verbo estava com Deus para dizer: “Qual é, pois, a doutrina do Pai, senão o Verbo do Pai? Cristo é,
pois a doutrina do Pai se é o Verbo do Pai. É impossível que a palavra não seja de ninguém, senão que tem de ser
de alguém, e digo que Ele é sua doutrina e que não é sua doutrina, porque é o Verbo do Pai. Que coisa é tão tua
como tu mesmo? E que coisa é tão não tua como tu se o que és é de alguém?”.
119
Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 334. Moisés é apresentado como a síntese da tradição legal do AT.
120
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 307. Curar o homem “todo” contrapõem-se ao apego à lei da
circuncisão. O oitavo dia do nascimento de um menino, quando caía num sábado, tornava-se superior à
prescrição do sábado.
198
Jesus aceita que o conheçam, que saibam de onde ele é. O evangelista estabelece
uma tensão entre o verdadeiro conhecimento, aquele dos discípulos, e o pretenso
conhecimento que só vê a condição humana de Jesus e suas origens terrenas. Jesus proclama,
ao estilo profético121, que não veio porque quis, mas sim por ter sido enviado por aquele que é
verdadeiro e que não é conhecido por seus interlocutores (cf. Jo 7,28). Eles têm a pretensão de
conhecer não só a Jesus, mas também a Deus, pois se dizem seus seguidores; contudo, ao
desconhecer o enviado, desconhecem também o seu outorgante, demonstram que não têm
familiaridade com Deus, pois não compreendem nas palavras de Jesus o ensinamento divino.
No v. 33, Jesus fala do seu retorno a quem o enviou. Uma das características
finais da missão do enviado é o retorno ao emissor com o objetivo de prestar contas da missão
realizada. Jesus tem sempre à sua frente a meta a ser alcançada, pois sabe para o que foi
enviado124. Numa linguagem que evoca por contraste Is 55,6, Jesus diz que haverão de
procurá-lo, mas não o encontrarão (cf. Jo 7,34), pois onde ele estará, eles não poderão ir.
121
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª Parte B, p. 88. – Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 70.
122
Acerca da expressão “porque dele provenho”, Blank afirma: “Desta declaração podemos deduzir que a
„função‟ de Jesus, de „ser enviado‟ por Deus, se reduz evidentemente a uma afirmação ontológica que a
fundamenta e de certo modo a consolida. O „ser enviado‟ de Jesus tem o seu fundamento em sua comunhão de
essência com Deus. Portanto, o envio se identifica com toda a sua existência” (BLANK, O Evangelho segundo
João, 1ª Parte B, p. 88-89).
123
Cf. ZEVINI, Giorgio. Vangelo secondo Giovanni. Roma: Città Nuova, 2009, p. 240. Oîda indica um
conhecimento pleno oriundo de uma visão direta, enquanto ghinôskō se refere a um conhecimento obtido por
experiência ou através do outro.
124
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 313-314.
125
A festa das luzes comemora a inauguração do templo de Jerusalém reconstruído pelos Macabeus em 164 a.C.
e celebra-se logo a seguir à festa dos Tabernáculos. Cf. DIAS, Geraldo J. A. Coelho. Bíblia e Natureza. As
religiões de nossa vizinhança: história, crença e espiritualidade. Porto: FLUP, 2006, p. 33.
199
Jesus e seus adversários a partir do momento em que o enviado se diz “luz do mundo” (cf. Jo
8,12). Retoma-se a temática do testemunho, proposta em Jo 5,31-47; contudo, agora o
argumento de Jesus de que dar testemunho de si mesmo é inválido é colocado na boca dos
seus oponentes (cf. Jo 8,13). Inversamente será a resposta de Jesus, assumindo que seu
testemunho é válido em função de sua condição de enviado, pois conhece sua origem e seu
destino, ou seja, sabe do seu caminho de mensageiro (cf. Jo 8,14).
Jesus estabelece uma condição para sua possibilidade de julgar: ele não está
sozinho (cf. Jo 8,16). A revelação de Jesus é, por natureza, salvífica, porém, para os que não
creem, ela se transforma em motivo de juízo127. Ele e o Pai são um único juiz nessa disputa
entre os que creem no seu nome como enviado e os que o rejeitam. A unidade permite ainda
que Jesus invoque como sua testemunha o próprio emissor, Deus (cf. Jo 8,18). A recordação
de que, de acordo com a lei, somente o testemunho de duas pessoas é válido, reforça a
oposição entre Jesus e os chefes judaicos. Embora conheçam a lei, não conhecem aquele que
vem em nome de quem outorgou a lei. Ao invocar Deus como sua testemunha Jesus cria um
paradoxo, pois o Pai se revela por ele e somente os que creem em sua palavra compreenderão
que por ele o Pai está falando e testemunhando. “O Deus presente em Jesus não pode ser
constatado externamente de modo objetivo”128.
Jesus diz que é o Pai quem testemunha com ele, afirmando uma relação de plena
intimidade com o outorgante e colocando-se numa categoria de enviado em que sua vida está
entrelaçada com a do emissor129. Jesus não é um simples representante de Deus; vive com ele
126
Em Jo 3,17 e 12,47 Jesus manifesta que sua missão não é de julgar nem condenar, contudo “a sua presença no
mundo fez com que os homens se julgassem a si mesmos”. Cf. PACK, Frank. O evangelho segundo João. São
Paulo: Vida Cristã, 1983, p. 138.
127
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 245.
128
WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 345.
129
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 138-139.
200
uma relação amorosa e fecunda a ponto de conhecê-lo e ser por ele conhecido com
intimidade, como um membro da família. Evocar o testemunho do Pai lança o tema do juízo
na sua dimensão escatológica. Jesus não entra num juízo humano como querem os seus
oponentes, mas realiza o juízo desejado por Deus que tem por finalidade levar à plenitude a
obra começada.
A oposição entre alto e baixo deixa claro que Jesus sabe de onde vem, e que não
pertence a este mundo enquanto esfera limitada e fadada à morte (cf. Jo 8,23). Ele vem de
cima, pertence ao mundo de Deus. Os incrédulos indagam: “Quem és tu?”(Jo 8,25). É como
se perguntassem: “Como te atreves a te atribuir tais coisas?”130. Jesus não responde à questão
senão retomando o caminho do ensinamento apresentado no decorrer do evangelho. Ao
devolver a questão aos interlocutores, Jesus os obriga a rever aquilo que ele dissera desde o
início, pois só comunicou o que ouviu do Pai (cf. Jo 8,26.40). O outorgante de Jesus é
verdadeiro e o que dele o enviado ouviu foi comunicado com fidelidade. O lugar de ação de
Jesus é o mundo131, pois esse é marcado pela mentira e carece da verdade, que é Deus. Em
nota do evangelista percebe-se que, apesar de toda a argumentação de Jesus, os incrédulos
judeus não atinam de que o Filho fala sobre o Pai (cf. Jo 8,27), demonstrando que não
reconhecem no enviado o emissor.
Mas haverá um momento em que os incrédulos poderão ainda crer que Jesus é o
enviado? Jo 8,28 sugere que sim. Paradoxalmente, quando o Filho for levantado poderão
saber que o que ele falava aprendeu do Pai. Letourneau vê uma relação de causa e efeito entre
a elevação/glorificação do Filho e o reconhecimento de seu envio 132. O enviado é apresentado
aqui como um discípulo do Pai. Jesus transmitiu o que lhe foi ensinado pelo Pai. A tarefa de
Jesus como mestre é tão somente a realização daquilo que o Pai já vivenciou com ele. Jesus
faz o que o Pai faz (cf. Jo 5,19). Diante da cruz a decisão pela fé ou rejeição é determinante,
pois por ela se define a salvação ou condenação eterna.
130
SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 253.
131
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 352. Jesus age como um embaixador. O destinatário é o mundo.
Esse termo pode expressar o “mundo judaico” como também a abertura do Deus de Israel para todo o mundo na
pessoa de Jesus.
132
Cf. LÉTOURNEAU, Jésus, Fils de l‟homme, p. 301.
201
Homem” é o “enviado de Deus que executa o projeto de Deus e realiza a vitória sobre os
poderes do mundo”133. Jesus vive constantemente na presença do Pai, pois sua fidelidade à
sua vontade paterna faz com que Deus nele habite de um modo extraordinário, possibilitando
que, em Jesus, ele se deixe encontrar e conhecer. Da mesma forma, o discípulo fiel a Jesus
contará com sua presença constante, viverá por ele, como ele vive pelo Pai (cf. Jo 6,57).
Enquanto os judeus replicam serem filhos de Abraão, Jesus argumenta que devem
agir como Abraão (cf. Jo 8,39). Tal personagem bíblico, exemplo de fé judaica, recupera a
fidelidade divina que nunca se ausentou da vida do povo judeu. Agir como Abraão
significaria colocar-se docilmente ao serviço do Senhor, dispondo-se a acolher sua vontade
até em situações extremas. Se desejam a morte do enviado de Deus, comportam-se não como
filhos de Abraão, mas sim como cúmplices daquele que é opositor do Pai, ou seja, o pai das
trevas, o diabo (cf. Jo 8,44).
133
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 210.
134
Cf. LA POTTERIE, Ignace de la. La vérité dans saint Jean: le Christ et la vérité. L‟ Esprit et la vérité. Roma:
PIB, 1977, v. 1, p. 63-64. Pois Jesus é a revelação de Deus; ação impossível ao diabo.
202
Quem é de Deus acredita em Jesus, quem é do diabo rejeita o enviado (cf. Jo 8,45-47).
Embora digam ser filhos de Deus, os incrédulos não amam o enviado (cf. Jo 8,41-42). Se
desde o princípio Jesus esteve com o Pai e quis realizar a sua vontade, o diabo desde o
princípio foi homicida, por isso seus filhos são incapazes também de ouvir o que Jesus lhes
ensina (cf. Jo 8,43-44).
