Lesley Omara - As Melhores Histórias de Gatos
Lesley Omara - As Melhores Histórias de Gatos
Lesley Omara - As Melhores Histórias de Gatos
LEITE FARIA
PREFCIO No h nada de mais apaixonante para quem goste de gatos como eu do que fazer uma nova antologia de histrias de gatos. Sou um pouco como a Sra. Bond da histria dejames Herriot. S que ela tem uma casa cheia de gatos e eu s tenho dez! Cada um dos meus gatos completamente diferente dos outros, na forma, no tamanho e na personalidade, mas nunca tenho favoritos - no deixo que isso me acontea. Gostava de poder pensar e falar como um gato, tal como Emile Zola faz na sua histria O Paraiso dos Gatos. Os gatos tm tido uma histria atribulada. No Antigo Egipto houve uma grande deusa-gato chamada Bast. No Egipto descobriram-se milhares de mmias de gatos, muitas vezes acompanhadas de mmias de ratos que serviam de comida para os gatos no Alm. Depois temos Isabel I e jaime I que metiam todos os gatos que encontravam em sacos de couro ouferkins e penduravam-nos nas rvores para os archeiros praticarem! Esta a origem, penso eu, da expresso tirar o gato do saco porque evidente que havia pessoas que gostavam de gatos e tinham corao. Por falar em corao, O mais espantoso que se, vivermos com gatos - ou com um gato -, h menos probabilidades de termos problemas cardacos ou de hipertenso. Portanto, ns que os amamos e que vivemos comeles, temos realmente muita sorte. Tenho a certeza que o ler histrias de gatos tambm lhes vai fazer muito bem; especialmente se o fizerem com um gato a ronronar no colo! Recomendo-vos de todo o corao a leitura de As melhores histrias de gatos; dar um enorme prazer s pessoas que, como eu, pensam que os gatos so uma verdadeira ma-ron-ron-vilha! Boa leitura! BBRYL REID OBE
O PARASO DOS GATOS Emile Zola Uma tia deixou-me em testamento um gato angor que realmente o animal mais estpido que jamais conheci. Aqui est a histria que o meu gato me contou, numa noite de Inverno, em frente da braseira. 1 Nessa altura eu tinha dois anos e era de certeza o gato mais gordo e ingnuo que imaginar se possa. Nessa tenra idade eu tinha ainda toda a presuno dos animais que desdenham as douras do lar. E, contudo, quantas graas eu devia Providncia por me ter instalado em casa da sua tia! A boa da mulher adorava-me. Tinha, no fundo de um armrio, um verdadeiro quarto, almofada de penas e cobertor almofadado. A alimentao valia a dormida: nada de po, nada de sopa, s carne, bela carne mal passada. Ora bem! No meio de todos aqueles confortos, eu s tinha um desejo, um sonho, que era raspar-me pela janela entreaberta e fugir para os telhados. As carcias pareciam-me inspidas, a fofura da minha cama dava-me nuseas, eu estava to gordo que me enojava a mim mesmo. E durante o dia inteiro aborrecia-me de ser feliz. Devo dizer-vos que, esticando o pescoo, tinha visto pela janela o telhado da frente. Nesse dia estavam l quatro gatos bulha, de plo eriado, rabo no ar, a rebolar ao sol sobre as lajes de ardsia azul, soltando gritos de alegria. Nunca eu tinha visto espectculo to extraordinrio. Desde ento a minha convico tornou-se inabalvel. A verdadeira felicidade estava naquele telhado, para alm daquela janela que to cuidadosamente era fechada. E a prov-lo estava o facto de fecharem do mesmo modo as portas dos armrios atrs das quais se escondia a carne. Decidi ento fugir. Devia haver, na vida, coisas mais interessantes do que carne mal passada. Era o desconhecido, o ideal. Um dia esqueceram-se de fechar a janela da cozinha. Por a saltei para o telhadinho que se encontrava por baixo.
2 Que lindos eram os telhados! Bordejavam-nos grandes caleiras que exalavam perfumes deliciosos. Caminhei voluptuosamente por essas caleiras onde as minhas patas se enterravam numa lama fina que era infinitamente morna e macia. Parecia que estava a andar em cima de veludo. E estava quentinho ao sol, um calorzinho que me derretia as banhas. No vou negar que tremia como varas verdes. Misturado com a minha alegria havia um terror pnico. Lembro-me sobretudo de uma tremenda emoo que quase me fez cair rua. Trs gatos que desceram do cume do telhado vieram ter comigo miando assustadoramente. Mas ao verem-me desfalecer, trataram-me de parvo e disseram que estavam a miar por brincadeira. Pus-me a miar com eles. Era encantador. Os tipos no tinham a minha estpida gordura. Faziam troa de mim quando eu rebolava como uma bola pelas placas de zinco aquecidas pelo sol. Um velho gatarro do bando tomou-se de amizade por mim. Props-se educar-me, o que eu aceitei cheio de gratido. Ah! como estavam longe os bofes da sua tia! Bebi nas caleiras e soube-me melhor que qualquer leite com acar. Tudo me pareciabom e belo. Uma gata passou, uma gata encantadora, cuja viso me encheu de uma emoo desconhecida. S os meus sonhos me haviam mostrado aquelas criaturas deliciosas cuja espinha adoravelmente flexvel. Corremos ao encontro da recm-chegada, os meus trs companheiros e eu. Eu ia frente, preparando-me para apresentar os meus cumprimentos formosa criatura, quando um dos meus companheiros me mordeu cruelmente o pescoo. Soltei um grito de dor. - Pffi - disse-me o gatarro velho, puxando por mim - ainda lhe ho-de acontecer muitas mais.
3 Ao fim de uma hora de passeio, senti um apetite feroz. - Que que se come nos telhados? - perguntei ao meu amigo gatarro. - Aquilo que se encontra - respondeu ele doutamente. Esta resposta embaraou-me porque, por muito que procurasse, no encontrava nada. Vi, finalmente, numa mansarda uma jovem operria que estava a preparar o seu almoo. Na mesa, por baixo da janela, via-se uma bela costeleta de um vermelho apetitoso. - Ora aqui est o que me vai servir - pensei eu muito ingenuamente. E saltei para cima da mesa onde agarrei na costeleta. Mas a operria viu-me e veio atrs de mim com uma vassoura com que me deu uma forte pancada nas costas. Larguei a carne e fugi, soltando um grito aterrador. - Voc chegou agora das beras? - perguntou-me o gatarro. - A carne que est em cima das mesas para ser desejada distncia. nas caleiras que temos de procurar. Nunca consegui entender que a carne das cozinhas no pertena aos gatos. A minha barriga comeava a dar horas furiosamente. O gatarro acabou de me desesperar dizendo que era preciso esperar pela noite. Nessa altura desceramos rua para procurar nos montes de lixo. Esperar pela noite! E ele dizia-me aquilo com toda a calma, como um filsofo empedernido. Eu sentia-me a desmaiar, s de pensar naquele jejum prolongado.
4 A noite caiu lentamente, uma noite de nevoeiro que me gelou. No tardou a chover, uma chuvinha fina, penetrante, empurrada por bruscas rajadas de vento. Descemos pelo vitral de uma escadaria. Que feia me pareceu a rua! J no existia aquele calorzinho suave, aquele grande sol, aqueles telhados brancos de luz onde era to bom esticarmo-nos. As minhas patas escorregavam no pavimento oleoso. Recordei com amargura o meu cobertor acolchoado e a minha almofada de penas. Mal tnhamos chegado rua quando o meu amigo gatarro comeou a tremer. Agachou-se todo e correu rastejando encostado s paredes das casas dizendo-me que fosse atrs dele sem demora. Quando encontrou a porta de um ptio apressou-se a esconder-se a, soltando um ronronar de satisfao. E, como eu o interrogasse sobre aquela fuga, disse: - No viu aquele homem com um saco e um arpo? - Vi. - Ora bem! Se ele nos tivesse visto apanhava-nos e comia-nos em espetada. - Em espetada! - exclamei eu. - Mas, ento, a rua no nos pertence? No se come nada e ainda se comido!
5 Entretanto, tinham vindo despejar o lixo em frente s casas. Desesperadamente, pus-me a escabichar nos montes de detritos. Encontrei dois ou trs magros ossos misturados com cinzas. Foi ento que compreendi como so bons os bofes frescos. O meu amigo gatarro escarafunchava no lixo como um verdadeiro artista. Fez-me andar at de manh, a inspeccionar cada laje, sem pressa nenhuma. Durante quase dez horas apanhei chuva, tremendo de frio. Maldita rua, maldita liberdade, que saudades eu tinha da minha priso! Quando raiou o dia, o gatarro, vendo-me a desfalecer, perguntou com um ar esquisito: - Ento, j est farto? - Oh, se estou! - respondi eu. - Quer voltar para sua casa? - Quero, mas como encontr-la? - Venha da. Esta manh, quando o vi sair, percebi logo que um gato gordo como voc no era feito para as duras alegrias da liberdade. Sei onde a sua casa, vou deix-lo l porta. Dizia isto com toda a simplicidade, aquele digno gatarro. E quando chegmos: - Adeus - disse ele, sem manifestar a menor emoo. - No - exclamei eu - no vamos separar-nos assim. Voc vem comigo. Partilharemos a mesma cama e a mesma carne. A minha dona uma boa mulher... Ele no me deixou acabar. - Cale-se - disse bruscamente. - Voc um parvo. Eu morria nas suas molezas mornas. A sua vida planturosa boa para os gatos bastardos. Os gatos livres nunca compraro pelo preo da priso os bofes e as almofadas de penas... Adeus. E partiu em direco aos telhados. Vi a sua grande silhueta magra estremecer de prazer sob a carcia do sol nascente. Ao entrar em casa a sua tia pegou no chicote e administrou-me uma correco que eu recebi com uma alegria profunda. Gozei imensamente a voluptuosidade de estar no quente e de ser espancado. Enquanto ela me batia eu pensava, deleitado, na carne que depois ela me ia dar.
6 - Est a ver - concluiu o meu gato, espreguiando-se frente s brasas - a verdadeira felicidade, o paraso, meu caro dono, estar fechado em casa e ser espancado numa sala onde h carne. Falo pelos gatos. trad. L. F. LILLIAN Damon Runyon
Sempre disse que Wilbur Willard pura e simplesmente um tipo cheio de sorte porque... que outra coisa poderia ter sido seno a sorte que o fez cambalear pela Rua 49 numa manh fria e com neve quando Lillian miava no passeio procura da me? E que outra coisa poderia ter sido seno a sorte que fez com que Wilbur Willard estivesse completamente bbedo, que tivesse estado a beber uns whiskies com um amigo chamado Haggerty num apartamento da Rua S9? Porque, se Wilbur Willard no estivesse toldado, veria que a Lillian no era mais do que uma gatita preta e passaria de largo porque, como toda a gente sabe, os gatos pretos do azar mesmo quando ainda pequeninos. Mas, como estava toldado, tal como vos disse, para Wilbur Willard as coisas eram muito diferentes e no viu Lillian como uma gatita preta perdida na neve, mas sim como um belo leopardo porque um polcia chamado O'Hara que ia a passar e que conhecia muito bem Wilbur Willard, ouviu-o dizer: - Oh, que lindo leopardo! 1 O polcia deu uma olhadela, pois no queria nada que andassem leopardos a deambular pelo seu sector, j que era ilegal, mas tudo o que viu, como me disse depois, foi aquele odre, Wilbur Willard, a pegar num gatinho preto esqueltico e a enfi-lo no bolso do sobretudo; e ouviu ainda Wilbur a dizer: - Passas a chamar-te Lillian. Depois Wilbur seguiu aos baldes para o quarto no ltimo andar de um velho hotel na 8a Avenida, chamado o Hotel Bruxelas, onde j vivia h uns tempos porque o gerente no tinha nada contra os actores, j que a gerncia do Hotel Bruxelas era realmente muito tolerante. Surgiram ento queixas nessa mesma manh de uma das vizinhas de Wilbur, uma velha burlesca que dava pelo nome de Minnie Madigan, que j no trabalhava desde que Abraham Lincoln fora assassinado, porque ouviu Wilbur a andar pelo quarto atrs de um belo leopardo e ela resolveu chamar o empregado para dizer que um hotel que autoriza animais ferozes no respeitvel. Mas o empregado foi ver ao quarto de Wilbur e encontrou-o a brincar com, pura e simplesmente, um gatinho preto com ar inofensivo e a queixa da velha ficou sem efeito, especialmente porque tambm nunca ningum reivindicara que o Hotel Bruxelas era respeitvel, nem nada que se parecesse com isso. claro que quando Wilbur deixou de estar sob a aco dos vapores do lcool na manh seguinte, percebeu que Lillian no era um leopardo e efectivamente ficou espantado por se encontrar na cama com um gatinho preto, porque parece que Lillian estava a dormir em cima do peito de
Wilbur para se aquecer. A princpio Wilbur no quis acreditar no que estava a ver e atribuiu tudo aquilo ao whisky do Haggerty, mas finalmente convenceu-se, meteu a Lillian no bolso e levou-a at ao night club Hot Box e deu-lhe leite, coisa de que Lillian pareceu gostar muito. Ora, donde vinha a Lillian? Isso claro que ningum sabia. Talvez algum a tivesse atirado pela janela para a neve, porque em Nova Iorque as pessoas esto sempre a atirar gatinhos, e outras coisas, pela janela fora. Efectivamente, se h algo que esta cidade tem a rodos, gatinhos, que acabam por crescer e ficar gatos e andam a virar os caixotes do lixo, a miar pelos telhados, acordando toda a gente. Pessoalmente os gatos no me servem para nada, inclusive os gatinhos, porque nunca encontrei nenhum que me trouxesse grandes vantagens, embora conhea um tipo que se chama Pussy McGuire que tem uma vida de nababo s a roubar gatos, e s vezes ces, e a vend-los a velhotas que gostam muito dessa companhia. Mas Pussy s rouba gatos persas e angors, que so gatos muito finos e, como evidente, a Lillian no era assim to chique. Liilian no passava de um gato preto e, nesta cidade, ningum d um chavo por gatos pretos, pois so normalmente tidos como muito agoirentos. E mais, acontecia que da a algumas semanas Wilbur Willard podia muito bem passar a chamar-lhe Herman ou Sidney, ou outra coisa qualquer, mas Wilbur insistia em Lillian, porque era esse o nome da sua parceira - quando ele andara no vaudevilie h uns anos atrs. Falava-me muitas vezes em Liilian Withington quando estava com os copos, o que alis era muito frequente, pois Wilbur era um bom copo - whisky, de malte ou no, bourbon, gin, ou qualquer outra coisa que estivesse mo, excepto gua. Efectivamente, Wilbur Willard era um bebedor de primeira e de nada servia dizer-lhe que neste pas beber era ilegal porque isso s o enfurecia mais e mandava a lei s malvas, s que Wilbur Willard usava uma palavra muito mais forte do que malvas. - Ela era como um belo leopardo - contava-me Wilbur sobre Lillian Withington. - Com os cabelos e os olhos pretos e toda encrespada, como um leopardo que eu vi num nmero com animais que actuou uma vez no mesmo espectculo que ns no Palace. Nessa altura ramos cabea de cartaz - dizia ele. - Willard e Withington, o melhor nmero de dana e canto do pas. - Apanhei-a em San Antonio, que uma terra no Texas - dizia Wilbur. - Ela tinha sado h pouco de um convento e eu acabara de perder a minha antiga parceira, Mary McGee, que morreu ali minha frente de pneumonia. Lillian queria ir para o palco e juntou-se a mim. Uma actriz nata e com uma ptima voz. Mas tal qual um leopardo - tal qual um leopardo. Havia algo de gato nela e os gatos e as mulheres so ambos ingratos. Amo a Lillian Withington. Queria casar com ela. Mas ela era fria comigo. Dizia que no havia de passar toda a vida no palco. Dizia que queria dinheiro e luxos e uma boa casa e, claro, um tipo como eu no pode dar essas coisas a uma boneca. - Rendi-me totalmente a ela - contava Wilbur. - Passei a ser escravo dela. No havia nada que no fizesse por ela. At que um dia, em Boston, ela veio ter comigo e, friamente, disse-me que me ia deixar. Disse-me que ia casar com um tipo rico de l. evidente que o nosso nmero acabou e eu nunca mais tive coragem de procurar outra parceira e ento pus cinta esta velha garrafa preta e hoje que sou eu seno um artista de cabar? Ento, s vezes, ele desatava a chorar e s vezes eu chorava com ele embora, quanto a mim, Wilbur se tivesse safado de boa, livrando-se de uma tipa que queria coisas que ele no lhe podia dar. H muitos
tipos nesta cidade que andam enredados com tipas que querem aquilo que eles no lhes podem dar mas que, numa tentativa para as acalmar, se mantm enredados e humilhados. Wilbur fazia um bom dinheiro como entertainer no Hot Box, embora gastasse a maior parte em whiskies e nem sequer era um mau entertainer. Eu ia com frequncia ao Hot Box quando me sentia em baixo para o ouvir a cantar Melancholy Baby e Moonshine Valley e outras canes tristes que me partiam o corao. Pessoalmente no percebia por que que as garotas no se apaixonavam pelo Wilbur, principalmente quando ele cantava canes como Melancholy Baby, bem entrado nos copos, porque ele era um tipo alto, bem parecido, com grandes pestanas e olhos castanhos, sonolentos, e a sua voz tinha um tom grave, lamentoso que normalmente lhes caa no goto. um facto que muitas garotas se atiravam a Wilbur quando ele estava a cantar no Hot Box mas, por qualquer razo, Wilbur nunca lhes ligava porque, e era o que eu achava, s pensava em Lillian Withington. Bom, depois de ter encontrado a Lillian, a gatita preta, Wilbur pareceu ganhar um novo gosto pela vida e a Lillian acabou por se tornar bem engraadinha e nada feia depois de Wilbur lhe dar boa comida. Era negra que nem um tio, sem uma nica mancha branca, e crescia to depressa que em breve Wilbur deixou de a poder trazer no bolso e ento ps-lhe uma trela e andava com ela sempre atrs. Foi assim que Lillian passou a ser muito conhecida na Broadway, com Wilbur a lev-la a todo o lado e finalmente j nem era preciso lev-la pela trela pois ela seguia Wilbur como um cozinho. E naqueles loucos anos 40 no havia um nico cachorro que se metesse com a Lillian pois ela saltava-lhes em cima num abrir e fechar de olhos, arranhava-os e mordia-os at eles se sentirem felizes por se verem livres dela. Mas claro que os cachorros nos anos 40 eram fundamentalmente chow-chows, pequinses e lulus da Pomernea ou pequenos ces de gua brancos e felpudos que eram passeados por loiras e que no estavam preparados para enfrentarem um gato esperto. De facto, Wilbur Willard no se dava l muito bem com nenhuma pequena que tivesse um cachorro entre Times Square e Columbus Cir, e o que todas queriam era que Wilbur e Lillian fossem dar uma volta ao bilhar grande. Alm disso, Wilbur tinha alguns problemas com tipos que tambm pertenciam s garotas, mas Wilbur no era nenhum aselha quando se tratava de zaragatas se no estivesse muito toldado e com as pernas pesadas. Depois de entreter as pessoas do Hot Box, Wilbur costumava dar uma volta pelos speakeasies que ainda estavam abertos e bebia mais uns copos para alm dos que j bebera no Hot Box, e tinham sido muitos, e embora fosse considerado muito perigoso nesta cidade misturar as bebidas do Hot Box com outras, isso nunca pareceu preocupar Wilbur. J de manh levava algumas garrafas de whisky para o quarto no Hotel Bruxelas e usava-as para atestar e assim, quando Wilbur Willard estava pronto para finalmente adormecer, tinha tanto lcool deste e daquele tipo dentro dele que dormia que nem um justo. claro que ningum na Broadway censurava Wilbur por ser um beberro, porque sabiam daquele amor por Lillian Withington que perdera e, nesta cidade, o ter-se perdido a garota uma boa desculpa para um tipo beber daquela maneira e por isso que se bebe tanto aqui, mas ningum conseguia perceber como que Wilbur aguentava tanto lcool sem rebentar. Os cemitrios estavam cheios de tipos que bebiam bem menos que Wilbur, mas ele nem sequer parecia sentir-se mal ou, se que se sentia, no o manifestava e no andava pelas esquinas a dizer que era da porcaria do lcool que ento se arranjava. Num Inverno Wilbur fez perder muita massa a uns tipos que
frequentavam a Mindy porque, ao fim da noite, comeou a ir beber ao speakeasy Good Time Charley, e os rapazes apostaram 4 contra 1 em como ele no passava da Primavera, pois nunca imaginaram que um tipo que bebia tanto lcool do Good Time Charley conseguisse sobreviver. Mas Wilbur Willard conseguiu e toda a gente o passou a considerar como um super-homem nato, e pronto. Por vezes, Wilbur aparecia no Mindy com a Lillian atrs, sempre atenta aos cachorros ou, se o tempo estava mau, em cima do seu ombro, e os dois sentavam-se ao p de ns e ali ficavam horas a fio no paleio sobre isto e aquilo. Nessas alturas, Wilbur trazia normalmente uma garrafa cinta e, de vez em quando, dava uma golada, mas evidente que isto para ele no era beber a srio. Quando Lillian estava com Wilbur, ficava normalmente o mais perto possvel dele e toda a gente percebia que ela gostava muito de Wilbur e que ele gostava muito dela, embora por vezes ele se enganasse e falasse dela como de um belo leopardo. Mas claro que isso no passava de um lapsus image e era evidente que se Wilbur lhe apetecia pensar que a Lillian era um leopardo, ningum tinha nada a ver com isso. - Provavelmente ela foge-me um dia destes - dizia Wilbur, fazendolhe festas nas costas at o plo comear a estalar. - E. Embora lhe d muito figado e comida de gatos, e isto e aquilo, e todo o meu carinho, ela um dia destes diz-me adeus. Os gatos so como as mulheres e as mulheres como os gatos. So muito ingratos. - Trazem , normalmente, azar - dizia Big Nip, o jogador de poker. - Especialmente os gatos, e muito especialmente aos gatos pretos. Havia muitos outros tipos que diziam a Wilbur que os gatos pretos davam azar e aconselhavam-no a atirar Liilian ao North River atada a um chumbo, mas Wilbur respondia que j tinha tido todo o azar do mundo quando perdeu Lillian Withington e que a Lillian, a gata, no lhe podia fazer pior e por isso continuou a tratar dela e a Liilian continuou a crescer, a crescer, ao ponto de eu ter comeado a pensar que talvez houvesse qualquer coisita de So Bernardo naquela gata. Finalmente comecei a notar algo de estranho em Liilian. s vezes parecia muito meiga com Wilbur e outras vezes tornava-se muito desagradvel, bufava-lhe, arranhava-o e tornava-se muito hostil. Davame a ideia de que andava bem quando Wilbur estava com os copos, mas ficava triste e irritada quando ele estava sbrio, quando estava s um bocado toldado. E quando Lillian se sentia triste e irritada, no dava trguas aos cachorros da vizinhana do Bruxelas. Com efeito, a Lillian gostava de perseguir cachorros, de se esgueirar quando Wilbur estava a descansar e de correr atrs dos cachorros de pernas tortas, especialmente quando encontrava um sem trela. Um cachorro livre era pra doce para Lillian. evidente que isto causava uma enorme consternao junto das donas dos cachorros, sobretudo quando a Lillian apareceu um dia em casa com um pequins do tamanho dela pendurado pelo pescoo e com uma loira toda excitada atrs a gritar seu assassino porta de Wilbur Willard, enquanto a Lillian irrompia pelo quarto de Wilbur adentro, por um buraco que ele fizera de propsito para ela, ainda a arrastar o pequins. Mas, em vez de ficar furioso com a Lillian e de lhe dar uma boa sova por tudo aquilo, Wilbur pareceu contente porque acontece que ele ainda estava toldado quando a Lillian apareceu com o pequins e imaginou que a Lillian era um belo leopardo. - Ena! - dissera Wilbur. - Que dedicao! O meu belo leopardo foi selva e trouxe-me um antlope para o jantar. claro que isto era um absurdo porque um pequins no tinha nada a ver com um antlope, mas a loira do outro lado da porta de Wilbur
ouvia-o a resmungar algo e convenceu-se de que ele ia mesmo comer o seu pequins ao jantar e a gritaria que fez foi verdadeiramente terrvel. Houve uma enorme barafunda no Bruxelas para aplacarem a fria da loira que gritava que a Lillian lhe havia roubado o pequins e o pior foi que o eterno apaixonado da loira, que era um contrabandista bruto e italiano, chamado Gregorio, apareceu no Hot Box na noite seguinte e quis dar uma sova a Wilbur Willard. Mas Wilbur enrolou-o com umas bebidas e com a Melancholy Baby e antes de sair o italiano ficou muito sentimental com Wilbur e tambm com a Lillian e quis que Wilbur aceitasse umas moedas para que Lillian voltasse a apanhar o pequins mas prometendo no o devolver. Pelos vistos o Gregorio no gostava l muito do pequins e s estava a dar-se ares de brigo para agradar loira e faz-la pensar que a amava muito. Mas percebi que a Lillian era de luas e acabei por perguntar a Wilbur se ele notava alguma coisa. - Sim - disse-me ele muito triste - parece que no consigo captar o amor dela. Est a tornar-se muito caprichosa. Um tipo mudou-se no outro dia para o meu andar no Bruxelas, com um garoto, e a Lillian ficou logo muito amiga do mido. So grandes amigos. Pois - disse Wilbur - os gatos so como as mulheres. O amor deles no dura muito tempo. Aconteceu que fui ao Bruxelas uns dias depois para dizer a um tipo chamado Crutchy, que vivia no mesmo andar de Wilbur Willard, que havia uns cidados que no gostavam da cara dele e que seria uma boa ideia ele abandonar a cidade, especialmente se insistisse em trazer cerveja para o territrio deles, e vi a Lillian na entrada com um mido que devia ser o garoto de que Wilbur falara. O garoto devia ter uns trs anos, era muito engraadinho, de cabelo e olhos pretos e fazia judiarias a Lillian de uma maneira assaz surpreendente j que a Lillian no era um gato que gostasse muito de judiarias, nem mesmo quando feitas por Wilbur Willard. Perguntei a mim mesmo como que havia pessoas que levavam um mido daqueles para um lugar como o Bruxelas, mas conclu que devia ser o filho de algum artista e que talvez no tivesse me. Mais tarde estava eu a falar com Wilbur acerca disto e ele disse-me: - Bem, se o pai do mido actor, no est a trabalhar. Fica fechado no quarto durante todo o dia e s deixa o mido ir at ao hall da entrada e eu tenho pena do garoto e por isso que deixo a Lillian brincar com ele. Ora aconteceu que estava muito frio e estvamos uns quantos no Mindy por volta das cinco da manh, quando se ouviu a sirene dos bombeiros a passar. Nessa altura apareceu um tipo que dava pelo nome de Kansas, que se chamava assim porque viera do Kansas, e que era um jogador profissional. - O velho Bruxelas est a arder - disse esse tal de Kansas. - Est sempre a arder - disse o Big Nig, querendo dizer com isso que havia sempre sarilhos bem escaldantes no Bruxelas. Quem que havia de entrar ento seno Wilbur Willard? E toda a gente percebeu logo que vinha nas nuvens. Devia vir do Good Time Charley e j devia estar bem atestado. Nunca vira Wilbur Willard to bbedo. No trazia a Lillian consigo mas ele tambm no levava a Liilian ao Good Time Charley porque o Charley detestava gatos. - Ei, Wilbur - disse o Big Nig - a tua espelunca, O Bruxelas, est a arder. - Bom - disse Wilbur - eu sou um pirilampo e preciso de lume. Vamos procura de lume. O Bruxelas ficava apenas a uns quarteires do Mindy e como no
havia nada que fazer por ali, uns quantos de ns foram at 8.a Avenida, com Wilbur aos baldes nossa frente. A velha espelunca estava mesmo a crepitar quando l chegmos e a vimos de perto, e os bombeiros lanavam-lhe gua para cima e os polcias estendiam as barreiras para impedirem as pessoas de se aproximarem, embora no houvesse l muita gente quela hora da manh. - No uma maravilha? - exclamou Wilbur olhando para as chamas. - No como um palcio encantado todo iluminado? que Wilbur no percebia que aquilo estava a arder embora houvesse homens e mulheres a fugirem l de dentro, a maior parte deles meio despidos ou nus e os bombeiros estivessem a colocar as redes de emergncia para o caso de algum querer saltar pelas janelas. - mesmo bonito - disse Wilbur - tenho de ir buscar a Lillian para ela ver isto. E antes que algum tivesse sequer tempo de pensar, j Wilbur Willard se dirigia para a porta principal do Bruxelas como se nada tivesse acontecido. Os bombeiros e os polcias ficaram to pasmados que a nica coisa que fizeram foi gritar a Wilbur, mas ele no lhes ligou. Bom, claro que toda a gente achava que Wilbur estava perdido, mas, dez minutos depois, ele saa pela mesma porta entre chamas e fumo com o ar mais calmo do mundo e com Lillian nos braos. - Sabem - disse-nos Wilbur dirigindo-se ao stio onde estvamos de olhos esbugalhados - tive de subir a p at ao meu andar porque os elevadores no funcionam. O servio est cada vez pior neste hotel. Hei-de apresentar queixa gerncia logo que pague alguma coisa por conta. Ento a Lillian lanou um fortssimo miado, saltou do colo de Wilbur, passou a correr por entre polcias e bombeiros com o plo todo eriado e o que toda a gente viu a seguir foi ela a lanar-se pela porta do velho hotel adentro com uma enorme rapidez. - Olhem, olhem - exclamou Wilbur com um ar muito espantado - l vai a Lillian. E o que que o doido do Wilbur fez seno dar meia volta e regressar ao Bruxelas e por essa altura j o fumo saa pela porta da frente e era to espesso que, em segundos, ele deixou de se ver. evidente que apanhou bombeiros e polcias desprevenidos porque no estavam acostumados a que as pessoas andassem a entrar e a sair dos incndios mesmo frente dos seus narizes. Dessa vez quem estava por ali no hesitou em apostar - dois e meio e talvez trs contra um - em como no aparecia mais, porque o velho Bruxelas explodia nessa altura em chamas e fumo vindos das janelas de baixo embora parecesse no haver muitas chamas nos andares de cima. Tudo indicava que j toda a gente sara do prdio e at os bombeiros combatiam o incndio do lado de fora porque o Bruxelas estava to velho e decrpito que no valia a pena arriscarem-se para salvarem os andares. Isto , estava toda a gente l fora menos o Wilbur Willard e a Lillian, e na nossa opinio, eles estavam a rilhar algures l dentro embora o Feet Samuels andasse por ali a aceitar apostas de treze contra cinco em como a Lillian iria aparecer s e salva porque o Feet asseverava que os gatos tinham nove vidas e que era uma boa aposta. Bom, de repente apareceu uma pequena bonitita, toda histrica, a empurrar e a esbracejar por entre a multido at s barreiras, a gritar at ningum se conseguir ouvir e nessa altura toda a gente ouviu uma voz a fazer io-de-d-i-ti, como um cantor dos Alpes suos, vinda do telhado do Bruxelas e, olhando para cima, vimos Wilbur Willard na beira do telhado, por cima das chamas e do fumo, a gritar muito alto. Debaixo de um dos braos, tinha um grande embrulho, no se sabia
de qu, e debaixo do outro, o garoto que eu vira a brincar no hall com a Lillian. Ao mesmo tempo que ele estava ali a cantar como um alpino, a pequena bo nitota que estava ao p de ns, comeou a gritar mais alto do que o canto de Wilbur e os bombeiros apressaram-se a esticar uma rede debaixo do stio onde ele se encontrava. Wilbur lanou ento um segundo io-de-l-i-ti e atirou-se todo esticado, com o embrulho e o garoto, mas chegou rede de rabo e durante alguns minutos ficou a saltar para cima e para baixo at que parou. O facto que Wilbur gostava daquele balanar e ainda agora estaria ali no fora os bombeiros terem largado a rede e o terem deixado cair ao cho. Ento Wilbur saltou da rede e vi que o embrulho era um cobertor enrolado com os olhos de Lillian a aparecerem numa das extremidades. Continuava com o mido debaixo do outro brao, de cabea para a frente e pernas para trs, dando a ideia de que segurava com mais cuidado a Lillian do que o garoto. Ficou ali a olhar para os bombeiros com um ar zombeteiro e finalmente disse: - No pensem que me apanham na rede se eu no quiser. Sou uma borboleta, e dificil de apanhar. Depois, de repente, a pequena bonitota que tanta gritaria fazia, atirou-se a Wilbur, arrancou-lhe o garoto e desatou a abra-lo e a beij-lo. - Wilbur - dizia ela. - Bem hajas Wilbur por teres salvo o meu filho! Oh, obrigada Wilbur, obrigada! O sacana do meu marido raptou-o e fugiu com ele e s h umas horas atrs que os meus detectives descobriram onde ele estava. Wilbur olhou estranhamente para a pequena durante uns segundos e comeou a afastar-se mas, nessa altura, a Lillian tentou esgueirar-se do cobertor para fora, com um ar chamuscado e com um cheiro a condizer, e o mido viu a Lillian e desatou a gritar e Wilbur acabou por lhe passar a gata. E como no a queria deixar, ficou por ali um pouco confuso, a pequena falou com ele e finalmente afastaram-se ambos, Wilbur carregando o mido e o mido carregando a Lillian e esta sentindo-se mal com as queimaduras. E mais, Wilbur estava provavelmente sbrio, coisa que, quela hora da manh, no acontecia h anos. Mas, antes de desaparecer, ainda tive a possibilidade de falar com Wilbur e das suas palavras depreendi que a primeira vez que fora buscar a Lillian a encontrara no quarto e no vira vestgios do mido e nem se lembrara dele, porque no sabia em que quarto estava pois nunca ligava a essas coisas. Mas, da segunda vez que l fora, Lillian estava a cheirara frincha da porta de um dos quartos ao fundo do corredor e Wilbur disse-me que se lembrava de ter visto algo como umas pingas de gua a sarem da frincha. - E - disse-me Wilbur - como andava a procura de um cobertor para a Lillian e no estava para voltar ao meu quarto, pensei que ali talvez arranjasse um. Tentei o puxador mas a porta estava trancada e ento meti-a dentro com um pontap, entrei e vi que o quarto estava cheio de fumo e as chamas estavam paulatinamente a lamber as janelas, e quando tirei um cobertor da cama para embrulhar a Lillian, o que que me apareceu debaixo do cobertor? O mido. - Bom - acrescentou Wilbur - o mido guinchava, a Lillian miava e gerou-se uma tal confuso que comecei a ficar nervoso e portanto achei que era melhor irmos at ao telhado para acabar com aquele cheiro e vermos o fogo de l. Pareceu-me ver um tipo esticado no cho do quarto ao lado de uma mesa tombada entre a porta e a cama. Tinha na mo uma garrafa e estava morto. claro que no valia a pena andar com um morto
atrs e assim, peguei na Lillian e no mido e fui at ao telhado e depois vomos todos como os colibris. Agora preciso de beber um copo acrescentou ele. - Ser que algum traz no cinto algo que se beba? Bem, no dia seguinte, Os jornais vieram, naturalmente, cheios de notcias sobre Wilbur e Lillian, especialmente sobre Lillian e ambos passaram a ter o estatuto de grandes heris. Mas Wilbur no aguentava a publicidade por muito tempo porque deixava de ter tempo para si, para os seus copos, com os reprteres e os fotgrafos sempre em cima dele, a quererem ouvir a sua histria e a tirarem mais umas fotos a ele e Lillian e assim, uma noite desapareceu e a Lillian desapareceu com ele. Um ano mais tarde acabou por casar com a sua antiga pequena, a Lillian Withington-Harmon, comeou a ganhar muita massa e, mais do que isso, deixou de beber e, fosse como fosse, tornou-se um cidado muito respeitvel. Portanto, toda a gente acabou por admitir que os gatos pretos nem sempre do azar, embora eu diga que o caso de Wilbur um pouco a excepo regra porque partida ele no sabia que a Lillian era um gato preto, mas pensava que era um leopardo. Um dia, por acaso, encontrei Wilbur, todo bem vestido, com boas roupas, jias e todo janota. - Wilbur - disse-lhe eu. - Penso muitas vezes como espantoso que a Lillian se tenha afeioado tanto ao mido, assim de repente, e se tenha lembrado que ele estava no hotel e te tenha levado l, uma segunda vez, ao quarto certo. Se no o tivesse visto com os meus olhos, nunca acreditaria que um gato tivesse discernimento suficiente para fazer uma coisa dessas, porque acho que Os gatos so muito estpidos. - Qual discernimento qual qu - disse-me Wilbur. - A Lillian no via um boi frente dos olhos. E alm disso ela tinha tanta afeio pelo mido como por um coelho. Chegou o momento - disse Wilbur - de dizer toda a verdade sobre a Lillian. Ela foi muito elogiada mas sem o merecer. Vou-te falar agora da Lillian e mais ningum sabe disto, a no ser eu. - Sabes - continuou Wilbur - quando a Lillian era uma gatinha, eu punha-lhe sempre um bocado de whisky no leite, em parte para que ela ficasse boa e forte e, em parte, porque nunca gostei de beber sozinho, a no ser quando no tinha ningum a meu lado. Bom, a princpio a Lillian no ligava l muito ao whisky no leite mas finalmente comeou a gostar e eu continuei a aumentar-lhe a rao at que no fim ela acabava por beber um bom naco j sem leite nenhum, e chorava por mais. At que me apercebi de que a Lillian era uma bbeda, tal como eu nessa altura, e que no passava sem a sua dose e era quando se sentia bem e com os copos que a Lillian andava atrs dos pequinses e se tornava violenta. - Ora - contou-me Wilbur - o momento em que O incndio comeou coincidiu com a hora em que eu chegava a casa todas as manhs e dava a dose Lillian. Mas quando entrei no hotel para a ir buscar pela primeira vez, esqueci-me de lhe dar o whisky, e a razo por que ela voltou a entrar no hotel foi porque ia procura da sua dose. E a razo por que ela estava a cheirar porta do mido, no foi porque o mido se encontrasse l dentro, mas porque as pingas que escorriam da frincha por debaixo da porta, eram pura e simplesmente whisky que saa da garrafa que estava na mo do morto. Nunca disse isto a ningum porque achei que seria um golpe memria de um morto - disse Wilbur. - Beber uma coisa terrvel, especialmente o beber-se s escondidas. - Mas como que est a Lillian agora? - perguntei eu a Wilbur Willard. - Estou muito desapontado com a Lillian - respondeu ele. - Ela recusa-se a reabilitar-se como eu e, a ltima vez que soube dela,
estava com o Gregorio, o contrabandista italiano, que a mantinha bem alcoolizada e portanto ela agora deve estar a dar uma vida de co ao pequins da loira.
A INFNCIA DE MISS CHURT R. Buckley Miss Churt - britnica, como toda a gente a bordo do Malvern - estava sentada no peitoril de proteco da galeota e, de olhos vidrados, contemplava o Atlntico Norte. Miss Churt estava mergulhada em meditaes sombrias acerca do bife de lombo que o cozinheiro lhe tinha dado. Come-o todo, bichaninha; bom tinha dito o cozinheiro e Miss Churt no se fizera rogada. Mas agora - embora o bife estivesse delicioso - Miss Churt estava um pouco apreensiva: uma sensao semelhante a balas de canho no diafragma apoderara-se dela... Miss Churt decidiu ir apanhar um pouco de ar fresco, fazer uma visitinha ao seu amigo Sr. Wharton. Saltou do seu poleiro e, de rabo alado, caminhou com passos incertos para as escadas do camarote. A marcha do Malvern tambm era incerta e pela mesma razo - uma sensao de peso no diafragma causada no por balas de canho mas por munies de guerra muito mais modernas. As suas relaes com o leme nunca haviam sido das mais cordiais, mas agora, depois de ter sido bombardeado, abalroado e atacado por avies, parecia que tanto lhe fazia ir para aqui como para acol - o que, alis, era o que estava constantemente a fazer. Numa das salas no convs do navio, o primeiro oficial e o chefe maquinista estavam a discutir este e outros fenmenos relacionados com o conforto e o bem-estar da tripulao. O Sr. Mcivor que, naturalmente, era O maquinista, tinha entrado em Nova Iorque e estava a absorver o pessimismo do Sr. Wharton. - Ele uma espcie de mistura de gripe com uma sala da bolsa de valores - disse o primeiro oficial aludindo ao Comandante. - ... bom, voc viu-o. - Vi qualquer coisa - disse Mclvor sem se comprometer muito. - S podia ser ele. Sobrinho do presidente; anos e anos esparramado ao sol... vem a guerra... o velho Stokes apanha gripe - mo da divina Providncia - e aqui estou eu a dizer Sim> sim meu Comandante quela coisa. Se ao menos ele tivesse pestanas no me importava tanto, mas... Mclvor acenou que sim e o seu sujo cachimbo disse Chlup, chlup. - E houve algum problema at aqui? - Submarinos, hem? No. Ol riquinha. Ol! Vieste ver o Pap? O Sr. Mclvor, arrelampado, fez um gesto instintivo para alisar o cabelo mas era apenas Miss Churt. O Sr. Wharton foi at porta, pegou em Miss Churt ao colo e, antes de se voltar a sentar no seu beliche, estendeu cuidadosamente no tapete um jornal do ms anterior. A pgina que ficou voltada para cima tinha uma fotografia do casamento de Lady Fulana com o capito Sicrano de Tal dos guardas reais; o Sr. Wharton, debruando-se, com Miss Churt instalada na palma da mo, analisou, com um olhar corrosivo, flores de laranjeira, sorrisos, dentes, amgdalas e o arco de espadas. - Pronto, queridinha - disse, colocando Miss Churt em cima deles. - Voc casado? - perguntou o Sr. Mclvor. No. Mas hei-de ser. ela. O maquinista entortou um olho para a fotografia que se encontrava em cima da secretria. - Bonita pequena. - como diz. Cnego Hobson e tudo. Olhe l, viu o nosso canho de
4.7 no convs da popa? - Para grande pena minha. Mas que histria essa - disse Mclvor, cuja capacidade de absorver novidades pessoais era muito superior de as transmitir - de cnego? No me diga que a pequena tem uma paixoneta por ele. - Pelo velho Hobson? No desse gnero - disse o Sr. Wharton e o seu olhar fez Mclvor desconfiar de que no devia ter perguntado. - O facto que... isso minha queridinha. Vem ao Pap. Linda menina! - Parece que voc gosta da bichana. - Sou louco por ela. E ela doida pelo Harry, no s bichinha? Miss Churt lambeu uma mo calejada e nodosa. Sabia um pouco a bife temperado com alcatro, sal, tabaco e Unguento Maravilha de Mallison para golpes e arranhes superficiais. - Ento onde que entra tal cnego? - Todas as raparigas do meu tempo de Liverpool so malucas por ele. Est a ver, ele ensinou-nos a todos o catecismo; o grupo coral das crianas chamava-lhe ele; ns, os rapazes, samos logo que fomos crismados mas, quer voc acredite quer no, nunca fui um homem de dizer tantos palavres como seria normal na minha posio. - Reparei nisso quando andmos aos bordos na corrente - disse o Sr. Mclvor. - At pensei que s tantas voc era bicha. Um sbito aperto das costelas de Miss Chart suscitou um miado. - Magoei a barriguinha, foi? - perguntou o Sr. ton. - Pronto, j passou... linda menina. Barriguinha cheia que nem um tambor... Ah, ento pensou, foi? - At nos conhecermos - apressou-se a dizer o Mclvor. - Mas, esse padre, j no pode ser muito novo? - Cnego - disse o Sr. Wharton. - Pois no e tambm no nenhuma beleza. Mas a menina dos olhos da Annie e ou ele que a casa ou no ningum, de modo que at agora no foi ningum... e agora> ainda por cima, pe-me este palerma de suas cor-de-rosa perna... - E que interessa quem que a casa? Aquilo no leva mais tempo que tirar um dente. - Ai no leva? A que voc se engana. O velho son todo pelos rituais e essas cenas todas. O que quer dizer vus e flor de laranjeira para a Annie e chapu alto e casaca para mim. - Mas em tempo de guerra no! - Quem disse que no? - Se fosse comigo - disse o Sr. Mclvor aps madura reflexo - ia ter com o velho e mandava-o dar uma volta. - Isso que no mandava - disse o Sr. Wharton em tom sombrio. Voc que nunca o viu. No mede mais de um metro e setenta mas um reguila. Tem um daqueles focinhos que parece cortado em granito com um martelo-pilo. um bocado parecido consigo. O maquinista chefe analisou isto cuidadosamente e pousou o copo. - Pois - disse ele levantando-se. - vontade de calculo, que alguns casem e tenham puros enquanto outros esbanjam as suas paixes com gatos malhados. Boas noites> Sr. Wharton. Quando chegou porta voltou-se para assistir exploso desta bomba de Glasgow. Miss Churt, que tinha sido despertada por algo que parecia um tremor de terra, piscou-lhe os olhos e voltou a adormecer. - Temos gente a bordo capaz de operar com o tal canho? perguntou Mclvor para encobrir a sua curiosidade mais mrbida. - Temos - respondeu o Sr. Wharton - e se algum perguntar quem comanda essa equipa, pode dizer que sou eu. Reserva naval.
- E, por seu turno, voc comandado pelo Comandante Timbs. Bem... boa noite. - Ouviu falar naquele navio madeireiro que foi torpedeado? perguntou Wharton. - No. Que aconteceu? - Oh, foi s que pensaram que se calhar ele no se afundou como devia e que pode andar por a aos pedaos. O Timbs tem andado a contactar por rdio toda a gente excepto O Churchill e o Presidente Roosevelt mas ningum o viu. A noite tambm est escura. Bem... bons sonhos. O Sr. Mclvor retirou-se com um ar bastante pensativo mas o primeiro oficial pareceu sentir-se melhor. Extraiu suavemente Miss Churt do pas dos sonhos, segurando-a pela barriga de modo que ela ficou com as patinhas a abanar, fez-lhe um sorriso gigantesco e deu-lhe um beijo muito pouco higinico no nariz. - Ento, minha belezinha! - disse o Sr. Wharton. Queres que o Pap case com aquela outra pequena para tu teres uma linda casinha e um jardinzito para poderes esgaravatar vontade? Miss Churt estava extremamente sonolenta; alm disso parecia que o bife lhe tinha enferrujado as cordas vocais. Abriu a boca cor-de-rosa mas no emitiu qualquer som. - Ento estamos combinados - disse o Sr. - E, por falar nisso... Tinha mesmo acabado de se levantar para apanhar do cho o jornal com as fotografias do casamento quando, vindo do lado da proa, l fora na noite estrelada, se ouviu um enorme estrondo. O Malvem estacou como uma velhota atingida no saco das migas. Ao mesmo tempo as luzes apagaram-se. Era, evidentemente, o navio abalroado a flutuar, de quilha para cima, naquilo a que os franceses chamam, de forma to potica, a flor da gua e que os anglo-saxes intitulam de superficie. Tendo cumprido o destino que lhe fora traado por aquelas luzes celestiais que brilhavam l em cima - Neptuno atormentado por Marte, talvez; quem sabe? - e metido dentro a proa do Malvem como o fole de uma concertina, o navio madeireiro rolou sobre si mesmo, vomitou mais uma centena de metros de tbuas por um novo rombo e afundou-se; enquanto, por detrs do pique de vante do Malvern, o Sr. Wharton mais um punhado de marinheiros seminus lutavam para impedir que acontecesse a mesma coisa sua barcaa. Era necessrio reforar uma antepara; mas reforar anteparas no tarefa fcil no meio de uma noite de breu. Levou uma hora at o Sr. Mclvor e a sua horda conseguirem pr de novo a funcionar o dnamo que fora arrancado do seu lugar; e depois aquilo que a luz das lanternas apontada ao casco revelou estava longe de ser encorajador. No s a antepara cuspia gua atravs dos buracos dos rebites desenraizados, como a prpria antepara estava ilsica e visivelmente encurvada para dentro, de modo que era mais que bvio que no havia tempo para grandes obras de carpintaria nem para escoramentos delicados. Os olhos do Sr. Wharton, por debaixo das melenas desgrenhadas, vagueavam desesperadamente pelo poro. A bombordo e a estibordo munies de vrios tipos formavam uma admirvel escora dos lados da parede da proa. Mas a meio encontravam-se dois caixotes que haviam posto prova os estivadores: eram to grandes e pesados que poderiam perfeitamente conter tanques de guerra e a notria instabilidade do Malvern fizera com que tivessem sido estivados bem atrs da antepara. O espao intermdio estava cheio disto e daquilo em pacotes que
pesavam umas meras centenas de quilos. - Tirem-me esta tralha do caminho! - uivou o Wharton. - Despachemse, rapazes! Ele prprio ia pegar num dos caixotes quando o terceiro oficial o agarrou pelo ombro. - Oia l! - Oio, uma ova. Mexa-se e empurre aqui qualquer coisa. Vou levantar estas malditas locomotivas ou lo que aquiestdentro. - Oia-me! O velho est desvairado a mandar tantos SOS para todo o lado que o ter j est cheio de cogulos... - Ele que v para o inferno! - E agora est a preparar-se para abandonar o navio. O Sr. Wharton largou o caixote que tinha entre mos e foi a correr soltar da confuso a caixa das chaves. Por qualquer razo desconhecida, a sua camisa tinha-se desintegrado e as suas calas compunham-se unicamente de um arremedo de cales e de uma perneira mas, mesmo assim, continuava a no praguejar. O Cnego Hobson que, nesse momento, dormia pacificamente na longnqua Liverpool com o nariz afilado enterrado numa almofada macia que lhe fizera uma paroquiana teria ficado muito contente se soubesse tal coisa. - Que vai voc fazer? - perguntou o terceiro oficial. - Ele j tem prontos todos os papis do navio e diz que o dever dele para com os homens e que se, de madrugada, no vierem socorrer-nos que manda toda a gente para os salva-vidas. - Se voc no me sair do caminho, de madrugada j fomos todos para Os peixinhos - disse o Sr. Wharton... - Mas voc tem de o impedir. - E arriscar-me a ser acusado de motim? No, muito obrigado; eu c obedeo. Mexam-me essa tralha seu bando de lagostas moles! Venham para aqui seus preguiosos morces. Querem que eu empurre isto sozinho? Tu Fawdry... e tu, Wilson... Havia agora um espao vazio entre a antepara e o tanque que, claro, no era um tanque, s parecia s-lo. De qualquer modo o problema era levar este at antepara e o outro a seguir, se possvel. E a antepara estava a dar a entender, na sua linguagem de ao torturado, que raios a partissem se ainda ia esperar muito mais tempo por aquele apoio. - No se consegue empurr-los - disse fracamente o terceiro oficial - e, se conseguirmos, ainda vo pela proa fora e ns atrs. - Como o Tornado em Coney Island - disse o Wharton sorrindo. - L se foi o MeGinty. Prontos rapazes? Ponham-se em linha, metam-lhe os ombros. empurrar ou deixar crescer guelras! Agora... um... dois... O caixote no mexeu. - O velhote diz... - arquejou o terceiro oficial. - Cante-nos qualquer coisa - grunhiu um dos homens; e o Sr. Wharton acedeu ao pedido. Quase se podia dizer que a boca falava com a profunda voz do corao. No era muito correcto chamar quilo cantar e o palavreado era pobre e incompleto; contudo no que tocava ao tema, objectivo e - sim - a paixo do amor no correspondido, o canto do Sr. Wharton podia pedir meas aos romances dos trovadores. - O Co-o-o-manda-a-ante Ti-i-imbs - entoou ele num rugido desafinado - um filho da - ia! A licena dos homens em Staten Island tinha sido cancelada. - O Co-o-o-manda-a-ante Ti-i-imbs - ecoaram eles entusiasticamente - um filho da - ia!
O caixote mexeu-se. - O Co-o-o-manda-a-ante Ti-i-imbs - ia! O caixote avanou vinte centmetros. ...filho-da-ia! Mais vinte centmetros. L em cima, na ponte, o tema da cano estava a falar com trs graduados da marinha que no tinham ar de gostar dele. Eram os responsveis pelo canho de 4.7 que estava na popa e pareciam estar a sofrer do esprito de Nelson ou de Collingwood ou de outro qualquer. Apesar disso, tudo o que fizeram quanto ao assunto foi dizer que no pensavam que... - Vocs no tm nada que pensar! - disse o Comandante Timbs. - O senhor no o nosso chefe, Comandante - disse o mais velho dos graduados. - Esto sob as minhas ordens! Se eu mandar abandonar o navio, abandonaremos o navio! Aqui foi a vez do graduado mais novo. - Sim, meu Comandante - disse ele. - Se assim o diz. O Comandante Timbs engoliu um grande e visvel n da garganta. - So essas as ordens - disse. - Mal amanhea. Temos um rombo enorme. - O mar est encrespado, meu Comandante - disse o mais velho dos graduados. - Contactei por rdio um cargueiro sueco; a essa hora estar aqui, de preveno. Quem raio so vocs a porem em causa as minhas ordens? -Ningum, meu Comandante. - Rua, daqui para fora! - Sim, meu Comandante - disse o terceiro; e l foram eles. O que disseram enquanto desciam coisa com que ningum tem nada a ver: meras especulaes abjectas sobre quantias pagas pelo governo a pobres armadores despojados dos seus bens; pragas e palavres do mais ordinrio e vulgar. Podemos, no entanto citar alguns trechos como, por exemplo, ter o mais velho dito que j estava a amanhecer; o segundo dizer que por acaso at parecia que a barcaa estava com vontade de dar o grande mergulho; e o mais novo, depois de olhar r, dizer que de qualquer modo o navio se afundaria de bandeira iada e canhes vazios. - Ento mais vale ir l dispar-lo - disse ele. - Mais vale ires l abaixo e dar uma mozinha ao Wharton - disse severamente o mais velho; e assim fizeram. Pouco tempo depois destes acontecimentos, Miss Churt a quem o bife de lombo tinha enchido o sono de sonhos de ratos gigantescos que a perseguiam por becos infindveis, acordou sobressaltada e com um mau sabor na boca. Bocejou e decidiu, mais uma vez, que um pouco de ar fresco lhe havia de fazer bem. Saltando abaixo do seu poiso, descobriu que o cho no estava exactamente onde o tinha deixado - tinha agora um declive acentuado e, antes que Miss Churt se habituasse nova situao, as suas patas dianteiras cederam e ela rebolou para um canto. Conseguindo pr-se mais ou menos em p, dirigiu-se para a porta e da foi rebolando em busca de companhia. J estava dia, de modo que bocejou e esticou-se da maneira como os gatos fazem para agradecer a Deus cada noite passada ao abrigo - mas havia qualquer coisa que estava errada. Onde estava toda a gente, para comear? E porque no estava o convs a vibrar como era hbito? E, normalmente, as gruas da carga funcionavam com um barulho atroador que
atirava as orelhas para trs; agora o silncio era total - e olhem! quando se passava para l da casa dos mapas via-se que a antepara dos botes tinha desaparecido e o vento soprava sem que nada o impedisse. Havia apenas por ali alguns cabos espalhados... Miss Churt avanou mais alguns passos e sentou-se como a clave de sol numa pauta de msica. Ao longe, por entre a nvoa, conseguiu descortinar a silhueta de um navio parado; e quanto aos botes do Malvern estes estavam na gua - e a mover-se, de facto, a mover-se e a afastar-se dela. E num deles, junto com trs graduados da marinha e mais alguns cavalheiros robustos que discordavam do Comandante Timbs e estavam naquele momento a exprimir tal ideia, o Sr. Wharton estava, tambm naquele mesmo momento, a lembrar-se de que tinha deixado Miss Chort a bordo. - Pelos pregos de No! - exclamou ele; e o Cnego Hobson que ainda dormia, sorriu nos seus sonhos longnquos. - Ora... Os remos ergueram-se. - Esqueceu alguma coisa, Sr. Wharton? - perguntou o graduado mais velho. - Se me esqueci de alguma coisa? - disse o Sr. ton. - Deixei l a minha gata. Das entranhas do bote veio uma gargalhada mal abafada. - Riam-se de mim que eu dou-vos uma cabeada disse o primeiro oficial e o silncio voltou a reinar sobre o oceano. - Quer voltar atrs, Sr. - Eu... acho que sim - disse o Sr. Wharton. - Se estamos a salvar a porcaria das nossas peles sem necessidade nenhuma, no vejo por que razo h-de um pobre animalzinho irracional sofrer. A no ser que alguns destes cavalheiros ponham alguma objeco? Ora ento para estibordo, directos ao resbordo da r. Fora, seu bando de alfaiates! - O bote do Comandante parou de remar - disse o remador da proa. - Deixem l - disse o Sr. Wharton. - Tambm nos podamos amotinar daqui a dez minutos. E aquele sueco bem pode esperar. Pelo parente rico... Vamos, fora nesses remos! Um apelo distante ecoou sobre as guas que, alis, estavam espantosamente calmas. - Vou s ali e venho j - respondeu o Sr. Wharton, sem saber que a cerca de uma milha, do outro lado do Malvern, o mar escondido pelo navio estava a ser rasgado pelo periscpio de um submarino. O Comandante deste, por sinal um tipo bastante simptico chamado Koenig, com residncia habitual em Munique, na Glocknergasse n0. 8, tinha ouvido os frenticos apelos transmitidos via rdio pelo Comandante Timbs e perguntara a si mesmo se estes no estariam a prognosticar algo de interessante no seu ramo de negcios. Ele bem sabia que estavam em fase de escassez temporria de contratorpedeiros naquela rea mas, afinal de contas, as coisas estavam a correr-lhe melhor do que o previsto. Atravs do periscpio tinha visto a tripulao abandonar o navio e, verificando que no fim de contas o Malvern no se apressava a precipitar-se nos abismos, comentara para os seus homens, com deleites de alma, quo parca era a valentia martima dos marinheiros britnicos. Que no se tratava de um navio camuflado era para ele uma certeza, que lhe advinha tanto da presena do navio sueco como do modo perigoso como o prprio Malvem adernava. Assim, as suas intenes eram combinar negcios e prazer, dando oportunidade tripulao em fuga de ver como ele usava o navio abandonado para exerccios de tiro ao alvo. Decidiu utilizar torpedos de percusso e comear por mandar pelos ares a
chamin. Quando o submarino emergiu, a tripulao saiu a correr para a proa e comeou a preparar o canho. Nesse preciso momento, o olhar saudoso de Miss Churt iluminou-se todo ao vislumbrar o Sr. Wharton, mais peludo do que nunca. Miss Churt gostava de gente peluda, tinham muito mais cantos para um gato se enroscar. O seu dono, ao desembarcar do bote> no parecia to bem disposto como de costume; parecia estar preocupado com qualquer coisa; no sorria. Mas Mss Churt conhecia um bom remdio para isso. Quando algum tinha um ar triste> ela fugia a correr e o Sr. Wharton corria atrs dela e apanhava-a e chamava-lhe diabinho e corrigia-se e chamava-lhe diabrete e dava-lhe um beijo na ponta do nariz. Assim, Miss Churt fugiu a correr, derrapando um pouco por causa da inclinao do convs, de orelhas em riste escuta dos passos amados em sua perseguio. E l vinham eles. Mas vinha tambm outra coisa. Uma coisa terrvel. Um barulho que se prolongava, que crescia, que saa do meio de um pulsar distante, que lhe perfurava os ouvidos - to aterrador - e depois, um imenso claro, que levantava o mundo inteiro e o partia em pedaos, que lhe abalava de tal modo o estmago que o bife deixava de ter qualquer importncia... O Sr. Wharton, saindo de trs da casa do rdio, deteve-se por instantes. Viu um grande buraco irregular no soalho do convs que teve de contornar para seguir o seu caminho. Ao faz-lo, viu o submarino do Comandante Koenig, parado a a uns trs quartos de milha de distncia. Mas aquilo de que estava procura era uma bolinha de plo sujo, e encontrou-a, totalmente inerte, mesmo adiante da escada do tombadilho. O mais curioso era que o Comandante Koenig tambm adorava gatos e tinha trs em casa, na Glocknergasse. Mas guerra guerra. O Sr. Wharton tomou na sua grande mo aquilo que a guerra deixara de Miss Churt, pousou sobre ela a outra mo como se fora a tampa de um caixozinho e insultou o Comandante Koenig assim como os seus superiores e inferiores; levantou, depois, ambos os braos e, segurando ainda na mo direita o corpinho inerte, ergueu a voz num grito capaz de cobrir distncias. E, de facto, no Presbitrio de Sta. Maria, o Cnego Hobson acordou sobressaltado; olhou para o relgio que estava na mesinha de cabeceira e viu que eram 5.25; voltou-se na cama, mas fosse qual fosse a razo no sentia vontade de voltar a adormecer. - Sacana de aougueiro de merda! - gritava agora o Sr. Wharton; mas, de repente a voz quebrou-se-lhe. - A minha pequenina... Uma voz falou mesmo por detrs dele. Eram os graduados que no tinham achado muito correcto que o seu superior fosse a bordo sem escolta e, portanto, tinham tambm escalado os destroos e ali estavam. A voz era a do graduado mais velho, como convinha. - Que acha de lhe mandarmos tambm um Sr. Wharton? - inquiriu. O Sr. Wharton tinha-se esquecido do canho de 4.7 da r. Agora que lho lembravam emitiu um verdadeiro rugido de assentimento. Enfiou o corpo de Miss Churt no bolso lateral do casaco e foi,
escada abaixo, seguido pelos trs graduados. Tinham de descer ainda outra escada, atravessar o convs em direco popa e depois subir popa. E foi, ento, que o Comandante Koenig os viu. Numa avalanche de sons em au e numa revoada de terminaes em ch, ordenou aos seus homens que alterassem a pontaria e mandassem a Wharton uma boa boiada; de forma que a questo se ps muito claramente, em termos grosseiros, em saber quem mandava primeiro uma boiada a quem. O submarino, que estava j preparado, foi o primeiro a disparar; mas o alvo, assim alterado pressa, estava muito alto e a bala s no atingiu o navio sueco por uma escassa meia milha (Relatrio de 27 de Maro de 1940, pargrafo 2). Entretanto o graduado mais velho tinha estado a proceder a variadas manipulaes de variadas coisas; e agora, com um aceno de cabea, declarava-se satisfeito. Olhou, desnecessariamente, para o Sr. Wharton, abriu a boca e estava a pontos de perguntar se podia fazer fogo quando o oficial, (que, evidentemente, no era um oficial de carreira) o empurrou para o lado, agarrou na alavanca de tiro e disparou. Foi uma questo de sorte, de pura sorte, para todos os interessados; mas a verdade que aquela bala inconvencional, quase ilegtima, voou, como se atravs de um tubo, direita ao cano do canho do submarino, dobrou-o, ricocheteou, sem ferir nem o Comandante Koenig nem nenhum dos seus homens, e foi esmagar o bordo da torre de comando onde explodiu com o abandono tpico dos explosivos de alta potncia. Ningum ficou ferido excepto O Marinheiro Albrecht Otto de Bremen (surdez e escoriaes) mas a torre de comando ficou impossibilitada de se fechar. O que significava impossibilidade de submergir... E na linha do horizonte, para sul, aparecera e estava a aproximarse uma nuvem de fumo que prenunciava contratorpedeiros. Assim comentaram entre si os trs graduados. Entretanto o Sr. Wharton, na outra amurada, estava a exprimir a sua opinio de frentico desprezo contra o Comandante Timbs e contra todos os homens que se metessem em botes, abandonando gatos em navios perfeitamente slidos e cheios de preciosas e necessrias munies. Esta manifestao, para alm de chamuscar a pintura (a acreditar no terceiro oficial) dos bancos do Salva-vidas N.o 1, deixou o Sr. Wharton completamente exausto. E mais pacificado. Meteu a mo no bolso e extraiu dele os restos mortais de Miss Churt. Os olhos azuis estavam fechados, a cabea macia caida sobre o pescoo e os bigodes estavam chamuscados. - Quer que voltemos para a? - ouviu-se um coro de vozes por sobre o mar. - Vo mas para o inferno! - rugiu o Sr. Wharton de forma que todos se puseram a remar em direco ao navio. Mas uma voz calculada para cobrir um quarto de milha algo de tremendo quando ouvida de perto. Cada uma das clulas de Miss Churt comeou a vib rar. O estmago recomeou a incomod-la. Nas suas narinas havia um cheiro familiar que se insinuava para alm do cheiro a bigodes queimados - tabaco, alcatro e Unguento... Abriu os olhos e disse: - Miau! Guerra ou no guerra, a verdade que a igreja paroquial de Sta. Maria estava convenientemente decorada para aquele casamento; embora, tendo em conta as circunstncias, o Cnego Hobson tivesse condescendido em atenuar as regras do vesturio no que dizia respeito ao noivo.
