Minha Vida Com Lama
Minha Vida Com Lama
Minha Vida Com Lama
Lobsang Rampa
3ª. Edição
RECORD
1964
PREFÁCIO
— Você ficou maluca, Fif — disse o Lama. — Quem vai
acreditar que você escreveu um livro?
Dizia isso, sorrindo para mim, enquanto me acariciava de
leve sob o queixo, exatamente do modo que mais me
agradava; pouco depois ele deixava a sala para tratar de
alguma coisa.
Permaneci sentada, pensando: "E por que eu não poderia
escrever um livro? É verdade que sou uma gata, mas não
uma gata comum. Oh, Céus! Não! Eu sou uma gata
siamesa que viajou muito, viu muita coisa. Viu? Bem,
naturalmente, estou inteiramente cega, agora, e tenho de
me valer do Lama e da Dama Ku'ei, para que me digam
como são as coisas, mas bem que tenho minhas
recordações!"
Estou velha, naturalmente, muitíssimo velha, e bastante
enferma, mas isso não é motivo suficiente para que deixe
de pôr no papel o relato dos acontecimentos de minha
vida, enquanto o posso fazer. Aqui, portanto, está minha
versão da Vida com o Lama, e dos dias mais felizes da
minha vida; dias de sol, após uma vida de sombras.
(Sra.) Fiji Costeletas.
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
É fácil saber como agir, depois que a coisa tenha acon-
tecido. Escrever um livro traz de volta as nossas
recordações. Em meio aos anos de dificuldades, muitas
vezes me lembrei das palavras da velha macieira:
— Gatinha, isso não é o fim. Você tem um objetivo na
vida.
Nessa ocasião, julguei tratar-se principalmente de pa-
lavras bondosas, com que me reconfortar. Agora, sei que
não é assim. Agora — no anoitecer de minha vida —
desfruto de muita felicidade; se me ausento, até mesmo
por alguns instantes, escuto perguntar: "Onde está a Fifi?
Ela está bem?" e sei que sou realmente desejada por
mim mesma, não apenas por minha aparência. Nos dias
de minha juventude era diferente; eu não passava de algo
para ser ostentado, ou, como as pessoas modernas o
chamam, não passava de um "tópico de conversa".
Mme. Diplomata tinha duas obsessões. Era obcecada
pela idéia de que devia subir cada vez mais na escala
social da França, e exibir-me a pessoas servia de meio
seguro de êxito.
Isso me espantava, porque ela detestava os gatos (a não
ser em público), e eu não tinha licença de estar na casa,
a menos que houvesse visitas. A recordação da primeira
"exibição" ainda se acha bem viva em minha mente.
Eu me encontrava no jardim, num dia quente e ensola-
rado. Por algum tempo, estivera estudando as flores,
observando as abelhas que carregavam pólen nas
pernas. Depois, passei a examinar o pé de um choupo. O
cachorro de um vizinho estivera ali recentemente,
deixando uma mensagem que eu queria ler. Olhando com
freqüência para trás, para ver se tudo corria bem,
dediquei minha atenção àquela mensagem.
Gradualmente, passei a interessar-me ainda mais,
prestando menos atenção aos acontecimentos ao redor.
De repente, mãos brutas me agarraram, tirando-me da
contemplação com que examinava a mensagem deixada
pelo cachorro.
— Psiu! — chiei, enquanto dava um salto e me libertava,
dando um empurrão para trás com as pernas ao fazê-lo.
Com rapidez, subi o tronco da árvore e olhei, lá de cima.
"Sempre corra primeiro, e olhe depois", a minha mãe
ensinara. "É melhor correr desnecessariamente do que
parar e nunca mais correr".
Olhei, então. Lá estava Pierre, o jardineiro, com a mão na
extremidade do nariz. Entre seus dedos escorria um filete
de sangue escarlate. Fitando-me com ódio, ele se
abaixou, apanhou uma pedra, e a atirou com toda força.
Eu me esquivei pelo tronco, mas ainda assim a vibração
da pedra contra o tronco da árvore quase me fez cair. Ele
inclinou-se para apanhar outra pedra, exatamente quando
os arbustos foram afastados, atrás dele, e Albertine,
caminhando em silêncio sobre o chão coberto de
musgos, se adiantou. Compreendendo a cena com um só
olhar, ela adiantou um pé, com rapidez, e Pierre caiu de
cara no chão. Ela o agarrou pelo colarinho, fazendo-o
ficar em pé com um solavanco. Sacudindo-o com
violência — ele era apenas um homem pequenino — ela
o fez girar ao redor.
— Se você machucar essa gata, eu MATO você,
entendeu? Mme. Diplomata mandou você procurá-la, seu
filho de uma porca, e não machucá-la.
— A gata saltou de minhas mãos, eu caí na árvore, e
estourei o nariz — resmungou Pierre. — Perdi a
paciência, por causa da dor.
Albertine deu de ombros e voltou-se para mim.
— Fifi, Fifi, venha para a mamãe — chamou.
— Já vou — gritei, ao passar as patas pelo tronco da
árvore e deslizar de costas.
— Agora, apresente o seu melhor comportamento, Fifi —
disse Albertine. — A patroa quer mostrá-la às visitas.
O termo "patroa" sempre me causava divertimento.
"Monsieur le Duc" tinha uma patroa em Paris. Assim
sendo, como a Mme. Diplomata era a patroa? Entretanto,
se queriam chamá-la de "patroa" isso não me faria mal!
Eram pessoas muito estranhas e irracionais.
Seguimos juntas pelo gramado, Albertine carregando-me
de modo que minhas patas estivessem limpas para as
visitas. Subimos pelos degraus largos de pedras e vi um
camundongo passar correndo, saindo de um buraco para
o arbusto — e percorrendo a sacada. Pelas portas
abertas do salão, vi um grupo de pessoas sentadas e
conversando, como uma revoada de estorninhos.
— Eu trouxe a Fifi, Madame! — disse Albertine.
"A patroa" pôs-se em pé com um salto e, com cuidado,
tirou-me de minha amiga.
— Oh, minha querida e doce Fifizinha! — exclamou ela,
voltando-se com tanta rapidez que fiquei tonta.
As mulheres se puseram em pé, reunindo-se a ela, emi-
tindo exclamações de prazer. Os gatos siameses eram
uma raridade na França, naqueles dias. Até os homens
presentes vieram dar uma espiada. Minha cara negra e
corpo branco, terminando em uma cauda também negra,
pareciam fasciná-los.
— A mais rara das raças — disse a patroa. — Um pedi-
gree maravilhoso, ela custou uma fortuna. Tão afetuosa,
que dorme comigo à noite.
Eu bradei um protesto diante das mentiras, e todos deram
um salto para trás, tomados de alarme.
— Ela está apenas falando — disse Albertine, que rece-
bera ordens de ficar ali, no salão, "por via das dúvidas".
Como eu, Albertine exibia no semblante o espanto pelo
fato de a patroa contar falsidades tão completas.
— Oh, Renée — disse uma das visitas —, devia levá-la
para a América quando for para lá, porque as mulheres
americanas poderão ajudar muito na carreira de seu
marido, se gostarem de você. E essa gatinha certamente
chama a atenção.
A patroa apertou os lábios finos, de modo que sua boca
quase desapareceu completamente.
— Levá-la? — perguntou. — Como seria possível? Ela
criaria problemas, e depois haveria dificuldades quando a
trouxéssemos de volta.
— Bobagens, Renée, você me espanta — retrucou a ami-
ga. — Conheço um veterinário que pode aplicar uma
droga na gata, fazendo-a dormir durante toda a viagem
aérea. Você pode levá-la em uma caixa acolchoada,
como bagagem diplomática.
A patroa assentiu.
— Sim, Antoinette, dê-me o endereço desse veterinário,
por favor — respondeu.
Por algum tempo tive de permanecer no salão, enquanto
as pessoas soltavam exclamações diante de minha
figura, exprimindo seu espanto pelo comprimento de
minhas pernas e o negrume de minha cauda.
— Eu pensava que todos os tipos melhores de gatos sia-
meses tivessem cauda crespa — disse alguém.
— Oh, não — asseverou a patroa. — Os gatos siameses
com caudas crespas não estão na moda, agora. Quanto
mais reta a cauda, tanto melhor é o gato. Em breve
mandaremos esta para cruzar e teremos filhotes para dar.
Finalmente, Albertine deixou o salão.
— Puxa! — exclamou. — Prefiro as gatas de quatro pa-
tas, a qualquer hora, ao invés de gatas daquela
variedade, de duas pernas.
Com rapidez, olhei ao redor, pois nunca vira gatas de
duas pernas antes, e realmente não compreendia como
elas conseguiriam dar conta do recado. Nada havia por
trás de mim, a não ser a porta fechada, de modo que
sacudi a cabeça em perplexidade, caminhando ao lado
de Albertine.
A escuridão da noite se fechava e uma chuva leve batia
nas vidraças, quando o telefone no quarto de Albertine
tocou, em som de irritação. Ela se levantou para atender,
e a voz estridente da patroa veio perturbar a paz.
— Albertine, você está com a gata em seu quarto?
— Sim, Madame, ela ainda não está inteiramente boa —
respondeu Albertine:
A voz da patroa tornou-se um pouco mais estridente:
— Eu já lhe disse, Albertine, não a tolero na casa, a me-
nos que haja visitas. Leve-a imediatamente para a
casinha.
Não sei por que sou tão boa que fique com você, criatura
tão inútil!
Com relutância, Albertine envergou um capote de lã gros-
sa, vestiu com esforço uma capa de chuva e passou um
xale no redor da cabeça. Apanhando-me, passou outro
xale ao redor de mim e me levou para baixo, usando as
escadas de trás. Detendo-se na sala dos criados para
apanhar uma lanterna elétrica, caminhou para a porta.
Um vento forte veio bater em nossas caras. Nuvens
rápidas passavam pelo céu da noite, voando baixo. De
um choupo alto, uma coruja cantou, em tom desalentador,
enquanto nossa presença afugentava o camundongo que
ela estivera caçando. Galhos carregados de chuva
roçavam em nós, deixando sua carga de água em nosso
corpo. A trilha era escorregadia e perigosa, na escuridão.
Albertine seguiu com cautela por ali, estudando as
passadas à luz fraca da lanterna, murmurando
imprecações contra Mme. Diplomata e tudo que tivesse a
ver com a mesma.
A casinha se apresentava à nossa frente, uma mancha
mais escura na escuridão das árvores ao redor. Ela abriu
a porta e entrou. Houve um estrondo assustador quando
uma jarra de plantas, apanhada por suas roupas
volumosas, tombou ao chão. Sem que o pudesse
controlar, minha cauda eriçou-se de vapor e um anel
agudo formou-se ao comprido de minha espinha. Fa-
zendo a lanterna iluminar um círculo ao redor, Albertine
prosseguiu mais à frente, em direção à pilha de jornais
velhos que era minha cama.
— Eu gostaria de ver aquela mulher trancada em um
lugar assim — resmungou, falando consigo mesma. —
Isso tiraria um pouco da presunção dela.
Com suavidade colocou-me sobre os jornais, examinou
para ver se havia água para eu beber — pois eu não
bebia mais leite, apenas água — e a meu lado colocou
alguns restos de pernas de rãs. Afagando-me a cabeça,
ela recuou devagar, fechando a porta ao sair. O som de
suas passadas logo foi abafado pelo sopro do vento e o
tamborilar da chuva no teto de ferro galvanizado- Eu
detestava aquela casinha. Muitas vezes esqueciam-se de
mim e eu não podia sair enquanto não abrissem a porta.
Com freqüência demasiada ficava ali sem comida ou
água, por dois ou mesmo três dias. De nada adiantava
gritar, pois ficava muito longe da casa, oculta em um
bosque, bem por trás das outras construções. Eu me
deitava e passava fome, tornando-me ainda mais
enfraquecida, esperando que alguém na casa se
lembrasse de que eu não fora vista por algum tempo e
com isso viesse investigar.
Agora, é tudo muito diferente; onde estou, sou tratada
como ser humano. Em lugar de estar quase sempre
faminta, tenho o que comer e beber, e durmo em um
dormitório, com cama própria. Recordando os anos idos,
parece que o passado foi uma viagem efetuada durante
uma noite comprida, e que agora surge à luz do sol e ao
calor do amor. No passado, tinha de ter cuidado com as
passadas pesadas. Agora, todos têm cuidado para não
me pisarem! A mobília nunca é mudada de lugar, a menos
que eu seja informada de sua nova localização, porque
fiquei cega, estou velha e não mais consigo cuidar de
mim mesma. Como o Lama afirma, sou uma vovó muito
amada, que desfruta a paz e a felicidade. Enquanto dito
estas palavras, acho-me sentada numa cadeira
confortável, recebendo no corpo os raios quentes do sol.
Mas, pondo as coisas em seus devidos lugares, os Dias
de Sombras ainda estavam comigo e a luz do sol ainda
teria de irromper em meio à tempestade.
Movimentos estranhos ocorriam dentro de mim. Baixinho,
pois eu ainda não tinha certeza de mim mesma, cantei
algo. Andei por ali, procurando ALGO. Meus anseios
eram vagos, mas urgentes. Sentada ao lado de uma
janela aberta — sem me atrever a entrar — ouvi que
Mme. Diplomata usava o telefone.
— Sim, ela está chamando. Mandá-la-ei imediatamente, e
iremos buscá-la amanhã- Sim, quero vender os gatinhos
assim
que for possível.
Pouco depois disso, Gaston veio ter comigo e me colocou
em uma caixa de madeira, abafada, com a tampa bem
presa. O cheiro da caixa, excetuando seu ar abafado e
interessantíssimo. Ali haviam sido carregadas
mercadorias, gêneros comestíveis. Pernas de rãs,
caramujos. Carne crua e coisas verdes. Eu fiquei tão
interessada, que nem notei quando Gaston levantou o
caixote e me carregou para a garagem. Durante algum
tempo o caixote foi deixado sobre o chão de concreto. O
cheiro de gasolina e óleo fez-me sentir mal. Finalmente,
Gaston entrou na garagem, abriu as portas grandes da
frente e ligou o motor de nosso segundo automóvel, um
velho Citroen. Atirando o caixote em que eu estava, com
bastante brutalidade, no espaço destinado à bagagem,
ele embarcou na frente e partimos. Foi uma viagem
terrível, fazíamos as curvas tão depressa que meu
caixote escorregava com violência e só se detinha com
uma batida. Na esquina seguinte, isso acontecia de novo.
A escuridão era grande, e as emanações do cano de des-
carga faziam-me sufocar e tossir. Julguei que a viagem
jamais terminaria.
O carro fez uma manobra violenta, houve o guincho horrí-
vel de borracha que deslizava, e quando o automóvel se
endireitou e partiu à frente mais uma vez, meu caixote,
virou, pondo-se ao contrário. Bati contra uma farpa
aguçada e meu focinho começou a sangrar. O Citroen fez
uma parada abrupta e logo ouvi vozes. O compartimento
de bagagens foi aberto, por momentos reinou silêncio,
mas logo uma voz estranha se fez ouvir:
— Olhe, há sangue!
Meu caixote foi suspenso, eu senti que oscilava,
enquanto alguém o carregava. Subiram alguns degraus e
a sombra cobriu as rachaduras do caixote. Adivinhei estar
dentro de uma casa ou telheiro. Fecharam alguma porta,
suspenderam-me mais e puseram-me sobre uma mesa.
