Musa Velha
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Musa Velha - Francisco Palha
Francisco Palha
Musa Velha
Publicado pela Editora Good Press, 2022
EAN 4064066409029
Índice de conteúdo
DONA MORTE
POR FIM...
CARTA
REQUERIMENTO
PREFACIO D'UM LIVRO INEDITO
MAL POR MAL...
A UMA CREATURA
ALÉM DA CAMPA
A JULIO CESAR MACHADO
DIES IRAE
O MEU TINTEIRO
A VENUS NOVA
O LOBO E O CÃO
DEUS E O AMOR
(1870)
ENTEADA
N'UM ALBUM
RAPHAELA
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
AS MINHAS MEMORIAS
ESTRELLA CADENTE
AO ACTOR JOÃO ANASTACIO ROSA
ÁS RÃS PEDINDO REI
ONZE DE NOVEMBRO
ASSIM É QUE EU GÓSTO D'ELLA!
EM CINTRA
PEDINDO O INDULTO
PROCESSO
1875
LIBELLO
CONTRARIEDADE
SENTENÇA
DONA MORTE
Índice de conteúdo
Deu na tonta de entrar na minha escada
á Dona Morte um dia.
A pobre anda estafada
do continuo ceifar desde que ao nada
por divinaes processos da alchimia
a terra foi roubada.
*
Da comprida queixola desdentada
esta sentida nenia lhe saía:
—Senhor! forte estopada!
Sem poisar a caveira o mundo corro.Em toda a parte estou. A toda a hora
prostro alguem a meus pés, e geme, e chora
por minha culpa alguem! Nenhuma aurora,
de luz nenhuma o jorro,
as orbitas vazias me alumia!...
Nunca uma esp'rança! nunca uma alegria!
Á dôr alheia pondo um suave termo
só a minha o não tem!... Só eu não morro
emquanto o mundo não tornar um ermo!...
Á obra! Á obra!—
E lepida subindo
tocou a campainha:
um lugubre tocar que dava medo;
que não mais deixarei de estar ouvindo,
e fez com que eu então, muito em segredo,
rezasse a ladainha.
*
Era um simples aviso, pois que a porta
por si se escancarou e deu entrada
áquella feia ossada
de vermes revestida, e negra, e torta,
de mim ha longo tempo enamorada.
—Senhora Morte, viva!—
disse ao vêl-a, fingindo animo forte;
mas cá por dentro, como a sensitivan'haste as folhas retráe que lh'as não córte
quem d'ella se aproxima
e levemente a mão lhe põe por cima,
cá por dentro a minh'alma, em pasmo estranho
por vêr-se em tão cruel extremidade,
foi-se encolhendo até ser do tamanho
d'um reles feijão frade!
*
—Desculpe a impertinencia—
continuei.—Como é que usam tratal-a?
Por tu? Por Excellenciacomo é hoje tratada toda a gente?—
«A mim é-me indifferente.
Não faz ninguem de tal miseria gala
no reino onde eu impero.»
Esta resposta
me deu a Dona Morte, e junto ao leito,
onde eu espreguiçava a mandrieira,
chegou; puxou cadeira;
sentou-se gravemente, sobreposta
uma rótula n'outra.
Com effeito
mau é vêl-a!... peior á cabeceira!
E poz-me a fria mão aqui no peito.
«Que bons pulmões tens tu! e como pulsa
na tua idade o coração ainda
pelas paixões mundanas agitado!»—Então...—volvi com voz menos convulsa—
inda tenho a viver um bom bocado?!—
«Conforme. Tudo finda
quando me apraz e breve.»
—Se ao teu lado
para afastar-te eu não chamar a Siencia.—
«Dou-te um dôce que a chames! Cáe tu n'essa!
descobriste a maneira, tem paciencia,
de eu carregar comtigo mais depressa.»
—Banal! Banal! Cuidei que era outra coisa—
rosnei com meus botões.—Um vende bolas,
um palurdio qualquer vindo de Loiza,
da Lourinhã, do inferno, esta sandice
ancho diria qual a Morte a disse.
*
Ella no entanto, um pé bamboleando,
co'as phalanges dos dedos descarnados
batendo sobre a tibia, ia soltando
uns sons de castanholas
com que sóe convocar gatos pingados
ás grandes, funerarias cabriolas. Após pequena pausa
de subito se ergueu.
«Não ha remedio!
Deixar-te vou por causa
d'uns ganchitos que tenho aqui no predio.
O cónego não dorme ha tres semanas.
Rouba-lhe o ar a suffocante angina
que o peito dilacera.
Tem esgotado as provações humanas.
Na longa vida santamente austera
fez jus, coitado! á compaixão divina.
Melhor que o da morphina,
premio á virtude, um somno lhe preparo
brando, quieto, sereno como um lago.
Apanha o padre agora! e apanha, é claro,
quem lhe abichar na Sé o logar vago.
O conego aviado, tenho uns planos
de ir tocar no ferrolho ao conselheiro.
Quero abater-lhe a prôa!... Setenta annos
e sóbe inda lampeiro
outros tantos degraus!... Então córado!
redondo!... Uma cereja!...
E como se espenneja
quando vae pela rua engravatado,
para as moças olhando ás furtadellas
como quem diz: Assim quisessem ellas!Chucha um pisco ao jantar; um pisco á ceia.
Por não dormir de tardenem trazer nunca a barriguinha cheia
considera-se livre do meu jugo
e d'isso faz alarde!