Extremo Noroeste Do Paraná: Dos Conflitos Pela Posse Da Terra Aos Conflitos Pela Reforma Agrária

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

EXTREMO NOROESTE DO PARANÁ: DOS CONFLITOS PELA


POSSE DA TERRA AOS CONFLITOS PELA REFORMA AGRÁRIA

Elpídio Serra 1

Introdução

A fase da ocupação pioneira do espaço agrário paranaense, que teve na colonização


oficial e empresarial privada a principal forma de acesso à terra por vias legais, deixou
registrada a marca da violência na medida em que, convivendo com o processo legal existiu
o processo ilegal, tão intenso quanto o primeiro, e que vai alimentar uma série de conflitos
no campo. Tais conflitos, tendo inicialmente como personagens envolvidos categorias que
visavam o acesso à propriedade da terra, quer para a produção, quer para a especulação,
ocorreram em todo o território paranaense, mas foram de maior intensidade na região
Noroeste, com destaque para a porção regional denominada pelo IBGE de Extremo
Noroeste do Paraná. Em todo o Paraná, mas neste espaço em particular, os agentes
organizadores do espaço, representados pelas companhias colonizadoras e pelo próprio
Estado, vêem seu papel comprometido pela atuação dos “agentes desorganizadores”,
constituídos de grileiros, pequenos posseiros e intrusos. Contraditoriamente, o Estado, ao
mesmo tempo em que cria e alimenta uma política destinada a harmonizar o acesso à terra
através da adoção de mecanismos amparados em leis específicas, se alia aos interesses
dos “agentes desorganizadores”, o que vai viabilizar condições para o desvio de extensas
áreas através de grupos políticos atrelados ao poder dominante.

A convivência dos contrários – a organização e a desorganização da malha fundiária


– tem seu início antes mesmo da emancipação do Paraná enquanto Província independente
de São Paulo, em 1853, sobrevive a algumas “crises” e só vai perder força nos anos 1960,
quando ocorre o encontro das frentes de ocupação e se visualiza o conseqüente
enfraquecimento da marcha colonizadora pela simples diminuição de áreas para o
desenvolvimento de projetos. O fato do encontro das frentes coincidir com o esgotamento do
estoque de terras “disponíveis” contribui para o enfraquecimento desta fase, marcada pela
ocupação planejada e também pela fraude no acesso à terra e por altos índices de violência
no campo.

Esgotada a fase da ocupação pioneira, nos anos 1960, o Noroeste do Paraná,


particularmente o Extremo Noroeste, passa a desfrutar de um período marcado por uma
relativa “paz agrária”, que no entanto não tem vida longa: se mantém apenas enquanto

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Universidade Estadual de Maringá
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resiste sem sobressaltos a força gerada e que gerou o latifúndio. No período que vai do
esgotamento da ocupação pioneira até os anos 1980, a “paz agrária” sustentada pelo
latifúndio consegue “harmonizar” no mesmo espaço situações envolvendo áreas obtidas
através de projetos de colonização e áreas conquistadas através de fraudes; áreas de
exploração intensiva e áreas com baixo ou nenhum índice de exploração econômica,
situações que têm, como único ponto em comum, o elevado grau de concentração fundiária.

A convivência dos contrários vai evidenciar esgotamento no início dos anos 1980,
quando eclodem os movimentos sociais na região, tendo o MST – Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra como “força conturbadora da ordem” pré-estabelecida. A
partir das bases o MST, como novo ator social que se insere na região, passa a questionar
os mecanismos de acesso à terra ocorridos durante o processo da ocupação regional, as
condições favoráveis para a consolidação do latifúndio e a exigir, muitas vezes pelo
mecanismo da força, a implementação de políticas mais justas de acesso e exploração da
terra agrícola, o que vai se viabilizar através da implementação de projetos de reforma
agrária. Ao fazer isso, o MST desarticula o emaranhado de interesses, principalmente
políticos, que se estabeleceram na região e, como conseqüência, passa a constituir e
alimentar uma nova fase de conflitos rurais. A diferença fundamental entre os conflitos
ocorridos no decorrer do processo pioneiro de ocupação regional e os novos conflitos, é que
nos anteriores a meta perseguida pelas categorias envolvidas apontava apenas para a
conquista da terra; nos atuais a luta é mais ampla e incorpora, além da terra, as condições
para sua exploração econômica, passando pelo bem-estar social dos agricultores
assentados.

A estrada de ferro e os primeiros desvios de terra

O processo de apropriação das terras do Noroeste do Paraná e, no seu interior, da


porção Extremo Noroeste, remete a situações históricas anteriores à proclamação da
República, ocorrida no final do século XIX, envolvendo uma fase em que a Província e em
seguida o Estado do Paraná, precisando construir obras públicas necessárias ao
desenvolvimento do território, mas não tendo condições financeiras de arcar com os custos
da construção, recorre ao mecanismo de permuta de obra por terra devoluta. Extensas
áreas, em vista de tal mecanismo, são utilizadas como se fossem moeda corrente, toda vez
que alguma obra justificasse sua edificação, sob a lógica da viabilidade do desenvolvimento
capitalista e da marcha da ocupação do território.

Uma obra contratada para ser paga com terras no Paraná foi a Estrada de Ferro São
Paulo-Rio Grande, acrescida de um ramal que, partindo do eixo principal da ferrovia, fazia a
ligação desta com o município de Guarapuava. A obra era considerada de importância
estratégica para os governos do Paraná e Federal, este interessado na ligação ferroviária

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entre os Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, cobrindo a rota dos caminhos de
tropas. Como a obra envolvia interesses federais e estaduais, seu custo deveria ser coberto
com a destinação, para a empresa contratada, de extensas áreas de domínio do Estado e
da União, localizadas em território paranaense, na proporção de 9 quilômetros de cada lado
da ferrovia, em toda a sua extensão. A empresa responsável pela construção, além das
terras, teria estabelecido em contrato de concessão o direito de explorar comercialmente a
ferrovia durante 100 anos.

A empresa escolhida foi a Brazil Raillway Co., de capital inglês, que em 1920, logo
após ser indicada, constituiu para executar a obra uma subsidiária no Brasil, com a
denominação CEFSPRG – Companhia de Estradas de Ferro São Paulo-Rio Grande. Em
pagamento, a Brazil Raillway Co., através de sua subsidiária brasileira, garantiu o direito de
receber dois milhões e cem mil hectares de terras devolutas (somatória dos 9 quilômetros
de cada margem da ferrovia, multiplicada pela sua extensão total). Da extensão total dessa
área, 500 mil hectares foram posteriormente repassados a uma nova concessionária da
empresa inglesa, a Companhia Brasileira de Viação e Comércio – BRAVIACO, constituída
por grupos de capitalistas de São Paulo, que ficou responsável pela construção do ramal de
Guarapuava.

Parte da área utilizada como moeda corrente pelos governos estadual e federal
localizava-se na região Noroeste e parte no Oeste paranaense, sendo que as terras do
Noroeste foram tituladas para a BRAVIACO. É nesta área que se localiza a porção Extremo
Noroeste, ocupando uma extensão geográfica de aproximadamente 25 mil quilômetros
quadrados, onde se localizam atualmente 20 municípios de pequeno e médio portes, tendo
o município de Paranavaí como principal unidade administrativa e o município de Querência
do Norte como maior palco de conflitos rurais.

O contrato firmado entre os governos Federal e Estadual e a empresa inglesa,


apresentava algumas particularidades, no mínimo curiosas. Estabelecia, por exemplo, que a
contratada deveria dispor de um capital inicial de 10 mil contos de réis (moeda vigente no
Brasil, na época) para custear a execução da obra, sendo que, segundo SERRA (1991:74),
“o que passasse desse valor no custo final deveria ser financiado pela concessionária, mas
com juros de mora pagos pelo Governo Federal (no caso da ferrovia) e pelo Governo
Estadual (no caso do ramal de Guarapuava)”. Na medida em que os trilhos fossem
assentados, o poder público deveria ir titulando as terras comprometidas em nome da
construtora concessionária, sendo que, segundo o mesmo autor, “o último hectare deveria
passar para o controle de uma ou outra empresa, não quando a obra estivesse concluída,
mas quando a concessionária provasse ter aplicado totalmente o capital inicial de 10 mil
contos de réis”. No final da obra, os governos do Paraná e da União haviam investido
recursos públicos da ordem de 15 mil e 551 contos de réis; por sua vez, “a empresa

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concessionária não aplicou seus 10 mil contos de réis e quando os recursos públicos se
esgotaram a construção da ferrovia simplesmente foi suspensa. As terras, no entanto, já
estavam tituladas” (SERRA, 1991:74).