Mãos desajeitadas se esfregaram na superfície externa, e
a tampa foi aberta.
Pisquei, diante de tanta luz repentina.
— Pobre gatinha! — disse uma voz de mulher.
Estendendo a mão, colocou-a por baixo de mim,
erguendo-me dali. Eu me sentia mal, doente, tonta com
as emanações do cano de descarga, aturdida pela
viagem violenta e sangrava bastante pelo focinho. Gaston
ali se achava parecendo pálido e assustado.
— Devo telefonar a Mme. Diplomata, — disse um
homem.
— Não me faça perder o emprego, — disse Gaston. —
Eu dirigi com muito cuidado.
O homem ergueu o telefone, enquanto a mulher limpava
o sangue de meu focinho.
— Mme. Diplomata — disse o homem — sua gatinha está
doente, mal nutrida, e foi muito sacudida por essa
viagem. Vai perder sua gata, Madame, a menos que se
lhe dediquem cuidados maiores.
— Ora, Santo Deus! — ouvi a resposta, na voz de Mme.
Diplomata. — Tanto trabalho por uma simples gata. Ela
recebe cuidados, pode crer. Eu não a mimo e quero que
tenha filhotes.
— Mas, Madame — respondeu o homem — não terá gata
nem filhotes, se ela for tratada desta maneira. Aqui tem
uma gata siamesa de pedigree, muito valiosa, da
melhor raça em toda a França. Eu sei, porque criei a mãe
dela. Negligenciar esta gata é mau negócio, como usar
anéis de diamante para cortar vidros.
— Eu o conheço, — respondeu Mme. Diplomata. — O
chaffeur está aí? Quero falar com ele.
Em silêncio, o homem estendeu o telefone a Gaston. Por
algum tempo, a torrente de palavras da patroa foi tão
grande, tão vitriólica, que se mostrou contraproducente e
serviu apenas para divertir os sentidos. Afinal, depois de
muita barganha, chegaram a um acordo. Eu deveria ficar
— e onde estava? — até que me achasse melhor. Gaston
partiu, ainda estremecendo ao pensar em Mme.
Diplomata. Eu fiquei deitada sobre a mesa, enquanto o
homem e a mulher trabalhavam em mim. Tive a sensação
de uma pequena alfinetada, e antes de poder compre-
endê-lo já adormecera.
Era uma sensação das mais singulares. Sonhei estar no
Céu e que bom número de gatos conversava comigo,
perguntando de onde eu viera, o que estava fazendo,
quem eram meus pais. Todos eles falavam no melhor
francês de gatos siameses, além disso! Fatigada, ergui a
cabeça e abri os olhos. A surpresa diante do ambiente em
que me encontrava levou minha cauda a eriçar-se, e um
arrepio percorreu toda a minha espinha. A poucos
centímetros de minha cara estava uma porta com tela de
arame, via-se um aposento grande contendo todos os
tipos de gatos e alguns cachorros pequenos. Meus
vizinhos em ambos os lados eram gatos siameses.
— Ah! A arruinada está-se mexendo! — disse um.
— Puxa! Tua cauda caiu mesmo, quando te trouxeram —
disse a outra.
— De onde veio? — berrou uma gata persa, no lado
oposto do aposento.
— Essas gatas me enojam — resmungou um Poodle,
posto numa caixa no chão.
— Sim — resmungou um cachorrinho, fora de minha linha
de visão. — Estas donas haviam de levar uns bons tapas
lá nos Estados Unidos.
— Olhem esse cachorro, yankee a contar farofa! —
disse alguém, por perto. — Ele não está aqui há tempo
suficiente para ter direito a falar. É apenas um
pensionista, não passa disso!
— Eu sou Chawa — disse a gata à minha direita. — Fui
castrada.
— Eu sou Song Tu — disse a gata à esquerda. — Briguei
com o cachorro. Puxa, vocês deviam ver como ele ficou.
Dei-lhe uma coça e tanto!
— Eu sou Fifi — respondi, timidamente. — Eu não sabia
que havia outras gatas siamesas, além de minha falecida
mãe e de mim.
Por algum tempo, houve silêncio naquela sala grande e
logo o maior clamor, quando entrou um homem, trazendo
comida. Todos falavam ao mesmo tempo. Os cachorros
exigiam receber comida primeiro, os gatos chamavam os
cachorros de suínos egoístas. Ouvia-se o bater dos
pratos e o gorgolejar da água, quando as vasilhas eram
enchidas. Depois, os ruídos característicos quando os
cachorros começaram a comer.
O homem aproximou-se, olhando para mim. A mulher
entrou, e fez o mesmo.
— Ela acordou, — disse o homem.
— Bela gatinha, — disse a mulher. — Vamos ter de
fortalecê-la, ela não terá filhotes, do modo como se acha.
Trouxeram-me bela quantidade de comida e passaram
aos demais. Eu não me sentia muito bem, mas achei que
seria má educação não comer, de modo que enfrentei a
empreitada e logo comia tudo.
— Ah! — disse o homem. — Ela estava passando fome.
— Vamos pô-la no Anexo — disse a mulher. — Lá, terá
mais luz do sol. Acha que todos esses animais a
incomodam.
O homem abriu minha gaiola, aninhando-me em seus
braços, enquanto me levava e saía por uma porta eu não
pudera ver antes.
— Adeus — berrou Chaw.
— Prazer em conhecê-la — berrou Song Tu. — Fale de
mim aos gatos, quando estiver com eles!
Passamos pela porta, indo ter a uma peça iluminada pelo
sol, onde havia apenas uma gaiola grande no centro.
— Vai pô-la na gaiola do macaco, patrão? — perguntou
um homem que eu não vira antes.
— Sim — respondeu o homem que me carregava. — Ela
precisa de cuidado, porque não conseguiria ter, no estado
em que se acha.
Ter? TER? Que devia eu ter? Devia tratar-se de algum
mistério. O homem abriu a porta da gaiola maior e me
colocou lá dentro. Era um bom lugar, a não ser pelo
cheiro de desinfetante. Havia galhos de árvores,
prateleiras e uma caixa agradável, forrada de palha, na
qual eu poderia dormir. Andei por ali cautelosamente, pois
minha mãe me ensinara a investigar de modo mais
completo qualquer lugar que eu não conhecesse, antes
de me instalar nele. Achei um galho de árvore bastante
convidativo, de modo que afiei as garras para mostrar
que me instalara ali. Subindo por esse galho, verifiquei
que podia olhar sobre a beirada e ver mais além.
Havia um espaço fechado e grande, muito grande, com
arames por toda a parte, até o teto. Pequenas árvores e
arbustos tinham sido plantadas no chão. Enquanto eu
observava, um gato siamês dos mais magníficos
apareceu. Era uma figura maravilhosa, comprido e
esguio, ombros fortes e a mais negra de todas as caudas.
Ao seguir devagar pelo chão, entoava a mais recente
canção de amor. Eu ouvia, fascinada, mas naquele
instante senti-me tímida demais para cantar em resposta.
Meu coração batia com força, eu era tomada por
sentimentos os mais estranhos. Deixei escapar um
suspiro profundo, ao me afastar daquele posto de
observação.
Por algum tempo, fiquei sentada no galho mais alto, a
cauda a estremecer espasmodicamente e as pernas
tremendo com tanta emoção que quase não me
sustentavam. Que gato, que figura soberba! Eu o podia
ver ornamentando um templo no Sião distante, tendo ao
redor os sacerdotes de mantos amarelos a cumprimentá-
lo, enquanto se aquecia à luz do sol. E — estaria
enganada? — julguei que ele olhara em minha direção,
sabia tudo a meu respeito. Eu tinha a cabeça rodopiando
com pensamentos sobre o futuro. Devagar, trêmula, desci
do galho, entrei na caixa de dormir e ali me deitei, para
pensar. Àquela noite, não consegui dormir bem. No dia
seguinte, o homem disse que eu estava com febre por
causa da viagem de automóvel e das emanações do
escapamento. Eu sabia por que tinha febre! A cara negra
e simpática, a cauda comprida e ondulante do gato
tinham-me perturbado durante todo o sono. O homem
disse que eu estava em mau estado e que tinha de
descansar. Por quatro dias vivi naquela gaiola,
descansando e comendo. Na manhã seguinte fui levada a
uma pequena casa, dentro do alambrado. Instalando-me
ali, olhei ao redor e vi que havia uma parede de arame
entre o meu compartimento e aquele do Belo Gato. O
compartimento dele estava limpo, bem arrumado, a palha
na cama se mostrava limpa, e vi que em sua vasilha de
água não havia qualquer fragmento de poeira flutuando.
Ele, entretanto, não estava ali, e calculei que se achasse
no jardim fechado, andando em meio às plantas.
Sonolenta, fechei os olhos e adormeci. Uma voz calorosa
fez-me despertar com sobressalto, e eu olhei com timidez
para a parede divisória, feita de arame.
— Ora, bem! — disse o gato siamês. — Prazer em
conhecê-la, pode acreditar.
Estava com a cara negra e grande bem perto do arame
divisório, os olhos azuis, muito vivos, a refulgir em minha
direção, revelando-me seus pensamentos-
— Vamos casar esta tarde — anunciou. — Eu vou gos-
tar, e você?
Corando, escondi a cara na palha.
— Oh, não se preocupe tanto — exclamou ele. — Esta-
mos fazendo um trabalho nobre, não existe um número
suficiente de nós na França. Você vai gostar, vai ver! —
afirmou rindo, enquanto se deitava para descansar, após
a caminhada matutina.
À hora do almoço, o homem veio e riu ao nos encontrar,
sentados perto um do outro, tendo apenas a grade de
arame entre nós, e entoando um dueto. O gato se pôs em
pé, e berrou para o homem:
— Tire esta porta do meio! — e utilizou algumas outras
palavras que me fizeram corar novamente.
O homem, sem pressa, abriu a porta, prendeu-a aberta e
se retirou do aposento.
Oh! Aquele gato, o ardor de seus abraços, as coisas que
me disse! Mais tarde, ficamos deitados lado a lado,
tomados de um brilho cálido, e vim a saber com certo
desapontamento: eu não fora a primeira! Levantei-me e
voltei a meu próprio compartimento. O homem entrou e
mais uma vez fechou a porta de arame entre nós. Ao
anoitecer, apareceu mais uma vez e me levou de volta à
gaiola grande. Dormi profundamente.
Ao amanhecer, a mulher entrou e me levou para o apo-
sento a que eu fora ter logo de início, quando chegara
àquele edifício. Colocou-me sobre uma mesa, segurando-
me com firmeza enquanto o homem me examinava por
completo.
— Terei de falar com a dona desta gata, porque o pobre
animal foi muito maltratado. Veja aqui — disse,
apontando para minhas costelas esquerdas, e apertando
um pouco onde ainda doía. — Alguma coisa muito séria
aconteceu com ela e é um animal valioso demais para ser
negligenciado.
— Vamos dar um passeio até lá, amanhã, e conversar
com a. dona? — perguntou a mulher, que parecia
realmente interessada em mim.
O homem respondeu, dizendo:
— Sim, nós a levaremos de volta. Talvez consigamos, re-
ceber nosso dinheiro, na mesma ocasião. Vou telefonar
para ela e dizer que entregaremos a gata e receberemos
o dinheiro.
Apanhou o telefone e conseguiu falar com Mme. Diplo-
mata, cuja única preocupação pareceu ser a de que a
"entrega da gata" ia custar-lhe alguns francos mais.
Tendo sido assegurado que isso não aconteceria,
concordou em pagar a conta assim que eu fosse
devolvida. Assim é que ficou decidido que eu
permaneceria ali até a tarde seguinte, sendo então
devolvida a Mme. Diplomata.
— Olhe, Georges — chamou o homem. — Leve-a de
volta, para a gaiola do macaco, porque vai ficar até
amanhã.
Georges, um homem idoso e encurvado a quem eu não
vira antes, veio ter comigo e me suspendeu, com cautela
surpreendente. Colocando-me sobre o ombro, afastou-se
dali. Levou-me para a sala grande sem parar, de modo
que não pude conversar com os demais. Na outra sala,
colocou-me na gaiola do macaco, fechando a porta. Por
poucos momentos, arrastou diante de mim um pedaço de
barbante.
— Pobrezinha, — dizia, para si próprio. — Está mais do
que claro que ninguém nunca brincou com você, em sua
curta vida!
Mais uma vez sozinha, subi ao galho inclinado e espiei
pela fresta do alambrado. Não sentia emoção alguma em
mim, agora. Sabia que o gato tivera inúmeras rainhas e
que eu era apenas uma no meio delas. As pessoas que
conhecem os gatos sempre chamam os machos de
"gatos" e as fêmeas de "rainhas". Isso nada tem a ver
com o pedigree, é apenas um termo genérico.
Um galho solitário balançava, inclinando-se sob peso
considerável. Enquanto eu observava, o grande gato
saltou da árvore, caindo à terra. Voltando a subir pelo
tronco, em carreira, tornou a fazer aquilo diversas vezes.
Eu observava, fascinada, até compreender que ele fazia
o exercício matutino. Ociosamente, por não ter algo
melhor a fazer, deitei-me em meu galho e afiei as unhas
até que as mesmas brilhassem como as pérolas no colar
de Mme. Diplomata. Depois disso, entediada, dormi no
calor reconfortante do sol de meio-dia.
Algum tempo depois, quando o sol não mais se achava
diretamente por cima, mas fora aquecer alguma outra
parte da França, fui despertada por uma voz suave e
maternal. Olhando com alguma dificuldade para uma
janela quase fora de meu alcance, vi uma velha rainha
negra, que já vivera por muitos verões. Tratava-se de
uma criatura positivamente gorda e vendo-a sentada no
peitoril da janela, lavando as orelhas, achei que seria bom
conversarmos um pouco.
— Ah! — disse ela. — Você, então, acordou. Espero que
esteja gostando de sua estada aqui; nós nos orgulhamos
do fato de que somos quem presta o melhor serviço de
toda a França. Está comendo bem?
— Sim, obrigada — respondi. — Estou sendo muito bem
cuidada. A senhora é a proprietária?
— Não — respondeu-me ela. — Embora muitos julguem
que seja. Estou encarregada da tarefa importante de
ensinar aos novos gatos quais são os deveres deles; faço
uma experiência com os mesmos, antes que entrem em
circulação geral. Trata-se de trabalho muito importante e
duro.
Permanecemos sentadas por alguns momentos, absortas
em nossos pensamentos.
— Qual é o seu nome? — perguntei.
— Manteiguinha, — respondeu ela. — Eu já fui muito
gorducha, e meu pelo brilhava como manteiga, mas isso
já faz muito tempo, quando eu era mais jovem — aduziu.
— Agora, executo uma série de tarefas... além DESSA de
que lhe falei, sabe? Eu também policio os armazéns de
comida, para que os camundongos não nos amolem.
Dito isto, entrou em meditação, pensando nos seus deve-
res, e acrescentou:
— Já experimentou nossa carne de cavalo? Oh, é PRE-
CISO experimentar, antes de ir embora. É realmente
deliciosa, a melhor carne de cavalo que se pode comprar.
Acho que vamos ter alguma no jantar, porque vi o
Georges... o ajudante, você sabe... cortando uma boa
parte, há momentos.