Unido ao seu outorgante o enviado tem plena liberdade para agir em seu nome. A
certeza de que é acompanhado incessantemente pela presença do Pai permite a Jesus agir de
maneira nova, dando testemunho da verdade e sendo por ela testemunhado. Embora não
mencione, João, como bom leitor do Antigo Testamento, sabe que é a presença do Espírito de
Deus junto ao enviado que o faz sentir a própria presença do outorgante. Como nos profetas
ou como em Moisés, Jesus é acompanhado de forma grandiosa pelo Espírito de Deus que
sobre ele repousa. Por esse Espírito vincula-se ao Pai intimamente e tem em sua vida a
presença daquele que o enviou, dando-lhe total autonomia.
135
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 294.
136
MATEOS; BARRETO, O Evangelho de São João, p. 409.
203
colocadas pelo evangelista como a motivação imediata de uma nova controvérsia com os
judeus incrédulos. Segue-se uma nova acusação de possessão demoníaca e loucura137
(cf. Jo 10,20) que, imediatamente, é rejeitada por outros, que creem e que acham as palavras e
o gesto de Jesus incompatíveis com o diabo (cf. Jo 10,21).
A dissensão chega a um momento delicado em que Jesus afirma que ele e o Pai
são um (cf. Jo 10,30). Os judeus novamente querem apedrejá-lo e o clima de tribunal é mais
uma vez instalado (cf. Jo 10,31). Jesus argui por qual obra realizada querem apedrejá-lo
(cf. Jo 10,32). A resposta dos incrédulos gira o foco da questão para a acusação de blasfêmia
(cf. Jo 10,33).
Ao estilo de uma discussão rabínica, Jesus propõe a lei como argumento decisivo.
A menção à lei significa o conjunto das Escrituras, ultrapassando a Torah, inclusive, porque o
versículo citado será dos Salmos. Ali está dito: “Eu disse: sois deuses” (Jo 10,34), referência
ao Sl 82,6a. Para Bühner é importante definir se as palavras do salmo, no seu sentido
histórico, se referem a Israel ou à corte celeste, contudo nas duas hipóteses aplicá-las a Jesus é
extremamente justificável, pois ele é o santificado e enviado ao mundo. O Cristo é aquele que
foi escolhido antes de todos os outros “deuses”, no sentido dos participantes da corte celeste,
para ser enviado ao mundo138. Jo 10,34, aproximando-se de Jo 3,13, sugere novamente o
esquema cósmico da missão.
137
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 377.598. Schnackenburg explica que a frase
de Jo 10,20 traduz a seguinte ideia: “sua linguagem é tão estranha e incompreensível (cf. 8,43) que não vale a
pena continuar a escutá-lo”. E, em nota, o autor afirma que avkou,ein com genitivo dificilmente significa algo
mais que audição externa.
138
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, 393-394. Moisés ocupou o lugar de Deus tanto para Aarão (cf. Ex 4,16) quanto
para o Faraó (cf. Ex 7,1); Zc 12,8 menciona a casa de Davi como ocupante do lugar de Deus.
204
Deus, pois ele foi santificado e enviado pelo Pai139. Os incrédulos deveriam reconhecer a
autoridade de Jesus, pois ele se apresenta em nome de outro e foi para isso enviado e
consagrado. O termo hagiázō demonstra que Jesus veio constituído com o selo de seu
outorgante140. Não é um simples santificado, mas alguém que foi comissionado para uma
missão e, por isso, recebeu todos os atributos necessários para desenvolvê-la em plenitude,
conduzindo a bom termo sua tarefa. Assim, ser santificado e chamado de Filho de Deus se
equivalem na argumentação como condição de enviado legitimamente instituído. Deus está
presente nele, mas isso só é perceptível pela fé141.
As obras (cf. Jo 10,37-38) são o sinal que assegura que o Pai está em Jesus, ou
seja, age por ele. Por sua vez, Jesus está no Pai, pois realiza o que lhe foi solicitado. O
argumento da Escritura evoca o passado religioso, mas o argumento das obras exige o
discernimento do momento presente que só é possível àqueles que vivem em fidelidade às
palavras da Escritura. As informações de Jo 10,40-42 indicam um retorno de Jesus ao além-
Jordão, evocando mais uma vez o testemunho de João (o Batista) e servem também para
estabelecer uma hierarquia entre os dois. O evangelista fecha essa sessão com a afirmação de
que, naquele lugar, longe de Jerusalém, muitos creram em Jesus.
139
“Não seria blasfêmia dizer que Jesus é „deus‟ (cf. 1,1.18).[...] Não dizemos que Jesus tem as atribuições de
Deus, que nem sequer conhecemos; dizemos que Deus é como Jesus e se dá a conhecer no modo de agir de
Jesus. Ora, seria blasfêmia dizer que Jesus se faz Deus, como acusam os adversários (5,18; 10,33). Pois Jesus
não se faz Deus, mas é Filho obediente que recebe sua missão e a cumpre” (KONINGS, Evangelho segundo
João, p. 243). [grifo do autor]
140
O fundo espiritual e religioso do uso de “santificar” é aquele veterotestamentário das vocações profética e
sacerdotal. Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 456. – Algumas pesquisas sugerem que o tema da
consagração em Jo 10,36 estaria vinculado à reconstrução do templo, assim Jesus seria o novo templo. Cf.
ENSOR, Peter W. Jesus and his „works‟: the johannine sayings in historical perspective. Tübingen: Mohr, 1996,
p. 233. nota 25.
141
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 431.
142
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan I-XII, p. 755-756. – Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte
B, p. 345.
205
seu outorgante (cf. Jo 12,44)143. A cristologia do envio é coerente com o princípio de que o
mensageiro apresenta a sua mensagem para que o emissor seja reconhecido por ela. Desta
forma, quem acredita em Jesus, em suas palavras e obras, está acreditando no Pai de Jesus que
com ele vive em profunda intimidade.
Ver Jesus como um enviado de Deus significa decidir-se por ele146. Isso é possível
porque o Pai, na condição de mandante, faz-se presente no seu enviado. Mas ver o Pai em
Jesus só é possível pela fé. Não se trata de uma manifestação objetiva, mas sim de uma
experiência de discernimento em que o encontro com Jesus desperta e encaminha para o
encontro com o Pai. Esse encontro a partir de Jo 13,1 terá como único sinal a cruz, pois Jesus
não realiza nenhum sinal na segunda parte do Evangelho segundo João. Isso significa que
“não há, nenhuma visão ou intuição de Deus (1,18; 5,37; 6,46) à margem da visão de Jesus,
cujo caminho leva à cruz”147.
Jesus é luz para iluminar as trevas, mas não se estabelece como juiz. Esse lugar é
de Deus. Ele é o enviado para salvar, não para condenar. Sendo assim, reconhece também
certa distinção de lugares entre sua ação e a de Deus, contudo, as suas palavras ganham poder
de julgar, pois por elas ele expressou não os seus pensamentos e vontade, mas sim comunicou
o que ouviu do Pai (cf. Jo 12,47-50).
143
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 512. – Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 345.
144
Cf. BÜHNER, Der Gesandte, p. 383.
145
TRAETS, C. Voir Jésus et le père en lui selon l‟evangile de Saint Jean. Roma: PUG, 1967, p. 204.
146
Cf. MORGEN, Afin que le monde soit sauvé, p. 356.
147
WENGST, Interpretación del evangelio de Juan, p. 127.
206
A referência ao último dia (v. 48) causa estranheza, pois a escatologia joanina é
do presente e personificada em Jesus148. Contudo ela pode ser compreendida se vinculada à
ideia de que é no presente que se decide o futuro. Nas escolhas realizadas diante de Jesus se
decide o futuro de perenidade ou não149. Explicitamente diz que o Pai é quem prescreve o que
ele deve dizer e anunciar (v. 49), da mesma forma que, no passado, colocou suas palavras na
150
boca de seu enviado (cf. Dt 18,18-19) . As palavras de Jesus e o seu ensinamento se
assimilam a um mandamento que conduz à vida eterna, sendo esta o conteúdo total da
revelação151. Como a Torah foi dada para assegurar a vida, a palavra de Jesus conduz a ela
(cf. Dt 32,47). As palavras de Jesus não se perdem no tempo e no espaço: elas são acolhidas
por Deus porque cumpriram sua missão e estabelecidas para julgar devido à sua plena retidão
e coerência com o projeto do Pai. Jesus, enquanto palavra, torna-se juiz na plenitude, porque
participa da intimidade do Pai e a ele é comunicado tal direito.
148
“A escatalogia joanina é uma escatologia „personalizada‟ no sentido de que o tempo da Encarnação no fim é
dominado por Cristo, o qual incorpora o eschaton, encerra-o em si e o introduz na história. O advento de Jesus
na carne é definitivo, como também definitiva é a sua volta no Espírito” (GRECH, Prosper. Escatologia e
história no Novo Testamento. In: FABRIS, Rinaldo (org.). Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. São
Paulo: Loyola, 1993, p. 352).
149
Pasquetto fala de um juízo prevalentemente interior e coerente com o princípio de Jo 3,18 (“quem não crê já
está condenado”). Cf. PASQUETTO, Incarnazione e comunione con Dio, p. 67-68.118. – Para Morgen, a vinda
do eschaton se confunde com a vinda mesma de Cristo. Cf. MORGEN, Afin que le monde soit sauvé, p. 88.
150
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 2, p. 521. Schnackenburg credita a citação do
“último dia” a uma acomodação ao pensamento tradicional do cristianismo primitivo.
151
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 348.
207
mas nunca numa situação que seja superior a este. A autoridade de Jesus fundamenta-se no
amor152.
Embora, conforme Brown, João não pense nos discípulos como “apóstolos”, mas
sim como os enviados a pregar a ressurreição153, pode-se compreender que eles são exortados
a se colocarem como enviados, legitimamente constituídos, plenos de autoridade, mas
constantemente referenciados na pessoa do outorgante (no caso, na pessoa de Jesus). Ele dá
um exemplo de humildade que confirma sua autoridade. Ao lavar os pés dos discípulos o
Senhor se faz servo, o mestre porta-se como discípulo, o enviado demonstra sua natureza de
serviço. Praticar o que foi visto e ouvido é a tarefa do discípulo que surge como novo enviado.
152
Cf. BLANK, O Evangelho segundo João, 1ª parte B, p. 50.
153
Cf. BROWN, Raymond E. El Evangelio según Juan XIII-XXI: introducción, traducción y notas. Madrid:
Cristiandad, 2000, p. 856.