Titulada a posse da terra a seu favor, a subsidiária BRAVIACO, como primeiro ato
assumido para garantir o pleno domínio territorial, desencadeia um processo intensivo de
expulsão de posseiros e grileiros que a esta altura já marcavam presença na área. Ato
contínuo, “sob a denominação de Colônia Paranavaí, nos idos de 1928, a empresa fundou a
Fazenda Brasileira, dando início às ações de plantio de dois mil e quatrocentos hectares de
café, além de quinhentos hectares de pastagens para a criação de gado bovino”
(GONÇALVES, 2004:89).

Como a atividade cafeeira era altamente dependente de mão-de-obra e a região não


dispunha de contingentes populacionais em suficiência, considerando ainda que a empresa
não tinha interesse em estabelecer relação de trabalho com os posseiros, preferindo
expulsá-los e não contratá-los, a BRAVIACO teve que importar trabalhadores do Nordeste
brasileiro. Em 1927, um ano antes da fundação da Fazenda, “cerca de 600 mil famílias, algo
em torno de 1.200 pessoas, arregimentadas no Pernambuco, Piauí, Ceará, Alagoas, Bahia e
Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais), fizeram o trajeto de seus Estados, onde eram
selecionados, até Pirapora-MG. Desta cidade viajaram em trem fretado até São Paulo,
fazendo a baldeação para nova composição no sentido Capital-Presidente Prudente, cidade
onde pernoitaram e de onde foram deslocadas de caminhão até a Fazenda Brasileira”
(GONÇALVES, 2004:89).

Em função da chegada dos trabalhadores nordestinos, cerca de 1.400 famílias se


fixam, no ano de 1929, na Fazenda Brasileira, atuando principalmente nas lavouras de café.
Neste ano, a Fazenda atingiu o auge de seu desenvolvimento, pois era o único ponto da
região que contava com aparelhos públicos, como o cartório Paz, onde eram celebrados
casamentos, assentados registros de nascimento e estabelecidos contratos de trabalho,
invariavelmente entre a empresa e os seus trabalhadores contratados e uma junta policial,
responsável pela manutenção da ordem e da segurança internas (ALCÂNTARA, 1987).

Atingido o auge de seu desenvolvimento, sustentado pelo sucesso da lavoura


cafeeira, neste mesmo ano de 1929 a Fazenda sofre seu primeiro e maior revés político e
econômico. O fator inicial a pesar negativamente foi a crise da bolsa de Nova Iorque,
ocorrida em 1929, que fez despencar os preços do café no mercado internacional, atingindo
seriamente os negócio do empreendimento da BRAVIACO. Pouco tempo depois, no início
dos anos 1930, assume o poder da República o presidente Getúlio Vargas, que passa a
desenvolver uma política de Estado contrária aos interesses da oligarquia agrária brasileira,
constituída, basicamente, de grandes produtores de café. A reboque da crise internacional e

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de seus efeitos que debilitaram os grandes cafeicultores e ainda aproveitando as condições


de excepcionalidade sustentadas pela Revolução de 30, Getúlio desencadeia uma política
de deslocamento da base econômica brasileira, do espaço rural para o espaço urbano;
paralelamente, desenvolve uma política de saneamento nos mecanismos de apropriação da
terra, considerando que muitas áreas utilizadas como moeda corrente em pagamento de
obras públicas haviam sido desviadas, o mesmo ocorrendo que outras áreas, cedidas em
regime de concessão para extrativismo vegetal ou para o desenvolvimento de projetos de
colonização e que haviam se transformado em grandes “grilos”.

No Paraná, após o afastamento do governador Affonso Alves de Camargo Neto, é


designado interventor federal o sr. Mario Tourinho com plenos poderes atribuídos pelo
presidente Getúlio Vargas. Tourinho, também aproveitamento o momento de
excepcionalidade na política brasileira, edita no dia 3 de novembro de 1930 o Decreto 300,
retomando todas as áreas apropriadas em território paranaense, e que apresentavam algum
indício de irregularidade. Através do Decreto, o Estado recupera “algo em torno de 3 milhões
de hectares, considerando-se apenas as áreas cedidas em pagamento de obras públicas
que não se realizaram e o que foi cedido a empresas de colonização, cujos projetos
redundaram em fracasso” (SERRA, 1991:73). Entre as áreas recuperadas estava a Fazenda
Brasileira, em toda a sua extensão. Motivo alegado para a desapropriação: a fraude,
envolvendo desvio de dinheiro público, na construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio
Grande e de seu ramal de Guarapuava cometido pela concessionária inglesa Brazil Raillway
e suas subsidiárias, entre elas a BRAVIACO detentora da Fazenda Brasileira. Além dessas
terras, através do mesmo Decreto 300, o interventor Mario Tourinho recupera para o Estado
aproximadamente 6 milhões de hectares de terras griladas, boa parte dos quais instalados
no Extremo Noroeste paranaense.

Consumada a desapropriação, “os diretores da Brasileira abandonaram o imóvel,


deixando sem receber salários e obrigações trabalhistas os colonos residentes. Com o
tempo, pouco a pouco estes migraram, restando na fazenda somente lavouras tomadas pelo
mato e a degradação das casas depredadas e desabitadas” (ALCÂNTARA, 1987).

A colonização como mecanismo de organização do espaço

Retomadas as áreas desviadas, pelo menos duas situações ficam delineadas no


Paraná tendo em vista incrementar e disciplinar o acesso à terra daí em diante: a) – a
preocupação do Estado em limitar a extensão máxima da propriedade agrícola, evitando
assim a formação de novos latifúndios; b) – o interesse do Estado em incrementar a
colonização como processo básico de repartição da terra agrícola. Participariam da
colonização, grupos empresariais privados e o próprio Estado. Tal nível de interesse vai ser

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materializado através de dois instrumentos jurídicos publicados pelo Estado: o Decreto 800,
editado em 1931 e a Lei número 46 em 1935.

O Decreto 800, assinado pelo interventor Mario Tourinho, estabelecia em seu Artigo
1.o que as áreas consideradas devolutas só poderiam ser adquiridas a título de compra
“pelos que nelas se comprometessem a morar e estabelecer cultura efetiva”, o que
significava a disposição do Estado de manter sob controle a apropriação dessas áreas e de
fixar o homem na terra apropriada para fins agrícolas. O Artigo 5.o do Decreto estipulava em
200 hectares a área máxima que poderia ser adquirida por uma só pessoa, e estabelecia os
preços de comercialização em 18$000 (dezoito mil contos de réis) por hectare em termos de
valor máximo, que poderiam variar para menos de acordo com a qualidade e a localização
das terras.

A Lei número 46 definia que a colonização deveria se constituir no mecanismo


básico da apropriação das terras através da compra e abre espaço para a iniciativa privada
participar desse mecanismo. Estabelecia a Lei, em seu Artigo 1.o: “Fica o Poder Executivo
autorizado a promover a colonização das terras devolutas no Estado, mediante a concessão
de glebas a empresas ou particulares, que assinarão contratos onde se estipularão
cláusulas garantidoras dos interesses públicos e da fiel execução das condições da
concessão”. Como estímulo ao capital privado, o Estado permitia que a parte interessada,
na condição de representante do capital empresarial privado, escolhesse livremente a área
onde seria desenvolvido o projeto de colonização e a transferência da área escolhida, do
domínio público para o domínio privado, se dava mediante pagamento em condições
facilitadas e a preços que tornavam o loteamento altamente compensatório.