Fez uma pausa, e depois aduziu, com voz cheia de satis-
fação:
— Sim, tenho a certeza de que há carne de cavalo para
o jantar.
Continuamos sentadas, pensando, lavando-nos um
pouco, e logo Manteiguinha disse:
— Bem, tenho de ir-me embora. Vou providenciar para
que você receba uma boa quantidade... creio que já sinto
o cheiro do jantar que o Georges vem trazendo!
Saltou da janela. Na sala grande atrás de mim, ouvi gritos
e berros.
— CARNE DE CAVALO!
— Sirva-me primeiro!
— Estou morrendo de fome... depressa, Georges!
Este, entretanto, não deu atenção alguma aos demais, e
atravessou a sala grande, vindo ter diretamente comigo,
servindo-me em primeiro lugar.
Ronronei para ele, a fim de demonstrar que apreciava
devidamente a honra que me conferia. Ele depositou à
minha frente uma grande quantidade de carne, de odor
maravilhoso. Esfreguei-me em suas pernas, roncando o
mais alto que sabia.
— Você é apenas uma gatinha — disse ele. — Vou cortar
a carne para comer.
Em atitude muito educada, cortou tudo aquilo em peda-
ços, e depois, desejando-me boa refeição, saiu para
servir os demais.
A carne era simplesmente maravilhosa, doce ao paladar,
macia. Finalmente, sentei-me e lavei a cara. Ouvi um
esgaravatar, que me fez olhar, exatamente quando uma
cara negra, com olhos brilhantes, surgiu à janela.
— Ótimo, não foi? — perguntou Manteiguinha. — Não foi
como lhe disse? Nós temos a melhor carne de cavalo que
se pode conseguir. Espere, porém, até comer PEIXE no
desjejum! Coisa formidável, acabei de provar. Oh, bem,
boa noite!
Ato contínuo, voltou-se e desapareceu.
Peixe? Eu não podia sequer pensar em comida, naqueles
momentos, estava repleta. Aquilo era uma mudança tão
grande, com relação à comida de casa, onde eu recebia
migalhas e restos deixados pelos seres humanos, coisas
misturadas com molhos idiotas, que muitas vezes
queimavam minha língua. Ali onde me encontrava os
gatos viviam em verdadeiro estilo francês.
A luz esmaecia, enquanto o sol se punha no céu do Oci-
dente. Pássaros voltavam a seus lares, em revoada,
velhos corvos gritavam, chamando os companheiros,
conversando sobre os fatos do dia. Logo o crepúsculo se
aprofundou, e os morcegos surgiram esbatendo as asas
rangentes, enquanto faziam voltas e se atiravam à
perseguição dos insetos noturnos. Por cima dos choupos
altos, a luz alaranjada parecia espiar com timidez, como a
hesitar, sem saber se se intrometia na escuridão da noite.
Com um suspiro de contentamento, subi
preguiçosamente para minha caixa e adormeci.
Sonhei, e todos os meus anseios voltaram à superfície.
Sonhei que alguém queria ter-me, pelo meu valor próprio,
pela companhia. Tinha o coração cheio de amor, amor
que era preciso reprimir, porque ninguém, em minha
casa, tinha noção dos anseios e desejos de uma gatinha
nova. Agora, como gata adulta e velha, encontro-me
cercada de amor e o retribuo em medida completa.
Quase não conheço dificuldades, agora, nem sinto falta
das coisas, mas para mim isto é a vida perfeita, onde faço
parte da família e sou amada como verdadeira pessoa.
A noite passou. Eu me achava inquieta, pouco à vontade,
pensando em voltar para casa. Encontraria novas
dificuldades por lá? Teria uma cama de palha, ao invés de
jornais velhos e úmidos? Fiquei imaginando, e logo em
seguida o dia surgiu. Um cachorro ladavra, em tom
lamurioso, na sala grande.
— Quero sair, quero sair — estava dizendo, sem parar.
— Quero sair!
Perto dele, um pássaro recriminava o companheiro por
haver tardado a preparar o desjejum. Gradualmente, os
ruídos comuns do dia vinham aparecendo. O sino em
uma torre de igreja badalou, sua voz atrevida chamando
os seres humanos para que se levantassem e fizessem
alguma espécie de trabalho.
— Depois da missa, eu vou à cidade, comprar uma blusa
nova. Você me dá uma carona? — perguntou uma voz de
mulher. Logo desaparecia de minha audição, sem que eu
pudesse entender a resposta do homem. O estrépido de
baldes batendo uns nos outros fizeram-me lembrar que
logo chegaria o momento do desjejum. Do aposento
cercado por arame, o Belo Gato ergueu a voz, em canção
de louvor para saudar o novo dia.
A mulher veio com meu desjejum.
— Olá, gata — disse ela. — Coma bem, porque você irá
para sua casa, esta tarde.
Ronronei e esfreguei-me nela, para mostrar que
compreendia. Ela usava roupas novas de baixo, cheias
de babados, e parecia estar muito alegre. Muitas vezes
sorri para mim própria ao pensar no modo pelo qual nós,
os gatos, vemos as pessoas! Muitas vezes podemos
determinar o estado de espírito da criatura, pela roupa de
baixo que veste. É que temos um ponto de vista diferente,
convém notar.
O peixe estava muito bom, mas coberto por uma subs-
tância parecida com trigo, que eu tive de raspar.
— Ótimo, não está? — perguntou uma voz, falando da
janela.
— Bom dia, Manteiguinha — respondi. — Sim, está muito
bom. Mas para que esta coisa em cima?
Manteiguinha riu, bonachona.
— Oh! — exclamou. — Você deve ser do interior. Aqui,
nós SEMPRE... mas SEMPRE... temos mingau de ma-
nhã, por causa das vitaminas.
— Mas por que eu não recebi antes? — persisti.
— Porque estava sob tratamento, e recebeu as vitaminas
em forma líquida.
Dito isto, Manteiguinha suspirou e prosseguiu:
— Preciso ir agora, sempre há muita coisa para fazer e o
tempo é escasso. Procurarei vê-la, antes que se vá
embora.
Não tive tempo de responder, pois ela já saltara da janela,
e eu a ouvia correndo em meio aos arbustos.
Houve uma conversa confusa, vinda da sala grande.
— Sim — disse o cachorro americano. — Aí eu disse pra
ele, não quero você com o focinho por perto do MEU pos-
te, entendeu? Você sempre está por aí para ver o que
consegue farejar.
Tong Fa, um gato siamês que chegara em hora adiantada
do anoitecer, conversava com Chawa.
— Diga-me, madame, nós temos licença de investigar o
terreno aqui?
Eu me enrodilhei c dormi, porque toda aquela conversa
me causava dor de cabeça.
— Devemos pô-la em uma cesta?
Despertei, com sobressalto. O homem e a mulher entra-
vam em minha sala, por uma porta lateral.
— Cesta? — perguntou a mulher. — Não, ELA não pre-
cisa ser posta em cesta. Eu a levarei no colo.
Eles foram ter à janela, e ali continuaram conversando.
— Aquele Tong Fa — disse a mulher. — É uma vergonha
pô-lo a dormir. Não há algo que possamos fazer?
O homem mexeu-se, inquieto, e esfregou o queixo.
— E o que podemos fazer? O gato é velho, quase cego.
O dono não tem tempo para lhe dedicar. O que podemos
fazer?
Houve silêncio por muito tempo.
— Não estou gostando — disse a mulher. — Isso é
assassinato!
O homem continuou calado, e eu me tornei tão pequenina
quanto possível, a um certo canto da gaiola. Velho e
cego? Isso bastava para determinar a sentença de
morte? Não havia pensamento algum pelos muitos anos
de dedicação e amor, para que se matassem os velhos,
assim que não soubessem cuidar de si próprios? Juntos,
o homem e a mulher seguiram para a sala grande e
retiraram o velho Tong Fa com gentileza de sua gaiola.
A manhã se arrastava, eu tinha pensamentos sombrios. O
que aconteceria comigo quando estivesse velha? A
macieira me dissera que eu seria feliz, mas quando se é
jovem e inexperiente a espera parece ocupar um tempo
infinito. O velho Georges entrou.
— Aqui está um pouquinho de carne de cavalo, gatinha.
Coma, porque você logo irá para casa.
Eu ronronei e me esfreguei nele, que se abaixou para
afagar minha cabeça. Mal acabara de comer e fazer
minha toalete quando a mulher veio à minha procura.
— Nós já vamos, Fifi! — exclamou. — De volta para a
casa de Mme. Diplomata (a bruxa velha).
Apanhou-me, e saiu comigo pela porta lateral.
Manteiguinha estava à espera
-— Adeus, Fifi — gritou. — Venha ver-nos outra vez.
— Adeus, Manteiguinha — respondi. — Muito obrigada
por sua hospitalidade.
A mulher seguiu andando até onde o homem estava à es-
pera, ao lado de um automóvel antigo e grande. Ela
embarcou, verificou se as janelas estavam quase
fechadas, após o que o homem embarcou e ligou o
motor. Nós partimos, seguindo pela estrada que levava à
minha casa.
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
- Viva a Margarida! — cantava Miss Ku'ei. — Estamos
nós de partida. Nós viajamos pelo mundo, como o Gato
Raimundo. Vamos para Windsor, a Cidade, para mudar
outra vez, mudar de verdade.
— Fique quieta, Ku'ei — disse o Chefe. — Não se pode
pensar, quando você está cantando. É bom résignar-se
com o fato e que não tem mais talento musical do que eu.
Sorri para mim mesma. Era manhã e Miss Ku'ei saudava
o amanhecer já distante com seu canto. Quando o Chefe
lhe falou, ela se afastou, resmungando:
— Vocês não apreciam a Arte, não têm talento para isso!
Eu mc espreguicei, pois logo faríamos o desjejum. Já Ma-
mãe se movimentava na cozinha. Ruído de pratos
chegou a meus ouvidos, então.
— Ku'ei! Fif! Venham para o desjejum!
— Já vou, Mamãe — respondi, ao apalpar a beira da
cama e saltar para o chão.
Era sempre uma aventura, isso de saltar da cama para o
chão, de manhã. Os sentidos e percepções da criatura
não são tão agudos, quando ainda não se acordou
inteiramente, e eu sempre nutria um receio leve de que
iria cair sobre os sapatos do Chefe, ou coisa parecida.
Era um receio muito leve, porém, porque eles haviam
tomado cautelas excepcionais a fim de que eu não me
machucasse.
— A Fif já vem! — disse o Chefe, falando com Mamãe.
— Venha para o seu desjejum, Fif — disse Mamãe. —
Você está andando como se fosse uma vovó, esta
manhã!
Sorri para ela e instalei-me para comer. — Não, um
pouco mais para a direita. . . aí mesmo! — disse Miss
Ku'ei.
— O que vamos fazer em seguida? — perguntou o Che-
fe. —Eu irei apanhar a correspondência.
Mamãe indicou as coisas que eram as mais frágeis e o
Chefe e Botão de Ouro as levaram para o automóvel.
Tínhamos uma caixa postal em Windsor, porque
havíamos descoberto que, quando as pessoas tinham
nosso endereço, vinham visitar-nos inesperadamente e
isso criava complicações, uma vez que o Chefe não
recebia pessoa alguma que simplesmente aparecesse e
exigisse ser recebida. Miss Ku'ei me contou que quando a
família vivia na Irlanda — antes que eu aparecesse em
cena — uma mulher chegara da Alemanha e EXIGIRA ser
recebida imediatamente, pois queria "sentar-se aos pés
do Lama". Informada de que não podia entrar, ela
montara acampamento nos degraus da escada, até
receber ordens do Sr. Loftus, o policial, para que se
retirasse dali, ordem essa que ele deu com expressão
fisionômica muito feroz e porte marcial, em seu uniforme
garboso.
Mudar era assunto que não dizia respeito a Miss Ku'ei e a
mim. E alguns homens das firmas de transportes haviam
carregado nossas coisas, partindo no caminhão. Miss
Ku'ei andou pela casa, despedindo-se de suas peças. Era
uma despedida que nos deixava satisfeitas, pois aquela
casa jamais tivera uma atmosfera amistosa para nós.
Com o tempo, ela e eu fomos levadas, bem agasalhadas,
para o automóvel, cujo interior estava aquecido. O Chefe
trancou as portas da casa e saímos dali. A estrada estava
muito ruim, como tantas outras estradas canadenses, e
Miss Ku'ei me disse que havia um letreiro, onde se lia:
"Estrada em mau estado, siga a seu próprio risco!"
Prosseguimos viagem, chegando a um cruzamento
ferroviário. Miss Ku'ei avisou:
— É daqui que vem nossa comida, Fif, um lugar
chamado "Pare e Compre". Agora, estamos na estrada
principal de Windsor.
Ali, a viagem era mais macia. Meu nariz comichou, ao
perceber um odor conhecido, odor que me fazia pensar
no veterinário irlandês e em seu Hospital de Gatos. Miss
Ku'ei riu dizendo:
— Não seja tola, Fif, isto é apenas um hospital para se-
res humanos, e para aqui só vêm aqueles que estão
quase mortos.
Mais adiante, ela disse:
— E aqui é onde os automóveis são fabricados. Estamos
passando pela fábrica Ford. Vou-lhe contar tudo, Fif. Vou-
Ihe dizer o que estamos vendo.
— Miss Ku'ei! — disse eu. — Que cheiro estranho! De
algum modo vago, ele me faz pensar nos vinhais
franceses, mas ainda assim é um cheiro DIFERENTE.
— Claro que sim — disse ela. — Aqui é uma fábrica, onde
eles preparam bebidas. Cereais que podiam servir de
alimentação para pessoas com fome são amassados
para fazer uma espécie de bebida, sem a qual as
pessoas viveriam melhor. Mas nós vamos passar logo por
uma ponte ferroviária. Todos os trens que vêm de
qualquer lugar para Windsor passam sobre esta ponte.
Seguimos mais um pouco e depois houve uma batida
estrondosa, que me fez dar um pulo no ar.
— Não seja medrosa, Fif — disse Miss Ku'ei. — Isso foi
apenas um trem passando no desvio.
O Chefe deu uma volta e se deteve.
— Estamos em casa, Fif — disse Mamãe.
Miss Ku'ei e eu fomos levadas pelo caminho de acesso à
casa, coberto de neve, passando pela porta dianteira e
subindo as escadas.
Lá estava o cheiro forte de verniz e sabão. Farejei o chão,
achando que o mesmo tinha sido bem encerado e isso
recentemente.
— Não ligue para isso — disse Ku'ei. — Você poderá
examinar o soalho mais tarde. Vou levá-la de aposento a
aposento, falando-lhe sobre o lugar. Preste atenção,
porque temos alguns móveis novos.
— Sheelagh! — chamou o Chefe- — Vamos entregar as
chaves ao senhorio, e não demoraremos.
O Chefe e Mamãe saíram e ouvi quando desceram as es-
cadas, embarcavam no automóvel, e partiam.
— Bem, agora venha comigo — disse Miss Ku'ei.
Percorremos todo o apartamento, Miss Ku'ei indicando to-
dos os obstáculos e a localização das cadeiras. Em
seguida, fomos para o alpendre de trás.
— Abra, por favor! — gritou Miss Ku'ei.