A menina Woollard, porm, estava vestida a preceito at ao pormenor da septuagsima nona flor de laranjeira. Mostrava, contudo uma certa propenso a mordiscar nervosamente o vu. Estava mais nervosa do que esto habitualmente as noivas; mais nervosa ainda do que podia levar a crer o facto de o noivo ter trs padrinhos - o graduado mais velho, o mais novo e o do meio, todos ostentando medalhas que eram apenas inferiores de um grau quela que fora concedida ao Sr. Wharton. A causa deste mal-estar tornou-se patente quando o Cnego Hobson, ao abrir o seu livro de oraes, comeou por reparar, depois ver e finalmente por arregalar os olhos para o bolso direito do casaco do noivo. Talvez se devesse aqui mencionar que, para alm de uma cara de granito e de um corao extraordinariamente mole, o reverendo senhor era dotado de olhos que pareciam ter sido talhados em diamante que, depois, fora modo fino. Fechou o livro de oraes e falou numa voz baixa e intrigada. - Henry - disse ele, enquanto a congregao esticava os pescoos no pode ser um gato isso que tens no bolso do casaco. No pode ser um gato? Isto era uma afirmao um tanto exagerada sobre Miss Churt, que fazia naquele dia seis semanas e que s tinha posto fora do bolso o focinho barbeado pela bala para apanhar um pouco de ar fresco. Mas a ideia geral era inquestionvel. - - disse o Sr. Wharton. - sim. - Ele tinha de a trazer - tinha - eu bem lhe disse... - gaguejou a noiva; mas o Cnego Hobson no lhe prestou qualquer ateno apesar de ela comear a soluar. Ao encontrar os olhos azulados de Miss Churt, porm, as suas pupilas adamantinas sofreram um processo esquisito. Primeiro comearam por pestanejar, cobrindo o olhar condenatrio; depois como que se liquefizeram de tal forma que as suas qualidades de penetrao se tornaram completamente nulas. Disse: - Deverei deduzir que... isso... alguma espcie de mascote? Ligada, talvez, aos recentes... Que lhe aconteceu aos bigodes? - Digo-lhe depois, na sacristia - disse o Sr. Wharton. E cruzando o olhar do Cnego, arrependeu-se dos preconceitos da sua juventude. O Cnego Hobson acenou com a cabea; abriu o livro que tinha fechado sobre um dedo preventivo e tossicou para aclarar a garganta. - Queridos noivos - proclamou ele - estamos aqui reunidos... Miss Churt no conseguiu identificar todos os cheiros (na sua maioria aucenas) nem todos os sons (principalmente o Cnego Hobson) que a rodeavam. Eram interessantes e ela tinha uma vaga ideia que ainda um dia se viria a interessar por qualquer coisa parecida com aquilo, pelo menos quanto ao seu objectivo geral. Mas para j, ainda no. Ainda faltava muito tempo. E entretanto j tinha arejado o suficiente. Retirou a cabea do ar fresco de Sta. Maria, recolheu-a ao twed quentinho do bolso do Sr. Wharton e, enroscando-se, preparou-se para dormir. Trad. L. F.
A GATA GORDA Q. Patrick Os fuzileirosencontraram-na quando, por fim, se apoderaram da velha casa da misso em Fufa. Aps dois dias de tiroteio incessante no estavam espera de encontrar ali nenhum ser vivo - e muito menos uma gata gorda. E era de facto uma gata muito gorda, ruiva como um escocs, com enormes olhos de gata e uma cara redonda e amvel. Ali estava, sentada no tapete - ou melhor, no que restava do tapete - em frente quilo que havia sido o alpendre da misso, lambendo as patas to placidamente como se a selva devastada pelas bombas fosse um relvado de Vero em Nova Jersey. Um dos homens, lembrando-se da cartilha da sua infncia, citou: A gorda gata sentada na manta. Os outros riram-se. No que o comentrio tivesse de facto alguma graa mas o riso ajudou a aliviar a tenso e exprimiu o alivio que sentiam por terem finalmente atingido o objectivo aps dois dias de duro combate. A gata gorda, ainda instalada no tapete, sorriu para eles como para mostrar que no se importava nada que se rissem custa dela. Depois viu o Cabo RandyJones e, por qualquer razo s dela conhecida, correu para ele como se se tratasse do dono havia muito perdido. Com um ronronar de frigorfico roou-se-lhe pelas pernas cobertas de lama. Todos voltaram a rir quando Randy pegou na gata e encostou a cara feia ao plo macio. Era cmico ver um ser vivo mostrar preferncia pelo melanclico e solitrio Randy. Um sargento estalou os dedos: - Bichaninha, vem c. Vamos fazer de ti a mascote da Companhia B. Mas a gata, empoleirada no ombro de Randy como uma rainha no trono, limitou-se a sorrir l do alto com um ar majestoso como se dissesse: - Vocs podem ser os meus sbditos, se quiserem. Mas este o meu homem - o meu prncipe consorte. E nunca, nem por um segundo, renegou a sua devoo. Vivia com Randy, dormia com ele, s aceitava comida dada por ele. Quase todos os homens da Companhia B tentaram seduzi-la com carcias e bocados das raes de combate mas a todas as propostas ela respondia com um bocejo de desprezo. Para Randy este novo amor era puro xtase. Velava por ela com a ternura possessiva de uma me. Escovava-lhe o plo at ficar brilhante; quase se matava fome para a manter gordinha. E havia nele, ao mesmo tempo, uma mistura de encantamento e espanto. Porque, sendo o mais desengraado e desajeitado dos dez filhos de uma famlia de mineiros da Virgnia do Oeste, nunca antes tinha despertado qualquer afecto em homem ou mulher. Ningum tivera importncia para ele at aparecer a gata gorda. A felicidade de Randy foi, porm, sol de pouca dura. Passados poucos dias, a Companhia B foi escolhida para levar a cabo uma manobra destinada a surpreender o inimigo e, se possvel, a apoderar-se do seu quartel-general que se sabia ficar a uns trinta quilmetros dali, no meio daquela zona de selva densa e infestada de atiradores inimigos. O avano seria rduo. Os homens levariam as suas prprias raes de comida e de gua e dormiriam em trincheiras individuais. No teriam qualquer apoio da base. O comandante foi categrico quanto gata gorda: declarou ao desolado Randy que a presena de um gato poria em grave
risco a segurana de toda a companhia. Se vissem que o animal o seguia abat-lo-iam imediatamente. Momentos antes da hora marcada para a partida, Randy levou a gata gorda para a messe da Companhia H onde foi entusiasticamente recebida pelo no menos gordo cozinheiro. Pandy no teve coragem para olhar para trs pois sabia que os olhos ambarinos da gata estavam cheios de uma expresso de censura. Mas durante todo aquele primeiro dia de perigosa caminhada pela selva a ideia do olhar da gata atormentou-o e Randy sentia o corao desfeito pela separao. Ao deixar a gata havia abandonado me, mulher e filha. A noite, como um imenso pra-quedas negro, abatera-se j h horas sobre a selva quando Randy foi arrancado ao seu sono de cansao. Uma coisa macia e quente roava-se-lhe pela cara e a trincheira onde dormia ressoava com uma sinfonia de ronrons. Randy estendeu uma mo incrdula mas no, no era um sonho. Real e slida, agata estava enroscada como uma bola satisfeitajunto do seu ombro. O seu primeiro impulso foi de alegria mas, quando se lembrou das palavras do comandante, ficou gelado. A gata, desdenhando os mimos da cozinha da Companhia H, tinha-o seguido atravs de quilmetros de selva traioeira e o seu destino era a morte quando a luz do dia revelasse a sua presena. Randy sentia-se numa agonia de dvidas. Lev-la de volta base seria desero. Bater-lhe e enxot-la era qualquer coisa que a sua natureza simples no podia sequer admitir. A gata esfregou o focinho na cara de Randy com um miado plangente. No havia dvidas que estava cheia de fome depois de to longa caminhada. De sbito, Randy percebeu o que devia fazer. Se conseguisse resistir a dar-lhe de comer, a fome obrig-la-ia certamente a regressar ao santurio do cozinheiro. A gata voltou a miar. Ele mandou-a calar com um chiu e deu-lhe uma palmadita. - No tenho nada para te dar, querida. Vai-te embora. Para casa. Pira-te. Com um misto de prazer e desapontamento, Randy viu a gata saltar silenciosamente para fora da trincheira. De manh no havia sinais dela. Enquanto a Companhia B ia avanando furtivamente, palmo a palmo, atravs da espessa vegetao, Randy pensou que a visita nocturna da gata devia ter sido um sonho. Mas, na terceira noite, a visita repetiuse. A gata voltou a esfregar-se de encontro sua cara e a mordiscarlhe a orelha. Quando miou, o som continuava a ser abafado e cauteloso mas tinha uma nota de splica que penetrou em Randy como uma baioneta japonesa. Na primeira visita Randy no tinha visto a gata mas, desta vez, movido por um qualquer impulso, agarrou na lanterna. Voltando-a cuidadosamente para baixo acendeu a luz. Aquilo que viu constituiu uma provao terrvel. A gata j no era gorda. O corpo estava escanzelado, o plo rio e enlameado, as patas feridas e ensanguentadas. Mas o pior eram os olhos que o fitavam pestanejando. No havia neles qualquer censura, apenas uma expresso de infinita confiana e splica. Esquecendo tudo o resto para alm daqueles olhos, Randy tirou do saco uma das poucas latas de rao que lhe restavam. Ao v-la, a gata lambeu fracamente os beios. Randy comeou a abrir a lata. E ento, de repente, apercebeu-se de que ia assinar a sentena de morte da gata. E, porque tinha de haver um escape para a emoo acumulada, Randy sentiu uma fria irracional contra aquele bicho cujo sofrimento ultrapassava tudo o que Randy conseguia suportar.
- Pira-te - rosnou entre dentes. Mas a gata no se mexeu. Bateu-lhe, ento, com a pesada lanterna. Durante alguns segundos, sob a fora da pancada, a gata ficou imvel. Depois, com um pequeno gemido, fugiu. Na noite seguinte no voltou e Randy no dormiu. No quinto dia entraram em territrio verdadeiramente perigoso. Randy e outro fuzileiro, Joe, foram destacados como batedores procura do quartel-general do comando japons. De repente, em plena selva, deram com ele. Um silncio profundo pairava sobre a clareira e sobre os dois barraces apressadamente construdos. Espreitando por entre a folhagem espessa viram sinais de uma evacuao recente - papis espalhados pela erva, um monte de lixo ainda fresco, uma camisa do exrcito japons que ondulava ao vento suspensa de uma rvore. Em frente de um dos barraces, sob um toldo, havia uma mesa improvisada onde se viam os restos de uma refeio. - Devem ter-se apercebido da nossa presena e piraram-se - disse Joe. Randy avanou e, de sbito, estacou ao ver qualquer coisa mexer entre as ervas altas junto da porta do primeiro barraco. E viu ento a gata, que em tempos fora gorda, sair para a luz do sol a coxear. Uma sensao de perigo iminente lutava dentro de Randy contra o orgulho por a gata no o ter abandonado. Tenso e expectante, ficou a ver a gata desaparecer dentro do barraco. Passado pouco tempo o animal voltou a sair. - Nada de japoneses! - disse Joe. - Aquele gato tinha-os posto c fora enquanto o diabo esfrega um olho. E avanou resolutamente para a clareira. - Ei, Randy, est aqui um frango inteiro em cima da mesa. Vai-nos saber lindamente depois das raes K. Calou-se porque a gata tambm tinha visto o frango e desajeitadamente, com uma fraqueza que metia d, tinha saltado para cima da mesa. Com um berro de fria, Joe baixou-se para apanhar uma pedra que atirou gata. Randy sentiu-se a arder de indignao. Tinha deixado a gata fome, tinha-a enxotado e, apesar disso, o animalzinho tinha-o seguido com uma devoo cega. O frango devia, indubitavelmente, ser a sua recompensa. No esprito de Randy, lento e simples, a coisa mais importante do mundo era a sua amada ter um justo quinho no festim. A gata, ao ver a pedra, saltou da mesa e f-lo mesmo a tempo pois a pedra acertou em cheio no frango, atirando-o para fora do prato. Randy correu para a clareira. Nesse mesmo instante uma exploso ensurdecedora atirou-o ao cho. Alguns segundos depois, quando se soergueu, no havia mesa nem barraco, nada, a no ser uns restos de madeira a arder. Estonteado, ouviu a voz de Joe: - Havia uma armadilha debaixo do frango. Ena, se o gato no tivesse saltado para o frango eu no tinha atirado a pedra. Tnhamos sido ns a pegar no frango e agora estvamos no cu. - A voz de Joe transformou-se num murmrio de admirao reverente. - Aquele gato... Acho que foi pelos ares... Mas salvou-nos a vida. Randy no conseguia falar. Tinha um n na garganta. Estava ali, deitado, e sentia-se triste como nunca se sentira na vida. Depois, atrs de si, ouviu um ronronar satisfeito. Deu meia volta. Curiosamente a exploso atirara para fora do barraco um tapete de juta que acabara por aterrar na erva mesmo por
A QUEDA DO MORNING GLORY ADOLPHUS N. Margaret Campbell O Morning Glory Adolphus o nosso gato mais velho e mais calmo. Tem a sua prpria coutada de caa numa ravina arborizada nas traseiras da nossa casa e escorraa qualquer gato ou co que a invada. Na sua juventude granjeou a reputao invejvel de grande caador e tinha um mtodo especial de preservar a considerao que lhe era devida pelos seus feitos. Sempre que caa um coelho, um esquilo, um rato de gua ou uma cobra, anda de um lado para o outro at encontrar a dona, e coloca a presa, orgulhosamente, a seus ps. Esta determinao em ser recompensado pela sua bravura e proeza, torna-se por vezes assaz embaraosa, especialmente quando arrasta uma cobra de um metro e meio at sala de msica e a deixa em cima do tapete para grande horror e consternao das visitas. Mas, acontea o que acontecer, o Adolphus nunca se priva da publicidade que o seu engenho lhe pode granjear. Se fosse homem, far-se-ia sempre acompanhar, nas suas caadas, por um reprter e, no regresso, daria um almoo e convidaria os editores de todos os jornais desportivos. De qualquer maneira, mesmo no tendo qualquer curso por correspondncia em publicidade, o Adolphus sai-se muito bem. Os actores de expresso corporal fariam bem em procurar o Adolphus para efeitos de estudo da dignidade aristocrtica pontuada, por vezes, com uma arrogncia desdenhosa. Pavoneia-se pela rua, sem pressas e sem se preocupar minimamente com a sua segurana pessoal, por entre carros que buzinam e ces que atacam. Quando aparece um co estranho e confunde o Adolphus com um gato vulgar que pode ser perseguido s por prazer, o Adolphus costuma abrandar a marcha e estende-se frente do Inimigo potencial, assumindo a pose e a expresso da esfinge. a imagem, por excelncia, da serenidade e do perfeito controlo muscular. Apenas brilham os seus olhos de mbar, sem pestanejar, sempre fixos no focinho enraivecido do inimigo que o ataca de presas salientes e de plo eriado. Quando a agresso demasiado feroz mesmo para o gosto de um co, e acompanhada de latidos e dentadas histricas, o Adolphus conhecido por bocejar no focinho do atacante, propositada e muito delicadamente, como um cavalheiro bem-educado faria perante a exibio exagerada de uma qualquer emoo. Normalmente, o co estaca como por milagre a uns centmetros daqueles calmos olhos amarelos e faz um semicrculo enquadrado por aqueles dois focos, lanando uma espcie de improprios que vo gradualmente esmorecendo at ficarem reduzidos a uma lamria ridcula no momento em que inicia uma retirada indigna, enquanto o Adolphus pestaneja solenemente e passa, sempre fitando o seu cobarde inimigo, em direco a um lugar misterioso, jamais profanado por ces barulhentos. Alguns ces houve que no pararam perante a ordem hipntica daqueles olhos amarelos. Nessas alturas viu-se um relmpago de plos pelo ar e o Adolphus aterrou mesmo em cima do cachao da vtima, com as enormes garras a rasgarem com a preciso de um profissional as tenras orelhas e a testa do aterrorizado co. Talvez que a fama desses encontros se tenha espalhado por entre a populao canina do nosso bairro pois que nunca a reputao de lutador de um co foi abalada pelo facto de se desviar das zonas frequentadas pelo Adolphus. Durante anos, o estatuto de chefe que o Adolphus detinha entre os gatos da casa, nunca foi posto em causa. E foi ento que apareceu o Silver Paws, um jovem e bonito vdio com um belo plo acetinado e reflexos prateados e azulados. No havia qualquer dvida, o Silver Paws sabia lidar com as senhoras. Enquanto o Adolphus ainda o via como um
gatito travesso cujo sentido de humor prevalecia sobre o sentido de dignidade, ele foi astuciosamente conquistando todos os coraes e, sempre que aparecia, tornava-se imediatamente o centro de todas as atenes. O Adolphus sentia-se incomodado ao ver o modo como aquela coisita presunosa arqueava o lombo sempre que uma mo humana se aproximava para o acariciar. Se o Adolphus tivesse a mente retorcida de um trocadilhista, teria percebido, ao jeito cnico de quem perde as preferncias pblicas em favor de um rival indigno, que a sua glria estava a chegar ao fim. Mas ele nunca foi de se render sem luta. Partiu para a caada nocturna com o corao frio de um assassino e decidido a fazer com que a luz dos holofotes voltasse a incidir sobre si. Todos os dias colocava aos ps da dona coelhos cada vez maiores e mais selvagens, ratos mais vorazes e cobras cada vez mais compridas. Tudo em vo. Fez mesmo o papel de herico salvador quando o seu odiado rival ficou preso numa rvore por causa do co do merceeiro. Trepou calmamente rvore debaixo de cujo galho o co corria de um lado para o outro e onde se encontrava empoleirado o Silver Paws, e o co lembrou-se de repente que tinha de voltar para a carrinha do merceeiro e que nem sequer era l muito interessante ficar ali a ladrar a um gatinho estpido! Quando o Silver Paws desceu assustado da rvore, o Adolphus dirigiu-se-lhe com o ar farisaico de um cavalheiro benevolente que acaba de salvar uma alma perdida, no porque a alma o merecesse, mas porque ele era assim por natureza. Esta atitude magnnima conferiu ao Adolphus uma vantagem momentnea sobre o seu rival, mas as volveis atenes da casa no tardaram a concentrar-se de novo no jovem sedutor. Ento o Adolphus habituou-se a ficar sentado em casa, olhando dignamente para o stio onde o Silver Paws comia os melhores nacos de carne, rodeado de todo o tipo de meiguices, e lavando, meditativo, os bigodes com a pata. Foi por essa altura que o Silver Paws, para grande consternao da famlia, desapareceu. Foi feita uma busca nas redondezas, mas ele havia desaparecido sem deixar rasto, como se uma bruxa o tivesse levado na sua vassoura. Muito tristes, juntmos os brinquedos que ele deixara espalhados pela casa - um pedao de pele atado a uma corda, uma bola colorida, uns feijes secos que marraqueavam na vagem quando uma pata de veludo lhes tocava - e, com estas recordaes, fizemos um montinho que colocmos na cadeira de baloio sua favorita. - H-de quer-las se algum dia voltar - dissemos ns. Operou-se uma mudana notvel no Morning Glory Adolphus. H muito que o considervamos como um caador emrito e um lutador de primeira, mas achvamo-lo um tudo ou nada insensvel, um bocado indiferente e frio, como alis era natural para quem havia granjeado uma tal fama. Qual no foi o nosso espanto ao ver que ele se tornara, do dia para a noite, muito caloroso nas suas manifestaes de afecto e desejoso de nos fazer esquecer o outro que havamos perdido. Era realmente comovedor ver como ele nos seguia por toda a casa, se sentava aos nossos ps a ronronar com um abandono arrebatado sempre que parvamos para descansar um pouco. Esquecidos estavam os prazeres da caa, o agradvel passatempo de meter na ordem ces mal-educados. Durante trs dias, dedicou-se totalmente actividade da seduo. Se o tentassemos ignorar, ele rojava-se aos nossos ps e ali ficava, de patas no ar, nossa merc como a dizer que se entregava a ns, que, se no o amssemos, at o podamos matar. Andava pela casa com o ar orgulhosamente possessivo do chefe altivo que regressa aos seus domnios depois de uma ausncia forada e enrolava-se agradecido nas almofadas onde o seu antigo rival costumava fazer a sesta. Uma vez, encontrmo-lo esticado desdenhosamente em cima dos brinquedos que se amontoavam na cadeira de
baloio. Devia ser uma cama um bocado incmoda mas o Adolphus tinha um ar contente e confortvel. A suspeita assaltou imediatamente a sua dona. - Adolphus - disse ela zangada. - Acho que tu sabes o que se passou com o nosso bonito Silver Paws! O acusado ergueu-se em toda a sua estatura, olhou-a com a expresso gravemente inocente de um dicono ultrajado e depois, virando-lhe deliberadamente as costas, voltou a cair no sono dos justos. Mas as suspeitas da famlia no se aplacaram. - O Adolphus est a esforar-se demais por ser bonzinho - diziam eles. - No nada natural. Deve ter alguma coisa a pesar-lhe na conscincia! Pois essa era uma das maneiras de Adolphus erguer um escudo protector, de esconder as maldades. J o haviam constatado no passado. Isso foi uma grande humilhao para um esprito orgulhoso como era o Adolphus e ele demonstrou o seu ressentimento saindo de casa, batendo com a porta como qualquer macho ofendido. A famlia seguiu-o de longe. Ele foi direito ravina onde costumava caar e ficou na borda a olhar intensamente l para baixo, com as orelhas puxadas para trs, todo ele irradiando um regozijo maldoso, desde os bigodes nervosos at ponta da cauda agitada. Era dificil acreditar que se tratava da mesma criatura simptica que h umas horas atrs se insinuava toda para ns. Quando nos aproximmos, ouvimos um choro fraco, lamentoso e triste e, l no fundo, no meio do arvoredo, descobrimos o nosso Silver Paws, demasiado fraco e esfaimado para se aguentar de p e bastante alquebrado pelos maus tratos infligidos pelo seu carcereiro. Quando o Adolphus nos viu olhar para a ravina, retirou-se aflito pois sabia que a brincadeira acabara. Com um desprezo desdenhoso, ficou a ver-nos recolher o rival banido, a dar-lhe leite quente, a acaricilo e a confort-lo. Com que terrveis artimanhas tinha o Adolphus mantido o seu prisioneiro no fundo da ravina, mesmo ali ao alcance dos nossos chamamentos, durante todas aquelas horas em que nos seduzira a seu belo prazer, e que encantamentos lhe lanara para o gatito esfaimado no ter ousado responder aos nossos apelos? Entre regozijos e ralhetes vimos que o co do merceeiro se aproximava, vindo da esquina da casa. Tornara-se mais atrevido durante aqueles dias de fraqueza, quando o Adolphus andava atrs das senhoras. Mas bastou olhar uma vez para os olhos cor de mbar do Adolphus para desaparecer logo com um latido pois percebeu que o lutador estava novamente em forma. Trad. M. J. D.
DE COMO UMA GATA FEZ DE ROBINSON CRUSO Charles G. D. Roberts A ilha era um mero banco de areia ao largo da costa plana e baixa. Nem uma rvore sequer quebrava a sua planura deserta - nem mesmo um arbusto. Mas os longos e speros caules das ervas dos pntanos cobriamna por completo acima da linha da mar; e um pequeno ribeiro de gua doce que corria de uma nascente no centro da ilha traava uma faixa de verdura suave por entre o cinza amarelado, sombrio e seco da erva. Pouca gente escolheria a ilha como local para viver e contudo, na orla, no outro extremo, encontrava-se uma casa espaosa, de um andar e com um amplo terrao, com um barraco baixo nas traseiras. A virtude daquele pedao isolado de areia, era a sua frescura. Quando no continente mesmo ali ao lado estavam uns dias, e tambm umas noites, sufocantes, com um calor irrespirvel, ali, na ilha, corria sempre uma aragem fresca. Assim, um sensato citadino apropriara-se daquele pedao arrancado ao mar e construra a a sua casa de Vero, onde o ar puro poderia voltar a colorir as faces plidas dos filhos. A famlia vinha para a ilha em fins de Junho. Na primeira semana de Setembro, iam-se embora, deixando todas as portas e janelas da casa e do barraco bem fechadas, pregadas ou trancadas contra as tempestades do Inverno. Um barco espaoso, remado por dois pescadores, levava-os por aquela meia milha de mars vivas que os separava do continente. Os mais velhos da famlia no lamentavam aquele regresso ao mundo dos homens, depois de dois meses de vento, sol, ondas e ervas ondulantes. Mas as crianas regressavam com as faces riscadas pelas lgrimas. Haviam deixado para trs o seu animal de estimao, a companheira de sempre das suas migraes, uma bela gata, com cara de meia-lua, listrada como um tigre. O bicho desaparecera misteriosamente dois dias antes, evaporando-se da face da ilha sem deixar qualquer rasto. A nica explicao lgica era ter sido levado por uma guia qualquer que por ali passara. Entretanto a gata estava bem presa, do outro lado da ilha, debaixo de um barril partido e de quilos e quilos de areia amontoada. O velho barril, com as aduelas rachadas num dos lados, ficara ali, semi-enterrado, na crista de uma duna que se formara com os ventos dominantes. A abrigada, a gata encontrara um buraco protegido, ensolarado onde gostava de se enroscar durante horas a apanhar sol ou a dormitar. Entretanto a areia foi-se acumulando cada vez mais por detrs da barreira instvel. At que ficou demasiado alta e, de repente, com uma rajada mais forte, o barril rebolou por ali abaixo atrs de uma massa de areia e enterrou a gata que ento dormia no escuro. Mas, ao mesmo tempo, a parte intacta do barril formou uma espcie de cpula, cobrindo a prisioneira evitando que esta ficasse esmagada ou abafada. Quando as crianas, na sua busca desesperada por toda a ilha, chegaram quele montculo de areia fina e branca, nem sequer repararam nele. No ouviram os miados fracos que, de vez em quando, vinham l de dentro, do escuro. E assim, foram-se embora muito tristes sem sonharem que a sua amiga estava presa quase debaixo dos seus ps. Durante trs dias a prisioneira lanou constantes apelos de socorro. No terceiro dia o vento mudou e no tardou a transformar-se numa enorme ventania. Em poucas horas descobriu o barril e um raiozinho de luz apareceu num dos cantos. Ansiosamente, a gata enfiou a pata no buraco. Quando a voltou a retirar, o buraco j estava maior. Percebeu e comeou a esgadanhar. A princpio os seus esforos no obtiveram grandes resultados mas logo de seguida, quer por mera sorte, quer por sagacidade, aprendeu a
esgadanhar com mais eficcia. A abertura aumentou rapidamente e por fim l conseguiu sair. O vento, levantando a areia, assolava a ilha. O mar golpeava a praia com o troar de um bombardeamento. As ervas tombavam formando longas filas ondulantes. Por cima de todo aquele torvelinho, o Sol brilhava num cu azul, limpo e profundo. A gata, quando enfrentou pela primeira vez a ventania, foi praticamente arrastada. Logo que conseguiu recompor-se, ps-se a rastejar e enfiou-se nas ervas para se proteger. Mas a proteco no era muita j que os longos caules se encontravam completamente tombados. Mas l avanou contra o vento, por entre aquelas filas, em direco casa, no outro extremo da ilha onde encontraria, como pensava, no s comida e abrigo, como ainda umas meiguices que a fariam esquecer todo aquele pavor. Silenciosa e abandonada em plena luz do Sol e no meio de ventos desencontrados, a casa assustou-a. No compreendia aquelas portadas fechadas, as portas mudas, indiferentes, que no se abriam perante o seu chamamento desesperado. O vento arrastou-a violentamente pelo terrao vazio. Trepando com dificuldade para o parapeito da janela da sala de jantar, onde tantas vezes estivera, ali ficou por uns momentos miando desesperadamente. Ento, entrando em pnico, saltou e correu para o barraco. Tambm este estava fechado. Nunca vira as portas do barraco fechadas, e no percebia porqu. Com toda a cautela, fez uma ronda pelos alicerces - mas esses tinham sido bem construdos e no havia hiptese de se entrar por ali. Fosse por que lado fosse, aquela velha casa familiar s lhe oferecia espaos vazios e muros fechados. A gata fora sempre to apaparicada e to amimada pelos midos que nunca tivera de arranjar comida; mas, felizmente para ela, aprendera a caar os ratos dos pntanos e os pardais das ervas s por brincadeira. E agora, esfaimada como estava por aquele longo jejum debaixo da areia, afastou-se penosamente da casa vazia e arrastou-se ao abrigo de uma duna, at um pequeno buraco cheio de erva que j conhecia. Ali, a ventania apenas atingia a parte de cima da vegetao; e era ali, na calma quente e relativa, que as criaturinhas peludas dos pntanos, os ratos e os musaranhos faziam a sua vida sem serem perturbados. A gata, rpida e furtivamente, no tardou a apanhar um, aliviando assim a fome. Apanhou outros. E depois, regressando casa, passou horas a fio num miado lamuriento, rondando e voltando a rondar a casa, cheirando e espreitando, gemendo desesperadamente na soleira da porta e nos peitoris das janelas sendo, de vez em quando, atirada impiedosamente contra o cho macio do terrao. Por fim, j sem qualquer esperana, enroscou-se debaixo da janela dos midos e adormeceu. No obstante a sua solido e tristeza, a vida daquela prisioneira da ilha, naquelas duas a trs semanas, no foi de modo algum dura. Para alm da abundante rao de pssaros e de ratos, ela aprendeu depressa a apanhar peixitos na foz do riacho onde a gua doce se juntava salgada. Era uma brincadeira excitante e ela tornou-se perita em arpoar, com um golpe seco das garras, o peixe-mocho cinzento e o ligueiro azul-prateado, lanando-os por cima da margem. Mas, quando as tempestades do equincio se abateram sobre a ilha, com chuva violenta e nuvens baixas e negras em farrapos, nessa altura a vida tornou-se mais dura. A caa escondia-se em tocas dificeis de descobrir. No era nada fcil andar no meio das ervas encharcadas e chicoteantes e, ainda para mais, ela detestava sentir-se molhada. A maior parte do tempo, ficava sentada, esfaimada, mal-humorada e infeliz, protegida pela casa, olhando despeitada o tumulto furioso e violento das ondas. A tempestade durou quase dez dias antes de passar. No oitavo dia, os destroos de uma pequena escuna da Nova Esccia deram costa, j
sem qualquer aspecto de barco. Mas, sendo um casco, trazia passageiros a condizer. Uma horda de ratazanas atravessou a ressaca e enfiou-se pelas razes das ervas adentro. Instalaram-se rapidamente, escondidas sob as ervas, debaixo de paus velhos e semi-enterrados, espalhando o pnico nas hostes de ratos e de musaranhos. Quando a tempestade acabou, a gata teve uma enorme surpresa na sua primeira e grande expedio de caa. Algo havia pisado fortemente as ervas e ela seguiu o rasto espera de apanhar um rato especialmente grande e gordo. Quando se lanou sobre a presa e deparou com uma enorme e velha ratazana dos pores, j bem vivida e viajada, foi selvaticamente mordida. Nunca passara por uma tal experincia. A princpio sentiu-se to dorida que esteve quase a bater em retirada e fugir dali para fora. Depois, o seu esprito combativo bem como a chama dos seus longnquos antepassados vieram ao de cima. Lanou-se na luta com uma fria tal que lhe fez esquecer as feridas que tinha; e a luta foi breve. As feridas, meticulosamente lambidas, sararam depressa com aquele ar puro e lmpido; e depois disso, tendo aprendido a lidar com caa mais grossa, nunca mais foi mordida. Durante a primeira lua cheia aps ter sido abandonada - a primeira semana de Outubro - a ilha foi visitada por um tempo calmo de noites muito frias. A gata descobriu ento que era mais interessante caar noite e dormir de dia. Percebeu que nessas alturas, sob a brancura estranha da Lua, toda a caa se agitava - excepto os pssaros que haviam voado para o continente durante a tempestade preparando-se para a sua viagem em direco a sul. Nas ervas esbranquiadas, descobriu ela, havia um resrolhar contnuo e, por todo o lado, uns vultozinhos imperceptveis que se esgueiravam aos guinchos por entre as areias brancas, fantasmagricas. Tambm conheceu um novo pssaro que a princpio encarou com uma certa desconfiana e depois com uma ira vingativa. Foi a coruja castanha dos pntanos, que viera do continente para a fazer a sua caada de Outono aos ratos. Havia dois destes grandes caadores de asas felpudas e olhos redondos, e no sabiam que havia um gato na ilha. A gata, ao espiar uma das corujas quando esta volteava silenciosamente para c e para l por sobre os bicos prateados das ervas, agachou-se, de orelhas achatadas para trs. Com aquelas enormes asas bem abertas, parecia maior do que ela; e aquela cara larga e redonda, com um bico curvo e uns olhos ferozes, fixos, davam-lhe um ar aterrorizador. Todavia a gata no era nenhuma cobarde e no tardou a retomar a caada, embora com algumas cautelas. De repente a coruja apercebeu-se dela no meio das ervas - provavelmente viu-lhe as orelhas ou a cabea. Mergulhou e, nesse preciso momento, a gata saltou em sua direco, bufando e rosnando violentamente e atacando de garras em riste. Com um bater frentico de asas, a coruja estacou e recuou no ar, escapando por um triz daquelas terrveis garras. Depois disso, as corujas dos pntanos tinham sempre o cuidado de a evitar. Perceberam que era melhor no interferir com aquele animal de riscas pretas, de salto veloz e garras afiadas. Sentiam que havia ali uma ligao qualquer com esse predador feroz - o lince. No obstante toda esta caa, a fauna felpuda das ervas dos pntanos era to fervilhante, to inesgotvel, que a depredao feita pela gata, pelas ratazanas e pelas corujas praticamente no se notava. Assim, as caadas e as tropelias sucediam-se sob uma Lua indiferente. medida que o Inverno avanava - com fortes vagas de frio e ventos contrrios que foravam a gata a mudar constantemente de refgio - ela ficava cada vez mais infeliz. Sentia-se completamente abandonada. No conseguia encontrar em toda a ilha um canto onde se sentisse
protegida do vento e da chuva. Quanto ao velho barril, a primeira causa das suas desgraas, no podia contar com ele. Os ventos h muito que o haviam virado de pernas para o ar, completamente esventrado e depois enchido de areia e reenterrado. E, de qualquer modo, a gata teria medo de voltar a aproximar-se dele. Assim, acontecia que s ela, entre todos os habitantes daquela ilha, que no tinha um abrigo para l se enfiar quando o Inverno rigoroso chegou, com neves que tapavam as ervas e geadas que cobriam a praia com placas de gelo estaladias. As ratazanas fizeram as suas tocas por debaixo dos destroos do barco; os ratos e os musaranhos tinham os seus tneis profundos e quentes; as corujas fizeram ninhos nos buracos das rvores l longe nas florestas do continente. S a gata, trmula e assustada, no conseguia seno enroscar-se contra as paredes daquela casa insensvel e deixar que a neve rodopiasse e se amontoasse sua volta. E agora, ainda por cima, via-se sem comida. Os ratos corriam vontade nos seus esconderijos onde as razes que os cercavam lhes garantiam os alimentos necessrios. As ratazanas, essas, tambm ningum as via - andavam a escavar buracos na neve macia na esperana de interceptarem alguns dos tneis dos ratos e, de quando em vez, papavam um que deambulava por ali distrado. A orla de gelo, desfazendo-se e erguendo-se por debaixo da terrvel mar, acabou com a pesca. Ela ainda tentaria apanhar uma daquelas horrorosas corujas, tal era a fome que tinha, mas estas no voltaram ilha. Haviam de regressar mais tarde, de certeza, quando a neve endurecesse e os ratos comeassem a sair das tocas e a brincar superfcie. Mas por agora andavam a perseguir caa mais fcil, embrenhadas na floresta do interior. Quando a neve deixou de cair e o Sol voltou a aparecer, ficou um frio como a gata nunca havia sentido. Acontece que era Natal; e se a gata tivesse alguma ideia do que era um calendrio, teria seguramente marcado esse dia na sua memria j que foi um dia cheio de peripcias. Como a fome no a deixasse dormir, prosseguiu teimosamente na sua ronda. E teve sorte, porque se tivesse continuado a dormir apenas abrigada pela parede da casa, nunca mais teria acordado. Incansvel, foi at ao outro lado da ilha onde encontrou, numa enseada mais ou menos abrigada e ensolarada que dava para o continente, uma faixa de areia limpa, sem gelo e recm-descoberta pela mar. Nessa enseada viamse as minsculas entradas de vrios tneis de ratos. A gata agachou-se ao p daqueles buracos na neve, trmula de concentrao. Esperou durante dez minutos ou mais sem sequer mexer um bigode. Finalmente, um rato ps a cabecita pontiaguda de fora. Sem lhe dar tempo para mudar de ideias ou para fugir, a gata saltou-lhe em cima. O rato, pressentindo a tragdia antes dela se abater sobre si, deu meia volta e enfiou-se pelo orificio estreito. No meio do seu desespero, a gata, no se apercebendo do que estava a fazer, mergulhou de cabea na neve procurando s cegas a presa que lhe escapara. Por sorte, apanhou-a. Era a sua primeira refeio em trs dias de jejum. Os midos tentavam sempre partilhar com ela as iguarias e o entusiasmo do Natal e normalmente conseguiam fazer com que ela se interessasse, por mera gula, pelas natas; mas nunca uma guloseima de Natal lhe soubera to bem. E aprendeu a lio. Como era naturalmente fina e as agruras por que passara lhe haviam aguado o engenho, percebeu que era possvel seguir a presa, naquela primeira parte do percurso, por entre a neve. No sabia que a neve era to fcil de penetrar. Como tinha praticamente destrudo a entrada daquela toca, foi-se agachar ao lado de uma outra, mas a teve de esperar muito tempo antes de aparecer um rato atrevido a espreitar pelo buraco. Mas dessa vez provou que tinha aprendido a lio. Saltou mesmo ao lado da entrada onde o instinto lhe ditava
estaria o corpo do rato. Esticou uma pata e tapou a retirada da presa. A tctica foi bem sucedida; e quando enfiou a cabea naquela brancura macia, sentiu o rato entre as patas. Com a fome aplacada, ficou altamente entusiasmada com aquela nova maneira de caar. Antes, esperara muitas vezes sada dos buracos dos ratos mas nunca conseguira rebentar com as paredes e invadir a toca. Era uma ideia fantstica. Ao aproximar-se de um outro buraco, um rato correu rapidamente areia acima e enfiou-se l para dentro. A gata, no tendo tempo para o apanhar antes dele desaparecer, tentou segui-lo. Esgadanhando atabalhoada mas obstinadamente, conseguiu enfiar o corpo na neve. No viu sinais do fugitivo que nessa altura j corria so e salvo por um outro tnel transversal. Com os olhos, a boca, os bigodes e o plo cheios de pedacinhos de neve, recuou desiludida. Mas nesse momento percebeu que estava muito mais quente ali, debaixo da neve, do que l fora, naquele ar cortante. Esta foi a segunda lio e extremamente importante; e embora provavelmente no se apercebesse que a tinha aprendido, da a pouco teve oportunidade de a pr instntivamente em prtica. Tendo conseguido apanhar um outro rato e como no lhe apetecesse com-lo imediatamente, levou-o na boca at casa e depositou-o, laia de trofu, nos degraus do terrao enquanto miava e olhava desesperada para a porta imvel e coberta. Em geral, eram animais para esquecer. Mas, apesar disso, ela adorava andar por ali a caar, pela vastido de neve deserta e sem limites. Ento, senhora da situao, viu o Inverno passar sem grandes atribulaes. S uma vez, nos fins deJaneiro, que o destino lhe ia pregando mais uma partida. Na sequncia de um perodo particularmente frio, uma noite apareceu na ilha uma coruja branca do desolado rtico. A gata, que fazia a sua vigia num dos cantos do terrao, viu-a. Bastou um olhar para se aperceber de que aquele visitante era bem diferente das corujas castanhas dos pntanos. Escondeu-se sorrateiramente no seu abrigo e at a enorme coruja branca se ir embora, umas vinte e quatro horas mais tarde, ela manteve-se discretamente fora de circulao. Quando a Primavera voltou ilha, com o agudo coro nocturno das rs nas poas baixas e cheias de juna e a erva nova juncada de ninhos, a vida da prisioneira tornou-se quase luxuosa com toda aquela abundncia. Mas agora ela voltava a no ter casa j que o seu abrigo desaparecera com a neve. Contudo isso no a preocupou muito pois o tempo estava cada vez mais quente e calmo; e alm disso, ela prpria, sendo forada a usar mais o instinto, aprendera a contentar-se com pouco. Todavia, com toda a sua capacidade de aprender e de se adaptar, no tinha esquecido nada. E assim, quando num dia de Junho apareceu um barco cheio de gente vindo do continente, e vozes de crianas, ecoando por entre as ervas, quebraram o silncio desolado da ilha, a gata ouviu-as e acordou do seu sono nas escadas do terrao. Estacou por momentos, escuta. E ento, quase como um co o faria, e alguns exemplares da sua tribo orgulhosa teriam condescendido em fazer, correu at ao ancoradouro - para se lanar nos braos de quatro crianas radiantes, ficando com o plo num tal estado que s uma hora de meticulosas lambidelas o faria voltar ao normal. trad. M. J. D.
A CAA GROSSA DE MING Patrcia Highsmitb Ming estava confortavelmente a descansar aos ps do beliche da sua dona, quando o homem pegou nele pelo cachao, atirou-o para a coberta e fechou a porta da cabina. Os olhos azuis de Ming abriram-se de abalo e de breve raiva, quase fechando-se depois por causa da luz brilhante do Sol. No era a primeira vez que Ming tinha sido posto fora da cabina de forma to rude, e Ming sabia que o homem o fazia quando a sua dona, Elaine, no estava a ver. O barco vela, agora, no oferecia abrigo do sol, mas Ming ainda no tinha calor demais. Saltou agilmente para a cobertura da cabina e dirigiu-se para o cabo enrolado mesmo atrs do mastro. Ming gostava do cabo como se fosse um sof, porque podia ver tudo do alto, a concavidade do cabo protegia-o das brisas mais fortes, e tambm minimizava o baloiar e as mudanas bruscas de rumo do Wbite Lark, j que era mais ou menos o ponto central do barco. Mas neste momento a vela tinha sido arreada, porque Elaine e o homem tinham estado a almoar, e muitas vezes dormiam a sesta depois do almoo, e Ming sabia que nessa altura o homem no gostava que ele estivesse na cabina. O almoo fora bom. De facto, Ming acabara de comer um delicioso peixe grelhado e um bocado de lagosta. Agora, deitado relaxadamente na curva do cordame, Ming abriu a boca num grande bocejo, e com os seus olhos oblquos quase fechados por causa da forte luminosidade, olhava as colinas beges e as casas e hotis brancos e cor-de-rosa que circundavam a baa de Acapulco. Entre o Wbite Lark e a praia, onde as pessoas chapinhavam audivelmente, o sol brilhava na superficie da gua como se fossem milhares de luzinhas elctricas a acender e a apagar. Um esquiador aqutico passou, deixando um rasto de espuma branca atrs dele. Tanta actividade! Ming dormitava, sentindo o calor do sol no seu plo. Ming era de Nova Iorque e considerava Acapulco uma grande melhoria comparado com o ambiente em que vivera durante as cinco primeiras semanas de vida. Lembrava-se de um caixote com palha onde o sol nunca batia, onde outros trs ou quatro gatitos estavam com ele e de uma janela, atrs da qual formas gigantescas se detinham por alguns momentos, tentavam chamar a sua ateno batendo com os dedos e depois seguiam. No se lembrava nada da me. Um dia uma jovem senhora, que cheirava agradavelmente, entrou e levou-o para longe do hediondo e assustador cheiro a co, a remdio e a excremento de papagaio. Depois seguiram no que Ming sabia agora ser um avio. Agora j estava bastante habituado aos avies e j gostava deles. Nos avies sentava-se no colo de Elaine ou dormia no colo dela e havia sempre petiscos para comer, se tivesse fome. Elaine passava a maior parte do dia numa loja em Acapulco, onde vestidos, calas e fatos de banho estavam pendurados nas paredes. Este lugar cheirava a fresco e a limpo, havia flores em jarras e l fora, nas floreiras, e o cho era de azulejos refrescantes azuis e brancos. Ming tinha liberdade total de dar uma volta no ptio, atrs da loja ou de dormir no seu cesto num canto. Havia mais sol na parte da frente da loja, mas rapazolas maus tentavam agarr-lo se estava l sentado e Ming nunca se sentia descansado. Ming gostava mais de estar deitado ao sol, com a sua dona, numa das grandes cadeiras de lona no terrao da casa deles. O que Ming no gostava era das pessoas que ela s vezes convidava a visit-los. Pessoas que dormiam l, muitas pessoas que se demoravam at tarde a comer e a beber, a tocar o gramofone ou o piano - pessoas que o separavam de Elaine. Pessoas que o calcavam, pessoas que pegavam nele
por detrs sem lhe dar tempo para fugir e que o obrigavam a torcer-se e lutar para se soltar, pessoas que lhe faziam festas violentas, pessoas que fechavam portas, deixando-o trancado. Pessoas! Ming detestava pessoas. No mundo inteiro ele s gostava de Elaine. Elaine gostava dele e compreendia-o. Ora, Ming detestava especialmente este homem chamado Teddie. Teddie estava presente a toda a hora ultimamente. Ming no gostava do modo como Teddie olhava para ele, quando Elaine no estava a ver. E por vezes, quando Elaine no estava por perto, Teddie dizia algo por entre os dentes que Ming sabia ser uma ameaa. Ou uma ordem para sair dali. Ming no se ralava. Era necessrio preservar a dignidade. Alm disso a sua dona no estava do lado dele? O intruso era o homem. Quando Elaine estava a olhar, o homem, s vezes, fingia ser amigo dele, mas Ming afastava-se sempre, graciosamente mas inconfundvelmente, noutra direco. A soneca de Ming foi interrompida pelo som da porta da cabina a abrir. Ouviu Elaine e o homem a rirem e a falarem. O grande Sol vermelho alaranjado estava perto do horizonte. - Ming! - Elaine aproximou-se dele. - No ests a ficar assado, meu querido?Julgava-te l dentro! - Eu tambm! - disse Teddie. Ming ronronou como fazia sempre ao acordar. Ela pegou nele cuidadosamente, aconchegou-o nos braos e levou-o para baixo para a repentina sombra fresca da cabina. Falava com o homem num tom que no era amvel. Pousou Ming frente da sua tigela de gua, e embora ele no estivesse com sede, bebeu um pouco para lhe agradar. Ming sentia-se aturdido pelo calor e cambaleou um pouco. Elaine pegou numa toalha molhada e limpou o focinho, as orelhas e as quatro patas de Ming. Em seguida deitou-o no beliche que cheirava ao perfume de Elaine, mas tambm ao homem que Ming detestava. Agora a sua dona e o homem estavam a discutir, Ming percebia-o pelo tom da voz. Elaine estava junto a Ming, sentada na beira do beliche. Por fim Ming ouviu um chapo que significava que Teddie tinha mergulhado na gua. Ming desejou que ele l ficasse, desejou que se afogasse, desejou que nunca voltasse. Elaine ensopou uma toalha de banho no lavatrio de alumnio, torceu-a e estendeu-a no beliche e colocou Ming sobre ela. Trouxe gua e agora Ming tinha sede e bebeu. Deixou-o a dormir enquanto lavava e arrumava os pratos. Eram sons confortveis que Ming gostava de ouvir. Mas em breve houve outro gnero de bat chap, os ps molhados de Teddie pisavam o convs e Ming tornou a acordar. O tom da discusso recomeou. Elaine subiu os poucos degraus at ao convs. Ming, embora tenso, continuava com a cabea pousada na toalha hmida, mantinha os olhos fixos na porta da cabina. Eram os ps de Teddie a descerem que ele ouvia. Ming ergueu levemente a cabea, sabendo que no tinha saida atrs de si e que estava encurralado dentro da cabina. O homem parou, com a toalha na mo, a olhar para Ming. Ming esticou-se completamente como se se preparasse para bocejar, o que lhe fazia trocar os olhos, depois, deixou que a sua lngua escorregasse um pouco para fora da boca. O homem comeou por querer dizer algo, parecia que queria atirar a toalha molhada a Ming, mas hesitou, e o que queria dizer nunca lhe saiu da boca, atirou a toalha para o lavatrio e comeou a lavar a cara. No era a primeira vez que Ming deitava a lngua de fora a Teddie. Muitas pessoas riam quando Ming fazia isto, pessoas numa festa, por exemplo, e Ming at se divertia. Mas Ming sabia que Teddie se ressentia com isso e julgava a sua atitude hostil e era por essa mesma razo que Ming o fazia de propsito a
Teddie, enquanto no meio de outras pessoas, muitas vezes, era por acaso que a lngua de Ming descaa fora da boca. A discusso continuava. Elaine fez caf. Ming comeava a sentir-se melhor e voltou para o convs porque o Sol j se tinha posto. Elaine pusera o motor a trabalhar e vogavam devagar em direco costa. Ming apercebeu-se do canto das aves, os gritos estranhos como frases agudas de certas aves que s piam ao pr-do-sol. Ming estava ansioso pela casa de adobe no penhasco, que era a casa dele e da sua dona. Ele sabia a razo porque ela no o deixava sozinho em casa (onde ficaria muito mais confortvel) quando ia andar de barco, ela tinha medo que algum pudesse apanh-lo ou mesmo mat-lo. Ming percebia. Tinha havido pessoas que tinham tentado apanh-lo quase debaixo dos olhos de Elaine. Uma vez, tinham-no agarrado e metido dentro de um saco e, embora ele tivesse lutado o mais possvel, com certeza no teria conseguido libertar-se, se a prpria Elaine no tivesse batido no rapaz e arrancado o saco das mos dele. Ming tencionara tornar a saltar para cima do tejadilho da cabina, mas aps lhe ter dado uma olhadela, decidiu poupar as foras e por isso aninhou-se no convs quente e levemente inclinado com as patas metidas para dentro a olhar para a costa que se aproximava. Agora ouvia uma viola a tocar na praia. As vozes da sua dona e do homem tinham-se calado. Por alguns momentos, o som mais alto era o chuca-chuca-chuca do motor do barco. Ento Ming ouviu os ps descalos do homem a subirem os degraus. Ming no virou a cabea para o ver, mas involuntariamente as orelhas inclinaram-se para trs. Ming olhou para a gua que estava ali em frente dele. Estranhamente o homem no emitia som algum atrs de si. O plo do pescoo de Ming eriou-se e ele espreitou por cima do ombro direito. Nesse mesmo instante, o homem inclinou-se para a frente e investiu contra Ming com os braos abertos. Ming ergueu-se instantaneamente, saltando direito ao homem, que era a nica direco segura no convs sem amuradas, e o homem lanou o seu brao esquerdo que embateu no peito de Ming. Ming voou para trs, raspando o convs com as unhas, mas as patas traseiras caram fora de bordo. Ming agarrou-se com as patas da frente madeira escorregadia e lustrosa que no lhe dava muito apoio, e fazendo fora com as patas traseiras contra o casco, cuja inclinao em nada favorecia os seus esforos, tentou iar-se para bordo. O homem avanou para empurrar com o p as patas de Ming, mas nesse instante Elaine subia os degraus da cabina. - O que que se passa? Ming! As fortes patas de Ming estavam aos poucos a conseguir traz-lo para cima do convs. O homem tinha-se ajoelhado como se fosse ajud-lo. Elaine tambm tinha cado de joelhos e agora segurava Ming pelo cachao. Ming relaxou agachado no convs de cauda molhada. - Caiu borda fora - disse Teddie. - verdade, ele devia estar tonto, tombou e caiu quando o barco se inclinou. - Foi o sol. Coitado do Ming! - Elaine segurou o gato contra o peito e levou-o para dentro da cabina. - Teddie, guias? O homem entrou na cabina. Elaine colocara Ming no beliche e falava-lhe com meiguice. O corao dele ainda batia depressa. Ele estava alerta ao homem no leme, apesar de Elaine estar com ele. Ming apercebeu-se que tinham entrado na pequena enseada onde sempre se dirigiam antes de sair do barco. Aqui estavam os amigos e aliados de Teddie, os quais Ming detestava por associao, embora estes fossem s rapazes mexicanos. Dois ou trs rapazes em cales chamavam - Senhor Teddie! - e ofereciam
uma mo a Elaine para subir para o ponto, pegavam no cabo que estava preso popa do barco, ofereciam-se para pegar no - Ming! Ming! - Ming saltou sozinho para o ponto e agachou-se espera de Elaine, pronto para fugir de uma ou outra mo que viesse na sua direco; e havia vrias mos morenas que se lhe dirigiam e Ming teve de saltar para o lado vrias vezes. Havia risos, suspiros e o som surdo de ps descalos nas tbuas. Mas tambm havia a voz tranquilizadora de Elaine a enxotlos. Ming sabia que ela estava ocupada a transportar os sacos de plstico e a fechar a porta da cabina chave. Teddie com a ajuda de um dos rapazes esticava agora a lona sobre a cabina e os ps de Elaine, calados de sandlias, estavam ao lado de Ming que a seguiu quando ela se foi embora. Um rapaz pegou nas coisas que Elaine levava e em seguida ela pegou em Ming ao colo. Entraram no grande carro descapotvel que pertencia a Teddie e seguiram a estrada cheia de curvas at casa de Elaine e de Ming. Era um dos rapazes que guiava. O tom de voz usado por Elaine e Teddie era agora mais calmo, mais suave. O homem ria. Ming sentado no colo da sua dona estava tenso e sentia a preocupao dela pelo modo como o afagava e lhe tocava no pescoo. O homem estendeu o brao e pousou os dedos no lombo de Ming e este deu uma rosnadela grave que subia, descia e ressoava do fundo da garganta. - Pronto, pronto - disse o homem retirando a mo, fingindo estar divertido. A voz de Elaine parou no meio de uma frase. Ming estava cansado, e s queria dormir uma sesta na cama grande l de casa que estava coberta por uma manta fina de l s riscas vermelhas e brancas. Mal Ming teve este pensamento, encontrou-se no ambiente fresco e aromtico da sua casa e colocado cuidadosamente sobre a fofa manta de l. A sua dona deu-lhe um beijo e disse alguma coisa que inclua fome. Ming percebeu, tinha que lhe dar a entender quando tivesse fome. Ming dormitou, e acordou ao som de vozes vindas atravs das portas de vidro do terrao, situado a poucos metros dali. J estava escuro. Ming via uma ponta da mesa e pelo tipo de luz percebeu que havia velas acesas. Concha, a empregada que dormia em casa, estava a levantar a mesa. Ming ouviu a voz dela, depois as vozes de Elaine e do homem. Ming sentiu o cheiro a charuto. Saltou para o cho e sentou-se por pouco tempo a olhar para o terrao atravs da porta. Bocejou, arqueou o dorso, esticou-se e tornou flexveis os msculos cravando as unhas no espesso tapete de palha. Saiu pelo lado direito e deslizou pela escadaria de pedra abaixo at ao jardim. O jardim era como uma selva, uma floresta: abacateiros e mangueiras cresciam to altos como o prprio terrao - havia buganvilias encostadas s paredes, orqudeas nas rvores, magnlias e vrias camlias que Elaine plantara. Ming podia ouvir os pssaros chilrear, agitando-se nos seus ninhos. s vezes ele subia s rvores para ir aos ninhos, mas esta noite no tinha vontade, embora j no estivesse cansado. As vozes da sua dona e do homem incomodavam-no. A sua dona, esta noite, no se mostrava muito amiga do homem, isso era certo. Concha estava provavelmente na cozinha e Ming decidiu entrar e pedir-lhe de comer. Concha gostava dele. Uma criada que no tinha gostado dele fora despedida por Elaine. Ming pensou que gostaria de carne de porco na brasa. Tinha sido o jantar da sua dona e do homem. A fresca brisa vinda do oceano agitou de leve o plo de Ming e este sentiu-se totalmente refeito da horrvel experincia de quase ter cado ao mar. Neste momento o terrao estava vazio. Ming voltou esquerda, outra vez para o quarto de dormir, e sentiu logo a presena do homem
embora no houvesse luz e Ming no o visse. O homem estava junto do toucador a abrir uma caixa. De novo, involuntariamente, Ming deu uma rosnadela grave que subia e descia e estacou, na posio em que estava, quando pela primeira vez se apercebeu da presena do homem, a pata direita dianteira no ar para o passo seguinte, as orelhas inclinadas para trs e estava preparado para saltar em qualquer direco, embora o homem no o tivesse visto. - Psiu! Maldito! - segredou o homem. Bateu com o p, no com muita fora, para enxot-lo. Mng no se mexeu, ouviu o suave restolhar caracterstico do colar branco pertencente sua dona. O homem meteu-o no bolso e, passando pela direita de Ming, dirigiu-se para a porta que dava para a grande sala de estar. Ming ouviu ento o tilintar de uma garrafa de encontro a um copo, ouviu o lquido a ser vertido. Ming saiu pela mesma porta e virou esquerda em direco cozinha. Aqui miou e foi cumprimentado por Elaine e Concha. Esta tinha o rdio dela a tocar msica. - Peixe? Carne de porco. Ele gosta de carne de porco - disse Elaine, pronunciando as palavras de um modo esquisito como fazia quando falava com Concha. Ming, sem grande dificuldade, deu a entender a sua preferncia pela carne de porco e obteve-a. Comeu com bom apetite. Concha exclamava Ahh! ohh! enquanto a sua dona falava com ela; falou durante muito tempo. Ento Concha agachou-se para lhe fazer festas e Ming deixou, sempre a olhar para o prato, at que ela o largou e ele pde acabar a refeio. Elaine saiu ento da cozinha. Concha deitou um pouco de leite condensado, que ele gostava muito, na tigela vazia e Ming lambeu-o todo. Depois esfregou-se de encontro s pernas nuas dela, a modos de agradecimento, e saiu da cozinha, dirigindo-se para o quarto de dormir passando pela sala. Mas agora Elaine e o homem encontravam-se l fora no terrao. Ming tinha acabado de entrar no quarto quando ouviu Elaine a chamar: - Ming? Onde ests? Ming foi at porta do terrao onde parou e sentou-se na soleira. Elaine estava sentada de esguelha ao fundo da mesa e a luz da vela evidenciava o louro dos seus cabelos e o branco das calas. Ela bateu com as mos no regao e Ming saltou-lhe para cima. O homem disse qualquer coisa em voz baixa, qualquer coisa desagradvel. Elaine replicou algo no mesmo tom, mas riu-se um pouco. Ento tocou o telefone. Elaine ps Ming no cho e entrou na sala de estar para atender o telefone. O homem acabou de beber o que tinha no copo, murmurou algo a Ming e pousou o copo sobre a mesa. Levantou-se e tentou encurralar Ming, ou lev-lo at a ponta do terrao, percebeu Ming, que tambm entendeu que o homem estava bbado - e por isso movimentava-se devagar e desajeitadamente. O terrao tinha um parapeito da altura da anca do homem, mas em trs stios havia grades com barras suficientemente largas para Ming passar por elas, o que Ming nunca fazia; limitava-se, s vezes, a olhar por entre elas. Era evidente para Ming que o homem queria enxot-lo por entre uma das grades ou pegar nele e atir-lo por cima do parapeito do terrao. No havia nada mais fcil para Ming do que trocar-lhe as voltas. Ento, o homem pegou numa cadeira e girou-a repentinamente, atingindo Ming no quadril. Foi rpido, e doeu. Ming tomou a sada mais prxima, que era descer a escadaria que dava para o jardim.