No que se refere à área retomada da BRAVIACO, na região Noroeste, o Estado


resolveu ele próprio colonizar mas, contraditoriamente, desrespeitou o limite de 200
hectares para a extensão máxima da propriedade que estabelecera através do Decreto 800.
“De todas as colônias oficiais, Paranavaí é a maior, indo desde os limites ocidentais das
terras da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, até as barrancas do rio Paraná (...).
A sede, Paranavaí, está localizada no espigão mestre a 78 quilômetros de Maringá, no
mesmo ponto em que se erguera, anos atrás, a casa de residência da antiga Fazenda
Brasileira, cujas terras hoje constituem as da colônia. A divisão da colônia Paranavaí seguiu
critérios bastante variáveis. Em volta de Paranavaí, os lotes são pequenos, de 40 a 80
alqueires; mais ao sul, os lotes são (...) menores, de 20 a 70 alqueires, devido à existência
de terra roxa. Às margens do rio Ivaí, devido à escassez de aguadas e estradas, os lotes
são (...) maiores, indo até 500 alqueires...” (FRANÇA, 1960:230).

Em 1944 foi demarcada a primeira área de terras, denominada 1A, no entorno da


sede da antiga Fazenda Brasileira. Motivados pela oferta de lotes a baixos custos e a

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facilitadas condições de pagamento “levas de colonos plantadores de café deslocaram-se


de várias partes do país. A melhoria nas condições das estradas viabilizou uma linha de
ônibus ligando a administração central da colônia à cidade de Londrina, facilitando o
deslocamento (fluxo) de compradores de terras, influenciando o desenvolvimento local e o
surgimento da cidade de Paranavaí” (GONÇALVES, 2004:95).

Ao mesmo tempo em que desenvolvia a colonização da colônia Paranavaí, definindo


de vez a situação das terras retomadas da BRAVIACO, o Estado constitui o DGTC –
Departamento de Geografia, Terras e Colonização com a função inicial de cadastrar o
estoque de terras devolutas, priorizando as áreas retomadas de grilos e concessões
fraudulentas. Concluído o cadastramento imobiliário, o DGTC passa a titular terras
apropriadas por posseiros, “nas quais podiam ser configuradas a morada habitual e a cultura
efetiva durante os últimos seis anos” (condição para a titulação, nos termos da Portaria 537,
de 30 de novembro de 1935).

A regularização das terras, sua titulação em nome dos posseiros e os estímulos


dados à colonização, o que contribuiu para o aumento da oferta de lotes rurais, não vão ser
suficientes, entretanto, para conter a onda de ocupação desencadeada no final dos anos
1940, principalmente em áreas de expansão agrícola, como era o caso da região Noroeste,
tomada pelo avanço da frente cafeeira. Junto com a ocupação, geralmente desordenada,
com a participação de grileiros e posseiros, se desenvolve uma onda de conflitos rurais,
colocando em choque posseiros, grileiros e companhias colonizadoras, estas amparadas
pelo Estado. Incompetente para enfrentar a situação, o DGTC é extinto e para cumprir suas
funções, com poderes ampliados, é instituída em 1947 a FPCI - Fundação Paranaense para
a Colonização e Imigração, por ato do sr. Moisés Lupion, o primeiro governador eleito após
o período em que o Paraná foi administrado por interventores federais (o Paraná teve dois
interventores: Mario Tourinho, entre anos 1930 e 1932 e Manoel Ribas, de 1932 até o final
do Estado Novo).

Os apadrinhamentos políticos e os novos desvios de terra

A FPCI foi eficiente ao abrir novas frentes de colonização, principalmente na região


Oeste, onde desenvolveu um loteamento em área de 450 mil hectares, dando origem aos
atuais municípios de Corbélia e Terra Roxa, mas a partir daí passou a cumprir um papel
oposto ao que justificou sua criação, tornando-se vulnerável aos interesses de grupos
políticos e econômicos apadrinhados do governador do Estado. Tais grupos, infiltrados na
estrutura administrativa do Estado, se apoderam de grandes extensões de terras, reeditando
na sua essência fatos como os ocorridos no início da República quando o Paraná sofreu o
desvio de extensas áreas apropriadas por grileiros ou dadas em pagamento de obras
públicas que não se concretizaram. “Instituída em 1947 por Lupion, em seu primeiro

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mandato como governador, a FPCI funcionou para proteger os interesses privados e


estaduais nas terras devolutas do Oeste contra os primeiros e poderosos colonizadores
como os Dalcanalle, tendo servido como mais um instrumento de especulação de terras
apoiado pelo Governo do Estado” (FOWERAKER, 1982:177).

Na mesma proporção em que se apropriavam de extensas áreas, os grupos


apadrinhados do governador alimentavam focos de violência no campo, pois boa parte as
terras que “conquistavam” eram terras produtivas ocupadas por posseiros. Jagunços e
mata-paus (denominação atribuída a policiais à paisana, atuando para terceiros fora de sua
jornada de trabalho) eram encarregados do trabalho de “limpeza da área”, o que significava
deixar a área livre de seus antigos moradores.

A violência no campo, conseqüência do desvio de terras e da expulsão de posseiros,


constituiu a marca registrada do primeiro período em que o sr. Moisés Lupion se manteve no
governo do Paraná, entre 1946 e 1950. Vencido o mandato de Lupion, assume o governo o
sr. Bento Munhoz da Rocha que passa a desenvolver uma política contrária à de seu
antecessor. Em 1951, o novo governador edita o Decreto 3.060, através do qual autoriza a
realização de um completo levantamento aerofotogramétrico do território paranaense. Com
base em farto material coletado, desenvolve um trabalho de medição e demarcação de lotes
e retira das frentes de conflito os posseiros que estavam correndo risco de morte,
reassentando-os em áreas mais seguras.

O período de calmaria no campo, conseqüência das medidas tomadas pelo sr. Bento
Munhoz da Rocha, desaparece entretanto em 1956 quando novamente o sr. Moisés Lupion
retorna ao poder para novo mandato administrativo. Para ser reeleito, Lupion “compra” apoio
político e “paga” com terras do Estado, beneficiando principalmente correligionários que o
apoiavam financiando sua campanha política. Como não tinha controle das terras que
distribuía, nem tinha conhecimento da situação dessas terras quanto à sua titulação ou
condição de uso, Lupion chegou a destinar a mesma área para mais de um beneficiário e a
doar áreas produtivas e já legalmente tituladas. “É inaugurada assim a fase da dupla e até
mais titulações envolvendo a mesma área e que passa a se constituir na causa de uma
nova onda de violência no campo” (SERRA, 1991:87).

Boa parte dos desvios ocorre no Extremo Noroeste do Paraná, em terras da colônia
Paranavaí, envolvendo principalmente as glebas 27-A, 28 e 29, onde se localiza atualmente
o município de Querência do Norte, em toda a sua extensão. Nestas áreas, segundo
levantamento cartorial realizado por GONÇALVES (2004:113), tomando por base registros
de terras efetivados até o ano de 1948, foram escriturados 214 lotes rurais, todos obtidos
através do artifício do apadrinhamento político. No que se refere à sua dimensão, 118 lotes
ocupavam áreas entre 5 e 50 hectares, somando 3.435,8 hectares; 3 lotes ocupavam áreas

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entre 50 e 100 hectares, somando 273 hectares e 93 lotes ocupavam áreas entre 100 e 454,
somando juntos 29.968,13 hectares. Vale observar que também na distribuição de terras em
pagamento de favores políticos, o Governador do Estado passou por cima do disposto no
Decreto 800, que limitava em 200 hectares a extensão máxima de cada propriedade a ser
repassada para pessoas físicas.

Em 1953, a empresa colonizadora BRAPAR – Brasil Paraná, Loteamentos e


Colonização, fundada no ano anterior em Londrina pelo empresário Carlos Antonio
Franchello, começa a adquirir um a um os lotes distribuídos por Lupion nas glebas 27-A e
28, dando preferência para os de maior dimensão. Com autorização do Governo do Estado,
a empresa reunifica os lotes que adquire e a partir deles estrutura um projeto de
colonização, sendo que deste projeto é que vai surgir o município de Querência do Norte. O
projeto da BRAPAR contempla a pequena propriedade na sua estrutura fundiária e as
vendas dos lotes passam a ser feitas, basicamente, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
junto a famílias de origem alemã e italiana.