— Você quer sair, Ku'ei? — perguntou Botão de Ouro. —
Bem, vou abrir a porta.
Atravessou a cozinha e foi à porta, abrindo-a. Uma lufada
de ar gelado entrou, e nós saímos para o alpendre.
— Aqui — disse Miss Ku'ei — é o alpendre de cima. Fe-
chado com arame por três lados. Não tardará a ser a Sala
dos Macacos. Terá aquecimento. Brrr! Vamos sair, faz frio
demais aqui.
Seguimos para a cozinha e Botão de Ouro fechou a porta
do alpendre com um suspiro de alívio e outro sinal,
comentando por mímica alguma coisa sobre as gatas
tolas que gostavam de passear — ao que ela pensava —
sem qualquer objetivo.
— Aqui está o dormitório que você partilhará com o Che-
fe. Dá para ver a estrada de ferro, por cima do rio Detroit
e a cidade do mesmo nome. No verão, ao que estou
informada, os navios de todo o mundo passam diante
dessa janela. Nós veremos, veremos!
Miss Ku'ei estava em seu elemento, descrevendo o que
via.
— Um pouquinho para a esquerda, está o lugar onde al-
guns homens fizeram um buraco por baixo do rio, e por
ali uma estrada de ferro que dá para a América. Mais
além, fica a Ponte, do Embaixador. O Chefe diz que a
palavra Detroit é uma corruptela do que em francês se
designa por "Os Estreitos". Acho que você já sabe de
tudo isso, Fif!
Ela se voltou repentinamente, tão depressa que bateu
com a cauda em minha cara.
— Puxa! — arquejou. — Um sujeito de aspecto horrível
está olhando para mim, e traz uma pasta de documentos,
com ar de funcionário público.
Aquela noite dormimos bem, sem sermos muito pertur-
bados pelos barulhos e estrondo dos trens que passavam
diante da janela. De manhã, Mamãe desceu as escadas
para apanhar o leite. Regressou de lá trazendo o leite e
umas cartas que entregou ao Chefe.
— O que é isso? — perguntou ele.
— Não sei — disse Mamãe. — Estava na caixa.
Ouvi o som de envelope que era rasgado, e depois o si-
lêncio enquanto o Chefe lia.
— Céus! — exclamou ele. — Não há limite para a bobice
dos funcionários canadenses? Escutem só. É uma carta
do Departamento de Renda Nacional. Ela diz:
Prezado Senhor,
As informações recebidas por este Departamento indicam
que está fazendo pagamentos de aluguel a um não-
residente do Canadá, sem deduzir impostos. Como
deixou de pagar impostos desde o dia 1° de maio de
1959, solicitamos que inclua o suficiente em seu próximo
aluguel, a fim de cobrir a soma tributária que deveria ter
pago.
Se deixar de pagar os impostos como é determinado
pelas Leis Tributárias, será punido, de acordo com...
— Estão vendo? — disse o Chefe. — Nós nos mudamos
ontem, e já recebendo ameaças. Seria bom despertar,
como de um pesadelo e descobrir que estávamos de
volta na boa e velha Irlanda. POR QUE esses
canadenses infantis ameaçam as pessoas desse modo?
Acho que vou tratar dessa questão com os funcionários
de maior categoria em Ottawa.
Miss Ku'ei me catucou:
— Está vendo, Fif? Foi como eu lhe disse. Aquele ho-
mem horrível, que vimos ontem, era um espião fiscal. Eu
o vi.
Continuamos a ouvir o Chefe falar a esse respeito.
— Não consigo compreender este país. Eles me
ameaçam com deportação logo na primeira carta que me
mandaram. Ao invés de me pedirem que vá ao Oficial
Médico de Saúde, eles ME AMEAÇAM com a
deportação, se não for. Agora, no dia seguinte ao de
nossa mudança, vem com ameaça de todos os tipos de
penalidade. O povo deste país não tem raciocínio
suficiente para saber que já terminaram os dias do Oeste
Selvagem.
— O Chefe está ficando com raiva — cochichou Miss
Ku'ei. — Nós devíamos esconder-nos debaixo da cama!
Os dias decorreram sem maiores problemas.
Gradualmente, fomo-nos acostumando aos ruídos dos
trens. O chefe fez uma barulheira a respeito das cartas
ameaçadoras e recebeu desculpas dos funcionários
fiscais locais e também do governo de Ottawa. Foi
publicado um artigo nos jornais falando sobre os
funcionários canadenses que procuram intimidar os
colonizadores! O tempo tornou-se mais quente e Miss
Ku'ei e eu pudemos sentar-nos na escada e brincar no
jardim do pavimento térreo.
Certa manhã, o Chefe voltou do correio de Walkerville,
trazendo bastante correspondência, como de costume,
mas nesse dia vinha também uma bela carta da Sra.
O'Grady.
— Sinto saudades dela — disse Mamãe. — Como seria
bom se ela pudesse vir visitar-nos!
O Chefe permaneceu sentado e quieto por algum tempo
e depois disse:
— Ela foi uma boa amiga nossa. Por que não a fazemos
vir?
Mamãe e Botão de Ouro ficaram paradas, espantadas.
— O Chefe ficou maluco, finalmente — cochichou Miss
Ku'ei. — Foi o que o Canadá fez por ele.
— Rab — disse o Chefe —, que tal escrever à Sra.
O'Grady e perguntar se ela gostaria de vir? Diga-lhe que,
se vier no próximo mês, estará aqui na mesma ocasião
em que também se encontrará a Rainha da Inglaterra.
Pense nisso, a Rainha da Inglaterra e a Sra. O'Grady, da
Irlanda, aqui no Canadá, ao mesmo tempo. Diga-lhe que
a Rainha passará pelo rio, bem à nossa frente. Diga-lhe
que POR FAVOR responda logo!
Miss Ku'ei, com bom humor de todo inconsciente, disse:
— Bem, Fif, agora que finalmente nos livramos dos ma-
cacos, vamos ficar com a Sra. O'Grady.
Todos nós AMÁVAMOS a Sra. O'Grady, e a tínhamos na
conta de amiga muito boa. Eu ri, fazendo Miss Ku'ei per-
ceber que estava colocando a Velha O'G na mesma
categoria daqueles animais. Miss Ku'ei, com sua
presença de espírito habitual, voltou-se para mim,
dizendo:
— Bobagens, Fif, qualquer um, menos você,
compreedenderia que depois da tempestade vem o sol. A
Sra. O'Grady é sol, depois da tempestade dos macacos.
Os macacos tinham sido uma "tempestade", realmente,
como concordei logo. Logo após havermos mudado para
a casa na Estrada do Rio, o carpinteiro holandês chegara,
trazendo a gaiola no caminhão.
— Eu querer trazer minha mulher ver os macacos, sim?
— perguntara.
Botão de Ouro, a Rainha dos Macacos, concordara,
dizendo que ele podia trazer a mulher para ver os
macacos, quando estes estivessem instalados. O
carpinteiro holandês e seu filho trouxeram todas as peças
e trabalharam bastante para montar o conjunto. Depois,
esfregaram as mãos, afastaram-se pra ver a obra, e
ficaram à espera do pagamento em dólares. Isso
resolvido, partiram dali, após receberem garantia de que
a esposa do carpinteiro seria convidada para visitar a
Sala dos Macacos.
Um ou dois dias depois, chegaram dois macacos, em
uma cesta grande, naturalmente. Botão de Ouro, toda
animada ao vê-los, abriu a tampa um pouco, sem cautela.
UAI! — berrou Miss Ku'ei. — PRA BAIXO DA CAMA, FIF,
TEM MACACOS BRAVOS SOLTOS POR AI!
Nós mergulhamos para debaixo da cama, de modo que
não ficássemos no caminho, atrapalhando a caçada aos
macacos. O Chefe, Mamãe e Botão de Ouro corriam
pelos aposentos, fechando janelas e portas. Por algum
tempo foi um pandemônio. Parecia-nos que hordas de
macacos corriam por ali. Miss Ku'ei comentou:
— Vou ficar perto da parede, Fif, e estarei em condições
de puxar você, se um macaco vier em nossa direção.
Finalmente, um dos macacos foi apanhado e posto na
jaula, e após outros esforços aconteceu o mesmo com o
segundo. A família sentou-se, enxugando as testas. Logo
Botão de Ouro se pôs em pé, e transformou-se em Corpo
Sanitário, composto de uma só pessoa, ela própria, para
percorrer a casa, retirar as marcas de macaco que se
achavam distribuídas por toda a parte, em profusão
espantosa. Miss Ku'ei observou, sabiamente:
— Puxa vida! É formidável que essas coisas não saibam
voar, Fif.
O Chefe e Mamãe andavam por ali, endireitando as
coisas e ajudando a restaurar o lugar, deixando-o no
estado em que se encontrava, antes dos macacos.
A experiência com os macacos não constituiu êxito. O
ruído, o cheiro, a agitação geral que aquelas criaturas
causavam, tudo isso era demasiado. Um apelo frenético
foi feito ao homem chamado Heddy.
— Sim — concordou ele —, esses macacos selvagens,
vindos das florestas sul-americanas, realmente não são
adequados para casa particular, e sim, apenas, para os
jardins zoológicos.
Propôs levar os macacos e dar-nos um domesticado,
criado em cativeiro e próprio para se ter como animal de
estimação, uma família pálida e abalada disse, em
uníssono:
— NÃO! Basta levá-los daqui. Pode levar a gaiola, tam-
bém, de presente!
Assim, dois macacos e uma gaiola bastante grande, feita
especialmente, foram devolvidos. Miss Ku'ei e eu
podemos, hoje, andar pela casa com confiança maior, já
não mais constantemente alertas por causa de macacos
que tenham fugido. Quando o cheiro já diminuíra c depois
de o alpendre ter sido energicamente lavado diversas
vezes, passamos muito tempo ali. Era um lugar
agradável, onde o sol incidia de manhã, e de onde
podíamos sentir o perfume das flores e plantas do jardim
próximo. Já demos muitas risadas por causa dos
macacos, mas isso apenas ao recordar o passado, um
passado que não poderia voltar!
Nossa alegria pela partida dos macacos logo aumentou,
quando recebemos uma carta da Sra. O'Grady. Sim, ela
viria, ao que informava. O marido ficara satisfeito por vê-
la ter essa oportunidade de viajar.
— O que era ele? — cochichei a Miss Ku'ei.
— Era um homem muito importante — disse ela, também
em cochicho. — Era a voz de um navio, e falava de modo
que todo o mundo pudesse ouvir. Chamavam-no de
Faíscas.
Miss Ku’ei pensou por momentos, e acrescentou:
— Acho que ele lidava com o rádio. Sim, deve ser, é ele
quem faz toda a eletricidade para Dublin agora, ao que
me parece!
— Eles têm família, Miss Ku'ei? — perguntei.
— Sim, — respondeu ela — têm uma gatinha chamada
Dóris... que também virá... e o Sr. Samuel Cachorro, que
toma conta da casa. Ele é quase tão velho quanto você,
Fif.
As semanas foram-se passando e certa manhã o Chefe
chamou-me a mim e a Miss Ku'ei, dizendo:
— Muito bem, gatas, na semana que vem vamos ter
movimento e barulho. A Rainha da Inglaterra virá a
Windsor, e haverá bandas de música e foguetório. A Sra.
O'Grady e Dóris chegarão hoje. Você, Ku'ei, deverá tomar
conta de Fif; eu a torno responsável pela segurança dela.
— Okay, Chefe, okay! — respondeu Miss Ku'ei. — E não
tomo conta dela, sempre, como se fosse a minha própria
bisavó?
Houve muitos preparativos, Mamãe e Botão de Ouro
esforçaram-se ainda mais na limpeza da casa e o Chefe
e nós, gatas, usamos energia ainda maior para não
ficarmos na frente delas, para não sermos varridas
também.
— Vamos para o sótão — disse Miss Ku'ei, finalmente..
— Essas mulheres, com tal animação, tornam este lugar
perigoso para nós.
O tempo esquentara, fazia um calor terrível. Miss Ku'ei e
eu encontrávamos dificuldade até para respirar. Assim
como nosso primeiro inverno no Canadá fora
excepcionalmente frio, também aquela estação, a de
calor, se mostrava excepcionalmente quente. Miss Ku'ei
comentou:
— Puxa! Fif, não se pode ter comida boa e crua agora,
tudo é cozido por este tempo quente.
Mamãe fora para Montreal na véspera, de modo a vir de
lá em companhia da Sra. O'Grady. Por volta de uma da
tarde do "dia de chegada" o Chefe saiu com o automóvel,
e partiu para o Aeroporto de Windsor. Botão de Ouro
zumbia pela casa, e não parava de espiar pela janela.
Miss Ku'ei disse que havia muita coisa para ver. Em
questão de alguns dias, teríamos procissões, bandas de
músicas e revoadas de aeroplanos. Não por causa da
Sra. O'Grady, o que Miss Ku'ei tornou bem claro, mas
devido à Rainha Inglesa, que se achava presente.
Haveria espetáculos pirotécnicos que, como eu sabia,
representavam muitos estrondos. Estávamos, porém, à
espera de nossa amiga, Sra. O'Grady.
Miss Ku'ei e eu fazíamos uma refeição leve, a fim de nos
fortalecermos. Botão de Ouro espiava pela janela. De
repente, ela gritou:
— Ah! Aí vêm eles! (Falou em inglês, porque não conhe-
cia a linguagem dos gatos).
Ato contínuo, desceu correndo as escadas para abrir a
porta de entrada.
— Cuidado para não ficar no caminho, Fif — disse Miss
Ku'ei. — As gatas jovens podem ser um pouco
estabanadas com os pés. TODOS os seres humanos são
— aduziu, como a completar o pensamento. — Fique
perto de mim e tudo andará bem.
Houve muita agitação na escada, conversa e risada, e em
seguida o ruído de malas que eram postas no chão.
— Puxa! — cochichou Miss Ku'ei. — A pobre velha O'G
está com tanto calor quanto uma fatia frita de bacon.
Espero que ela não morra aqui!
Finalmente, eles chegaram ao cimo da escada, e a Sra.
O'Grady afundou-se na cadeira mais próxima. Depois de
se ter recuperado um pouco, Mamãe disse:
— Venha à sacada, talvez esteja mais fresco lá.
Todos nós fomos para a sacada, sentando-nos. Por al-
gum tempo, a conversa foi sobre a Irlanda, assunto
agradável para o Chefe e Mamãe. Depois, passaram a
falar sobre a Rainha Inglesa, assunto da preferência de
Botão de Ouro, mas que deixava o Chefe indiferente.
Miss Ku'ei disse:
— Se vocês querem falar sobre rainhas, NÓS somos as
melhores rainhas que existem!
A Sra. O'Grady parecia sentir cada vez mais calor e,
finalmente, retirou-se para o apartamento de baixo, onde
se resfriou na melhor água da cidade de Windsor,
voltando de lá mais tarde, aparentemente refrescada.
Mamãe providenciara para que a Sra. O'Grady e Filha
ficassem num hotel muito bom, o Metrópole, e após
haverem ficado por lá o tempo suficiente para verem as
luzes de Detroit, o Chefe e Mamãe as levaram para o
hotel. Miss Ku'ei foi também, para mostrar o caminho ao
Chefe e dizer-lhe como dirigir. Creio que tenham levado
meia hora, após a qual o Chefe, Mamãe e Miss Ku'ei
voltaram. Fomos todos deitar-nos, preparando-nos para o
dia seguinte.