154
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 299. – BLANK, Josef. O Evangelho segundo João, 2ª Parte.
Petrópolis, Vozes, 1988, p. 51.
208
Pedro (cf. Jo 13,36-38). Em Jo 14, Jesus conforta os discípulos e se afirma como caminho,
verdade e vida (v. 6). O axioma jurídico do envio aparece na afirmação de Jesus de que se os
discípulos o tivessem conhecido, conheceriam também o Pai (cf. Jo 14,7), pois no enviado
está o Pai e no Pai está o enviado; por isso é caminho para o Pai enquanto revelação da
própria pessoa de Deus155. Quem pode conviver com Jesus pode ver revelar-se diante de si o
rosto do Pai. Não o rosto físico, mas a fisionomia, a identidade, o jeito de agir do Pai. A sua
face benévola.
Apesar do convívio, Filipe pede a Jesus que lhes mostre o Pai e isso lhes bastaria
(cf. Jo 14,8). Tal pedido serve para introduzir a afirmação de Jesus de que quem o viu, viu o
Pai (cf. Jo 14,9). Conhecer e ver formam uma ação de intimidade pela qual se tem acesso para
além da condição terrena de Jesus ao coração eterno do Pai156. Jesus reafirma sua unidade
com o Pai, o que manifesta constantemente pelas obras, e exorta a que creiam nele
(cf. Jo 14,10s). Fala de como os discípulos são associados à sua missão e podem realizar as
suas obras e outras maiores que as feitas por ele (cf. Jo 14,12). Schnackenburg esclarece que,
para o evangelista,
155
Cf. ZEVINI, Vangelo secondo Giovanni, p. 411. – Cf. LA POTTERIE, Studi di cristologia, p. 149. La
Potterie apresenta interessante gráfico onde se visualiza que Jesus é a verdade porque veio do Pai, é vida porque
vive a mesma vida do Pai na realidade terrena, podendo ser considerado perfeito mediador e é caminho porque
por sua vida se conduz ao seio do Pai.
156
O verbo “conhecer” pertence ao vocabulário da Aliança e, em João, “conhecer o Pai” é a modificação da
expressão “conhecer o Nome”. Em Jo 14, “ver” manifesta uma parte do processo do “conhecer” e revela que em
Jesus a humanidade pode realizar seu desejo mais profundo de conhecer e ver (estar face a face) com Deus. Cf.
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João (III): capítulos 13-17. São Paulo: Loyola, 1996,
p. 75-77.
157
Cf. SCHNACKENBURG, R. El Evangelio según San Juan: versión y comentario: capítulos 13-21.
Barcelona: Herder, 1980, v. 3, p. 103.
209
com generosidade para com os que creem em seu nome e vivem conforme os seus
mandamentos (cf. Jo 14,14-15)158.
Em Jo 14,24 novamente se afirma que a palavra de Jesus é aquela que ele ouviu
do Pai e transmitiu fidedignamente, mas que não é guardada por aqueles que não o amam.
Aos que não guardam a sua palavra está reservada a sorte de um isolamento, pois não
participam da comunhão comunicativa prefigurada no v. 23. Novamente a escatologia do
presente pode ser verificada, pois os discípulos são chamados a compreender que a plenitude
não se encontra num além, mas sim na experiência pascal que se vive na comunidade, onde se
pode experimentar uma presença permanente de Deus159. A parusia pascal, segundo João, só
pode acontecer com a vinda do Paráclito160.
O enviado Jesus retornará ao Pai após cumprir sua tarefa, mas a comunidade será
assistida por outro enviado161, o Espírito (cf. Jo 14,25-26) que se encarregará de continuar a
comunhão para aqueles que acolherem as palavras de Jesus. A tarefa do Paráclito, como outro
enviado, será recordar/atualizar162 aos discípulos o que ouviram de Jesus, ensinando-lhes
todas as coisas. Jesus foi um enviado mestre; também o Espírito conservará essa atribuição na
158
Cf. FERRARO, Giuseppe. Lo Spirito Santo nel quarto vangelo. Roma: Borla, 1981, p. 192. “O envio do
Paráclito por parte do Pai „em nome‟ de Jesus significa a união estreitíssima entre o Filho e o Pai na missão do
Espírito e na mediação de Cristo”.
159
Cf. ZUMSTEIN, Jean. L‟évangile selon Saint Jean: 13-21. Genève: Labor et Fides, 2007, p. 82.
160
“O enviado não é portador de uma patente conferida pelo enviante. Jesus não tem outra alternativa senão
continuar a insistir no fato de o Pai tê-lo enviado, quer seus adversários aceitem ou não” (VITÓRIO, Jaldemir.
“Vou preparar-vos um lugar”: leitura e interpretação de Jo 14 na perspectiva da tradição do êxodo. Rio de
Janeiro: PUC/RJ, 1995. Tese de Doutorado. v. 1, p. 105).
161
Cf. ZUMSTEIN, L‟évangile selon Saint Jean, p. 82. O envio do Paráclito é compreendido a partir da
cristologia do enviado. O Paráclito é representante de Cristo para os discípulos.
162
BLANK, O Evangelho segundo João, 2ª parte, p. 138.
210
sua missão, sendo proposto como aquele que ensina à comunidade163. Jo 14,27 menciona a
paz que o enviado possui junto de si e pode comunicar aos discípulos.
163
Cf. FERRARO, Lo Spirito Santo, p. 196.
164
Cf. NICHOLSON, The death as departure: the johannine descent-ascent schema. Chico: Scholars Press,
1983, p. 163. O esquema descendente-ascendente prefigurado na elevação do Filho do Homem (cf. 3,17) se
consumará na cruz. A morte ignominiosa de Jesus é um retorno à glória.
165
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan XIII-XXI, p. 1029. “Por minha causa”, literalmente seria “por causa
do meu nome”, sugerindo a questão de que no nome de Jesus encontra-se o nome de Deus.
166
Cf. WENGST, Interpretación del evangelio de Juan, p. 115-116.
211
seu mandante. Portanto, o pecado dos incrédulos atinge diretamente ao outorgante porque não
aceitaram em Jesus a sua pessoa (cf. Jo 15,22.24)167.
Jesus evoca o Espírito com uma nova função, a de testemunha. O Paráclito será
enviado por Jesus da parte do Pai (cf. Jo 15,26) e no seu testemunho a comunidade encontrará
forças para também testemunhar o Cristo (cf. Jo 15,17)168. Zumstein chama a atenção para o
fato de que “„ser enviado pelo Filho‟ (v. 26b: pe,mpw) e „veio do Pai‟ (v. 26c: evkporeu,omai) são
sinônimos e qualificam o Paráclito como o representante autorizado da revelação no seio da
comunidade pós-pascal”169. Mais uma vez, Jesus se apresenta como o dispensador da casa do
Pai. Ele é quem enviará o Espírito. Tudo o que ele oferece recebeu do Pai, de maneira similar,
o que o Espírito oferece recebeu de Cristo170. Nisso se revela a sua autoridade, que não foi
reconhecida pelos incrédulos, mas será testemunhada pelos novos enviados.
167
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (III), p. 139. O autor sugere que o “eles” não
identificado do v. 21 se refere aos que não conhecem o Pai, diz respeito aos contemporâneos de Jesus, e que a
designação “os judeus”, presente em Jo 1-12, equivale, quando negativa, a “mundo” na segunda parte do
evangelho, pois indica a recusa à revelação feita pelo enviado. – A associação de “mundo” com “judeus”sugere
uma interpretação do conflito entre judeus e cristãos em termos de dualismo teológico e cosmológico. Cf.
KIERSPEL, Lars. The jews and the world in the Fourth Gospel. Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 161.
168
“A diferença fundamental entre o Paráclito e Jesus é que a ação do filho enviado se deu na sarx caduca e
efêmera do homem chamado Cristo. Mas o Paráclito, o Espírito, se fará presente aos discípulos, falar-lhes-á,
consolá-los-á; ajudá-los-á. Mas os discípulos não o verão nem o terão a seu alcance” (TUÑI-VANCELLS, O
testemunho do Evangelho de João, p. 128).
169
ZUMSTEIN, L‟évangile selon Saint Jean, p. 121.
170
Cf. FERRARO, Lo Spirito Santo, p. 214.
212
sua morte como o retorno do enviado171 ao Pai e não como parusia172. Competirá ao Espírito
julgar o mundo na verdade173, elucidando o erro daqueles que rejeitaram o enviado.
171
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 594.
172
Cf. NORATTO GUTIÉRREZ, José Alfredo. La vuelta de Jesús a los discípulos: los rastros de la parusía en el
cuarto evangelio. Bogotá: Pontifica Universidad Javeriana, 2008, p. 286. A segunda vinda de Jesus é substituída
pela vinda do Espírito. – Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João (III), p. 90. Segundo o autor,
João antecipa a parusia no dia de Páscoa, porém a presença viva do Ressuscitado será discernida apenas pelos
seus discípulos.
173
Cf. FERRARO, Lo Spirito Santo, p. 254. Dizer a verdade plena é comunicar toda a revelação manifestada por
Jesus.
174
Em Jo 14,26 é o Pai quem enviará o Paráclito.
175
KONINGS, Evangelho segundo João, p. 340
176
Cf. WENGST, Interpretación del evangelio de Juan, p. 123.
177
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan XIII-XXI, p. 1060.
178
Cf. STEVICK, Daniel B. Jesus and his own: a commentary on John 13-17. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans,
2011, p. 311. Pela oração Jesus expressa a estrutura fundamental de sua relação com o Pai: sua dependência e
obediência.
213
outra coisa não é senão o conhecimento (vínculo profundo) do fiel acerca do Pai e de Jesus
Cristo, o seu enviado (cf. Jo 17,2-3)179.
A atuação de Jesus na terra foi plena de êxito, pois ele afirma que a obra que lhe
foi confiada está consumada (cf. Jo 17,4) e, por isso, suplica ao Pai que lhe conceda a glória
que ele já experimentara antes da existência do mundo (cf. Jo 17,5) 180. Não a pede como
recompensa pela missão realizada, mas sim com o objetivo de levar a pleno cumprimento a
sua livre aceitação da cruz181. Jesus fala do amor, da comunhão perfeita existente entre ele e o
Pai desde todo o sempre. Esse mútuo conhecimento fez com que o Pai confiasse ao seu
enviado todos aqueles que lhe pertenciam, permitindo-lhes guardar suas palavras que foram
ditas com fidelidade (cf. Jo 17,6).