Quadro 1: Famílias beneficiadas com lotes nas glebas 27-A, 28 e 29 da colônia


Paranavaí

Família Nº de lotes Área (ha)


Abib 01 400,6
Aborian 02 805,0
Abraham 01 358,25
Aburad 01 394,0
Agge 01 379,0
Azevedo 02 694,5
Barbosa dos Santos 02 520,0
Bôer 02 710,50
Burica 01 205,25
Calixto 01 454,0
Camargo 01 245,2
Carvalho 02 857,6
Costa 02 661,25
Dacca 01 448,8
Dipp 01 403,25
Fonseca 01 325,25
Grabowski 01 337,25

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Hoffmann 01 250,0
Hordochinski 01 319,28
Lopes 01 337,25
Lopes da Silva 02 805,4
Macul 02 740,8
Matioski 01 350,25
Miranda 02 504,0
Postar 01 237,25
Rosa 01 317,25
Sahão 12 1.525,4
Sahyum 01 357,25
Salum 01 437,0
Sayão 04 4.950,6
Total 53 19.331,43
Fonte: DGTC – Planta das glebas 27-A, 28 e 29 – 1948.

Segundo HARACENKO (2002), como estratégia de vendas, tendo pequenos


agricultores gaúchos e catarinenses como clientela preferencial, a loteadora procurava,
primeiro, as famílias numerosas que tinham dificuldades de se manter tendo em vista o
tamanho do lote, insuficiente para a manutenção da prole. Para viabilizar o negócio, eram
concedidos prazos para pagamento e a viagem para o “conhecimento” da terra objeto da
provável transação era custeada pela colonizadora. No material de propaganda, as
informações davam conta de que a área do loteamento era constituída de colônias
urbanizadas, dotadas de água encanada, energia elétrica, escolas, hotel, pequeno comércio
e estrutura para o transporte e comercialização das safras. Quanto à qualidade das terras, a
informação era de que elas eram propícias às lavouras cafeeiras. Em linhas gerais, a
colonizadora vendia o “eldorado”, tendo como adorno o nome Querência que significa, para
os gaúchos, “lugar querido, terra querida”. Quando chegava com a mudança, no entanto, a
realidade encontrada pelo comprador era bem diferente. Comércio, água encanada, hotel,
escolas, estradas não passavam de propaganda enganosa; a terra não era propícia ao café
e quem tentou não se deu bem.

A propósito, na época era nacionalmente conhecido o sucesso da colonização


desenvolvida pela Companhia de Terras Norte do Paraná e pela sua sucessora Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná, tendo o café como ponto de sustentação. Só que o
sucesso das lavouras cafeeiras ocorria nas zonas de terra roxa do Norte e não nas zonas de
arenito, que dominavam todo o Extremo Noroeste. Na área de colonização da BRAPA
existia ainda outro fator limitante: o loteamento se localizava no vale do rio Paraná, onde a

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baixa altitude acarretava no aumento dos riscos de geadas constantes. Geada, a propósito,
representava o maior inimigo natural da cafeicultura. As empresas colonizadoras e o Estado
sabiam disso; o comprador de terras não. É importante frisar que a clientela da colonizadora
era constituída de gaúchos e catarinenses, que tinham pouco conhecimento das exigências
naturais de uma lavoura de café, o que não acontecia com os paulistas e mineiros, por
exemplo, que tinham tradição na atividade cafeeira.

O resultado da falta de experiência teve um alto custo no curto prazo, após a


derrubada das matas para plantio: sucessivas geadas, como previsto, destruíram as
lavouras antes mesmo que estas apresentassem seus primeiros resultados econômicos,
frustrando de vez as expectativas dos proprietários de terra. Como os compradores dos
lotes dependiam da comercialização das safras de café para o pagamento das prestações,
honrando seus compromissos junto à colonizadora, a destruição das lavouras foi
catastrófica, justificando inclusive o abandono de lotes. Ao abandonar sua terra, o colono,
impossibilitado de retornar a seu Estado de origem, se transforma em bóia-fria,
empregando-se nas fazendas da região. Parte das terras abandonadas, por outro lado, são
ocupadas por posseiros que, na prática, nunca haviam abandonado o Extremo Noroeste,
apesar das muitas perseguições e ameaças que vinham sofrendo. Outra parte acaba sendo
incorporada às grandes propriedades, o que vai gerar um novo processo de concentração
fundiária.

Observa HARACENKO (2002:83) que na época da colonização desenvolvida pela


empresa BRAPA, além de gaúchos e catarinenses, que chegavam visando a posse jurídica
da terra, adquirindo pequenas áreas justamente porque seus poucos recursos financeiros
não lhes permitiam optar por áreas maiores, chegam na região em grande quantidade
trabalhadores vindos do nordeste brasileiro. Só que, “enquanto o gaúcho e o catarinense
chegavam na expectativa de conquistar o acesso à terra, na condição de proprietário, o
nordestino visava mais o mercado de trabalho, procurando emprego junto aos proprietários
sulistas”. Tal fato cria, a partir dos próprios imigrantes, uma diferenciação social entre os
novos habitantes da região.

Os arrendamentos das terras do sr. Felício Jorge

Paralelamente ao desenvolvimento da colonização e à frustração dos compradores


de lotes, no ano de 1958 aparece na colônia Paranavaí um novo personagem para fazer
parte da conturbada história da ocupação do Extremo Noroeste. Portando documento,
assinado pelo governador Moisés Lupion, que lhe dava direito à concessão de uma área de
9 mil alqueires, correspondentes a 21 mil e 980 hectares na Gleba 29, se apresenta na
região o sr. Tuffy Felício Jorge, descendente de migrantes sírios.

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

Para “abrir” sua fazenda, inicialmente Felício Jorge utilizou a mão-de-obra de alguns
parceiros agenciados para os trabalhos de desmatamento, construção de casas e formação
de pastagens, reservando a estes o direito de cultivo das terras com lavouras comerciais e
de subsistência por três anos, período após o qual ficavam obrigados a devolver a terra
cultivada com capim. Com estas ações Felício Jorge entrou em confronto direto com
dezenas de posseiros que há anos ocupavam a área” (GONÇALVES, 2004:121).

A implementação de uma atividade econômica, no caso as pastagens, em toda a


extensão da área fazia parte do compromisso assumido pelo sr. Felício Jorge junto ao
Governo do Estado. A utilização de trabalhos em parceria e sob a forma de arrendamento,
tendo em vista a retirada da mata, a construção da infra-estrutura e a formação de
pastagens, possibilitaria ao “proprietário”, em pouco tempo, ter sua fazenda formada e sem
custos, considerando que o pagamento do trabalho era efetivado através da permissão do
cultivo de subsistência e de lavouras de mercado durante a vigência do contrato. Muitos
trabalhadores se interessaram pelo negócio e se incorporaram às frentes de trabalho.
Outros, no entanto, dada à dimensão da fazenda, acharam por bem se infiltrar nas suas
terras e abrir pequenas posses, passando a questionar, à sua maneira, a apropriação de
tanto espaço a um custo tão baixo, o de simplesmente desfrutar de amizade e ter
relacionamento político com o Governador.

Diversas tentativas foram desencadeadas pelo sr. Felício Jorge para a “limpeza da
área”. Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, não conseguindo seu intento de
expulsar os posseiros, decidiu desmembrar a fazenda em duas: a Florão, na qual se
manteve proprietário e a 29 Pontal do Tigre, com área de 10.896 hectares, que vendeu aos
irmãos Jorge Wolney Atalla e Jorge Rudney Atalla, também descendentes de sírios e
grandes proprietários de terra em diversos Estados do País, contabilizando mais de 150
propriedades agrícolas em seu poder. Para a concretização do negócio, a condição
apresentada pelos irmãos Atalla foi receber a terra “limpa”, o que significava estar livre de
grileiros, posseiros, índios ou qualquer outro “invasor”. Atendendo à exigência dos
compradores, Felício Jorge move ação de despejo junto ao Poder Judiciário.