De manhã Mamãe disse:
— Vamos apanhá-las depois do desjejum, quando
formos buscar a correspondência. Acho que devíamos
levá-las a Windsor; para que vejam como é a cidade.
Fizemos o desjejum e em seguida Miss Ku'ei e eu ajuda-
mos o Chefe a vestir-se. Ele é muito doente e já passou
por apuros suficientes para dar fim a qualquer pessoa.
Precisa, agora, descansar muito e ter muito cuidado. Miss
Ku'ei e eu dedicamos nossas vidas a cuidar dele. Logo
ele e Mamãe desceram as escadas do fundo, seguindo
pelo jardim até a garagem. Nossa senhoria residia em
Detroit, mas em Windsor seus assuntos eram cuidados
pela prima, uma senhora muito agradável, que sempre
falava muito educadamente com Miss Ku'ei e comigo.
Todos nós gostávamos muito dela. Nosso automóvel era
grande demais para entrar na garagem da casa, de modo
que a Srta. Prima da Senhoria deixava que o
guardássemos em sua garagem, que era bem grande.
Era, realmente, uma mulher muito agradável e
conversava muito conosco. Lembro-me de que um dia ela
nos disse que, no tempo cm que viveu seu pai, todos os
colonizadores trabalhavam armados, devido à ameaça
constante de incursões dos índios. O pai dela, ao que nos
narrou, levava seu gado a beber no rio, onde passam
hoje os trilhos da estrada de ferro. Ela tinha outra casa a
poucos quilômetros de Windsor, uma verdadeira cabana
de madeira, feita de toras de nogueira. Miss Ku'ei foi vê-
la, certa vez, e ficou muito impressionada com as
criaturas estranhas que viviam por baixo dos degraus
dessa cabana.
— Santos Gafanhotos! — comentou Miss Ku'ei —. Como
estão demorando!
Achávamos um desperdício de tempo ficarmos sentadas
esperando, de modo que subimos para o sótão e afiamos
as garras nas vigas, tomando um belo banho fresco de
poeira. Do canto mais alto da casa Miss Ku'ci fitava a rua,
a uns quinze metros de distância.
— Eles chegaram — avisou, e pulou de leve para o chão
do sótão.
Descendo as escadas, a correr, chegamos a tempo de
recebê-los quando entravam. O Chefe me apanhou,
pondo-me sobre o ombro e levando-me para o pavimento
superior. Miss Ku'ei foi correndo à frente pela escada,
chamando Botão de Ouro para vir dar "bom dia, minha
gente".
— Fomos ver os destroyers ingleses — disse o Chefe.
— Estão ancorados no Parque de Dicppe. Também
demos um passeio pela cidade. Agora, a Sra. O'Grady
quer sentar-se e refrescar-se, pois o calor é muito.
Eles apanharam cadeiras e foram para a sacada. A Sra.
O'Grady estava muitíssimo interessada em ver o rio, com
navios vindos de todo o mundo e que ah passavam
diante de seus olhos. O Chefe conversava sobre
assuntos marítimos falando a respeito da presença
desses navios. Eu não compreendia aquilo, em absoluto,
e Miss Ku'ei mostrou-se muito vaga, mas ao que parece
alguns seres humanos haviam cavado uma vala grande,
para deixar que a água dos Grandes Lagos corresse mais
depressa para o mar. Como certas cidades americanas
estavam consumindo água em demasia, tinham sido
instaladas comportas e alguns canadenses ficaram com
as chaves das mesmas. Abriam e deixavam passar
alguma água, para que o navio entrasse flutuando, depois
fechavam uma porta atrás, abrindo outra à frente. Tudo
isso era coisa muito misteriosa para Miss Ku'ei e para
mim, mas o Chefe conhecia o assunto a fundo e o
descreveu para a Sra. O'Grady, que parecia compreender
o que se passava por lá.
Passaram-se alguns dias, com a família levando a Sra.
O'Grady cm passeios para ver a cidade. A mim, isso
parecia um desperdício de tempo, enquanto Miss Ku'ei
dizia que eles passavam diante de nossa janela.
— Puxa, Fif! — exclamava ela. — Olhe aquela mulher,
não é uma visão rara?
A atividade era grande diante de nossa casa, onde os
homens montavam decorações e instalavam recipientes
para receberem lixo. Pequenas embarcações, com
homens ocupados, passavam pela água, ruidosamente,
como que a exibirem sua importância. Grande número de
pessoas vinha sentar-se no leito ferroviário, espiando
para o outro lado do rio e muitos carros parados
congestionavam as estradas. A família estava sentada na
sacada. O Chefe tirava muitas fotografias e naquele dia
estava com uma coisa de três pés, tendo uma máquina
fotográfica cm cima. Nessa máquina ele instalara o que
Miss Ku'ei chamara de lente telefoto suficientemente
poderosa para fotografar um gato que estivesse em
Detroit.
A Sra. O'Grady se remexia na cadeira.
— Olhem! — exclamou com grande agitação. — Toda a
costa americana está cheia de guardas da Polícia
Montada Canadense, de capotes vermelhos!
Miss Ku'ci abafou uma risada, enquanto o Chefe expli-
cava:
— Não, Sra. O'Grady, não são Guardas da Polícia Mon-
tada, é um trem carregado de tratores agrícolas, pintados
de vermelho, que foram exportados do Canadá.
Como Miss Ku'ei disse, realmente PARECIAM soldados
de túnica vermelha, de modo que qualquer um poderia
cometer engano parecido.
Era maior o número de navios que vinham pelo rio. O
ruído feito pelo povaréu silenciou por momentos, e em
seguida prorromperam da multidão algumas aclamações.
— Lá está ela — disse Mamãe — de pé, sozinha, no
tombadilho.
— E lá está o Príncipe — acrescentou Botão de Ouro —,
mais para o centro do navio.
— Tirei uma bela fotografia daquele helicóptero — disse o
Chefe. — Um homem estava inclinado, fotografando os
navios lá por baixo. Isso dará uma boa chapa!
Os navios subiram pelo rio e quando o último deles
desapareceu os automóveis na estrada voltaram a andar.
A multidão se dispersou e, como disse Miss Ku'ei, tudo
que ficou para nos fazer relembrar foi meia tonelada de
lixo. Mais uma vez as barcas atravessavam o rio e os
trens trovejavam e apitavam em seus trilhos, diante de
nossas janelas.
Enquanto ainda havia luz do dia, algumas barcas foram
rebocadas para o rio, postas no ponto onde o Canadá se
tornava América e a América se tornava Canadá.
Aparentemente, a pirotécnica seria disparada daquela
posição, e ambos os países, não apenas um, seriam
responsáveis por quaisquer danos infligidos. Mais uma
vez se formaram multidões, trazendo coisas de comer e
beber — principalmente as últimas.
Todos os trens pararam, alguém deve ter dito aos navios
que não podiam mais passar por ali. Finalmente, chegou
a hora da pirotécnica. Nada aconteceu. Passou-se mais
tempo, è não houve coisa alguma. Um homem gritou,
dizendo que um dos jogos montados caíra na água.
Depois de algum tempo, houve alguns estampidos fracos,
que não eram de porte suficiente para assustar nem
mesmo uma gatinha recém-nascida, e Miss Ku'ei disse
que surgiram algumas luzes estranhas no céu. E estava
tudo acabado. O Chefe e Mamãe disseram que era hora
de levar a Sra. O'Grady de volta ao hotel.
— Vamos chamar um táxi, — disse Mamãe, — porque
não conseguiremos tirar nosso carro da garagem com um
congestionamento destes.
Chamou as companhias de táxis e foi informada de que
todos os veículos estavam retidos em congestionamento
de tráfego.
— Há um milhão de pessoas ou mais, à beira da água —
foi o que lhe disseram — e nada consegue andar nas
estradas.
O Chefe retirou o carro, e em companhia de Mamãe e da
Sra. O'Grady desapareceu em meio à multidão. Mais de
uma hora depois regressaram e disseram que haviam
levado uma hora para percorrer a distância de duas
milhas.
No dia seguinte o Chefe e Mamãe levaram a Sra.
O'Grady para ver Detroit, andaram muito por lá, e
voltaram para casa. A Sra. O'Grady disse que queria fazer
algumas compras e foi com Mamãe e Botão de Ouro,
deixando Miss Ku'ei e eu para cuidarmos do Chefe.
Aquela foi uma semana muito movimentada e ativa, com
os passeios que normalmente levariam duas ou três
semanas executados em uma só. Chegou com rapidez
demasiada o momento em que o pessoal dos aviões
tinha de regressar à Irlanda, a Shannon, de onde
tínhamos partido.
O Chefe e Mamãe levaram a Sra. O'Grady e a Filha para
o aeroporto de Windsor. Como ouvimos Mamãe dizendo
a Botão de Ouro mais tarde, eles haviam esperado até
que o aeroplano decolasse. Os O'Gradys estavam de
partida, de volta para a Irlanda, viagem essa que
gostaríamos de poder fazer também. O Chefe se
esforçara muito para obter trabalho em Windsor, ou no
Canadá. Estava pronto a seguir para qualquer parte do
pais. Tudo quanto lhe ofereceram foi um serviço de
trabalhador braçal, o que é ridículo demais para ser
comentado. O Canadá, e nisso todos concordamos, é um
país inteiramente sem cultura, e estamos aguardando o
dia em que possamos deixá-lo. Este livro, no entanto, não
é um tratado sobre os defeitos do Canadá, pois para
contê-los se tornaria necessária toda uma biblioteca!
Miss Ku'ei e eu podíamos, agora ir com grande freqüên-
cia para o jardim, nunca sozinhas, é claro, devido aos
numerosos cachorros que havia por ali. Os gatos
siameses não têm medo dos cachorros, mas os seres
humanos receiam o que NÓS pudéssemos fazer a eles.
Sabe-se, a nosso respeito, que somos capazes de saltar
nas costas de um cachorro que nos ataque, enfiar nele as
garras e cavalgá-lo assim como um ser humano monta
em um cavalo. Ao que parece, os seres humanos podem
pôr pontas de aço no tacão do calçado e com elas ferir os
flancos dos cavalos, mas se nós fizéssemos isso com um
cachorro, em legítima defesa, seríamos considerados
"selvagens".
Aquela tarde foi agradável. Ficamos sentadas por baixo
da cadeira do Chefe — homem muito grande, com mais
de cem quilos de peso, que precisa de uma cadeira
grande — quando toda uma coleção de automóveis
desfilava, as buzinas fazendo a casa estremecer. Isso
nunca me incomodara antes, pois eu julgava que eram
apenas os canadenses, de modo que não precisava
haver qualquer sentido nas coisas que faziam. E
comentei:
— Miss Ku'ei, por que será que fazem todo esse baru-
lho?
Miss Ku'ei era muito erudita e, dotada de visão, dispunha
de grande vantagem sobre mim.
— Vou-lhe dizer, Fif — respondeu. — Aqui, quando um
homem e uma mulher se casam, põem fitas nos
automóveis, e depois seguem em procissão, as buzinas
tocando todo o tempo. Acho que eles pretendem dar um
aviso: "Cuidado! Há uma turma de doidos à solta!"
Sentou-se de modo mais confortável e acrescentou:
— E quando um ser humano morre, e é levado para que
o coloquem dentro de um buraco no chão, todos os
carros do cortejo fúnebre ficam de faróis acesos, e
ostentam bandeiras azuis e brancas com a palavra
"Funeral", esvoaçando por cima dos veículos. Eles têm
passagem preferencial para todo o tráfego, e não
precisam parar nos sinais luminosos.
— Isso é interessantíssimo, Miss Ku'ei. Interessantíssimo
— repeti.
Ela mastigou uma folha de grama, por alguns momentos,
e depois disse:
— Eu poderia dizer-lhe muita coisa sobre o Canadá.
Aqui, por exemplo, quando alguém morre, eles levam o
cadáver para uma funerária, preparam-no... chamam a
isso embalsamamento... pintam o rosto com tintas, e
depois o colocam no caixão, ou ataúde, como se chama
aqui. Em seguida, aparece uma porção de gente para
apresentar os "últimos respeitos". Às vezes, o cadáver é
posto quase sentado no caixão. O Chefe diz que essas
funerárias são o negócio mais rendoso daqui. E, quando
as pessoas vão casar-se, os amigos lhes dão um chu-
veiro — disse ela, detendo-se e rindo. — Quando ouvi
falar russo pela primeira vez, Fif — disse, sorrindo —,
pensei que os amigos vinham dar-lhes um banho... você
sabe, um banho de chuveiro. Mas não, quer dizer que
eles lhe dão um chuveiro de presente. Principalmente de
coisas que eles não querem, ou coisas que TODOS lhes
dão. O que haveria uma noiva de fazer com meia dúzia
de coadores de café?
Dito isso, suspirou e prosseguiu:
— É um país doido, afinal de contas. O mesmo acontece
com as crianças. Não faça coisa nenhuma com as
criancinhas daqui, não fique contrariada com elas, mande
Guardas Especiais para que elas atravessem as
estradas. Trate-as como se não tivessem cérebros, o que
está muito certo, mas a questão é que... no dia em que
deixam a escola pela última vez tornam-se
independentes. Nessa altura, já ninguém mais cuida
delas. Aqui, Fif, existe o culto mórbido dos Filhotes Huma-
nos. Esta gente acredita que eles nada fazem de errado.
Isso é mau para eles, Fif, e mau para o país. Deviam
receber disciplina, senão em anos posteriores
descambarão para o crime, por serem tratados com
gentileza demais quando são jovens. As crianças aqui,
são coisas sem valor, BOLAS!
Assenti, em solidariedade. Miss Ku'ei tinha inteira razão.
Basta fazer demasiadamente a vontade de um filhote, e
assim fica lançado o alicerce de um adulto insatisfeito.
O Chefe pôs-se em pé.
— Se vocês, gatas, quiserem ficar aqui mais tempo, vou
subir e apanhar a máquina fotográfica. Quero fotografar
aquelas rosas.
O Chefe era fotógrafo dos bons, tendo uma coleção
maravilhosa de diapositivos coloridos. Subiu a escada,
para apanhar sua boa máquina fotográfica japonesa.
— Psiu! -— cochichou o gato no outro lado da estrada.
— Psiu! Tenho um troço pra te dizer, Dama Ku'ei. Queres
vir à cerca?
Miss Ku'ei pôs-se em pé e foi até a cerca de tela, à beira
do jardim. Ela e o gato ali cochicharam por algum tempo,
após o que ela voltou e sentou-se novamente a meu lado.
— Ele só queria pôr-me a par da gíria americana mais
recente — disse ela. — Nada de importância.
O Chefe veio com a máquina fotográfica, e Miss Ku'ei e
eu nos retiramos, pondo-nos sob alguns arbustos, pois
DETESTÁVAMOS que tirassem fotografias de nós.
Detestávamos também servir de espetáculo para turistas
curiosos, e Miss Ku'ei tinha uma recordação mortificante
de uma canadense estúpida que enfiara o nariz na janela
do automóvel, apontando para ela e perguntando:
— O que é isso, um MACACO?
A pobre Miss Ku'ei ficava rubra de raiva, todas as vezes
em que pensava nisso!