179
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan XIII-XXI, p. 1099. Vê como anômalo o fato de Jesus chamar-se a si
mesmo de “Jesus Cristo” no v. 3 e crê que isso indica uma fórmula de fé, confessional e litúrgica.
180
STEVICK, Jesus and his own, p. 331. O autor considera o paralelismo dos vv. 4 e 5 como sinal de uma
evolução na compreensão cristológica: a ação redentora tem início numa vontade do Pai que se realiza na terra
pela missão de Jesus, cuja obra tem por finalidade manifestar a glória de Deus presente no Filho.
181
Cf. ZEVINI, Vangelo secondo Giovanni, p. 472-473.
182
Cf. FARELLY, The disciples in the Fourth Gospel, p. 77. O evangelista reformula a confissão de fé dos
discípulos (cf. 16,29-30), afirmando que Jesus, enquanto enviado, se considera aceito por eles, aqueles que
acolheram a revelação de sua identidade divina. Assim os discípulos serão colocados numa posição de nova
relação com o Pai através do Filho.
183
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 3, p. 223.
214
mostram como os discípulos já se tornaram participantes da vida eterna, experimentando em
suas vidas a presença amorosa daquele que enviou Jesus e com ele se faz um (cf. Jo 17,11).
Em Jo 17,18 Jesus confere a missão recebida do Pai aos seus discípulos. Essa
outorga concretiza também o que foi mencionado ao longo do evangelho: de que Jesus realiza
aquilo que vê o Pai fazer, e que foi consagrado para tal (cf. Jo 10,36). Portanto, se o Pai o
consagrou e o enviou, da mesma forma ele pede ao Pai que os santifique, e ele, Jesus, envia os
seus discípulos184. Santificação e envio se unem185. Os discípulos só podem desempenhar a
sua função de enviados por terem sido consagrados. A obra está consumada, pois a salvação
que oferece é definitiva e a glória será manifestada plenamente. No entanto, no cotidiano do
mundo, os discípulos são convocados a fazer o mesmo que Jesus: deixarem-se enviar e
cumprir a sua tarefa de conduzir outros ao seu nome e conhecimento, pois o estar no mundo
não será pacífico186.
Embora tenha sido usado um aoristo em enviar (cf. Jo 17,18b), os discípulos ainda
não foram enviados. Segalla vê nessa ocorrência um aoristo perfeito, total, pois Jesus parece
que considera sua missão já completa, concluída187. Se visto assim, a plena realização da
missão de Jesus no mundo é, portanto, repassada aos discípulos, como seus colaboradores e,
por isso, foram santificados na verdade.
O caráter do envio está presente na continuidade da oração, pois Jesus pede por
aqueles que irão acreditar pela palavra dos discípulos (cf. Jo 17,20). Não se trata de um
simples mimetismo, mas sim do cumprimento de uma missão que puderam presenciar de
forma experiencial na pessoa de Jesus e que lhes compete assegurar a continuidade188.
184
Cf. BROWN, El Evangelio según Juan XIII-XXI, p. 1125. A consagração na verdade não é uma simples
purificação do pecado, mas é um comissionamento.
185
O verbo hagiazō refere-se a um agir próprio de Deus que, em função de uma intervenção pontual, escolhe e
separa para si aqueles a quem confere uma missão. Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João
(III), p. 216. – “Por santificação não se entende aqui uma ação ritual destinada a restaurar a pureza perdida, nem
um projeto de aprimoramento moral a ser realizado no tempo. A santificação é o fato de entrar em um
relacionamento íntimo com Deus, tornar-se – através de sua graciosa iniciativa – sua propriedade e conformar
sua vida nesse sentido, é estar ligado com a verdade” (ZUMSTEIN, L‟évangile selon Saint Jean, p. 181).
186
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 629.
187
Cf. SEGALLA, G. La preghiera di Gesù al Padre (Gv 17): un addio missionario. Brescia: Paideia, 1983, p.
186. – Acerca da crítica textual e literária de Jo 17,18 veja-se: GIOIA, Fabio la. La glorificazione di Gesù Cristo
ad opera dei discepoli: analisi bíblico-teologica di Gv 17,10b nell‟insieme dei capp.13-17. Roma: PUG, 2003,
p. 156-158.183-189. – Brown considera verossímel que “o tempo passado se explique desde o ponto de vista
temporal do autor que aludiria à verdadeira missão dos discípulos, iniciada após a ressurreição (cf. Jo 20,21-
22)”. Cf. BROWN, El Evangelio según Juan XIII-XXI, p. 1026.
188
Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 456.676.
215
Jesus não reservou para si nada do que recebeu do Pai. A sua gratuidade enquanto
dispensador dos bens de Deus é lembrada porque por ele os que creram conheceram a glória
de Deus e descobriram a unidade (cf. Jo 17,22). Apresenta-se aqui novamente a meta a ser
alcançada: de que o mundo reconheça Jesus como o enviado de Deus. Retoma-se o argumento
de que Jesus está unido aos seus, aos que nele creram, e também está unido ao Pai. Ele é
quem faz a aproximação amorosa entre a humanidade e o Criador (cf. Jo 17,23).
A vontade de Jesus expressa sua afeição pelos que creem nele. Ele deseja que
experimentem estar onde ele se encontra, ou seja, na intimidade com o Pai, cuja glória/amor é
comunicada abundantemente desde antes da criação do mundo (cf. Jo 17,24). Apesar de
rejeitado por alguns, sua palavra de vida, comunicada com propriedade, foi acolhida, e a
salvação foi generosamente ofertada. Assim, o amor do Pai, presente no Filho, pode tornar-se
realidade na vida dos que o reconheceram como palavra de Deus (cf. Jo 17,25)189.
3.16 Jesus, o enviado que outorga a continuidade de sua missão aos discípulos
(Jo 20,21)
Aquele que desceu de junto de Deus necessita subir novamente para apresentar o
resultado de sua missão. A Maria Madalena compete a missão de, como primeira testemunha
do Senhor190, comunicar aos “irmãos” que Jesus sobe para o Pai e concedeu aos discípulos a
condição de filhos de Deus: “meu pai e vosso pai” (cf. Jo 20,17).
189
Cf. ZUMSTEIN, L‟évangile selon Saint Jean, p. 188. O conhecimento de Deus só é possível porque
mediatizado pelo Cristo. O reconhecimento da identidade de Cristo como enviado é inseparável do ato de
revelação.
190
Cf. FARELLY, The disciples in the Fourth Gospel, p. 82.
191
Cf. SCHNACKENBURG, El Evangelio según San Juan, v. 3, p. 401.
216
e a unidade (cf. Jo 17,11.22.23) caracterizam também a relação inaugurada por Jesus entre
Deus e seus discípulos e são o fundamento da missão deles192.
Mas a constituição desses novos enviados passa também por uma autorização de
poder. Aos enviados por Jesus, da mesma forma que com ele, é permitido perdoar os pecados,
ou seja, agir em nome de Deus (cf. Jo 20,23). A tarefa dos enviados se dá, portanto, em clara
simetria com aquela de Jesus. Pelos discípulos o enviado, que retorna ao Pai, continua a sua
obra. A missão de Jesus tinha por objetivo salvar; assim, o ministério de perdoar, concedido à
comunidade, será a atualização do sacrifício da cruz. Assim como Jesus, a obra dos discípulos
deve provocar um discernimento que se dará pelo confronto com a cruz195. É após mostrar as
mãos e o lado aberto, sinais de que o Ressuscitado é o mesmo que foi Crucificado (v. 20), que
Jesus os envia na força do Espírito. Por reconhecerem que Jesus é o Senhor é que devem
agora anunciá-lo na horizontalidade da vida, prolongando a obra salvífica por ele realizada.
192
Cf. KÖSTENBERGER, Andreas J. The missions of Jesus and the disciples according to the Fourth Gospel:
with implications for the Fourth Gospel‟s purpose and the mission of the contemporary Church. Grand Rapids:
Wm. B. Eerdmans, 1998, p. 189.
193
Cf. WENGST, Il Vangelo di Giovanni, p. 742.
194
Cf. FERRARO, Lo Spirito Santo, p. 316-317.
195
Cf. LA POTTERIE, Studi di cristologia, p. 206-207.
217
4 Envio nos outros escritos joaninos
Evitando qualquer desvio que pudesse assumir um amor distinto daquele vivido
por Jesus, o texto assegura que Deus foi quem primeiramente amou a humanidade, e esse
amor foi manifestado pelo envio do Filho unigênito para que se viva por meio dele
(cf. 1Jo 4,9). Jesus foi o enviado que explicitou o amor de Deus ou, noutra formulação, ao
enviar o Filho, o Pai revelou sua natureza197. “Só quem sabe que o cosmo é o nome
compreensivo das forças opostas a Deus pode perceber esse gesto como um ato de amor”198.
Se os destinatários eram humanos, o mundo foi o lugar de tal vivência, não podendo ser
desprezado. Mas o viver no mundo, após a experiência de se deixar amar por Deus em Jesus,
é marcado pela permanência no Filho, ou seja, vive-se por ele, ou, como na alegoria da
videira e dos ramos, a seiva chega ao ramo porque passa pelo tronco Jesus (cf. Jo 15,5).
Aqui em 4,9 o autor também enfatiza o fato de que aquele que Deus enviou ao
mundo foi o seu único filho, e mais uma vez, a ênfase não é que Jesus foi gerado de
Deus, mas que Deus tem apenas um e único filho, e foi este único filho que ele
enviou ao mundo para que pudéssemos viver por meio dele 199.
O autor ainda insiste em que o amor consiste na aceitação de que Jesus foi o
enviado que amou e perdoou a humanidade em nome do Pai (cf. 1Jo 4,10). É o fato de ter sido
196
Cf. HOULDEN, James Leslie. The Johannine Epistles. London: A&C Black, 1973, p. 31-32.