Obtendo ganho de causa, os conflitos passaram a ser iminentes e tendo em vista o


elevado número de posseiros na área negociada, tinham tudo para se transformar numa
catástrofe. Preocupados com a situação, entram em cena o INCRA – Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária e a FETAEP – Federação dos Trabalhadores na Agricultura
do Estado do Paraná, na tentativa de encontrar uma saída negociada, evitando assim o
conflito. Uma saída era retirar os posseiros e reassentá-los em áreas de colonização oficial
na Amazônia. Muitas famílias aceitaram e receberem lotes em projetos de colonização
situados nos Estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia. Outras foram retiradas das terras

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

do sr. Felício Jorge, mas permaneceram na região, parte disputando o minguado mercado
de trabalho agrícola e parte se fixando nas ilhas do rio Paraná.

A expulsão de posseiros, que ocorre em diversos momentos dos processos de


ocupação humana e apropriação das terras do Extremo Noroeste, vai alimentar um
ambiente de muita tensão social, principalmente em função da pouca capacidade de
geração de emprego em Querência do Norte, bem como nos demais municípios da região.
“No contexto da crise social, coube ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município
pressionar as autoridades locais e estaduais no sentido de elaborar projetos que
concretamente gerassem postos de trabalho e renda para a ocupação dos trabalhadores,
priorizando o trabalho permanente, quebrando assim a sazonalidade do trabalho e o
processo de expulsão populacional” (GONÇALVES, 2004:126).

A partir da pressão sindical, com o aval do Estado é estudada a implantação em


Querência do Norte de uma bolsa de arrendamento de terras que, ao mesmo tempo, estaria
viabilizando a exploração econômica de terras improdutivas; estaria melhorando a economia
local através da ampliação na circulação de mercadorias e estaria incorporando
trabalhadores ao processo produtivo, na condição de pequenos arrendatários. Como
resultado, o desemprego gerador da pressão social seria aliviado; o latifúndio perderia
espaço e o processo econômico seria alavancado com o incremento da produção agrícola.

O projeto ganhou força em 1980 quando o Banco do Brasil criou e liberou uma linha
de créditos especiais ao FUNDEC – Fundo de Desenvolvimento Comunitário para
Programas Cooperativos ou Comunitários de Infra-Estruturas Rurais. O objetivo do
programa era financiar iniciativas que visassem conter o êxodo rural, priorizando municípios
com núcleos urbanos que tivessem entre 500 e 5.000 habitantes. Querência do Norte se
encaixava nas duas situações: sua população não superava 5 mil habitantes e o êxodo
rural, conseqüência da expulsão de posseiros, exigia solução urgente.

Depois de sucessivas reuniões, com a participação de técnicos do Banco do Brasil,


da EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, do Sindicado dos
Trabalhadores Rurais e da COOPAGRA – Cooperativa Agrária de Nova Londrina, foi
constituída a ADECON – Associação de Desenvolvimento Comunitário de Querência do
Norte. A ADECON, de imediato, estabeleceu parceria com os proprietários da fazenda 29
Pontal do Tigre, visando o assentamento de trabalhadores, dando preferência para bóias-
frias. Cada trabalhador incorporado ao projeto passou a receber um lote de 2 a 2,5 alqueires
paulistas (cada alqueire correspondendo a 2,42 hectares), em uma área total de 484,71
alqueires, onde deveria cultivar milho, soja e algodão. Um segundo contrato de
arrendamento, envolvendo as terras da fazenda 29 Pontal do Tigre foi firmado entre os

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

proprietários e a cooperativa COOPAGRA. Nesta transação, foram arrendados 1.500


alqueires para o cultivo de soja, arroz, algodão, milho, feijão e trigo.

Da mesma forma como no contrato com a ADECON, o firmado com a COOPAGRA


estabelecia que no final da sua vigência os fazendeiros receberiam de volta uma terra
“amansada”, isto é, desmatada, destocada, beneficiada e com pastagem formada. Ou seja:
cediam terras brutas, de baixo valor econômico, e recebiam de volta terra beneficiada e
plantada, com alto valor no mercado imobiliário. Além desse mecanismo, que já incorpora
renda, os proprietários ainda faziam jus à participação no montante das safras colhidas. Os
contratos de arrendamento estabeleciam, como forma de aluguel pelo uso das terras, o
pagamento pelos arrendatários, em produtos, de 18 mil arrobas de algodão e de 16.400
sacas de arroz, soja e milho, os principais produtos cultivados. Um terceiro mecanismo que
tornava o arrendamento altamente compensador: para viabilizar a produção, o Estado
executa com recursos públicos investimentos pesados em infra-estrutura, incluindo
estradas, projetos de irrigação, curvas de nível, energia elétrica que, vencidos os contratos,
seriam, como de fato foram, incorporados à propriedade, sem qualquer forma de
indenização.

As usinas hidrelétricas e a origem do MST

Paralelamente aos conflitos de interesse que predominavam no Extremo Noroeste,


nas demais regiões do Estado o problema enfrentado pelos trabalhadores rurais era o
desemprego em massa gerado pelo processo de modernização da agricultura e que
também alimentava tensão social no campo. A modernização contribuiu para alimentar
focos de tensão social na medida em que, como fatores principais, gerou desemprego e
concentrou a posse da terra, criando com isso uma grande massa de excluídos e
marginalizados. A tensão , no entanto, não foi acompanhada por reações, não teve
registrada nenhuma contestação. Foi absolutamente silenciosa, “engolida a seco”.
Explicação para isso: na época, o país vivia sob regime de exceção e qualquer forma de
protesto, mesmo os mais justos, acabaria, certamente sendo interpretado como “ato
subversivo”, justificando em nome da “segurança nacional” a prisão e desaparecimento de
seus líderes.

Esse mesmo ambiente de repressão vai inviabilizar qualquer forma de protesto na


segunda metade dos anos 1970 quando a Eletrosul, empresa pública, de propriedade do
Governo Federal, constrói a Usina de Salto Santiago no rio Iguaçu, Sudoeste do Paraná. A
obra quando ficou pronta, em 1979, inundou grandes extensões de terras agrícolas dos
municípios de Laranjeiras do Sul, Chopinzinho, Mangueirinha e Coronel Vivida, colocando
sob as águas de seu imenso reservatório nada menos que 170 propriedades agrícolas.
Como não havia nenhum movimento organizado, nem havia condição política para tal,

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

considerando a opressão do regime militar vigente, os proprietários tiveram que aceitar o


valor das indenizações arbitrado para as terras inundadas pela Eletrosul e que eram aquém
dos valores normalmente pagos pelo mercado imobiliário. “Na época, os movimentos não
estavam ainda suficientemente organizados no campo, o que equivale a dizer que não havia
pressão social por parte dos desabrigados, no sentido de negociar melhores condições
quanto à indenização das terras inundadas. Aproveitando-se da situação, a Eletrosul,
responsável pelas obras da hidrelétrica, jogou para baixo o valor das indenizações”
(SERRA, 1992:124).

Segundo o mesmo autor, “o caso de Salto Santiago se constituiu em derrota para


aqueles agricultores, mas serviu de alerta para outros que nos anos seguintes, pelo mesmo
motivo – construção de barragens – teriam também suas terras inundadas no Paraná”.
Pouco tempo depois, a propósito, outra obra do gênero, mas de dimensão bem superior à
usina de Salto Santiago é iniciada no mesmo rio Iguaçu por outra empresa estatal, a
Binacional Itaipu, constituída pelos governos do Brasil e do Paraguai para a construção da
Usina de Itaipu. Tirando proveito da história, a Itaipu começa a “negociar” a desapropriação
das terras para a construção de seu reservatório, tomando como referência os mesmos
valores pagos pela Eletrosul e que levavam em conta a terra nua, como se fossem cobertas
de mata e não tivessem quaisquer benfeitorias.

A esta altura, no entanto, o regime militar passava pela fase da abertura política,
quando já era possível algum tipo ou forma de reação. Surge, então, em defesa dos
interesses dos agricultores, a CPT – Comissão Pastoral da Terra, movimento recém-
fundado pela CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, com a participação das
Igrejas Católica e Luterana. A CPT, constituída no ano de 1975 em Goiânia-GO, passou a
representar o braço forte da chamada Igreja progressista, comprometida com os
movimentos sociais. No episódio de Itaipu, a entidade teve papel fundamental na
organização dos camponeses, pequenos proprietários e empregados rurais, ao esclarecer
sobre seus direitos e o caminho que deveriam percorrer para conseguí-los.