O homem comeou a descer atrs dele. Sem reflectir, Ming precipitou-se a subir os degraus, que tinha acabado de descer, mantendo-se junto parede na sombra. O homem no o tinha visto, Ming sabia-o. Saltou para o parapeito do terrao, sentou-se e lambeu a pata para se recuperar e restabelecer. O seu corao batia to depressa como se estivesse no meio de uma luta e corria dio nas suas veias. dio queimava-lhe os olhos quando se agachou e ouviu os passos incertos do homem a subir a escada por debaixo dele. Avistou o homem. Ming preparou-se para o salto e pulou com toda a sua fora aterrando com as quatro patas no brao direito do homem perto do ombro. Ming agarrou-se ao tecido do casaco branco do homem, mas estavam os dois a cair. O homem gemeu. Ming manteve-se agarrado. Ramos quebravamse. Ming sentia-se desorientado. Soltou-se do homem, apercebendo-se tarde demais da proximidade do solo, e caiu de lado. Quase ao mesmo tempo ouviu o baque surdo do embate do homem com o solo, depois o corpo rolou um pouco e em seguida o silncio. Ming teve que respirar rapidamente com a boca aberta at o seu peito deixar de doer. Do homem vinha um cheiro a lcool, charuto e o odor forte que significava medo. Mas o homem no se movia. Agora Ming via tudo nitidamente. At havia um pouco de luar. Ming dirigiu-se novamente para as escadas, teve que fazer um longo desvio por entre os arbustos, sobre pedras e areia at onde comeavam os degraus. Esgueirou-se escadas acima e achou-se de novo no terrao. Elaine estava a chegar ao terrao nesse momento. - Teddie? - chamou. Em seguida voltou para o quarto onde acendeu um candeeiro e continuou at cozinha. Ming seguiu-a. Concha tinha deixado as luzes acesas, mas estava agora no seu quarto onde o rdio tocava. Elaine abriu a porta da frente. O carro do homem continuava estacionado na entrada, reparou Ming. Agora o quadril de Ming doa-lhe, ou s agora que voltava a reparar nele, o que o obrigava a cozear um pouco. Elaine apercebeu-se disso, tocou-lhe no dorso e perguntou-lhe qual era o problema. Ming s ronronava. - Teddie? Onde ests? - chamou Elaine. Pegou numa lanterna e iluminou o jardim, os grossos troncos dos abacateiros, por entre as orquideas e a lavanda e as flores rosa das buganvlias. Ming, em segurana beira dela no parapeito do terrao, seguia com os olhos o feixe de luz da lanterna e ronronava de contente. O homem no estava mesmo em baixo, nesse local, mas mais para a direita. Elaine dirigiu-se para as escadas do terrao e cuidadosamente, porque as escadas no tinham corrimo, s largos degraus, apontou o feixe de luz para baixo. Ming nem sequer olhou. Estava sentado no cimo das escadas. - Teddie! - disse ela - Teddie! - E correu escadas abaixo. Ming no a seguiu. Ouviu-a inspirar e depois chamar: - Concha! Elaine subiu as escadas a correr. Concha tinha saido do quarto. Elaine falou com Concha e esta ficou nervosa. Elaine dirigiu-se para o telefone e falou durante pouco tempo. De seguida desceram juntas as escadas. Ming aconchegou-se no terrao que ainda estava morno do sol com as patas debaixo do corpo. Chegou um carro. Elaine subiu a escadaria e foi abrir a porta principal. Ming manteve-se afastado num canto escuro do terrao, enquanto trs ou quatro estranhos passaram pelo terrao e desceram as escadas pesadamente. Em baixo falou-se muito, barulho de ps, de arbustos a quebrar e depois o cheiro de todos eles a subirem as escadas, o cheiro a tabaco,
a suor e o cheiro familiar a sangue. O sangue do homem. Ming estava satisfeito tal como ficava satisfeito quando matava um pssaro e surgia-lhe este mesmo cheiro a sangue por entre os dentes. Desta vez era caa grossa. Ming, ignorado pelos outros, levantou-se em toda a sua estatura quando o grupo passou com o corpo e de nariz empinado inalou o aroma da sua vitria. E de repente a casa ficou vazia. Todos se tinham ido embora, at a Concha. Ming bebeu gua da sua tigela na cozinha e foi para o quarto da sua dona, enroscou-se de encontro s almofadas e adormeceu logo. Acordou ao som do barulho de um carro que lhe no era familiar. Depois a porta da frente abriu-se e reconheceu os passos de Elaine e de Concha. Ming deixou-se estar onde estava. Elaine e Concha conversaram baixo por alguns instantes e a seguir Elaine entrou no quarto. A lmpada continuava acesa. Ming viu-a abrir lentamente a caixa que estava na cmoda e meter l dentro o colar branco que fez o restolhar caracterstico. Depois fechou a caixa. Comeou a desabotoar a camisa, mas antes de ter acabado atirou-se sobre a cama e acariciou a cabea de Ming, levantou a pata esquerda dele e pressionou-a com cuidado at que as garras sairam. - Oh Ming, Ming - disse ela. Ming reconheceu a voz do amor. Trad. S. F. L. F.
OS GATOS DA SRa. BOND James Herriot Trabalho para gatos. Foi assim que a Sra. Bond se apresentou na primeira visita que lhe fiz, apertando-me firmemente a mo e atirando o queixo para a frente como a desafiar-me a responder quilo. Era uma mulher grande com uma cara forte de malares salientes e com uma presena imponente e, de qualquer modo, eu no me atreveria a discutir com ela, de forma que me limitei a acenar gravemente que sim, como se compreendesse e estivesse perfeitamente de acordo, e ela conduziu-me ento para dentro de casa. Percebi imediatamente o que ela tinha querido dizer. A grande cozinha-sala de estar estava completamente pejada de gatos. Havia gatos nos sofs e nas cadeiras, cascatas de gatos transbordando at ao cho, gatos sentados em fila nos peitoris das janelas e, mesmo no meio daquilo tudo, o pequeno Sr. Bond, plido, de bigodinho retorcido, em mangas de camisa, lia um jornal. Era uma cena que viria a tornar-se muito familiar. Muitos dos gatos eram obviamente machos no castrados porque a atmosfera vibrava com o seu cheiro caracterstico - um cheiro intenso que se sobrepunha mesmo aos odores enjoativos que emanavam de enormes panelas de comida para gato que ferviam sobre o fogo. E o Sr. Bond estava sempre ali, sempre em mangas de camisa e a ler o seu jornal, uma ilhota solitria num mar de gatos. Eu j tinha ouvido falar nos Bonds, claro. Eram londrinos que, por qualquer razo obscura, tinham escolhido o Yorkshire do Norte para se instalarem na sua reforma. Dizia-se que tinham uns dinheiritos e tinham comprado uma casa nos arredores de Darrowby onde, sem se ocuparem da vida alheia, se ocupavam dos gatos. Tinha ouvido dizer que a Sra. Bond tinha o costume de proteger os gatos vadios, de os alimentar e de lhes dar um lar se eles quisessem e isto tinha-me predisposto em seu favor porque, na minha experincia, a desgraada espcie felina parecia ser presa fcil de tudo quanto era crueldade e negligncia. As pessoas disparavam contra os gatos, atiravam-lhes coisas, matavam-nos fome e atiavam-lhes os ces, s para se divertirem. Era bom ver algum que estava do lado deles. O meu paciente, nesta primeira visita, era apenas um gatinho, uma aterrada bolinha preta e branca refugiada num canto. - um dos gatos externos - disse a Sra. Bond no seu vozeiro. - Gatos externos? - Sim. Todos estes que est a ver aqui so os gatos internos. Os outros so os verdadeiramente selvagens que se recusam, pura e simplesmente, a entrar c em casa. Dou-lhes de comer, claro, mas s aceitam entrar quando esto doentes. - Estou a perceber. - Tive imensa dificuldade em apanhar este. Estou preocupada com os olhos dele. Parece que tm uma pele a crescer l dentro e espero que lhe possa fazer alguma coisa. A propsito, o nome dele Alfredo. - Alfredo? Bom, est bem. - Avancei cautelosamente em direco ao animalzinho e fui saudado por um turbilho de unhas em riste e um dilvio de cuspidelas. Se no estivesse encurralado no seu canto teria fugido com a velocidade da luz. Examin-lo ia ser um problema. Voltei-me para a Sra. Bond. - Podia arranjar-me um lenol ou qualquer coisa do gnero? Serve um lenol velho. Vou ter de o embrulhar. - Embrulh-lo? - A Sra. Bond ficou com um ar muito desconfiado mas saiu da sala voltando depois com um lenol roto, de algodo, que servia
perfeitamente. Esvaziei a mesa de uma extraordinria variedade de pratos de comida de gatos, de livros sobre gatos, de remdios para gatos e estendi sobre ela o lenol; depois voltei a aproximar-me do meu paciente. No se pode ter pressa numa situao deste tipo e levou-me a uns cinco minutos de muita seduo e Bich-bichinho at conseguir aproximar suficientemente a minha mo. Quando cheguei ao momento de poder acariciar-lhe a barbela, agarrei-o num gesto rpido pelo cachao e, finalmente, consegui arrastar o Alfredo, que protestava amargamente e se debatia com todas as foras, para cima da mesa. A, continuando a agarr-lo firmemente pelo cachao, dei incio operao embrulho. Esta uma operao que tem muitas vezes de ser levada a cabo com felinos selvagens e, modstia parte, tenho muito jeito para tal. A ideia fazer um rolo apertado deixando de fora a parte do gato que interessa para o caso: pode ser uma pata ferida, talvez a cauda e, desta vez, evidentemente, a cabea. Penso que foi nesse momento, ao ver-me embrulhar rapidamente o gato at s se ver uma cabecinha branca e preta a sobressair de um casulo imvel de algodo, que nasceu a f inabalvel da Sra. Bond em mim. O gato e eu estvamos agora a olhar um para o outro, mais ou menos de olhos nos olhos, e o Alfredo estava totalmente sob o meu controlo. Como disse, tenho bastante orgulho nesta minha capacidade e ainda hoje os meus colegas veterinrios costumam dizer: o velho Herriot pode ter muitas limitaes, mas no h ningum como ele para embrulhar um gato. Afinal de contas no havia qualquer pele a crescer nos olhos do Alfredo. Nunca h. - Tem uma paralisia da terceira plpebra, Sra. Bond. Os animais tm esta membrana que serve para proteger os olhos. Neste caso, a membrana no se retraiu, provavelmente porque o gato est em mau estado. Talvez tenha tido uma ponta de gripe ou qualquer coisa assim que o enfraqueceu. Vou dar-lhe uma injeco de vitaminas e deixo-lhe um p que lhe vai pr na comida se o conseguir manter aqui durante uns dias. Penso que daqui a uma ou duas semanas estar fino. A injeco no constituiu qualquer problema com um Alfredo furioso mas impotente dentro do seu lenol e, assim, cheguei ao fim da minha primeira visita Sra. Bond. Foi esta a primeira de muitas outras. A senhora e eu estabelecemos uma relao imediata que foi reforada pelo facto de eu estar sempre pronto a gastar tempo com os seus variados protegidos, rastejando sob pilhas de lenha nos alpendres em busca dos gatos externos, adulando-os para que descessem das rvores, perseguindo-os incansavelmente atravs dos arbustos. Mas, na minha opinio, tudo isto tinha aspectos muito compensadores. Havia, por exemplo, a variedade de nomes que ela dava aos gatos. Fiel sua educao londrina, dera a muitos dos gatos os nomes dos jogadores da grande equipa do Arsenal daquela poca. Havia o Eddie Hapgood, o Cliff Bastin, o Ted Drake, o Wilf Copping, mas houve um caso que lhe saiu furado, porque o AlexJames comeou a dar luz gatinhos, com uma regularidade infalvel, trs vezes por ano. Havia, depois, a maneira como ela os chamava, quando queria que viessem para casa. A primeira vez que a vi fazer isto foi numa tranquila noite de Vero. Os dois gatos que ela queria que eu visse estavam l fora, algures no jardim, e eu fui com ela at porta das traseiras onde ela parou, cruzou as mos sobre o peito, fechou os olhos e entoou num melfluo contralto: - Bates, Bates, Bates, Ba-hates. - Ela cantava realmente as
palavras num tom reverente e monocrdico, dando apenas um ligeiro nfase no Ba-hates. Depois voltava a encher a ampla caixa torcica de prima-dona lrica e l voltava a soltar com o maior sentimento: - Bates, Bates, Bates, Ba-hates. Fosse como fosse, aquilo resultava, porque Bates, o gato, l veio a trotar de trs de um arbusto de loureiro. Faltava ainda o outro paciente e eu fiquei a observar a Sra. Bond, muito interessado. Ela ps-se na mesma atitude, respirou fundo, fechou os olhos, um meio sorriso doce desenhou-se-lhe no rosto e recomeou: - Sete-vezes-trs, Sete-vezes-trs, Sete-vezes-tr-s. Era a mesma melodia do Bates, com a mesma subida e descida de tom no final. Desta vez no obteve a mesma resposta rpida e teve de repetir vrias vezes a toada; as notas que pairavam no ar calmo da noite faziam lembrar, surpreendentemente, um almuadem chamando os fiis orao. Finalmente, o seu esforo foi coroado de sucesso e um gato amarelo deslizou, com ar de quem pede desculpa, ao longo da parede, esgueirando-se para dentro de casa. - Desculpe Sra. Bond - perguntei eu, disfarando a minha curiosidade com uma voz indiferente - no percebi muito bem o nome deste ltimo gato. - Oh, da Sete-vezes-trs? - Sorriu, numa reminiscncia. - Sim, um amor. Teve trs gatinhos sete vezes seguidas, est a ver, por isso achei que era um nome que lhe ficava muito bem. - Ah, pois, j percebi. Um nome esplndido, esplndido. Outra coisa que me enternecia na Sra. Bond era a sua preocupao com a minha segurana. Era algo que eu apreciava porque no uma caracterstica muito comum em donos de animais. Lembro-me, por exemplo, de um treinador de cavalos de corrida, que, quando um deles me atirou de um caixote abaixo, foi a correr examinar a pata do animal para ver se se tinha magoado; da velhinha que parecia an ao p do seu pastoralemo de dentes em riste, que me dizia Vai ser bom para ele no vai, e espero que no o magoe porque ele muito nervoso; do lavrador que, depois de um parto terrvel, que deve ter tirado dois anos pelo menos minha esperana de vida, resmungava: Voc deve ter-me morto essa vaca de cansao, amigo. A Sra. Bond era diferente. Costumava vir ter comigo porta com um enorme par de luvas para me proteger as mos das arranhadelas e era um alvio imenso encontrar algum que se preocupava. Aquilo tornou-se parte do meu padro de vida: subir o caminho do jardim entre inmeras criaturinhas fugidias de olhos selvagens que eram os gatos externos, a aceitao cerimonial das luvas entrada, depois a passagem para o ambiente pesado da cozinha onde o minsculo Sr. Bond e o seu jornal mal se viam entre o turbilho de corpos peludos dos gatos internos. Nunca fui capaz de perceber qual era a atitude do Sr. Bond para com os gatos - pensando bem, ele nunca dizia grande coisa - mas a minha impresso era que eles lhe eram totalmente indiferentes. As luvas foram uma grande ajuda e tempos houve em que constituram uma verdadeira bno de Deus. Como no caso do Bons. O Bons era um enorme membro preto azulado da seita dos gatos externos e a minha bte noire em muitos aspectos. Secretamente, sempre estive convencido de que ele tinha fugido de algum jardim zoolgico; nunca na vida vi um gato domstico com msculos to longos e elsticos, com uma ferocidade to constante. Tenho a certeza de que, algures, no Bons, havia uma costela de puma. Foi um dia triste para a colnia de gatos o dia em que ele apareceu. A mim sempre me foi dificil no gostar de um animal; a maior parte daqueles que nos tentam fazer mal so levados pelo medo, mas o
Bons era diferente; era um rufia malvolo e, aps a sua chegada, a frequncia das minhas visitas aumentou devido ao hbito que ele tinha de maltratar os colegas. Eu passava a vida a coser orelhas rasgadas e a pr ligaduras em patas arranhadas. Praticamente, comemos logo com uma prova de foras. A Sra. Bond queria que eu lhe desse uma pastilha para os vermes e eu j tinha o medicamento preparado numa pina. Como lhe deitei a mo coisa que no sei, mas a verdade que o icei para cima da mesa e fiz o meu nmero do embrulho enquanto o diabo esfrega um olho, enrolando-o em vrias camadas de tecido espesso. Durante alguns segundos ao v-lo olhar para mim com os seus enormes olhos brilhantes cheios de dio pensei que o tinha dominado. Mas quando lhe introduzi na boca a pina com o comprimido ele cerrou com toda a fora os dentes sobre a pina e senti umas garras inacreditavelmente fortes a rasgar o lenol. Tudo acabou em poucos momentos. Uma pata comprida saiu como uma bala de entre os panos e abriu caminho unhada sobre o meu pulso, eu larguei o cachao e, num abrir e fechar de olhos o Bons enterrou os dentes no meu polegar e desapareceu. E eu ali fiquei, feito parvo, a segurar os pedaos do comprimido contra os vermes numa mo ensanguentada e a olhar para o monte de farrapos que fora o meu lenol de embrulhar. Da em diante o Bons no podia nem ver-me e o sentimento era mtuo. Mas esta era uma das poucas nuvens num cu sereno. Eu continuava a gostar de ir a casa da Sra. Bond e a vida continuava a decorrer sem incidentes para alm de alguma troa dos meus colegas. Estes no conseguiam entender a minha disponibilidade para gastar tanto tempo com um monte de gatos. E evidentemente esta opinio era geral porque o Siegfried achava que as pessoas no deviam ter animais de estimao. Ele no conseguia entender a mentalidade dessa gente e impingia este ponto de vista a quem o queria ouvir. claro que ele prprio tinha cinco ces e dois gatos. Os ces, todos eles, andavam com ele no carro para todo o lado e gatos e ces eram alimentados todos os dias pelas suas prprias mos - no admitia que mais ningum se incumbisse dessa tarefa. A noite os sete animais empilhavam-se aos ps dele junto lareira. Ainda hoje defende com a mesma veemncia as suas opinies antibichos de estimao. Isto, apesar de uma nova gerao de caudas a abanar quase o impedir de ver o caminho quando anda de automvel e de possuir vrios gatos, uns quantos aqurios de peixes tropicais e um casal de cobras. O Tristan s me viu em aco uma vez em casa da Sra. Bond. Eu tinha ido buscar umas pinas compridas ao armrio dos instrumentos quando ele entrou na sala. - Alguma coisa interessante, Jim? - perguntou ele. - No, nada de especial. Vou s ver um dos gatos dos Bonds. Tem um pedao de osso espetado entre os dentes. O rapaz ps-se a olhar para mim, a ruminar. - Acho que vou contigo. Ultimamente no tenho visto muitos animais pequenos. Ao descermos pelo caminho do jardim senti uma pontada de embarao. Uma das coisas que ajudara a estabelecer o meu feliz relacionamento com a Sra. Bond fora a minha preocupao amvel com os seus protegidos. Mesmo para com os mais selvagens e ferozes, a minha atitude era sempre de gentileza, pacincia e solicitude; no era uma representao, era qualquer coisa que me vinha naturalmente. Apesar disso, no conseguia deixar de perguntar a mim mesmo o que pensaria o Tristan das minhas maneiras cabeceira dos meus pacientes. A Sra. Bond, que esperava porta, viu logo qual era a situao e
apressou-se a preparar dois pares de luvas. O Tristan ficou com um ar ligeiramente surpreendido quando ela lhe entregou as luvas mas agradeceu senhora com o seu encanto caracterstico. Pareceu ficar ainda mais surpreendido quando entrou na cozinha ao sentir a atmosfera carregada e viu as massas de criaturas peludas que ocupavam quase todos os centmetros de espao disponvel. - Dr. Herriot, lamento dizer-lhe mas o Bons que tem o osso nos dentes - disse a Sra. Bond. - O Bons! - Senti o estmago dar um n. - E como que vamos conseguir apanh-lo? - Oh, eu fui muito esperta! - respondeu ela. - Consegui atrai-lo com um pedao da comida de que ele mais gosta para dentro de um cesto de gatos. O Tristan pousou a mo sobre um grande cesto de vime que estava em cima da mesa. - Aqui, ? - perguntou displicentemente. Abriu o fecho e levantou a tampa. Durante cerca de um tero de segundo, a criatura enroscada que estava dentro do cesto e o Tristan olharam tensamente um para o outro, depois um corpo negro e esguio explodiu silenciosamente para fora do cesto e, passando de raspo pela orelha esquerda do rapaz, foi empoleirar-se no cimo de um armrio alto. - Cus! - exclamou o Tristan. - Que raio foi isto? - Isto - disse eu - foi o Bons. E agora temos de o apanhar outra vez. Trepei para uma cadeira, fui estendendo lentamente a mo no cimo do armrio e comecei a dizer Bicb-bich-bich na minha voz mais cativante. Passado a um minuto, o Trstan achou que tinha uma ideia melhor; de repente deu um salto e agarrou na cauda do Bons. Mas s por um breve instante, porque o enorme gato se libertou num segundo e desatou a correr em volta da sala num autntico turbilho: por cima de armrios e de cmodas, trepando pelas cortinas, girando e rodopiando como um acrobata no poo da morte. O Tristan colocou-se numa posio estratgica e, quando o Bons passou por ele, atirou-lhe uma mo calada com a luva. - Falhei-o, maldito! - exclamou desgostoso. - Mas a vem ele outra vez... apanha isto diabo preto! Raios, no consigo ca-lo! Os dceis gatos internos, assustados com a barulheira dos pratos e panelas que andavam num rodopio, com os gritos do Tristan e com os seus gestos de braos, comearam tambm a correr de um lado para o outro, deitando abaixo tudo aquilo que o Bons deixara em p. O barulho e a confuso foram de tal ordem que at o Sr. Bond reagiu: por um breve instante ergueu a cabea, olhou com um ligeiro ar de surpresa para os corpos que giravam em torno dele e voltou a mergulhar no seu jornal. O Tristan, corado do calor da perseguio, estava a comear a divertir-se. Eu arrepiei-me todo quando ele me gritou com ar feliz: - Enxota-o para c, Jim! Eu deito-lhe a mo da prxima vez que ele aqui passar. Nunca apanhmos o Bons. No tivemos outro remdio seno deixar o osso seguir o seu prprio destino, de forma que, como visita de veterinrio, aquilo no foi um sucesso. Mas, quando voltmos para o carro, o Tristan vinha a sorrir todo satisfeito. - Foi magnfico, Jim. No sabia que te divertias tanto com os teus gatitos. Mas a Sra. Bond, quando voltei a estar com ela, no se mostrou assim to entusiasmada com o assunto. - Dr. Herriot - disse ela - espero que no volte a trazer consigo aquele rapazote.
trad. L. R.
O GATO DE DICK BAKER Mark Twain Um dos meus colegas, o honesto e simples Dick Baker, garimpeiro de Death-Horse Gulch - mais uma vtima de dezoito anos de labuta no reconhecida e de esperanas malogradas - era uma das melhores criaturas que j alguma vez carregou a sua pesada cruz por este mundo de Cristo. Tinha quarenta e seis anos, era grisalho cor de rato, sincero, atencioso, pouco instrudo, e andava sempre mal vestido e sujo de terra, mas tinha um corao de um metal mais precioso do que qualquer ouro que a sua p pudesse trazer luz do dia - mais precioso do que qualquer ouro que alguma vez tivesse sido encontrado ou cunhado. Sempre que estava na m de baixo e acabrunhado costumava lamentarse sobre a perda de um gato extraordinrio que possura (pois, onde no h mulheres nem crianas, os homens de bom corao afeioam-se aos animais, porque tm de amar alguma coisa). E falava sempre na estranha sagacidade desse gato, com o ar de quem acreditava piamente que o bicho tinha algo de humano, de sobrenatural at. Uma vez ouvi-o falar desse animal. E foi assim: Meus senhores, costumava ter aqui um gato que dava pelo nome de Tom Quartz, que vos espantaria, penso eu - espantava qualquer um. Tiveo aqui durante oito anos - e foi o gato mais melhor que j vi. Era grande e cinzento, do tipo gatarro, e tinha mais tino que qualquer homem neste acampamento. E uma senhora dignidade. No queria familiaridades com ningum nem que fosse c o Governador da Califrnia. Nunca acaou um rato na vida. Era superior a essas coisas. Nunca gostou de nada a no ser das minas. Aquele gato intendia mais de garimpagem do que qualquer pessoa. No havia nada a ensinar-lhe quanto a estacamentos ou garimpagens - tinha nascido pr'quilo. Seguia-me a mim e ao Jim quando andvamos pelas montanhas a prospectar e era capaz de trotar atrs de ns a umas cinco milhas, se fosse preciso. E avaliava como ningum o terreno a garimpar - nunca se viu tal coisa. Quando comevamos a trabalhar, olhava em redor e, se no lhe cheirasse, olhava para ns como quem diz: Bem, vo-me dar licena... e sem mais aquelas empinava o nariz e pirava-se para casa. Mas, se lhe agradava o terreno, aninhava-se e ficava quieto at qu'a primeira peneira fosse lavada; ento esgueirava-se pr nossa beira, dava uma espreitadela e se houvesse seis ou sete pepitas ficava satisfeito - e era o bastante - e depois ia deitar-se em cima dos nossos casacos e ressonava como um barco a vapor at darmos co filo e ento levantava-se e vinha inspeccionar, a correr que nem um raio dum lado pr outro. Ora, foi por essa altura que apareceu esta mania do quartzo. Toda a gente se meteu naquilo - andava tudo de picareta e dinamite em vez de cavar a terra pzada na encosta do monte. Toda a gente andava a abrir poos em vez de esgadanhar c em cima. Embora o Jim no estivesse nada convencido, tambm ns tivemos de meter mos obra. Comemos por escavar um poo e o Tom Quartz ps-se a magicar o que que estaramos pr'li a fazer. Nunca tinha visto garimpar daqueles jeitos. Estava todo transtronado, como se costuma a dizer, e no havia maneira de intender o que estava a acontecer. Era demais para ele. Mas tambm se meteu naquilo, podem crer - de corpo e alma - embora sempre achasse que aquilo era um disparate pegado. Mas que aquele gato estava sempre contra modernices - no sei porqu mas no se confirmava. Sabem como , hbitos velhos! Mas, aos poucos, o Tom Quartz comeou a ceder embora nunca intendesse totalmente aquele eterno cavar sem peneirar nada. Por
fim resolveu descer ao poo para tentar decifrar esse mistrio. E quando lhe dava a neura e se sentia mesmo na fossa, triste com' noite - sabendo, como sabia, que as contas se empilhavam e ns sem ganhar um centavo - dava voltas em cima de um saco de sarapilheira, que estava num canto, e deitava-se a dormir. Ora, um dia, quando o poo j levava a uns oito ps de fundo, demos com uma rocha to dura que tivemos de dar um tiro - foi o primeiro tiro desde que o Tom Quartz nasceu. Foi ento que acendemos o rastilho, trepmos c para fora, e pusemo-nos a salvo a aumas cinquenta jardas - e esquecemo-nos e deixmos o Tom Quartz a dormir no saco de sarapilheira. Passado um minuto, vimos uma baforada de fumo a sair do buraco e depois foi um estrondo enorme, cerca de quatro toneladas de pedras, lixo, p e bocados de madeira a subir ao ar, espalhando-se por uma milha e meia, Deus nos acuda, mesmo no meio l vinha o velho Tom aos reboles, arranhando, rosnando, bufando e esgadanhando tudo sua volta como que possesso. Mas no lhe valia de nada, est a ver, no lhe valia de nada. E foi s isso que vimos dele durante dois minutos e meio, porque depois, de repente, desataram a cair rochas e entulho e ele caiu, que nem uma pedra, e aterrou a uns dez ps do lugar onde estvamos. Tenho de confessar que era o bicho mais esquisito a que algum tenha posto a vista em cima. Uma orelha, no pescoo; a cauda, espetada para cima; as pestanas chamuscadas e todo preto do fumo, todo sujo de lama e lixo da cabea aos ps. A bem dizer, meus senhores, no valiaapena pedir desculpas. Ficmos mudos e quedos. Ento, mirou-se enojado e depois olhou para ns - e era exactamente como quem diz: Pois , cavalheiros, talvez achem muita piada enganar um gato inexperiente em minas de quartzo, mas eu no penso assim - e virando-se, dirigiu-se para casa, sem mais aquelas. Ele era assim. E talvez no acreditem, mas depois disto, nunca se viu um gato to avesso a minas de quartzo, como ele. E, passado tempos, quando conseguiu entrar de novo no poo, ficariam admirados com a sua sagacidade. Mal acendamos o rastilho e este comeava a sibilar, afivelava um ar como quem diz: Bem, vo-me dar licena... e era espantoso o modo como ele se esgueirava do buraco que nem uma flecha e se ia refugiar numa rvore. Sagacidade? No a palavra certa. Era pura inspirao! E eu retorqui: Bem, Sr. Baker, a averso dele contra minas de quartzo era realmente uma coisa extraordinria tendo em conta o modo como adquiriu essa averso. Nunca conseguiu cur-lo? Cur-lo?! N! Uma vez perdido o tino, perdeu-o para sempre - e podia faz-lo ir pelos ares trs milhes de vezes, que nunca o curaria daquela maldita averso contra minas de quartzo. trad. L. F.
A GATA DA MINHA VIDA Derek Tangye A irm da Jeannie, Brbara, veio viver connosco em Maio, deixando a sua casa em Cotton-in-the-Clay, perto de Derby. Sempre se referira a Lama como a Princesa; e quando chegou nessa altura, afirmou que nunca vira a Princesa to bonita. E era verdade. A Princesa estava gorducha, com o plo lustroso como uma amora madura e a sua cauda gorda fazia com que o objecto que pertencia a Oliver parecesse uma ninharia. O seu focinho pequeno, exceptuando os seus lnguidos bigodes brancos, lembrava o de um gatinho; e muitas vezes era igualmente brincalhona. De repente, apanhava-a a bater com a pata numa pena de uma das gaivotas do telhado, ou via-a dentro de casa a perseguir um diabinho debaixo do tapete, enfiando a cabea para ver se o apanhava. Ainda era nova, segundo parecia, e no mostrava sinais dos anos que j passara connosco desde aquele dia em que aparecera nossa porta no meio de uma tempestade. S que a Brbara viu um, embora fosse um sinal que, nessa altura, eu preferia ignorar. Muitas vezes, quando ela se instalava no meu colo depois do pequeno-almoo ou do jantar, obrigando-me a ficar ali num canto do sof at ela se decidir libertar-me, eu aproveitava e punha-me a pente-la. O pente estava guardado numa gaveta da mesinha Regncia esquerda do sof e eu tinha de me torcer todo para tirar o pente da gaveta sem incomodar a Princesa no meu colo. Depois comeava a minha tarefa com toda a delicadeza. Primeiro, passava o pente no lombo, depois entre as orelhas mas com tanta cautela que ela continuava a olhar sonolenta para Jeannie sentada na cadeira da frente; e depois uma penteadela mais ousada no plo mais grosso dos lados, movimento esse que, quando bem sucedido, arrancava um belo tufo de plos sedosos que eu por vezes conservava, guardando-o numa caixa decorada com conchas pois pensava que um dia havia de querer ter uma recordao tangvel dela. Fizera o mesmo quando penteara o Monty e os tufos dele ainda estavam numa tacinha Swansea de pot-poum que se encontra em cima da estante. Assim, ali ficava no meu canto a cumprir suavemente a minha tarefa at a Lama me mostrar que j estava farta, atacando pura e simplesmente o pente. Ento eu parava imediatamente. Contudo, esses ataques haviam-se tornado mais frequentes nos ltimos tempos. Ela mostrava-se cada vez mais incomodada com o facto de eu a pentear nas partes em que o plo era mais denso, e a razo era fcil de perceber j que, embora superficie o plo parecesse muito liso, por debaixo estava todo emaranhado. Isto era jo tal sinal de velhice a que a Brbara se referira. Outros referiam-se-lhe de maneira diferente. Visitas que faziam reparos do gnero: - A Lama est bem, no est? - Ainda tem a Lama? - Ela j tem uma linda idade. Idade, idade, idade. Os ingleses so obcecados pela idade. Se uma mulher vai na rua, escorrega numa casca de banana, cai e parte uma perna, de certeza que os jornais comeam a notcia assim: Com cinquenta e cinco anos, a Sra. Dona... A idade tem de aparecer em todas as notcias. um ritual. Tornara-se um ritual perguntar a idade da Lama.. e eu dei por mim a recuar uns anos e a lembrar-me que o mesmo acontecera com o Monty. Nada mudara. O mesmo desconsolo nas perguntas, a mesma tristeza, a mesma certeza abafada de que eu no queria encarar a verdade. Sim, eu sabia que a Lama estava a chegar ao fim dos seus dias e que se transformaria num ponto negro na minha
memria, mas no gostava que me lembrassem disso. Podia tocar-lhe, pegar nela ao colo, ouvir o seu ronronar e no queria que me lembrassem que aquelas suaves alegrias no seriam, um dia desses, seno um sonho. Todavia, esses momentos de depresso no passaram de um leve toldar da felicidade desse Vero. Houve, por exemplo, o divertimento e a confuso causados pelo Ohver e pelo Ambrose. J nos tnhamos acostumado a exclamaes excitadas do gnero: Vimos a Lama no caminho!... quando, na realidade, quem haviam visto era o Oliver. Mas ao Ambrose nunca ningum chamara Monty at que um amigo nosso que j no vamos h anos se assustou ao v-lo na parte de dentro do parapeito dajanela do celeiro. - Pensei que o Montv tivesse morrido! - E morreu... h anos. - Devo ter visto um fantasma! Tive sempre a impresso de que muita gente, especialmente os dirigentes de um pas, de uma comunidade, ou de uma causa, consideram a lgica como uma espcie de colete salva-vidas. Tentam desesperadamente acreditar que so donos do seu prprio destino e que conseguem controlar os caminhos desse destino atravs de uma planificao cuidada. Assim, a lgica, comprovada por factos e por nmeros cuidadosamente recolhidos, a base de qualquer relatrio sobre todo e qualquer tema; e os imponderveis so ignorados j que so demasiado misteriosos para se levarem em conta. Neste caso, os imponderveis eram representados por Oliver e por Ambrose. Como que algum, por mais astuto e lgico que fosse, explicaria o aparecimento em Minack de dois gatos vadios e indesejados que eram a exacta cpia dos dois nicos gatos que eu alguma vez conhecera? As pessoas sensatas explic-lo-iam certamente dizendo que era uma coincidncia, e pronto. As pessoas sensatas tendem a ignorar a existncia dessas foras invisveis, intocveis, extra-sensoriais que nos vo empurrando daqui para ali ao longo da vida; e isto acontece porque o mundo ocidental acha que to civilizado que considerar a magia como uma realidade algo que est aqum da sua dignidade. E contudo muitos de ns j ouviram falar em acontecimentos que no tm qualquer explicao racional. Um proco contou-me no outro dia o caso de uma rapariguinha da sua parquia, de quem ele gostava muito, que uma manh foi encontrada pelos pais desmaiada. No tivera quaisquer sintomas antes disso e quando chegou ao hospital, os mdicos no conseguiram detectar as causas do seu mal. Passados dois dias deixaram de ter esperanas de a salvar e os pais pediram ao proco que fosse ao hospital dar-lhe a extrema-uno. Mesmo antes de sair, o proco telefonou a um curandeiro amigo e contoulhe o que ia fazer. Uma hora mais tarde chegou ao hospital e recebeu a notcia de que a menina, que continuava sem sentidos, s devia viver mais alguns minutos. Ele correu at enfermaria, parou ao p da cama dela e disse calmamente: - Quem sou eu, Jill? Quem sou eu? Durante uns momentos no se passou nada e ento a menina estremeceu e, para grande espanto de todos, murmurou: - o Padre. A partir desse momento ela comeou a recuperar e um ms e pico mais tarde j andava de pnei pelos campos junto de sua casa. Tero sido as oraes, o curandeiro ou a magia que fizeram isto? Quanto minha prpria experincia nestas questes misteriosas, um acontecimento que ainda retenho na minha memria tem a ver com a nica altura em que um quiromante me leu a palma da mo. Ia num vapor de
Sidney para Hong Kong quando um dos passageiros, um engenheiro entroncado que ia trabalhar para as docas de Hong Kong, se ofereceu para me ler a sina dizendo que havia estudado com Cheiro, um famoso quiromante. E ali estava eu no convs, num fim de tarde um tanto ou quanto fresco, com o vapor navegando pelo Mar Aragura, com as mos estendidas... e o engenheiro a dizer-me que eu havia de casar com uma rapariga magra e de cabelos pretos com as iniciais J.E.. Cinco anos depois subia a nave central da Igreja de Richmond de brao dado com Jean Everald Nicol. Seja como for, fosse qual fosse a explicao para o aparecimento do Oliver e do Ambrose, o que certo que eu, um homem antigatos, era agora assediado por trs gatos; e estava em permanente estado de alerta. evidente que a presena de Oliver desagradava a Lama, embora j no tivesse medo dele; e portanto ns continumos a fazer tudo para os separar. Assim, andava permanentemente a dizer: No h sinais do Oliver, a Lama pode sair. Ou: Deixa a Lama dentro de casa. O Oliver est l fora. Quanto ao Ambrose, esse continuava arisco, de tal modo arisco que nos punha doidos. - Vem c Ambrose - chamava-o eu fazendo barulho com os dedos. Ou: - Tenho aqui uma coisa para ti, Ambrose - dizia Jeannie, com um prato de peixe numa mo com a esperana de o apanhar com a outra. Qual qu. - Ambrose - dizia-lhe eu zangado - mostra que vales alguma coisa! As suas riscas, com o decorrer dos meses, tornaram-se mais bonitas, faixas de cores quentes, outonais, com formas que lembravam as correntes no mar calmo. verdade que por vezes a sua cabea, em virtude da pouca idade, tinha um ar magricela, at mesmo o corpo tinha um ar magricela, mas de repente, por uma razo qualquer como, por exemplo, uma mudana de luz, ou de temperamento, ele adquiria uma espcie de fulgor. Havia de ficar um gato campeo, exactamente como o Monty. Bonito de se ver e muito inteligente embora continuasse a desconfiar da raa humana e de ns, no obstante tudo o que lhe queramos dar. As relaes entre ele e a Lama eram de uma calma compreenso e eu apanhava-os muitas vezes, um ao lado do outro, em Monty's Leap a bebericarem no regato; e quando acabavam, regressavam os dois. claro que o Ambrose no ousava aproveitar-se dela. Ele sabia que ela era a Rainha. Podia dar-lhe carinho mas nada de liberdades. Entretanto o Oliver tornara-se pacfico. Continuava a ser o vadio que ansiava por ser acolhido e por vezes dava passos fisicos para o conseguir. Tnhamos uma armao de arame que havamos inicialmente colocado para impedir que o Monty saltasse da janela noite e que havamos mantido para evitar que a Lama fizesse o mesmo. Era uma armao pouco segura e mal amanhada mas que chegava para o fim em vista. Mas uma noite fui acordado do meu sono profundo por um estrondo violento na janela, logo seguido de um baque no cho e depois um choque. O Oliver tinha arrancado a armao pelo lado de fora e saltado para cima da cama. Jeannie estava meio acordada. - Que foi? Que aconteceu? - disse ela naquela maneira meiohistrica, tpica de quem est mal-acordado. - Calma - sussurrei eu. - Deixa que eu trato disto. uma emergncia. Era realmente uma emergncia. O Oliver trepara at ao meu lado esquerdo, a ronronar como um motor a pistes de um avio em voo baixo,
enquanto minha direita se encontrava a Lama. - No a acordes - sussurrei eu. - Segura nela com cuidado que eu trato do Oliver. - Ests em pnico. - Claro que estou em pnico... os dois assim to perto um do outro e um a ronronar que nem um louco mesmo em cima do meu nariz. Ento peguei no Oliver com toda a firmeza, sa da cama, levei-o at porta da sala de estar, abri-a, abri a porta do alpendre que dava para o quintal e atirei-o para l. Voltei para a cama. - Foste mauzinho, no achas? - Ora essa! - respondi. - Que havia de fazer? A Lama no se mexera. Continuava enroscada na cama com aquele rosnar abafado to tpico dela quando dormia. - Acho que foi um bocado demais - disse Jeannie sonolenta, e acrescentou - ele s quer que gostem dele. - Oh jeannie, tu s vezes dizes cada coisa! - Cala-te, quero dormir. Eu demorei uma ou mais horas a adormecer. Fiquei acordado a pensar no que Oliver estaria a magicar e onde que ele estaria. Mais uma vez a partilhar um caixote cheio de palha com o Ambrose, com certeza. Os burros encaravam o Oliver e o Ambrose com uma tolerncia divertida. O Oliver, achavam eles, era como a Lama, tinha a seriedade tpica da meia-idade que impedia qualquer hiptese de brincadeira. Contudo, s vezes eles ainda tentavam. Se, quando os levvamos do estbulo e ao passar pela casa avistavam o Oliver, um deles avanava de focinho baixo, como um co a seguir um rasto, e investia contra ele. O Oliver, como evidente, dava s de vila-diogo; e a Penny ou o Fred, fosse qual fosse, acabava por mordiscar pura e simplesmente as ervas. Com o Ambrose as coisas eram diferentes. O Ambrose provocava-os, especialmente o Fred. O Ambrose era uma espcie de mido traquina que gosta de acirrar os amigos contra si e depois foge antes deles o poderem fazer. O Ambrose adorava estar em situaes de perigo. Se o Ambrose encontrasse o Fred a ruminar erva no campo acima da casa, ia logo esconder-se atrs dele. Isto era uma espcie de modalidade perigosa da Roleta Russa porque o Fred estava normalmente no meio do campo e quanto mais o Ambrose se aproximava, mais teria de correr em caso de necessidade. Talvez isso fosse o que o Ambrose queria, experimentar a emoo que ser-se perseguido durante x metros por um burro. E no h dvida que isso dava um imenso prazer a Fred; era uma maravilha perseguir o Ambrose pelo campo fora. Portanto, nesse Vero em Minack, havia trs vidas de gatos que se desenvolviam em paralelo. O Ambrose, evidentemente, era o mais inocente, com anos de aventura, situaes divertidas e idiotas sua frente. O Oliver, compreensivelmente, sentia-se um bocado confuso sobre o que mais teria de fazer para ser aceite... j que, tendo optado por se instalar junto de ns, e tendo em conta aquelas noites frias passadas na Wren House e nos ramos de tojo quando a sua casa ficava inundada, os esforos para nos mostrar a sua afeio, a espantosa recriao como ssia do Monty naquela manh de um domingo de Outubro, a sua comedida insistncia mostrando-nos que tudo o que queria de ns era que o amssemos..., no era dificil de perceber por que que ele se sentia to confuso pelo facto de ns no o deixarmos ser uma parte natural da nossa vida. Contudo ele tinha o tempo a favor dele. Podia esperar. Podia continuar a seguir uma poltica de calma insinuao pois levava uma certa vantagem em relao Lama. Era mais novo. Talvez sentisse, pelo modo como o tratvamos, que era um cidado de segunda, mas no se importava com isso. De qualquer modo, sempre tinha o Ambrose
como companheiro. No estava sozinho. Entretanto a Lama passava cada vez mais tempo a dormir. Enroscavase nos seus locais favoritos, no tapete ao lado da minha secretria e ao p do radiador, ou ento deitava-se em cima da roupa lavada empilhada sobre o radiador no quarto das arrumaes, ou ento instalava-se no escuro, dentro do armrio, no meio das minhas camisas. Isso no era um sinal de velhice. Tinha o mesmo apetite de sempre e continuava a gostar de dar as suas passeatas, especialmente at ao penhasco. Lembro-me de uma manh quente no incio de Setembro quando eu e Jeannie decidimos dar uma volta e ir at s rochas apanhar sol; mal tnhamos andado uns metros pelo caminho que ladeava o campo do Fred quando, para grande surpresa nossa, a Lama passou por ns a correr, depois parou de repente e ficou a olhar para ns. Era mais uma vez a velha brincadeira do pega-pega que to bem conhecamos. Um gesto espontneo de prazer e de excitao. - No me apetecia nada que ela viesse - disse eu. - Porque no? - Queria ficar deitado nas rochas a apanhar sol - disse eu. Queria ficar vontade sem ter de me preocupar com a Lama. - Que chato! Est bem, era chato eu no estar contente pelo facto da Lama ter vindo connosco. Mas eu tinha razo em ter de me preocupar com ela. O caminho, volteando por entre os tufos de junquilhos, tornava-se mais ngreme prximo das rochas e era nesse ponto que a Lama costumava parar. No gostava de andar pelas rochas. Assim, quando nos apetecia tomar banho, um de ns tinha sempre de ficar com ela, caso contrrio ela juntava ao piado das gaivotas o seu miado desesperado. Nessa manh de Setembro, deixei que Jeannie fosse tomar banho enquanto eu ficava com a Lama, deitado no mesmo lugar onde ela uma vez me avisara de que uma cobra estava prestes a morder-me. Sentou-se em cima da minha barriga a ronronar; e eu ali fiquei com aquele som a entrar-me pelos ouvidos e o som do mar a acariciar as rochas, com uma ou duas gaivotas piando desesperadas, e o agudo trinado dos apanhaostras minha esquerda para alm de Cam Barges. Um momento de rara felicidade, em que mais nada havia para desejar. Era o tipo de momento pelo qual homens e mulheres, em guerras antigas, estavam prontos a morrer, acreditando que os prazeres simples e bsicos constituem a chave da felicidade. Um momento que ultrapassava as teorias sofisticadas que, hoje em dia, tentam governar as nossas vidas. Querida Lama, ainda hoje ouo o seu ronronar. Trad. M. J. D.
KYM Joyce Stranger 1 Sempre houve gatos na minha vida, assim como ces. H muita gente que tenta encaixar os seres nos respectivos cacifos - gatos e ces. Manifestam ainda uma maior surpresa quando vm a minha casa e encontram dois gatos confraternizando amigavelmente com dois ces. Os gatos enroscam-se muitas vezes ao p dos ces para se aquecerem. No h nenhuma necessidade de nos privarmos de uma espcie s por termos em casa a outra. Metemos um cachorrinho numa casa com um gato mais velho e um gatinho numa casa onde j havia um co adulto. Tivemos ao mesmo tempo cachorrinhos e gati.nhos. H sempre um perodo inicial de adaptao mas, quando so tratados e apresentados como deve ser, acabam por se habituar e normalmente tornam-se grandes amigos. O primeiro gato de que eu me lembro bem, era o Nipper que coexistia com o nosso co terrier, o Turk. O Nipper deve ter tido uma vida bem complicada j que veio para nossa casa quando os gmeos, o meu irmo e a minha irm, eram pequenos e a minha irm mais nova era ainda beb. Andvamos sempre a puxar-lhe as orelhas. Agora no posso ver um gato a ser maltratado pelas crianas e insisto que na nossa casa os animais sejam tratados com respeito e no utilizados como um substituto dos brinquedos. Eles normalmente aguentam sem se queixarem mas se reagem, no podendo aguentar mais, as crianas podem ficar bastante magoadas e as culpas recaem sempre no bicho. Uma vez, quando eu tinha mais ou menos oito anos, vestimos o Nipper com roupa de boneca e levmo-lo a dar uma volta pelas lojas no carrinho da minha boneca. Tivemos todo o cuidado para que a nossa me no nos visse pois ela ficaria furiosa e ter-nos-ia detido imediatamente; mas acabmos por lhe trocar as voltas. Ela viu-nos sair e pensou que levvamos a boneca no carrinho. Exactamente a meio da Bexleyheath High Street, um co resolveu enfiar o nariz por debaixo da capota. O Nipper deu um guincho diablico e saltou, de saiotes, touquinha e tudo, para o meio da rua com os carros a meterem os traves a fundo numa chiadeira de loucos. Houve um elctrico que quase lhes passou por cima, ao Nipper e ao co. Houve um pandemnio at que um polcia agarrou no gato e nos trouxe. Era um polcia muito grande e muito zangado que me abanou furioso j que eu era a mais velha dos trs - os gmeos s tinham seis anos. A sua fria ensinou-me mais do que a fria da minha me alguma vez o conseguira. Nessa altura, ningum contestava a autoridade da polcia. Se os meus pais tivessem sabido daquilo, teriam ambos dito bem feito, e ter-nos-iam castigado no nos deixando, por exemplo, ir ao jardim zoolgico ou tirando-nos a semanada. Levmos o Nipper para casa e despimo-lo apressadamente. No tenho bem a certeza se a minha me soube alguma vez o que se passou. Tive muito cuidado para que nada disto acontecesse a nenhum dos nossos gatos quando os meus filhos eram ainda pequenos. O Nipper era extremamente grande, muito pesado, preto carvo e com olhos verdes. Tinha alguns hbitos insuportveis, possivelmente por culpa nossa, pois gostvamos demasiado dele, mimvamo-lo muito e raramente o deixvamos em paz. Havia sempre algum a fazer-lhe festas. Uma das suas brincadeiras mais desagradveis era ficar espreita na sombra, debaixo das escadas, espera que aparecessem umas perninhas de soquetes brancos de menina de escola para atacar. Quando apareciam,
ele saltava, cravava as garras e os dentes nas barrigas das pernas e ficava radiante com a gritaria que se seguia, saltando a proteger-se para o cimo do armrio da entrada de onde olhava cheio de curiosidade para quem estivesse c em baixo a gritar ou a vociferar contra ele. Tinha uma outra mania extremamente irritante. Mudmos de casa quando ele tinha a uns seis anos. Fomos para perto da nossa antiga casa, Lyndhurst, em Bexleyheath, para uma moradia muito maior chamada Broomwood. O Nipper preferia a nossa primeira casa. Vezes sem conta, durante aquele primeiro Vero na moradia nova, quando eu chegava vinda da escola, a minha me recebia-me dizendo: - O Nipper foi-se outra vez embora. Vais busc-lo? Contrariada, l me enfiava eu pelo carreiro, atravs dos campos de couves empoeirados, at Lyndhurst. Tinha de trazer o Nipper ao colo, a protestar em altos berros e a debater-se vigorosamente, durante uma boa milha. Nunca ningum apanhava aquelas couves. Uns anos, porque custava muito dinheiro cort-las e o lucro era pouco, e portanto deixavam-nas ali a apodrecer e cheiravam que tolhia. Outros anos, porque ficavam alagadas com as chuvas contnuas, a colheita arruinada e deixavam-nas ali a apodrecer e a cheirar mal. Os gatos pretos e o cheiro a couves podres esto intimamente relacionados na minha memria. O Nipper morreu com quinze anos e seguiu-se-lhe o Sherry, um grande gato amarelo torrado, bonito, que passou grande parte da vida deitado ao sol. Houve tambm o Snowball, assim chamado por ser branco. Nome, alis, incorrecto j que ele nasceu sem o instinto de se lavar e foi o gato mais porco que jamais vi. Adoro gatos. Adoro-os pela sua elegncia e graa. Adoro a sua independncia e arrogncia e a maneira como se deitam a olhar para ns, perscrutando-nos (em nossa desvantagem, de certeza) com aquele olhar inquietante, sem pestanejar, inquiridor. Os anos da guerra foram para mim anos sem gatos, excepto quando ia a casa dos meus pais. Eu estava fora num albergue. Nunca passava por um gato sem que parasse a confraternizar. Com os ces sou mais cuidadosa. E preciso conhecer o co antes de fazer amizade; ele pode achar que estamos a invadir o seu territrio. Por muita experincia que se tenha de ces, nunca aconselhvel aproximarmo-nos de um co estranho sem antes lhe olharmos para o focinho e para a cauda; os pais que deixam os filhos fazerem festas aos meus ces sem primeiro me perguntarem se podem, so loucos. Os meus ces no fazem mal a ningum se as pessoas souberem aproximar-se deles. Nem todos os ces so de confiana, nem pouco mais ou menos. Muitos no esto acostumados a crianas e assustam-se com o barulho e com os seus gestos bruscos e descontrolados. H muitas crianas que so francamente perigosas, ignorando as necessidades dos animais. Depois da guerra veio o casamento e vieram os filhos. Os gmeos, que chegaram quando o nosso filho mais velho tinha apenas vinte meses, fizeram com que no houvesse tempo para animais, por muita falta que eles me fizessem. Sabia que no conseguiria dar a um co o exerccio, o treino e a companhia de que ele necessitaria. Mas queria muito um gato. Via muitas vezes o Ming, um bicho magnfico, janela de uma pastelaria da zona. Tornei-me amiga dele e cobiava-o. Era uma criatura deliciosa. E assim, quando o meu marido me perguntou, antes do meu aniversrio, o que que eu queria, respondi sem sequer pensar duas vezes:
- Um gatinho siams. Nunca pensei que o meu desejo se realizasse. Mas o Kenneth s vezes surpreende-me aparecendo com coisas inesperadas, escolhendo algo de muito extico que eu nunca imaginaria. E foi assim que, seis semanas mais tarde, sentindo-me como se me tivessem oferecido as jias da coroa, me encontrei sentada no nosso velho carro com uma coisinha mnima e atordoada que mal cabia na minha mo. Era muito bonito e, como todas as criaturas bonitas, sempre teve conscincia disso durante toda a sua longa e atribulada vida. O focinho e as orelhas estavam a comear a escurecer. Tinham um leve tom de fuligem assim como as patas e a cauda torta. O resto era de uma cor leitosa. Quando estava zangado, trocava os olhos, azul forte, e mesmo naquela idade, privado da me e dos seus companheiros de ninhada, lanado no mundo apenas com nove semanas, no tinha um ar desgraadinho nem pattico. Estava furioso. No gostava de ns. No gostava do carro. Achava que devamos sentir a sua fria e miava longamente e em altos berros, com toda a determinao, reagindo a cada plano que fazamos para ele. Detestava-nos, gritava ele. Com toda a clareza. Tentou arranharnos. Embrulhei-o ento bem numa camisola velha que trouxera para o agasalhar. Estava um dia muito frio. Estvamos na zona dos pntanos despidos e altos onde ele havia nascido numa bela e rica casa. Detestava o carro pois fazia alguns rudos horrveis e havia ainda uns outros ruidos que mais pareciam dinossauros investindo contra ns, muito maiores que ns, com a inteno de nos atropelarem e destruirem. Mesmo assim novinho, ele tinha uma voz aguda e a mania de prolongar as lamrias num tom agudo. Cada vez protestava mais alto. Tinha frio. A chuva deslizava pelo pra-brisas no nos deixando ver a rua deserta. As poucas rvores raquticas e invernosas estavam despidas e torcidas. A estrada serpenteava por entre colinas nuas onde o feto do ano anterior era agora uma espcie de bolor lgubre e hmido que dava aos pntanos uma aura de desespero. Uns anos mais tarde seriam o cenrio dos crimes dos Moors. Agora detesto-os. So assombrados pelo horror e por gritos de crianas moribundas. O carro estava frio e no tinha aquecimento. O Kym enfiava-se na camisola mas no se sentia confortvel. Tentava aquecer-se mas no havia ali nenhum plo para ele se aconchegar. A l tinha um toque diferente. No havia qualquer contacto com um corpo familiar, nem sequer a lngua spera da me para o acalmar. Ele era uma criatura minscula no meio de gigantes que no lhe diziam nada e que o tinham tirado da sua casa. Fugiu da camisola para fora e comeou a explorar o meu colo procura de um sitio para se esconder, em busca do escuro onde no visse tantas coisas novas e assustadoras. Descobriu um cantinho muito melhor e mais calmo. Tambm era uma camisola mas tinha uma abertura no fundo que uma pata exploradora conseguia levantar. L se esgueirou por ali abaixo e encontrou a algo que respirava como a me costumava respirar, ritmada, hipnoticamente. No cheirava to bem como a me. E no era fofa. Mas era aconchegado, escuro e agradvel e a mo que aparecia l de cima acariciava-lhe suavemente o plo, acalmando-o um pouco. Os protestos acabaram. Seguiu-se-lhes um vago som rouco que tommos por um ronronar. A partir da, o esconderijo do Kym, quando ainda pequeno, consistia numa precipitada corrida pela minha camisola acima. E ali
ficava, aconchegado a mim, a tremer, certo de que ningum nem nada o conseguiria apanhar. Chegmos a casa. ramos agora donos de um gatinho, de um enorme papel onde vinha descrito o pedigree e de uma folha com adieta e com instrues para lhe pormos um caixote com areia. A areia e o caixote foram comprados a caminho de casa. Ele precipitou-se para l. A me tinha-o ensinado bem. Pusmo-lo no caixote, mostrmos-lhe como devia esgadanhar com a pata para ele saber para que servia aquilo. Nunca se enganou, mesmo quando muito doente. Os gatitos so muito mais simpticos nisso do que os cachorros. Sentava-se de costas para ns. Sempre foi muito discreto. At essa altura, os nossos filhos nunca haviam tido animais. Tivemos uns bichos-da-seda, mas no eram l muito agradveis. Os nossos eram muito estpidos e degolavam-se invariavelmente com a pele velha quando a mudavam. No havia nada a fazer. Eram demasiado frgeis. Arranjmos tambm, durante uns tempos, uma salamandra em resultado de uma troca na escola. Chammos-lhe, indecentemente, Ivanhoe por causa de uma srie que dava nessa altura na televiso. A Ivanhoe foi-se finando apesar da sua dieta de dafne e de ovos de formiga e, uma manh, convencida de que nos iria morrer ali, e como detestasse v-la assim presa num aqurio, l consegui que a dona dela viesse comigo coloc-la no lago onde, espervamos, ela poderia recuperar. Durante todo o tempo que esteve connosco, ela limitava-se a ficar em cima de uma pedra com um ar tristssimo. Os nossos gmeos, o rapaz e a rapariga, tinham sete anos quando comprmos o Kym. Tinham vindo connosco e ajudaram-nos a escolher o gatinho de uma ninhada de cinco, escolha alis muito simples pois o Kym aproximara-se logo de ns e comeara a confraternizar, coisa que no lhe custou nada fazer, ali com toda a ninhada sua volta. O nosso filho mais velho estava ento numa festa. Decidimos fazer-lhe uma surpresa e portanto ele no sabia que quando chegasse a casa iria encontrar mais um membro da famlia. Por acaso eu tambm no sabia at termos chegado nessa tarde ao nosso destino. A surpresa foi maior do que espervamos pois o nosso filho foi encontrar-nos na cozinha, a ns todos e mais uma mquina de lavar a roupa toda desfeita e espalhada pelo cho. Dissemos-lhe que l dentro (olhem o que havia de acontecer!), no escuro, estava um gatinho siams muito pequenino e muito zangado, que se enfiara no nico buraco seguro quando se viu no seu novo ambiente. Foi nessa altura que o gato deu sinal de si confirmando a nossa histria, que at a se parecia mais com uma partida muito bem planeada. Passmos parte da noite na cozinha entre peas e mais peas de mquina cheias de leo. O Kym enfiara-se mesmo para dentro da maldita mquina. No mostrava qualquer vontade de sair c para fora e enfrentar aqueles gigantes aos guinchos, barulhentos, com um cheiro esquisito que o cercavam. Tivemos de bloquear o buraco da parte de trs da mquina de lavar, o buraco nas traseiras do frigorfico, o exaustor e todas as chamins. Passado algum tempo, depois dos midos se terem ido deitar, ele j estava c fora, um trapo sujo e absolutamente irreconhecvel, guinchando de fria, bufando, esgadanhando e cheio de leo. Fizemos o melhor que pudemos mas s ao fim de uns dias que ele ficou de novo limpo. No queria comer. No nos queria. No que quisesse ficar sozinho mas ns no lhe dvamos aquilo de
que ele mais necessitava - a sua antiga casa, a sua me e os seus irmozitos e irmzitas. Confortei-o; amimei-o; acariciei-o. Animei-o a comer, s umas dentadinhas, dando-lhe flocos de aveia com leite morno na concha da mo. uma bodeguice mas fao-o sempre com bichinhos novos pois o cheiro do novo dono mistura-se indelevelmente com o da comida e ajuda as criaturinhas amedrontadas a reconhecerem quem vai passar a tratar delas e substituir a me e assim que comeam a confiar em ns, o que essencial em qualquer relao homem-animal. Ele reconheceu que eu era a sua fonte de comida. Tendo descoberto que os nativos, afinal, eram amigveis, decidiu logo que a minha nica funo era a de tratar dele. Se no lhe fazamos festas, trepava por ns acima e desatava a protestar em altos berros. Num dia memorvel, quando estvamos na caravana, ele trepou pelo .Kenneth acima quando este estava, de pijama fino de Vero, a fazer o caf da manh. A gritaria que se seguiu fez com que, durante o resto da nossa estada, fssemos olhados com muita desconfiana j que era um bocado dificil explicar que tudo aquilo fora provocado pelo gatinho que se serviu do Kenneth como se fosse uma rvore. O Kym bvio que considerava a dor que sentamos como o justo castigo por o termos ignorado. Nem sequer lhe passava pela cabea que pudesse por vezes ser indesejado, ou que tivssemos outras coisas a fazer. Ns estvamos ali para lhe agradar. Era capaz de saltar para cima de ns sem qualquer aviso, estivesse onde estivesse, do cimo do armrio, do cimo da porta ou at mesmo das sanefas. E magoava que se fartava. Tambm atormentava a nossa filhita que, nessa altura, infelizmente e para nosso grande azar, decidira que detestava gatos e desatava a fugir aos gritos sempre que ele saltava. Ora, sendo como era, isto fez com que o Kin ainda se atirasse mais a ela. Ele no percebia por que que ela lhe fugia e assim eu passei uma boa parte daquelas primeiras semanas com, de um lado, uma rapariguinha encolhida contra mim, e do outro, um gatinho ainda mais pequeno e indignado, enroscado no meu colo, fixando-a, enquanto eu tentava reconcili-los. Isto exigiu tanto trabalho quanto os primeiros dias de adaptao de um cachorrinho a um gato. Uma vez convertida, ela tornou-se a sua servidora mais devota, sempre pronta a salv-lo de apuros. Uma vez instalado, a sua nica ambio era animar o nosso quotidiano. Havia sempre uma traquinice ou desgraa do Kym para contar ao jantar. Era extremamente vivo, aventureiro e tinha uma curiosidade que dava para dezanove gatos. Tinha tambm o dobro das vidas dos gatos e parecia estar sempre pronto a esgot-las. Decidiu livrar-se da sua primeira vida vinte e quatro horas depois de o termos. E sendo quem era, f-lo o mais meticulosamente possvel.