Aquela noite, como era sábado, havia muitas pessoas por
ali. Havia alguma espécie de festa da Casa de Bebidas, a
alguma distância mais além na estrada. Os carros
passavam com os motores estrugindo, e havia muita
conversa e falação em voz alta, enquanto os homens
procuravam entrar em acordo com as mulheres que
esperavam nas ruas. Fomos deitar, Botão de Ouro em um
quarto ao lado da casa, onde havia fotografias de
criancinhas e estátua de um buldogue chamado Chcstcr.
Mamãe e Miss Ku'ei tinham um belo quarto na parte
fronteira da casa, e o Chefe e eu dormíamos cm outro,
também na parte fronteira, dando para Detroit e o rio.
Logo ouvi que o Chefe apagava a luz e a cama rangeu
enquanto ele se deitava. Permaneci sentada por algum
tempo no peitoril amplo da janela, ouvindo os sons da
noite movimentada e pensando. Em que pensava? Bem,
eu comparava o passado cheio de dificuldades com o
presente encantador, achando que, como a Velha
Macieira dissera, eu agora estava em casa, era querida,
vivia em paz e felicidade. Agora, porque eu sabia que
podia fazer qualquer coisa ou ir a qualquer ponto da casa,
tinha cuidado especial para não fazer coisa alguma que
pudesse ofender até mesmo Mme. Diplomata, na França
distante. Lembrava-me do lema do Chefe: "Faze aos
outros como gostarias que fizessem a ti". Estava envolta
em um brilho cálido de felicidade. O Chefe respirava com
suavidade e eu andei por sua cama, para verificar se ele
estava bem. Enrodilhei-me ao pé do leito, e adormeci em
seguida.
De repente, despertei por completo. A noite estava tran-
qüila, a não ser por um ruído leve de raspagem. Um
camundongo? Fiquei à escuta por algum tempo, e o ruído
de raspagem prosseguiu. Logo veio o som abafado de
madeira que se rompia. Com rapidez, saltei em silêncio
da cama e segui pelo quarto, à procura de Miss Ku'ei. Ela
já entrava, cochichando:
— Escute, tem uma novidade, é melhor você acreditar!
Fiquei sabendo hoje e foi o gato da estrada que me
contou. Há um ladrão lá embaixo. Vamos descer e
rasgar-lhe a garganta?
Pensei por momentos, pois os gatos siameses fazem isso
em defesa da propriedade que lhes é confiada, mas achei
também que devíamos ser civilizados, de modo que
respondi:
— Não, acho que devemos chamar o Chefe, Miss Kuei.
— Oh, está bem! — exclamou ela. — Ele logo arrancará
as orelhas do ladrão.
Saltei para a cama e bati de leve no ombro do Chefe. Ele
estendeu a mão, esfregando-me o queixo.
— O que foi, Fif? — perguntou.
Miss Ku'ei saltou também para a cama e sentou-se sobre
o peito dele, dizendo:
— Eh, Chefe, um ladrão está querendo entrar na casa.
Dê-lhe uma surra!
O Chefe pôs-se à escuta por momentos e, em silêncio,
apanhou os chinelos e o camisolão. Em seguida,
apanhou uma lanterna elétrica forte, ao lado da cama, e
desceu silenciosamente a escada, acompanhado por
Miss Ku'ei e por mim. Botão de Ouro saíra de seu quarto.
— O que está acontecendo? — perguntou.
— Psiu! Ladrões, — explicou o Chefe, continuando a
descer.
Lá embaixo, o ruído de raspagem acabara. Miss Ku'ei
gritou:
— LÁ ESTÁ ELE!
Ouvi passos fortes e a batida do portão do jardim. A essa
altura, Mamãe e Botão de Ouro haviam-se reunido ao
Chefe. Percorremos todo o pavimento térreo. Um vento
forte soprava pela janela aberta.
— Santo Bacalhau da Noruega! — exclamou Miss Ku'ei,
espantada. — O camarada arrebentou a janela!
O Chefe vestiu-se e saiu, para consertar a madeira solta
da janela. Não chamamos a polícia. Em ocasião anterior,
uma turma de crianças roubara o portão de trás. Mamãe
chamara a Polícia e quando um policial finalmente
apareceu, dissera:
— Ora, vocês estão com sorte porque eles não tiraram o
telhado da casa.
Nós, os gatos siameses, temos alto sentido de
responsabilidade. No Tibete, guardamos os templos e
aqueles a quem amamos, ainda que isso nos custe a
vida. Eis outra de nossas lendas:
Muitos séculos antes, vivia um ancião que era o zelador
da mata, em uma lamascria antiga, no longínquo Oriente.
Vivia em uma floresta, partilhando sua caverna com uma
gatinha siamesa, que já conhecera muitas das agruras da
vida. Juntamente com o velho zelador, que era
considerado um santo, ela percorria as trilhas da floresta,
mantendo uma distância respeitosa atrás dele. Juntos,
procuravam os animais que estavam doentes ou
famintos, levando alívio aos que se achavam aflitos e
ajuda aos que se tinham ferido.
Certa noite, o velho zelador, que na realidade era um
monge, deitou-se em sua cama de folhas, esgotado por
um dia invulgarmente cansativo. A pequena gata
enrodilhou-se ao lado. Logo adormeciam, sem recearem
perigo algum, pois eram amigos de todos os animais. Até
mesmo o javali e o tigre respeitavam e amavam o zelador
e a gata.
Nas horas de maior escuridão, uma cobra venenosa, com
intenções malignas, rastejou até a caverna. Invejosa, e
tendo em si o mal louco que apenas uma cobra
peçonhenta pode ter, deslizou até a cama de folhas do
monge adormecido, e ia mordê-lo com suas presas
envenenadas. Saltando sobre as costas dela, a gata
desviou-lhe a atenção do zelador que já despertara. A
batalha foi prolongada e feroz, com a serpente a
contorcer-se por toda a caverna. Afinal, quase caindo do
esgotamento, a gata mordeu a coluna vertebral do ofídio,
que logo ficou inerte, morrendo.
Com suavidade, o velho monge retirou a gatinha das do-
bras monstruosas da serpente morta. Afagando-a nos
braços, disse:
— Gatinha, por muito tempo tu e tua espécie tendes guar-
dado nossos templos, e a nós. Nós sempre vos teremos
nos lares, e nos corações do homem. A partir de agora,
nossos destinos estarão reunidos.
Pensei em tudo isso, enquanto seguíamos de volta a
nossos quartos e nos deitávamos para dormir. O Chefe
estendeu a mão e, com um gesto carinhoso, torceu-me
as orelhas. Depois, voltou-se para outro lado e
adormeceu.
CAPÍTULO 11
— Fif! — gritava Miss Ku’ei enquanto subia em carreira
as escadas, agitadíssima. — Fif! — exclamou, chegada
ao patamar e entrando no quarto. — O Velho ficou
maluco!
Resmungava para si mesma, com ar sombrio, enquanto
corria para a cozinha, a fim de comer um pouco. O Chefe
ficara maluco? Eu não conseguia compreender o que ela
queria dizer; sabia que ele levara Miss Ku'ei para um
passeio ao Riverside. Agora, depois de terem saído por
mais de uma hora, Miss Ku'ei dizia que ele enlouquecera!
Pulei para o peitoril da janela e fiquei pensando a esse
respeito. No rio, um navio tocou o apito, dando o sinal
que, como o Chefe nos explicara, queria dizer "estou
entrando no porto".
Ouvi o ruído de passos leves e Miss Ku'ei saltou com
facilidade, sentando-se a meu lado.
— Ele ficou biruta, totalmente doido — disse, enquanto se
lavava cuidadosamente.
— Mas, Miss Ku'ei — protestei — o que houve? COMO
foi que o Chefe endoideceu?
— Como? — repetiu ela. — Estávamos seguindo de
automóvel calmamente e, de súbito, o velho embirutou.
Fez parar o carro, e foi olhar o motor. "Não estou
gostando desse som", disse. "Sei que vai acontecer
alguma coisa." Mamãe ficou sentada, como uma pata
empalhada, sem dizer coisa alguma. Ele embarcou
novamente no automóvel, e ao partirmos dizia: "Vamos
levar a Ku'ei para casa e depois seguir para a garagem,
para ver os outros carros que eles têm". Por isso, aqui
estou, deixada de lado como um monte de lixo, enquanto
eles passeiam por aí, em meu automóvel!
Mal-humorada, continuou sentada na extremidade do
peitoril, falando sozinha.
— Puxa! Que coisa! — dizia, enquanto saltava e
dançava pelo peitoril, tomada por um frenesi.
Eu, sendo cega, não tinha outra coisa a fazer senão
continuar calma, pois não sabia qual era a causa da
agitação.
— Puxa! — gritou ela, a voz tornando-se cada vez mais
alta. — É um automóvel bonitíssimo, uma belezoca, um
automóvel e tanto! Branco e roxo.
Continuei sentada, esperando que ela se acalmasse e
me dissesse o que estava acontecendo. Foi exatamente
quando ouvi uma porta de carro batendo. Segundos
depois, o Chefe e a Mamãe entraram, subindo as
escadas.
— Carro novo, hem? — perguntou Botão de Ouro.
"Ótimo!" pensei. "Agora, vou saber o que se passou."
— Sim, um outro carro, um Mercury — disse o Chefe. —
Teve apenas um dono, e está com a quilometragem
baixa. É um carro realmente bom. Acho que o
virabrequim vai causar problemas, no outro. Este está
em experiência conosco, por hoje. Vocês querem dar um
passeio?
Miss Ku'ei pôs-se em pé e saiu correndo para a porta, de
modo a que ela, pelo menos, não ficasse esquecida.
— Você vem passear no carro novo, Fif? — perguntou o
Chefe, esfregando-me o queixo.
— Não, obrigada — respondi. — Vou ficar aqui, com
Mamãe, vigiando a casa.
Ele me disse que eu era uma gata encafuada e desceu
as escadas. Miss Ku'ei e Botão de Ouro já estavam
sentadas no automóvel. Ouvi quando partiam, e em
seguida Mamãe e eu preparamos o chá para quando
eles voltassem.
Brrr. . . Brrr. . . Brrr — disse o telefone. Mamãe apres-
sou-se a atender, porque os telefones não gostam de
esperar.
— Oh! Alô, Sra. Durr — disse ela.
Ouviu por algum tempo — eu conseguia distinguir os
sons débeis do telefone, embora não fossem
suficientemente altos para que os compreendesse.
— Ele saiu para experimentar um outro automóvel. Direi
a ele, quando voltar — disse Mamãe.
Ela e a Sra. Durr conversaram por algum tempo, após o
que ela voltou ao trabalho. Logo ouvimos quando o
Chefe, Botão de Ouro e Miss Ku'ei vieram subindo as
escadas de trás, depois de guardarem o automóvel.
— A Sra. Durr telefonou — disse Mamãe. — Foi apenas
um telefonema amistoso, mas ela está com alguma difi-
culdade, alguém lhe faltou com a palavra, com relação à
casa que ela ia alugar.
Todos nós gostávamos da Sra. Durr. Depois de trabalhar
muito para outra firma, ela ia instalar sua própria livraria,
que se chamaria "Livrolândia", na Dorwin Plaza, Windsor.
— Ela está bastante agitada — disse Mamãe. — Não
tem onde guardar os livros e as outras coisas, até poder
mudar-se para a loja nova em Dorwin.
O Chefe continuou com seu chá, e não disse coisa
alguma enquanto não terminou. Em seguida, perguntou:
— Por quanto tempo ela precisa do lugar?
— Um mês, apenas — disse Mamãe.
— Diga-lhe para vir falar conosco. Poderá guardar todas
as coisas no apartamento de baixo, por um mês. Nós
pagamos aluguel, a senhoria não pode dizer coisa
alguma, enquanto não estivermos vendendo coisas por
aqui.
Mamãe foi para o telefone e discou o número.
— Lá está a Ruth! — disse Miss Ku'ei.
— Ku'ei! — disse o Chefe. — Você não é canadense,
para chamar as pessoas pelos seus primeiros nomes. Ela
é a Sra. Durr.
— Ora, bolas! — disse Miss Ku'ei. — Para mim, ela é
RUTH, e o pequeno cavalheiro siamês dela chama-se
Chuli, e não Sr. Durr.
A Sra. Durr subiu a escada da frente, e todos a
cumprimentamos, descendo as escadas dos fundos da
casa, para vermos o apartamento térreo. O Chefe me
levou em seu ombro, porque achava que assim eu estaria
a salvo de tantos pés humanos ali presentes, uma vez
que não os podia ver.
— Pois bem, aí está, Sra. Durr — disse o Chefe. — Pode
guardar suas coisas aqui e trabalhar neste lugar todo o
dia, se quiser. — A senhora NÃO PODE fazer vendas
aqui, e não nos pode pagar qualquer aluguel. Assim, nem
a senhoria nem o Conselho Municipal de Windsor
poderão apresentar objeção alguma. Não há lojas aqui,
como sabe.
A Sra. Durr pareceu muito satisfeita, brincou comigo e eu
a brindei com meu ronronado de segunda, porque
sempre guardamos os nossos melhores para a família.
Eu sabia que o Sr. Chuli Durr conseguiria explicar isso
para ela, quando tivesse mais idade. Naquela ocasião era
um gatinho novo, a cara e cauda ainda brancas. Agora,
no momento em que escrevo estas linhas, estou
informada de que já se tornou um espécime dos mais
magníficos de masculinidade felina. Recentemente Miss
Ku'ei recebeu uma fotografia dele, e o descreveu para
mim com grande prazer e com bastante detalhes.
Na manhã seguinte, quantidades enormes de livros foram
trazidas para o apartamento de baixo. Durante quase
toda a manhã pareceu-nos que não paravam de chegar
homens, trazendo caixotes grandes e resmungando
enquanto se esforçavam por fazê-los passar pelas portas.
Logo após o almoço, ouvi que chegavam mais homens,
"homens dos telefones", disse Miss Ku'ei.
— Ela precisa dc um telefone, não é? QUALQUER pa-
teta sabe disso!
Houve o ruído de marteladas e pouco depois a
campainha do telefone tocava, enquanto o mesmo era
experimentado.
— Vou descer para ver se está tudo certo — disse Miss
Ku'ei.
— Um momento, Ku'ei, — disse o Chefe. — Deixe que os
homens terminem, e depois iremos todos ver a Sra. Durr.
A mim pareceu que o melhor que tinha a fazer era comer,
pois não sabia quanto tempo passaria por lá. Segui para
a cozinha e tive a sorte de descobrir que Mamãe acabava
de preparar uma refeição nova. Esfreguei a cabeça nela,
e também o corpo em suas pernas, como agradecimento.
Era uma pena, pensei, que ela não falasse a língua dos
gatos, como o Chefe.
Não tardou muito para que o Chefe abrisse a porta da
cozinha, que dava para a escada dos fundos. Miss Ku'ei
saiu correndo à frente, e eu já conseguia descer aquela
escada com facilidade, conhecendo todos e sabendo que
não haveria obstáculos. O Chefe era MUITO firme a esse
respeito, mostrando-se fanaticamente decidido a que
todos os meus "caminhos" fossem mantidos abertos, e
que a mobília estivesse sempre no mesmo lugar. Acho
que o Chefe, por já ter estado cego mais de um ano,
conhecia meus problemas melhor do que qualquer outra
pessoa.