197
Cf. GIURISATO, Giorgio. Struttura e teologia della Prima Lettera di Giovanni: analisi letteraria e retorica,
contenuto teologico. Roma: PIB, 1998, p. 664.
198
TILBORG, Sjef van. As Cartas de João. In: THEVISSEN, G. et al. As Cartas de Pedro, João e Judas. São
Paulo: Loyola, 1999, p. 251.
199
KRUSE, Colin G. The letter of John. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2000, p. 159.
218
enviado que permite um agir vicário da parte do Filho200. Jesus foi a propiciação dos pecados.
Ele foi o sacrifício generosamente oferecido que resgatou as relações entre Deus e a
humanidade, permitindo a filiação de todos os que creem em seu nome (cf. Jo 1,12). Esse
reconhecimento do amor de Deus deve proporcionar ao fiel um desejo de corresponder
amorosamente ao Pai, amando os seus irmãos em conformidade com o exemplo de Jesus201,
estabelecendo um vínculo de perfeição pela presença do Espírito (cf. 1Jo 4,11-13).
Por fim, em 1Jo 4,14, a comunidade joanina assume sua fé ao dizer que “tem visto
e testemunhado que o Pai enviou o seu Filho como salvador do mundo”. O tema do
testemunho, tão caro ao Evangelho segundo João, é aqui retomado, manifestando que os
discípulos de Jesus são antes de tudo testemunhas, participaram de sua ação e querem viver
como ele. Também o verbo “ver” recorda a profundidade das experiências vividas em
companhia de Jesus e que se prolongam agora na vida da comunidade. Assim, “ao „ver‟ e
„testemunhar‟ que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo, os cristãos joaninos
continuam a missão do Discípulo amado, que esteve presente ao pé da cruz”202. Jesus é o
enviado como salvador do mundo203, conforme ele mesmo anunciara que sua tarefa não era
condená-lo, mas salvá-lo (cf. Jo 3,17; 12,47). A ênfase está colocada na sua condição de soter
tou kosmoun, realçando o valor da morte de Jesus diante dos que se separaram da comunidade
e de que o evento salvífico foi designado pelo Pai204.
200
Cf. MAZZEO, Michele. Vangelo e Lettere di Giovanni: introduzione, esegesi e teologia. Milano: Paoline,
2007, p. 261.
201
Cf. ONISZCZUK, Jacek. L‟amore che crede e discerne (1Gv 4,1-10). Gregorianum. Roma, p. 22. v. 9, jan.
de 2010.
202
LÓPEZ BARRIO, Mario. El amor en la Primera Carta de San Juan. México: Iberoamericana, 2007, p. 52.
203
Cf. MORGEN, Michèle. Les épîtres de Jean. Paris: Cerf, 2005, p. 166. Insiste-se no aspecto soteriológico do
uso do verbo enviar.
204
Cf. KRUSE, Colin G. The letter of John. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2000, p. 164. – Tilborg,
insistindo na condição do cosmo como oposição a Deus, propõe o seguinte acerca da afirmação “Jesus é o
salvador do mundo”: “Isso significa que o homem no mundo tem a possibilidade de crer em Jesus e, assim, ser
salvo deste mundo de mentira e morte”. TILBORG, Sjef Van. As Cartas de João. In: THEVISSEN, As Cartas,
p. 255.
219
4.2 Envio no Apocalipse (Ap 1,1; 22,6)
As duas ocorrências do verbo apostéllō no livro do Apocalipse não se referem à
pessoa de Jesus. Em Ap 1,1 refere-se a um anjo enviado para notificar o servo João acerca da
revelação de Jesus Cristo. O papel dos anjos será fundamental ao longo do Apocalipse e,
portanto, essa menção ao envio a João está diretamente relacionada à função de mediadores
que ambos terão205. Prigent acredita que trata-se de uma adequação do autor do Apocalipse
ao gênero literário que adotou206. Em Ap 22,6 lê-se que o Deus dos espíritos dos profetas
enviou um anjo para mostrar as coisas que aconteceriam em breve. Os anjos são apenas
mensageiros de uma comunicação que tem como verdadeiro autor da revelação a pessoa de
Jesus Cristo207. Nas duas ocorrências não fica evidente quem é o outorgante dos envios;
contudo, não se trata de Jesus. Os anjos são utilizados como intermediários da comunicação
entre Deus e o mundo.
5. Síntese bíblico-teológica
a) O Jesus joanino só pode ser devidamente compreendido na sua obediente relação com o
Pai, seu outorgante.
205
Cf. CORSINI, Eugenio. O Apocalipse de São João. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 81-82.
206
Cf. PRIGENT, Pierre. O Apocalipse. São Paulo: Loyola, 1993, p. 15.
207
Cf. CORSINI, O Apocalipse, p. 392-393.
220
constantemente referenciado na pessoa de Deus, a quem considera como Pai208. A condição
de enviado ressalta que Jesus vive numa obediente relação com o Pai e tem como único
desejo realizar plenamente aquilo de que foi incumbido209. Enquanto enviado ele se reporta ao
seu outorgante como forma de garantir que seu agir e falar expressam a ação e as palavras do
próprio Deus.
A intimidade de Jesus com Deus é realçada pela afirmação de que ele viu o Pai. O
verbo “ver” tem por finalidade demonstrar que houve um conhecimento privilegiado, não
sucumbindo apenas à mera percepção visual. Aponta para uma convivência entre os dois em
208
Cf. PENNA, Romano. I ritratti originali de Gesù il Cristo: inizi e sviluppi della cristologia neotestamentaria.
2. ed. Milano: San Paolo, 2003, v. 2, p. 398-399. Basta recordar os usos de apostellō e pempō, verbos de missão
referidos a Jesus que sempre têm Deus como sujeito.
209
Cf. MAGGIONI, O evangelho de João, p. 386. “Para Jesus a liberdade [...] se alcança na obediência, não no
tomar distância da vontade do Pai, mas no assumi-la em tudo e para tudo. Liberdade e obediência ao Pai
coincidem”.
210
Cf. ASHTON, Understanding the Fourth Gospel, p. 314.318.
211
Cf. ZUMSTEIN, L‟évangile selon Saint Jean, p. 86. “Deus é a origem e a finalidade da encarnação”. As
ações de Jesus não têm nenhuma outra finalidade senão manifestar o poder salvífico de Deus.
212
Cf. MANNUCCI, Valerio. Giovanni el Vangelo narrante: introduzione all‟arte narrativa del Quarto Vangelo.
Bologna: Dehoniane, 1993, p. 35-36. O aspecto narrativo de João demonstra desde o início que Jesus é o
narrador de Deus, pois o conhece e faz conhecer a Deus.
221
que na pessoa de Jesus se dá uma assimilação do jeito do Pai. Desta forma, ele poderá dizer
que faz as mesmas obras que o Pai. Jesus, por essa assimilação íntima e verdadeira comunhão
com Deus, pode afirmar que quem o vê, vê o Pai (cf. Jo 14,9). Não que em Jesus se revele
uma imagem fechada ou pictórica acerca de Deus. No rosto de Jesus, ou seja, na sua forma de
se relacionar com as pessoas no mundo, se revela o rosto daquele Deus que no Antigo
Testamento ocultava sua glória. Jesus é o rosto do Pai porque age com a mesma face
misericordiosa do Deus de Israel213.
Jesus é constituído como enviado, e o evangelista não narra o seu agir como o de
um taumaturgo, mas sim como o de um sinalizador da presença e atuação de Deus no mundo,
como no caso de Moisés. Os sinais de Jesus em João ajudam a compor a sua imagem de
enviado como aquele que revela Deus216. O que ele realiza tem por objetivo não uma
213
Cf. DUPUIS, Jaques. Introdução à Cristologia. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1999, p. 226.
214
Cf. VITÓRIO, Jaldemir. “Vou preparar-vos um lugar”: leitura e interpretação de Jo 14 na perspectiva da
tradição do êxodo. Rio de Janeiro: PUC/RJ, 1995. Tese de Doutorado. v. 2, p. 336-347. O autor apresenta a
relação de semelhança entre Jesus e Moisés, bem como elenca os pontos de diferença e superação do Cristo em
relação a Moisés. – “É bastante provável, baseando-se em fortes semelhanças, que a frequente descrição de Jesus
como agente profético ou enviado de Deus, em João, esteja em parte modelada nas tradições da missão de
Moisés. A hipótese é ainda mais provável na medida em que uma das passagens onde esta noção está
desenvolvida mais plenamente (5,19-47) evidentemente brotou da controvérsia com o círculo judaico,
especialmente devotado a Moisés” (MEEKS, The prophet-king, p. 305). – No período intertestamentário a figura
de Moisés tornou-se o protótipo do libertador, gerando uma expectativa de um enviado que apresentasse as
mesmas características do primeiro redentor de Israel, reencaminhando o povo para Deus e estabelecendo a
realeza do Senhor sobre as nações. Cf. ANDRADE, À maneira de Melquisedeque, p. 98.
215
“Tudo o que se diz de Jesus como revelador do Pai decorre na realidade da sua missão profética. De sorte
que, se bem que não o nomeie com frequência com esse título, contudo João o apresenta como tal através de
todo o seu evangelho” (GONZÁLEZ, Carlos Ignacio. Ele é a nossa salvação. São Paulo: Loyola, 1992, p. 239).
O título profeta surge da boca de interlocutores ou ouvintes de Jesus (cf. Jo 4,19; 6,14; 4,44; 7,40; 9,17).
216
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 450.
222
satisfação imediata do crédulo, nem tampouco uma solução de problemas cotidianos mas,
sim, denunciam uma desordem presente no mundo e apontam para a vontade de Deus.
217
“Os sinais são manifestação da glória para aqueles que estão dispostos a penetrar no mistério de Jesus”
(TUÑI-VANCELLS, O testemunho do Evangelho de João, p. 37). Há, portanto, vínculo com a tradição dos
sinais de Deus na partida do Egito.
218
Cf. MATERA, Frank J. New Testament Christology, Louisville: Westminster John Knox, 1999, p. 217.
Apesar de pertencer à etapa final da organização do evangelho, o Prólogo determina a leitura do conjunto do
texto. O Prólogo controla o modo de leitura e a interpretação da narração do evangelho.
219
Cf. PENNA, I ritratti originali de Gesù il Cristo, p. 421-422.