2 No tnhamos qualquer experincia em gatos com pedigree. Nem nos passou pela cabea que, para comear, deveramos saber uma data de coisas; se se tirassem da me demasiado cedo os gatinhos ficariam muito nervosos e podiam ter problemas graves; podiam ser doentes. Se soubesse, no teria ficado com o Kym. O que alis teria sido muito aconselhvel mas ter-nos-ia privado de anos de prazer; no teria adquirido metade da experincia de lidar com animais, a qual me levou a escrever muitos dos meus livros e, seguramente, teramos perdido a oportunidade de conhecer uma figura. Fiz o mesmo com um co, uns anos mais tarde. Tambm ele foi uma pssima compra. No obstante, proporcionou-me uma experincia incalculvel e mostrou ser uma personagem espantosa. Portanto, talvez nem sempre seja bom ser-se sensato! Mas isto no isenta de responsabilidades quem tem de educar animais. Os animais doentes so bichos muito caros e nem sempre tm a sorte de terem um dono preparado para os manter vivos. H muitos que so mandados abater porque uma sade dbil ou uma deficincia so sempre uma chatice - e uma despesa indesejada com veterinrios e dietas especiais, o que representa uma enorme perda de tempo e dinheiro para quem trata deles. O Kym s comia da minha mo; e comia muito pouco. No primeiro dia pensei que isso era porque ele tinha saudades da me. No segundo dia recusou-se pura e simplesmente a comer. A sua voz, embora sempre aguda, tinha um tom impaciente. Analisei cuidadosamente o caixote de areia quando o fui mudar. O que a vi fez com que o levasse logo ao veterinrio, embora s tivesse consulta marcada para as vacinas na semana seguinte. O veterinrio examinou-o. - Desfaa-se dele - disse ele. Olhei para o gatinho. Ele olhou tambm para mim. E pronto, a ligao entre ns estabeleceu-se logo naquelas primeiras horas. No sabia o que lhe iria acontecer se eu o devolvesse ao antigo dono. Alm disso ele era uma criaturinha determinada e eu tambm no sou de desistir assim logo primeira. No podia desfazer-me dele. - Fica sua inteira responsabilidade! - disse o veterinrio. Tem vermes. Est cheio deles. Tem a boca coberta de pstulas. - Abriu-a e mostrou-me. Toda a lngua e o palato do Kym estavam cobertos por uma espcie de aftas amareladas. - Tem a garganta inflamada. Est com gripe. No vai conseguir comer com a boca assim. No posso fazer grande coisa por ele. Precisa de vitaminas e de antibiticos. Vai-lhe morrer. Est muito mal. No ia nada morrer. E se o devolvesse pessoa que o deixara ficar naquele estado antes de mo vender, de certeza que morreria, e no se salvaria. Eu tambm no sabia l muito bem como fazer mas ao menos obedeceria s instrues do veterinrio ou do mdico, j que pagara pelos conselhos e seria um disparate no os seguir. E haveria de cumprir letra as instrues que aquele veterinrio me dera. O Kym estava deitado na mesa, parecendo muito pequenino, muito doente e pattico. Os seus belos olhos estavam velados pela terceira membrana, que o veterinrio me disse ser sintoma certo de vermes; o plo no recuperara do leo da mquina de lavar; tinha o nariz a pingar e tinha tanto corrimento que a garganta estava tapada com saliva. Segurei-o para a primeira injeco. Furioso, deu um berro. Tinha uma voz bem forte.
A patita bateu raivosamente no homem que lhe havia infligido tal indignidade. Parecia o Pequeno Polegar a desallmar o gigante. - Parece que afinal ainda tem alguma vida - comentou o veterinrio, mas vi pela expresso dele que achava que eu no iria conseguir fosse o que fosse. Aceito a derrota no caso de um animal velho, no fim da vida, quando uma crueldade e egosmo prolongar-lhe o sofrimento, mas no aceito a derrota no caso de animais novos. Estava decidida a lutar, passo a passo e o gatinho havia de lutar tambm. Mas no dia seguinte estava muito doente. Tinha de apanhar injeces todos os dias e, sempre que via a expresso do veterinrio, sabia que me achava louca por andar a deitar fora dinheiro por uma causa perdida. Isso ainda me tornou mais determinada. O Kym tambm estava determinado. Podia estar doente, podia sentirse muito mal mas havia uma coisa absolutamente segura: como a sua me no estava ali para o confortar, eu teria de a substituir. Fosse como fosse que se sentisse, l trepava por mim acima at ao meu colo, com a cabecita quase bamba e sem vida contra as minhas mos, de olhos absortos, fixos na lareira. Os amigos passaram palavra dizendo que no valia a pena aparecerem j que eu ficara obcecada pelo gatito. Como tinha de lhe dar, de quinze em quinze minutos, cinco gotas de glucose e de gua com a ajuda de um conta-gotas que trouxera da farmcia, no ligava l muito s conversas. Tinha a cabea ocupada com outras coisas. Fiquei rapidamente perita com o conta-gotas. Enquanto escrevia, o Kym descansava no meu colo. Enquanto andava a tratar da casa ele ficava numa caixa de papelo forrada com um cobertor, debaixo do qual havia uma botija de gua quente. Se comeava a choramingar por eu no estar ali ao p, levava-o comigo e ele ficava a ver-me a fazer as camas e na lida da casa. Fazia tudo para que ele no perdesse a esperana; se se convencesse de que ia morrer, nada que eu fizesse o conseguiria demover. Tinha de se sentir desejado. No era fcil j que eu era uma estranha e durante aqueles primeiros dias houve momentos em que at eu pensei que no ia conseguir. O veterinrio nunca duvidou disso. Disse-me para no andar a perder tempo nem dinheiro e para aceitar o inevitvel. A minha vida girava em torno da glucose, da gua e do conta-gotas. Umas gotitas de quarto em quarto de hora para o manter vivo. Fosse o que fosse que acontecesse a partir da ele no havia de me morrer nos braos e cada dia que passava era uma nova esperana. As crianas andavam preocupadas e eu tive de lhes prometer solenemente que o Kym no havia de morrer. Elas sabiam que eu cumpria sempre as promessas. O Kym havia de viver. A sua saudao dbil todas as manhs era como que um sinal de que a luta ainda no estava perdida. Nessa altura as nossas vidas eram animadas todas as quartas e sextas-feiras com a visita do nosso merceeiro, o Tom, que tinha uma carroa puxada por um cavalo. Detestava furgonetas e dizia sempre que quando o cavalo morresse ele tambm morreria. Apenas sobreviveu alguns meses quando finalmente o velho Prince se foi. O Tom era um campons. O irmo era um guarda-caa em Cumberland. As visitas do Tom, assinaladas com chvenas de ch no Vero e sopa no Inverno, acabavam sempre em longas conversas sobre os hbitos dos animais selvagens. Contava como caara raposas; dois homens, com armas e ces, tentando acalmar a populao. Dois homens numa colina num sbado tinham, sozinhos, matado setenta raposas e ainda havia mais para caar. Uma raposa pode ter uma ninhada de quinze e se todas
sobrevivessem, algumas morreriam de qualquer modo fome... Sempre que o cavalo do Tom tinha clicas, ele pagava a um rapaz para o fazer trotar em crculo e era ele que puxava a carroa. Conhecia bem os animais; sabia de cavalos, de ces e de gatos; sabia muitas maneiras de engordar um porco e ele prprio tinha vivido durante muito tempo no campo. Ningum sabe como que ele acabou em merceeiro suburbano. Era um homem tmido mas nunca resistia a falar de coisas do campo e de caa pois sabia bastante de criao de cavalos de corrida e de raas. Foi por ele que soube que muitos cavalos no correm de acordo com a sua raa! Nunca tinha havido um animal pequeno na nossa casa. O Tom costumava rir-se dos nossos bichos-da-seda e aconselhou-nos a voltar a colocar a Ivanhoe no lago. Dessa vez entrou para se aquecer um bocado e inclinou-se para ver o Kym, na sua caixa de papelo ao p do lume, um velho fogo de cozinha com um forno ao lado e uma grande guarda metlica de segurana. - Que isto? uma doninha? Na verdade aquilo no tinha nada ar de gatinho. O Kym estava deitado de lado, de olhos fechados e com um leve mexer de lombo. Foi um dos seus piores dias. Passava a vida a limpar-lhe o nariz e a boca que estavam constantemente a pingar e tinha um ar pssimo. O Tom virou-o. - Est meio morto - disse ele. - No vai fazer nada dele. melhor lev-lo j ao veterinrio. Est a perder tempo. As pessoas esto sempre a dizer-me o que nunca hei-de fazer. Nunca hs-de escrever um livro. Nunca hs-de aprender a guiar. Nunca hs-de conseguir treinar um co... No sabem nada. Hei-de mostrar-lhes como . - Vai uma aposta? - perguntei eu ao Tom, conhecendo-lhe a sua maior fraqueza. Aceitou de imediato mas eu preferia ter desistido logo da aposta pois nesse momento no tinha bem a certeza se a iria ganhar. Felizmente o Kym tinha uma histria familiar muito rija. E chegou o dia em que eu apareci orgulhosa no veterinrio com um gatinho de olhar lmpido, que pela primeira vez havia comido alimentos slidos e que tinha todo o ar de ir sobreviver. No fim da semana j tinha o plo lustroso, corria pela casa e o veterinrio mudara a opinio que tinha acerca de mim. Tomara-me por louca. Agora sabia que no era assim. O Tom l pagou os seus cinco xelins. Nenhum de ns era um jogador irresponsvel. E foi ento que comeou a brincadeira. O Kym sabia agora que era o meu gato. Cuidara dele, amimara-o e enfiara-lhe comida pela boca dentro. Tinha sido to teimosa que lhe restituira a vontade de viver. De dia nunca saa do seu lado e de noite vinha muitas vezes c abaixo para lhe dar de comer e para o agasalhar. Levava-o escadas acima quando ia para o primeiro andar e nunca o deixava sozinho, mesmo quando andava de um lado para o outro. Assim ele era agora a minha sombra, dedicado que nem um co. Seguia-me para todo o lado, gritando quando eu ousava fechar-lhe a porta no focinho e o abandonava. Achei que chegara a altura de lhe mostrar o jardim. Os dias estavam mais quentes e o caixote de areia podia desaparecer. Mas o Kym detestava estar l fora. Era muito pequenino e ficava ali sentado em grandes lamrias porque o vento, abanando as rvores gigantes, soluava misteriosamente nos ramos de modo que eles erguiam-se e varriam o cu, assustando-o. Ele detestava os dedos invisveis que raspavam no seu plo. Corria para mim, trepava por mim acima, sentava-se no meu ombro, e
espreitava para a minha cara, de olhos raivosos, voz excitada, aparentemente debitando num longo e pormenorizado monlogo tudo o que lhe acontecera. Era to engraado que eu s vezes ria-me, vexando-o imensamente. Detestava que se rissem dele. No gosto de humanizar os animais mas no h dvida que eles comunicam e pode aprender-se muito com a linguagem deles. A minha cadela actual, um lobo-da-alscia, faz uma espcie de bailado quando tem a tigela da gua vazia. O Kym tinha o seu modo de comunicar. Sentava-se e punha-se a olhar para a porta do frigorfico ou da despensa para que estas se abrissem; arranhava na porta das traseiras a miar at eu a abrir; sentava-se no lavatrio ou na banheira a tentar chegar torneira sempre que a tigela da gua estava vazia e, na caravana, no tardou a aprender a puxar as correntes que prendiam as tampas dos ralos para no se perderem. Cada gesto era acompanhado de um miado muito especfico e portanto ele mudava de tom sempre que queria coisas diferentes. A sua maneira de me contar como que as coisas do mundo iam era extremamente expressiva como quem exclama, sublinha, declara e comenta. Em lugares estranhos, fazia-nos rir a todos j que conseguamos perceber onde ele estava pelos sons que emitia, de espanto, de prazer, ou ento gritando subitamente por socorro sempre que aparecia algo de enorme no seu horizonte que era sempre muito mais limitado do que o nosso. Era como se estivesse em plena selva quando estava no meio da erva crescida; no Vero, numa selva tropical que ia muito acima da sua cabea. Deitava-se ao seu nvel e o cho era hmido, o ar ftido. Aprendeu a saltar para um ramo e ali ficava, respirando mais vontade, longe da floresta densa apenas conhecida das criaturinhas pequenas. Sempre que algo o aborrecia, trepava para cima de mim. Era to doloroso que eu engendrei um sistema de aviso prvio logo que lhe ouvia aquele miado angustiado que anunciava a sua chegada. Era to pequenino. Podia estar a querer dizer que havia um enorme e feroz co a olhar para ele do outro lado da cerca, com a longa lngua a salivar, sempre que saltava em desespero, ou ento que um gato gigante tinha invadido o nosso territrio, ameaando-o, ou pior, perseguindo-o. Nenhum dos gatos das redondezas gostava do nosso siams. Naqueles primeiros tempos ele foi impiedosamente perseguido. Cheguei mesmo a pensar que eles o teriam morto se o tivessem apanhado mas, felizmente, ele corria mais do que eles. Entretanto o jardim ainda era um territrio inexpugnado e o caixote de areia dominava as nossas vidas, a minha e a dele. Continuei a tentar habitu-lo a ir l fora. Mas ele apenas se aventurava uns metros, depois agachava-se, de barriga no cho, com as orelhas empinadas, olhos penetrantes, como um soldado que entra em territrio inimigo e precisa de ter todos os sentidos alerta. Ao menor rudo, ele precipitava-se para mim e a nica maneira de evitar que as suas garras tipo agulhas se espetassem na minha saia, deixando imensas alfinetadas numa linha transversal que mostrava o percurso por onde ele tinha trepado, era estar preparada, agarr-lo rapidamente e sent-lo em cima do ombro. Era tambm fatal para as meias e eu praticamente deixei de usar saias. Usava sempre calas de desporto. mais barato para quem tem gatos ou ces e muito mais confortvel. Mesmo com as calas, as garras do Kym ainda penetravam. Os vizinhos, os amigos e os vendedores habituaram-se a ver-me abrir a porta com um gatinho vociferante sentado, como um ajudante de feiticeira, de focinho encostado minha cara, fazendo os possveis por
interromper a conversa. Ainda era melhor a cortar as chamadas telefnicas. Detestava o telefone. Era bvio que achava ridculo ver-me a falar com aquele bocado de plstico sem ningum volta a no ser ele. De certeza que eu s podia estar a falar com ele e ento tentava fazer com que eu tivesse um ar menos absurdo respondendo a tudo o que eu dizia antes do meu interlocutor poder faz-lo. Numa ocasio memorvel, o meu marido telefonou-me a pedir o nmero do passaporte pois tinha de ir ao estrangeiro. Fui procur-lo e deixei o Kym sentado no parapeito da janela ao lado do telefone. Do outro lado da linha Kenneth comentou qualquer coisa com a secretria. O Kym reconheceu-lhe a voz, enfiou uma pata hesitante no auscultador, inclinou o focinho e disse Waugh to claramente que o meu marido respondeu Ol doido, o Kym respondeu e eles tiveram uma conversa hilariante at eu chegar e os ter ouvido. Pode parecer pateta falar ao telefone com um gato mas quem conhecesse o Kym teria de admitir que ele era esse gnero de gato. O Kym e eu em breve encetmos um conflito de interesses. O nosso primeiro embate deu-se num belo dia cheio de sol quando eu estava a plantar urzes no nosso jardim de pedras. Logo que eu plantava uma urze o Kym tirava-a c para fora em marcha triunfal e passeava-a pelo relvado. Eu recuperava a planta, voltava a plant-la at que finalmente perdi as estribeiras e dei-lhe uma sapatada forte nas patas. Ele bufou-me e arranhou-me e nessa altura eu assumi a condio de me-gata e bati-lhe nas orelhas. Ele reconheceu a disciplina de imediato. Nenhuma fmea permite que as suas crias tomem liberdades e agora ele sabia que quem mandava era eu. Veio para o meu colo, enroscou-se, lambeu-me a mo e comeou a ronronar muito arrependido. O resto da urze foi plantada sem qualquer problema. Isto nem sempre resultou. Ele era o gato mais persistente que jamais conheci, mesmo para um siams. Agora tenho mais dois mas nenhum to teimoso como o Kym. Quando o ignorava ele inclinava-se para a frente e tentava enfiar-me a pata na boca provavelmente por pensar que isso me faria falar. As bocas abertas articulam palavras e as palavras tinham muito significado para aquele gato. Adorava-as. Chegava mesmo a perceber algumas delas como comida, jardim e anda, mas custou-lhe muito a aprender a respeitar a nica palavrinha que importante para todos os animais, tanto os humanos como os outros: No!
3 O Kym aprendeu cedo a arte da chantagem. Se lhe recusava o colo por estar ocupada ou se lhe recusava comida por ainda no ser a altura, atacava aquilo que obviamente pensava ser o nosso bem mais querido: o nosso enorme cadeiro que tem um forro ao qual nenhum gatinho resiste para nele aguar as unhas. O NO imperativo, sinal de que estava a ser visto, era tudo o que ele queria. S queria que lhe dessem ateno. s vezes sentava-se ali, de pata erguida, a olhar para mim e eu fingia que no via. No fazia qualquer tentativa para arranhar at eu olhar para ele. Logo que tal acontecia, punha a pata em posio e recebia logo um grito de No. Gato mau. No. Nessa altura, tendo alcanado o seu objectivo, passava-se para o parapeito da janela com um ar muito presunoso. E ficava a olhar dali, ostensivamente, como quem diz: Tambm nem sequer o ia fazer! Nunca conseguimos que ele deixasse de usar o tapete do fundo das escadas como o seu poiso predilecto para aguar as unhas. Tinha uns blocos e uns troncos para o efeito, mas o fundo das escadas, sempre que no estvamos em casa, era um sitio onde ele podia estar deitado de lado, raspando com as patas traseiras e aguando as da frente. Um tapete roado no fundo das escadas tornou-se uma pea obrigatria da casa enquanto o Kym foi vivo. Substitumo-lo vrias vezes, mas nunca conseguimos emendar o Kym. Os meus actuais gatos so angelicais no que respeita a aguar as unhas; usam sempre umas proteces e ns agora temos uns tapetes muito respeitveis. Tambm rasgava o papel da parede e, se o castigava, sacudindo-o ou ralhando-lhe, ele fugia para a parte de cima da cornija da lareira e, propositadamente, ia empurrando os meus bibelots, deitando-os ao cho e ficava deliciado a v-los partirem-se. Olhava ento para mim, satisfeito, espera da minha reaco. Movia-se to depressa que eu nunca consegui apanh-lo a tempo e acabmos por substituir todos os nossos bibelots por outros em madeira que, se cassem, no partiam. Ainda hoje os temos. Sempre que os limpo penso em Kym, sentado na cornija da lareira a v-los cair. Nunca sabamos quando que ele se predispunha a espatifar as minhas coisas, aparentemente para me castigar por eu o ter apanhado nalguma malvadez que acabara de inventar. Era impossvel ignor-lo. Se o punha fora de um quarto, era certo e sabido que no conseguia suportar o chinfrim que ele fazia pois no se acalmava at eu lhe abrir a porta e o deixar entrar. Tinha uma voz fortssima, o que fez com que uma vizinha uma vez me citasse um provrbio que rezava assim: um gato normal capaz de acordar o dono mas um siams capaz de acordar a morte. Ela no gostava nada de siameses. O Kym tambm no gostava que o pusessem no cho. Mesmo quando j grande e pesando sete quilos, trepava ou saltava para cima de mim, quase me atirando de cangalhas quando saltava comigo em movimento e no acertava l muito bem. Enquanto eu descascava batatas, l se punha ele em cima de mim, e sempre com comentrios. Enquanto fazia as camas, a mesma coisa. Sentava-se-me no ombro, a soprar para o meu ouvido, intervalando a conversa com umas lambidelas que faziam umas ccegas horrveis e me apanhavam sempre desprevenida. Adorava lavar-me e, sempre que acabava a sua prpria toilette, operao meticulosa e sempre feita noite, ao meu colo, por volta das nove, lambia-me as mos e a parte dos braos que no estivesse coberta, depois punha uma pata em cima da minha mo e ria-se para mim. Isto queria dizer que chegara a altura de lavar a cauda que eu ento segurava, j que ela costumava enrolar-se fora do
seu alcance o que o irritava muito. Era uma cauda especialmente incontrolvel, segundo parecia, e nem sempre fazia aquilo que ele queria. Ele adorava quando eu tentava agarr-la para logo a enroscar longe de mim. A vida do Kym fora de casa era uma grande aventura. Achei muitas vezes que ele tinha as mesmas tendncias dos meus filhos que se deliciavam a contar-me como tinham escapado por um triz das rodas de um carro, de uma bicicleta, de um camio ou como quase haviam cado da maior rvore do mundo que, por acaso, estava no ptio onde brincavam e era uma grande tentao para as crianas aventureiras. De certeza que a vida do Kym tambm era assim j que lhe aconteciam sempre muitos azares. Havia a rua, que ele aprendeu a atravessar como uma seta. Tentei muitas vezes que ele se confinasse ao nosso quintal das traseiras mas por detrs das casas, no outro lado, havia campos e uma imensa quantidade de animaizinhos. Por entre as casas da frente h um caminho que acaba num degrau. Ainda se pode ver um restinho dos campos mas agora h uma nova urbanizao que est a tapar o nosso ltimo espao selvagem. Pouca gente se apercebeu de como era selvagem. Eu prpria no sabia at ter de me enfiar por entre as ervas altas, procura do Kym, no stio onde o gado pastava. Encontrava a um territrio mesmo sua feio. Havia agries dos prados que floresciam profusamente na Primavera e os ratitos escondiamse logo que ouviam os seus passos. As pegas faziam ninho nas rvores altas e tagarelavam quando o ouviam chegar. Observava todos os movimentos bruscos por debaixo das ervas. s vezes aparecia uma doninha, que passava de repente em busca de um esconderijo e desaparecia num pice. Logo a seguir, o gato entretinha-se em volta de um outro montculo de erva onde um rato tremia de medo. No por muito tempo. O Kym era um exmio caador de ratos embora raramente os matasse. Trazia-os para casa, orgulhoso, e eu tirava-lhos, elogiava-o, metia-o dentro de casa, dava-lhe de comer e voltava a ir pr os ratos no campo esperando que eles conseguissem recuperar o caminho de volta para as suas tocas. Eram ratos do campo e no representavam qualquer ameaa para ns. Havia coelhos que por vezes saltitavam pela rua abaixo de manh cedinho, antes de aparecerem os carros em altas velocidades que os assustavam, e sentavam-se no nosso jardim. s vezes, quando a erva estava crescida no terreno das traseiras dos vizinhos onde andavam os setters ingleses, as espigas maduras caam convidativas sobre a nossa cerca. Ouvia-se ento um chick chick agudo de raiva vindo do gato, sentado janela, de olhos fixos, rangendo os dentes em fria, quando os coelhos se erguiam nas patas traseiras e puxavam as sementes suculentas para as comerem. Ficavam espantosamente compridos quando se punham assim esticados e nem o Kym nem eu nos mexamos at eles acabarem, embora ficssemos ali por razes diferentes. Depois de eles se irem embora, eu deixava-o sair e ele calcorreava o relvado a cheirinhar o cho por onde eles haviam passado, claramente a aprender tudo sobre eles. O gato amarelo dos vizinhos, o Marmaduke, era um grande caador de coelhos e eu pensei que o Kym havia de ser igual. O primeiro encontro fora de portas do Kym com um coelho bravo deu-se quando ele era ainda pequeno. Um coelho chegara ao nosso jardim e deitara-se sombra debaixo da ameixoeira. O Kym tinha acabado de sair c para fora. Brincava com uma folha rodopiando e serpenteando, saltitando e volteando, naquela dana de duende que sempre me fascinava tanto e me fazia esquecer o que estava a fazer, e ficava ali a v-lo a divertir-se
como s o fazem as crianas e os animais pequenos, absorvidos pelo presente, sem pensarem no futuro e apenas com uma leve memria do passado. Kym viu o coelho no momento em que este o viu. Era um animal magnfico, adulto e muito grande. Sentou-se, de costas para o gato, olhando-o por cima do ombro com uns olhos curiosos. Nunca devia ter visto um gato siams, j que nessa altura o Kym era o nico nas redondezas. Estava agora mais crescido, com umas longas patas escuras, uma comprida cauda escura, um focinho escuro e uns olhos tortos azuis que preocupavam o nosso mdico que lhe queria corrigir o estrabismo. Aqueles olhos iriam levar-me, muitos anos depois, a um dos encontros mais estranhos da minha vida. O Kym viu o coelho e sentou-se, sem saber o que fazer com aquela enorme fera. Sem saber sequer se era um coelho j que os que vinham mordiscar as ervas eram muito mais pequenos - provavelmente teriam nascido nesse ano, ainda eram novinhos. Aquele era o Pai, imenso, majestoso, um coelho capaz de acabar com todos os coelhos. E aquele Pai sabia de gatos. Continuou a olhar, pronto a fugir se surgisse qualquer tipo de ameaa daquele bicho muito mais pequeno no outro extremo do relvado. O Kym virou-lhe as costas e sentou-se, aparentemente a pensar. Lambeu uma das patas traseiras, com toda a cautela, de uma ponta outra, esticando-a no ar e examinando-a meticulosamente. Entretanto ia espreitando por cima do ombro. O coelho, claramente intrigado, espreitava por cima do seu ombro. O Kym mordiscou freneticamente algo que lhe fazia comicho e comeou a bater com a cauda. Talvez que se ele fingisse que o coelho no estava ali, este se fosse embora. Afinal de contas aquele jardim era dele. O coelho voltou a virar-lhe as costas e ficou a olhar para o horizonte. O Kym ps-se a lavar a outra pata. Muito lentamente, como quem no consegue resistir tentao, virou de novo a cabea e descobriu que o coelho tambm voltara a cabea para ele. Como que enfeitiados, ficaram a olhar um para o outro. Por essa altura eu j me esquecera totalmente da lida da casa, servira-me de uma bebida fresca e sentara-me no parapeito da janela para ver o que ia acontecer. Ambos os bichos continuaram a vigiar-se intermitentemente durante quase quarenta minutos. Nenhum deles se mexia do sitio onde se sentia vontade e em segurana. Aquilo parecia que ia durar todo o dia. Estava quase a concluir, com relutncia, que seria melhor voltar ao meu trabalho, quando ambos os bichos, como a um sinal, comearam a movimentar-se em direces opostas. O coelho avanou com saltos longos e vagarosos. O Kym esgueirouse, com a barriga praticamente a roar o cho, at virar a esquina da casa, e ento desatou numa correria desenfreada, entrou pela porta adentro, saltou para cima da mesa e depois para o meu ombro e desatou numa longa e complicada ladainha sobre o que se tinha passado e como ele tinha visto aquele animal gigantesco e como ficara sentado a olhar para ele. Sabendo o que sabia, era impossvel no perceber que ele estava a fazer um relato circnstanciado do que se passara no relvado. A voz dele subia e descia, suave e logo de seguida aguda, e depois exclamatria at eu no poder mais de riso, e ento saltou do meu ombro para o parapeito da janela e ali ficou, de costas voltadas para mim, com a cauda batendo de frente para trs, completamente enraivecido comigo por eu ter ousado rir-me dele.
Encontrou outras coisas no campo. Havia uma lebre com lebrachos embora, felizmente, ele nunca os tivesse apanhado. Estavam sempre bem escondidos mas se me sentasse e ficasse a observar a me era-me normalmente fcil perceber onde que ela pusera os filhotes. Estavam sempre cuidadosamente separados. Se um dos ninhos fosse atacado, os outros sobreviviam. O salto que ela dava quando saa dos ninhos era espantoso, um longo salto que eliminava o seu cheiro de modo a despistar quaisquer ces que a seguissem. Uns anos mais tarde acabou por entrar no Tbe Hare atDark Hallow e nojackanoy. Havia toupeiras, musaranhos e ratazanas. Havia pssaros. O Kym adorava trazer-me presentes. Habituei-me a tirar-lhos e a solt-los quando no estavam feridos. Raramente matava a presa, excepto as toupeiras que apareciam invariavelmente mortas. Talvez lhe resistissem; ou ento ele as encontrasse quando j estavam a morrer em virtude das atenes de algum caa-toupeiras. Punha sempre o Kym dentro de casa antes de soltar as suas presas. Uma hora mais tarde, l saa ele para ver se ainda estavam no lugar onde as deixara. Nunca estavam. Descobri que os animais que ele matava estavam quase sempre feridos e penso que os outros estariam doentes. Matou um melro que s tinha uma pata e que estava esfaimado; e um tordo que tinha um enorme tumor a retesar-lhe as costas de modo que no conseguiria alimentar-se. Outros animais tinham por vezes antigas feridas e portanto penso que os gatos, tal como os outros predadores, fazem a seleco natural, eliminando as criaturas doentes do ciclo da criao, melhorando assim a raa. Por muito que isso nos desagrade, acabamos por nos habituar. uma coisa natural. Se ele apanhava um pssaro so, eu punha -o sempre bem alto em cima da nossa mesa dos pssaros, rodeado de grandes quantidades de comida silvestre de pssaro. A presena de outros pssaros que vinham comer parecia ser um ptimo antdoto para o choque. O pssaro comia, invariavelmente, durante uns trinta minutos e depois voava. Os pssaros espertos nunca eram apanhados pois apercebiam-se quando o gato se aproximava deles. Eu costumava dizer aos meus amigos que vinham tomar um caf (depois do almoo j que as minhas manhs so sempre passadas frente da mquina de escrever), S um minuto. O gato vem a, saia da sala e abria-lhe a porta. Foi s quando uma das minhas amigas mais chegadas se desesperou e me disse que ela e toda a gente que eu conhecia achavam aquilo um truque esquisito e muito bizarro, que se coadunava com o meu costume de bruxa de andar com o Kym ao ombro, que eu me apercebi de como so poucas as pessoas que esto conscientes do que se passa sua volta. Para mim era to bvio que no conseguia perceber como que eles tambm no sentiam o mesmo. Contudo, quando tentei explicar-lhes, ainda foi pior a emenda do que o soneto. Os pssaros tinham-me avisado. Os pssaros? Os pssaros so uns ptimos guardas no que se refere a animais selvagens. Quando ouvia aqueles primeiros gritos aflitos de gato, gato, gato l longe, do outro lado dos campos isso queria dizer que o Kym andava na caa. Depois, os gritos aproximavam-se. As pegas palravam no enorme vidoeiro que se encontrava no meio do terreno; os tordos que faziam ninho na sebe transmitiam o aviso; o papo-roxo juntava-se-lhes com o seu agudo grito de alerta quando o Kym se aproximava da arrecadao onde o papo-roxo e a sua companheira escondiam os filhotes; e depois
ouviam-se os gritos dos tordos vindos do loureiro que se encontrava no jardim da frente do outro lado da nossa casa. Ento os meus pssaros desatavam a gritar em altos berros e cheios de fria, ensurdecendo-me com o seu barulho. Diziam-me to claramente quanto se me estivessem a falar na minha prpria linguagem que o Kym estava a virar a esquina da casa em frente, vinha a atravessar a rua, subia a rampa do nosso jardim e parara porta de casa. GATO, GATO, GATO. No podia ser mais claro. Sempre que ele aparecia, eu saa e metia-o em casa. Se ele andasse caa dos pssaros no relvado, ainda o metia mais rapidamente em casa. Umas semanas depois, desde que o Kym comeara a sua vida de caador, o gato e eu passmos a ser identificados como uma s entidade pelos pssaros. Se eu aparecesse era quase certo que o Kym tambm apareceria, quer vindo de casa, quer correndo ao meu encontro vindo algures do jardim. Os avisos comeavam imediatamente, mal eu aparecia, mesmo quando o gato no estivesse por ali. ramos inseparveis e eu era, como bvio, igualmente perigosa. O mesmo acontecia com um falcoeiro que muitas vezes caava naquele sitio; os pssaros comeavam a gritar no quando o falco aparecia mas logo que a carrinha dele surgia. Em breve deixou de ser possvel caar ali; todos os pssaros desapareciam antes de o falco estar preparado. Os nossos pssaros mantinham-se ali desde que o gato no aparecesse na rvore. Agora nunca se manifestam j que os meus dois siameses azulados, a Chia e o Casey se encontram enjaulados numa enorme cerca feita para os ces. No aguentaria os problemas que tivemos com o Kym multiplicados agora por dois. Os pssaros ignoram os ces. Eu j no represento qualquer ameaa e j nenhum pssaro me grita. Uma vez em casa, o Kym divertia os meus convidados, andando de um lado para o outro, de olhos tortos,coma cauda a abanar, declamando em altos brados com a segurana de um actor nato. Depois de nos informar sobre as suas aventuras, saltava para o meu clo e, com um suspiro de contentamento, comeava s voltas at se instalar confortavelmente e desatava a lavar-se, com toda a delicadeza, inspeccionando cada pata e mordiscando entre os dedos. Exausto, enroscava-se para dormitar, comeando por colocar pesadamente a pata na minha mo para ter a certeza de que eu no me punha a fazer malha. Ele detestava que eu fizesse malha. Finalmente, depois de inmeras batalhas nocturnas durante as quais ele puxava a l das agulhas ou comeava a brincar com ela at eu deixar cair uma malha, desisti e tornei-me numa ardente devota do St. Michael. Nunca gostara de fazer malha, mas a minha me e a minha sogra faziam-me sentir to culpada por eu no me meter a fazer essas actividades caseiras que acabei por experimentar. Os meus filhos suspiravam sempre que tinham de enfiar mais uma roupinha mal amanhada e rejubilaram quando eu finalmente desisti. Continuei a fazer roupa durante mais alguns anos at que a minha filha foi a uma festa e ao chegar a casa me disse com um ar tristonho: - Ds-me um vestido como deve ser, comprado na loja, para a prxima festa? Felizmente tambm me deixei disso. Agora tinha tempo para escrever com a conscincia tranquila. O Kym aprovava essa actividade j que podia enroscar-se no meu colo ou deitar-se ao lado da mquina de escrever ou ainda sentar-se no armrio e, de vez em quando, presentearme com as ltimas novidades felnicas.
Aos oito meses era muito mais independente. Mas ainda precisava que o protegessem do Dusky, o gato do vizinho. O Dusky era um enorme gato persa que durante alguns anos se apropriara do nosso jardim. Era um gato muito digno e ficou espantado quando eu apareci com um diabito estridente, que nem sequer tinha ar de gato, nem sequer soava a gato e tambm no cheirava a gato. Era muito fcil para o Dusky fazer-se caro j que era vinte vezes maior do que o meu gatinho e bastava-lhe eriar o plo, que era imenso, para imediatamente o pr a milhas. Nessas alturas emitia um agudo miado. Com todos aqueles miados do Dusky e os gritos do Kym queixando-se de que o Dusky vinha atrs dele e que por favor o ajudasse, era muito dificil ignorar os gatos. De vez em quando o meu gatito irrompia cozinha adentro, pela janela em vez da porta, e aterrava em cima da mesa. Uma vez eu estava a fazer uns bolos e o Kym aterrou em plena taa numa exploso de farinha, o que muito desagradou a ambos. Ainda pior do que o Dusky era o Beagle. Esta zona h anos que tem vindo a ser dominada por uma sucesso de beagles vadios, provavelmente todos pertencendo mesma famlia, embora eu no tenha bem a certeza disso. Andam por onde lhes apetece, saindo de manh para espalharem a confuso, obrigando os gatos a treparem pelas rvores acima, perseguindo outros ces, importunando as cadelas com o cio, entrando pelos jardins adentro onde comem a comida dos pssaros e deixando recordaes desagradveis no relvado ou na entrada. Um dos hbitos mais aborrecidos que tm o de perseguirem os gatos. evidente que eles so educados para a caa e portanto andam caa. O beagle que foi contemporneo do Kym corria atrs das rapariguinhas quando no tinha gatos por perto. Mas do que ele mais gostava era fazer um desvio para passar pelo nosso jardim e correr atrs do Kym. No havia cerca que o impedisse. Saltava por cima dela ou ento atirava-se contra a cerca, pois era um co pesado, fazendo-lhe mais um furo. Eu gosto de quase todos os ces mas acabei por detestar o Beagle e todos eles. Nunca ningum lhes ensinou o NO. Normalmente o Kym arranjava maneira de chegar a casa, mas nem sempre. Corria para cima das rvores. Uma vez foi-se espetar em cima de um poste dos telefones. Foi uma manh e pras. Andavam uns homens a arranjar o poste seguinte e tentaram, com todo o cuidado, ir buscar o meu gatito. Ele subiu mesmo at ao cimo e desatou a berrar: - Querem-me levar! Eu corri para fora de casa com um prato de peixe. - No lhe toquem, mau - disse um homem grande enquanto chupava uma arranhadela na mo. Bati com o prato contra o poste. O Kym desceu, deslizando a maior parte do percurso e emitindo um ronco agitado como que uma sirene de alarme em miniatura. Aterrou no meu ombro transformando-se, para grande espanto dos homens, num gato ronronante, a derreter-se todo, cheio de obrigado-por-me-teres-salvo e de adoro-te. - Estava assustado - expliquei eu, o mais dignamente que me era possvel com aquele prato de peixe numa mo e um gatito a esfregar-seme na cara, em equilbrio no meu ombro, seguro pela outra mo. Quando nos afastmos, com o Kym em altos brados gritando que nem um ardina as ltimas Noticias, os homens ficaram boquiabertos. Nunca gostava de deixar o Kym sozinho quando saa durante o dia. Havia sempre alguma coisa que corria mal. Uma vez cheguei a casa e fui encontr-lo, muito infeliz, deitado no meio da alfazema com uma tira de plo e pele de cerca de quinze centmetros de comprimento e trs centmetros de largura arrancada das costas. Foi uma ferida que me
confundiu a mim e ao veterinrio. Podia ter sido feita por um co, mas era muito grande. Durante anos suspeitei que fora um vndalo qualquer at falar nisso a um outro veterinrio amigo. Ele vira uma ferida semelhante num gato que fora atropelado por um carro; ficara preso numa coisa qualquer que havia debaixo do carro que lhe provocara aquele ferimento. Para alm dos ferimentos eventuais, se eu ia s compras e o Kym estava no jardim, havia sempre de arranjar uma maneira de eu no ir sozinha. Aparecia de repente uma sombra pequenina por detrs da ltima casa da rua e saudava-me efusivamente. Correra atravs dos jardins sem que eu o tivesse visto. Ento saltava-me para o ombro e amos assim at casa. claro que isto no dava jeito nenhum e eu tinha de voltar acasa, meter o Kym l dentro e recomear tudo de novo. Os vizinhos que no me conheciam devem ter pensado que eu era louca. Mas quando se tem um siams, no h nada a fazer. Se lhe apetecia andar no meu ombro, andava no meu ombro. O meu gato actual, o Casey, s se consegue t-lo ao colo quando ele quer mas a Chia, essa adora andar em cima dos ombros. Ela tambm um caso perdido. Podia ralhar vontade com o Kym, mas ele voltava sempre ao mesmo. Tinha de arranjar uma maneira de o meter em casa, seno perdia muito tempo a correr atrs dele, procura por entre os arbustos e nas rvores e a cham-lo, coisa alis que no resultava pois se ele no quisesse, no aparecia. Foi por acaso que descobri uma maneira de o meter em casa. Ele tinha o costume de aparecer como por magia logo que eu lhe punha comida no prato. Percebi, depois de muito matutar, que era um prato de esmalte e que o seu ouvido apurado detectava o barulho do garfo ou da faca no metal. Nessa altura no me apercebi que podia usar este estratagema. Um dia estava a bater ovos (para um bolo) numa taa de metal. O Kym apareceu, todo excitado, certo que eu estava a cham-lo para comer e ficou to furibundo por ver que se tinha enganado que tentou roubar-me os ovos. Dei-lhe um bocadinho de peixe e pu-lo outra vez l fora sem perceber por que que ele tinha entrado. Recomecei a bater os ovos e dessa vez ele entrou ainda mais depressa, certo de que eu me enganara e que afinal estava a prepararlhe a comida. A partir da, sempre que queramos chamar o Kym, batamos com um garfo no prato. O som era suficiente para o fazer aparecer em grande correria, com as patas a andarem to depressa que pareciam cruzar-se. Era a nica vez em que ele perdia a dignidade. Muitos dos nossos vizinhos mais afastados devem ter-se admirado com aqueles toques frequentes vindos do nosso jardim, assim como os dos parques de campismo que se encontravam demasiado longe para verem o gato aparecer, convocado como o gnio da lmpada por aquele barulho. Dava-lhe frequentemente pequenas pores, vrias vezes ao dia, pois era melhor saber que ele se encontrava a salvo dentro de casa. Isto foi particularmente assim quando ele comeou a crescer j que se vingou por tudo o que sofreu quando ainda gatinho, tornando-se o rei da rua, insistindo que aquele territrio era todo seu e perseguindo os gatos dos vizinhos, hbito alis que no o tornava l muito popular embora os respectivos bichos lhe tivessem feito a vida negra quando ele era pequeno. A nica defesa do Kym, ainda gatinho, era lanar um grito feroz, um guincho esquisito que bastava para assustar qualquer gato intruso que pensara estar a lidar com uma vtima fcil.
No tardei a descobrir que se mistifica tanto o gato siams como, por exemplo, o ter bebs. Disseram-me que so excepcionalmente delicados (os gatos, no os bebs; estes sofrem de outras particularidades que todos os que visitam as grvidas to bem conhecem). raro o frgil siams sobreviver s primeiras semanas e portanto, logo que o Kym ficou doente, toda a gente me avisou. um ser delicado, s consegue engolir coisas como galinha, rodovalho, linguado e, provavelmente, solha cozida. Quando sobrevive e chega a jovem, torna-se bravio, indomvel, capaz de arranhar os olhos das crianas, esgadanhar a mobilia e despedaar os cortinados. Faz tambm um rudo desagradvel, rouco e contnuo. Eu adoro esse rudo. E tambm tinha a certeza de que seria capaz de domar um gatinho. Era tudo uma questo de treino; h coisas que se podem ensinar a um gato mas h poucas pessoas que realmente tentam trein-los. Todos os meus gatos compreendem o NO. E isso d para muita coisa. A Chia e o Casey tambm percebem e respeitam o FORA, que uso sempre que eles entram na despensa ou na sala com as nossas belas cadeiras. O Kym sobreviveu sua primeira doena. Fazia realmente aquele rudo, mas era extremamente meigo no obstante a aparente ferocidade dos seus comentrios. Tnhamos brincadeiras dirias, a maior parte das quais inventadas por ele. Uma das suas favoritas era ajudar-me a fazer as camas. Isto significava que o fazer as camas demorava cinco vezes mais do que o habitual. O ritual era sempre o mesmo. Todos os animais e muitos humanos adoram os rituais j que estes conferem uma certa ordem a um mundo desordenado. As brincadeiras comeavam com o Kym sentado na cama, de olhos semicerrados, com um ar grave, resmungando algo entre o uivo e o ronronar, at eu perceber o que ele queria e pousar a mo sobre a sua testa. Ele puxava as orelhas para trs e aconchegava-se minha mo. Quando eu me comeava a fartar daquilo, ele rebolava, apanhava-me o pulso com a boca e mordiscava-o suavemente, dando pancadinhas com as patas traseiras, de garras recolhidas. Agarrava-me firmemente os braos com as patas dianteiras que pareciam de veludo. A principio, enquanto ainda pequeno, ficava por vezes superexcitado e desatava a gritar e a saltar doida. medida que foi crescendo, foi aprendendo a controlar-se e a brincadeira acabava com ele enroscado contra mim, ronronando, deliciado com aquele contacto e esfregando o focinho felpudo na minha cara. S ento que comeava a actividade de fazer as camas. Tive muitas vezes que voltar a desfazer a cama pois ele, que gostava de se esconder enquanto eu o procurava, enfiava-se pelo outro lado e ali ficava acocorado no fundo da cama ou ento metia-se l para dentro sem ningum ver e, aparentemente, desaparecia e eu andava por toda a casa procura dele at descobrir aquela protuberncia suspeita e quente debaixo dos cobertores. Por vezes punha-se simplesmente a saltar e desatava numa dana maluca volta da cama, por debaixo do cobertor a tentar apanhar-me a mo e atirando-se sempre que eu entalava a roupa. Eu detesto fazer camas mas no h dvida que o Kym dava uma certa vida a essa actividade e tudo acabava normalmente com uma traquinice desenfreada, com ele a desaparecer e a reaparecer para implicar com o que eu tivesse ento na mo. Ele ficava espreita para ver quando nos levantvamos. Dormia na cozinha que era bastante quente j que a lareira ficava acesa durante toda a noite. Tinha a cama num dos cantos com o caixote de areia de
emergncia debaixo da mesa. Nunca tnhamos a certeza se ele conseguira resolver todas as necessidades durante a tarde e portanto era melhor prevenir do que remediar. O caixote fcil de limpar e os gatos respeitam-no. O Kym nunca fez nada dentro de casa. Um dia vomitou na entrada e isso aborreceu-o muito. Eu estava a tomar banho. Ele correu escadas acima, ps-se nas patas traseiras e tentou puxar-me da banheira para fora. Finalmente, percebendo que ele tinha algo de urgente a comunicar-me e que talvez precisasse de ir l fora, vim c abaixo e vi toda aquela porcaria no cho da entrada. Uma vez limpo, ele acalmou; eu cumprira a minha tarefa e podia acabar o meu banho e ele retomaria a sua soneca. Tinha andado a comer ervas e eu metera-o dentro de casa antes de ele ter tempo de as deitar c para fora. Os bichos fazem isso para se purgarem. No tem nada a ver com m alimentao nem com doena. Nos animais selvagens funciona como uma desparasitao. O Kym nunca mordia mas no permitia que ningum lhe pegasse sem ele querer. Empoleirava-se l no alto, olhando desconfiado para as pessoas at ter a certeza de que eram amigveis. No que toca aos meus amigos, concedia-lhes o privilgio de se sentar ao seu colo, algo que no era l muito apreciado por quem no gostava de gatos, mas o Kym ignorava alegremente tal facto. Mary, que vive no outro lado da rua, alrgica a gatos. Por uma razo qualquer que s o Kym sabia bem, este escolhia sempre a sua soleira para apanhar sol e utilizava o jardim dela como um atalho para ir para o campo l atrs. Teve portanto vrias aventuras j que insistia em usar esse jardim como passagem. Uma vez, tinham atado algodo preto para afastar os pssaros do aafro que haviam profusamente plantado em grandes e belos tufos de cada lado de umas escadas de pedra que davam para o relvado. Os gatos no deviam ver o algodo preto pois o Kym tropeou, deu uma cambalhota pouco digna e aterrou na relva, onde ficou sentado a olhar para todo o lado furioso e tentando esconder a sua atrapalhao. Isso no o impediu contudo de voltar a utilizar o jardim. Havia outros gatos que tambm o usavam como passagem para os campos e um dia a Mary encontrou-me e disse: - Viu por a um gato pelado e amarelo? O Kym andou bulha com ele no meu jardim. Venha c ver. Era impossvel que um gato tivesse perdido tanto plo e no ficasse todo pelado mas, quando olhei para o aafro que nos rodeava, parecia intacto. O Kym tinha uma mordidela no ombro. Da a alguns dias esta transformou-se no primeiro dos muitos abcessos que nos iriam levar frequentemente ao veterinrio e pelos quais o Kym viria a ser apelidado de o brigo da rua. Em breve viemos a ser muito conhecidos j que esses abcessos precisavam, invariavelmente, de ser lancetados e injectados com antibiticos para os desinfectar. No sei como mas o Kym era sempre mordido em stios que no se viam at infectarem e por mais cuidado que eu tivesse a examin-lo depois de uma bulha, nunca conseguia encontrar seno umas arranhadelas. Cheguei mesmo a suspeitar que o Kym tinha um sentido de humor assaz estranho pois muitas vezes, depois de uma bulha que parecia uma luta entre dois demnios furiosos, com uma gritaria capaz de acordar os mortos, descobria que ele voltara para o mundo, quer para o jardim da Mary (aparentemente determinado a faz-la mudar de opinio sobre os gatos, embora o fizesse da maneira mais errada possvel), quer para a rua, sem responder aos nossos apelos, e ficando por l tanto tempo que ns pensvamos que fora dessa vez que tivera uma bulha de morte, ou que fora atropelado ou roubado. Isto outra coisa que acontece aos gatos
siameses, segundo dizem, embora eu pense que se algum tentasse roubar o Kym havia de passar por um mau bocado e no conseguiria aguent-lo depois com toda aquela parlapatice to tpica dele. Quando pensvamos que nunca mais o veramos, ele aparecia, com um olhar feroz, saudando-nos efusivamente e admirado por termos andado procura dele. A sua proeza favorita era trepar para a macieira l no fundo do quintal. Ficava ali sentado, com um ar pattico, perdido, preso. Subir era fcil, segundo o que ele parecia explicar-nos, mas descer era diferente. Era como se nos censurasse por sermos to lentos e o deixarmos ali quando o que ele queria era estar ao p de ns c em baixo. Quando as crianas estavam em casa corriam sempre em seu socorro; trepavam rvore e entregavam-mo com todo o cuidado e ele ento aconchegava-se no meu ombro, grato por mais uma vez ter sido salvo. Ento um dia, depois de ter sido salvo duas vezes, os meus filhos saram para lanchar. Por estranho que parea, ele raramente subia rvore quando eu estava sozinha. Estava a falar ao telefone quando ouvi uns miados angustiados e percebi que ele estava outra vez preso. Nesse momento no podia fazer nada. Desliguei o telefone e, surpreendentemente, os lamentos pararam. Pensei que tinha cado e, o que raro em gatos, se tinha magoado a srio. No havia qualquer outra explicao para aquele silncio j que normalmente ele gritava at algum aparecer. Fui ao quintal. Ento vi o meu gatinho, suave e com toda a mestria, como quem j fez aquilo para a umas cem vezes - o que provavelmente teria acontecido - a descer pela macieira abaixo. Ele viu-me e estacou, a uns centmetros do solo e recomeou a miar. Estou preso, Estou preso. Ri-me tanto que ele ficou furioso. Saltou os centmetros que lhe restavam e encaminhou-se todo emproado para casa e ficou sentado durante toda a tarde de costas voltadas para mim com a cauda a abanar furiosa e ritmadamente. hora de se deitar j me tinha perdoado e j estava a ronronar no meu colo, ajudando-me a ler. Isto era um exerccio habitual e praticamente intil j que a sua ideia de ajuda era pura e simplesmente no me deixar mudar de pgina, certo de que haveria uma maneira muito mais agradvel de lidar com mais uma dessas actividades humanas to bizarras. Isso fazia com que eu no lhe desse ateno e aborrecia-o quase tanto como o telefone. Os meus ces miram cheios de interesse o meu livro, cheiram-no e depois afastam-se enojados. Ponho-me muitas vezes a cogitar sobre o que que eles pensaro das actividades dos humanos. Um animal vive a sua vida numa permanente aura de mistrio insondvel, de acordo com regras que jamais compreender. Deve ser parecido com aquilo que sentimos quando estamos isolados num outro pas, com etiquetas desconhecidas e sem intrprete, tendo de obedecer pois seramos castigados se assim no fosse. Escrever cartas ainda era pior do que ler livros, na opinio de Kym, mas propiciava possibilidades mais interessantes. Podia brincar com as canetas; podia roub-las e escond-las; podia fazer rabiscos com elas. Isto era particularmente interessante j que me levava a dizerlhe algo. Pouco importava que esse algo fosse em tom zangado. O importante que no o ignorava. Eu sabia que ele estava ali e dava-lhe ateno. As canetas tambm podiam ser perseguidas e atacadas. O papel era algo de maravilhoso para o Kym. Restolhava. O Natal era a poca mais excitante da sua vida, quando toda a gente estava
cercada de papel; papel de seda e dourado que se amarrotava, e fitas para brincar assim como todas as bugigangas que se podiam deitar abaixo da rvore de Natal. Mas como no podia ser sempre Natal, ele contentava-se com o jornal. Esse tambm restolhava. Podia saltar-se-lhe para cima e rasgar com aquele gostoso rudo e com o igualmente gostoso grito de fria do Dono que finalmente dava ateno a Kym. Aos seres o Kym tambm gostava de partilhar as atenes de ambos e saltava de colo para colo, certo de que o seu peso ronronante era essencial para a felicidade dos humanos. Enroscava-se em cima do tapete da lareira com o ar mais inocente do mundo, a observar. Depois, quando a nossa ateno se concentrava em algo que no nele, saltava. s vezes aterrava debaixo do jornal, a ronronar, e ali ficava espera, estendendo de vez em quando a pata para bater na mo que virava as pginas. Outras vezes aterrava, atabalhoadamente, em pleno jornal ou ento atravessava-o como num nmero de circo. Fosse como fosse, ficava sempre radiante com o resultado e quando o leitor do jornal acalmava a sua fria, o Kym normalmente era autorizado a brincar ao tnel. O jogo do tnel era a stima maravilha e podia prolongar-se durante horas. O nosso limiar de pacincia era muito inferior ao do Kym. Ele era capaz de ficar eternamente ao p de um buraco minsculo espera que um rato aparecesse, enfiando esperanado, de vez em quando, uma pata, certo de que aquela espera seria recompensada, desconhecendo que aquele orificio se destinava a um poste para a corda da roupa, por exemplo. O jornal era colocado em rolo no cho, com uma bola de ping-pong numa das extremidades. O Kym espreitava por debaixo do armrio, de cauda a abanar de um lado para o outro, preparando-se para o salto. Havia ento uma corrida, um pulo e um restolhar glorioso e ento ele batia na bola que rolava pelo cho. Depois recuava e voltava a preparar-se atrs do armrio, espreita at ns pensarmos que ele tinha adormecido. Quando relaxvamos e nos decidamos a retomar a leitura dos nossos livros, ele irrompia como um pequeno demnio, atravessando o tnel e saltando para cima dos mveis at toda a gente, menos ele, ficar exausta. Havia mais uma fonte de entretenimento ao sero. A televiso normalmente aborrecia-o, excepto um programa. Adorava o Tony Hancock! O Tony tinha uma boca muito grande - que abria muito sempre que falava. O Kym passava todo o programa em cima do aparelho de televiso a tentar apanhar a lngua do Tony que, na sua ideia, seria um rato no buraco. Quando o programa acabava ns estvamos normalmente histricos mas nem sempre por causa do seu contedo. O Sidjames no produzia o mesmo efeito! trad. M. j. D.