Descemos com pressa a escada e nos detivemos diante
da porta da Sra. Durr. Ela a abriu e nos recebeu. Fiquei
esperando pelo Chefe à porta, porque não conhecia os
obstáculos lá dentro. Ele me apanhou, carregando-me e
colocando-me ao lado de um volume grande, de modo
que eu pudesse farejar todas aquelas novidades. Ali
havia algumas mensagens grosseiras deixadas pelos
cachorros, e outros odores indicavam que o fundo da
caixa estivera depositado em terreno úmido. Em um livro,
pude ler a mensagem deixada pelo Sr./Sra. Stubby Durr.
Ele/Ela estava muito satisfeito por ter o Sr. Chuli Durr
para cuidar. Miss Ku’ei emitiu um suspiro de recordações
agradáveis.
— O velho Stubby, um camaradinha muito agradável —
observou. — É triste dizer, mas alguma coisa ficou
misturada, quando os sexos foram distribuídos, e o pobre
Stubby ficou com ambos. Isso é uma coisa das mais
embaraçosas! Visitei a casa dos Durrs, uma noite, e
quase não consegui afastar o olhar de. . . não, quero
dizer, não sabia para onde olhar.
— Sim, sim, Miss Ku'ei — disse eu. — Mas estou infor-
mada de que ele/ela tem uma natureza das mais afáveis
e que o Sr. Chuli Durr será bem cuidado.
Miss Ku'ei saía muito no automóvel Mercury, vendo toda
a paisagem local, indo a Leanington e lugares assim. Eu
gostava muitíssimo de vê-la voltar e me contar tudo,
falando de todas as coisas que não podia ver com meus
olhos. Certa tarde, ao regressar, ela estava radiante de
prazer. Cutucando-me, disse:
— Venha para baixo da cama, Fif, vou-lhe contar tudo.
Eu me levantei e a segui, tocando para lá. Juntas, nós
nos sentamos, uma bem perto da outra. Miss Ku'ei
começou a lavar-se e enquanto o fazia contando:
— Bem, Fif, nós saímos e tocamos para a estrada de alta
velocidade. Passamos por muitas barracas de frutas e
legumes, onde as pessoas estavam vendendo o que
haviam plantado. Botão de Ouro fazia "Ooh!" e "Ah!"
diante de cada uma, mas o Chefe não parou.
Continuamos a viagem por mais algum tempo, seguimos
em direção ao lago, e passamos então por uma fábrica
onde fazem cinqüenta e sete variedades de comida! Pen-
se só, Fif, pense em como VOCÊ gostaria se a
deixassem solta lá por dentro!
Eu pensei, e quanto mais pensava tanto maior era a cer-
teza de que nada — absolutamente nada — poderia ser
melhor do que meu lar atual. Cinqüenta e sete variedades
de comida, talvez, mas onde eu me achava, tinha UMA
variedade de amor, que é o melhor de tudo.
Bastava pensar nisso para que eu ronronasse.
— Depois, fomos olhar o lago — disse Miss Ku'ei — e
vimos que a água era tão molhada quanto a de Windsor,
de modo que voltamos para casa. Nas barracas de fruta,
Botão de Ouro fazia "Ah!" e "Ooh!", de modo que o Chefe
parava, ela saltava e comprava algumas dessas coisas
cheirosas que fazem água, quando são mordidas. Ela
veio sorrindo pelo caminho todo, de vez em quando
tocava essas tais frutas, e pensava em como ia comê-las.
Depois, entramos em Walkerville, apanhamos a
correspondência e aqui estamos.
— Vocês, gatas, devem tapar bem as orelhas — disse o
Chefe. — A Sra. Durr vai tirar as coisas dela amanhã,
porque já estão prontas as instalações de Dorwin Plaza.
— Uai! — berrou Miss Ku'ei. — Vai-me levar para ver?
— Claro — disse o Chefe — e a Fif, também, se ela qui-
ser.
Descemos as escadas e batemos à porta. A Sra. Durr
abriu e, em atitude muito educada, convidou-nos a entrar.
Examinamos todas as peças e cheiramos as caixas com
livros, que haviam sido preparadas para serem levadas
para a loja nova.
— Para que foi que ela as abriu, Miss Ku'ei? — perguntei.
— Ora, sua gata velha e boba, — disse ela, — foi preciso
examiná-las para verificar as faturas e fazer alguma coisa
chamada catálogo. QUALQUER gata inteligente sabe
disso. Seja lá como for, eu a observei enquanto o fazia.
Fui ter com a Sra. Durr e me esfreguei contra ela, para
demonstrar que lamentava vê-la trabalhar tanto. Depois
disso, o Chefe e Mamãe desceram e nós todos fomos
para o jardim, a fim de cheirarmos as rosas.
O Chefe e Mamãe se achavam empenhados em debate,
alguns dias depois.
— O custo de vida neste país é tão fantástico que eu
PRECISO arranjar um emprego — afirmava o Chefe.
— Você não está em condições para isso — respondeu
Mamãe.
— Não, mas ainda assim precisamos viver. Irei à Agência
de Empregos, para ver o que têm a dizer. Afinal de
contas, eu sei escrever, estive no rádio, e há uma série
de coisas que posso fazer.
Saiu para apanhar o carro e Mamãe lhe disse:
— A Ku'ei quer ir a Walkerville conosco, para apanhar a
correspondência.
Logo depois, o Chefe veio de carro à porta dianteira e
Mamãe saiu, levando Miss Ku'ei. Ela embarcou no
automóvel e eles partiram. Por volta da hora do almoço,
eles regressaram, cabisbaixos.
— Venha para baixo da cama, Fif — cochicou Miss Ku’ei.
— Vou-lhe contar o que aconteceu.
Eu me levantei e fui ter à nossa sala de conferências, de-
baixo da cama. Quando estávamos devidamente
instaladas ali, Miss Ku'ei disse:
— Depois de termos apanhado a correspondência,
fomos para a Agência de Empregos. O Chefe
desembarcou e entrou. Mamãe e eu ficamos no carro.
Muito tempo depois, o Chefe saiu, parecendo
inteiramente farto de tudo. Embarcou no carro, ligou o
motor e partiu, sem dizer uma só palavra. Nós fomos para
aquele lugar em baixo da Ponte do Embaixador... você o
conhece, Fif... para onde ele a levou. Ali, fez o carro parar
e disse: "Como desejaria que pudéssemos sair deste
país!" "O que aconteceu?", perguntou Mamãe. "Eu
entrei", disse o Chefe, "e um funcionário no balcão
zombou e fez imitação da voz de um bode, enquanto
passava a mão pelo queixo, como se tivesse uma barba
comprida. Fui ter a outro funcionário, e disse ao mesmo
que queria trabalhar. O homem riu de mim e disse que eu
somente conseguiria trabalho braçal, como qualquer
outra P. D. dos...". "P. D.?", perguntou Mamãe. "O que é
isso?" "Pessoa Deslocada", respondeu o chefe. "Esses
canadenses acham que fizeram ao mundo o favor de
nascer, e julgam que qualquer pessoa vinda de outro país
é um ex-condenado, ou coisa parecida. Pois bem, o
homem me disse que eu não conseguiria sequer trabalho
braçal, a menos que raspasse a barba. Outro funcionário
veio e disse: "Não queremos beatniks aqui, nós damos
nossos empregos a canadenses".
Miss Ku’ei se deteve na narrativa e suspirou, em sinal da
mais completa solidariedade.
— O Chefe usa a barba, porque não pode barbear-se.
Teve os maxilares partidos por pontapés dos japoneses,
quando foi prisioneiro. Quem me dera que pudéssemos
sair do Canadá ou, pelo menos, do Ontário!
O meu pesar era maior do que palavras conseguiriam
exprimir. Sabia o que era ser perseguido sem motivo
justo. Levantei-me, fui ter com o Chefe e manifestei-lhe
minha solidariedade. Lá atrás, Miss Ku'ei dizia para mim:
— Não diga coisa alguma a Botão de Ouro a esse
respeito, não a queremos desapontar acerca do
Canadá. . . Oh! Esqueci-me de que ela não entende a
língua dos gatos!
Pelo resto do dia, o Chefe ficou muito quieto, com poucas
palavras para nós. Quando fomos deitar-nos, aquela
noite, sentei-me perto de sua cabeça e ronronei para ele,
até que adormecesse finalmente.
Após o desjejum na manhã seguinte, o Chefe chamou
Miss Ku’ei e disse:
— Êi, Ku'ei, vamos a Darwin Plaza, para ver a loja nova
da Sra. Durr. Você vem?
— Puxa! Sim, senhor, Chefe! — respondeu Miss Ku'ei,
animada.
— E você, Fif? — perguntou-me o Chefe.
— Para mim, não, Chefe, obrigada — respondi. — Vou
ajudar Botão de Ouro a cuidar do lugar.
Enquanto o Chefe, Mamãe e Miss Ku'ei visitavam a loja
da Sra. Durr, Botão de Ouro tomou mais um banho e eu
me sentei na cama do Chefe, imersa em pensamentos.
— Caramba! — berrou Miss Ku'ei, enquanto subia a es-
cada, correndo. — Ora, Fif, ela está com um lugar muito
bom... Não posso esperar... tenho de comer alguma coisa
primeiro.
Saiu correndo pela sala, espalhando os tapetes, e foi ter
à cozinha. Com calma, saltei da cama e segui
cuidadosamente até ela, "cuidadosamente" porque não
queria tropeçar em algum dos tapetes deslocados.
— Sim, senhora! Ela arranjou um lugar e tanto! — disse
Miss Ku'ei, entre duas bocadas. — Ela tem cartões para
todas as ocasiões, cartões de cumprimentos para quem
vai para a prisão, cartões de comiseração para quem é
burro o bastante para entrar no Canadá, ou cartões de
pesar para quem se casa. Tem tudo que é preciso, e
montes de livros que o Chefe escreveu, "A Terceira
Visão", "O Médico de Lhasa". VOCÊ devia ir, Fif. Fica
pouco acima de Dougad, do outro lado da estrada de
ferro, e todas as lojas à direita ficam na Dorwin Plaza. O
Chefe levará você a qualquer hora. Há livros franceses,
também, Fif!
Sorri para mim mesma, e com uma risadinha o Chefe
perguntou a Miss Ku'ei:
— E como a minha Fif pode ler, se é cega?
— Uai! — exclamou ela, arrependida. — Esqueci que a
Velhota não enxerga!
O Chefe adoeceu. Ficou muito doente, mesmo. Julgamos
que ia morrer, mas conseguiu permanecer vivo. Certa
noite, quando eu o vigiava — os demais já se tinham ido
deitar — um Homem do Outro Lado da Morte veio e se
pôs a nosso lado. Eu estava acostumado a essas visitas,
todos os gatos estão, mas aquele era um visitante muito
especial, na verdade. Os cegos, como já disse, não são
cegos, quando se trata de coisas do astral. A forma astral
do Chefe deixou o corpo físico e sorriu para o visitante. O
Chefe, no astral, usava os mantos e vestes de um alto
Abade da Ordem dos Lamas. Eu ronronei o mais que
pude, quando o visitante se inclinou para mim e me fez
cócegas no queixo, dizendo:
— Que bela amiga você tem aqui, Lobsang!
O Chefe passou os dedos astrais por meus pelos,
causando estremecimentos extasiados de prazer em
mim, e respondeu:
— Sim, ela é uma das pessoas mais leais sobre a Terra.
Eles conversaram sobre diversas coisas, e eu fechei
minha percepção ao pensamento telepático, porque
NUNCA se deve roubar os pensamentos alheios,
ouvindo-se apenas quando se é convidado a fazê-lo.
Ouvi, entretanto, quando diziam:
— Como lhe mostramos no cristal, queremos que
escreva outro livro, a ser chamado "Entre os Monges do
Tibete".
O Chefe pareceu triste, e o visitante continuou:
— O que importa, se as pessoas da Terra não
acreditam? Talvez não tenham capacidade para isso.
Talvez os seus livros, com pensamento estimulante,
venham ajudá-los a atingir essa capacidade. A própria
Bíblia Cristã deles afirma que, se não se tornarem como
crianças pequenas, e crerem...
Em seu corpo astral, o Chefe, envolto no manto dourado
da Alta Ordem, suspirou e disse:
— Como desejam, tendo vindo até aqui e sofrido tanto,
seria uma pena desistir agora.
Miss Ku'ei entrou no quarto. Vi que sua forma astral se
separou do corpo subitamente, ao choque de ver aquelas
figuras refulgentes.
— Puxa! — exclamou. — Sinto que sou uma imbecil,
entrando deste modo. Será que uma mesura será
bastante?
— O Chefe e o visitante voltaram-se para ela, rindo.
— Você é bem-vinda em qualquer lugar, Dama Ku'ei —
disse o visitante.
— E o mesmo acontece com a minha gata velha, a Vovó
Fif! — disse o Chefe, passando os braços por mim.
O Chefe gostava mais de mim, provavelmente porque ele
e eu havíamos sofrido muito diante dos golpes desferidos
pela Vida. Nós, o Chefe e eu, tínhamos os elos mais
fortes possíveis a ligar-nos. E eu gostava disso, bastante!
De manhã, Mamãe e Botão de Ouro entraram no quarto,
para ver como o Chefe estava passando.
— Bem, minhas caras, — exclamou ele, — vou escrever
um outro livro.
Suas palavras foram recebidas com gemidos. Mamãe e
Botão de Ouro saíram para ver a Sra. Durr e comprar
algum papel, bem como outros artigos. O Chefe ficou no
leito, e eu me sentei a seu lado, cuidando dele. Ainda não
estava em condições de escrever, mas ERA PRECISO
escrever o livro. Ele o iniciou aquele dia, sentado na
cama, batendo a máquina.
— Doze palavras por linha, vinte e cinco linhas por pá-
gina, isto é, trezentas palavras por página, e teremos
umas seis mil palavras, mais ou menos, por capítulo —
disse o Chefe.
— Sim, acho que está certo — disse Miss Ku'ei. — E não
se esqueça de que um parágrafo não deve ter muito mais
do que cem palavras, do contrário fatigará os clientes!
Afastou-se, com uma risadinha, e disse:
— VOCÊ devia escrever um livro, Fif. "Como Afastar o
Perigo". A Botão de Ouro não pode escrever, ou os
perigosos viriam correndo, se ela contasse tudo que
sabe.
Eu sorri, porque Miss Ku'ei estava em excelente humor, o
que me tornava feliz. O Chefe estendeu a mão e
esfregou-me uma orelha.
— Sim, escreva um livro, Fif, e eu o datilografarei para
você — prometeu.
— O senhor precisa começar com "Entre os Monges do
Tibete", Chefe — respondi. — Até agora só datilografou o
título.
Ele riu e fez Miss Ku’ei rolar na cama, uma vez que esta
procurava subir em seu colo, tomando o lugar da
máquina de escrever, a cauda por cima da cabeça.
— Venha, Fif! — disse ela, ao saltar para o chão. —
Venha brincar comigo, deixe o Velho brincar com a
máquina de escrever.
Mamãe conversava com alguém, cuja identidade eu igno-
rava.
— Ele está muito doente, — dizia. — Levou uma vida
muito difícil. Não sei como consegue continuar vivo.