A pressão social, desencadeada através de manifestações públicas, passeatas,


acampamentos no canteiro de obras da usina e em frente aos escritórios da empresa Itaipu,
passou a ganhar força nos primeiros anos da década de 1980, quando o movimento ganhou
um nome – Justiça e Terra – e o apoio de partidos políticos, intelectuais, sindicatos e da
FETAEP – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Paraná.

Vencida pela pressão, a Itaipu acaba cedendo, depois de pelo menos dois anos de
relutância. Os “expropriados de Itaipu”, como passaram a ser chamados os integrantes do
movimento Justiça e Terra, foram vitoriosos em tudo, até na conquista de terras no Paraná
para serem reassentados, exatamente como queriam. Seiscentas famílias, retiradas do local

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

onde mais tarde surgiria o canteiro de obras, foram beneficiadas com terras em dois
assentamentos rurais, um no município de Arapoti (400 famílias) e outro no município de
Toledo (200 famílias). Segundo SERRA (1992:126), “o fato da Itaipu ter demorado para abrir
negociações com os expropriados foi útil no sentido de que deu tempo para aprimorar a
organização camponesa. Durante os quase quatro anos da mobilização, a CPT e as
lideranças dos sindicatos rurais, como forças diretamente envolvidas na questão, tiveram
condições para criar e testar um conjunto muito grande de estratégias, voltadas
basicamente ao que fazer e ao que não fazer nos acampamentos”, acrescentando que “em
vista disso pode-se dizer que Itaipu foi o laboratório para as primeiras aulas práticas que
levaram ao aprendizado da mobilização camponesa no Paraná, nos períodos mais
recentes”.

Tanto isso é verdade que nem bem havia terminado o episódio de Itaipu e a luta
camponesa, ali iniciada, começa a se manifestar em outros espaços, no Paraná. Inspiradas
em movimentos que eclodiam no Rio Grande do Sul, as lideranças dos expropriados,
sempre apoiadas pela CPT, começam a discutir a situação de miséria dos posseiros,
pequenos arrendatários, bóias-frias e outros trabalhadores rurais do Oeste do Paraná. As
discussões, acompanhadas pelo cadastramento dos trabalhadores, levam, em 1981, a duas
decisões importantes, sob a ótica do entendimento de uma nova luta, bem mais ampla e
mais complexa do que simplesmente conquistar terra; a luta agora teria que ser pela
reforma agrária: a) a definição de um nome para o novo movimento que estava nascendo,
batizado como Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Oeste do Paraná – MASTRO; b) a
centralização da luta para o assentamento dos trabalhadores cadastrados (mais de 6 mil, a
esta altura) em terras localizadas no próprio Estado.

Não é difícil entender a exigência dos assentamentos serem em território


paranaense: muitos agricultores, durante o regime militar, foram transferidos para projetos
de colonização oficial na Amazônia e fracassaram. Devido às condições físicas adversas, à
falta de infra-estrutura e à deficiência do apoio governamental, os trabalhadores que
aceitaram terras na Amazônia, ou morreram e lá foram enterrados, ou voltaram doentes e
mais pobres do que quando saíram do Paraná. A frustração serviu como lição para não ser
repetida.

Em 1982, o MASTRO consegue seus primeiros resultados em termos de conquista


de áreas para assentamentos e também em termos de reconhecimento do mérito de sua
luta por parte dos mecanismos do Estado. Entusiasmados pelo exemplo do Oeste, outros
movimentos começam a surgir nas demais regiões do Paraná. Foram constituídos no
mesmo ano de 1982, a partir da experiência pioneira do MASTRO, os movimentos regionais
intitulados MASTES – Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Sudoeste do Paraná,
MASTEL – Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Litoral do Paraná, MASTEN –

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Norte do Paraná e MASTRECO – Movimento dos


Agricultores Sem-Terra do Centro-Oeste do Paraná.

Com os movimentos, a mobilização camponesa passa a atingir todo o território


paranaense. O sucesso, no entanto, não demorou a evidenciar um problema estratégico: a
fragmentação da luta pela sua regionalização e pela falta de um comando central.
Considerando que tal problema não ocorria apenas no Paraná, repetindo-se em outros
Estados, principalmente do Sul do País, lideranças dos trabalhadores se reúnem em 1982
no município de Medianeira, Oeste do Paraná, para discutir uma nova forma de
organização, já sendo considerada a possibilidade da unificação do movimento e da
centralização da luta, afunilada para conquistas mais amplas que a simples conquista da
terra. No ano seguinte, nova reunião é realizada em Chapecó, Santa Catarina, quando é
preparada a agenda para um encontro maior e definitivo: o que acabou sendo realizado em
1984 em Cascavel, no Paraná. Neste encontro é que acabou sendo criado o MST –
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a missão de unificar a luta
camponesa em todo o território nacional e de atrelar esta luta para conquistas em termos de
reforma agrária. Algumas estratégias também foram definidas, tendo em vista a unicidade
do movimento e a concretização de seu maior objetivo. As mais importantes e que até hoje
são seguidas à risca pelo MST:

• os trabalhadores rurais não devem lutar por terra para si mesmos. Cada combate é
parte da luta para todos os sem-terra e pela reforma agrária;

• cada trabalhador deve assumir o compromisso de continuar a luta, mesmo depois de


conseguir seu pedaço de terra;

• a terra conquistada na luta não deve ser vendida, pois “terra para nós é terra de
trabalho, não terra de negócio”;

• a bandeira de lutas do Movimento é “terra não se ganha, se conquista”. A ocupação,


como uma das principais formas de luta, significa que a reforma agrária será feita
pelos próprios trabalhadores.

A luta pela Reforma Agrária no Extremo Noroeste

Estruturado o Movimento, as atenções das lideranças voltam-se para o Extremo


Noroeste. Motivos para isso não estavam faltando: o processo histórico da ocupação
regional havia transformado esta porção do Noroeste do Paraná em espaço ideal para a
reforma agrária que se pretendia desenvolver. Além da exclusão social, que havia se
transformado em marca registrada no Extremo Noroeste, dois outros itens serviam como
referência, tendo em vista o deslocamento da luta até então concentrada na região Oeste: o

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

domínio quase absoluto do latifúndio, assentado em grandes áreas de pastagens, com baixo
ou nenhum índice de aproveitamento econômico e a titulação duvidosa da terra, com
destaque para as áreas em poder de grileiros e as áreas “presenteadas” aos correligionários
políticos pelo ex-governador Moisés Lupion.

O primeiro passo que, pode-se dizer, vai desencadear a “cobiça” pelas terras do
Extremo Noroeste, foi dado em 1985 pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Querência
do Norte, ao enviar ofício à Secretaria de Agricultura do Estado denunciando problemas
fundiários, o elevado número de trabalhadores rurais desempregados e pleiteando a
realização de assentamentos rurais no município. Sensível aos problemas levantados, a
Secretaria de Estado encaminhou o pedido ao INCRA e este enviou a Querência uma
equipe técnica que, três anos depois, em 1988, após vistorias realizadas nas fazendas
Porangaba II, Florão, Todos os Santos e 29 Pontal do Tigre, apontou esta última como
prioritária para o desenvolvimento de projeto de reforma agrária, passível, portanto, de
desapropriação. O indicativo de área prioritária para fins de reforma agrária vai ser
confirmado através do Decreto Presidencial número 95.784, publicado no Diário Oficial da
União dia 4 de março de 1988.

Ao tomar conhecimento da publicação do Decreto, coordenadores de acampamentos


rurais localizados principalmente no Oeste, todos vinculados ao MST, enviam às escondidas
representantes para um melhor conhecimento da área apontada para desapropriação. Ato
contínuo, iniciam um trabalho de base para a conscientização e preparo das famílias
escaladas para a ocupação das terras. Os cálculos feitos pelos próprios líderes do
Movimento indicavam que a Fazenda 29 Pontal do Tigre, com seus 10.896 hectares,
poderia comportar pelo menos 500 famílias de sem-terra.