UM STIO PTIMO PARA A GATA Margaret Bonham A carrinha verde aparecia na aldeia duas vezes por semana. Nesses dois dias a Sra. MilIer levantava-se s oito e meia e ia pr-se janela da sala de estar. Com o seu cabelo liso e as cortinas esverdeadas e j desbotadas esvoaando ao vento, l se punha ela janela da sua sala para ver os gatos, pois a Sra. MilIer, embora fosse uma mulher gorda, feioza e nada prendada, gostava tanto de gatos que se levantava mais cedo uma hora, ou at mais, duas vezes por semana, quer fosse Vero quer fosse Inverno, e nada mais a conseguia demover. A Sra. Miller raramente olhava, conscientemente, para o peixeiro e o mesmo acontecia com as outras mulheres que saam das respectivas cancelas com um prato e com uma bolsa de couro na mo. A Sra. MilIer ficava a olhar para os gatos da sua janela, e as mulheres, colocando-se uma a uma ou aos pares na parte protegida da portada semi-aberta da carrinha, olhavam as mos dele a pesar, depois olhavam para os arenques e para as cavalas, para a balana e para a passagem do prato da balana para os seus pratos; ele era bem capaz de, ali mesmo frente dos narizes delas, atirar sorrateiramente um bocado de arenque ao Tab da Sra. Rhys que miava desesperadamente a seus ps. Quando ele se distraa um momento, as mulheres enxotavam o Tab da Sra. Rhys chinelada e o Tab da Sra. Rhys esgueirava-se por detrs das pernas do peixeiro e nessa altura a Sra. MilIer, da sua janela, deitava a lngua de fora s mulheres. Nem a Sra. Miller nem nenhuma das mulheres que apareciam para comprar arenque ou cavala vos poderia dizer fosse o que fosse sobre o peixeiro a no ser que ele gostava de gatos, que era de estatura mdia e magro, que usava um fato castanho e um avental azul, que tinha o cabelo pardo ou acinzentado e que trazia sempre gatos atrs. A aldeia, excepo da Sra. Miller, considerava-o meio louco. Meio louco neste caso significa algum que d aos gatos aquilo que pode vender s mulheres. s teras e sextas-feiras, quando a carrinha verde vinha at aldeia, o gato do Seven Stars ia-se pr espera em cima do pilar de pedra ao fundo da ponte. O peixeiro descia do lugar do condutor, trepava e abria as portas da traseira e nessa altura o gato do Seven Stars, j de p e de focinho empinado, batia-lhe com uma pata na perna, pronto a apanhar qualquer chicharro que o peixeiro lhe quisesse atirar e que ficava a balanar, com a cabea e o rabo pendentes de cada lado da sua boca triangular. Ento, gato e chicharro desapareciam que nem flechas pelo ptio da estalagem e o vendedor, desinteressado, punha-se a pesar solha para o dono. Nas traseiras da casa da Sra. Miller, ao fundo da rua, todos os outros gatos se punham espera s portas. Todos os outros gatos l estavam espera do peixeiro e do chicharro ao sol da manh, no meio do cheiro do pequeno-almoo, da cera e do importantssimo cheiro a peixe. Nas casas as crianas estavam sentadas mesa com bigodes de leite e, da sua janela, a Sra. Miller via o peixeiro a passar pela casa vindo do Seven Stars em direco s outras casas at porta da igreja, e da porta da igreja outra vez pela rua abaixo at parar finalmente sua porta. Embora ela no gostasse de peixe, comia-o ao jantar todas as teras e sextas-feiras, na saleta que estava suja e desbotada como as cortinas esverdeadas e com um crculo escuro no papel de parede pardo onde ela encostava, quando acabava, a cabea oleosa contra a parede, com um Woodbine no canto da boca e o gato Henry no colo a pescar espinhas do prato e a rilh-las de lado em cima do seu casaco de algodo todo manchado. Henry era um gato velho;
j se haviam passado anos e anos depois da idade lhe ter tirado a boa forma e, por natureza, no era inteligente; nem sequer aos olhos da Sra. Miller ele era nada de especial; no tinha nada a ver com o tipo de gato do qual se sente orgulho ao v-lo sentado, na parte de fora do porto, espera do peixeiro; mas ela gostava dele. O peixeiro, olhando para o Henry escondendo-se por detrs de uma pescadinha, dizia sempre com uma certa tristeza: - Os gatos no deviam envelhecer, Sra. Miller. verdade, pensava a Sra. Miller; mas dizia: - E, mas a gente afeioa-se a eles. No Inverno o Henry morreu. A Sra. Miller chorou-o e recusou-se a ficar com um gatito vadio do Seven Stars; mas as visitas do peixeiro comearam a no ter qualquer sentido com aquelas conversas sobre os gatos dos outros e, com o decorrer do tempo, ela comeou apensar em arranjar um outro para si. Reflectiu muito e imaginou-se com um gatarro mais bonito do que os dos vizinhos, do que qualquer outro gato da terra. O peixeiro debruou-se sobre o porto, no meio da neve, e disse: - Quando que tem um outro Henry, Sra. Miller? - Qualquer dia - respondeu-lhe ela, olhando l longe para as rvores escuras guarnecidas de branco que se perfilavam contra o cu escuro atrs dele. Levou os dois arenques num prato e l foi de chinelos a bater pela rampa cheia de neve acima at saleta para a acender a lareira. Colocou os arenques no tapete ao seu lado e acocorou-se, puxando por detrs do balde do carvo o papel amachucado onde o bacalhau de sexta-feira tinha vindo embrulhado. Mas, uma vez na grelha, a palavra GATOS apareceu-lhe por entre as barras e ela puxou-o c para fora e alisou sobre os joelhos a primeira pgina do The Times. Apalpando um cigarro amachucado no bolso da bata, ps-se a ler: Vende-se gata siamesa com pedigree, 4 meses; treinada para viver dentro de casa; 3 1/2 gns, transporte pago. Letchley, Elm House, Hastock, Shrops. A Sra. Milier, com um Woodbine apagado no canto da boca, sentou-se a olhar para a grelha vazia vendo nas suas profundezas carcomidas a imagem ntida da sua entrada e um gato elegante avanando por ela acima numa pose herldica, e com uma cauda que mais parecia uma pluma de avestruz, de um dourado escuro a adejar contra a neve. A Sra. MilIer nunca vira um siams na vida. Levantou-se do tapete, esquecendo-se do arenque, e foi em busca da mquina de escrever do seu desgraado marido pois sabia que a sua caligrafia no era a mais apropriada para encomendar um siams com pedigree. A carta foi curta mas demorou-lhe toda a manh. Quando acabou, enfiou um casaco por cima da bata, sau, foi levantar algum dinheiro da sua conta dos Correios, juntou-lhe mais um tanto do dinheiro da casa e foi comprar vales postais por trs guinus e meio. Depois colou um selo na carta, regressou a casa e acendeu o fogo de sala. - Ento quando que temos o novo Henry, Sra. Miller? - perguntou o peixeiro na sexta-feira, debruando-se na cancela branca. E a Sra. MilIer, olhando para as rvores, respondeu: - Daqui a uns dias aparece a um gato especial que eu arranjei disse ela, continuando a olhar para o cu que se fechava como uma concha de ostra sobre a aldeia - um gato de categoria - acrescentou ela apertando a bata suja contra o pescoo por causa do vento frio. - Isso que uma boa noticia, Sra. Miller - disse o peixeiro. um gato persa?
- No - disse a Sra. Miller. - No um persa. uma coisa muito especial; quando ele vier vai ver como . - Espero que venha rpido - retorquiu o peixeiro. Estou morto por saber. - Talvez na tera-feira - disse a Sra. Miller. - uma gata acrescentou ela por cima do ombro, subindo a rampa. A carta l veio, dizendo quando que o novo gato fino chegaria estao. Havia alguma coisa que dizia Sra. Miller que devia arranjarse melhor para aquele primeiro encontro com o gato e assim ela vestiu o seu melhor fato azul, ps brincos de prola e o casaco com uma gola de pele; enrolou o cabelo com os dedos e meteu-se estrada e caminhou durante uma milha pela neve at estao com os seus sapatos pretos de taco alto. Esperou durante meia hora sentada na sala de espera, pois o comboio veio atrasado, mas quando este finalmente chegou com a nica carruagem coberta de neve fumegante, ela precipitou-se para a seco das bagagens e reclinou-se no balco que nem uma dama, enquanto o Sr. Jones, que fazia tudo naquela estao, trazia para dentro uma bicicleta, um cesto com galinhas e um cesto mais pequenino como os de piquenique. O Sr. Jones colocou o cesto mais pequeno em cima do balco e ouviu-se um grito plangente; um grito em tom menor, de gelar o sangue nas veias. - Santo Deus! - exclamou o Sr. Jones recuando para cima da bicicleta. - O que que vem a dentro, Sra. Miller? - Um gato - disse a Sra. Miller sem grandes certezas e inclinou-se para a frente, apontando para a etiqueta que se encontrava atada asa e onde se lia GATO DE ESTIMAO. - Eu acho que isto no nenhum gato - disse o Sr. Jones -, os gatos miam. Vamos dar uma espreitadela - acrescentou ele pegando no cordel com todo o cuidado. Mas a Sra. Milier, hipnotizada pelo grito, exclamou rapidamente: - No Sr. Jones, vou lev-lo j para casa. E se ele fugia? O Sr. Jones abanou a cabea e disse: - No devia abrir o cesto sem ter um homem em casa, Sra. Miller. Eu vou consigo e fico de vigia com o atiador em riste. - No admito que ningum fique de atiador em riste para o meu gato de raa, Sr. Jones - exclamou a Sra. Miller recuperando a sua pose - e eu sei de certeza que um gato; comprei-o pelo jornal; ele est a gritar com medo do seu comboio velho. E pegando no cesto com firmeza, saiu para a estrada cheia de neve; quando chegou a casa j se habituara quele som estranho do gato e mal podia esperar por abrir o cesto e ver aquela criatura extica e elegante com um plo dourado e fofo e uma cauda que mais parecia uma pluma de avestruz. Assim, colocou o cesto em cima da mesa da saleta mesmo antes de tirar o casaco, e desapertou a etiqueta, o cordel, o fecho e abriu a tampa para trs; e ento cambaleou em direco lareira com um gesto melodramtico, teatral, gritando: - Deus me acuda! - Apercebendo-se que tinha sido levada como uma pata e que lhe tinham vendido uma espcie de macaco. L se foi o sonho da Sra. Miller de ter um ser com um plo dourado e cauda de plumas; sentia-se to envergonhada a imaginar o que que o peixeiro iria dizer, e os vizinhos, sem saber se aquela criatura lhe ia saltar para cima aos guinchos, pois ela s conseguia ver-lhe a parte de cima que espreitava do cesto. De certeza que aquilo no era um gato, pensou a Sra. MilIer; que gato que tem um plo to curto que nem um coelho esfolado e um focinho to pontiagudo que nem um queijo e uns olhos vesgos, azuis de porcelana? E que gato que tinha o nome de Tulan
Caprian de Hastock e no Henry ou Tab ou Smut? Isto lera a Sra. MilIer na etiqueta. E assim se manteve desconfiada a olhar para ele, e ele para ela; desconfiada ainda, articulou - Bicho...? - e recuou mais um passo quando Tulan saltou do cesto para cima da mesa. A verdade que a Sra. Miller no se teria admirado se ele tivesse quatro patas verdes e uma cauda vermelha bifurcada na ponta e praticamente no ficou nada surpreendida ao ver aquelas patas magras que nem uma bailarina vitoriana de meias pretas e uma cauda que no era mais grossa - era a ideia que dava Sra. Miller (que ainda no rejeitara totalmente a ideia da pluma de avestruz) do que um cordel. Bem, que Deus me salve, devo estar doida, disse ela para consigo colocando a chaleira ao lume sempre com um olho em Tulan. Tulan sentou-se em cima da mesa com aquela cauda enrolada em volta daquelas patas e fez uma tentativa de lanar um miado amigvel. A Sra. Milier deu um salto ao som daquela nota aguda, foi buscar rapidamente um prato de peixe ao armrio e colocou-o em cima da toalha. - Bem - disse ela meia sufocada - no h dvida que s um monstrozinho muito esquisito. Foi at cozinha e preparou uma chvena de ch que, alis, no era o que ela queria, mas o Seven Stars estava fechado. Passaram a noite sozinhas na saleta, numa espcie de campnula de luz elctrica e de lareira, longe do exterior escuro e cheio de neve. Tulan confiante e a Sra. Miller com uma desconfiana semiabalada. De cada vez que olhava para aqueles olhos azuis vesgos, para as patas magricelas e escuras, para a cauda castanho escuro parecida com a de um macaco e para o plo raso cor de farinha de aveia plida com um brilho que lembrava o sol na neve, pensava no que os vizinhos iriam dizer e, principalmente, no que o peixeiro iria dizer no dia seguinte. Tulan estava sentada em frente ao fogo com as orelhas pontiagudas e escuras espetadas, virando a que se encontrava mais prximo para a Sra. Miller sempre que esta suspirava ou murmurava, como que num gesto de delicadeza para no perder pitada do que ela dizia. Aquilo era enervante; a Sra. Miller ficou em silncio fumando cigarro atrs de cigarro. s nove e meia voltou a fazer uma chvena de ch e a Tulan saltou-lhe, pela primeira vez, para o colo, enroscando as patas escuras por debaixo do peito de penugem plida, a ronronar. s dez e meia, no podendo ficar sozinha, solta, nem na cozinha nem na saleta, foi dormir na cama da Sra. Miller. Por causa do peixeiro, ps o despertador para as oito e um quarto. A Sra. MilIer acordou e viu logo Tulan frente dos olhos, a uns escassos palmos da sua cara. Recuou e saltou da cama para fora. De sbito lembrou-se do peixeiro e desejou que ele j tivesse passado e ela estivesse de novo sozinha; mas disse para consigo: Hei-de safarme, vai ser uma chatice, ele vai de certeza rir-se da criatura, mas eu hei-de safar-me desta. Vestiu-se e enfiou a bata gasta e foi com a Tulan at cozinha. Depois de acender o lume foi at saleta e espreitou pela janela. L estava a furgoneta verde porta do Seven Stars e o gatarro preto (um gato que se podia ver comparado com aquela coisa que rilhava a orla da toalha nas suas costas) galopava com o chicharro na boca por entre os pilares vermelhos cheios de neve da entrada. E a furgoneta verde l foi rua abaixo, parando aqui e acol a vender o peixe s mulheres que saam para o frio com pratos brancos e narizes encarnados, parando e dando peixe aos gatos normais que miavam como gatos e esfregavam os seus costados bem felpudos nas botas do peixeiro; l foi rua abaixo at s portas da igreja, vigiada com uma apreenso crescente pela Sra. Miller por detrs das cortinas esverdeadas e manchadas, deu meia volta
e subiu at casa dela. A Sra. Miller olhou desesperada para Tulan, pegou no prato de esmalte e saiu l para fora. - Ento, Sra. Miller - disse o peixeiro pondo a mo na cancela j c est esse novo gato? A Sra. Milier olhou para as rvores e disse contidamente: - L chegar chegou, mas no nada o tipo de gato que eu esperava. Admira-me - disse ela de sopeto, preparando-o para o pior - que seja um gato. - pena, Sra. Miller, que no seja o que esperava - respondeu o peixeiro - mas talvez ainda no se tenha recomposto da viagem. - Ah, no - retorquiu a Sra. MilIer a pensar na toalha da saleta est bem, s que no tem nada o aspecto de um gato. Tamborilou no prato de esmalte e voltou a olhar para as rvores em silncio, mas o peixeiro ps-se a olhar por cima do ombro dela para a porta. Olhou para a casa e para a porta aberta e gritou com uma tal surpresa que ela at se assustou. - Mas, Sra. Miller, ela uma beleza! A Sra. Miller voltou-se e viu a Tulan, parecendo muito pequenina, a andar com o seu passo de bailarina de meias pretas em cima da neve, de orelhas escuras empinadas ao cheiro do peixe, de cauda escura fininha erguendo-se como um ponto de interrogao do seu torso magricela. A Sra. Miller olhou para ela e verificou pasmada que era realmente uma beleza. Agora todos os outros gatos lhe pareciam grosseiros e desajeitados. Mas no disse nada, apenas ficou a olhar para a Tulan, a tamborilar no prato de esmalte; e Tulan saltitou at ao peixeiro e lanou o seu grito de chamada. O peixeiro estava encantado; pegou nela ao colo e disse: - Sra. Miller, esta a gata mais bonita que eu jamais vi. A srio. Bendito seja, Sra. Miller, e ainda me estava a dizer que ficou desapontada com uma gata assim!? Que raa ? - siamesa - disse a Sra. Miller, apanhada de surpresa e ainda um bocado zangada. - Eu pensei que seria um gato grande, com uma majestosa cauda de plumas. - Santo Deus - exclamou o peixeiro. - Olhe-me para estes olhos azuis! Que que fazia com um plo comprido e sem ossos? D-ma, Sra. MilIer, se no a quiser. - Quero - retorquiu a Sra. Miller rapidamente -, hei-de habituar-me a ela, s uma questo de tempo. Olhou para Tulan, depois para o peixeiro e sorriu; olhando-o nos olhos por cima da cabea de Tulan como duas pessoas num filme que se olham por cima da cabea de uma criana apaziguada, a Sra. Miller fitou pela primeira vez o peixeiro de frente e viu que os seus olhos eram to azuis quanto os do gato; e, por seu turno, o peixeiro achou que os olhos do gato no eram mais azuis do que os dela. Tulan cheirou o peixe por cima do ombro dele e desatou a gritar. - Bom, Sra. Miller - disse ele virando-se para a furgoneta - vamos l ver de que que o gato gosta. Pegou num chicharro pelo rabo e aproximou-o da Tulan que se abraou a ele como um macaco e, segurando-o com as patas e com os dentes, baixou-o at ao cho. A Sra. Miller e o peixeiro ficaram ali na neve a verem o chicharro desaparecer num abrir e fechar de olhos. No havia dvidas de que Tulan estava encantada com o peixeiro. - O que que o seu marido diz de um gato assim? - perguntou ele de repente. A Sra. Miller esbugalhou os olhos to admirada como se tivesse sido a prpria Tulan a fazer a pergunta; nunca imaginara que ele fosse capaz de falar de outra coisa que no fosse de gatos, de peixe ou do
tempo. - No fao a mnima ideia - respondeu ela - porque ele no est c. - Est na tropa, presumo - retorquiu o vendedor. E a Sra. Miller respondeu: - possvel, se eles no forem l muito esquisitos; h trs anos que no lhe ponho a vista em cima e no gostava nada de o voltar a ver. - Lamento por si, Sra. Miller - disse o peixeiro -,lamento muito saber isso, mas todos ns cometemos erros. A Sra. MilIer olhou para a copa das rvores e, depois de uma pausa, disse: - Bem, vou para dentro. - Fique com mais um peixe para a gatinha bonita disse o peixeiro inclinando-se maravilhado para Tulan e colocando um chicharro enorme no prato de esmalte da Sra. MilIer - e na sexta-feira volto a ver a gata. Agora tenho assuntos a tratar aqui, Sra. Miller - disse ele, com o cotovelo sobre a cancela, vendo as duas a subir a rampa, a Sra. MilIer a arrastar as chinelas e Tulan saltitando atrs dela, miando, sacudindo as patas de trs. Tanto ele como a Sra. MilIer (em unssono) tinham-se esquecido dos dois arenques que a Sra. Milier viera comprar para o jantar. Ao aceitar Tulan, a Sra. MilIer descobriu tambm o significado da palavra trabalho. A obsesso de Tulan era definitivamente estar sempre em primeiro plano. No lhe agradava ficar esquecida horas a fio e depois receber uma festa e um prato de peixe de consolao; tinha de se estar sempre a falar com ela e a dar-lhe toda a ateno; detestava ficar sozinha. A Sra. Miller deu por si a fazer brincadeiras patetas nas escadas, dobrada a uns meros centmetros do cho, apanhando patadinhas na testa, ajogar com bolas de papel para que a Tulan as caasse, s corridas volta da sala sem praticamente tocar no cho. Em breve, como a Tulan desatava a chorar logo que ela saa, a Sra. Miller comeou a lev-la consigo s compras, embrulhada numa prega do casaco. As pessoas, crticas, chamavam-lhe o macaco da Sra. MilIer. Agora a Tulan dormia na cama com a cabea encostada ao pescoo da Sra. Miller, na almofada, e esta punha um bocadinho mais de creme de noite para a Tulan lamber. A Sra. MilIer era uma criatura pouco sentimental e meia desleixada e a companhia da Tulan agradava-lhe especialmente; era a coisa melhor, logo a seguir ao homem ideal, e at dava menos trabalho. O peixeiro ficava cada vez mais tempo debruado sobre a cancela s teras e sextas-feiras a conversar com elas; os presentes que trazia a Tulan eram cada vez maiores de tal modo que a Sra. MilIer no se admiraria se um dia o visse aparecer com um tubaro. - Tenho andado a pensar que um dia destes tenho de arranjar um gato como este, Sra. MilIer - disse ele. - V-lo s dois dias por semana, no chega. A Sra. Miller encostou o cotovelo ao poste podre da cancela e psse a olhar para um ponto acima da cabea dele. - O que que a sua mulher ia achar? - perguntou ela. E o peixeiro olhou para a Tulan com um chicharro quase do tamanho dela e respondeu: - No tenho nenhuma mulher em casa, e nunca tive. - Ento quem trata de si? - perguntou a Sra. Miller. E ele respondeu: - Ora, eu que trato de mim. Tanto se me d ter as coisas de uma maneira ou de outra - disse ele. - Um gato ou dois, muita comida e um bom foguinho e j me chega. - Tem razo - disse a Sra. Miller, enfiando os dedos entre as orelhas de Tulan. Olhou para ele com aquele seu cabelo oleoso a cairlhe para os olhos e sorriu sorrateira, mostrando-lhe os dentes brancos.
- Chega a qualquer um, de certeza - disse ela. A neve derreteu e Tulan duplicou de tamanho e s vezes o peixeiro ficava a conversar durante uma hora ou mais. Sempre que Tulan estava demasiado cheia de peixe para pedir mais, sentava-se no ombro dele e lavava o seu focinho oriental e a Sra. MilIer recostava-se no poste, que continuava podre e que rangia com o seu peso, e conversavam de gatos at terem a garganta seca. O tempo que a furgoneta demorava parada porta da casa era objecto de grande falatrio em toda a aldeia; mas nunca a Sra. Miller nem o peixeiro se aproximaram de casa mais que uma jarda, e portanto no havia mais nada que pudesse alimentar esse falatrio; e, quanto a si, a Sra. Miller sentia-se segura e tanto se lhe dava que falassem como no. Agora, fixando os olhos num ponto ligeiramente acima da cabea do peixeiro, e olhando para as rvores alinhadas no cimo do monte, ela reparou que estas estavam escuras, e tinham a cor avermelhada da Primavera que se aproximava. - com este tempo que eu gosto de passear - disse ela ao peixeiro. E este retorquiu rapidamente, como quem estava s espera daquilo: - Quer dar uma volta na furgoneta? A Sra. Miller continuou a fixar as rvores em silncio e finalmente disse: Era engraado, para variar; para onde vai daqui? - Terei muito prazer em lev-la onde quiser - respondeu o peixeiro - mas, se quiser, podemos levar a Tulan para ela ver os meus gatos. No l uma casa muito bonita, a minha, mas ela havia de gostar. - Isso tambm havia de ser uma mudana interessante para ela disse a Sra. Miller olhando-o cautelosa e sentindo-se contente com o que via. L foi chinelando rampa acima at cozinha, vestiu o casaco, tirou da chaleira que estava na prateleira dezoito libras e nove pence e a caderneta de poupana que se encontrava no meio de uma enorme confuso por detrs da calandra, enfiou tudo numa carteira suja, saiu e fechou a porta atrs de si. O peixeiro continuava debruado sobre a cancela e Tulan sentada no seu ombro comeava a miar por mais chicharros j que a primeira dose tinha sido h uma hora e ela j tinha espao para comer mais. -Julgo que ela nunca andou de carro - disse o peixeiro enfiando-a debaixo do brao. - Ento, est toda a gente pronta? - perguntou ele olhando para a Sra. Miller. E a Sra. Miller respondeu: - Tudo pronto - e fechou a cancela com um estrondo que partiu definitivamente o poste. A Sra. Miller sabia, e o peixeiro sabia, que no voltaria ali a no ser para arrumar definitivamente todos os assuntos; mas ningum disse nada. - Tenho aqui um ptimo stio para a gatinha bonita - disse o peixeiro e ps a espantada Tulan na parte de trs da furgoneta junto das espadilhas, dos chicharros e dos arenques, e fechou as portas. - um stio ptimo, no h dvida - disse a Sra. Miller que, sentando-se a seu lado na parte da frente, numa almofada toda amarrotada e a cheirar a peixe, se ps a olhar para Tulan pelo postigo no momento em que passavam frente do Seven Stars e saiam da aldeia. Trad. M. J. D.
A BANDEIRA AZUL Kay Hill A sorte, calculada pelo ponteiro dos minutos de um relgio, medida por uma rgua de escola, e sem mais qualquer outra razo por detrs seno a absurda ferocidade do trovo, capaz de mergulhar, sem qualquer aviso, um estbulo de cavalos de corrida no caos. E no entanto dificil de acreditar, mesmo perante o juramento de um grupo de pessoas reconhecidamente inteligentes e seguramente honestas, que uma criaturinha insignificante, descrita no dicionrio como um pequeno quadrpede carnvoro domstico, que caa ratos, etc., perseguido pelos ces e, segundo se diz, com nove vidas, seja capaz, por artes inimaginveis das quais no se exclui a perspiccia, de prever o futuro de maneira a virar a sorte de uma cavalaria. Todo e qualquer estbulo de cavalos de corrida , evidentemente, um alfobre de supersties; e no de espantar que o da National Hunt, perante os problemas adicionais das cercas, das vedaes e do mau tempo, seja o pior de todos. Pegas, funerais e at um carburador entupido quando se vai para uma reunio, so tidos pelos rapazes do estbulo como uma desculpa para o fracasso desse dia dos cavalos que esto a seu cargo. Talvez o treinador perceba melhor as coisas. O velho Dasman, por exemplo, talvez tenha aprendido tanto sobre corridas que j deixou de ser genuno, excepto naquelas raras ocasies em que est bem-disposto; ou a gua baia que, tendo perdido um pouco de velocidade com a idade, apenas capaz de ganhar uma corrida de trs milhas se o passo for suficientemente lento para ela acompanhar. Assim, h que aproveitar ao mximo o material que se tem mo, e h sempre a possibilidade - com sorte - de se ganhar uma corrida. H alturas, contudo, em que mesmo um treinador sente que os golpes do destino vm de algo que escapa totalmente ao seu controlo. Os nervos e o mau humor tpicos da primeira noite e da vspera de qualquer corrida, transformam-se num pavor inusitado. E esse sentimento espalhase por toda a cavalaria; mesmo quando os cavalos esto convenientemente alimentados, lhes dada a gua necessria, se encontram a descansar, e todos os perigos foram afastados, a inspeco da noite pressagia sempre uma desgraa latente. Com este receio em mente, e depois de completada a ltima ronda, Donald Forster encontrou-se na baia vazia do Chantry, escuta, como se (embora as suas mos e os seus olhos lhe dissessem que estava tudo bem) qualquer alterao do ritmo confortado da rao da noite viesse alertar os seus nervos supertensos para um qualquer problema jamais imaginado. Um rato restolhou e chiou no meio da palha debaixo dos seus ps e fora do crculo de luz lanado pelo foco que trazia na mo, e a sua sombra ergueu-se enorme e distorcida por cima da manjedoura. No valia de nada, pensou ele, ficar ali a matutar. Teria sido muito melhor se tivesse ido dar uma volta com a Nan; se se tivesse misturado com a multido e tentado esquecer tudo aquilo. claro que no iria conseguir isso, com aquela corrida sempre a aparecer-lhe frente dos olhos como um placard de notcias a desfilar continuamente frente de um pblico enjoado. Era como se os estivesse a ver ali frente dele: Chantry e a favorita lanados, com duas cercas para transpor. A favorita de freio nos dentes e pressionada, e o Mike, ojovem jquei que montava o Chantry, ia a passar um mau bocado. Uma voz gritava das bancadas, aflita: Trs milhas de pura agonia. O facto de ser dono da favorita no era, obviamente, nenhuma consolao.
Com esta certeza de que Chantry era de confiana, Donald deu por si com os culos a tremer, todos embaciados nas mos. Ouviu a barreira estalar quando a favorita arrancou; viu-a, quando a vista se desanuviou, estraalhar a sebe no meio de uma chuva de rebentos de vidoeiro, cair de joelhos do outro lado e debater-se na lama revolvida para se pr em p; enquanto Chantry, completando o arco num salto perfeito, com a sua penugem branca ressaltando por momentos contra o fundo escuro da cerca, caa-lhe em cheio em cima e ela rolava exausta a seus ps. Houve uma confuso de cavalos e de jqueis - e depois aquele silncio terrvel, o agitar frentico de uma bandeira junto ao obstculo, a confirmao do desastre; e a multido, instvel e subitamente odiosa, aplaudia o vencedor na meta. Do outro lado do estbulo, a casa escurecida iluminou-se de repente, inundando o pavimento molhado e desenhando uma alegre passagem oblonga, chamando Donald realidade. Nan tinha chegado; e, pelos sons que se ouviam na cozinha, trazia algum com ela. Ainda bem, pensou ele. Tudo o que pudesse evitar que ele descarregasse em cima dela, como vinha a acontecer h uma semana, era bom. Mesmo as coisas que amava nela o enfureciam. A sua coragem e honestidade, a sua recusa em falar ou em remexer no passado; at mesmo aquela expresso de desafio que ela tinha e que o havia encantado e fascinado a principio, como se ela conhecesse - e onde ia buscar foras - um mundo onde ele nunca conseguiria entrar. E contudo, aqueles traos no tinham nada de fluido nem de indefinido; ela tinha uma estrutura ssea to perfeita que at a sua mo desajeitada conseguira fazer uns esboos reconhecveis dela em papis mata-borro, em blocos de notas, nas costas das apostas e em envelopes; enfeitiado por aquela qualidade que ainda o perturbava. A velha Lady Galtres, essa velha catatua vivida, quase que acertara no vinte no Vero passado na festa do tenis. - Adoro ver a Nan disfarada - dissera ela - com um casaquinho de malha, de leno na cabea e olhos que mais parecem os da serpente do Nilo. E aproximara-se da verdade - bem morninho. Calma - pensou ele - se continuo assim ainda acabo a acreditar em duendes e em todas essas tretas irlandesas! Pegando no foco e fechando a porta da baia atrs de si, atravessou o ptio em direco a casa e, parando por momentos encadeado com a luz da cozinha, ficou surpreso por ver que Nan estava sozinha. Estava ajoelhada frente da lareira a conversar e a rir, com o cabelo escuro caindo-lhe sobre a cara. Olhando-a nos olhos, de um cesto que coroava a lareira, estava um gatito branco. - Um gatito branco - exclamou ele subitamente enfurecido. - Que diabo vais fazer com isso? - No branco - respondeu ela - um siams, com um pedigree que at tu gostavas de ter. - mesmo a melhor altura para trazeres uma coisa dessas para c disse ele - com um moo mais que supersticioso em relao a gatos e da maneira que as coisas andam entre ns. H-de ter uma rica vida, e curta, se o Shover o v. Sabes muito bem qual o destino dos gatos que nascem aqui no estbulo, vo direitinhos para dentro do balde! - Vai ter uma rica vida - disse Nan com firmeza - e tem os olhos da cor da bandeira do vencedor. A sorte virou, Donald e olha que eu nunca me engano! A Minette veio trazer-nos sorte. - Santo Deus! - exclamou ele. - Ai agora os gatos tambm vm de Frana? - Ela veio para ficar - respondeu Nan - e a sua hoinnima tambm
vinha de uma ptima famlia; era irm de Carlos II e chamavam-lhe A Rainha das mil festas; portanto a gatita deve saber aplaudir um vencedor. Aquilo mantinha-se sentado no cesto a olhar para a ala sem demonstrar qualquer receio. Donald fixou aqueles inacreditveis olhos azuis e ao faz-lo teve a sensao espantosa de que estava perante algum que j havia visto. De repente aquilo fechou os olhos e, abrindo a boca, lanou um grito agudo, lamentoso e arrastado; como se um tocador tivesse adoptado a sirene do Queen Mary. - A coisa tem fome - disse ele. - capaz de s gostar de caviar. Por amor de Deus, arranja-lhe qualquer coisa de comer, se for preciso, arrasa tudo procura do melhor isco que tivermos, mas despacha-te. Vou buscar a Maria ao Instituto. Nan suspirou de alivio quando a porta se fechou. Para dizer a verdade, ela estava um bocado assustada com aquela nova responsabilidade. Onde estavam as almofadas de seda, as carpetes fofas e todo o luxo que deveria servir de pano de fundo quela criatura extica? Tudo o que lhe podia oferecer era uma sala decrpita com um cho frio de tijoleira e umas mantas em cima das poltronas; e l fora, todos os perigos de uma cavalaria e, acima de tudo, o Shover. Pegando num foco, foi at despensa e procurou nas prateleiras a ver se encontrava qualquer coisa apetecvel. Uma lata de sardinhas, uma outra de bife, um bocado de natas, de certeza que havia de lhe agradar alguma coisa. Colocou tudo em pratinhos separados e transportou-os cerimoniosamente at sala. De repente ouviu um barulho de algo a estalar. A mesa da cozinha era uma bodega de bolachas de gua e sal e queijinhos. Deliciando-se com aquela refeio plebeia com uma gulodice descarada, o distinto hspede saudou-a calorosamente e depois, rematando o jantar com uma golada de gua do prato do co, voltou a trepar para o cesto, enrolou uma pata enfarruscada por debaixo do focinho, com um ar que deu imediatamente a Nan a ideia de estar perante uma seduo estudada, e adormeceu de imediato. A viso de uma tal inocncia, falsa ou no, levou Nan a cair num erro pelo qual haveria eventualmente de sofrer durante os anos de um curto tempo de vida. Pegando no cesto com a gatita a dormir, levou-o l para cima para o quarto. Quatro horas de sono no so suficientes para nenhum ser humano e so, seguramente, muito pouco para um marido enfurecido. Consciente de algo que se passeava para c e para l em torno da sua almofada, de um ronronar entusiasmado e de uma pata teimosamente insistente a afastar-lhe os lenis da cara, Nan aceitou a derrota. Esticada ao comprido a seu lado na cama, com a cabea enfiada por debaixo do queixo de Nan, o tiranete instalou-se finalmente para uma noite de luxo. Quando nasceu o dia, o quarto j estava vazio e a janela que dava para o jardim aberta de par em par. Nan correu escadas abaixo ao mesmo tempo que enfiava o roupo. - Se anda procura do gato - disse Martha com a familiaridade de quem j serviu duas geraes - no precisa de se preocupar. Est no muro do jardim a tomar o pequeno-almoo com os gatos do estbulo e com toda a gritaria que faz para entrar e para sair, tenho andado aqui numa roda-viva. - Mas ela no pode tomar esse tipo de pequenos-almoos - disse Nan. - Come comida muito diferente da dos outros gatos. - Pois olhe que est a comer - disse Martha - e da ltima vez que a vi estava a safar-se muito bem. V ver.
Nan escancarou a porta da frente e saiu para a manh molhada de incio de Primavera, dando a volta casa pelo jardim at ao muro que nascia da janela da cozinha. Os gatos do estbulo estavam sentados a uma distncia respeitosa das suas malgas de leite com sopinhas de po. Nigger, um gato velho e batido, com a sua orelha roda e o nariz lembrando o de um aristocrata romano devido s vrias mordidelas de rato, estendia timidamente uma pata em direco ao seu prato. Tal movimento foi acolhido por um ronco rabugento e, antes de Nan ter tempo de se mexer, Minette, cuspindo po e leite entre recriminaes, disparou uma pata calada com uma luva escura da ltima moda e esmagou a pata de Nigger em cima do seu petisco escolhido, espalhando sobre o seu focinho espantado a nica refeio do dia. - Bem - disse Martha quando o ladro era transportado so e salvo para dentro de casa, casa essa que ele parecia encarar como um edificio especialmente concebido para o acolher com todo o conforto - o que que eu lhe disse? No precisa de se preocupar com essa coisa a. Ela trata de si, e de ns tambm, se no me engano muito. - Martha - disse Nan - s um anjo. - Se sou - resmungou Martha - por estar aqui, gelada, e no por gostar dessa a. Espere at o Shover aparecer. Vai meter tudo na ordem. Shover, cujo verdadeiro nome j ningum recordava ou talvez nunca se tivesse sabido (a tal ponto que um velho amigo uma vez, ao telefonar para o estbulo a perguntar pelo Sr. Richardson, recebeu a resposta de que ningum trabalhava ali com aquele nome), adquirira aquela alcunha por ter sido, na sua juventude, chauffeur de um duque. Os rapazes do estbulo em grandes correrias pelo ptio, espalhando palha pelo cimento recm-varrido ou cavalgando com os joelhos encostados ao queixo a imitarem os seus heris do Turfe, apanhavam um raspanete com esta frase que no admitia resposta: - O Duque havia de estar aqui a ver isso. Aparentemente, no havia nenhum pormenor relativamente gesto do estbulo que escapasse ao duque, e no havia dvida que, segundo Shover, ele tinha passado todas as horas do dia ali plantado como um velho carvalho carcomido, no meio do ptio do estbulo. Quer o duque tivesse existido quer no, o certo que algum teria dado instrues a Shover para no se poupar nem a si nem aos seus subordinados. Era um homem baixo, encorpado, de olhos escuros e a passada rpida, tpica de um cavaleiro. Nunca ningum o vira de casaco, a sorrir em momentos de vitria, ou a queixar-se da derrota. Minette conheceu Shover no quarto dia. Esse momento inesquecvel foi testemunhado por Donald, a desfazer-se em riso mas sentindo um respeito crescente pela fora de vontade indomvel da gatita. Shover tinha desmontado e estava a levar o Steel Tram, o seu grande orgulho, para os estbulos depois do treino matinal. Acocorada porta da baia, com um obstinado olhar azul que parecia domin-la completamente, Minette no parecia nada disposta a sair dali. Shover avanou inflexvel por entre um matraquear de taces e bater de ps at que o cavalo, ao sentir que havia ali qualquer coisa de estranho, hesitou por momentos e depois, ligeiramente trmulo, l foi abrindo caminho, passo a passo, por cima do gato at que se precipitou com um resfolegar de terror porta adentro em busca de abrigo. A partir desta vitria, a atraco da Minette pelos estbulos era to forte que, durante algum tempo, Nan pensou que perdera a sua companhia; para logo ver essa companhia renovada e aumentada numa espcie de acordo subtil jamais testemunhado por nenhum estranho. Para grande gudio de Nan, Donald era tratado de uma maneira
totalmente diferente. Os seus gritos reclamando silncio, reforados por murros na mesa ou com um encontro, eram acolhidos com um terror simulado. A disciplina era apenas aparentemente reinstaurada j que a acusada, invisvel e muda, ficava espera do mais nfimo sinal de relaxamento na sua expresso ou no tom da sua voz. - Esta gata - disse Donald uma manh depois da cena habitual - uma dama vitoriana, s que neste caso ela quer ser ouvida e no vista. Foi repentinamente recompensado com um som levemente adulador que vinha de trs da sua cadeira favorita, seguido de um ligeiro movimento que revelou dois olhos com uma expresso lnguida como a de uma escrava olhando para o seu prncipe oriental. - Ela adora-te - disse Nan - de uma maneira absolutamente indecente. - Eu fao-lhe tudo, preparo-lhe a comida, lavo-lhe os pratos, abro e fecho portas, aguento-lhe as fanfarronices, e contudo, sempre que est c gente de fora, ela ignora-me e pe-se a exibir-se para ti. O pior quando as pessoas dizem: Os siameses so mesmo muito diferentes dos outros gatos e dedicados como ces. E h sempre um que responde: , so muito dedicados, mas de uma maneira subtil, diferente dos ces, e finalmente o que recebemos em troca um olhar indiferente e s vezes malfico. - Com essa no me enganas tu - exclamou Donald. - Apanhei-vos no outro dia desprevenidas quando estava a fazer as entradas da corrida. A gata tem uma vontade de ferro, imbatvel, isso que a caracteriza. Faz o que lhe d na gana, quando e como quer. Nessa noite ele olhara para dentro do quarto iluminado e vira Nan enroscada na poltrona, absorvida a ler um livro. A gata, calada, em perfeita harmonia com Nan, esticava uma patita por cima do brao de Nan, partilhando o virar das pginas. Nan olhava por instantes para baixo, sorria e, em resposta, recebia uma espcie de murmrio esquisito que Donald nunca ouvira em Minette, acostumado como estava barulheira tipo sineta com a qual ela costumava saudar as primeiras movimentaes familiares da manh. Enquanto as observava, viu-as trocarem um olhar que dizia muito mais do que qualquer palavra e depois voltarem a ficar em silncio. - Sabes o que se diz dela nos estbulos? - perguntou Donald vagarosamente, como se tivesse finalmente decidido revelar algo da maior importncia. - Que seja qual for a baia que ela escolhe, produz sempre um vencedor num prazo de quinze dias. Sei que um disparate. evidente que ela anda a mudar de terreno de caa, mas seja como for... - Primeiro ganhou o Dasman - disse Nan -, depois foi a vez da gua cinzenta. - A Minette esteve na baia do Dasman. Eu vi-a l disse Donald. Depois de ele ganhar, ela atravessou o ptio e foi para a baia da gua cinzenta. O Dasman ganhou mais duas vezes, mas isso no interessa. A gua ganhou na primeira vez, no estava preparada mas houve aquela confuso no fosso e... ganhou. A seguir a isso, a gata foi para a baia do lado para o de quatro anos e ele ganhou a corrida de obstculos vontade. - Onde que ela est agora? - perguntou Nan como se j conhecesse a resposta. - Est exactamente h quinze dias na baia do Steel Tram. E mais, dorme empoleirada em cima dele. E eu no sei como que uma criatura com unhas de prerodctilo trepa para cima de um puro-sangue em plena forma sem ser imediatamente trucidada. O cavalo adora-a; sopra-lhe para cima, como um aspirador, at os plos dela ficarem todos em p, e ela s ronrona. O Shover tambm sabe o que se passa. Apanhei-o a fazer-lhe
uma cama de feno no outro dia, para ela no sair da baia. Ele dizia-lhe - Uou, bicha, calminha, - como se estivesse meio amedrontado. Os moos chamam-lhe Ministra da Agricultura e das Pescas e todos eles, incluindo a aldeia em peso, acreditam que o cavalo vai vencer amanh na Corrida da Caa. - Ainda no te disse - acrescentou Donald - mas digo-te agora. O Steel Tram um cavalo dos diabos: ser um Aintree no prximo ano, se tudo correr bem. E h ainda outra coisa; a pista perto daqui, mas eu no vou arriscar. O Shover e eu estamos a preparar tudo para irmos esta noite com o cavalo, o que quer dizer que tu no podes l estar para o conduzir pista. preciso que fique c algum enquanto ns no estamos. - Est bem - disse Nan. - De qualquer maneira eu ficaria divididssima. Os gatinhos da Minette devem nascer no domingo. Imagina s, um siams para cada cavalo. - Quem dera - disse Donald. Depois do burburinho da partida ter desaparecido, Nan deixou-se ficar na cama tentando em vo dormir ou, pelo menos, tentando captar, no silncio da noite, essa certeza que por vezes a invadia antes de um acontecimento importante na sua vida. O luar entrava pela janela aberta com uma inquietante luz plida; e, vindo de uma das baias do outro lado do ptio, ouviu o pisar nervoso de um cavalo. Ouviu-se um restolhar de folhas de rvore l fora, um rudo surdo, e um gato fantasmagrico, fosforescente e sinuoso como uma cavala num mar estival, saltou suavemente do luar para cima da cama. Sem fazer qualquer som nem saudao, aninhou-se sob a proteco do brao de Nan como se o medo no tivesse qualquer poder dentro daquele crculo. A manh trouxe a Nan a sensao de que tanto ela como Minecte caminhavam por um tnel escuro em direco a uma luz intensa. Cada uma se ocupou, sua maneira, das tarefas corriqueiras como que para protelar a hora marcada. Minette, rasgando pedaos do Calendrio das Corridas, transformou o seu cesto em algo de parecido com o Epsom Dawns num Dia de Derby. Nan, indo buscar os seus utenslios de jardinagem, comeou a tirar as ervas daninhas do canteiro que se encontrava junto porta da entrada, bem pertinho de casa, atenta a qualquer rudo vindo de dentro. A relva) aquecida pelo sol da Primavera, exalava um cheiro a turfa esmagada, lembrando-lhe de imediato a pista de corrida. Era como se estivesse a ver as colinas l atrs, com as sombras das nuvens em disparada afastando-se em direco Muralha Romana, formando um anfiteatro que acolhia a cor e o barulho de uma corrida. O seu lugar favorito na cerca, de onde podia esticar a mo e tocar nos cavalos medida que eles passavam pela bancada dos juizes, era bem longe da confuso histrica dos corretores de apostas. Donald passava sua frente, circunspecto, absorto, com uma seriedade nada prpria da sua idade, sem a ver. Como um espanhol, pensava ela, um matador; pois, tal como um toureiro, preparava-se para um esforo fsico extremo, no qual o crebro desempenhava um papel de clarificao e o peso e equilbrio do passo e da endurance do animal representavam a medida da sua percia. Para alm de tudo isso, restava ainda a eventualidade de ficar para sempre aleijado e at o risco da morte. O sol desapareceu do jardim e comeou a elevar-se do solo uma aragem, reminiscncias do Outono, to fria quanto a apreenso que sentia. Lentamente, juntando as ervas daninhas que recolhera, receando regressar a casa, Nan apercebeu-se de repente de que se sentia
totalmente relaxada. Ficou parada por momentos escuta e l longe, para alm da aldeia, ouviu o soar prolongado de uma trompa a aumentar de volume, reforado pelo rolar de um veculo pesado na estrada. Apareceram ento uns faris no porto e, quando Nan correu para a cabina do condutor e olhou para a cara, inexpressiva e sem sombra de um sorriso de Shover, teve a certeza de que o vencedor estava a chegar a casa. Seguiu o homem e o cavalo quando estes atravessaram o ptio e ali ficou a olhar para eles enquanto Shover passava a mo pelas preciosas patas de Steel Tram. - Est ptimo - disse ele. - Podia recomear a corrida. Quando o trouxe estava que nem conseguia apagar uma vela. Sa logo que pude, aparecem sempre uns amigos da ona quando se tem um vencedor como este, e deixei o patro ficar at ao fim. E olhe que ele no estava nada contente. Fez uma boa corrida; foi o primeiro a passar a primeira barreira para evitar sarilhos e depois avanou calmamente. Aquele tipo que ia no cavalo do Dobson partiu que nem uma seta, doida; e levou uma data deles atrs. Ao subirem a colina, o Steel Train e a favorita estavam em quarto, no stio onde a pista comea com as curvas e quando apareceram da primeira vez, o capito e todos os que vinham frente, vinham agora atrs e alguns tinham cado. Havia um ou dois cavalos solta a atrapalhar, mas desapareceram quando passaram frente do paddock. Na segunda subida da colina, o patro passou para terceiro lugar e quando comearam a descer para a mata, os que vinham frente desembestaram; ficaram apenas os trs e os outros continuaram a fazer uma corrida parte. Ao sair do fosso, ele deve ter deixado o cavalo descansar um bocado. Eu no tinha binculos e portanto no conseguia ver se ele estava cansado ou no, o que me enervou um bocado. Um tipo atrs de mim desatou aos berros: Anda l beleza, o Steel Tram que vem ali que nem uma locomotiva e logo a seguir ele j tinha saltado a ltima barreira e ia com dois comprimentos de avano e estava a aumentar a vantagem at que passou a meta de orelhas empinadas. - Parece que tenho de te dar os parabns - disse Nan - por todo o trabalho que tiveste e por acreditares nele mesmo depois de todos os revezes que sofremos. Quem sabe - acrescentou ela s para se meter com ele - a gata tambm deu uma ajudinha... - a melhor caadora de ratos que jamais aqui apareceu - exclamou Shover, relutante. - Basta ver um no meio de um palheiro que ela mergulha imediatamente e caa-o num abrir e fechar de olhos, e lambe-se por mais. Um som muito dbil f-los olharem para um dos cantos da baia. Avanando com uma lanterna de cavalaria, Shover afastou com uma forquilha um pedao de palha e recuou horrorizado. Regalada, no xtase sem-vergonha da maternidade, olhando-os com um orgulho descarado, Minette revelou uma fila de gatinhos pretos que nem carvo, alinhados tipo leites ao longo dos seus flancos. - Ora esta! - exclamou Shover spero, deixando contudo que um leve sorriso reservado para os potros recm-nascidos suavizasse, por momentos, as suas feies. O Duque despachava-os a todos. No havia de deixar que um dia assim acabasse em tragdia. Trad. M. J. D.
A HISTRIA DE WEBSTER P. G. Wodehouse Gatos no so ces! S h um lugar no mundo onde se podem ouvir verdades deste tipo lanadas displicentemente no meio de uma conversa e esse lugar o bar do Angler Rest. Foi a, estvamos ns todos sentados volta da lareira, que um pensativo Copo de Cerveja proferiu a afirmao acima registada. Embora at quele momento a conversa estivesse a incidir sobre a Teoria da Relatividade de Einstein, as nossas mentes ajustaram-se rapidamente a esse novo tpico. Uma frequncia regular das sesses nocturnas s quais o Sr. Mulliner preside com tanta dignidade e inteligncia tendem a criar em ns uma grande agilidade mental. Lembrome de uma discusso no nosso pequeno crculo sobre o Destino Final da Alma que, em quarenta segundos, se transformou numa polmica sobre a melhor maneira de manter tenro o presunto. - Os gatos - continuou o Copo de Cerveja - so uns egostas. Tratamos deles semanas a fio, satisfazemos-lhes todos os caprichos e depois, vo eles, e abandonam-nos s porque encontraram uma casa onde o peixe mais frequente. - O que eu tenho contra os gatos - disse uma Limonada, falando com ar ressentido como se tivesse queixas pessoais - no podermos confiar neles. Falta-lhes honestidade e no fazem jogo limpo. Temos um gato, chamamos-lhe George ou Thomas, tanto faz, at aqui, tudo bem. E depois, uma bela manh, acordamos e encontramos seis bebs gatos na caixa dos chapus e l temos de reabrir o caso, analisando-o por um ngulo completamente diferente. - Se querem saber qual o problema com os gatos disse um homem de cara vermelhusca e olhos vidrados que estava a bater na mesa pedindo o seu quarto whisky - no terem qualquer tacto. esse o problema deles. Estou a lembrar-me de um amigo meu que tinha um gato. Gostava mesmo dele, l isso gostava. E que aconteceu? Qual foio resultado? Uma noite voltou para casa bastante tarde e estava a tentar abrir a porta com o saca-rolhas e, imaginem, o gato escolheu esse preciso momento para saltar da rvore em que estava empoleirado para as costas dele. Falta de tacto! O Sr. Mulliner abanou a cabea. - Estou de acordo com tudo isso - disse ele - mas, na minha opinio, vocs ainda no chegaram ao cerne da questo. A verdadeira objeco maioria dos gatos o seu insuportvel ar de superioridade. Os gatos, como classe, ainda no perderam o snobismo de terem sido adorados como deuses no Antigo Egipto. Isto torna-os demasiado propensos a arvorarem-se em crticos e censores dos frgeis e perdidos seres humanos cuja sorte partilham. Olham-nos com ar de desdm. Analisam-nos com preocupao. E, num homem sensvel, isto s vezes causa efeitos desastrosos e pode induzir complexos de inferioridade gravssimos. engraado que a conversa tenha sido desviada para este assunto - disse o Sr. Mulliner, bebericando o seu whisky com limo porque esta mesma tarde estive a pensar no estranho caso do filho do meu primo Edward, o Lancelot. - Eu conheci um gato... - comeou um Fino. - O filho do meu primo Edward, o Lancelot - continuou o Sr. Mulliner - era, na poca de que estou a falar, um garboso jovem de 2 primaveras. rfo de tenra idade, tinha sido criado em casa do tio Theodore, o santo dicono de Bolsover; e foi um imenso choque para aquele bondoso homem quando Lancelot, ao chegar maioridade, escreveu
de Londres a comunicar que tinha alugado um estdio em Bott Street, Chelsea, e que ia ficar na metrpole e tornar-se artista. O dicono tinha uma fraca opinio dos artistas. Como membro proeminente do Comit de Vigilncia de Bolsover, tinha tido recentemente o desagradvel dever de assistir a uma sesso privada do super-superfilme Paletas da Paixdo; e respondeu comunicao do sobrinho com uma carta vibrante em que sublinhava a grande pena que lhe fazia ver algum da sua carne e sangue enveredar deliberadamente por uma carreira que, mais tarde ou mais cedo, o levaria inevitavelmente a pintar princesas russas deitadas em divs, seminuas, abraadas a jaguares domesticados. Instava Lancelot para que regressasse a casa e seguisse a carreira eclesistica enquanto ainda era tempo. Mas Lancelot estava decidido. Lamentava a discrdia que se instalara entre ele e um parente que sempre respeitara mas, diabos o levassem se voltava para um ambiente onde a sua individualidade sempre fora abafada e a sua alma amarrada por grilhetas. E, durante quatro anos, reinou o silncio entre tio e sobrinho. Durante esses anos Lancelot fez progressos na profisso que escolhera. No momento em que comea esta histria, as perspectivas que tinha sua frente pareciam brilhantes. Estava a pintar o retrato de Brenda, filha nica do Sr. e da Sra. B. B. Carberry-Pirbright, residente no n.o 11 de Maxton Square, South Kensington, o que equivalia a trinta libras sonantes contra a entrega. Tinha aprendido a cozinhar ovos com presunto. Dominava praticamente a arte da guitarra havaiana. E, alm disso, estava noivo de uma jovem e destemida poetisa vers libre, de seu nome Gladys Bingley, mais conhecida por a Doce Cantora de Garbidge Mews, Fulbam - uma rapariga encantadora que parecia um limpacanetas. Para Lancelot a vida era algo de pleno e belo. Vivia alegremente no presente sem pensar minimamente no passado. Mas bem verdade que o passado est inextricavelmente misturado no presente e que nunca se sabe quando detonar a bomba ao retardador que nos colocou debaixo dos ps. Uma bela tarde, quando Lancelot estava a introduzir certas alteraes ao retrato de Brenda Carberry-Pirbright, a noiva entrou na sala. A visita no era inesperada, j que Gladys ia viajar naquele dia para passar trs semanas no Sul de Frana e prometera passar l em casa a caminho da estao. Lancelot pousou o pincel e olhou para ela com um intenso afecto, pensando pela milionsima vez que a adorava at mais pequena mancha de tinta no narizito dela. Ali porta, de p, com o cabelo espetado em todas as direces como o de um espantalho, era uma imagem que falava ao mais ntimo da sua alma. - Ol, Rptil! - disse-lhe amorosamente. - Ol, ol Verme! - disse Gladys, com uma devoo virginal a brilhar por detrs do monculo que usava no olho esquerdo. - S c posso ficar meia hora. - Ora, meia hora depressa passa - disse Lancelot. - Que trazes a? - Uma carta, seu burro! Que pensavas que era? - Onde a encontraste? - Encontrei o carteiro porta. Lancelot pegou no envelope e examinou-o. - Bolas! - disse ele. - O que ? - do meu tio Theodore. - No sabia que tinhas um tio Theodore. - Claro que tenho. H anos que o tenho. - Porque que ele te escreveu?