220
Cf. CARSON, The Gospel according to John, p. 567.
223
O Prólogo afirmou que a Lei foi dada por intermédio de Moisés, mas que a
verdade e a graça vêm por meio de Jesus (cf. Jo 1,17). João tem claro que o enviado Jesus é
superior ao enviado Moisés e todos os outros enviados do Antigo Testamento. O evangelista
elabora certa contraposição entre os dois, construindo a missão de Jesus como definitiva e a
de Moisés como prefigurativa ou passageira. O discípulo Filipe fala de Jesus como aquele de
quem Moisés escreveu na Lei (cf. Jo 1,45). A ação de Moisés ao erguer a serpente prefigura a
exaltação de Jesus (cf. Jo 3,14). Moisés, supostamente atestado como legitimador das ações
dos incrédulos, é arrolado por Jesus como sua testemunha (cf. Jo 5,45-46). A compreensão do
maná ganha nova interpretação e ajuda a discernir que, no agir de Moisés, estava agindo o
mesmo Deus que agora trabalha com Jesus (cf. Jo 6,32). O apego à Lei de Moisés transforma-
se em argumento favorável na boca de Jesus e clara acusação do desejo assassino das
autoridades judaicas (cf. 7,19.22-23). A cegueira dos que dizem enxergar é ainda mais
tenebrosa quando esses se põem como discípulos e conhecedores da origem de Moisés
(cf. Jo 9,28-29)221.
Não aceitar que Deus age em Jesus é também negar a tradição mosaica pois, na
forma como o evangelista articula a sua narrativa, as pessoas de tradição judaica são
confrontadas com um enviado que se distingue sobremaneira da pessoa de Moisés, mas que,
antes de rechaçá-lo, dá-lhe papel de testemunha e acusador dos adversários de Jesus,
permitindo uma nova compreensão e interpretação da Lei. As obras de Jesus, como as de
Moisés, são obras do próprio Deus e que testemunham em favor do enviado. A inabitação do
outorgante em seu enviado possibilita também a inabitação dos dois em quem se dispõe a
trilhar obedientemente caminho semelhante ao seu222. E a inabitação do Espírito, como se
verá acima, será decorrente dessa mesma abertura de vida.
221
“A palavra de Cristo aparece em contraposição frente à palavra de Moisés, e isto não somente enquanto que é
palavra de Moisés senão, provavelmente enquanto que é escrita; mais ainda, nem sequer se chama palavra, senão
simplesmente gra,mma. Assim aparece claramente a palavra de Jesus como palavra falada. Isto aos olhos dos
judeus é um motivo evidente para apreciá-la menos. [...] Ademais, Moisés e;grayen (1,45; 5,47); Cristo evla,lhsen.
Moisés nunca evla,lhsen, Cristo nunca e;grayen (com exceção de 8,6). Entre o e;grayen de Moisés e o tau/ta de.
ge,graptai do final do capítulo 20, o o` gra,yaj tau/ta do final do capítulo 21 ressoa sem cessar o lalei/n de Jesus
Cristo” (GONZÁLEZ MORFÍN, Jesuscristo-Palavra, p. 53-54).
222
Cf. MOLTMANN, Jürgen. God in the world – the world in God: perichoresis in Trinity and eschatology. In:
BAUCKHAM, Richard; MOSSER, Carl (Ed.). The Gospel of John and christian theology. Grand Rapids: Wm.
B. Eerdmans, 2008, p. 377.
224
c) A santidade de Jesus é sinal de sua consagração para o envio e o coloca na condição de
representante autorizado de Deus.
Jesus é o consagrado do Pai. Tal consagração tem uma finalidade clara, que é a de
constituí-lo como seu representante. No Evangelho segundo João, Jesus é santo porque foi
escolhido e consagrado por Deus para uma missão. Sendo assim, a santidade de Jesus
contrapõe-se à santidade nascida do mero cumprimento dos preceitos religiosos 223. Ela é um
reflexo daquela condição própria de Deus. Jesus chama o Pai de santo (cf. Jo 17,11) e naquele
contexto solicita, pela oração, que o Pai santifique, ou seja, separe para si, os discípulos.
223
João apresenta Jesus como “novo Templo”, mostrando que em sua pessoa são superadas as práticas
sacrificiais. A consagração de Jesus é para o serviço de Deus e com a finalidade de manifestar o amor divino à
humanidade. A santidade não é uma purificação dos pecados para o discípulo de Jesus, mas antes uma
continuidade da obra misericordiosa iniciada pelo Mestre. Cf. BAUCKHAM, Richard. The holiness of Jesus and
his disciples in the Gospel of John. In: BROWER, Kent E.; JOHNSON, Andy. Holiness and ecclesiology in the
New Testament. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2007, p. 112-113.
224
Santidade e amor se complementam e se sustentam mutuamente. Deus é santo e é amor. O que o distingue da
esfera terrena é justamente sua capacidade de amar de modo extraordinário. Jesus é a personificação do santo
amor de Deus. Cf. LOCKYER, Herbert. All the doctrines of the Bible. Grand Rapids: Zondervan, 1964, p. 32.
225
Cf. THOMPSON, The God of the Gospel of John, p. 81. João reinterpreta a esperança futura como
experiência e realidade no tempo presente. A escatologia realizada seria uma das funções da cristologia joanina.
226
Cf. LADD, George Eldon. A theology of the New Testament. 10. ed. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans,
1993, p. 293.
225
história humana, como um ser alienígena à nossa humanidade: Jesus é o enviado que
experimenta a condição humana na sua totalidade e lhe dá o pleno significado ao mostrar que
é possível romper com a lógica do mal e colocar toda a vida a serviço de Deus. João insiste
em que o Logos encarnado é aquele, vivente entre os viventes, que experimentará a morte
como realidade própria da condição de humano e que se torna o lugar privilegiado da
revelação e da redenção227.
227
Cf. MOLLAT, Donatien. Introduction à l‟étude de la Christologie de Saint Jean. Roma: PUG, 1970, p. 41.
228
Casalegno retoma a discussão do mito do redentor gnóstico, sintetiza seus principais elementos e pondera que
em João a figura de Jesus não foi construída sobre tal mito. O aspecto descendente visa a responder a por que
Jesus tem poder sobre a morte e foi glorificado pelo Pai. Cf. CASALEGNO, Alberto. Para que contemplem a
minha glória (João 17,24): introdução à teologia do Evangelho de João. São Paulo: Loyola, 2009, p. 207-208.
226
realizados por Jesus, mas terá sua expressão máxima na sua oferta generosa na cruz, revelação
de sua glória229.
Jesus é o Filho de Deus e Filho do Homem que vem para manifestar amor, e não a
ira de Deus. Se o pecado deforma a realidade desejada por Deus, será esse pecado que deve
ser extirpado da face da terra. Na cruz, quando sua missão está concluída, Jesus pode dizer
“tudo está consumado” (Jo 19,30). O Pai demonstrou, nele, sua capacidade de amar ao
229
A glória define o significado da crucifixão e a crucifixão define que a glória de Deus é manifestação do poder
amoroso do Pai. Cf. KOESTER, Craig R. The death of Jesus and the human condition. In: DONAHUE, John R.
(Ed.). Life in abundance: studies of John‟s gospel in tribute to Raymond E. Brown. Collegeville: Liturgical
Press, 2005, p. 153.
230
Cf. BLOMBERG, Craig L. Jesus and the Gospels: an introduction and survey. Nashiville: B&H, 2009,
p. 191. O autor recorda que a morte de Jesus em João parece “docética”, pois Cristo está no controle de todos os
acontecimentos. Essa interpretação carece de fundamentação do próprio evangelho, pois a intenção de João não
parece ser a de colocar Jesus como uma aparência de humano, ao contrário, o Jesus joanino é a sarx de Deus.
João quer demonstrar o quanto Jesus tem liberdade no exercício de sua missão e como a realiza em profundidade
por obediência ao Pai. Ele não veio para julgar, mas na sua paixão, morte e ressurreição, mais uma vez se
recorda que o julgamento está dado: o Filho foi enviado, mas nem todos creram nele.
231
Cf. GUILLET, Jacques. Le Fils de l‟homme: titre eschatologique ou mission prophétique?. In: GIBERT,
Pierre ; THEOBALD, Christoph (Dir.). Le cas Jésus Christ: exégètes, historiens et théologiens em confrontation.
Paris: Bayard, 2002, p. 200. – Cf. TUÑI VANCELLS, O testemunho do Evangelho de João, p. 65.
227
extremo232. Seu enviado realizou plenamente a missão, a ponto de anular-se/entregar-se por
completo, e o Espírito que o fortalecia é cedido aos que nele acreditam.
Deus vence o mal com o amor. A resposta de Deus à violenta rejeição ao seu
enviado é continuar amando e manifestando seu jeito de salvar. João insistirá que o amor de
Deus surpreende sempre, pois não deixa entregue à morte aquele que realizou tão grande
missão. O Pai ressuscita o Filho. A glorificação de Jesus não é apenas a aceitação de sua
ressurreição, mas sim o duro acolhimento de que na sua humanidade e na sua paixão, Deus se
revelou. O Crucificado-Ressuscitado traz marcas que atestam que não se pode pensar no amor
de Deus apenas como ato ligado à cruz, nem tampouco como realidade manifesta apenas na
ressurreição. O Crucificado-Ressuscitado aponta para o início da missão, quando o Logos se
fez carne (cf. Jo 1,14a). É seguindo Jesus, nesse itinerário humano, que se pode compreender
a sua condição de enviado233.
232
Cf. ZEVINI, Giorgio. Evangelio según san Juan. Salamanca: Sígueme, 1995, p. 211. A cruz é a imagem mais
viva do amor de Deus para com a humanidade.
233
Reiser faz peculiar interpretação da manifestação dos estigmas do Ressuscitado para Tomé: “No caso de
Tomé, reconhecer Jesus significava aprender a discerni-lo em homens e mulheres de todo tempo e lugar, não só
na Judeia ou na Galileia, que traziam as marcas da crucificação. Afinal de contas, Tomé estivera pronto a morrer
com Jesus. Agora, talvez aprendesse que também se morre com Jesus quando se vive e se morre ao lado dos
irmãos e irmãs” (REISER, William. Para ouvir a palavra de Deus, escute o mundo!: a libertação da
espiritualidade. São Paulo: Loyola, 2001, p. 120).