Problemas que atormentavam, à esta altura, as lideranças do Movimento: parte da


Fazenda a ser ocupada estava sendo explorada sob a forma de arrendamento por
pequenos arrendatários, os produtores associados da ADECON, já mencionados neste
trabalho. Os contratos de arrendamento já estavam vencidos mas os agricultores
permaneciam na área e reivindicavam o direito de serem assentados. Por outro lado, as
famílias escolhidas para a ocupação, provenientes em sua maioria dos municípios de
Castro, Amaporã, Reserva e Capanema, eram extremamente pobres, desprovidas das
mínimas condições financeiras para custear, ao menos, o seu transporte até a fazenda a ser
ocupada. Foi preciso, então, efetivar uma campanha de arrecadação de fundos para fazer
frente às despesas iniciais, incluindo o custo do deslocamento. Outro problema a ser
considerado: as famílias teriam que ser conscientizadas para um processo de luta que
poderia durar anos seguidos, durante os quais as condições de vida poderiam ser bem
piores se comparadas àquelas a que estavam acostumadas e que frise-se, eram péssimas.
Teriam que ser esclarecidas, por exemplo, a respeito das diferenças do clima entre seu

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

município de origem e Querência do Norte e também a respeito dos riscos da empreitada,


no que se refere à possibilidade de violência ou por parte da polícia ou diretamente por parte
dos proprietários das terras. Deve ser considerado também o fato de que as ocupações de
terra, na forma como preconizada pelo MST, constituía fato novo no Paraná e na maior
parte do Brasil, não existindo portanto experiência para ser trocada. A falta de parâmetros
sobre como fazer, como resistir, como não esmorecer, se constituía em desafio para os
militantes. Não havendo outra alternativa, o jeito era arriscar e aprender com a prática.

Pesava a favor da empreitada: os proprietários da área objeto da ocupação


figuravam, na época, entre os maiores devedores do Estado, incluindo impostos não pagos
sobre a propriedade e uso da terra e impostos envolvendo outras atividades produtivas no
Paraná. A família Atalla, dos irmãos Jorge Wolney e Jorge Rudney, então donos da fazenda
Pontal do Tigre, é proprietária de usinas de açúcar e álcool no Paraná, além de outros
empreendimentos, sobre os quais incidiam elevadas somas de tributos não pagos, fato que
poderia tornar o Estado um aliado da luta camponesa.

De uma forma ou de outra, no dia 26 de julho de 1988, viajando de carros pequenos,


ônibus e caminhões, começam a chegar os primeiros “invasores de terras” a Querência do
Norte, município que no Extremo Noroeste apresentava, pelas situações já citadas, as
“condições ideais” para o deslocamento para outras regiões da luta até então concentrada
na região Oeste paranaense. Os ocupantes, uma vez em Querência, se instalam com seus
barracos de lona preta nas terras da fazenda 29 Pontal do Tigre e a seu modo inauguram o
processo de reforma agrária na região, na tentativa de reverter um quadro histórico em que
o acesso à terra se constituiu em privilégio “para gente grande” ou “gente graúda”. Com
poucos dias de diferença, os ocupantes vão chegando e se instalando em área previamente
demarcada, no interior da propriedade. No total, 210 famílias se instalam na fazenda, todas
vindas do Oeste e Sudoeste, sendo 30 do município de Castro, 45 do município de
Amaporã, 70 do município de Reserva e 65 do município de Capanema.

Logo de início, emergem os primeiros desafios:

• a área ocupada, como foi citado anteriormente, estava de posse de pequenos


arrendatários (aqueles filiados à ADECON) que pleiteavam ali se manter na condição
de pequenos agricultores familiares. Não houve entendimento e os arrendatários
acabaram sendo expulsos pelos recém-chegados. No total, 235 arrendatários foram
retirados da fazenda, tendo que abandonar seus lotes onde produziam, basicamente,
arroz para o mercado.

• não havia unidade, não era o mesmo o espírito de luta dos acampados, o que gerou
uma série de dificuldades iniciais. Os grupos vindos de Reserva e Castro tinham
experiência em mobilizações porque já haviam participado como militantes do antigo

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

MASTRO; o grupo de Amaporã já contabilizava experiência passada pela CPT –


Comissão Pastoral da Terra, portanto, tinha o que oferecer para o sucesso da
empreitada; o grupo de Capanema, no entanto, era totalmente despreparado, pouco
poderia oferecer enquanto contribuição para os companheiros. Com a agravante:
estava submisso às decisões de um líder (um tal de Chiquinho) que com o tempo
acabou se transformando numa espécie de comandante supremo. Segundo
depoimentos de militantes, êle ia a reuniões com o INCRA, com o Prefeito, com o
padre e até com o presidente da República, se surgisse oportunidade, mas nada do
que discutia repassava para o grupo. Tomava decisões sozinho e não dava
satisfações a ninguém. Com a força de seu “poder de liderança”, passou a expulsar
famílias que não desfrutavam de sua simpatia pessoal e a cobrar taxas das que, por
sua decisão, tinham o “direito” de permanecer no acampamento. A dominação só
terminou em 1990 quando o grupo se reuniu e em assembléia decidiu expulsar o
“líder”. Seguindo, a partir daí, o exemplo dos outros grupos, o pessoal de Capanema
passou a se organizar em equipes de trabalho, cada qual tendo um coordenador e
uma tarefa específica – segurança, educação, mística e religião, trabalho (para
angariar rendas, revertidas na manutenção dos acampados), etc.

• a opinião pública não viu com simpatia a ocupação da Pontal do Tigre e passou a
marginalizar os acampados, ocorrendo casos de estabelecimentos comerciais se
recusarem a vender gêneros de primeira necessidade a eles. A população, no fundo,
não aceitava o fato dos acampados, vindos de outras regiões, terem expulsado os
pequenos arrendatários da Pontal, considerando que esses pequenos agricultores
eram moradores do próprio município, alguns há mais de dez anos. O prefeito de
Querência do Norte na época, sr. José Edegar, que antes de ser eleito era o
presidente da ADECON, se recusava a prestar qualquer forma de ajuda, o mesmo
ocorrendo com os vereadores, os fazendeiros, enfim, a maior parte da comunidade
local.

• a reação dos proprietários da Pontal, que já era esperada, superou as expectativas.


Primeiramente, os irmãos Atalla entraram com pedido de reintegração de posse na
Justiça. Em seguida, providenciaram o deslocamento de cerca de 3 mil cabeças de
gado, trazidos de outras propriedades da família e que foram soltas na fazenda com
duas finalidades: uma, pisotear e assim destruir as lavouras recém-plantadas; outra,
amedrontar os acampados. O gado era do tipo pantaneiro, sem definição de raça,
mas muito feroz. Intimidados, exatamente como queriam os fazendeiros, os
camponeses se isolaram em suas barracas de lona, passando a sofrer privações.
Sem ter o que comer, considerando que as roças haviam sido destruídas e ninguém
se arriscava a sair das barracas em busca de trabalho para não ser atacado pelos

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Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo

bois, a fome se transformou em novo inimigo a ser vencido. Muitos acampados, a


esta altura, desistiram da luta, sendo substituídos por outros. Os novos integrantes,
que passaram a ocupar o lugar dos desistentes, vieram dos municípios de Tibagi e
Capanema.

Para superar as dificuldades, com destaque para o gado selvagem, os acampados


resolveram, enfim, tomar algumas iniciativas. Uma delas foi acabar com as lideranças de
cada grupo e constituir uma espécie de comando central. Com isso, a expectativa era
fortalecer o movimento pela junção das partes. Para resolver o problema do gado, foi pedida
a intervenção do governo do Estado, que deveria negociar com os fazendeiros a retirada
dos animais. A demora, no entanto, transformou paciência em irritação. Cansados de
esperar, os acampados decidiram agir por conta própria. De início, passaram a abater os
animais para consumo e assim resolver também o problema da fome. Mas era muito gado
para ser abatido e aí outra solução, bastante radical, foi encontrada: para proteger suas
lavouras e ao mesmo tempo se proteger do perigo representado pelo gado, os acampados
aprisionaram os animais em pequenos cercados e ali os deixaram sem a alimentação
adequada. Alguns dias depois e o gado passou a morrer de fome e sede. Os proprietários
foram avisados, mas pouco se interessaram. Como o fato passou a ganhar espaço na
imprensa e a opinião pública estava se voltando contra os camponeses, o governo do
Estado enviou funcionários para providenciar a alimentação do gado que continuava vivo,
apesar dos muitos dias que havia passado sem água e alimento. Recuperados, os bois que
restavam foram leiloados pelo próprio Estado.