- Se quiseres ter a bondade de ficar calada durante dois segundos, se que sabes como se faz tal coisa - disse Lancelot - talvez te possa dizer. E, numa voz clara que, como a de todos os Mulliners, mesmo dos ramos mais afastados, era lindamente modulada, Lancelot leu o seguinte: The Deanery Bolsover, Wilts Meu caro Lancelot, Como, com certeza, j viste no teujornalda Igreja ofereceram-me e aceitei o Bispado de Bongo-Bongo, na frica ocidental. Parto imediatamente para assumir os meus novos deveres que, tenho f, Deus h-de abenoar. Nestas circunstncias torna-se necessrio encontrar um bom lar para o meu gato Webster. Infelizmente est fora de questo ele acompanhar-me, j que os rigores do clima e a falta de confortos bsicos bem poderiam minar uma constituio que nunca foi robusta. Envio-o portanto para a tua morada, meu querido sobrinho, num cesto forrado, na convico de que sers um anfitrio bondoso e atento. Com cordiais desejos de felicidade. O teu tio muito amigo, Theodore Bongo-Bongo. Durante alguns instantes, aps a leitura desta comunicao, pairou no estdio um silncio pensativo. Finalmente Gladys falou. - Oh, que grande lata! - disse ela. - Eu, se fosse a ti, no aceitava. - Porque no? - Que queres tu fazer de um gato? Lancelot ps-se a pensar. - verdade - disse ele - que, se pudesse escolher, preferiria no ver o meu estdio transformado numa gataria ou num caixote do gato. Mas pensa nas circunstncias que so especiais. As relaes entre o tio Theodore e eu, nestes ltimos anos, tm sido um tanto ou quanto tensas. Na verdade, pode at dizer-se que nos separmos de candeias s avessas. Parece-me que ele quer fazer as pazes. Eu descreveria esta carta mais ou menos como sendo um ramo de oliveira. Se as coisas me correrem bem com o gato no ficarei em situao de, mais tarde, me abotoar com uma bela maquia? - rico, esse gajo? - perguntou Gladys, interessada. - Extremamente. - Ento - disse Gladys - considera sem efeito as minhas palavras. Um cheque repolhudo vindo de um amante de gatos agradecido era ouro sobre azul. Ainda podamos casar este ano. - Exactamente - disse Lancelot. - Claro que essa uma perspectiva realmente atroz; mas j agora, como resolvemos faz-lo, quanto mais cedo despacharmos a coisa melhor. - Sem dvida. - Ento, est resolvido. Aceito ficar com o gato. - a nica coisa a fazer - disse Gladys. - Entretanto podes emprestar-me um pente. Ser que tens um objecto desses no teu quarto? - Para que queres tu um pente? - Apanhei com sopa no cabelo ao almoo. No demoro nada. Gladys saiu da sala e Lancelot, voltando a pegar na carta, descobriu que no tinha lido a continuao no verso. Era do seguinte teor:
P.S. Ao instalar o Webster em tua casa move-me um outro motivo que no o simples desejo de ver o meu fiel amigo e companheiro decentemente tratado. Tanto de um ponto de vista moral como educativo, estou convencido de que a companhia do Webster ser para ti de um valor inestimvel. Atrevo-me a pensar que, de facto, a sua chegada ser um ponto de viragem na tua vida. Vivendo como vives, incessantemente no meio de uma bomia depravada e imoral, encontrars neste gato um exemplo de uma elevada conduta que s poder agir como antdoto taa do veneno da tentao que, sem dvida, constantemente erguida aos teus lbios. P.P.S. Leite s ao meio-dia e peixe nunca mais de trs vezes por semana. Estava ele a ler estas palavras pela segunda vez quando soou a campainha da porta. Era um homem com um cesto na mo. Um miado discreto, vindo l de dentro, revelou o seu contedo e Lancelot, levando o cesto para o estdio, cortou as cordas que o amarravam. - Ei! - gritou ele, porta da sala. - Que ? - gritou l de cima a sua prometida. - Chegou o gato. - Est bem, j deso. Lancelot voltou para o estdio. - Ol Webster! - disse alegremente. - Como vai o meu amigo? O gato no respondeu. Estava sentado de cabea baixa, fazendo a sua toilette, coisa que uma viagem por caminho de ferro torna to necessria. A fim de facilitar estas operaes tinha levantado a pata esquerda que se erguia, rgida, no ar. E ento, passou pela mente de Lancelot uma velha superstio que lhe fora transmitida por uma das amas que tivera na infncia. Se, tinha dito essa mulher, puxares pela pata de um gato quando esta est erguida e pedires um desejo, esse desejo realizar-se- dentro de trinta dias. Era uma ideia agradvel e Lancelot achou que podia muito bem pr prova a teoria. Assim, avanou cautelosamente e estava prestes a estender a mo para puxar quando Webster, baixando a pata, se voltou e ergueu os olhos. Olhou para Lancelot. E, de sbito, com um choque, este apercebeuse da imperdovel liberdade que estava a pontos de tomar. At quele instante, embora o P.S. da carta do tio o devesse ter prevenido, Lancelot Mulliner no tinha tido qualquer suspeita sobre o tipo de gato que acolhera em sua casa. Agora, pela primeira vez, vira-o tal como ele era. Webster era muito grande e muito preto e muito sereno. Transmitia a impresso de ser um gato com srias reservas. Descendente de uma longa linhagem de antepassados eclesisticos que sempre haviam cortejado sombra das catedrais e dos muros dos palcios episcopais, tinha aquela atitude delicada que se v nos altos dignitrios da igreja. Os seus olhos eram claros e firmes e pareceu ao jovem que o penetravam at s razes mais profundas da alma, enchendo-o de uma sensao de culpa. Uma vez, havia muitos anos, na sua infncia turbulenta, Lancelot, que estava a passar as frias de Vero no presbitrio, chegou a tais extremos, custa de cerveja e de maus instintos, que se atrevera a disparar, com a sua espingarda de presso de ar, contra a perna de um cnego e descobrindo, ao dar meia volta, que um arquidicono que viera de visita e estava mesmo por trs dele - havia testemunhado todo o incidente. Aquilo que sentira, ento, ao encarar o arquidicono era o
que sentia agora sob o olhar silencioso de Webster que o mirava de alto a baixo. verdade que Webster no tinha erguido as sobrancelhas. Mas isso, achou Lancelot, devia-se ao simples facto de no as ter. Recuou, corando. - Desculpa! - murmurou. Houve uma pausa. Webster continuava a examin-lo firmemente. Lancelot recuou para a porta. - desculpa-me... com licena... s um instante - tartamudeou ele. E, escapando-se da sala, correu escada acima. - Ouve - disse Lancelot. - O que ? - perguntou Gladys. - J no precisas do espelho? - Porqu? - Bom... que... acho que... - disse Lancelot - acho que preciso de fazer a barba. A rapariga olhou para ele espantada. - Fazer a barba? Mas ainda anteontem a fizeste! - Eu sei. Mas de qualquer forma... quer dizer... acho que... por uma questo de respeito... quer dizer... aquele gato... - Que que tem o gato? - Bom, parece-me que ele est a contar com isso. Claro que no disse nada, mas sabes,... v-se pelos modos dele. Pensei fazer a barba e talvez mudar-me, pr o fato de flanela azul. - Se calhar, ele tem sede. Porque no lhe ds leite? - Achas que posso? - disse Lancelot com ar de dvida. - Quer dizer, eu nem sequer o conheo bem. - Fez uma pausa. - Olha l, mida... - continuou com uma leve hesitao. - Sim? - Sei que no te zangas se eu disser isto, mas a verdade que tens umas pintas de tinta no nariz. - Claro que tenho. Tenho sempre pintas de tinta no nariz. - Bem... no achas que... se desses uma esfregadela com pedrapomes... quer dizer... sabes como so importantes as primeiras impresses... A rapariga escancarou os olhos. - Lancelot Mulliner - disse ela - se pensas que vou pelar o meu nariz at ao osso s para agradar a um gato tinhoso... - Chiu! - exclamou Lancelot, muito aflito. - Ora deixa-me ir l abaixo v-lo - disse Gladys em tom petulante. Quando entraram no estdio, Webster estava a olhar com ar de sereno desdm para uma ilustrao de La Vie Parisienne que ornamentava uma das paredes. Lancelot apressou-se a ir arranc-la. Gladys olhou para Webster com ar de poucos amigos. - Ento este o sujeitinho? -Chiu...! - Se queres saber a minha opinio - disse Gladys - acho que este gato anda a viver bem demais. Anda a tratar-se grande e francesa. Se fosse a ti cortava-lhe a rao. No fundo, a critica de Gladys no deixava de ser justa. No havia dvida de que Webster possua mais do que um vestgio de embonpoint. Tinha aquele ar de bem estar imponente que se associa a quem vive junto s catedrais. Mas Lancelot encolheu-se, pouco vontade. Tinha esperado tanto que Gladys causasse boa impresso e ali estava ela, logo no primeiro encontro, a dizer coisas sem o mnimo tacto. Estava ansioso por explicar a Webster que aquilo era apenas uma atitude. Que, nos crculos bomios dos quais ela era um dos mais belos
ornamentos, aquele tipo de ironia bem-humorada no s era aceite como era apreciada. Mas era tarde demais. O mal estava feito. Webster deu meia volta com ar ofendido e retirou-se silenciosamente para trs do sof. Gladys, numa total inconscincia, estava a preparar-se para partir. - Ora bem, meu velho - disse ela em tom ligeiro. - At daqui a trs semanas. Calculo que, mal eu vire as costas, tu e esse gato vo direitos para o engate. - Por favor! Por favor! - gemeu Lancelot. - Por favor! Tinha visto a ponta de uma cauda preta a espreitar por detrs do sof. Oscilava levemente e Lancelot lia nela como num livro aberto. Com uma sensao agoniante de desespero, percebeu que Webster tinha julgado instantaneamente a sua noiva e a condenara como frvola e sem valor. A uns dez dias depois desta cena, Bernard Worple, o escultor neovorticista, que estava a almoar no Puce Ptarmigan, encontrou Rodney Scollop, o jovem e prometedor surrealista. E, depois de falarem de arte durante um bocado, Worple perguntou: - Que que se passa com o Lancelot Muiliner? Andam por a a contar uma histria perfeitamente disparatada, que o viram de barba feita a meio da semana No verdade, pois no? Scollop estava com um ar grave. Ele prprio tinha estado a pontos de falar de Lancelot porque gostava do rapaz e estava altamente preocupado com ele. - perfeitamente verdade - disse. - Parece impossvel! Scollop inclinou-se para a frente. O seu rosto fino mostrava-se perturbado. - Posso dizer-te uma coisa, Worple? - O qu? - Sei que um facto comprovado - disse Scollop - que agora o Lancelot Mulliner faz a barba todas as manhs. Worple afastou o esparguete que estava a entranar roda da cabea e, atravs do buraco entre os fios, olhou para o amigo. - Todas as manhs? - Todinhas. Eu prprio o fui visitar outro dia e l estava ele, todo bem vestido de sarja azul e barbeado de fresco. E mais. Tive a ntida impresso de que ele ps p-de-talco depois de ter feito a barba. - No pode ser! - Podes crer. E queres que te diga mais? Havia um livro aberto em cima da mesa. Ele bem tentou escond-lo, mas no foi a tempo. Era um daqueles livros sobre boas maneiras. - Um livro sobre boas maneiras! - Comportamento delicado por Constance, Lady Bodbank. Worple tirou um fio de esparguete que tinha ficado preso orelha esquerda. Estava profundamente agitado. Tal como Scollop gostava muito de Lancelot. - S lhe falta vestir-se de cerimnia para o jantar! - exclamou. - Tenho boas razes para pensar - respondeu Scollop gravemente que ele j se veste para jantar. Pelo menos algum muito parecido com ele foi visto a comprar furtivamente trs colarinhos engomados e uma gravata preta nos Hope Brothers em King's Road, na tera-feira passada. Worple empurrou a cadeira para trs e levantou-se com ar decidido. - Scollop - disse. - Tu e eu somos amigos do Mulliner. evidente, pelo que me dizes, que h influncias subversivas a agir sobre ele e que nunca ele precisou tanto da nossa amizade como agora. Porque no vamos visit-lo imediatamente?
- Era isso mesmo que eu ia sugerir - disse Rodney Scollop. Vinte minutos depois encontravam-se no estdio de Lancelot Mulliner e, com um olhar significativo, Scollop chamou a ateno do companheiro para o aspecto do dono da casa. Lancelot Mulliner estava bem vestido, com um certo requinte at, com um fato de flanela azul, de calas bem vincadas, e o seu queixo - reparou Worple, chocado brilhava, macio, luz da tarde. Ao ver os charutos dos amigos, Lancelot deu mostras inconfundveis de preocupao. - Tenho a certeza de que vocs no se importam de apagar os charutos - disse ele em tom suplicante. Rodney Scollop ergueu a cabea altivamente. - E desde quando - perguntou - que os melhores charutos de Chelsea, a quatro pence cada, no so suficientemente bons para ti? Lancelot apressou-se a acalm-lo. - No sou eu - exclamou. - o Webster, o meu gato. Por acaso sei que ele contra o fumo do tabaco. Tive de desistir do meu cachimbo por deferncia para com as opinies dele. Bernard Worple resmungou: - Ests a querer dizer-nos - disse desdenhosamente - que Lancelot Mulliner permite que um maldito gato lhe d ordens? -Chiu...! - gritou Lancelot, tremendo. - Se soubessem como ele detesta que se fale mal! - Onde est tal gato? - perguntou Rodney Scollop. - este o animal? - disse apontando para o ptio, para l da janela, onde um gatarrao com ar feroz, de orelhas roidas miava pelo canto da boca. - Santo Deus, no! - exclamou Lancelot. - Esse um gato vadio que aparece por aqui, de vez em quando, para almoar no caixote do lixo. O Webster completamente diferente. O Webster tem dignidade natural e uma grande compostura. O Webster daqueles gatos que se preza de estar sempre aprumado e cujos altos princpios e sublimes ideais lhe brilham nos olhos como a luz de faris. - E depois, de repente, com uma abrupta mudana de atitude, Lancelot foi-se abaixo e em voz abafada continuou: - Diabos o levem! Diabos o levem! Diabos o levem! Diabos o levem! Worple olhou para Scollop. Scollop olhou para Worple. - V, meu velho - disse Scollop, pousando suavemente a mo nas costas curvadas de Lancelot. - Somos teus amigos. Confia em ns. - Conta-nos tudo - disse Worple. - Que se passa? Lancelot teve um riso amargo, sem qualquer alegria. - Querem saber o que se passa? Ento oiam: estou dominado por um gato. - Dominado por um gato? - Nunca ouviram falar de casas onde quem manda a galinha? Pois, c em casa, quem manda o gato. E numa voz entrecortada contou a sua histria. A histria da sua vida com o gato desde que este entrara no estdio. Confiante em que o animal no estava por perto abriu sem reservas o corao. - qualquer coisa nos olhos do animal - disse em voz trmula. Algo hipntico. O bicho enfeitia-me. Olha para mim com ar de censura. Pouco a pouco, pedacinho a pedacinho, vou degenerando sob a sua influncia, passando de um artista ntegro e que se respeitava para... bom, nem sei como chamar-lhe. Basta dizer que deixei de fumar, que deixei de usar chinelos de ourelo e de andar por a sem colarinho, que nem sonho em sentar-me a comer o meu frugal jantar sem primeiro me vestir - aqui engasgou-se - at vendi a minha guitarra havaiana. - No pode ser! Isso no! - disse Worple empalidecendo. - verdade - disse Lancelot. - Achei que ele a considerava
frvola. Houve um longo silncio. - Mulliner - disse Scollop. - Isto mais srio do que eu pensava. Temos de meditar sobre o teu caso. - Talvez seja possvel - acrescentou Worple - encontrar uma sada. Lancelot abanou a cabea sem esperana. - No h sadas. J explorei todas as vias. A nica coisa que poderia talvez libertar-me desta servido insuportvel seria apanhar o gato, nem que fosse uma s vez, descontrado. Se uma vez, ao menos uma vez, na minha presena, ele abandonasse a sua austera dignidade por um s instante, acho que o feitio se quebrava. Mas que esperana posso ter? - exclamou Lancelot apaixonadamente. - H pouco viram aquele gato vadio no ptio. Ali est um que no se poupou a esforos para quebrar o autodomnio desumano de Webster. Ouvi aquele animal dizer-lhe coisas que nunca imaginaria que um gato com sangue vermelho nas veias pudesse ouvir por mais de um segundo sem reagir. E o Webster limita-se a olhar para ele como um Bispo Sufragneo olharia para um menino de coro apanhado em falta. Vira a cabea e cai num sono revigorante. Calou-se com um soluo seco. Worple, sempre optimista, tentou com os seus modos bondosos, minimizar a tragdia. - Ora bem - disse ele - mau, claro. Mas suponho que no morte de homem uma pessoa barbear-se e vestir-se para jantar, etc... Muitos grandes artistas... O Whistler, por exemplo... - Esperem! - gritou Lancelot. - Ainda no ouviram o pior. Levantou-se febrilmente e, dirigindo-se ao cavalete, destapou o retrato de Brenda Carberry-Prbright. - Olhem para isto - disse. - E digam-me o que pensam dela. Os dois amigos analisaram em silncio o rosto frente deles. Miss Carberry-Pirbright era uma jovem de aspecto afectado e glacial. Era em vo que se tentavam descobrir razes para que algum assim quisesse ver o seu retrato pintado. Seria uma coisa muito desagradvel de ter em qualquer casa. Scollop quebrou o silncio. - Amiga tua? - No posso nem v-la - disse veementemente Lancelot. - Ento - disse Scollop - posso falar com franqueza. Acho que ela uma pstula. - Um furnculo - disse Worple. - Uma brotoeja e um fleimo - disse Scollop, resumindo. Lancelot riu-se, num riso curto e seco. - Vocs descreveram-na a primor. Ela representa tudo aquilo que mais repugna minha alma de artista. Detesto-a com todas as minhas foras. Vou casar com ela. - Qu!? - gritou Scollop. - Mas tu vais casar com a Gladys Bingley - disse Worple. - O Webster acha que no - disse Lancelot com amargura. - Na primeira vez que se viram avaliou a Gladys e achou que ela no estava altura. E, no momento em que viu a Brenda Carberry-Pirbright, ps a cauda em ngulo recto, emitiu um gorgolejo cordial e esfregou a cabea de encontro perna dela. Depois virou-se e olhou para mim. Eu bem vi o que dizia aquele olhar. Percebi o que lhe ia no esprito. Da em diante tem feito tudo o que pode para concretizar esta unio. - Mas, Mulliner - disse Worple, sempre ansioso por fazer sobressair o lado luminoso das coisas - porque havia essa rapariga de querer casar com um tipo mal-amanhado e pobreto como tu? Tem coragem, Mulliner. Daqui a nada j ela te acha repelente e ascoroso:
Lancelot abanou a cabea. - No - disse ele. - Tu falas como um verdadeiro amigo, Worple, mas no ests a perceber. A velha Carberry -Pirbright, a me deste estojo, que a acompanha s sesses de pose, descobriu cedo o meu parentesco com o tio Theodore que, como tu sabes, tem dinheiro a rodos. Sabe perfeitamente que um dia virei a ser um homem rico. Conheceu o meu tio Theodore quando ele era vigrio de St. Botolph em Knightsbridge. E, desde o primeiro instante, comeou a tratar-me com aquela repelente intimidade de uma velha amiga da famlia. Est sempre a tentar atrairme aos seus seres, aos seus almoos de domingo, aos seus jantarinhos. Uma vez chegou mesmo a sugerir que eu devia acompanh-las, a ela e horrenda filha, Academia Real. Teve um riso amargo. As criticas mordazes de Lancelot Mulliner Academia Real eram conhecidas desde Tite Street no Sul at Holland Park no Norte e para Leste, at Bloomsbury. - A todas estas propostas - retomou Lancelot - respondi sempre com um rotundo no. A princpio, a minha atitude era de fria indiferena. Na verdade no dizia com estas palavras todas que antes queria morrer na sarjeta do que ir a um dos seres dela, mas as minhas maneiras mostravam-no claramente. E estava a comear a pensar que ela tinha desistido, quando - ps - apareceu o Webster e estragou tudo. Sabes quantas vezes fui quela casa infernal na semana passada? Cinco! O Webster parecia querer que eu fosse. Digo-vos, estou perdido. Enterrou a cabea nas mos. Scollop deu uma cotovelada a Worple e os dois retiraram-se silenciosamente. - Isto est mau - disse Worple. - Muito mau - disse Scollop. - Parece incrvel! - Mas no ! Casos deste tipo so infelizmente muito comuns, naqueles que, como Mulliner, tm em alto grau a delicadeza e a sensibilidade do temperamento artstico. Um amigo meu, decorador de interiores, acedeu um dia, inconscientemente, a ficar com o papagaio da tia, quando ela foi visitar uns amigos no Norte de Inglaterra. Era uma mulher com ideias evanglicas muito firmes, ideias essas que tinha transmitido ao pssaro. O bicho tinha uma maneira de pr a cabecinha de lado e de fazer um barulhinho que parecia uma rolha a sair de uma garrafa e estava sempre a perguntar ao meu amigo se estava em paz com a sua alma. Resumindo, fui visit-lo um ms depois e ele tinha um rgo no estdio e estava a cantar hinos antigos e modernos numa bela voz de tenor enquanto o papagaio, numa s pata em cima do poleiro, o acompanhava em tom de baixo. Um caso muito triste. Ficmos todos muito transtornados com aquilo. Worple estremeceu. - Ests a assustar-me, Scollop. No haver nada que possamos fazer? Rodney Scollop ps-se a pensar. - Podamos mandar um telegrama Gladys Bingley a dizer-lhe que voltasse imediatamente. Talvez ela consiga trazer o pobre homem razo. A doce influncia de uma mulher... Sim, podamos fazer isso. Passa pelo correio ida para casa e manda um telegrama Gladys. Eu pago-te metade. No estdio de onde os amigos tinham sado, Lancelot Mulliner olhava estupidificado para uma forma negra que acabava de entrar na sala. Tinha todo o aspecto de um homem acossado. - No! - gritava. - No! Diabos me levem se o fizer! Webster continuava a fit-lo. - Porque deveria faz-lo? - perguntou Lancelot em voz fraca.
O olhar de Webster no se alterou. - Pronto, est bem - disse Lancelot tristemente. Saiu da sala em passos arrastados e, subindo ao quarto, vestiu o fato de passeio e pegou na cartola. Depois, com uma gardnia na botoeira, dirigiu-se ao nmero 11 de Maxton Square, onde a Sra. Carberry-Pirbright servia nesse dia um dos seus chzinhos ntimos (s meia dzia de amigos) em honra de Clara Throckmorton Stooge, autora de O Berjo de tm Homem Forte. Gladys Bingley estava a almoar no hotel em Antibes quando chegou o telegrama de Worple. Ficou preocupadssima. No conseguia perceber exactamente o que se estava a passar porque a emoo tornara Bernard Worple bastante incoerente. Ao ler o telegrama houve momentos em que Gladys pensou que Lancelot tinha sofrido um acidente grave; outros em que a soluo do enigma parecia ser que ele tinha enlouquecido a tal ponto que os manicmios se disputavam arduamente pela sua custdia; outros, ainda, em que Worple parecia sugerir que Lancelot se tinha associado ao gato para abrir um harm. Mas havia um facto muito claro: o seu namorado estava em srios apuros e os seus melhores amigos concordavam que s o imediato regresso de Gladys o poderia salvar. Gladys no hesitou. Meia hora depois de ter recebido o telegrama j tinha a mala feita, tirado um bocado de espargo que lhe cara na sobrancelha e estava a tentar arranjar lugar no primeiro comboio que partia para Norte. Ao chegar a Londres, o seu primeiro impulso foi ir ter directamente com Lancelot. Mas uma natural curiosidade feminina levoua, antes de ir a casa do namorado, a procurar Bernard Worple para que este lanasse alguma luz sobre certas passagens mais abstrusas do telegrama. Worple, na sua qualidade de autor, talvez tivesse uma certa tendncia para ser obscuro mas, quando se limitava palavra falada, conseguia contar uma histria em termos simples, claros e lmpidos. Cinco minutos na sua companhia fizeram com que Gladys se apercebesse perfeitamente dos factos mais importantes e, no seu rosto, surgiu ento aquela expresso sombria e determinada que se v apenas nas caras das noivas que regressam de umas breves frias e se apercebem de que, na sua ausncia, o ente querido se afastou do caminho estreito e certo. - Com que ento a Brenda CarberryPirbright?! - disse Gladys, com uma calma cheia de pressgios. - Eu j lhe dou a Brenda CarberryPirbright! Santo Deus, se j nem podemos ir apanhar ar at Antibes sem que o nosso prometido comece para a a portar-se como um mrmon, onde que ir parar este pobre mundo? Bondosamente Bernard Worple fez os possveis para a consolar. - A culpa do gato - disse ele. - Na minha opinio, o Lancelot est a ser mais prejudicado do que a prejudicar. Considero que ele est a agir sob influncia ou coaco. - Isso mesmo de homem! - disse Gladys. - Atirar tudo para as costas de um pobre gato! - O Lancelot diz que ele tem qualquer coisa na maneira como olha. - Bom, quando eu estiver com o Lancelot - disse Gladys - ele vai descobrir que eu tambm tenho qualquer coisa na maneira como olho. Saiu a deitar fogo pelos olhos. Worple, muito triste, suspirou e retomou a sua escultura neovorticista. Tinham passado a uns cinco minutos quando Gladys, ao passar por Maxton Square a caminho de Bott Street, estacou de repente. Aquilo que tinha visto faria estacar qualquer noiva. Pelo passeio que levava ao nmero 11 vinham duas figuras. Ou
melhor, trs, se se contasse um co de aspecto taciturno, de estilo semico de gua, que as precedia, atado a uma trela. Uma das figuras era Lancelot Mulliner, muito garboso no seu fato de tweed de espinha e de chapu de coco novo. Era ele quem segurava a trela. Gladys reconheceu a outra figura, a do retrato que vira no cavalete de Lancelot, como sendo a moderna Du Barry, a famosa destruidora de lares e assaltante de ninhos de amor, Brenda Carberry-Pirbright. No momento seguinte subiam as escadas do nmero 1 e desapareciam l dentro, para tomarem ch acompanhado certamente por um pouco de msica. Foi talvez uma hora e meia depois que Lancelot, tendo conseguido escapar com dificuldade do antro dos Filisteus, se dirigiu de txi para casa. Como sempre, depois de um longo tte-a-tte com Miss CarberryPirbright sentia-se tonto e desnorteado como se tivesse estado a nadar num mar de cola e tivesse engolido uma grande quantidade do lquido pegajoso. S conseguia pensar claramente que lhe apetecia uma bebida e que essa bebida se encontrava no armrio por trs da poltrona no seu estdio. Pagou o txi e precipitou-se para casa com a lngua seca a bater nos dentes. E, ali, sua frente, estava Gladys Bingley que ele imaginava muito, muito longe. - Tu! - exclamou Lancelot. - Sim, eu! - respondeu Gladys. A longa espera no tinha ajudado a restabelecer o bom humor de Gladys. Desde que chegara ao estdio, tinha tido tempo de bater o p trs mil cento e quarenta e duas vezes na carpete e os sorrisos amarelos que lhe tinham passado pelo rosto eram em nmero de novecentos e onze. Estava praticamente pronta para a batalha do sculo. Ergueu-se e encarou-o, com os olhos a faiscar. - Muito bem, seu Casanova! - disse ela. - Seu qu? - disse Lancelot. - Qual seu qu qual carapua! - exclamou Gladys. A Brenda CarberryPirbright. Ofereo-te um lar onde podes fumar na cama, deitar a cinza para o cho, andar de pijama e chinelos durante todo o dia e s fazer a barba ao domingo de manh. E dela, que tens tu a esperar? Uma casa em South Kensington, possivelmente em Brompton Road, e provavelmente a viver com a mezinha. Uma vida que ser uma longa sucesso de colarinhos engomados, sapatos apertados, fatos e chapus altos. Lancelot estremeceu, mas ela continuou, implacvel. - Estars em casa s quintas-feiras de quinze em quinze dias a servir sanduches de pepino. Todos os dias irs passear o co at te transformares num passeador de ces profissional. Irs jantar a Bayswater e passar o Vero a Bournemouth ou Dinard. Escolhe bem, Lancelot Mulliner. Vou deixar-te a reflectir sobre o assunto. Mas, uma ltima palavra. Se, s sete e meia em ponto, no te apresentares no nmero 6a de Garbidge Mews, pronto a levar-me ajantar ao Ham and Beef, saberei com que contar e agirei em conformidade. E, sacudindo do queixo a cinza do cigarro, encaminhou-se altivamente para a sada. - Gladys! - gritou Lancelot. Mas ela j tinha sado. Durante alguns minutos, Lancelot Mulliner no se mexeu, cilindrado. Depois, veio-lhe lembrana a recordao insistente de que no tinha, afinal, tomado a tal bebida. Correu para o armrio e sacou uma garrafa. Desarrolhou-a e estava a comear a servir-se, num jorro apetitoso, quando um movimento no cho, l em baixo, lhe chamou a
ateno. L estava o Webster a olhar para ele. E os seus olhos tinham aquela expresso familiar de tranquila censura. - No foi de maneira nenhuma a isto que fui habituado l no Presbitrio - parecia dizer. Lancelot ficou paralisado. A sensao de estar amarrado de ps e mos, de estar encurralado numa armadilha da qual no havia fuga possvel, tornara-se mais dolorosa do que nunca. A garrafa escapou-lhe dos dedos sem foras e rolou pelo cho, entornando o contedo num rio ambarino. Mas Lancelot estava demasiado transtornado para se aperceber do que quer que fosse. Com um gesto de desalento, como o de Job ao descobrir uma nova pstula, foi at janela e olhou melancolcamente para a rua. Depois, voltando-se com um suspiro, olhou novamente para Webster e o que viu deixou-o petrificado. O espectculo que se lhe deparava era suficiente para petrificar um homem mais forte do que Lancelot Mulliner. A principio nem queria acreditar nos seus olhos. Depois, lentamente, foi-se apercebendo de que aquilo que estava a ver no era uma mera iluso de uma mente perturbada. Aquela coisa inacreditvel estava mesmo a acontecer. Webster estava agachado junto ao lago de whisky que ia alargando cada vez mais. Mas no fora o horror ou a nusea que o tinham feito agachar-se. Pusera-se nessa posio porque, assim, estava mais perto dos acontecimentos e tinha mais facilidade de aco. A sua lngua entrava e saa da boca como um pisto. E depois, subitamente, durante um brevissimo instante, parou de lamber e olhou para Lancelot e, pelo seu focinho, perpassou um sorriso rpido, to cordial, to intimo, to cheio de camaradagem jovial que o rapaz deu por si, automaticamente, a retribuir-lhe o sorriso e, no s a sorrir-lhe, como tambm a piscar-lhe o olho. E, em resposta, Webster piscou-lhe tambm um olho. Uma piscadela alegre, malandra, que dizia to claramente como se fosse expresso em palavras: - H quanto tempo dura isto? E, com um pequeno soluo, voltou tarefa de lamber a bebida antes que esta se entranhasse no soalho. Na alma sombria de Lancelot Mulliner entrou de repente um grande raio de sol. Era como se tivessem retirado dos seus ombros um enorme peso. A obsesso insuportvel dos ltimos dois meses desvanecera-se e era, de novo, um homem livre. Na dcima primeira hora surgira a libertao. O Webster, aquele aparente pilar de austera virtude, pertencia, afinal, ao grupo. Nunca mais Lancelot se dobraria sob os seus olhos. Estava outra vez nas suas sete quintas. Webster, como o peru na vspera de Natal, j tinha bebido a sua dose. Saiu de junto do lago de lcool e ps-se a andar em crculos, lento e meditabundo. De vez em quando, soltava uns miados hesitantes como se estivesse a tentar dizer anticonstitucionalissimamente. Pareceu ficar divertido por no conseguir articular as slabas pois, no fim de cada tentativa, emitia uma espcie de riso lento e bem-disposto. Foi mais ou menos nessa altura que se ps a danar ritmadamente uma dana que lembrava a antiga Sarabanda. Era um espectculo interessante e, em qualquer outra altura, Lancelot teria ficado a observ-lo desvanecido. Mas agora estava sentado secretria, muito ocupado a escrever um bilhete Sra. Carberry-Pirbright cujo contedo era: que se ela pensava que ele alguma vez voltaria a pr os ps perto da horrenda casa dela, nessa ou em qualquer outra noite, estava redondamente enganada e desconhecia por
completo as capacidades criativas de Lancelot Mulliner no que tocava a encontrar atalhos por onde se escapar. E quanto ao Webster? O Demnio do lcool dominava-o por completo. Uma vida inteira de abstinncia tinha -o tornado uma vtima de eleio do lquido fatal. Chegara agora fase em que a cordialidade d lugar beligerncia. O sorriso tolo desaparecera-lhe da cara e fora substitudo por um agressivo franzir de sobrolhos. Durante uns breves segundos ergueu-se nas patas traseiras procura de um adversrio sua altura; depois, perdendo qualquer vestgio de autodomnio, correu cinco vezes volta da sala a altssima velocidade e, indo de encontro a um banquinho, atacou-o ferozmente, sem poupar dente nem unha. Mas Lancelot no assistiu a tal espectculo; Lancelot j no se encontrava ali. Lancelot estava na rua, em Bott Street, a chamar um txi. - Para o nmero 6.A de Garbidge Mews, Fulbam - disse Lancelot ao motorista. Trad. L. E.
S COMPLICAES Doreen Tovey Sugieh teve cio pela primeira vez em Setembro, quando estvamos na Esccia e ela tinha ficado outra vez com os Smiths. J recevamos que isso acontecesse. De acordo com o livro, podia acontecer com uma precoce gata siamesaj no quarto ms, e como a Sugieh tinha sete meses nessa altura, e era to precoce que at metia nervos, era bvio que se estava a poupar para uma ocasio especial. Com a ajuda dejames f-lo de uma maneira magnfica. Emitiu o seu primeiro clamor no meio de um jantar e pregou um susto de arrepiar os cabelos a toda a gente, incluindo a ela mesma. Depois dos Smiths, que perceberam o que se estava a passar, terem conseguido sossegar os convidados mais nervosos, dizendo-lhes que a gata no estava doida, ela miou de novo, ainda mais alto. O resultado, contaram-nos eles com o olhar fixo pela lembrana, foi que o James ao ouvir a voz da gata por entre a nvoa do sono e esquecendo por momentos que j no era o gato que fora, sara galante, da caixa do gramofone e tentara fazer a mor com ela no tapete, e Sugieh, alarmada, trepara para cima do candeeiro de p e cara com ele por cima das costeletas. O facto de continuarmos amigos, depois disto, abona muito em favor dos Smiths. Nem nos deixaram pagar o candeeiro. Preveniram-nos, no entanto, que a Sugieh era, nos termos deles, uma clamadora excepcional. Consequentemente, tiveram que a fechar no quarto de hspedes e embora permitissem ao James ir visit-la sempre que ele quisesse e ele tivesse conseguido, aps dois dias, convenc-la que havia outras coisas na vida para alm do amor enquanto durou ningum se conseguia ouvir - ela saiu, disseram eles, to plcida como se nada se tivesse passado, bebeu uma tigela de leite para arrefecer a garganta e foi feliz e contente fazer buracos no jardim com o James. Passou-se bastante tempo antes que ns prprios a ouvssemos. Depois daquele primeiro esforo, ela passou tanto tempo sem voltar a clamar que ficmos intrigados. Aquelas noites de luar do ms de Outubro quando ela se recusava a entrar e ns nos amos deitar, sem ela, e no dormamos, preocupados com as raposas e os texugos, at que por volta da meia-noite ela subia as escadas vociferando que no fazia a mnima ideia das horas e indagando porque que no a tnhamos chamado. No teria ela ido inocentemente para o bosque e sido atacada por algum D. Juan felino, ao abrir a boca para emitir um trmulo chamamento? Ou teria ela, o que era o mais provvel, conhecendo-se a Sugieh, abafado as suas angstias de amor e ido, de propsito, procurar um gato, percebendo com base na sua experincia com os Smiths que, se ela emitisse um som que fosse nossa frente, ns a fecharamos a sete chaves, es tragando-lhe todo o gozo? Sugieh sabia, mas no queria dizer nada a ningum. Com o passar das semanas ficmos cada vez mais intrigados - no havia dvidas de que estava a ficar mais cheiinha, embora isso se pudesse dever ao facto de estar a crescer ela limitava-se a sorrir recatadamente e a esticar-se de modo a que a pudssemos ver bem. Quando lhe perguntvamos severamente o que tinha andado a fazer ela semicerrava os olhos e miava baixinho. O Natal aproximava-se, Sugieh continuava sem clamar, e no havia dvidas nas nossas mentes. Enquanto mais acima na rua o Padre Adams esfregava as mos e preparava alegremente o feliz desenlace da Mimi, ns abanvamos a cabea acusadoramente a Sugieh e preparvamo-nos para ocultar o seu acto vergonhoso. Aconteceu que nos enganmos redondamente. Para grande tristeza do
Padre Adams, a Mimi teve uma falsa gravidez e no produziu gatinho nenhum, enquanto Sugieh satisfeitissima por nos ter enganado, entrou triunfantemente em cio no dia de Natal rugindo como um leo. Parecia que os acontecimentos sociais tinham esse efeito nela. Depois de ter comido o peru (nunca me irei esquecer do ar de espanto dela quando viu um peru pela primeira vez; podia-se v-la pr de lado mentalmente os faises) foi dar uma corrida at ao bosque para ver se ainda l haveria mais perus, jogou uma rpida partida do Jogo da Glria, que ela ganhou, pois espalhou os dados e os marcadores pelo cho, e de repente, deitouse de costas e desatou numa cantoria. O meu cunhado olhou para ela alarmado e perguntou o que se passava. Ciente da presena das crianas, olhei para ele significativamente e disse NADA. Por vezes, ela tinha destas coisas quando estava excitada. Os meus sobrinhos gmeos de nove anos, olhando horrorizados um para o outro, puseram o jogo de lado e explicaram que ela estava a fazer aquele rudo porque queria um marido. Os Smiths tinham toda a razo ao dizerem que ela era uma clamadora fora do normal. Sugieh sempre teve um timbre poderoso, mesmo para uma siamesa e o seu clamor amoroso era excruciante. Durante o dia ela seguia-nos gritando pela casa e deitava-se esperanosamente de costas sempre que olhvamos para ela. noite andava s voltas no quarto de hspedes berrando ainda mais furiosamente, porque, como no estvamos para aguentar aquela gritaria toda num espao to exguo, recusvamonos a t-la no nosso quarto. Ao amanhecer do dia 26 de Dezembro j no aguentvamos mais. Charles vociferando audivelmente contra todos os gatos siameses, levou-a para baixo e fechou-a no quarto de banho. A nossa casa antiga e o quarto de banho no s fica no rs-docho, como tambm fica separado da parte original da casa por uma parede de pedra de 60 cms. Quando, algum tempo depois, os clamores, que agora eram abafados, terminaram completamente, convencemo-nos que a Sugieh no era parva, sabia quando tinha sido vencida. Pela primeira vez em dois dias preparvamo-nos para dormir em condies. Um dcimo de segundo mais tarde, comeou no jardim o pai e a me de todas as bulhas de gatos e ns ficmos com os cabelos em p. - Sugieh! - guinchei, mal tocando no cho ao sair da cama e descendo as escadas a correr. - Depressa! - incitou Charles, parando contudo para calar os chinelos e apertar o roupo antes de me seguir. Sugieh estava bem. No tinha, como suspeitvamos que seria capaz, passado pelo ventilador ou aberto ajanela com a ajuda de uma alavanca. Estava, sim, sentada no parapeito da janela do quarto de banho, como uma rainha de um torneio medieval, olhando encantada de soslaio para os dois campees l fora que, entre os narcisos, lutavam pelos seus favores. O cio demorou uma semana e todas as noites, com uma regularidade infalvel, havia uma luta de gatos em frente da janela do quarto de banho. Passados quinze dias ela comeou a clamar de novo. Tnhamos decidido esperar que ela tivesse um ano antes de a acasalar, mas isto era demais. Aos onze meses Sugieh, com grande entusiasmo, ficou noiva. Foi acasalada - o gato da empregada tinha o focinho muito achatado para o nosso gosto, e o Ajax com um abcesso na orelha no tinha um ar muito romntico com um gato chamado Rikki, num centro de gatos siameses, situado a 40 milhas da nossa casa. Os donos do Rikki disseram-nos que ela era a gata mais atrevida que tinham conhecido. Tambm era, disseram eles, a mais barulhenta. Normalmente demorava quatro dias para se ter a certeza que as jovens rainhas, muitas vezes nervosas, acasalassem em condies, mas ao fim do segundo dia eles telefonaram para informar que no havia dvidas nenhumas quanto
Sugieh e para pedir que a fssemos buscar o mais rapidamente possvel, pois ela incomodava todos os outros gatos, enquanto Rikki longe de ser o macho triunfante, andava de um lado para o outro com um olhar acossado, estremecendo sempre que ouvia a voz dela. At que enfim, pensmos ns nessa noite a caminho de casa com a Sugieh atrs a soluar histericamente pelo seu querido marido. Os donos dele tinham-nos aconselhado a mant-la fechada durante dois dias, porque embora perdida de amores ou no, ela poderia consolar-se com o gato da quinta vizinha e ainda poderia vir a ter gatinhos vadios. At que enfim que aquilo acabara e finalmente iramos ter sossego. Estvamos sempre a fazer planos destes sobre a Sugieh, e enganvamo-nos sempre. Aps o acasalamento mais ruidoso na histria do centro de gatos, a Sugieh envolveu-se numa gravidez que no teria sido mais absorvente mesmo que ela tivesse lido o manual mdico. Em primeiro lugar, depois de dois dias a sonhar saudosamente com oRikki - no podia perder mais tempo, pois s tinha nove semanas para mostrar o que valia - comearam os enjoos matinais. Ou foi isso, ou ento foi de repente acometida de uma vergonha imensa ao pensar no seu comportamento escandaloso no centro. De qualquer modo o resultado foi que deixou de comer, ficou para ali sentada com um ar frgil, baloiando com os olhos semicerrados - e por fim, com uma temperatura de 40 graus, teve de ser levada, durante uma tempestade de neve, a uma clnica veterinria para receber injeces de estreptomicina. Logo que a conseguimos safar daquela - Quando se gosta de animais acabamos por nos tornar seus escravos, disse o veterinrio olhando sentimentalmente para os olhos azuis dela, mas nem ele poderia prever a cena que se seguiu quando, tendo recuperado a meio da noite o apetite, ela insistiu em comer pasta de caranguejo sobre a almofada de Charles e comeou a ter uma paixo por tartes de compota. Tinham de ser tartes de compota embora nunca comesse a compota; e tinham que ser roubadas. Se lhe dvamos uma, ela dava um vmito realista, virava-lhe as costas e ia-se embora. Sozinha, contudo, era capaz de dar cabo de um prato inteiro num dia, roubando uma a uma da copa e levando-as cuidadosamente para o quarto de banho, onde comia a massa das bordas deixando o recheio, e o Charles, distrado, calcava-as e sujava a casa toda. Inspirada, julgvamos ns, pelo desejo de que os seus gatinhos fossem todos Seal Points, como o Rikki - um gato do tipo Yul Brynner, com macias espduas negras e uma cabea triangular - tambm bebia mais caf do que seria possvel a um gato, e, por alguma razo insondvel, comeou a mastigar papel; um hbito que nos trouxe muitos aborrecimentos no dia que comeu o telegrama enviado pela tia do Charles, Ethel. Quando a tia Ethel se decidia visitar um membro da famlia, anunciava a sua chegada iminente por telegrama. deste modo a famlia no tinha chance de se esquivar. No nosso caso, como vivamos segundo ela nos lembrava constantemente, no fim do mundo, o telegrama tambm indicava a hora de chegada do comboio, para que Charles a fosse buscar estao. Por isso, quando ela apareceu teatralmente porta principal, numa noite fria e molhada, olhando-nos severamente por cima dopince-nez gotejante e informando-nos que no s tinha esperado em vo uma hora inteira, como ainda o txi, que tinha sido Forada a alr'gar, tivera uma avaria ao chegar alameda (acontecia sempre isto a estranhos; Fred Ferry no tinha intenes de estragar a suspenso nos buracos da nossa lea), sabamos que estvamos feitos. No quis acreditar que ns no tivssemos recebido o telegrama. Ela enviara-o, disse ela, e basta. Tambm no ajudou quando Charles
telefonou para os Correios - bastante zangado, para impressionar a tia Ethel - e perguntou o que diabo acontecera ao telegrama. O chefe dos Correios, que era um homem temperamental, perguntou que diabo achvamos que tinha acontecido. Fora ele que tinha metido o telegrama por debaixo da porta, quando fora dar um passeio a p, e tinha ficado com a mo arranhada por aquele maldito gato. E porqu, gostaria ele de saber, no tnhamos ns uma caixa de correio como todas as pessoas normais? Ns tnhamos caixa de correio, que estava afixada na porta da cozinha, como o carteiro habitual bem sabia. Charles mudara-a da porta principal aps Blondin ter sido quase decapitada ao ter enfiado a cabea atravs da ranhura e no ter sido capaz de a retirar. Se o telegrama fora introduzido por debaixo da porta principal, por engano, s uma coisa poderia ter acontecido, disse Charles ao surpreso chefe dos Correios, o nosso gato deve t-lo comido. E tinha. Enquanto Sugieh observava estrategicamente do cimo das escadas e a tia Ethel esperava dramaticamente uma resposta ao fundo das mesmas, encontrmos a prova concludente - um canto de envelope molhado e mastigado - debaixo da cadeira da entrada. O que aconteceu ento foi um pequeno milagre. A tia Ethel ia comear uma torrente de palavras indignadas - nunca gostou muito dos nossos animais desde o dia em que a Blondin de nimo leve a molhou enquanto ela dormia uma sesta na cadeira e isso, informou-nos com um tom gelado, tinha sido a gota de gua - quando a Sugieh se levantou e, sonolenta, desceu as escadas. Nesta altura o seu corpo tinha a forma de uma pra, embora isso, at data no a tivesse importunado nada. Ainda na semana anterior tinha atravessado o jardim to depressa atrs de um pssaro que foi de encontro a uma campnula e feriu o nariz. Nada srio mas o suficiente para que ela parecesse mais estrbica do que o habitual, durante uns dias, de tanto olhar para a ferida. Tambm ainda subia s rvores como o vento, sem dano para ningum a no ser para o Charles que resmungava e agarrava a cabea sempre que ela embatia com a sua valiosa pensvamos ns - carga de gatinhos de encontro a um ramo. Agora, para grande espanto nosso, desceu cuidadosamente as escadas como se quase no tivesse foras para se manter de p, olhou pateticamente para a tia Ethel e disse: - Miaaah! Talvez estivesse genuinamente indisposta. Talvez tivesse sido o resultado de ter comido o envelope cor-de-laranja. De qualquer modo no tivemos mais sarilhos nessa visita. De noite, a tia Ethel dormia com a Sugieh aninhada nos braos carinhosos. De dia tratava dela, no seu colo, afagando-lhe ternamente as orelhas e dizendo-lhe que tinha uns donos muito maus, que a haviam deixado naquele estado. A pobre coitadinha suspirando sem comiserao como s um gato siams sabe, aquiescia de corpo e alma com tudo. Quem a ouvisse, era como se nunca tivesse querido casar na vida e ns a tivssemos arrastado pelos cabelos da sua inocente cabea at Dorset. No nos importmos. Pela primeira vez em meses o que era um fenmeno com a Sugieh e a tia Ethel dentro de portas tivemos um pouco de paz. A CHEGADA DOS QUATRO GLADIADORES Sugieh teve os gatinhos no fim de Maro. Nasceram mesmo depois da meia-noite, aps uma noite tormentosa em que procurmos persuadi-la a t-los num caixote de carto forrado com jornais, como recomendava o livro de gatos, mas ela igualmente persistente, continuava a sair dele
e ia l para cima com as orelhas descaidas para o lado, indignada com a ideia. E na nossa cama - de outro modo ela no os dava luz, disse ela, - enquanto Charles e eu estvamos sentados um de cada lado dela, com o livro de gatos nas mos, esperando por complicaes. No houve nenhumas. A no ser o facto do ltimo a nascer ter a metade do tamanho dos outros trs - e isso, disse-lhe o Charles, era s culpa dela; ele tinha-a avisado, vezes sem conta, para no subir s rvores - tudo se passou calma, eficiente e rapidamente. Foi a ltima vez que algo decorreu calmamente na nossa casa durante muito tempo. Na manh seguinte acordmos perante a descoberta deprimente de que a Sugieh, que nunca fazia nada pela metade, tinha decidido ser uma me exemplar. Enquanto durou foi o purgatrio. Nos primeiros dias quase que no deixava os gatinhos. Quando queria comida punha-se a berrar do cimo das escadas. Quando lha levvamos, ou ela estava de novo no cesto a amamentar os gatinhos como se fossem lrios quase a desvanecerem-se aos olhos dela, ou andava de um lado para o outro como se fosse um caixeiro-viajante espera de um comboio. Os gatinhos tambm no ajudavam nada. A nica vez que a conseguimos persuadir a vir para baixo e estar connosco um bocadinho, mal teve tempo de fazer uma careta ao Shorty, como era seu costume, logo se ouviu um lamento lancinante l de cima e l foi ela, galgando as escadas de dois em dois degraus, dizendo olhem o que acontece se os deixamos ss por uns momentos. Agora estavam a ser raptados! S quem viesse de um manicmio teria vontade de os raptar, e ela sabia-o bem. A partir do momento em que cada um abriu um olho, dias antes do previsvel, olhando de soslaio para o mundo como um bando de piratas Fu Manchus, era bvio que nada de bom nos esperava. Entretanto isso veio trazer um estmulo formidvel ao cenrio. Mais do que me exemplar, a Sugieh tornou-se numa me exemplar defendendo os seus filhos contra raptores. Ningum estava livre de suspeita, neste caso. Quando o prior vinha tomar ch, ela j no se aninhava no seu colo, enchendo as calas pretas dele com plos. Mantinha-se no hall, olhando-o sinistramente pela porta. Quando vinha o rapaz do talho, em vez de correr frente de toda a gente para ter uma conversa particular com ele, sobre a qualidade do fgado, fixava-o da janela, e vociferava Mais um passo e chamo a Policia. Quando a polcia realmente veio, na pessoa de P. C. McNab que trazia uma multa para Charles que, no era para admirar, tinha ido cidade numa manh num estado de total esgotamento, e deixara o carro debaixo de um sinal de estacionamento proibido durante duas horas, ela armou um tal banz que no ficmos nada surpreendidos quando uma vez l fora no relvado, McNab retirou o seu bloco de notas e assentou algo que indubitavelmente tinha a ver com a perturbao da paz. E, quando a tia Ethel veio passar o fim-de-semana de propsito para ver os gatinhos e os trouxemos para baixo, pensando que com ela tudo ia correr bem pois era amiga da Sugieh, qual qu, a Sugieh ia dando em doida. Ela pegou nos gatinhos pelo cachao, um aps o outro, o mais rpido possvel, e p-los ostensivamente no quarto de hspedes. Durante esse ano, hora de ir dormir, a Sugieh lamentara-se alto e bom som que o quarto de hspedes era uma priso horrenda e que ela prpria poderia muito bem ser a Maria Antonieta. Agora, parecia que era o nico lugar no mundo onde os gatinhos estavam a salvo. Quando a tia Ethel foi atrs dela, laia de desculpa, com o cesto e um gatito que encontrara nas escadas, a Sugieh corajosamente na soleira da porta, rosnou-lhe de tal modo realstico, com a cauda entufada e os plos das costas eriados,
que a tia Ethel desceu as escadas mais depressa do que alguma vez a vira mexer-se na vida e tomou o comboio seguinte para casa. Penso que at a Sugieh achou que tinha ido longe demais dessa vez. Ou isso, ou estava farta de brincar s mes exemplares. De qualquer modo, na manh seguinte, s sete horas, despejou as crias na nossa cama, to despreocupada como se nunca tivesse ouvido falar de raptores na vida, saiu e foi para o bosque e s apareceu s nove. Da em diante deu claramente a entender que ns ramos to responsveis pelos gatinhos como ela. Desde ento, muitas vezes nos perguntmos se o facto de os gatitos terem cado tantas vezes de cabea durante aquelas semanas que se seguiram, teria alguma relao com o modo como cresceram. Pelo menos um deles, caa com um baque todas as manhs quando Sugeh trepava furiosamente para a cama colocando os gatitos entre os meus braos, o mais depressa que podia, e embora no exagerssemos como a Sugieh, ao ponto de dizer que aquele estava estragado - ela nunca tinha o cuidado de apanhar o que tinha deixado cair; s olhava para ele com um olhar aborrecido e ia buscar outro. Era bvio que no lhes fazia bem. Tambm era significativo que o que era deixado cair mais vezes era o Salomo. Todas as pessoas que o conhecem, j nos perguntaram, uma vez ou outra, porque lhe demos o nome de Salomo. A resposta o resultado de uma partida da me dele. Como ela sabia muito bem que queramos ficar com um macho da primeira ninhada para o levar a exposies e cham-lo brilhantemente, pensmos ns - o Selo de Salomo, ela obsequiou-nos com trs machos para podermos escolher, e que foram observados com um interesse profundo durante duas semanas. Com o livro sobre gatos na mo, examinmo-los minuciosamente e discutimos qual o gatito com que devamos ficar; muito se riu ela quando tivemos que ficar com aquele que tnhamos posto de lado por ter umas patas grandes demais e umas orelhas que pertenciam a um morcego e estpido que nem uma porta. Os outros dois e a fmea mnima eram siameses azuis. Para alm de todos os outros defeitos o Salomo tinha bigodes manchados; muito antes que as manchas pretas aparecessem no focinho e nas patas para nos avisar que era nosso para o resto da vida, era pelo bigode que o distinguiamos dos outros. como uma orqudea, disse a tia Ethel quando o tirava do balde de carvo durante a visita seguinte, aps ela e a Sugieh terem feito as pazes, e a Sugieh ter colocado a sua guinchante e inquieta famlia no colo da tia Ethel como sinal de paz e ter, como de costume, deixado cair o Salomo. Como um bambu seria mais prximo da verdade. Nunca vi na minha vida um gato to parecido com o Popski. Bambu ou orqudea, era pelos bigodes que reconhecamos aquele que sempre se alimentava deitado. Quase que desmaimos quando demos por ela - trs gatitos a mamarem sofregamente de p, para chegarem melhor, por cima do quarto que parecia estar inconsciente. Aps o termos puxado para fora para que respirasse, ficmos intrigados quando ele, passado alguns minutos, desapareceu por debaixo da me, outra vez. As nossas suspeitas confirmaram-se quando tirmos os trs gatinhos de cima dele e espreitmos. Enquanto os outros guinchavam, arranhavam e lutavam por um lugar em cima, o que tinha patas grandes e bigodes s manchas estava deitado, feliz, de costas, mais abaixo, com as tetas inferiores todas s para ele. Claro est que estas ininterruptas refeies resultaram em que depressa se tornou o maior da ninhada e era por isso, e porque era o favorito de Sugieh, que esta estava sempre a deix-lo cair. Quando ela se queria exibir - e embora detestssemos admitir que era encantadora - era sempre o Salomo quem ela carregava at ao
relvado, sorrindo brandamente por cima da sua cabea larga e branca aos nossos louvores. Mas como as sadas dela eram da mesma ndole de uma actriz de cinema a empurrar o carrinho do beb no Hyde Park para o beneficio dos fotgrafos, mal ela voltava, deixava-o cair no caminho e deixava-o l para que ns o levssemos para dentro. s vezes ela vinha pelo muro e deixava-o cair na vala. Ela deixava-o cair invariavelmente quando decidia tentar uma manobra mais difcil, como por exemplo saltar para a cama. medida que ele ia crescendo ela ia deixando-o cair mais vezes. Quando o levava escadas acima, o seu corpo branco e gordo embatia em todos os degraus. Numa dessas ocasies a tia Ethel, tendo tentado em vo tir-lo fora da boca de Sugieh, predisse soturnamente que ele iria ficar mal da cabea quando adulto. Claro que ela no se podia enganar; nenhum gato siams bom da cabea. De qualquer modo quando Salomo ficou adulto tinha mais esquisitices do que um gato siams comum - incluindo um desejo irresistvel de ser puxado pelo cachao. incrvel como aqueles gatinhos sobreviveram, pois uma vez que Sugieh deixou de ser a me exemplar, agia mais como se necessitasse de um curso de puericultura. Quando queriam ser lavados, ela lavava-os to intensamente que quase ficavam sem plo. Quando eles a aborreciam, ela mordia-lhes com tanta fora que gritavam por perdo; todos menos o Salomo que a mordia tambm e quando ela ia atrs dele, deitava-se de costas e esbracejava as suas quatro pantufas pretas de um modo to arrebatador que recebia uma mamadela extra quando os outros no estavam a ver. No fazia ideia do que era nutrio. Quando os gatitos tinham quatro semanas, e de acordo com o livro, devamos habitu-los ao leite de pacote, ela dizia que no lhes fazia bem e bebia-o ela. Quando tinham seis semanas, ns amos desesperando porque - seguindo, sem dvida alguma, as instrues de Sugieh - eles fechavam firmemente os olhos e as bocas mal viam uma tigela e, desanimmos de os desmamar at que a encontrmos, uma manh, a dar-lhes sub-repticiamente bocados de coelho, do seu prprio pequeno-almoo, e observando-os orgulhosa quando lutavam como tigres por um pedao. Ela sabia muito bem que era errado. Quando lhe demos um sermo sobre os estmagos delicados dos gatitos, ela olhou-nos por debaixo das pestanas e disse que fora o Salomo. Neste caso podia muito bem ter sido ele. Preferamos nem saber que o Salomo cuja alimentao nos preocupava mais porque era um gatito muito grande e que se aguentava s com o leite materno, estava nesse momento enterrado at aos joelhos no meio da tigela de coelho sorvendo-o como se se tratasse de esparguete. De qualquer modo ele era o eleito - no por mal, mas pelo simples facto que ela o achava to maravilhoso que o tornava irresistvel - de ser o culpado de tudo, a partir desse dia. Quando ela roubou um par das melhores pegas amarelas de Charles e mostrava aos gatitos deleitados como se faziam buracos por todos os lados do cano da meia at que ficasse como um funil, foi o Salomo quando ela realizou o que tinha feito - o indigitado a levar-nos os restos das meias enquanto os outros esperavam, trmulos no cimo das escadas, prontos para fugirem. Quando, uma noite, fomos ao cinema e desastradamente os deixmos deitados na nossa cama, porque estava frio e eles estavam to queridos aninhados juntos por cima do edredo, foi o Salomo - os restantes, guiados pela Sugieh, esconderam-se debaixo da cama no momento que nos ouviram subir as escadas - que ficou numa solido esplendorosa para dar uma explicao sobre uma srie de buracos feitos num cobertor novinho em folha. Teve um trabalho para o fazer. S havia um gato cuja boca
poderia ter feito aqueles buracos hmidos - e ela estava colada ao cho, debaixo da cama, pretendendo fazer parte da carpete. Tambm s havia um gato com fora suficiente para puxar a colcha e o edredo para trs e tirar o cobertor para fora. O Salomo ouvia com as orelhas de morcego bem abertas enquanto ns lhe dizamos quem ela era, o que ela era e o que lhe iramos fazer quando a apanhssemos. Obviamente algo devia ser feito rapidamente se quisesse salvar a Mam de um castigo para a vida inteira - e f-lo sem pensar. Enquanto eu segurava no cobertor aberto, queixando-me que j no servia para nada, ele saltou para a frente, com os olhos brilhantes de determinao, e meteu uma patita gorda e preta pelo buraco. Era assim que estvamos a brincar antes de vocs chegarem, disse ele. Foi por isso que a Mam tinha feito aqueles buracos e era muito divertido. Por que que a no desculpam? Sempre fomos levados por aquela carinha preta de amor-perfeito. E desculpmos. A cama transformou-se nos minutos seguintes numa massa hilariante de gatinhos a correr de um lado para o outro sobre o edredo e metendo as patinhas pelos buracos do cobertor, enquanto a Sugieh, reaparecendo como que por magia, uma vez passado o perigo, pegou no Salomo pelo cachao e deixou-o cair negligentemente sobre a almofada como recompensa. E no foi a nica recompensa que ela lhe deu. Quase que desmaiei quando nessa noite, depois do jantar, ele entrou orgulhosamente na sala de estar com os bigodes de um lado do focinho bem tufados e os do outro lado inexistentes. Nessa altura s tinha oito semanas e ns pensmos que os bigodes tivessem cado por ele ter comido coelho a mais. No sabamos que as mes gatas siamesas faziam por vezes isso aos filhotes favoritos quando estavam particularmente contentes com eles. Foi o veterinrio quem nos disse - de um modo bastante seco, achmos ns, uma vez que era suposto ele gostar de gatos siameses - s onze e meia dessa noite. Trad. j. L. F.