234
Cf. ZEVINI, Vangelo secondo Giovanni, p. 362.
228
potencialidades, quem considera que a vida nesse mundo pode e deve expressar os sinais da
presença de Deus. Assim, independente de conhecer nominalmente a pessoa de Jesus ou as
narrativas a seu respeito, acredita em Jesus quem defende a vida e se coloca a serviço dos
irmãos, quem toma o jarro e a toalha e se lança a lavar os pés de outros, assumindo que a
missão de todo ser humano é servir.
O Espírito dado a Jesus não é uma posse pessoal, mas dom concedido em função
da tarefa. Sendo assim, também a concessão do Espírito por parte de Jesus aos seus discípulos
terá essa relevância (cf. Jo 7,39; 14,17.26). Somente os crentes podem acolher o Espírito, pois
são aqueles que se deixaram atrair pelo Pai e confessaram que Jesus é o enviado de Deus. A
eles é reservada a promessa do Espírito porque na ausência do enviado a comunidade será
fortalecida e amparada pelo Paráclito. A comunicação plena com o Pai, realizada pelo Espírito
235
Cf. BROWN, Tricia Gates. Spirit in the writings of John. New York, Clark, 2003, p. 252.
229
na pessoa de Jesus, acontecerá na vida dos discípulos. A presença do Espírito no discípulo
assegura nele a presença do enviado Jesus e de Deus que o enviou.
O Espírito Santo, para o evangelista João, manifesta o amor entre Pai e Filho e,
consequentemente, o vínculo entre o Filho e a comunidade de discípulos. O aspecto
comunitário demonstra que não se deseja uma abundância do Espírito como dom pessoal e
intransferível. É na comunidade que os discípulos poderão captar a extensão e a grandeza do
dom do Espírito. O Espírito não pode ser isolado como se sua existência já fosse o suficiente
para ser discípulo. O Espírito é o vínculo trinitário que permite aos humanos experimentar a
comunhão com Deus. O movimento entre o Pai, o Enviado e o Espírito é constante. A sua
doação à comunidade só é possível porque o enviado encerrou sua missão e retornou ao Pai.
A ação do Espírito visa adespertar a fé no enviado238 e encaminhar o crente para o Pai. O
Espírito é aquele que na história de cada crente permite também a consumação da obra, ou
236
Cf. GOURGUES, Michel. En sprit et en vérité: pistes d‟exploration de l‟évangile de Jean. Paris: Médiaspaul,
2002, p. 281.
237
Cf. BROWN, Spirit in the writings of John, p. 265.
238
Cf. GRASSO, Il Vangelo di Giovanni, p. 602.
230
seja, a maturidade humana para perceber-se como chamado a amar e servir, não se isolando
do mundo e das pessoas239.
f) O envio de Jesus é o fundamento do envio de todo cristão e de todo aquele que vive em
conformidade com o seu nome.
A cristologia do enviado, narrada por João, demonstra que o envio cristão deve
ser referenciado no envio de Jesus. Só faz sentido sair em missão se for para anunciar a
salvação amorosa de Deus240. Qualquer discurso de condenação, baseado em interpretações
legalistas tanto dos textos escriturísticas quanto dos textos do Magistério, sucumbe em
fracasso, por negligenciar princípio imprescindível: o enviado não veio para condenar.
239
O Espírito tem um papel análogo ao dos intercessores celestes, tema valorizado pelo judaísmo, porém o
evangelista faz questão de frisar que a ação do Paráclito é a de defender, proteger e interceder pelos discípulos.
Contudo, sua missão se exerce na terra. Cf. LÉMONON, Jean-Pierre. L‟Esprit Saint. Paris: L‟Atelier, 1998, p.
77. – Lohse recorda o vínculo do tema joanino do Paráclito com o desenvolvimento da designação do Espírito
como “defensor” nos círculos de Qumrân. Cf. LOHSE, Eduard. Théologie du Nouveau Testament. Genève:
Labor et Fides, 1987, p. 216.
240
Ruiz de la Peña faz duas considerações importantes acerca do discurso sobre a salvação e sua referência em
Jesus. “No momento atual, a oferta cristã não recobrou o seu crédito, porque continua sem conectar com a
sensibilidade contemporânea e continua sendo formulada na maioria das vezes – tanto na pregação como na
catequese – em um idioma anacrônico ou esotérico” (RUIZ DE LA PEÑA, Juan Luis. Criação, graça, salvação.
São Paulo: Loyola, 1998, p. 78). “A salvação que anuncia Jesus é amor gratuito, a partir do nada. Por isso, os
des-graçados, os desprovidos de tudo, os espoliados dos valores (justiça) ou de bens (riqueza) são por
antonomásia os agraciados, os destinatários naturais de um amor que só quer dar, não receber” (ibid., p. 81).
231
vivida (cf. Jo 7), a iluminar-se constantemente para a outros também conduzir à luz (cf. Jo 9);
ser pastor, porta, redil a fim de manifestar a vida e sua defesa (cf. Jo 10), a chamar para fora
os mal-cheirosos lázaros da atualidade e restituir-lhes a vida (cf. Jo 11), a fazer do serviço aos
irmãos verdadeira prece cotidiana (cf. Jo 13,1-20), a viver de tal forma que no seu rosto se
vislumbre o rosto do Pai (cf. Jo 14,9), a ligar-se radicalmente à videira e produzir frutos,
amando os irmãos e tornando-se amigo de Cristo (cf. Jo 15,1-17), a celebrar o casamento
amoroso entre Deus e a humanidade (cf. Jo 2,1-25241).
A obra começada por Jesus deve ser continuada no agir do crente. Assim, também
o destino do enviado pode ser o destino do discípulo. A rejeição a Jesus pode se expressar
como rejeição aos seus discípulos e ao projeto de Deus que defendem. Novamente, competirá
ao Espírito auxiliar o crente para permanecer fiel à sua tarefa, a exemplo de Jesus, doando-se
até a morte caso seja necessário. A dimensão martirial está presente no envio de Jesus. Ele
recebe testemunhos, mas também a entrega de Jesus é martírio no sentido de que se professa
ali a radical fé que ele tinha no projeto do Pai e sua obediência filial.
241
Blank sintetiza a continuidade da missão de Jesus na vida dos discípulos da seguinte maneira: “Não se pode
representar legalmente a Jesus se não se adotar o seu caminho, sua posição básica de reconciliação, de renúncia
ao poder e domínio como nos foi mostrado no „lava-pés‟ e, em conexão com ele, em todo o relato da paixão. Por
isso, segundo João, não podemos absolutamente considerar o „envio‟ como uma „transmissão formal e canônica
de poderes eclesiásticos‟, pois isto significaria uma limitação abusiva e arbitrária. Ao contrário, a autoridade
cristã tem sempre um critério objetivo, pois se encontra totalmente sob a exigência do „serviço de Jesus‟. E este
serviço é um serviço de amor, de paz e de conciliação” (BLANK, Josef. O Evangelho segundo João, 3ª parte.
Petrópolis, Vozes, 1990, p. 175-176).
232
g) O Jesus, do Evangelho de João, foi um hermeneuta que a partir das Escrituras
interpretou-se a si mesmo como enviado.
242
O modo israelita de ler a Escritura é caracteristicamente hermenêutico, pois nele se interage com o texto,
procurando o seu significado profundo em relação com a própria existência e abrindo-se para as decisões
decorrentes disso.
243
“Torna-se claro que o Filho encarnado vivenciou em sua consciência humana o mistério de sua relação
pessoal e essencial com o Pai, dentro da vida divina. A consciência subjetiva do filho na humanidade implicava
o conhecimento objetivo e intuitivo daquele de quem, no seio da divindade, o Verbo procede como Filho. Jesus
vê o Pai porque, em sua consciência humana, viveu conscientemente sua relação pessoal de Filho com ele. A
consciência pessoal de Filho envolvia a visão imediata do Pai” (DUPUIS, Jacques. Introdução à cristologia. 2.
ed. São Paulo: Loyola, 1999. p. 166). – “O Jesus de João é inegavelmente um judeu que afirma a validade da
revelação histórica de que seu povo dá testemunho (4,22) e, precisamente em sintonia com essa convicção,
reivindica haver sido enviado por este Deus verdadeiro. Ou seja, na imagem joânica de Jesus, suas conexões
históricas específicas e sua humanidade real resultam fundamentais para a afirmação de seu sentido divino”
(HURTADO, Larry W. Señor Jesucristo: la devoción a Jesús en el cristianismo primitivo. Salamanca: Sígueme,
2008, p. 451).
233
autocompreensão como chamado e enviado em missão. A força motriz de sua vida pública
encontra-se na sua sensibilidade aos clamores de seus contemporâneos conjugada com a
docilidade ao Espírito de Deus. Jesus foi um homem de seu tempo, ou seja, foi uma pessoa
atenta à vida social, política, econômica, cultural e religiosa de sua época.
Ao interpretar a realidade, Jesus considera qual a sua missão enquanto quem está
em verdadeira comunhão com Deus. O seu movimento é o de uma resposta legítima aos
anseios captados, manifestando que, na liberdade do Espírito, ele pode romper determinadas
práticas religiosas e propor novas interpretações sobre o tradicional. A fé de Jesus é a perfeita
tradução da coerência entre a vontade de Deus, expressa nas Escrituras, e as necessidades
manifestadas pela realidade244. Ele responde à vida e às Escrituras, mostrando que Deus fala
na história de maneira muito concreta e que seu amor é salvação.
244
Cf. SEGALLA, Giuseppe. Voluntà di Dio e dell‟uomo in Giovanni: Vangelo e Lettere. Brescia: Paideia,
1974, p. 167. Segalla propõe que a vontade do Pai é continuamente nova, mas Cristo a conhece de maneira
singular porque viu e continuava a ver o Pai.