Miss Ku'ei me cutucou, com ar sombrio.
— Espero que ele não morra, Fif — disse, num sussurro.
— Ele é muito útil para nós. Lembro-me da gentileza que
demonstrou, quando minha irmã morreu. Ela nem sequer
crescera de todo e adoeceu e morreu nos braços do
Chefe. Era a imagem escarrada de você, Fif, o tipo da
garota gorda. O Chefe amava minha irmã Sue. Oh, é
claro — aduziu — você já tem direitos sobre o coração do
Chefe, eu sei. Eu também, ele admira minha inteligência!
Saltei da cama c aproximei-me bastante dele, que parou
de datilografar para me acariciar, como SEMPRE fazia
conosco, as gatas.
— Não morra. Chefe! — pedi. — Nós todos ficaríamos
com os corações dilacerados.
Esfreguei minha cabeça em seu braço, ao receber sua
mensagem telepática. Sentindo-me mais à vontade, fui
ter ao pé da cama e ali me enrodilhei.
Cartas, cartas, cartas, não havia empregos no Canadá?
Eles queriam apenas trabalhadores braçais? O Chefe se
apresentava para um emprego após o outro, mas parecia,
ao que comentava, que os canadenses só davam
trabalho a seus conterrâneos, ou àqueles que
dispusessem de alguma influência política ou sindical.
Alguém dissera que havia mais empregos na Colúmbia
Britânica, lugar de mais cultura e civilização, de modo que
o Chefe decidiu ir até lá e ver pessoalmente qual era a
situação. Poupou cuidadosamente suas energias, e ficou
também decidido que Botão de Ouro iria em sua
companhia, para cuidar dele. Assim é que chegou o dia, e
eles partiram para ver se as condições eram melhores em
Vancouver.
Não existe alegria, quando uma pessoa amada está dis-
tante, quando os minutos relutam em se tornarem as
horas pesarosas, quando há toda uma eternidade de
espera e de pensamentos. A casa parecia morta,
estagnada, até mesmo Mamãe andava devagar, como
em um necrotério. A luz se fora de minha alma, e eu
sentia os dedos pegajosos do medo a invadi-la, dizendo-
me que ele não regressaria, que estava doente, que..., e
diziam algo temível e objeto de preocupação. À noite, eu
me deitava em sua cama fria e vazia, depois de saltar
para lá, para certificar-me de que não se tratava de um
pesadelo. Os cegos vivem dentro de si mesmos e os
receios, pra eles, corroem e congelam a alma.
Miss Ku'ei brincava, com alegria forçada. Mamãe cuidava
de nós, mas seus pensamentos estavam em outra parte.
Havia por ali uma frieza que me invadia inexoravelmente.
Eu me sentei sobre o telegrama que ele enviara,
procurando assim reconfortar-me. Trata-se de um período
sobre o qual devo falar rapidamente, até mesmo quando
escrevo. Bastará dizer que, quando a porta se abriu e o
Chefe estava de volta, em minha companhia, senti-me
novamente cheia de amor, meu corpo idoso parecia
pronto a explodir de alegria e eu ronronei o mais alto que
pude, durante tanto tempo, que quase fiquei rouca.
Animei-me bastante, esfregando a cabeça no Chefe,
esfregando-me em todos e tudo.
— Não seja tão burra, Fif — admoestou Miss Ku'ei. —
Seria de pensar que você fosse uma gatinha nova, que
acabou de ter cria, ao invés de uma gata velhíssima, avó
muitas vezes; estou chocada com a sua leviandade!
Dizia isso enquanto permanecia sentada numa pose ele-
gante, com as patas cruzadas diante de si. O Chefe
contava à Mamãe o que acontecera na viagem. Botão de
Ouro não estava bem, a viagem e a comida diferente
haviam-na perturbado, e fora deitar-se.
— Decolamos do aeroporto de Toronto e chegamos a
Vancouver em quatro horas e meia. Não foi uma viagem
má, levando-se em conta a distância, de alguns milhares
de quilômetros. Voamos a sete milhas de altura por cima
das Montanhas Rochosas.
— O que são as Montanhas Rochosas, Miss Ku'ei? —
perguntei, num sussurro.
— Montões de pedra, com neve por cima — respondeu
ela.
— Achamos Vancouver um lugar muito agradável, muito
bom, mesmo — prosseguiu o Chefe. — Mas é grande o
desemprego por lá. É tão diferente de Ontário quanto o
céu do inferno. Se tivermos a oportunidade, será lá que
viveremos.
Miss Ku'ei entrou, correndo.
— Acho que Botão de Ouro está morrendo — disse,
arquejante. — Devo chamar o agente funerário?
O Chefe e Mamãe foram ao quarto dela, mas a pobre
Potão de Ouro estava apenas sofrendo os efeitos da
agitação e mudança de alimentação e clima. O Chefe
teve a satisfação de assegurar a Miss Ku'ei que não era
preciso chamar nenhum agente funerário.
— Olhe! — disse ele, falando com Mamãe. — Eu vi isto
em Vancouver, não resisti e comprei. Combina
perfeitamente com a Sra. Durr. Comprei para ela.
— Fif! — disse Miss Ku'ei, animada. — Ele está com uma
pequena figura de porcelana, de uma mulher, IGUAL-
ZINHA à Sra. Durr. A mesma cor de cabelo, o mesmo tipo
de rosto, com uma crinolina igual à da Sra. Durr. Puxa!
Tive de rir, porque o modo dc se exprimir de Miss Ku'ei
era realmente engraçado; exprimia-se na gíria
internacional do momento. Quando nos deitamos aquela
noite, eu ao lado do Chefe, senti que meu coração
explodia de felicidade. O estrondo dos trens que
entravam em desvios já não parecia ameaçador. Agora,
quando cada vagão ferroviário esbarrava no seguinte,
impulsionando-o para a frente, parecia estar dizendo: "Ele
VOLTOU, ha. ha! Ele VOLTOU, ha, ha!" Estendi a pata e
toquei de leve a mão do Chefe, e logo adormeci.
Durante as semanas seguintes, o Chefe esteve muito
ocupado, escrevendo "Entre os Monges do Tibete".
Visitantes especiais vieram do mundo astral, conversando
com ele até altas horas da noite. Como o Chefe narra em
seus livros, não existe morte, a "morte" é apenas o
processo de renascer em outro plano de existência. Isto é
tudo muito complicado para que uma gata possa explicar,
mas é tão simples, tão natural! Como se pode explicar o
processo de respirar em inalações e exalações
sucessivas, ou de andar? Como se pode explicar o
processo de ver? É tão difícil de explicar tudo isso quanto
o fato de que não existe morte. É tão fácil de explicar o
que a vida é quanto explicar o que a morte não é. O
Chefe — e os gatos — sempre vêem no mundo astral, e
falam com as pessoas nesse plano.
Chegara o momento de pensar em outro lugar para
residir. Windsor não nos oferecia coisa alguma. Não havia
possibilidade de emprego, e o "cenário de Windsor" era
monótono e desinteressante. Poucas árvores
ornamentavam aquela região, que era principalmente
industrial, em escala muito pequena. O ar era úmido,
devido aos grandes depósitos de sal por baixo de toda a
cidade. Conforme Miss Ku'ei observara, de modo tão
exato, "puxa! que buraco de queijo é Windsor!" Examiná-
vamos mapas, líamos livros e finalmente resolvemos
mudar-nos para um lugar na Península de Niágara.
Mamãe pôs um anúncio no s jornais, na esperança de
obter uma casa adequada. Recebemos respostas, e a
maioria das pessoas que tinham casas para alugar
pareciam crer que SUA casa fora construída com tijolos
de ouro, a julgar pelos aluguéis pedidos.
Dissemos à nossa amabilíssima Prima da Senhoria de
Windsor que estávamos de partida, e ela se mostrou
triste, o que muito nos lisonjeou- Chegava agora o
momento da grande limpeza. O passatempo de Botão de
Ouro é brincar com um aspirador de pó, o que constituía
magnífica desculpa para manter aquele aparelho infernal
ligado o dia todo. O Chefe passava grande parte do
tempo repousando na cama, pois sofrera três ataques de
trombose coronária no passado, contraíra tuberculose e
outros males. Escrever "Entre os Monges do Tibete" ex-
traíra muitas de suas energias. A Sra. Durr veio e disse a
Mamãe.
— Eu a levarei, e às gatas, a qualquer momento que de-
seje. Talvez Sheelagh possa levar o Dr. Rampa.
Podíamos sempre contar com a Sra. Durr para coisas
assim; eu sabia que ela teria todo o apoio de Chuli.
Íamos alugar uma casa mobiliada, de modo que
queríamos vender nossos móveis, que eram quase
novos. Ninguém queria comprá-los por dinheiro à vista;
os canadenses preferem dirigir-se aos emprestadores de
dinheiro, a que chamam "companhias de financiamento"
porque, ao que pensam, isso torna a transação mais
respeitável. Uma vez obtido o dinheiro com esses
financiadores, o canadense em geral compra coisas
vistosas e paga determinada quantia por semana. Certa
feita, Miss Ku'ei me contou que vira um anúncio onde se
oferecia "qualquer automóvel com uma entrada de dez
dólares". Finalmente, o Chefe e Mamãe souberam de um
jovem muito bom, que ia casar-se, de modo que
resolveram dar-lhe a maior parte da mobília como
presente matrimonial. Mamãe fizera indagações e
descobrira que o custo de transportar os móveis teria sido
proibitivo. Íamos levar apenas algumas coisas muito
queridas, e havíamos feito os preparativos com uma firma
de transporte. Miss Ku'ei e eu ficamos muito satisfeitas ao
saber que nosso cavalo de pau seguiria conosco.
Tínhamos um velho cavalo de pau, que utilizávamos
como lima de unhas e plataforma de saltos. Também
havíamos feito um acordo com o Chefe, pelo qual não
rasparíamos os móveis, enquanto dispuséssemos de
nossa lima de unhas. Às vezes os visitantes ficam
parados, olhando, quando encontram o cavalo de pau
entre os móveis, mas o Chefe sempre diz:
— Não importa o que as pessoas pensem, minhas gatas
são mais importantes!
No jardim, Miss Ku'ei chamava aos gritos:
— Êi! Gato de estrada, venha cá!
Logo o gato veio, olhou para ambos os lados da estrada
por causa do tráfego e atravessou. Com o focinho
comprimindo a cerca de arame, ficou à espera de que
Miss Ku'ei falasse.
— Vamos-nos embora, gato — disse ela. — Vamos para
onde a água corre depressa. Vamos ter uma casa com
árvores. Você não tem árvores, gato!
— Deve ser ótimo mudar de um lugar para outro, como
vocês fazem, Dama Ku'ei! — observou o gato da estrada.
— Eu vou entrar, agora, mas mandarei um telepatograma,
quando chegarmos a nossa casa nova.
Na manhã seguinte, os homens da mudança vieram
buscar os móveis que íamos levar. As coisas foram
levadas pelas escadas e postas em um caminhão,
veículo que Miss Ku'ei disse ser tão grande quanto uma
casa. Logo as portas grandes se fecharam com estrondo,
um motor poderoso foi ligado e nossos pertences
começaram a viajar.
Tínhamos, agora, de sentar no chão, como um punhado
de galinhas chocas. Eu já não podia esbarrar em coisa
alguma, agora — nada havia à frente!
— Êi! Fif, nós não nos despedimos do sótão — disse
Miss Ku'ei.
Pus-me em pé de um salto, e fui ter com ela na escadaria
de cima. Juntas, escalamos e descemos as vigas que
sustentavam o telhado da casa. Eram vigas de nogueiras,
tiradas de árvores que vicejaram outrora no lugar onde os
índios residiam, naquela região. Eram ÓTIMAS para afiar
as garras; Miss Ku'ei e eu passávamos a fazê-lo com
perfeição, em seguida passamos por um pequeno
buraco, perto da chaminé, local por onde os seres
humanos não podiam entrar.
— Adeus, aranhas! — gritou Miss Ku'ei. — Agora, podem
fazer mais teias e não nos apanharão!
Rolamos pela última vez na poeira, por baixo das tábuas
do soalho — algumas haviam sido deixadas descobertas,
quando os eletricistas tinham estado na casa — e depois
descemos as escadas, quase sem fôlego.
Um automóvel se aproximava, lá fora. Miss Ku'ei saltou
para o peitoril da janela e gritou:
— Venha, Ruth, está chegando atrasada mais uma
vez! O que há com você, PÉ DE CHUMBO?
A Sra. Durr subiu as escadas, e todos a cumprimentamos
com um "bom dia". Em seguida, todos nós, com exceção
do Chefe, carregamos coisas pequenas pelas escadas
abaixo, pondo-as nos automóveis. O Chefe estava
passando muito mal, e haviam feito uma espécie de cama
para ele, na parte traseira de nosso carro grande. Botão
de Ouro ia dirigir, porque o Chefe estava doente, e
faríamos a viagem em duas etapas. Mamãe, a Sra. Durr,
Miss Ku'ei e eu íamos completar os quatrocentos
quilômetros, mais ou menos, em um dia. Logo tudo ficou
pronto para a partida.
— Adeus, Chefe — disse eu. — Eu o verei amanhã.
— Adeus, Fif — respondeu ele. — Não se preocupe,
tudo dará certo.
— Okay! — disse Miss Ku'ei. — Vamos tocar!
A Sra. Durr fez alguma coisa com os pés e o carro seguiu
à frente. Passamos pela ponte ferroviária, pelo correio de
Walkerville, e prosseguimos, deixando o aeroporto de
Windsor à esquerda. Eu conhecia essa área, mas logo
estávamos em estradas novas, e eu tinha que contar com
Miss Ku'ei para obter informações.
— São Tomás está aí! — berrou Miss Ku'ei.
"'Oh" pensei; "tínhamos dado uma batida, estávamos
mortos? Como havíamos encontrado São Tomás?"
— Vamos comer alguma coisa, Fif, assim que sairmos
deste lugar — observou ela.
Em seguida, compreendi o que se passava, e corei por
causa de minha própria estupidez; São Tomás era uma
cidade pequena. No Canadá, uma aldeia pequena é
considerada cidade. Suponho, porém, que os franceses
também apresentem algumas particularidades, que eu
não conheço.
Nossa viagem prosseguiu por diversas horas e, finalmen-
te, Miss Ku'ei disse:
— Estou vendo sinais de que já estamos por perto...
sim... lá está o Hotel Fort Erie. Estou vendo água à nossa
frente, Fif, é a outra extremidade do lago.
— Nós chegamos, Miss Ku'ei? — perguntei.
— Céus, não! — respondeu ela. — Ainda temos uma boa
distância para viajar.
Voltei a acomodar-me. O carro entrou à esquerda, e fez
uma curva fechada à direita. O motor teve a marcha
reduzida e parou. Sons baixos c estralejantes vinham dos
canos de descarga, bastante aquecidos. Por alguns
momentos ninguém falou, mas depois Miss Ku'ei disse:
— Bem, chegamos, Fif. Apanhe suas coisas.
Mamãe e a Sra. Durr desembarcaram do carro e levaram
Miss Ku'ei e a mim, entrando na casa. Estávamos mais
uma vez em um lar temporário. Eu estava aflita, ansiosa
por ver o Chefe chegar, mas isso só aconteceria no dia
seguinte.
CAPÍTULO 12