HEATHCLIFF Lloyd Alexander Donde veio e em que circunstncias Heathcliff passou os seus primeiros anos de vida, no sei. Apareceu j crescido; adulto, nem muito novo nem muito velho. Nunca cheguei a apurar se seria um gato perdido, um gato empreendedor que decidira mudar de vida, se fora abandonado ou simplesmente o resultado do desleixo do dono anterior. Podia ter pertencido raa persa azul, embora fosse muito mais cinzento que outra coisa e o seu plo um pouco curto demais para o ideal. De qualquer modo tinha classe e linhagem, a qual permaneceu sempre um mistrio. J que os persas no so normalmente criados em ambientes humildes, podia ser que j tivesse vivido em opulncia, mas dava a impresso de que o seu passado era assunto que preferia no ver mencionado. Numa tarde no fim do Inverno, aconteceu ver Rabbit a brincar no relvado com um gato desconhecido. Sa para investigar e o recm-chegado refugiou-se atrs de uma hortnsia. A maior parte dos gatos no se aproxima afoitamente dos humanos. A possibilidade de armas escondidas, paus ou pedras, faz com que se tornem desconfiados. Os gatos vadios em especial - infelizmente com alguma razo consideram os humanos como inimigos. H que pr em prtica um grande cerimonial e expor vrias antenas diplomticas antes de se chegar a uma situao de trguas. Heathcliff, porm, transps os preliminares com celeridade. Saiu do arbusto, andou vrias vezes minha volta e, finalmente, roou a sua cabea contra as minhas pernas e deixou-me observ-lo de perto. Era um gato de melodrama. Desbotado pela chuva, tinha os plos laterais, abaixo das orelhas, sobressaindo da cabea macia e uma cauda que se agitava como uma vara com farrapos dependurados. O pescoo parecia um velho cachecol esfarrapado e as patas traseiras, farfalhudas, davam o aspecto de calas de montar. O plo comprido davalhe uma corpulncia ilusria. Quando o afaguei senti pouca carne e ossos proeminentes. Os dois gatos davam-se to bem, s corridas e s caadas, que cheguei a pensar que Heathcliff seria um amigo do clube vindo fazer uma breve visita social. Porm, reparei que se manteve no relvado toda a tarde, evidentemente sem outros compromissos. s horas das refeies apresentou-se juntamente com Rabbit porta da cozinha. No tinha inteno nenhuma de adoptar um gato novo. Fiquei a gostar tanto do Rabbit no correr do ano, que ter outro me parecia uma traio. O Rabbit satisfazia-me plenamente e eu ainda no tinha percebido que as carncias de um viciado em gatos so infinitamente expansveis. Mas no lhe podia recusar uma refeio. A viso de Rabbit a devorar carne, no seu lugar habitual por cima do escoadouro da loia, era para o outro to aflitiva que, apesar dos avisos dejanine, enchi uma tigela com carne e coloquei-a no alpendre. At esse momento nunca tinha ouvido falar do contrato segundo o qual quem der de comer a um gato uma vez obrigado a continuar a prtica at que um dos dois morra. Heathcliff conhecia a lei melhor do que eu e insistia para que fosse cumprida letra. Desapareceu ao anoitecer mas, na manh seguinte, encontrei-o no alpendre espera do pequeno-almoo. Com o seu ar pomposo, olhar de mocho e cauda esfarrapada fez-me lembrar um actor desempregado que custa de muito falatrio e logro, consegue entrar num restaurante um pouco antes dos outros convivas, e espera em frente mesa vazia, de guardanapo posto, procurando parecer disposto a pagar e pensando quanto tempo faltar
para ser posto na rua. Quando me viu, deitou-se de costas e comeou a ronronar alto. Dei-lhe um pires de leite. Depois disso estava sempre a encontr-lo. A nossa casa tem trs portas - a da frente, a do lado e a da cozinha nas traseiras, e Heathcliff parecia estar em todas elas. Se eu saa pela da frente, ele tentava esgueirar-se para a sala de estar; se eu saa pela porta lateral ele aparecia-me por detrs de uma coluna do alpendre; pela porta da cozinha, l estava ele pendurado e esparramado na grade. Em qualquer outro lugar, logo que me visse ou sentisse ele vinha a correr o mais que podia, com os bigodes ao vento, para pedir ser admitido dentro de casa. Resignei-me a dar-lhe de comer mas continuava convencido a no o deixar entrar. E o Rabbit tambm. Embora Heathcliff tenha sido o nico.gato a quem demonstrou um afecto imediato, Rabbit nunca lhe permitiu completa liberdade. Se Heathcliff tentava entrar pela cave, por uma entrada privada, Rabbt bloqueava ajanela e afastava-o com as patas erguidas. s vezes Heathcliff esgueirava-se l para dentro e o Rabbit perseguia-o por entre barris e caixotes e expulsava-o antes que ele tivesse uma chance de descobrir o caminho l para cima. Nos outros lados, Rabbit defendia a sua propriedade por mtodos nem sempre considerados tradicionalmente elegantes. O telhado do anexo, perto de casa, constitua uma excelente torre de vigia e Rabbit costumava tomar l banhos de sol, a certas horas do dia. Tinha descoberto um meio de subir para o telhado, segurando-se com uma pata dianteira no peitoril da janela e balanando-se cuidadosamente sobre o beiral. Heathcliff decidiu que seria agradvel partilhar o lugar no telhado com Rabbit, mas no tinha aprendido as manobras necessrias para l chegar. Tentou escalar directamente a parede. No sendo um gato gil, Heathcliff fazia-me lembrar um homem com uma capa de Inverness subindo desajeitadamente uma escarpa ngreme. Mesmo assim quase conseguia, chegando at ao beiral. Mas no dominava a tcnica de Rabbit de baloiar e ficou pendurado, segurando-se com as unhas das patas dianteiras. Rabbit, observando os acontecimentos, levantou-se por fim e golpeou Heathcliff. Este perdeu o apoio e caiu no cho. Sempre que aparecia no beiral, o Rabbit empurrava-o at que Heathcliff desistiu. Noutra ocasio, Heathcliff deve ter quebrado uma etiqueta qualquer e Rabbit escorraou-o para cima de um bordo. Enquanto Heathcliff andava de um lado para o outro em cima de um ramo, muito zangado, Rabbit esperava em baixo, pronto a lanar-se sobre ele. Manteve-o l em cima at hora do jantar. parte algumas poucas desavenas, as relaes entre eles eram muito cordiais e pensei em contratar Heathcliff como assistente de Rabbitt, para o ajudar nos trabalhos que os gatos fazem nos quintais. Converti a velha casota do co numa casa para gatos, mas Heathcliff recusou us-la. Concordou em viver no anexo; de m vontade, pois tinhase-lhe metido na cabea algo de melhor: o seu fito era, nada mais nada menos, um posto, com todas as honras e proveitos, dentro de casa. Heathcliff foi sempre um gato de enredos, intrigas e esquemas grandiosos; durante a primeira semana explorou todas as possibilidades de entrar em casa: tentou tornar-se invisvel e entrar para a sala de estar atrs de Rabbit. As poucas vezes que Rabbit se punha a miar para que lhe abrissem a porta em vez de entrar pela cave, Heathcliff passava-lhe frente para se introduzir pela nesga da porta entreaberta, ou ento, sentava-se simplesmente no alpendre e berrava. A sua admisso, no obstante o seu planeamento cuidadoso, aconteceu por acaso. Uma noite, j tarde, acordei ao som de um piar
frentico. Da janela podia distinguir uma vaga forma a esvoaar volta das amoreiras. O piar era de tal modo desesperado que desci a correr l para fora sem perder tempo a vestir-me. Dei com o Heathcliff a perseguir um pintarroxo que mal sabia voar. Embora jovem demais para voar eficientemente, o passarinho estava a dar que fazer ao gato, esvoaando e sempre em movimento de um lado para o outro. Normalmente, um pssaro jovem e saudvel consegue voar aos crculos volta de um gato, mas eu sabia que neste caso as vantagens iam para o gato, por isso apanhei e peguei no Heathcliff ao colo. Como o anexo tinha um buraco de tamanho suficiente para o Heathcliff passar, tinha a certeza que ele voltaria para acabar o que no acabara logo que me fosse embora. E da cave podia ele sair sem complicaes. E porque estava em pijama e com tanto frio que no dava para raciocinar, trouxe o Heathcliff para dentro de casa e tranquei-o na cozinha. Depois voltei para o relvado, consegui apanhar a avezinha, pu-la sobre um ramo da amoreira e voltei para a cama. Esqueci-me de mencionar o acontecimento Janine e a sua surpresa, na manh seguinte ao entrar na cozinha, s se igualou do Rabbit. Quando este entrou para comer o pequeno-almoo, a viso inesperada de Heathcliffdentro de casa - feliz, a lamber o prato de leite - siderouo. Rabbit ps-se logo em posio de ataque, cuspindo e bufando, e perseguiu o intruso at sala de estar. Heathcliff refugiou-se debaixo do sof e recusou-se a sair dali. Despeitado, Rabbit comeu depressa e saiu. Heathcliff manteve-se perto do seu santurio o resto do dia. Nessa noite, estando eu sentado no sof a ler, o Heathcliff saiu do seu refgio e saltou para o meu colo, como se fosse um hbito de anos. Eu tinha adquirido um segundo gato. Dois gatos podem viver com o mesmo que se gasta para um, e o dono deles diverte-se a dobrar. No principio, pensei nos problemas que poderiam surgir em manter dois gatos crescidos debaixo do mesmo tecto. Nesse tempo no acalentava a ideia de capar gatos, e os machos adultos so notoriamente agressivos quando juntos. Mas, tirando a reaco precipitada daquela primeira manh, continuaram a entender-se e nada mais grave aconteceu para alm de umas brigas amigveis. Os gatos resolveram os problemas entre si, e dividiram a casa e o terreno como dois potentados. Como se tivesse sido combinado, Rabbit continuou a exercer total autoridade no exterior; Heathcliff apropriou-se do interior. Aps a longa luta para se tornar um gato de casa, suponho que no queria arriscar-se a ficar fechado l fora outra vez e, durante muito tempo, raramente ia mais longe do que o alpendre. Gostava particularmente do peitoril da janela do meu escritrio. O sol batia l a maior parte do dia e ele podia relaxar num luxo indolente, a sua imensa cauda em volta dele, olhando-me a trabalhar secretria. Tambm apreciava o sof da sala de estar e, claro, a cama. Nada o fazia sair do lugar onde estava a no ser o aspirador. Em qualquer outra ocasio, quando queramos que ele se mexesse tnhamos que pegar nele ao colo e fazer ns mesmos a remoo. Mas o ruido do aspirador aterrorizava-o. Logo que o ouvia procurava um esconderijo o mais longe possvel do barulho. Rabbit deve ter-se rido secretamente pois instrumentos mecnicos no o incomodavam de modo algum, e brincava afoitamente com o fio elctrico enquanto Heathcliff tremia debaixo do sof. Outra rea que o fascinava muito era a cozinha. No lhe tinha levado muito tempo para descobrir que este lugar, em especial, era a fonte e origem dos deleitosos pratos de carne e pires de leite.
Manifestava um interesse de proprietrio nela e gostava de se certificar de que tudo corria como devia, de que as refeies apareciam em quantidade e a horas. Gostava de espreitar para dentro do frigorfico e arriscava-se a ficar com a cabea presa na porta. Tambm costumava saltar para cima do fogo, o que suspendeu aps ter queimado a cauda. Quando ouvia o som de loia na cozinha, dirigia-se para l e quedava-se no meio do cho, no se importando que se tropeasse nele ou que lhe pisassem a cauda. Quando via encher o seu prato comeava uma espcie de dana de guerra indgena, miando, emproando-se, dando voltas e sacudindo as suas farfalhudas. No principio, sempre que lhe dvamos de comer, ele devorava a comida to depressa que, ocasionalmente, tinha que lhe retirar o prato para lhe dar tempo de engolir o que tinha na boca. Rabbit comia metodicamente, muito cuidadoso em manter a comida no prato e, no sendo exactamente lento, era eficaz; enquanto Heathcliffatacava uma poro de carne com molho com tal ansiedade que o prato virava. Mais tarde, quando percebeu que as refeies seriam um acontecimento permanente na sua vida, deixou de as considerar to desesperadamente importantes e comia mais pausadamente; saboreando cada bocado, cheirando e lambendo os bigodes. Em comparao, Rabbit teria comido o dobro no mesmo espao de tempo. Heathcliff tambm instituiu a ceia na nossa casa. Antes, dvamos de comer a Rabbit duas vezes por dia: leite e rao para gatos de manh, s vezes juntvamos um ovo cru; carne de cavalo moda ou fgado s seis da tarde. Passado pouco tempo aps Heathcliff ter vindo para nossa casa, comeou a dirigir-se para a cozinha, a altas horas da noite, fazendo sons inquisitivos para o frigorfico. Achou-me fcil de convencer, pois correspondia sempre sua sugesto dando-lhe um petisco qualquer. Quando Rabbit descobriu que se servia a estas horas invulgares, tornou-se um defensor entusistico da terceira refeio e a ceia transformou-se rapidamente num banquete. Janine e eu at os acompanhvamos, comendo sandes e bebendo caf enquanto espervamos que os gatos acabassem. Depois dos pratos arrumados e dos dois gatos se terem certificado de que esta era a nossa ltima apario como maitres dtel, Rabbit vadiava at ao clube e Heathcliff embrulhava-se na sua cauda. O programa de dormidas de ambos podia fazer parte de uma pera cmica na qual dois locatrios dividem, sem o saber, o mesmo quarto a horas diferentes. Embora Rabbit no desse passeios extensos a partir do Natal e se tivesse mantido perto de casa durante o tempo frio, a chegada do tempo quente chamava-o irresistivelmente para o mundo exterior. Havia muitos grilos, jovens ratinhos, sapos e outras criaturas nocturnas a circular l fora para que um gato com o temperamento dele perdesse tempo num descanso intil. Heathcliff, por outro lado, devia ter visto o suficiente na sua vida passada porque preferia passar as noites na cama tomando o velho lugar de Rabbit, esticado sobre os meus ps. A minha mulher queixa-se de eu ter um sono irrequieto. Eu nego, mas no contesto; na realidade sofro de uma leve insnia e admito que dou voltas e reviravoltas antes de adormecer. Heathcliff aceitou os meus hbitos sem se queixar. medida que me vou virando para o lado esquerdo e para o direito, de costas ou de bruos, que encolho e estico as pernas, ele l vai aguentando como pode, agarrando-se com as garras coberta do mesmo modo que um nufrago se agarra bia salva-vidas. Uma ou duas vezes emitiu uns sons reprovadores quando achou que eu exagerava, mas na manh seguinte encontrava-se sempre no seu lugar.
Ao raiar da alvorada, hora em que Heathcliffnormalmente comeava a acordar, vinha o Rabbit para dormir uma soneca antes do pequeno-almoo; saltava para o lugar ainda quente do Heathcliff, enquanto este bocejava, se espreguiava e afiava as unhas na carpete e se lavava com vagar. Se Heathcliff decidia dormir mais uns minutos, o Rabbit deitavase simplesmente por cima dele. Os horrios deles tambm coincidiam algumas vezes durante o dia como, por exemplo, s refeies; mas a uma certa hora, mesmo antes do anoitecer, os gatos estavam alerta sem mais que fazer a no ser desporto no relvado. Rabbit costumava aparecer, sem falhar, na esquina do anexo e emitia um chamamento tipo campainha. Normalmente, o Heathcliff esperava sentado no peitoril da janela aberta da cozinha, escuta do sinal. J tinha ultrapassado o medo de ficar fechado l fora e respondia de boa vontade ao Rabbit. Saltava para o solo, aquecia os msculos com uns exerccios preliminares e depois comeava a competio atltica. O programa incluia uma mistura de vrias modalidades como boxe, esgrima, ju-jitsu, savate francs e luta greco-romana. O estilo dos dois gatos era notoriamente diferente; Rabbit, um espadachim, atacava rapidamente com uma pata em riste ou em incurses cleres, mordiscando as orelhas ou o pescoo do oponente. O seu plo curto e brilhante, liso como o maillot de um acrobata, tornava-o semelhante a uma flecha castanha e branca quando dava cambalhotas, rodopiava ou estacava antes de investir de novo. Heathcliff, entretanto, imitava o Leo de Lucerna inclinado para um lado em posio de defesa. A juba azul desgrenhada, os olhos amarelos observando cada pirueta, esperava uma chance de acertar nas patas do bailarino Rabbit. Heathcliff era um lutador de corpo a corpo; se Rabbit se descuidava, o gato azul envolvia-o e agarrava-o num golpe de luta livre aplicado pela frente. s vezes roubava a iniciativa a Rabbit e perseguia-o com grande estardalhao. Eram to realistas na sua luta que eu temia que um se pudesse magoar; mas invariavelmente terminavam agitados mas sem feridas. Tanto quanto eu me lembre, as diversas competies acabavam com empate. Continuavam a guerrear-se depois do sol posto e, ao observ-los na penumbra, os arbustos normais tornavam-se facilmente numa vegetao mais selvagem e os meus dois amigos em dois tigres fantasmagricos ameaando-se mutuamente sem trguas num mundo mais primitivo. Nas semanas seguintes tornou-se bvio que Heathcliff era o MEU gato. Quase no podia ir de um lado para o outro sem que ele me seguisse; se o deixava na cama ou no peitoril da janela a dormir e fosse para outra diviso da casa em breve ouvia um som surdo e, pouco tempo depois, o grande gato felpudo estava minha beira. Quando me debruava para o afagar deitava-se de costas alegremente - uma das suas posies favoritas de afecto. Ao contrrio de Rabbit, gostava que lhe pegassem ao colo e deixava-se agarrar voluntariamente. Descansava a enorme cabea mesmo debaixo da minha clavcula, enquanto a cauda envolvia o meu brao como um velho xaile azul. Pela minha parte, dava-me sempre prazer v-lo. A minha afeio por Rabbit no tinha diminudo, mas admito que me lisonjeava ter um gato que gostava tanto da minha companhia. Com o bom tempo, os afazeres de Rabbit l fora aumentaram e passava-se a maior parte do dia antes que o vssemos, de relance, dentro de casa. Heathcliffporm, estava normalmente mo, quer estivesse na disposio de mimos ou no. Parecia saber que, mais tarde ou mais cedo, eu viria ter com ele e ele gostava de estar a postos. Mas adulaes e esperas pelas pessoas no so facetas fortes nos
felinos; mesmo em casa, Heathcliff podia estar to distante como se estivesse a milhas dali. s vezes, talvez para me ensinar a no o ter como certo, no me ligava minimamente: ao procurar afag-lo fugia, indignado, como se eu quisesse assassin-lo. Usualmente permitia-me uma quantidade de brincadeiras, desgrenh-lo ou beliscar a sua enorme cauda mas, quando de mau humor, dava um grunhido grave e levantava as patas dianteiras mostrando as garras e provando que no estava para ali virado. Felizmente, essas ocasies eram raras e depois recompensava-as com ronronares mais altos e demonstraes de carinho ainda mais entusisticas. No fao a mnima ideia daquilo que leva um animal a escolher uma pessoa numa famlia, a escolher irrevogavelmente um indivduo como companhia constante e excluir por completo todos os outros. Rabbt, quando tinha tempo, dividia imparcialmente as suas boas graas; contente em ver a minha mulher, contente em ver-me a mim. Se achava que era o momento de ronronar e dar marradinhas, fazia-o em excesso. Nunca era tmido perante as pessoas estranhas, tratava as visitas polidamente e, por vezes, podia ser induzido a brincar com crianas. Heathcliff mantinha-se minha beira e tinha uma atitude definitivamente negativa perante as visitas; embora nunca fugisse delas, sacudia a cabea com desdm, se algum, alm de mim, o tentasse afagar. Na presena de visitas aninhava-se aos meus ps ou no meu colo, piscando os olhos sem parar. Se acontecia eu demonstrar interesse especial pela conversa, ele pressionava o corpo dele contra o meu, chegando a espetar de leve as garras para me lembrar que estava ali; ou ento, carregava o sobrolho malignamente, lanando olhares terrivelmente negativos que chegaram a assustar a mulher de um amigo meu. E, por isso, no gozava nem de longe nem de perto da popularidade do simptico Rabbit. As pessoas que chegavam a conhecer melhoro Heathcliff, acabavam por apreciar a sua personalidade, mas outras perguntavam frequentemente como que eu tolerava um gato to desagradvel. O favoritismo e parcialidade que Heathcliff me devotava at deu origem a algumas criticas por parte deJanine. Ela sentia, com razo, que tinha sido ela que me introduzira no mundo dos gatos e que eu ainda no tinha ultrapassado a fase do estgio; por isso ela achava, e bem, que de todos, era ela quem devia ter uma ligeira prioridade nos favores de Heathclif. Certamente que os merecia, porque cuidava mais do bemestar dele do que eu, dando-lhe de comer, mudando-lhe a areia quando lho pedia, e desfazendo os ns do seu plo - algo que eu no conseguia. De facto, Heathcliff aproveitava-se da prpria indiferena; para tentar ganhar os seus favores, Janine subornava-o com petiscos extra. Ele tinha a conscincia absoluta de que Janine reinava na cozinha. Pedia-lhe a ela, e no a mim, de comer, abanando a cabea e quase apontava para o prato. Se ela se atrasava na preparao da ceia, o mtodo dele para lhe chamar a ateno seguia um esquema demorado. O Rabbit mostrava a sua fome saltando simplesmente para o escoadouro. O Heathcliffpreferia um processo mais complicado: primeiro arranhava a carpete, um meio infalvel para chamar a ateno da minha mulher; depois fazia um sem nmero de partidas falsas em direco da cozinha. Nesta altura era suposto que aJanine o seguisse. Se ela hesitava ou parava no meio da sala de estar, ele voltava, circulava volta dela e tornava a dirigir-se para a cozinha. s vezes, para o arreliar, ela fingia no perceber o que ele queria. Ento Heathcliff redobrava as arranhadelas na carpete e os seus movimentos em direco da cozinha. Quando ela, por fim, acedia, ele ia frente como que danando, triunfante.
Quando acabava de comer, refastelava-se no meu colo e durante o resto da noite no ligava mais janine. Apesar da afeio que tinha por mim, Heathcliffconsiderava que eu tinha defeitos. Tomou medidas para os corrigir e mostrou a mesma perseverana que tinha usado para ter entrada dentro de casa. Nunca imaginei que os meus hbitos fossem pouco razoveis, mas Heathcliff achava que sim e nunca perdia uma oportunidade para me indicar o bom caminho. Em primeiro lugar protestou contra o meu horrio irregular. Nesse tempo trabalhava como escritorrio e fazia tambm alguns trabalhos de traduo. J que os dias me pertenciam, podia-me organizar como bem entendesse, deitava-me tarde e mantinha um horrio muito flexvel. Comeava a trabalhar ao fim da tarde e continuava at meia-noite ou uma da manh, levantando-me no dia seguinte s oito horas. Mas na maior parte das vezes, continuava a trabalhar at muito depois da hora estabelecida e, nesses casos, dormia at perto do meio-dia. Depois do almoo, recomeava e passava o resto da tarde sentado escrivaninha. Conforme a evoluo do trabalho, tudo estava sujeito a mudanas sem aviso prvio. Podia trabalhar a tarde inteira, continuando pela noite dentro, comendo quando me apetecia. A minha mulher censurava este meu procedimento desde o comeo do nosso casamento, mas foi necessria a perseverana de Heathcliff para me fazer rever os meus hbitos. Para comear, em relao ao Heathcliff, eu fazia tudo ao contrrio. Contrastando com o Rabbit, Heathcliff era um gato que gostava do dia. Levantando-se cedo, tomava o pequeno-almoo logo que conseguia persuadir a minha mulher a prepar-lo. Fortificado com leite e rao para gatos, sentia-se na disposio para exerccios e brincadeiras matinais. Embora ele nunca protestasse quando, durante a noite, eu me virava e revirava, eu era uma presa fcil para ele quando dormia durante as manhs. Ele voltava sempre ao quarto de dormir, depois do pequeno-almoo, para ver o que eu estava a fazer; se eu fizesse o mnimo movimento durante o sono, ele saltava para cima de mim, brincando com os meus ps, por cima da coberta ou dava corridas para a frente e para trs por cima da minha barriga. Se parecia determinado em ignorar as suas investidas, ele aninhava-se relutantemente junto a mim e, da a pouco, recomeava as suas prticas; mas o impacto de um gato saltar para cima de mim era normalmente o suficiente para me acordar de vez. Ele continuou com as suas investidas at que, em defesa prpria, comecei a trabalhar s seis da manh, indo mais cedo para a cama. No contente com isto, tambm condicionou as minhas tardes. Heathcliff defendia firmemente a sesta; a sua hora era s trs e meia, o local era o meu regao. Eu no podia fazer grande coisa com ele esparramado sobre os meus joelhos e ele tinha o ar de quem estava to confortvel que comecei a pensar que talvez aquilo no fosse de todo m ideia. E assim, o Heathcliff e eu dormamos juntos uma hora de tarde. Gradualmente, mudei o meu programa original, trabalhando de dia e tomando as refeies a horas normais e humanas. Consegui isso e tornei ajanine e o Heathcliff consideravelmente mais felizes. Num ponto, contudo Heathcliff e eu no chegmos a um compromisso: o meu violino. Comecei a tocar violino como um hobby e como uma forma de relaxe. Como todos os amadores, levava s vezes a minha vocao ao extremo, roando e serrando at que me sentia mais exausto do que relaxado. Mas praticava religiosamente uma hora por dia, aps o jantar. No acredito que as vibraes das notas firam os ouvidos dos gatos, porque Rabbit nunca protestou. Mas Heathcliff no tolerava o rudo. Achava o prprio instrumento desagradvel, e pior ainda,
detestava-o e no se preocupava em demonstr-lo. Se ele estava comigo quando comeava a afinar o instrumento, chegava-se a mim, miando, tentando convencer-me a pr de lado a rabeca, esfregando-se nas minhas pernas, arqueando o dorso para ser afagado. Se isso no desse resultado, propunhajogarmos um jogo. Como eu tocava no meu escritrio, Heathcliff encontrava sempre algum papel amarrotado com o qual podia brincar: trazia-o at ao meio da sala, atirando-o para aqui e ali, lanando-me olhares convidativos. Finalmente, quando tudo tinha falhado, recorria aco directa: levantava-se nas patas traseiras e enterrava as garras nos meus joelhos. Quanto mais eu tocava mais ele enterrava, uivando e rosnando ao mesmo tempo. Tentei treinar-me com um violino mudo, mas tambm no gostava desse. No valia a pena p-lo fora da sala. Por muito que ele detestasse o violino, sempre que o ouvia vinha ter ao escritrio, da cozinha, do quarto, de qualquer lugar onde estivesse nesse momento. No Vero, com as janelas abertas, ao ouvir os sons da rabeca ele interrompia as suas actividades para vir demonstrar os seus protestos. Como sempre, rendi-me e acabei com o violino. Tal como a minha mulher lhe tem de dar graas por me ter obrigado a um horrio respeitvel, tenho a certeza de que os vizinhos ficaram igualmente gratos pelos resultados que obteve quanto minha ambio musical. Os gatos causam-nos impresses que aumentam a nossa imaginao. No nenhum crime e gostamos mais deles por isso mesmo. Mas nunca encontrara um gato que exercesse tanta variedade de efeitos como o Heathcliff. Primeiro, com o seu plo desgrenhado e o seu andar absurdo, fez-me lembrar Mr. Micawber. Ou um vigarista, um impostor e trapaceiro. Com o seu ar misterioso, as suas longas meditaes, transformava-se facilmente num poeta romntico. Tambm encontrei semelhanas com um filsofo, um aristocrata falido ou um velho depravado. Mas, no fundo, para mim, ele foi sempre o Heathcliff. Via tanta liberdade nele com o seu aspecto taciturno e cigano, que nunca dei muita credibilidade s outras semelhanas. Embora estivesse a ler O Monte dos Vendavais quando ele apareceu, e as suas personagens me viessem imediatamente mente, penso que me lembraria de qualquer modo desse nome como o nico possvel. Heathcliff tornou o livro numa fonte de comparaes. Por piada, lia uns extractos para a minha mulher, dando nfase ao nome sempre que este aparecia no texto. O efeito era ainda mais notrio quando acontecia Heathcliff estar nossa beira. Encontrava uma passagem como ... na aparncia como um cigano moreno, no vestir e nos modos um senhor; um senhor como muitos fidalgos rurais, bastante desleixado talvez, contudo no parecendo mal na sua negligncia, porque tinha uma figura direita e agradvel; e bastante taciturno. Entretanto, o nosso Heathcliff piscava os seus olhos amarelos de mocho como se aprovasse. O que comeou como um divertimento, tornou-se-me uma obsesso. At aos dias de hoje no consigo ler a passagem: os seus olhos de basilisco estavam quase fechados... os lbios cerrados com uma expresso de tristeza infinita... ou o Sr. Heathcliff austero e taciturno sem pensar no meu bom amigo. Mas acho que isso no vem prejudicar o livro. Apenas me faz abordar de uma maneira diferente a obra de Emily Bronte. Trad. J. L. F.
O GATO QUE ANDAVA SOZINHO Rudyard Kipling Isto passou-se e aconteceu e deu-se e foi, minha Bem-Amada, quando os animais domsticos ainda eram selvagens. O Co era selvagem, o Cavalo era selvagem e a Vaca era selvagem, a Ovelha era selvagem e o Porco era selvagem - o mais selvagem possvel - e todos eles andavam nas hmidas florestas selvagens, cada qual com os da sua espcie; mas o mais selvagem de todos os animais selvagens era o Gato. O Gato andava sozinho e todos os lugares eram iguais para ele. Claro que o Homem tambm era selvagem. Era terrivelmente selvagem. S comeou a ficar domesticado quando encontrou a Mulher e porque esta no gostava da maneira selvagem como ele vivia. A Mulher escolheu uma gruta seca e confortvel em vez de um monte de folhas molhadas para dormir e no fundo da gruta fez uma fogueira agradvel e pendurou entrada uma pele seca de Cavalo Selvagem, com a cauda para baixo e disse: Limpa os ps quando entrares para termos a casa em ordem. Nessa noite, Bem-Amada, comeram Carneiro Selvagem assado nas pedras quentes da lareira e temperado com alho e pimenta brava e Pato Selvagem recheado de arroz bravio e funcho silvestre e cominhos bravos e ossos de tutano de Boi Selvagem e cerejas bravas e groselhas silvestres. Depois o Homem foi dormir todo contente junto do fogo mas a Mulher ficou acordada, sentada, a matutar. Pegou no osso da omoplata do carneiro, o grande osso chato e largo, ficou a contemplar as maravilhosas marcas que o osso tinha, ps mais lenha no fogo e fez uma magia. Fez a primeira Magia Cantante do mundo. L fora, nas hmidas florestas selvagens, todos os animais selvagens se reuniram num ponto de onde conseguiam ver a luz do fogo ao longe e perguntavam a si prprios o que poderia ser aquilo. Ento o Cavalo Selvagem bateu com a pata no cho e disse: - meus amigos e meus inimigos, porque que o Homem e a Mulher fizeram aquela grande luz naquela grande gruta e que mal nos poder aquilo trazer? O Co Selvagem ergueu o focinho e farejou o cheiro da ovelha assada e disse: - Vou erguer-me e caminhar, e ver e ficar l: porque penso que bom. Gato, vem comigo. - Nrias - disse o Gato. - Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para mim. No vou. - Ento no voltaremos a ser amigos - disse o Co Selvagem e partiu a trote em direco gruta. Mas passado um bocado o Gato disse para com os seus botes: - Todos os lugares so iguais para mim. Porque no hei-de eu tambm pr-me a caminho e ver e vir-me embora? E assim rastejou em silncio atrs do Co Selvagem e escondeu-se num stio onde podia ouvir tudo. Quando o Co Selvagem chegou entrada da gruta soergueu com o focinho a pele de cavalo seca, farejou o maravilhoso cheiro do carneiro assado e a Mulher ouviu-o, riu-se e disse: Aqui vem a primeira coisa selvagem sada da floresta selvagem. Que queres tu? O Co Selvagem disse: - minha inimiga e mulher do meu inimigo, que isto que cheira to bem na floresta selvagem? Ento a Mulher pegou num osso do carneiro assado, atirou-o ao Co Selvagem e disse: Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, prova e experimenta!
O Co Selvagem roeu o osso e era mais delicioso que qualquer outra coisa que ele comera na vida; disse: - minha inimiga e mulher do meu inimigo, d-me outro. A Mulher disse: Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, ajuda o meu Homem a caar durante o dia e guarda esta gruta durante a noite e eu dou-te todos OS ossos assados que quiseres. - Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Esta Mulher muito sensata mas no to sensata como eu. O Co Selvagem rastejou para dentro da gruta e pousou a cabea no regao da Mulher e disse: - minha amiga e mulher do meu amigo, eu ajudarei o teu Homem a caar durante o dia e guardarei a tua gruta durante a noite. - Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Aqui temos um Co bem tolo. E foi-se embora atravs da hmida floresta selvagem abanando o rabo, sozinho na sua independncia selvagem. Mas nunca contou nada a ningum. Quando o Homem acordou, disse: - Que est o Co Selvagem a fazer aqui? E a Mulher disse: - O nome dele j no Co Selvagem mas sim Primeiro Amigo porque ser nosso amigo para todo o sempre. Leva-o contigo quando fores caar. Na noite seguinte a Mulher cortou grandes braadas de erva fresca nos lameiros e secou-a diante do fogo de modo que tudo ficou a cheirar a feno recentemente cortado e ela sentou-se entrada da gruta a entranar uma coleira com pele de cavalo e olhou para o osso do carneiro - o grande osso chato e largo - e fez uma magia. Fez a segunda Magia Cantante do mundo. L fora, no bosque selvagem, todos os animais selvagens se perguntavam o que teria acontecido ao Co Selvagem e, finalmente, o Cavalo Selvagem, escarvando o cho, disse: - Vou pr-me a caminho e ver porque que o Co Selvagem no aparece. Gato, anda comigo. - Nrias - disse o Gato. - Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para mim. No vou. Mas, apesar disto, seguiu o Cavalo Selvagem em silncio, muito em silncio e escondeu-se onde podia ouvir tudo. Quando a Mulher ouviu o tropel do Cavalo Selvagem que se aproximava com a sua enorme crina a ondular riu-se e disse: - A est a segunda coisa selvagem vinda da floresta selvagem. Que queres? O Cavalo Selvagem disse: - minha inimiga e mulher do meu inimigo, onde est o Co Selvagem? A Mulher riu-se e pegando no osso largo e chato disse: - Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, tu no vieste aqui procura do Co Selvagem mas sim por causa desta bela erva. E o Cavalo Selvagem a tropear na sua longa crina, disse: - verdade, d-me a comer dessa erva. A Mulher disse: - Coisa selvagem vinda da floresta selvagem inclina a tua cabea selvagem e usa aquilo que te vou dar e comers desta erva maravilhosa trs vezes por dia. - Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Esta Mulher esperta mas no to esperta como eu. O Cavalo Selvagem inclinou a cabea selvagem e a Mulher enfiou-lhe
a rdea de pele entranada e o Cavalo Selvagem soprou para os ps da Mulher e disse: - minha dona e mulher do meu dono, serei teu servo por amor desta erva maravilhosa. - Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Aqui temos um Cavalo bem tolo. E foi-se embora atravs da hmida floresta selvagem abanando a cauda selvagem, sozinho e independente. Quando o Homem e o Co voltaram da caa, o Homem perguntou: - Que est o Cavalo Selvagem a fazer aqui? E a Mulher disse: - O nome dele j no Cavalo Selvagem mas sim Primeiro Servo porque ele nos transportar de um lugar para outro para todo o sempre. Leva-o contigo quando fores caa. No dia seguinte, de cabea bem inclinada para trs para no emaranhar os cornos selvagens nos ramos das rvores selvagens, a Vaca Selvagem veio at gruta e o Gato seguiu-a e escondeu-se tal como tinha feito das outras vezes; e tudo se passou exactamente como das outras vezes; e o Gato disse a mesma coisa que das outras vezes e quando a Vaca Selvagem prometeu dar o seu leite todos os dias Mulher em troca da maravilhosa erva o Gato afastou-se atravs da hmida floresta selvagem, sozinho e independente como das outras vezes. E quando o Homem e o Co e o Cavalo voltaram da caa e fizeram as mesmas perguntas, tal como antes, a Mulher disse: - O nome dela j no Vaca Selvagem mas sim Dadora de Coisas Boas. Dar-nos- o seu leite branco e quente para todo o sempre e eu tomarei conta dela enquanto vocs trs vo caa. No dia seguinte o Gato ps-se espreita a ver se qualquer outra criatura selvagem iria at gruta mas nenhuma se moveu de forma que o Gato resolveu ir l sozinho e viu a Mulher a mungir a Vaca e viu a luz da fogueira na gruta e sentiu o cheiro do leite branco e morno. O Gato disse: - minha inimiga e mulher do meu inimigo, onde foi a Vaca Selvagem? A Mulher riu-se e disse: - Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, volta para a floresta porque eu entrancei o meu cabelo e arrumei o osso chato e largo e j no precisamos de mais amigos nem de mais servos na nossa gruta. O Gato disse: - No sou um amigo nem sou um servo. Sou o Gato que anda sozinho e quero entrar na tua gruta. A Mulher disse: - Ento porque no vieste com o Primeiro Amigo na primeira noite? O Gato ficou muito zangado e disse: - Ser que o Co Selvagem andou a contar coisas a meu respeito? Ento a Mulher riu-se e disse: - Tu s o Gato que anda sozinho e para quem todos os lugares so iguais. No s um amigo nem um servo. Tu prprio o disseste. Vai-te embora e anda sozinho pelos lugares iguais. Ento o Gato fez de conta que estava arrependido e disse: - Ser que nunca poderei entrar na gruta? Ser que nunca me poderei sentar quentinho junto ao lume? Ser que nunca beberei o leite branco e morno? Tu s muito esperta e muito bonita. No devias ser cruel nem sequer para com um Gato. Ento a Mulher disse: -J sabia que era esperta mas no sabia que era bonita. Assim vou fazer um pacto contigo. Se alguma vez disser uma palavra em teu louvor
poders entrar na gruta. - E se disseres duas palavras em meu louvor? - disse o Gato. - Tal nunca acontecer - disse a Mulher - mas se disser duas palavras em teu louvor poders sentar-te ao p do lume na gruta. - E se disseres trs palavras? - disse o Gato. - Tal nunca acontecer - disse a Mulher - mas se o fizer poders beber leite branco e morno trs vezes por dia para todo o sempre. Ento o gato arqueou o lombo e disse: - Agora, que a cortina entrada da gruta e o fogo no fundo da gruta e o pote de leite que est ao p do fogo se lembrem daquilo que disse a minha inimiga e mulher do meu inimigo. E afastou-se atravs da hmida floresta selvagem, abanando a cauda selvagem, sozinho e independente. Nessa noite, quando o Homem e o Cavalo e o Co voltaram da caa, a Mulher no lhes falou do pacto que tinha feito porque teve medo que eles no gostassem. O Gato foi para muito, muito longe e escondeu-se durante muito tempo, sozinho, na hmida floresta selvagem de modo que a Mulher se esqueceu completamente dele. S o Morcego - o pequeno Morcego de pernas para o ar - que vivia pendurado na gruta conhecia o esconderijo do Gato e todas as noites voava at l para lhe levar notcias. Uma noite o Morcego disse: - H um Beb na gruta. novo, rosado, gordo e pequeno e a Mulher gosta muito dele. - Ah! - disse o gato, ouvindo atentamente. - E de que que o Beb gosta? - Gosta de coisas macias e que fazem ccegas - disse o Morcego. Gosta de agarrar em coisas quentinhas quando quer dormir. Gosta que brinquem com ele. Gosta de todas essas coisas. - Ah! - disse o Gato - ento chegou a minha hora. Na noite seguinte, o Gato atravessou a hmida floresta selvagem e escondeu-se muito perto da entrada da gruta at de manh. A Mulher estava muito ocupada na cozinha e o Beb chorava e interrompia-a constantemente; ento ela levou-o para fora da gruta e deu-lhe um punhado de seixos para ele se entreter. Mas o Beb continuava a chorar. O Gato aproximou-se e ps a patinha acolchoada na bochecha do Beb e o Beb comeou a arrulhar; depois esfregou-se de encontro perninha gorda e fez-lhe festas com a cauda debaixo do gordo queixo. E o Beb riu-se e a mulher ouviu-o e sorriu. O Morcego - o pequeno Morcego de pernas para o ar - que estava pendurado entrada da gruta disse: - minha anfitri e mulher do meu anfitrio e me do meu anfitrio, uma coisa selvagem vinda da floresta selvagemest a brincar com o teu Beb. - Abenoada seja tal coisa selvagem seja ela qual for - disse a Mulher endireitando as costas - porque esta manh sou uma Mulher muito ocupada e ela prestou-me um bom servio. Nesse preciso momento e segundo, Bem-Amada, a cortina de pele de cavalo seca que estava pendurada de cauda para baixo porta da gruta caiu - Pumba! - porque se lembrou do pacto e, quando a Mulher foi apanh-la - pasmem! - o Gato estava muito confortavelmente sentado dentro da gruta. - minha inimiga e mulher do meu inimigo e me do meu inimigo disse o Gato - sou eu, porque tu disseste uma palavra em meu louvor e agora eu posso sentar-me na gruta para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para mim. A Mulher ficou muito zangada e cerrou os lbios e, pegando no
fuso, comeou a fiar. Mas o Beb chorava porque o Gato se tinha ido embora e a Mulher no conseguiu cal-lo e ele esbracejava e dava pontaps e tinha a cara toda roxa. - minha inimiga e mulher do meu inimigo e me do meu inimigo disse o Gato - pega num pedao do fio que ests a fiar e ata-o tua dobadoura e arrasta-o pelo cho e eu mostro-te um passo de magia que far o teu Beb rir-se to alto quanto est agora a chorar. - Farei isso - disse a Mulher - porque cheguei ao fim da minha pacincia mas no te agradecerei por isso. Atou o fio pequena dobadoura e esticou-o pelo cho e o Gato psse a correr atrs dele e a empurr-lo com as patas e a dar cambalhotas e a atirar o fio para trs das costas e a persegui-lo por entre as patas traseiras e a fazer de conta que o perdia e atirava-se para cima dele at o Beb desatar a rir tanto quanto chorava antes e gatinhar atrs do Gato pela gruta, muito contente, at se cansar e se instalar para dormir agarrado ao Gato. - Agora - disse o Gato - vou cantar ao Beb uma cano que o vai deixar a dormir durante uma hora. E comeou a ronronar alto e baixo, alto e baixo, at que o Beb adormeceu profundamente. A Mulher sorriu, contemplando os dois, e disse: - Que coisa bem feita! No h dvida que s muito esperto, Gato. Nesse preciso minuto e segundo, Bem-Amada, o fumo do lume ao fundo da gruta desceu do tecto em grandes nuvens e, quando se desvaneceu - pasmem! - o Gato estava sentado, muito confortavelmente, junto da fogueira. - minha inimiga e mulher do meu inimigo e me do meu inimigo disse o Gato - sou eu, porque tu disseste uma segunda palavra em meu louvor e agora posso sentar-me muito quentinho junto ao lume para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para mim. Ento a Mulher ficou muito zangada e soltou os cabelos e ps mais achas na fogueira e foi buscar o osso largo e chato da omoplata do carneiro e comeou a fazer uma magia que a impedisse de dizer uma terceira palavra em louvor do Gato. No era uma Magia Cantante, Bem-Amada, era uma Magia Calante; e pouco a pouco o silncio na gruta foise tornando to grande que um Rato muito pequenino saiu de um canto e correu pelo cho. - minha inimiga e mulher do meu inimigo e me do meu inimigo disse o Gato - este Rato pequenino faz parte da tua magia? - No - disse a Mulher e deixou cair o osso largo e chato e saltou para cima de um banco em frente lareira e entranou o cabelo muito depressa com medo de que o rato trepasse por ele acima. - Ah! - disse o Gato. - Ento o Rato no me faz mal se eu o comer? - No - disse a Mulher continuando a entranar o cabelo - come-o depressa e eu fico-te grata para sempre. Dando um salto o Gato apanhou o Ratinho e a Mulher disse: - Mil vezes obrigada Gato. Mesmo o Primeiro Amigo no to rpido como tu a apanhar Ratinhos. Deves ser muito esperto. Nesse mesmo minuto e segundo, Bem-Amada, o pote de leite, que estava junto ao lume, partiu-se em dois bocados - Pumba - porque se lembrou do pacto e, quando a Mulher saltou do banco - pasmem!- o Gato estava a lamber o leite branco e morno que tinha ficado num dos pedaos. - minha inimiga e mulher do meu inimigo e me do meu inimigo disse o Gato - sou eu, porque tu disseste trs palavras em meu louvor e agora eu posso beber o leite branco e morno trs vezes por dia para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os
lugares so iguais para mim. Ento a Mulher riu-se e ps frente dele uma tigela de leite branco e morno e disse: - Gato, s to esperto como um Homem , mas lembra-te que o pacto no foi feito nem com o Homem nem com o Co e eu no sei o que eles faro quando voltarem para casa. - Que me interessa isso? - disse o Gato. - Se eu tiver o meu lugar junto ao lume e o meu leite trs vezes por dia que me interessa o que o Homem ou o Co possam fazer? Nessa noite, quando o Homem e o Co voltaram para a gruta a Mulher contou-lhes a histria do pacto e o Homem disse: - Sim, mas no fez um pacto comigo nem com todos os Homens decentes que vierem depois de mim. E o Homem tirou ambas as botas de couro e pegou no machadinho de pedra (e so trs coisas) e foi buscar uma acha e um cutelo (ao todo so cinco) e ps tudo em fila e disse: - Ento agora vamos fazer um pacto. Se no apanhares Ratos enquanto estiveres na gruta e isto para todo o sempre, atirar-te-ei estas cinco coisas sempre que te vir e assim faro todos os Homens decentes que vierem depois de mim. -Ah! - disse a Mulher que tinha ouvido tudo. - Este Gato muito esperto, mas no to esperto como o meu Homem. O Gato contou as cinco coisas (e todas elas tinham um aspecto muito bruto) e disse: - Enquanto estiver na gruta apanharei Ratos para todo o sempre; mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para mim. - No enquanto eu estiver por perto - disse o Homem. - Se no tivesses dito isso, eu tinha guardado estas coisas todas (para todo o sempre) mas, sendo assim, agora vou atirar-te as minhas duas botas e o meu machadinho de pedra (o que faz trs coisas) sempre que me encontrar contigo e o mesmo faro todos os Homens decentes que vierem depois de mim. Ento o Co disse: - Esperem l. Ele no fez qualquer pacto comigo. - E sentou-se rosnando de forma muito assustadora, e mostrou os dentes e disse: - Se no fores bom para o Beb para todo o sempre enquanto eu estiver na gruta perseguir-te-ei at te apanhar e quando te apanhar hei-de morder-te e o mesmo faro todos os Ces decentes que vierem depois de mim. - Ah! - disse a Mulher que tinha ouvido tudo. - Este Gato muito esperto mas no to esperto como o Co. O Gato contou os dentes do Co (que tinham um aspecto muito aguado) e disse: - Serei bom para o Beb para todo o sempre enquanto estiver na gruta desde que ele no me puxe o rabo com muita fora. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para mim. - No enquanto eu estiver por perto - disse o Co. - Se no tivesses dito isso eu tinha fechado a minha boca para todo o sempre mas, sendo assim, perseguir-te-ei e obrigar-te-ei a trepar s rvores sempre que me encontrar contigo e o mesmo faro todos os Ces decentes que vierem depois de mim. Ento o Homem atirou ao gato as duas botas e o machadinho de pedra (o que faz trs coisas) e o Gato fugiu da gruta e o Co foi atrs dele e obrigou-o a trepar a uma rvore e desde esse dia, minha Bem-Amada, trs Homens decentes em cada cinco atiraro sempre coisas aos Gatos quando os encontrarem e todos os Ces decentes os perseguiro e
obrigaro a trepar s rvores. Mas o Gato tambm cumpre a sua palavra nos termos do pacto. Enquanto estiver em casa matar Ratos e ser bom para os Bebs desde que estes no lhe puxem o rabo com demasiada fora. Mas feito isto e nos intervalos continua a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares so iguais para ele e, noite, podero v-lo a caminhar no seu modo selvagem e solitrio abanando a cauda selvagem tal como sempre. Trad. L. F.
UM BARCO CARREGADINHO DE GRAA Eleanor Mordaunt - O gato algo de especial, nico - destacando-se de todo e qualquer indivduo. - Admitamos como toda a gente que um gato tem nove vidas, continuou Charlotre - e que este gato tem nove individualidades diferentes para cada uma dessas nove vidas - o que faz com que haja catorze pessoas a bordo deste barco, contando o gato por metade. Quando Charlotte fala deste modo faz-me lembrar Plato; claro que no to profunda, mas de igual modo intrigante e convincente. - Por exemplo, quando uma pessoa ao tocar, ao ouvir ou ao aperceber-se de qualquer coisa por um dos sentidos, sabe o que que faz responder os sentidos, e ao mesmo tempo imagina para si prpria uma outra coisa (independentemente daquele conhecimento, mas graas a outro, completamente diferente), no dizemos com razo que a pessoa se lembra de coisas que lhe vm mente? - A Charlotte ouviu dizer que os gatos tm nove vidas; para ela no pode haver uma individualidade sem haver vida; ela apercebe-se que o gato do barco tem uma forte individualidade, e (independentemente desse conhecimento, e graas a outro conhecimento totalmente diferente, a saber, - o dom da mulher de tirar concluses) argumenta que o gato semelhante em tudo aos nove indivduos a bordo do barco. O argumento decididamente tipo Charlotte, no obstante o facto de as frases entre travesses se encontrarem no Phaedo. Apesar de tudo, mesmo sem a sabedoria dos anos para apoiar o seu argumento, ela tem razo: h muitos homens - de toda a espcie - a bordo, mas s h um gato, e que gato! Ela sempre referida como ele, apesar de, na viagem de regresso, ela ter trazido ao mundo uma data de gatinhos, durante uma tempestade incrvel passagem do Cabo Hom; e de o Capito me ter dito que ela os tratava com uma tolerncia mnima, sendo um patife completo, um osso duro de roer, que muito mais um ele do que uma ela. Mas o gato do barco no s mais um ele do que uma ela, mas tambm tem mais caractersticas de um co do que de algum gato que j conheci, sendo a caracterstica principal a devoo inabalvel e firme pelo Capito; isso, apesar de ser arreliado e atormentado, e, o pior de tudo, ser gozado de um modo que alienaria para sempre a dedicao de qualquer gato. - Ns, - isto , o gato e o Capito, - temos a bordo galos e galinhas, que nos dias de sol se passeiam na coberta de um modo exasperantemente pomposo. Mas mesmo assim suposto permanecerem dentro de certos limites, fazendo estes limites as delicias do gato. Logo que o Senhor do Harm conduz a sua comitiva de mulheres at popa, ir pagar caro a sua temeridade. Boy no d de imediato soluo ao assunto, mas se o Capito est em baixo, o gato desce deliberadamente pela escotilha de descida e entra no camarote dele, olhando-o por alguns momentos, e depois comea a sair s arrecuas miando com nfase, convencendo-o a vir testemunhar o escndalo que est a desgraar o navio deles. Mesmo assim continua espera de ordens, ao lado do dono, l em cima no convs da popa, com o seu pequeno corpo musculoso de listas tigradas bem definidas, tenso e rgido, com as pupilas dos olhos verdes contradas como se fossem cabeas de alfinetes pela intensidade das emoes que o trespassam enquanto olha - no para os intrusos, mas para os olhos do seu deus. Ento, de repente, sem um som, como se uma corrente elctrica passasse entre eles, o seu dorso arqueia-se, agacha-se um pouco preparado para o salto, to pronto que dispara como uma bala, mesmo antes que as palavras A eles Boy tenham
sado da boca do Capito. Por um instante o galo faz-lhe frente - penas rufadas, bico aberto, asas estendidas - mas s por um momento, durante o qual as suas histricas fmeas fogem para todos os lados, sendo a nica preocupao de Boy elas no carem borda fora. E ento, a vez do senhor delas, que atacado por todos os lados, parecendo a fria peluda que o ataca uma viso indistinta de muitos gatos, to rapidamente o rodeia, salta e investe, arranha e bufa. As asas do galo esto abertas e estendidas como proteco e j no em atitude de desafio, a sua crista brilhante e erecta torna-se plida e flcida, as suas penas curvas da cauda, que podiam ornamentar um chapu de marechal, esto tristemente espalhadas pelo convs. O galo corre de um lado para o outro, de cabea baixa, e de repente, deixando cair toda a rstea de dignidade, arremessa-se para junto das suas fmeas que se retiram em debandada para os alojamentos no poro, com as caudas fazendo lembrar crinolinas invertidas devido ao vento. Ver Boy brincar bola com um pedao de cortia na realidade um maravilhoso estudo sobre curvas e vitalidade intensa. Ele agacha-se a cerca de 2,5 metros do seu dono, as pupilas dos olhos iguais a dois poos pretos, orlados vagamente de verde e a sua cauda bate no convs num movimento regular e circular. - Pronto Boy! - grita o Capito e ele firma-se, sacudido por um estremecimento que lhe percorre todo o pequeno corpo, no qual cada tomo de vida est pronto para o salto; um momento de vida ou de morte e todo o seu ser resplandece de entusiasmo; est ele, a cortia e acidentalmente, o homem que a atira - nada nem ningum mais em todo o universo. - Agora! - A cortia atirada e Boy salta, completamente esticado, depois no meio do ar enrola-se, com as patas dianteiras esticadas como as mos de um jogador de cricket, a um metro de altura do convs agarra a cortia com as patas enluvadas de branco e aterra enrolando-se no convs, pontapeando a cortia com as patas traseiras num transporte de perfeita alegria. E se ele falha? Ah, isso outra coisa. Suponhamos que somos bem educados e no rimos, ele simplesmente finge estar esquecido que a cortia fora atirada, passeia-se no convs, dirige-se a ela como se algo de novo se tratasse, cheira-a como a querer dizer o que isto?, olha para o dono vamos brincar? e finalmente, apanhando-a, deposita-a aos ps dele, pedindo-lhe, como se fosse uma nova ideia, que a atire. Mas se algum, que no seja o dono, se rir, acabou o jogo nesse dia, e sua alteza retira-se amuado, o que tambm , na sua intensidade, outro sinal de que o seu sexo real um equvoco, porque as mulheres quase nunca amuam, pois normalmente tm muito que dizer sobre o que as aborrece. Quando isto acontece ele parece ter prazer em colocar-se nas situaes mais perigosas, como na parte superior da popa, ou dentro dos botes, com um ar como quem diz para si prprio: Vou-lhes pregar um bom susto e eles vo ter pena de terem agido como agiram. - Sai da - grita o Capito. Mas Boy limita-se a dar-lhe uma olhadela e no mexe sequer um milmetro, at que o dono se abaixa para pegar num cabo e ento foge, que nem uma seta, para um lugar mais seguro, porque sabe muito bem que no pode ir para certos stios, mesmo que o barco, a bem dizer lhe pertena. Quando se mata um carneiro, a carne fresca dependurada por debaixo dos botes no convs principal e atrai Boy como um man, embora nada neste mundo o faa comer um bocado. Mas se estamos todos, incluindo ele, claro, porque detesta a solido, no convs da popa e o
Capito puxa do canivete, ele mia selvaticamente e treme todo de emoo. Que belo exemplo de autodomnio! Ele quer muito, tanto que fica quase louco com a excitao da probabilidade de obter nem que seja um bocadinho. Ele podia facilmente servir-se a qualquer hora do dia ou da noite, mas nunca o fez. Agora, digam-me, ser a moralidade uma questo de alma, que concedida ao bbado mais inveterado, ao ladro mais obstinado e contudo negado a Boy!? No salo a mesma coisa: basta o Capito pegar no bon para que o gato comece a esfregar-se nas pernas dele miando: - Carne, carne, carne, carne - por favor. Mas no se trata de um amor interesseiro, porque mesmo que o salo esteja aquecido, o convs molhado, o tempo uma misria de ventoso e chuvoso, se o Capito est no convs, tambm o gato tem de l estar. s vezes quase que lhe falta a coragem e ele fica espera a ver se o seu dolo s foi ver como estava o tempo e torna a entrar; mas no fica descansado, e passados alguns momentos de espera ansiosa, j no quer saber do conforto e s volta quando o seu dono o fizer. Na outra noite, foi apanhado por um mar agitado, andando de bolandas de um lado para o outro, sem esperana e indefeso at que foi salvo pelo imediato e levado para o salo, um farrapo miserento e molhado, que teve de ser lavado em gua doce e seco junto ao lume. Mas mesmo nessa ocasio ele no descansou; sentado no meu colo, os seus olhos no deixavam a porta e tornou a sair antes de estar nem meio seco. E no por ser fcil estar junto ao seu dolo, pois est sempre a ser puxado pelas orelhas ou pelo rabo, ou a ser beliscado nas patas, embora ele raramente retalie com uma arranhadela ou dentada, mas quando o faz fica to envergonhado que de se partir o corao ver o seu profundo mal-estar. Quando chegmos pela primeira vez a bordo, Boy olhou para ns extremamente desconfiado; talvez lhe fizssemos lembrar o seu sexo, ou talvez fosse simplesmente um desagrado total pelas saias a roar no barco dele. Mas tudo mudou desde aquela noite, quando a Charlotte esteve to doente. Enquanto o Capito aplicava cataplasmas, o Boy andava constantemente dentro e fora, subindo ao beliche, reclamando vigorosamente por ateno e explicaes, por que o bichano feminino de sobra neste aspecto - quer saber o como e o porqu de tudo. E agora que percebeu que ramos toleradas pelo seu dono, ele tambm nos tolera e chega a aconchegar-se no meu colo, colocando ocasionalmente as patinhas fofas no meu peito e convidando-me amigavelmente a esfregar os narizes. Mas isto s acontece quando no pode estar sentado nos joelhos do seu dono, o que de longe prefere, embora parea e deva ser muito desconfortvel, no tendo o volume das saias para lhe dar conforto. trad. j. L.