234
Deus. Sim, a divindade de Jesus se expressa na sua inteira e completa humanidade. Por ele
podemos ver como Deus age e fala, e temos o critério para discernir que nenhum outro até
então conseguiu superar essa sua sintonia de vida e comunhão com o Pai. Em cada cristão
permanece a certeza de que professar a fé no enviado é assumir-se também como quem deseja
ser um hermeneuta e interpretar a si e a vida cotidiana a partir da história e das Escrituras,
permitindo-se ser humano ao extremo do amor, radicalizando em si a obediência filial,
tornando-se dócil aos apelos do Espírito.
6. Conclusão
236
CONCLUSÃO
A palavra de Deus apresentada nas Escrituras revela-se eterna novidade. Deus fala
no diálogo entre o texto bíblico e o texto da história de cada leitor. E nesse intercâmbio de
realidades, o grande fim, meta a ser almejada, é o encontro com quem nos criou e em quem
nos movemos, existimos e somos (cf. At 17,28). A pesquisa aqui apresentada partiu da
cristologia popularizada no ambiente brasileiro, retomou as fontes bíblicas e volta-se
novamente para o presente eclesial.
237
Espírito age em Jesus com a finalidade de que ele vença o diabo e proclame o reinado de
Deus. A automática aplicação do poder de Jesus pelo fiel carismático, graças ao batismo no
Espírito, permite a esse cristão específico sentir-se também com poder suficiente para realizar
atos extraordinários, sempre revestidos de espiritual sobrenaturalidade. Popularizaram-se,
entre os carismáticos, sessões de cura, libertação, exorcismos, fundamentados na crença de
que da mesma forma como Jesus realizou milagres também o fiel carismático pode fazê-lo.
Os milagres apresentados nas narrativas evangélicas não são compreendidos pelos
carismáticos como credenciais que apresentam Jesus como o enviado divino que nos conduz
ao Pai (cf. Jo 14,11).
238
realizaram, como no caso de Moisés, estão destinados, no quadro literário em que se
inscrevem, a evidenciar que naquele enviado o poder de Deus se manifesta e se presentifica.
Portanto, a rejeição ou acolhida do enviado torna-se rejeição ou acolhida de Deus.
Além dos homens enviados, o segundo capítulo também recordou como a palavra,
a sabedoria e o Espírito foram considerados como enviados de Deus. A força e a eficácia da
palavra divina agem no mundo para constituí-lo, fazendo com que a realidade seja
transformada pelo influxo do desejo de Deus. A coerência e força da palavra, como enviada, é
realçada pela imagem de seu regresso a Deus somente após ter cumprido sua tarefa
(Is 55,10,11). A sabedoria foi personificada como dama inteligente que atrai a si os que
querem assegurar a vida eterna. Em contraste com a estultícia, a sabedoria de Deus vem ao
mundo para ajudar os humanos a descobrir o caminho que os conduz a Deus, para iluminar
suas vidas, saciar a fome e sede dos que dela se aproximarem. A sabedoria brinca no universo
e como co-artífice divina auxilia na criação. O Espírito é enviado por Deus e sua tarefa é a de
renovar a terra, concedendo o hálito de Deus aos viventes. Palavra, sabedoria e Espírito são
enviados de Deus que agem no mundo, no cotidiano, mas são percebidos e acolhidos apenas
pelos que têm fé ou desejam a vida.
Outro grupo de enviados recordado pelo segundo capítulo foi o dos anjos. Esses
mensageiros celestes são apresentados como enviados e, de acordo com uma cosmovisão,
funcionam como os comunicadores de Deus aos humanos. A narrativa sobre Rafael no livro
de Tobias apontou para a compreensão de uma mística judaica em que os anjos eram
respeitados por gozarem de uma proximidade com Deus e a corte celeste. Realça-se por meio
dos anjos a capacidade de Deus ouvir as preces de seus fiéis. Porém, a imagem do “anjo do
Senhor” quase sempre é um designativo da presença do próprio Deus em meio ao seu povo.
239
Deus, aquele que revela íntima e profunda relação com Deus e, portanto, pode agir com
liberdade.
A leitura dos Sinópticos confirmou que o termo “enviado” é usado mais para
definir o ser e o agir dos apóstolos (conforme o sentido literal desta designação) do que a
missão de Jesus. As narrativas de envio demonstraram que os apóstolos são enviados com os
mesmos poderes de Jesus e para realizar as mesmas ações salvíficas. Os Doze foram
designados para estarem com Jesus e para serem enviados (cf. Mc 3,14). Os Sinópticos
propõem que o envio se destina a uma clara e inequívoca proclamação do Reino de Deus/dos
céus. A missão dos apóstolos é anunciar. Restringiu-se a pesquisa do envio dos apóstolos ao
uso específico do termo, não se tomando as análogas narrativas de envio em que não se
utilizam os verbos apostéllō e pémpō.
Em Lucas o enviado Gabriel é o agente de Deus. Por meio dele é o próprio Deus
quem executa a transformação da realidade. Gabriel comunica o agir de Deus, interage entre o
celeste e o terrestre para afirmar que Deus é soberano e que nada escapa ao seu plano. Deus
age na história como agiu em outras ocasiões do passado de seu povo. As outras menções a
envio de anjos servem para apresentar Jesus como quem já está estabelecido na glória celeste
e tem poder sobre essa corte.
Ainda no terceiro capítulo, observou-se como nos Atos dos Apóstolos os envios
passam a designar tarefas missionárias. Paulo é personagem fundamental na narrativa dos
Atos como destinatário da ação do enviado Ananias, mas também como aquele que se assume
enquanto enviado, apóstolo, para pregar o evangelho às nações. Na introdução de suas cartas
Paulo se apresentará como apóstolo, enviado. No contexto dos escritos paulinos, a imagem de
Jesus como enviado está associada à sua condição humana: nascido de mulher (cf. Gl 4,4),
numa carne semelhante à do pecado (cf. Rm 8,3). Na Primeira Carta de Pedro e em Hebreus
as ocorrências retomam o tema do envio do Espírito, explicitado também pelos Sinópticos.
Após a ressurreição de Jesus, o envio do Espírito contribui para identificação da missão dos
discípulos com a missão de Jesus.
240
desse estilo de comunicação. O mundo é o lugar de ação dos representantes autorizados de
Deus, por isso, é na condição humana que Jesus pôde revelar o rosto de Deus.
241
na força do Espírito, comprometida com a manifestação da vida eterna e em coerência com o
que foi aprendido junto do Pai. Jesus é santo enquanto aquele que manifesta uma proximidade
tamanha com Deus que lhe permite saber-se Filho. É santo não porque vive segundo um
padrão moral irrepreensível, mas sim por perceber em cada situação qual é a vontade de Deus
a ser por ele realizada. É santo ainda porque em Jesus o Espírito de Deus não foi concedido de
forma limitada. Jesus é quem nesse mundo experimenta uma presença incomensurável do
Espírito. A santidade é consagração para o envio, ou seja, destina-se exclusivamente ao
exercício e êxito da missão a ser realizada.
A RCC pode ser confrontada pela cristologia do enviado com uma cosmovisão em
que o mundo, apesar de suas contradições, é o lugar do agir de Deus. A recusa imediata ao
mundo pode ser interpretada como uma negação da encarnação, pois em Jesus, Verbo feito
carne, Deus assume o risco de uma plena manifestação na história, tornando-se um de nós
para revelar-se amor em plenitude. O apego excessivo à condição divina de Jesus, tão comum
no discurso carismático, pode ser melhor discernido diante da cristologia do enviado, a qual
revela que no homem Jesus há uma densidade salvífica sim, contudo ele é a carne de Deus na
história humana. Sua humanidade não se limita ao emotivo, mas diz respeito a tudo que nos
242
toca na condição de seres limitados, mortais, falíveis. É Deus presente na precariedade da
experiência humana, fazendo-nos descobrir que numa pessoa, igual a nós, se manifesta a
plenitude da vida divina. Recuperar os aspectos humanos integrais de Jesus é tarefa urgente
no meio carismático, pois, caso contrário, poderemos permitir uma popularização de um neo-
docetismo aparentemente ortodoxo e com apoio de parcela da hierarquia católica.
O discernimento que a cristologia do enviado nos permite também pode ser útil às
cristologias do catolocismo popular e das CEBs. Jesus, em João, não se identifica como Deus.
Identifica-se como seu enviado. O evangelista chega à conclusão de que a glorificação do
Filho exige uma compreensão de sua divindade, permitindo-lhe falar de uma preexistência do
Verbo. Faz uma abordagem retrospectiva, em que o momento presente do Ressuscitado é que
ilumina o seu momento a-histórico junto de Deus. A relação de Jesus com o Pai no Evangelho
segundo João mostra clara submissão do Filho. O Pai é maior que Jesus (cf. Jo 14,28), no
sentido de que ele é o outorgante e Jesus, o seu enviado. É do Pai que procedem as decisões,
mas na terra, na condição de enviado, Jesus pode realizar o que decidir por si, pois não o faz
de maneira egoísta e sim em íntima comunhão de vontade com o seu outorgante. O
catolicismo popular brasileiro necessita ainda da cristologia do enviado para vencer o
pietismo diante do sofrimento e a subserviência frente às estruturas de dominação presentes
na organização econômica, política, social e cultural do país. Jesus não é somente o “Bom
Jesus”, mas também o enviado que age com autoridade para transformar estruturas sociais e
religiosas que impedem a liberdade humana fundada na ação libertadora de Deus. As ações de
Jesus em relação ao Templo, ao sábado e outras práticas religiosas judaicas, bem como nas
suas festas, demonstram que, enquanto enviado, ele pôde romper com o já determinado para
instituir novo tipo de relação com Deus, fundamentada na gratuidade, no apreço à vida, no
respeito à diferença, no resgate da dignidade.
243
Compete-nos a humildade de reconhecer que ainda estamos longe de compreender
plenamente tudo o que essa existência divina nos comunicou por sua estada junto de nós.
As grandes linhas de conexão desses pontos tocam ainda nos temas do poder e da santidade,
privilegiando a forma joanina de se compreender os dois na perspectiva da cristologia do
enviado. Talvez ainda se pudesse acrescentar que a realidade eclesial brasileira foi contrastada
com a realidade eclesial manifestada pelo Evangelho segundo João, tendo esta última como
referência para um discernimento do que se propõe sobre Jesus, particularmente, no âmbito
carismático.
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