SOBRETUDO GATOS Doris Lessing Vim viver para uma terra de gatos. As casas so velhas e tm jardins estreitos protegidos por muros. Pelas janelas das traseiras de nossa casa v-se uma dzia de muros para um dos lados, uma dzia de muros para o outro, de todos os tamanhos e feitios. rvores, erva, arbustos. H um pequeno teatro com vrios telhados a alturas diferentes. Os gatos proliferam por aqui. H sempre gatos nos muros, nos telhados e nos jardins, vivendo a sua vida complicada e secreta como a vida das crianas da vizinhana que se desenrola segundo regras prprias que os adultos nunca conseguem imaginar nem entender. Eu sabia que teria de haver um gato na casa. Tal como sabemos que se uma casa for muito grande ho-de vir pessoas viver nela, tambm certas casas tm de ter gatos. Mas, durante algum tempo, repeli os vrios gatos que vieram meter ali o nariz para ver que gnero de stio era aquele. Durante todo aquele terrvel Inverno de 1962, o jardim e o telhado que cobria a varanda das traseiras receberam a visita de um velho gatarro preto e branco. Sentava-se sobre a neve escorregadia do telhado; deambulava pelo cho gelado; quando se abria por instantes a porta das traseiras ficava sentado entrada a olhar para a sala aquecida. No era nenhuma beleza, tinha uma mancha branca sobre um dos olhos, uma orelha rasgada e uma mandbula sempre um pouco descada. Mas no era um gato vadio. Tinha uma boa casa na rua e ningum percebia por que razo ele no ficava l. Aquele Inverno foi um curso de formao sobre a extraordinria capacidade de resistncia voluntariosa dos ingleses. A maior parte daquelas casas era propriedade da autarquia e, na primeira semana de frio, as canalizaes gelaram e rebentaram e as pessoas ficaram sem gua, mantendo-se assim gelado o sistema. As autoridades locais mandaram abrir um cano na esquina da rua e, durante semanas, as mulheres da vizinhana andaram de um lado para o outro a carregar gua em baldes e jarros, pelos passeios cobertos com uma camada de gelo escorregadio, caladas de chinelos. Ningum limpava o gelo e a neve dos passeios. Iam buscar a gua torneira, que rebentou vrias vezes, e diziam que a nica gua quente que tinham era a que punham a aquecer no fogo. Assim se passou uma semana, duas - depois trs, quatro e cinco semanas. E claro que no havia gua quente para banhos. Quando se lhes perguntava porque no se queixavam j que, ao fim e ao cabo estavam a pagar renda, a pagar gua quente e fria, responderam que o municpio sabia das canalizaes mas no fazia nada a esse respeito. O municpio fizera notar que havia uma vaga de frio; elas concordavam com este diagnstico. As vozes delas eram lgubres mas as mulheres sentiam-se profundamente realizadas como acontece a esta nao quando submetida a actos de Deus perfeitamente evitveis. Um velho, uma mulher de meia idade e uma criana pequena passaram os dias daquele Inverno na loja da esquina. A loja estava ainda mais fria do que aquilo que mandava a temperatura natural abaixo de zero, porque as unidades de refrigerao estavam em funcionamento e a porta sempre aberta deixava entrar o ar gelado de novo. O velho apanhou uma pleurisia e teve de passar dois meses no hospital. Tendo ficado muito debilitado, viu-se obrigado a vender a loja na Primavera. A criana sentava-se no cho de cimento, chorando constantemente por causa do frio e apanhava bofetadas da me que estava atrs do balco com um vestido de l leve, meias de homem e um casaquinho fino, sempre a dizer como tudo aquilo era horrvel, e com o nariz e os olhos a pingar e os
dedos todos inchados e rebentados de frieiras. O velho da casa ao lado, que trabalhava como porteiro do mercado, escorregou no gelo frente da porta, magoou-se nas costas e esteve semanas a receber pelo fundo de desemprego. Nessa casa, onde moravam nove ou dez pessoas, havia um nico aquecedor elctrico com uma s resistncia para combater o frio. Trs pessoas foram hospitalizadas, uma delas com pneumonia. E as canalizaes permaneceram rotas, envolvidas numa capa de estalactites de gelo; os passeios mantiveram-se gelados; e as autoridades nada fizeram. Nas ruas onde habitava a classe mdia, claro que a neve era limpa medida que caa e as autoridades respondiam a cidados zangados que reivindicavam os seus direitos e ameaavam instaurar processos. Na nossa rea as pessoas sofreram aquela situao at Primavera. Rodeado de seres humanos condenados a arrostar com as frias do Inverno como se fossem caverncolas de h milhares de anos, as manias de um velho gato que escolhera um telhado gelado para passar as noites perderam importncia. Em meados daquele Inverno uns amigos receberam de presente uma gatinha. Uns amigos deles tinham uma gata siamesa que tinha tido uma ninhada de filhos de um gato vadio e estavam a oferecer os gatinhos. O apartamento daqueles meus amigos era minsculo e ambos trabalhavam o dia inteiro; mas quando viram a gatinha no conseguiram resistir. Durante o primeiro fim-de-semana alimentaram-na com lagosta enlatada e mousse de frango e viram as suas noites de casal muito perturbadas porque a gatinha tinha de dormir debaixo do queixo ou, pelo menos, de encontro ao corpo de H, o homem. S., a mulher, anunciou ao telefone que estava a perder as atenes do marido em favor de uma gata, tal como acontecera mulher no conto de Colette. Na segunda-feira foram trabalhar deixando a gatinha entregue a si prpria e, quando voltaram para casa, encontraram-na triste e a chorar porque tinha estado sozinha o dia inteiro. Disseram ento que nos traziam a gata. E assim fizeram. A gatinha tinha seis semanas. Era encantadora, uma gata delicada de conto de fadas, a quem os genes siameses tinham conformado a cara, as orelhas, a cauda e as subtis linhas do corpo. As costas eram tigradas: vista de cima ou de trs era uma bonita gata tigrada em tons de cinzento e bege. Mas a frente e a barriga eram de um dourado fumado, bege siams, com duas meias riscas pretas no pescoo. A cara estava desenhada a preto - finos anis escuros em torno dos olhos, leves riscos pretos nas bochechas, um narizinho de cor creme com uma ponta rosada, debruado a preto. Vista de frente, sentada com as suas patas muito direitas, era um animal exoticamente belo. Ali estava, uma coisinha minscula, no meio da carpete amarela, rodeada por cinco adoradores, sem manifestar qualquer medo. Depois passeou-se com ar muito digno pela casa a inspeccionar cada centmetro do cho, trepou para a minha cama, enroscou -se numa prega do lenol e sentiu que estava em casa. S. foi-se embora com H. dizendo: - Foi mesmo a tempo, seno ainda ficava sem marido. E H. foi-se embora resmungando que nada era mais excitante do que ser acordado pelo toque delicado de uma lngua rosada na cara. A gatinha desceu, ou melhor dizendo, saltou pelas escadas abaixo. Cada um dos degraus era o dobro da altura dela: primeiro as patas da frente, depois flop, as de trs; patas dianteiras, flop, patas traseiras. Inspeccionou o andar de baixo, recusou a comida enlatada que lhe foi oferecida e, miando, pediu o caixote. Recusava aparas de madeira mas achava aceitveis jornais rasgados, dizia a sua pose altiva, se no houvesse mais nada. No havia: l fora a terra estava
completamente gelada. No comia comida enlatada para gato. Recusava-se pura e simplesmente. E eu no estava para aliment-la com sopa de lagosta e frango. Conseguimos um compromisso com carne picada. Foi sempre to exigente relativamente comida como um gourmet solteiro. E vai piorando medida que vai envelhecendo. Ainda muito pequenina, j manifestava aborrecimento ou prazer ou a determinao de amuar pela maneira como comia, depenicava ou recusava a comida. Os seus hbitos alimentares so uma linguagem eloquente. Mas eu penso que bem possvel que a tenham tirado me ainda muito pequena. Se me permitem, sugiro com o maior respeito aos peritos em gatos que talvez estejam enganados quando dizem que os gatinhos devem ser separados das mes no dia em que fazem seis semanas. Esta gatinha tinha seis semanas, nem mais um dia, quando foi tirada me. A base do seu dandismo alimentar a hostilidade neurtica e a desconfiana manifestadas perante a comida por uma criana com problemas. Ela tinha de comer, achava ela; e comia; mas nunca comia com prazer, s por comer. E partilha tambm outra caracterstica com as pessoas que no tiveram suficiente amor materno. Ainda hoje se metera instintivamente sob as dobras de um jornal ou dentro de uma caixa ou de um cesto - de qualquer coisa que abrigue, de qualquer coisa que cubra. Mais ainda: est sempre pronta a sentir-se insultada, est sempre pronta a amuar. E uma covarde inveterada. Os gatinhos que permanecem com as mes durante sete ou oito semanas comem sem problemas e so seguros de si mesmos. Mas claro que no so to interessantes. Em pequena, esta gatinha nunca dormiu fora da cama. Esperava que eu me deitasse, depois passeava-se por cima de mim a analisar todas as possibilidades. Enfiava-se ento dentro da cama, ou junto aos meus ps, ou ao meu ombro, ou escondia-se debaixo do travesseiro. Quando eu me mexia demais, mudava de poiso rapidamente, manifestando o seu aborrecimento. Quando eu fazia a cama, ela no se importava nada de ficar fechada l dentro; e mantinha-se ali, s vezes durante horas, como um pequeno montculo entre os lenis. Se acaricissemos o montculo, este miava e ronronava. Mas no abandonava a cama enquanto no precisasse de o fazer. O montculo deslocava-se pela cama, hesitava ao chegar borda. Por vezes ouvia-se um miado frentico quando escorregava para o cho. Com a sua dignidade posta em causa, apressava-se a lamber o plo, lanando olhares amarelos flamejantes a quem se atrevia a rir. Em seguida, de nariz no ar, procurava o melhor sitio para se pr na ribalta. Eram horas da refeio, sempre comida com ar enfastiado. Horas de ir caixa de areia, sempre uma exibio requintada. Horas de pr em ordem o plo de cor creme. E horas de brincar, algo que nunca era feito pelo puro prazer da brincadeira, mas apenas quando algum estava a observ-la. Era to arrogantemente consciente de si mesma, como uma rapariga bonita que no possui mais atributos para alm da beleza: corpo e rosto sempre numa atitude comandada por um encenador interno - uma pose que vale tanto como uma mscara: no, no, assim que eu sou, o peito agressivo, os olhos hostis sempre procura de admirao. A gata, na idade em que, se fosse humana, haveria de usar roupa e cabelos como se fossem armas mas sabendo que, sempre que quisesse, poderia regressar amimada infncia porque o papel se tornara demasiado pesado - a gata posava e pavoneava-se como uma princesa pela casa e, depois, cansada, com um ligeiro ar de desdm, enfiava-se nas
dobras de um jornal ou por detrs de uma almofada, e dali, em segurana, observava o mundo. O seu truque mais engraado, usado normalmente quando tinha espectadores, era deitar-se de costas por baixo de um sof, e a arrastar-se, com a ajuda das patas, em saces rpidos, parando para voltar a cabecinha elegante, de olhos amarelos semicerrados, espera de aplausos. Oh! que linda gatinha! Que maravilha de bicho! Linda bichana! E depois continuava, com nova exibio. Ou ento, sobre a superficie adequada, o tapete amarelo, uma almofada azul, deitava-se de costas e rebolava lentamente, de patas no ar e cabea para trs, de forma a mostrar a barriga e o peito de cor creme ligeiramente ponteado de manchas escuras como se fosse uma variedade de leopardo. Oh, linda gatinha, que bonita tu s! E ela assim continuava at pararem os cumprimentos. Ou, ento, instalava-se na varanda das traseiras, no em cima da mesa que no tinha qualquer ornamento, mas numa floreira onde havia narcisos e jacintos em vasos de barro. Ficava em pose entre cachos de flores azuis e brancas at que algum reparasse e a admirasse. No s ns, claro; tambm o velho gatarro cheio de reumatismo que se arrastava, triste memria viva de uma vida muito mais dura, pelo jardim onde a terra estava ainda gelada. Viu por detrs dos vidros uma linda gata adolescente. Ela tambm o viu. Ergueu a cabea movendo-a para um lado e para o outro; mordiscou um pedacinho de jacinto, deixou-o cair; lambeu o plo, displicentemente; depois, olhando insolentemente para trs saltou da floreira e entrou em casa, escondendo-se dele. Ou, subindo as escadas, empoleirada num brao ou num ombro, espreitava pela janela e via o pobre bicho to quieto que, s vezes pensvamos que ele tinha morrido e congelado ali no jardim. Quando o sol comeava a aquecer, por volta do meio-dia, ele sentava-se e comeava a lamber-se e ns ficvamos aliviados. Por vezes ela ficava a observ-lo da janela, mas a sua vida ainda era anichar-se nos braos, nas camas, nas almofadas e nos cantos dos seres humanos. Depois chegou a Primavera, a porta das traseiras abriu-se, a caixa de areia deixou, graas a Deus, de ser necessria e o jardim da cozinha tornou-se o seu territrio. Ela estava com seis meses e totalmente desenvolvida do ponto de vista da natureza. Era, ento, to bonita, to perfeita; mais bonita ainda do que aquela gata que, h tantos anos, eu jurara que no tinha rival. E no tinha, claro; porque, por natureza, essa gata era toda ela tacto, delicadeza, ternura e graa - de tal forma que, como rezam os contos de fadas e dizem as mulheres velhas, tinha de morrer jovem. A nossa gata, a princesa, era, ainda , bela, mas no vale a pena iludirmo-nos, um monstro de egosmo. Os gatos alinhavam-se nos muros do jardim. Primeiro, o velho e escuro gato do Inverno, rei dos jardins das traseiras. Depois um belo gato preto e branco da casa ao lado, filho do velho ao que parecia. Um gato listado, cheio de cicatrizes de batalhas. Um gato cinzento e branco estava to certo de ser derrotado que nunca se atreveu a descer do muro. E um jovem e espectacular gato tigrado que ela admirava nitidamente. Tal no lhe servia de nada, porque o velho gato no se declarava vencido. Quando ela saa, de cauda no ar, ignorando-os aparentemente a todos mas de olho no belo tigre jovem, este, de um salto, punha-se frente dela. Mas bastava ao gato do Inverno espreguiar-se um pouco l no alto do muro para o gato jovem recuar de imediato. Isto arrastou-se durante semanas. Entretanto H. e S. vieram visitar o animalzinho de estimao perdido. S. disse como era terrvel e injusto que a princesa no
pudesse escolher; e H. disse que era exactamente assim que devia ser: uma princesa tem de ter um rei, mesmo que seja velho e feio. Ele tem tanta dignidade, disse H.; tem uma tal presena; e ganhou direito linda gatinha devido sua pacincia durante o longo Inverno. Por essa altura, o gato feio tinha sido crismado de Mefistfeles. (Em casa dele, disseram-nos, chamavam-lhe Billy.) A nossa gata tinha tido vrios nomes mas nenhum deles pegara. Melissa e Franny; Marilyn e Sappho; Ci rce e Ayesha e Suzette. Mas em conversa, no dilogo amoroso, miava e ronronava e reagia s slabas arrastadas dos adjectivos: hunda; bichaninha boninita. Num fim-de-semana muito quente, o nico de que me lembro num Vero horrvel, a gata entrou em cio. H. e S. vieram almoar no domingo, e instalmo-nos na varanda das traseiras a observar as escolhas da natureza. No as nossas. E tambm no as da nossa gata. Os combates prolongaram-se durante duas noites, combates violentos, com gatos a gemerem, a miarem e a gritarem no jardim. Entretanto a gata cinzenta instalara-se aos ps da minha cama, a olhar para o escuro, de orelhas erguidas, e pontinha da cauda a oscilar. Nesse domingo s o Mefistfels andava por ali. A gata cinzenta rebolava-se de xtase por todo o jardim. Vinha ter connosco, roava-se pelos nossos ps e mordia-os. Subia e descia rvore no fundo do jardim. Rebolava-se, gritava, chamava e seduzia. - Nunca vi manifestao de luxria mais degradante - disse S. a olhar para H. que estava apaixonado pela nossa gata. - Oh, pobre gatinha! - disse H. se eu fosse o Mefistfeles nunca te trataria to mal. - Oh, H. - disse S. - s nojento. Se eu contasse isto ningum acreditava. Mas eu sempre disse que s um nojo. - Ento isso que costumas dizer - disse H. acariciando a gata exttica. Estava um dia muito quente, tnhamos bebido muito vinho ao almoo e os jogos amorosos prolongaram-se pela tarde inteira. Finalmente, Mefistfeles saltou do muro para junto da gata cinzenta que continuava a rebolar-se e a chamar mas, coitado, falhou redondamente. - Oh, meu Deus - disse H. que estava realmente a sofrer. - Estas coisas so, de facto, imperdoveis. S. angustiada, observava os tormentos da nossa gata e exprimia dvidas frequentes, em tom dramtico e em voz alta, sobre se o sexo valeria tanto sofrimento. - Olhem para aquilo - disse ela. - Aquilo somos ns. assim que ns somos. - No somos nada assim - disse H. - o Mefistfeles. Devia ser fuzilado. - Fuzila-o j - dissemos todos - ou, pelo menos, fechem-no em qualquer stio, para que o jovem tigre possa ter alguma hiptese. Mas o belo gato no estava vista. Continumos a beber vinho; o Sol continuou a brilhar; a nossa princesa danava, rebolava-se, subia e descia da rvore e, quando finalmente as coisas correram bem, o velho rei logrou por vrias vezes os seus intentos. - O que est mal aqui - disse H. - que ele velho demais para ela. - Oh, meu Deus - disse S. - vou levar-te para casa. Porque se ficas aqui ainda s tu que fazes amor com a gata. - Quem me dera - disse H. - Que bichinho delicado, que criatura encantadora, que princesa! mal empregada num gato, no aguento isto!
No dia seguinte, o Inverno voltou. O jardim ficou molhado e sombrio; a gata cinzenta regressou aos seus modos enfastiados. E o velho rei ficou no muro do jardim, sob a lenta chuva inglesa, vencedor de todos, espera. trad. L. F.
A DINASTIA PRETA E A DINASTIA BRANCA Thophile Gautier Uma gata trazida de Havana por Mademoiselle A'i'ta de la Penuela, uma jovem artista espanhola cujos estudos sobre angors brancos possivelmente ainda adornam as vitrinas das lojas de arte, produziu o gatinho mais adorvel que imaginar se possa. Era exactamente como uma borla de p de arroz de plumas de cisne e, por causa da sua brancura imaculada, recebeu o nome de Pierrot. Quando cresceu o nome foi aumentado para Don Pierrot de Navarre, muito mais grandioso e majesttico. Don Pierrot, como todos os animais mimados e objecto de muita ateno, tornou-se de um carcter encantador e amigvel. Partilhava a vida da casa com todo o prazer que os gatos sentem na intimidade do lar. Sentado no seu lugar habitual, junto ao lume, parecia que percebia realmente as conversas e que se interessava por elas. Olhava para a pessoa que estava a falar e de vez em quando emitia pequenos sons como se quisesse, tambm, fazer os seus comentrios e dar a sua opinio sobre literatura que era, normalmente, o nosso tpico de conversa. Gostava muito de livros e, quando encontrava um livro aberto sobre a mesa, instalava-se l em cima, olhava atentamente para a folha e virava a pgina com a pata; depois acabava por adormecer mas dava a impresso que estava a ler um romance na moda. Mal eu pegava numa caneta, saltava para a minha escrivaninha e punha-se a olhar com profunda ateno para o aparo de ao que traava pernas de aranhio sobre o papel branco. Voltava a cabea sempre que eu comeava uma linha nova. s vezes queria participar no trabalho e tentava tirar-me a caneta da mo, sem dvida para escrever ele tambm, pois era um gato esttico como o Murr de Hoffman. Tenho mesmo fortes suspeitas de que escreveu as suas memrias durante a noite, em qualquer telhado, luz dos seus olhos fosforescentes. Infelizmente essas elucubraes perderam-se. Don Pierrot nunca se deitava antes de eu chegar a casa. Esperava por mim porta e, quando eu entrava no hall, esfregava-se pelas minhas pernas e arqueava o dorso, ronronando alegremente sem parar. Depois caminhava minha frente como se fosse um pajem e tenho a certeza de que, se assim lho pedisse, me transportaria a candeia. Assim, acompanhava-me ao quarto e esperava enquanto eu me despia; em seguida saltava para a cama, punha as patas volta do meu pescoo, esfregava o nariz dele no meu, e lambia-me com a linguazinha cor-de-rosa e spera, ao mesmo tempo que emitia gritinhos inarticulados que exprimiam claramente o prazer que sentia em me ver de novo. Depois, quando se esbatiam as suas manifestaes de afecto e chegava a hora do repouso, empoleirava-se nas grades da cama e adormecia como um passarinho no poleiro. De manh quando eu acordava, vinha deitar-se ao p de mim at eu me levantar. Meia-noite era a hora a que eu devia chegar a casa. Neste aspecto, Pierror tinha verdadeiramente o esprito intransigente de um porteiro. Nessa poca tnhamos institudo uns seres entre amigos e tnhamos criado uma pequena Sociedade, a que chammos o Clube das Quatro Velas porque a sala em que nos reunamos estava iluminada por quatro velas em castiais de prata colocados nos cantos da mesa. s vezes, a conversa ficava to animada que eu me esquecia das horas e corria o risco, como a Cinderela, de encontrar a minha carruagem transformada em abbora e o meu cocheiro transformado em rato. Vrias noites o Pierrot ficou minha espera at s duas horas da manh mas, finalmente, a minha conduta desagradou-lhe e ele resolveu ir
para a cama sem mim. Este protesto mudo contra a minha inocente dissipao comoveu-me tanto que, desde ento, passei a vir para casa regularmente meia-noite. Mas o Pierrot levou muito tempo a perdoarme. Queria ter a certeza de que no se tratava de um arrependimento fingido; mas quando se convenceu da sinceridade da minha converso, decidiu conceder-me novamente os seus favores e retomou o seu posto no hall de entrada. Ganhar a amizade de um gato no coisa fcil. um animal filosfico, de hbitos regulares e tranquilos, amante da ordem e da limpeza. No esbanja indiscriminadamente as suas afeies. Consentir em ser nosso amigo, se nos mostrarmos dignos dessa honra, mas nunca ser nosso escravo. Por muito que goste de ns mantm sempre a sua liberdade de julgamento e nunca far nada que considere pouco razovel; mas, quando concede o seu amor, que confiana absoluta, que fidelidade na afeio! Tornar-se- o companheiro das horas de trabalho, de solido ou de tristeza. Permanecer noites inteiras em cima dos nossos joelhos, ronronando e contente na nossa companhia, desdenhando a sociedade de criaturas da sua espcie para ficar connosco. Em vo ecoar nos telhados o miar dos outros gatos, convidando-o para uma daquelas festas nocturnas em que a essncia de arenque ocupa o lugar do aroma do ch. No se deixar tentar, continuar a sua viglia connosco. Se o pusermos no cho, voltar a trepar rapidamente para o nosso colo, com um rudo de garganta que como uma doce censura. Por vezes, quando est sentado nossa frente, pe-se a olhar para ns com uns olhos to doces, to ternos, com um olhar to humano e amigo, que quase nos assustamos, pois parece impossvel que no exista razo por detrs daquele olhar. Don Pierrot tinha uma companheira da mesma raa, to branca como ele. Todas as comparaes com a neve que se possam imaginar no bastariam para dar a ideia daquela pele imaculada que faria parecer o arminho amarelado. Chamei-lhe Seraphita, em memria do romance Swedenborgiano de Balzac. Nunca a herona dessa maravilhosa histria, quando com Minna subiu aos cumes cobertos de neve do Falberg, foi de um branco to brilhante e puro. Seraphita tinha um carcter sonhador e pensativo. Passava horas imvel, deitada numa almofada, sem dormir, com os olhos fixos, numa ateno desvanecida, em cenas invisveis para o comum dos mortais. Gostava de carcias mas retribuia-as com grande parcimnia e s quelas pessoas a quem concedia o favor da sua estima, que no era fcil de conquistar. Apreciava o luxo e era sempre na poltrona mais nova ou no mvel que melhor punha em destaque a sua beleza de cisne que a podamos encontrar. A sua toilette durava horas infindas. Todas as manhs alisava cuidadosamente todo o cabelO e lavava o focinho com a pata e cada um dos plos do seu corpo brilhava como prata nova depois de alisado pela lngua cor-de-rosa. Se algum lhe tocasse, imediatamente ela apagava qualquer vestgio do contacto, pois no suportava que a despenteassem. A sua elegncia e distino sugeriam um bero aristocrtico e entre a sua espcie devia ser, pelo menos, duquesa. Tinha uma paixo por perfumes. Mergulhava o nariz em ramos de flores e mordiscava os lenos perfumados com pequenos paroxismos de satisfao. Passeava-se pelo toucador, cheirando as tampas dos frascos de perfume e, se a deixassem, cobrir-se-ia de p-de-talco de violetas. Assim era a Seraphita e nunca houve gata mais digna de um nome to potico. Don Pierrot de Navarre, originrio como era de Havana, precisava de uma temperatura de estufa. Dentro de casa encontrava essas condies mas a casa estava rodeada por grandes jardins divididos por sebes, que
um gato podia facilmente atravessar, e com grandes rvores onde bandos de pssaros chilreavam e cantavam; e o Pierrot, s vezes, aproveitando uma porta aberta, escapava-se noite para caar e correr por entre as flores, sobre a relva hmida. Tinha, ento, de esperar pela manh para poder voltar a entrar porque, por muito que viesse miar para debaixo da janela, nem sempre os seus apelos acordavam os dorminhocos dentro de casa. Tinha pulmes delicados e, numa noite mais fria do que o habitual, apanhou uma constipao forte que no tardou a evoluir para tuberculose. O pobre Pierror, depois de passar um ano a tossir, ficou muito magrinho e debilitado e o seu plo, que antes era de um branco brilhante, lembrava agora a brancura baa de um sudrio. Os seus grandes olhos lmpidos pareciam enormes na cara emaciada e o rosa do nariz empalidecera. Passeava tristemente em passos lentos ao longo dos muros banhados de sol e ficava a ver as folhas amarelas do Outono rodopiar em espiral. Tinha o ar de algum a recitar a elegia de Millevoye. No h nada que tanto comova como um animal doente; to doce e to pattica a resignao com que suportam o sofrimento. Fizeram-se todos os possveis para tentar salvar o Pierrot. Foi seguido por um ptimo mdico que o auscultava e lhe tomava o pulso. Receitou-lhe leite de burra que a pobre criaturinha bebia obedientemente no seu pratinho de porcelana. Pierrot ficava horas e horas instalado ao meu colo, como o fantasma de uma esfinge, e eu sentia os ossos da espinha dele como as contas de um rosrio debaixo dos meus dedos. Tentava responder s minhas festas com um ronronar fraco que parecia o estertor da agonia. Deitado de lado, ofegante, j quase a morrer, conseguiu ainda, num esforo supremo, erguer-se e vir ter comigo, olhando-me com olhos dilatados em que havia uma expresso de intensa splica. Este olhar parecia dizer: No me podes salvar, tu que s um homem? Depois deu alguns passos, cambaleante, com olhos j vidrados e caiu, dando um grito to lamentoso, to cheio de desespero e de angstia que eu fiquei gelado de horror mudo. Foi enterrado ao fundo do jardim, debaixo de uma roseira brava que ainda hoje assinala a sua campa. Seraphita morreu dois ou trs anos depois, de difteria, contra a qual a cincia nada pde fazer. Repousa perto do Pierror. Com ela extinguiu-se a dinastia branca mas no a famlia. Este casal branco de neve tinha tido trs gatinhos de um preto retinto. Este mistrio que o explique quem saiba e possa. Precisamente nessa altura estava na moda Os Miserveis de Victor Hugo e os nomes das personagens do romance andavam na boca de todos. Chamei aos dois gatinhos machos Enjolras e Gavroche e gatinha, Eponine. Em pequenos eram um verdadeiro encanto. Treinei-os, como a uns cezinhos, a apanhar uma bola de papel amachucado que lhes atirava. Acabaram por aprender a apanh-la em cima das cmodas, por trs dos armrios ou dentro de jarras, de onde a tiravam muito cuidadosamente com as patas. Quando cresceram, passaram a desdenhar esses jogos frvolos e adquiriram aquele calmo temperamento filosfico que a verdadeira natureza dos gatos. Para quem desembarca na Amrica, numa colnia de escravos, todos os pretos so pretos e impossveis de distinguir. Do mesmo modo, a um olhar descuidado, trs gatos pretos so trs gatos pretos; mas os
observadores atentos no cometem erros desses. A fisionomia dos animais to variada como a dos humanos e eu conseguia diferenciar perfeitamente aqueles trs focinhos, todos to pretos como uma mscara de Arlequim e iluminados por discos de esmeralda pontuados de ouro. Enjolras era, de longe, o mais bonito dos trs. Era notvel, com a sua cabea leonina e a grande trunfa, os ombros largos, o dorso alongado e a esplndida pluma da cauda. Havia nele algo de teatral e parecia estar sempre a posar como um actor popular que sabe que est a ser admirado. Os seus movimentos eram lentos, ondulantes e majestosos. Pousava as patas com imensa circunspeco, como se estivesse sempre a deslocar-se sobre uma mesa coberta de bric-a-brac chins ou de vidros de Veneza. Quanto ao seu carcter, este no tinha nada de estico e dava mostras de um amor pela comida que aquele jovem, virtuoso e sbrio, de quem ele herdara o nome certamente desaprovaria. Enjolras ter-lhe-ia seguramente dito, como o anjo disse a Swedenborg: Comes demais. Eu encorajava esta gula que era to divertida como a de um macaco gastrnomo e Enjolras atingiu um tamanho e um peso raramente vistos num gato domstico. Lembrei-me ento de o mandar tosquiar como a um co poodle, a fim de dar um ltimo retoque sua semelhana com um leo. Deixmos-lhe ficar ajuba e um grande tufo na ponta da cauda e julgo que lhe deixmos umas suas nas patas traseiras como as que Munito usava. Assim adornado, devo confessar que se parecia muito mais com um monstro japons do que com um leo africano. Nunca se vira tal extravagncia feita num animal vivo. A sua pele tosquiada adquirira esquisitas tonalidades azuis que contrastavam estranhamente com a juba negra. Gavroche, como se quisesse fazer lembrar o seu homnimo do romance, era um gato com uma expresso brejeira e ladina de autodomnio. Era mais pequeno que Enjolras e os seus movimentos eram comicamente rpidos e bruscos. Nele, as cambalhotas absurdas e as posies ridculas faziam as vezes da zombaria e do calo do gamin de Paris. Deve-se confessar que Gavroche tinha gostos ordinrios. Aproveitava todas as ocasies possveis para se raspar da sala e ir para o ptio ou mesmo para a rua, em grandes brincadeiras com gatos vadios, De naissance quelcon que et de sangpeu prouv em cuja duvidosa companhia esquecia completamente a sua dignidade de gato de Havana, filho de Don Pierrot de Navarre, grande de Espanha de primeira nobreza, e da aristocrtica e altiva Dofla Seraphita. s vezes, nas suas vagabundagens, recolhia colegas magricelas, esfaimados e trazia-os com ele, oferecendo-lhes, como um grande senhor generoso, de comer no seu prprio prato. As pobres criaturas, de orelhas coladas cabea e sempre a olharem para o lado, cheias de medo de serem interrompidas naquela refeio grtis pela vassoura da criada, engoliam a correr e, como o famoso co Siete-Aguas, das posadas espanholas, lambiam o prato e deixavam-no to limpo como se tivesse sido lavado e areado por uma das donas de casa holandesas de Gerard Dow ou de Mieris. Os amigos do Gavroche lembravam-me uma frase que ilustra um dos desenhos de Gavarni ls sontjolis les amis dont vous tes susceptible dller avec! (Lindos amigos com quem te ds!) Mas isto s provava o bom corao do Gavroche, pois ele bem que podia comer tudo sozinho. A gata que herdara o nome da interessante Eponine era mais delicada e esbelta do que os irmos. Tinha um nariz bastante comprido e os olhos eram oblquos e verdes como os de Palas Atena a quem Homero
sempre aplicava o epteto de Yaio>n. O focinho era de um negro de veludo, com a textura de uma delicada trufa do Prigord; tinha os bigodes num estado de perptua agitao e tudo isto lhe dava uma fisionomia particularmente expressiva. O seu magnfico plo preto estava sempre em movimento e tinha reflexos e matizes brilhantes. Nunca houve animal mais sensvel, elctrico, nervoso. Se lhe fizssemos duas ou trs festas no escuro, viam-se saltar do seu plo faiscas azuis. A Eponine gostava particularmente de mim, tal como a Eponine do romance gostava de Marius, mas eu, menos ligado a Coserte do que o rapaz, podia aceitar livremente o afecto daquela gata gentil e dedicada, que continua a partilhar os prazeres do meu retiro suburbano e a companheira inseparvel das minhas horas de trabalho. Ela vai a correr quando ouve tocar a campainha da porta da rua, recebe as visitas, condu-las sala de estar, conversa com elas - sim, conversa - em pequenos sons chilreantes, que no se parecem de forma alguma com os sons emitidos pelos gatos quando falam entre si mas, muito mais, com o discurso articulado dos seres humanos. Que diz ela? Diz, do modo mais claro possvel: No se importam de esperar que monsieur desa? Entretenham-se por favor a ver as gravuras ou a conversar comigo, se isso vos divertir; Depois, quando eu chego, retira-se discretamente para uma poltrona ou para o canto do piano, como um animal bem educado que sabe o que correcto na boa sociedade. A linda Eponine deu tantas provas de inteligncia, de boa disposio e de sociabilidade que, de comum acordo, foi elevada categoria de pessoa j que era mais que evidente que possua uma capacidade de raciocnio que ultrapassava o mero instinto. Esta dignidade conferiulhe o privilgio de comer mesa em vez de comer num prato posto num canto da sala, como qualquer animal. Assim, a Eponine tinha uma cadeira ao lado da minha, ao pequenoalmoo e ao jantar mas, como era pequenina, tinha autorizao para pr as duas patas da frente na borda da mesa. Tinha lugar posto, sem faca nem garfo, mas com copo. Comia o jantar todo, prato a prato, da sopa at sobremesa, esperando a sua vez de ser servida, e comportando-se com o tino e as boas maneiras que gostaramos de ver em muitas crianas. Aparecia ao primeiro toque da campainha e, quando chegvamos sala, j a encontrvamos instalada no seu lugar, sentada na cadeira, com as patinhas apoiadas na borda da toalha e ar de quem estava a oferecer a cara para ser beijada, como uma menina bem educada que delicada e afectuosa para com os pais e as pessoas mais velhas. Tal como se encontram defeitos nos diamantes, manchas no Sol e sombras na prpria perfeio, tambm a Eponine, devo confessar, tinha uma paixo por peixe. Tinha isto em comum com todos os outros gatos. Contrariamente ao provrbio latino Catas amatpisces, sed non vult tingere plantas a Eponine no se importaria de meter a pata na gua se, ao faz-lo, pudesse tirar para fora uma truta ou uma carpa. Ficava quase frentica com o peixe e, como uma criana excitada espera da sobremesa, revoltava-se s vezes contra a sopa quando sabia (atravs de investigaes prvias na cozinha) que o prato era de peixe. Quando tal acontecia, no a servamos e eu dizia-lhe em tom frio: Mademoiselle, uma pessoa que no tem fome de sopa, tambm no tem fome de peixe e o prato era impiedosamente retirado debaixo do nariz dela. Convencida de que as coisas no eram a brincar, a Eponine apressava-se a comer a sopa at ltima gota, deixando o prato sem vestgios de migalhas ou de macarro e, depois, voltava-se e olhava para mim orgulhosamente, como algum que cumpriu conscienciosamente o seu dever. Recebia, ento, a
sua parte que consumia com grande satisfao e, depois de provar de todos os pratos, acabava bebendo um tero do copo de gua. Quando estou espera de amigos para o jantar, a Eponine sabe que vai haver uma festa antes de ver os convidados. Olha para o lugar dela e, se vir que h um garfo e uma faca junto ao prato, foge logo a sete ps e instala-se em cima de um banco de piano que o seu refgio nestas ocasies. Que aqueles que negam capacidades de raciocnio aos animais expliquem, se puderem, este pequeno facto, aparentemente to simples, mas que contm toda uma srie de ilaes. A partir da presena junto do seu prato de instrumentos que s o homem usa, aquela gatinha observadora e inteligente conclui que ter de ceder o seu lugar, naquele dia, a um hspede e, imediatamente, se prontifica a faz-lo. Nunca se engana; mas, quando conhece bem a visita, trepa-lhe para os joelhos e tenta cativ-la com as suas lindas maneiras para que ela lhe d um petisco. Trad. L. F.
ASPIRINA, O GATO John Coleman Adams Isto uma histria verdadeira sobre um gato real que, tanto quanto eu sei, ainda vivo e anda no mar a ganhar a vida. Espero que me desculpem por tratar este gato em particular como se fosse uma pessoa, mas h animais a quem preferimos tratar como humanos e h pessoas que s vezes preferiramos tratar como animais. Foi deste modo que encontrmos este gato: estvamos nos anos setenta e alguns de ns velejvamos a leste de Boston num iate chamado Eyvor. Tnhamos ancorado em Marblehead por um dia e uma noite, e a malta fora a terra numa chalupa. Quando atracaram ao cais encontraram um grupo de rapazitos a espetarem paus numa pilha de lenha, numa caa evidente a qualquer coisa que se encontrava l dentro. - O que que tm a? - perguntou um do iate. - s um gato - responderam os rapazes. - Ento o que que lhe esto a fazer? - Estamos a faz-lo sair! Quando sair vamos apedrej-lo - foi a resposta num dialecto cerrado de Marblehead. - Parem com isso. Que gozo pode haver em atormentar um pobre gato? Porque que no se metem com algum do vosso tamanho? Os rapazes foram-se lentamente embora, um pouco envergonhados e um pouco amedrontados com o homenzarro que falara; e quando eles ficaram fora da vista, tambm os marinheiros continuaram caminho e no pensaram mais no gato que tinham salvo. Aps terem percorrido as ruas estreitas e emaranhadas da cidade, e feito uma visita, que todos os bons marinheiros fazem, mercearia, aos Correios e a um bar, voltaram ao cais para embarcarem. Ali, notem bem, na escota da popa, estava sentado o gatinho cinzento e branco da pilha de lenha! Tinha sado do seu esconderijo e dirigira-se directamente para o barco dos seus salvadores. No parecia de modo algum preocupado ou disposto a sair quando os marinheiros saltaram a bordo, nem demonstrou outra coisa seno prazer quando lhe fizeram festas e o acariciaram. Mas quando um dos rapazes pegou nele para o pr em terra, aquele tipo resoluto mostrou as garras; e mal tinha sido pousado no cais, deu meia volta e saltou de novo para dentro do barco. - Ele quer ir andar de iate - disse um da malta a quem chamvamos o Bos'n. - Mais vale ficarem com o gato - disse um pescador velhote que estava de p no cais. - No pertence a ningum e se ficar por aqui a canalha d cabo dele. - Vamos lev-lo - disseram os marinheiros. - D sorte ter um gato a bordo. Se dava sorte ao barco ou no, no sabemos, mas era claro que o gatinho achou que para ele era sorte e aninhou-se no fundo do barco com um olhar que dizia vamos a isso! Evidentemente que ele j tinha pensado no assunto e tinha decidido que eram aquelas as pessoas com quem queria viver; e sendo um gato de Marblehead, tanto lhe fazia se viviam em terra ou num barco; ele iria onde eles fossem, quer quisessem quer no. Ele ouvira a conversa havida junto pilha de lenha e decidira mostrar a sua gratido indo para o mar com estes seus protectores. Ligando o seu destino ao deles, estava a prestar-lhes a maior homenagem de que um gato capaz. Seria o mximo da indelicadeza no reconhecer o seu apreo, e assim permitiram-lhe ficar no bote e foi levado para o iate. Ao chegar l houve um conselho, e foi decidido unanimemente que o gato seria recebido como um membro da tripulao e como ramos um grupo
de marinheiros amadores, velejando o nosso prprio barco, cada homem tendo as suas tarefas prprias, decidiu-se que o gato seria nomeado aspirante e que o seu nome teria que ver com o seu posto; por isso ficou logo e para sempre conhecido por Aspirina. Todos se interessavam muito por ele, enquanto ele demonstrava um interesse relativo por todos embora houvesse duas pessoas a bordo a quem ele demonstrava um carinho especial. Uma era o Capito do Eyvor, um professor calmo e bondoso; a outra era Charlie, o nosso cozinheiro e o nico homem contratado. Como vem, o Aspirina tinha o instinto natural de um marinheiro para saber com quem devia estar em bons termos. Era surpreendente ver como o Aspirina se adaptava to depressa. Agia como se tivesse passado toda a sua vida no mar. Nunca enjoou, por muito bravo que estivesse o mar ou por muito mal que nos sentssemos todos. Andava por todo o barco, conforme queria. s refeies vinha para a mesa com a malta, sentava-se numa mala, bebia o seu leite e comia o que lhe pusessem frente, como se tivesse comido assim toda a sua vida. Quando hasteavam as velas, a sua brincadeira especial era saltar para a caranguejeira e nela ser iado; uma vez manteve-se nesse poleiro at que a vela chegou ao topo do mastro e um de ns teve de ir busc-lo l cima. Quando ancorvamos e tudo estava a postos para a noite, vinha para o convs e pulava para o botal principal, da corria para o gurups a toda a velocidade, depois subia, como um macaco, at meio dos mastros deixando-se cair ento para o convs, ou atirava-se para dentro da cabina onde fazia corridas loucas entre os beliches. Um dia, quando vaguevamos sob uma brisa agradvel de sudoeste, e todos ns estvamos a descansar aps o jantar, ouvimos o Bos'n exclamar: - Parem com isso, rapazes! - e um momento depois - estou a avisarvos, desistam! Seno vou a e dou cabo de vocs! Abrimos os olhos para ver o que se passava. Bos'n estava sentado l em baixo na cabina, junto escotilha, a borla do seu bon de l quase ao mesmo nvel das braolas da escotilha; e o Aspirina sentado l fora no convs, remexendo com as garras a l tentadora e, ocasionalmente, indo to fundo que arranhava o couro cabeludo de Bos'n. Vinda a noite e quando estvamos todos j deitados, o Aspirina fazia invariavelmente a ronda a todos os beliches, a ver se estvamos todos bem, e acabava a inspeco saltando para cima do beliche do capito, dando voltas para fazer o ninho entre os cobertores e enrolando-se para dormir. Foi ideia dele escolher o beliche do capito como o nico lugar possvel para ele dormir. Mas a caracterstica mais interessante do carcter do Aspirina s se revelou aps uma ou duas semanas a bordo. Foi uma surpresa para todos. Aconteceu quando estvamos no porto de Camden. Decidimos ir todos a terra dar um passeio pelos montes, e Charlie, o cozinheiro, tambm veio para remar o bote de volta para o iate. O Aspirina descobriu que estava a ser esquecido, e sendo um gato decidido e resoluto, no demorou muito a decidir o que devia fazer. Correu at a parte mais baixa da amurada e olhou-nos longa e ansiosamente. Quando o bote comeou a afastar-se queixou-se com um longo miado. Acenmos-lhe um adeus e dissemos para tomar conta do barco e que tivesse o jantar pronto para quando voltassemos. Foi demais para o seu feitio. Como uma flecha mergulhou no mar e nadou como um co de gua atrs do bote! Foi a coisa mais espantosa que jamais vramos na nossa vida! J estvamos habituados a elefantes que sabiam brincar num balanc, a cavalos que disparavam canhes com um coice, a porcos amestrados e a ces educados, mas um gato que de livre vontade se atira gua como um terra-nova puro-sangue, era algo de que nunca tnhamos ouvido falar.
Claro que parmos o bote e o Aspirina foi iado a bordo, ensopado e a tremer, mas feliz por estar de novo entre os tripulantes. Ele fora ignorado e menosprezado mas insistira nos seus direitos e logo que foram reconhecidos ficou satisfeito. Depois disto, ficmos preparados para tudo que o Aspirina fizesse, mas mesmo assim, continuou a surpreender-nos com o seu comportamento independente e intrpido. Talvez o seu feito mais brilhante tenha sido uma visita que fez, poucos dias aps o mergulho no porto de Camden. Estvamos parados, devido a uma calmaria, na entrada do porto de Southwest e perto de ns, a uns 230 metros, estava outro iate pequeno, uma escuna vinda de Lynn. Flutuando com a mar, reparmos que o Aspirina estava a ficar muito inquieto e at comeou a correr de um lado para o outro no convs, olhando ansioso para o outro barco. O que que ele vira ou cheirara que lhe interessava tanto? No podia ser comida pois no estavam a cozinhar. Teria ele reconhecido algum amigo de Marblehead? Talvez estivesse um gato compincha no outro barco. Ah, era isso! Ali estavam no convs a brincar e a traquinar dois gatinhos! O Aspirina tinha-os visto e estava morto para os ver mais de perto. A correr de um lado para o outro miava e cheirava o ar. Ergueu-se na sua posio favorita quando estava de vigia com as patas dianteiras pousadas no varo, e ento, antes que pudssemos compreender o que ele ia fazer, tornou a atirar-se gua, e nadou to depressa quanto sabia e podia at ao outro barco! J tinha atrado a ateno da tripulao e logo que chegou perto do barco esta j tinha apostos uma defensa que baixaram at gua e qual o Aspirina se agarrou, trepando por ela at amurada, e com um salto estava do outro lado, no convs, travando conhecimento com os gatinhos. Como foi recebido, no fao ideia, porque nessa altura j estvamos ao lado do barco a reclamar o desertor. E demos toda a razo ao capito do Winnie L. que disse ao entregar-nos o nosso aspirante: - Isto bate qualquer das minhas histrias de pescarias! Somente dois dias depois, o Aspirina foi muito asneirento: quando estvamos a lavar o convs de manh, andou a patinhar nele at ficar com as patas bem molhadas e depois foi passear-se por cima das cobertas brancas dos beliches. Foi demais para a pacincia do capito. O Aspirina foi trazido presena dele, e depois de ouvir uma sarabanda, foi posto no bote que estava atracado r, que depois foi empurrado a todo o comprimento do cabo. Foi um castigo muito severo para o Aspirina que s se sentia bem entre a tripulao; por isso, comeou a puxar pela cabea para sair dali. Viu que bem por baixo do casco do iate, e acima da gua, saam cerca de 10 centmetros do leme; isso bastou-lhe. No se deteve a pensar se estaria ali melhor, aquilo fazia parte do iate e logo estaria em casa. Mergulhou e nadou at ao leme, encarrapitou-se nele e comeou a miar lamentavelmente para que o trouxessem para o convs; e como era um gato mimado foi logo socorrido e desculpado. Suponho que terei que pr prova o meu poder de convico em relao a si, leitor, se contar mais epopeias do Aspirina. Mas na verdade ele era um gato muito especial, por isso o melhor ter pacincia pois no ir conhecer outro igual. O capito tinha por hbito praticar tiro e gostava de ir a terra atirar a um alvo. Numa das vezes deixou que o Aspirina o acompanhasse, pela simples razo, suponho eu, do Aspirina ter decidido ir, e ter saltado para o bote juntamente com o capito. Uma vez em terra, o atirador encontrou uma rocha plana para apoiar a espingarda e atirou ao alvo. Ao primeiro e segundo tiro o Aspirina ficou um pouco surpreendido mas no mostrou inteno de fugir. Aps a primeira srie de tiros chegou concluso de que aquela algazarra toda era feita pelo capito, logo, tinha razo de ser e no
tinha nada que se preocupar. Por isso, como se fosse para mostrar como confiava inteiramente no capito e nos seus bons propsitos, aquele gato imperturbvel deitou-se e ps-se a dormir sombra da rocha sobre a qual a espingarda do capito matraqueava estridentemente de dois em dois minutos. Se algum, alguma vez, conheceu um gato mais calmo e controlado do que este, gostaria imenso de ouvir os detalhes. Esta crnica deveria s contar os feitos ousados e corajosos do nosso aspirante; mas, infelizmente, a sua conduta no era sempre impecvel. Quando tinha fome esquecia a sua posio de aspirante e portava-se como qualquer outro gato esfomeado. Ou talvez agisse como qualquer outro aspirante teria agido nas mesmas circunstncias; como no sei o que um aspirante faz nessas circunstncias, no o posso dizer. Mas eis a proeza do gato aspirante: numa tarde, a caminho do porto de Wood Island, ancoradouro para iates pequenos entre Portland e Shoals, como o vento era fraco e estvamos atrasados para entrar no porto, concordmos todos que seria mais agradvel adiar o jantar para quando estivssemos ancorados. Foi dito ao cozinheiro para manter a comida quente e s pr a mesa quando estivssemos dentro do porto. Ora o prato principal nesse dia ia ser peixe no forno e, infelizmente, estava quase pronto quando o cozinheiro recebeu o recado de atrasar o jantar. Por isso desligou o fogo, deixou a porta do forno aberta, e foi dormir uma soneca no beliche - coisa que todo o bom marinheiro faz quando pode porque a vida no mar muito incerta em matria de descanso e nunca se sabe quando se poder dormir e por quanto tempo. Assim, bom ter uma boa reserva de sono, sempre que se pode. Parecia que o Aspirina estava alerta e quando viu Charlie a dormir, achou por bem servir-se do jantar. Era evidente que tinha pensado com os seus botes que no se sabia a que horas seria o jantar e que mais valia aproveitar. Silenciosamente saltou para o fogo e calmamente desceu para o forno comeando a comer a pescada assada. Deve ter falhado algo ou feito algum barulho nas suas andanas porque, felizmente para ns, acordou o cozinheiro. Pois a primeira coisa que demos conta foi o Aspirina a fugir como uma seta pelas escadas da cabina acima acompanhado por sapatos, colheres e outros objectos voadores, enquanto ouvamos Charlie, que tinha um vocabulrio muito grosseiro quando zangado, a usar as palavras mais fortes do seu dicionrio sobre o ladro do gato! - O que que se passa? - perguntmos em unssono. - Chatices, senhor - resmungou Charlie. - Esse gato comeu quase a metade do peixe! uma sorte ter alguma coisa para o jantar, senhor. Podem ter a certeza que o Aspirina foi bem castigado, mas temo que o capito se tenha esquecido de lhe cortar as raes. Ele era bom demais. Na tarde seguinte, o Aspirina espantou-nos a todos com mais uma demonstrao de calma e coragem. Aps um dia cansativo de pouco vento, encontrmo-nos ao abrigo do promontrio do Cabo Neddick, onde lanmos ncora. Como o nosso suprimento de gua estava muito por baixo, dois membros da tripulao meteram-se no bote, mesmo depois do pr-do-sol, e remaram para terra a fim de encherem o barril de gua. Com licena especial, o Aspirina foi com eles. Demorou algum tempo para encontrar um poo e j estava noite escura quando os bidons ficaram cheios. Ao empurrar o barco, quis a m sorte que este fosse apanhado por uma onda e atirado de novo praia onde se virou, entornando tudo o que tinha dentro, rapazes e bidons. Na confuso do momento e na pressa de pr tudo em ordem o Aspirina foi esquecido, e quando o bote se fez de novo ao mar, ningum se lembrou do gato. Desta vez tudo correu bem e em poucos minutos surgiu o iate na
obscuridade. S ento que algum se lembrou do Aspirina! No estava em lado nenhum. Nenhum dos homens se lembrava de t-lo visto depois do barco se virar. Estavam consternados. Perder o Aspirina era como perder algum da tripulao. Mas era demasiado tarde e j estava escuro para voltar e arriscar outro desembarque na praia. Nada mais se podia fazer seno deixar o Aspirina sua sorte e esperar pelo dia seguinte para o ir procurar. Mas quando a proa do bote bateu no casco do iate, debaixo dos assentos traseiros do bote saiu um gato encharcado, enxovalhado e arrepiado, que saltou a bordo dirigindo-se apressadamente para o calor da cabina. Naquela aventura hmida do quebrar das ondas, o Aspirina tinha sabido tomar conta de si prprio, salvando-se de um tmulo aqutico, saltando a bordo do bote, quando ficou operacional e abrigando-se no canto mais protegido. Fizera tudo isto sem lamentaes e sem pedir ajuda a ningum. A sua coragem e confiana nele prprio eram extraordinrias. Entretanto, o agradvel ms a velejar estava prestes a chegar ao fim e levantou-se a questo do futuro do Aspirina. Estava fora de questo devolv-lo a um mundo frio sem proteco, embora soubssemos que um gato to dotado e esperto sobreviveria bem em qualquer lado. Mas gostvamos de acompanhar as suas faanhas e talvez lev-lo connosco na prxima vez que fssemos velejar quando ele j fosse um gato adulto e digno. Finalmente ficou decidido que ele passaria o Inverno em casa de Susan H., uma amiga de um dos rapazes. Ela queria um gato para o seu atelier e ficaria muito satisfeita em ter por companhia um gato to vivido e viajado como o Aspirina. Assim, atracmos o iate ao molhe de Annisquam, onde sempre ficava no fim da poca, fizemos as malas e quando estvamos prontos para a viagem at Boston, enfimos o Aspirina num cesto de viagem e levmo-lo at ao comboio. Suportou o enclausuramento com o mesmo bom senso que demonstrou vivendo connosco, embora eu pense que o ofendemos com a falta de confiana que lhe demonstrmos; e, na verdade, estvamos um pouco envergonhados, e logo que nos sentmos na carruagem algum sugeriu que o soltssemos s para ver como ele se portava. J deveramos saber que se portaria lindamente. Depois de ter dado uma vista de olhos, mirado os restantes passageiros, por cima do encosto da cadeira, e contado o grupo para ver se estvamos l todos, o Aspirina enroscou-se e adormeceu com a cabea nos joelhos do capito e dormiu at Boston. Foi a ltima vez que vi o Aspirina. Foi entregue na sua nova casa em Boylston Street, onde viveu muito agradavelmente por alguns meses, e onde fez vrios amigos por causa da sua maneira de ser agradvel e temperamento tranquilo. Mas penso que se aborrecia em Boston. No se sentia vontade naquele ambiente esttico. Sempre acreditei que ele ansiava pela vida livre do mar. Gostava de estar sentado no parapeito da janela quando o vento soprava do leste e parecia sonhar com paisagens longnquas. Um dia desapareceu. No se encontrou qualquer rasto dele. Podiam-lhe ter acontecido inmeras coisas, mas tive sempre o pressentimento que tinha ido para os cais, docas e ancoradouros procura dos seus velhos amigos e ver se encontrava o leal Eyvor, e como no o encontrou, estou convencido de que embarcou num barco de grande tonelagem e presentemente um gato marinheiro do alto mar. trad. j. L. F.
A MELHOR DAS CAMAS Sylvia Townsend Warner O gato vivera muitos Invernos, mas nunca nenhum como este. Tinha chovido durante dois arrastados e escuros meses, e agora, na Noite de Natal, o vento tinha virado a leste, e em vez de chuva, caa neve e granizo. As duras pedras de granizo batiam nos seus flancos encharcados e aleijavam-no. Correu mais depressa. Quando os rapazes lhe atiravam pedras ele escapava correndo; mas deste apedrejamento celestial no havia fuga possvel. Estava com fome pois no comia desde que tinha deparado com um pardal morto de frio, h trs dias. No era hbito do gato comer carne morta, mas como estava numa poca dificil ficou grato por aquela carne com sabor pouco saudvel. Atormentava-o a sede, mais do que a fome. Aqui e ali parava e raspava a lngua na sarjeta. J no tinha esperana alguma, tinha-se esquecido da sua astcia. Desesperado, continuava a correr. As luzes, os passos no pavimento, os autocarros arrasadores, os geis automveis iguais a gatos monstruosos cujos olhos o obrigavam a desviar o olhar, atemorizavam-no. Embora fosse londrino no estava habituado a estas coisas, porque tinha nascido na margem do Tamisa e tinha passado os seus dias no meio das docas, numa vida modesta mas proveitosa de caador de ratos e de boas sonecas dormidas por cima de sacos de farinha. Mas uma noite, o cais onde vivia incendiara-se; aterrorizado pelas chamas, fumarada e balbrdia, comeou a correr, atque de manhzinha estava longe do rio, sem eira nem beira, e totalmente inexperiente para arranjar outra casa. Uma porta para a rua abriu-se, e ele desviou-se e dobrou a esquina, mas nessa rua tambm havia portas a abrir, cada porta deixando sair o horror, porque era a hora de fechar. Uma vez, no princpio das suas perambulaes, tinha entrado por uma dessas portas, pensando que qualquer abrigo seria melhor do que continuar chuva. Antes que tivesse tempo de fugir, uma mo tinha-o apanhado e uma voz por cima da sua cabea gritara: - Querem ver que o diabo do gato entrou para beber uma pinga! - E o gato sentiu o seu focinho mergulhado numa poa de algo abrasador e malcheiroso que lhe fez arder durante horas as narinas e os olhos. Comprimiu-se de encontro parede e ficou imvel at que a ltima porta se abrisse pela ltima vez. S quando algum passava levando aquele cheiro que ele se mexia: o seu nariz tremia com um asco incomensurvel, as suas orelhas grandes colavam-se cabea e a ponta da cauda batia fortemente no pavimento. Um co, consciente do seu prprio desespero, teria desistido, deitandose espera da morte; mas quando as ruas voltaram a estar sossegadas o gato recomeou a correr. Houve tempos em que ele corria e saltava pelo simples prazer de o fazer, regozijando-se na sua fora como um atleta. Os recursos daquele corpo seco e elstico, disciplinado pelos dias de caa da sua juventude, tinham-lhe sido favorveis nos primeiros tempos da sua perambulao; ento, acelerando diante de um terrier que ladrava, ele sentira que se sobrepunha aos seus terrores uma alegria plena e compacta na certeza de poder, to seguramente, fugir ao perseguidor; mas agora a sua fora s servia para prolongar o seu sofrimento. Embora a fadiga acumulada ardesse em cada um dos seus nervos, os membros empedernidos continuavam a lev-lo, e continuariam a lev-lo ainda, prisioneiros de si mesmo, a trotar humildemente at ao local da sua morte.
Ele corria ao sabor do vento, virando aqui e acol de modo a evitar as rajadas cravejadas de granizo que assolavam as ruas. Os olhos estavam fechados, mas de repente, a um som familiar, parou e ficou especado de medo. Era o som de uma porta a ranger nos gonzos. Cheirou apreensivamente. Havia um cheiro que saa sempre que a porta se abria, mas no era o cheiro que ele detestava; esperou na sombra de um contraforte embora no se ouvisse som algum de vozes estridentes a confirmar os seus medos e conquanto a porta continuasse a abrir e a fechar, no se ouviam passos. Cautelosamente, deslocou-se do contraforte para dentro de um prtico. Aqui o cheiro era mais forte; era aromtico, rico e com um vago odor de fumo. Fazia ccegas no nariz e fazia-o espirrar. A porta oscilava com o vento. A abertura era estreita, estreita demais para se poder ver atravs dela, a no ser uma escurido que no era totalmente escura. Com uma determinao repentina o gato esgueirouse l para dentro. De toda as sensaes uma sobreps-se a todas as outras. Calor! Envolveu-o todo e confundiu a sua fsica e angular conscincia do frio, fome e fadiga em algo de arredondado e indistinto. Meio desmaiado, estendeu-se nas lajes de pedra do cho. Outro acesso de espirros despertou-o. Levantou-se de um salto e comeou a explorar. O edificio em que se encontrava lembrava-lhe onde vivera. Muitas vezes, caando beira do rio, vagueara em lugares iguais a este imponentes e sombrios, com cho de pedra e de certeza desabitados. Mas aqueles cheiravam a trigo, a lentilhas, a sebo, a acar; e nenhum deles cheirava como este cheirava - adocicado e fumarento. Aqueles eram frios. Neste estava calor. Aqueles eram escuros; aqui a obscuridade era abrandada por uma estrela vermelha que ardia no meio do ar e pelas chamas de algumas velas que davam ao ar adocicado o seu cheiro de cera quente. Como a curiosidade crescia a par da sua confiana, o gato percorria avidamente a igreja: coou as costas na pia baptismal, analisou os vrios cheiros dos genuflexrios, subiu os degraus do plpito, saltou para a pedra do altar e afiou as garras numa almofada. L fora o vento aumentava de intensidade e o granizo batia de encontro s janelas, mas l dentro o ar era ameno e tranquilo e a estrela vermelha continuava a arder suavemente. Encostado ao plpito o gato encontrou algo que lhe fez lembrar ainda mais a sua casa - um punhado de palha nas lajes do cho. Vira muitas vezes palha; por vezes montes altos como torres nas barcaas, outras vezes cada dos bornais dos grandes cavalos de tiro, que esperavam pacientemente no ptio do administrador do desembarcadouro. A palha parecia ter caido de um caixote pousado sobre um cavalete. O gato ergueu-se nas patas traseiras e tentou espreitar l para dentro, mas era alto demais para ele. Deu uma volta, mas a sua curiosidade levou a melhor e trouxe-o de novo; posicionando-se nas patas unidas gingou levemente, avaliando o salto, e depois pulou, pousando suavemente numa cama de palha. Aterrou to delicadamente que embora as duas figuras ajoelhadas a cada lado da manjedoura oscilassem por um momento, no caram. O gato cheirou-as um pouco com uma certa desconfiana, mas no lhe prenderam a ateno por muito tempo. Era a palha que lhe interessava. Um aroma soporfero subia do fundo da cama quente enquanto ele misturava e remexia a palha com as patas dianteiras. Isto, isto prometia-lhe o que ele aspirava h tanto tempo um sono reconfortante, um envolvimento no calor e na calma, um esquecimento nutritivo. Deu vrias voltas enfiando-se num ninho
apertado, ronronando num tom agudo de alegria. Ao voltar-se roou numa terceira figura na manjedoura, mas mal deu conta disso. J uma modorra de sono tomava posse dele; as duas figuras ajoelhadas no lhe fizeram mal nenhum, nem iria esta, que repousava. J a cama parecia feita sua medida. Pousando a cabea nas patas, abandonou-se. Outra carga de granizo bateu nas janelas, a porta rangeu e as velas tremularam por uma lufada de vento que entrou na igreja, como se estivessem a acenar as cabeas em consentimento; conquanto as orelhas do gato estremecessem uma ou duas vezes contra os ps do Jesus de gesso, estava a dormir to profundamente que nem se apercebeu. Trad. j. L. F.