A ocupação da Fazenda 29 Pontal do Tigre, a partir daí, entrou em ritmo de espera,


na expectativa da desapropriação da terra e da imissão de posse. A desapropriação, que
desencadearia a imissão, estava na dependência do Judiciário decidir a favor ou contra o
pedido de reintegração de posse interposto pelos proprietários. Em março de 1995,
finalmente, a desapropriação foi oficializada e em outubro do mesmo ano saiu a imissão de
posse, regularizando, enfim, a situação dos camponeses, considerados pioneiros no
processo de reforma agrária no Extremo Noroeste do Paraná. Após a demarcação das
terras pelo INCRA, o agora Projeto de Assentamento Rural Pontal do Tigre passou a ocupar
uma área total de 8.096 hectares, suficiente para 336 famílias.

O assentamento das famílias acampadas na Pontal do Tigre significou, para o MST a


conquista de um território e se constituiu, ao mesmo tempo, em instrumento de
espacialização da luta camponesa e de sua socialização. É no Extremo Noroeste, e
particularmente no município de Querência do Norte, que as luta deveria avançar,
conquistar novos processos de territorialização, de um lado pelo ambiente político que se
tornou favorável pela concretização do assentamento, de outro lado pelas características
agrárias local e regional, marcadas pela concentração fundiária, pela titulação duvidosa das

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terras e pelo seu baixo índice de aproveitamento econômico. O Extremo Noroeste, diante do
quadro apontado, se constituiria, para o MST, em novo foco da luta camponesa, somando
forças com o foco já estruturado, ou já territorializado no Oeste paranaense.

Como resultado direto de todo esse processo de motivação, uma nova ocupação de
terras é gestada e vai acontecer no dia 13 de agosto de 1995. Duzentas famílias, em sua
maior parte provenientes de municípios localizados nas regiões Oeste e Sudoeste, ocupam
a Fazenda Porangaba II, com área de 2.700 hectares, localizada em Querência do Norte.
No dia 6 de novembro do mesmo ano, é ocupada a Fazenda Saudade, no município de
Santa Izabel do Ivaí. Nesta ocupação, a proprietária conseguiu reintegração de posse, o que
ocorreu dois dias depois com muita violência. A ação de despejo, envolvendo 90 homens da
Polícia Militar do Paraná acabou em pancadaria e num saldo de 17 trabalhadores e 6
policiais feridos. A maior vítima foi o sem-terra Pedro Lopes dos Santos, que levou vários
tiros e acabou tendo uma perna amputada.

De 1995 em diante, as ocupações de terras se intensificaram e, na mesma


proporção vai ser intensificada a reação dos fazendeiros e a violência no campo.
Envolvendo não só o Extremo Noroeste, mas todo o Noroeste do Estado, as ocupações de
áreas, tidas pelos sem-terra e pelo seu maior movimento de sustentação política, o MST,
como improdutivas, passam a obedecer uma ordem quase que geométrica. Foram 8
ocupações em 1996, 17 em 1997, 25 em 1998, 32 em 1999, caindo depois para apenas 4
na virada do século. No total, foram registradas 88 ocorrências entre 1995 e 2000, na média
de 18 por ano ou uma e meia por mês. Para coordenar as ocupações o MTS, a esta altura já
estruturado na região, passa a se apoiar em secretarias estrategicamente localizadas, a
principal delas instalada no próprio município de Querência do Norte. Foi a partir desta
secretaria regional, que foram coordenadas 78 ocupações, das 88 registradas entre 1995 a
2000, 34 delas envolvendo terras em Querência do Norte.

As respostas à ação planejada do MST não demoram a se manifestar, produto ou da


ação individualizada de fazendeiros, ou de seu braço político mais forte, a UDR – União
Democrática Ruralista, em qualquer dos casos envolvendo dois tipos de reação: através de
ações de reintegração de posse, impetradas junto ao Judiciário e através do enfrentamento,
contando para isso com a contratação de jagunços bem armados. No primeiro caso, o
conflito pode ou não acontecer, dependendo da forma como os sem-terra recebem a ordem
de despejo, oferecendo ou não resistência e principalmente da forma como agem os
policiais encarregados de recuperar a área para o fazendeiro, levando em conta que
violência sempre gera violência; no segundo caso, o conflito sempre vai acontecer, isto
porque os jagunços já chegam preparados para o combate e são instruídos e pagos para
isso. De 1995 a 2000, o mesmo período considerado para efeito da contagem das
ocupações de terra, vão ocorrer no Noroeste do Paraná 89 conflitos rurais, seguindo da

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mesma forma uma proporção quase que geométrica: 1 em 1995, 7 em 1996, 19 em 1997,
21 em 1998, 31 em 1999, caindo para 10 em 2000, de acordo com levantamento realizado
pela CPT – Comissão Pastoral da Terra. A desaceleração das ocupações e dos conflitos em
2000 e nos anos seguintes deveu-se, em parte, à Medida Provisória assinada pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso e que vai sustentar as Portarias 62 e 101,
publicadas pelo INCRA, que suspendem pelo prazo de dois anos a desapropriação, para
efeito da reforma agrária, de áreas objeto de ocupação ou invasão por parte de movimentos
sociais.

A Medida Provisória assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e mantida


pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, significou um banho de água fria nas aspirações
do MST e arrefeceu o ímpeto da luta, considerando o ritmo em que esta se mantinha no
Noroeste do Paraná, particularmente na porção Extremo Noroeste. Considerando, de outro
lado, que a reforma agrária, desde o momento em que começou a ser implementada no
Brasil, só conseguiu caminhar a reboque da pressão social, ou seja, de baixo para cima,
raríssimas vezes sendo produto da iniciativa governamental, o ato presidencial serviu para
colocar uma pá de cal em sua própria política de corrigir as distorções no processo de
apropriação das terras e seu uso econômico.

Apesar da paulada que recebeu, a luta camponesa, enfim, conseguiu se territorializar


no Noroeste paranaense, pelos resultados obtidos. Levantamento apresentado pelo INCRA
em 2003 apontou um quadro em que, basicamente pela pressão social, 28 assentamentos
rurais se concretizaram na região, ocupando uma área total de 36.327 hectares e
beneficiando 1.392 famílias de trabalhadores rurais.

Quadro 02: Assentamentos Rurais implantados no Noroeste do Paraná, segundo o


município, o número de famílias e a área ocupada (em ha)

Nº de Nº de Área ocupada
Município
assentamentos famílias (ha)
Amaporã 02 65 1.749
Jardim Olinda 01 53 1.258
Marilena 03 106 2.530
Mirador 01 29 617
Nova Londrina 01 27 685
Paranacity 01 20 256
Querência do Norte 08 671 19.210
Santa Mônica 01 37 1.256
São João do Caiuá 01 34 726

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Santa Cruz do Monte


04 154 3.930
Castelo
Terra Rica 05 196 4.110
Total 28 1.392 36.327
Fontes: INCRA e MST, 2003

Considerações finais

De maneira geral e particularmente no Extremo Noroeste do Paraná, a reforma


agrária tem acontecido sim, mas a reboque da pressão social, por sua vez impulsionada, ora
pelo processo histórico em que se deu a distribuição e apropriação da terra agrícola, com a
participação expressiva do mecanismo da apropriação irregular, envolvendo fraudes; ora
pela consolidação do latifúndio, com a predominância de grandes áreas com baixo ou
nenhum aproveitamento econômico; ora pelo processo de exclusão social, que foi marcante
na região desde a fase da ocupação pioneira. Uma ou outra causa, ou duas e mais causas
ao mesmo tempo, alimentam a insatisfação dos trabalhadores e tornam a porção Extremo
Noroeste espaço ideal para o incremento de medidas voltadas à reforma agrária que no
entanto encontram barreiras para serem implementadas, barreiras estas com força mais do
que suficiente para emperrar a ação do Estado neste sentido. O Estado, imobilizado pelas
forças que se opõem à reforma, representadas pelos grandes proprietários de terra, acaba
transferindo para os trabalhadores o ônus da luta, com todos os riscos que ela incorpora,
inclusive de vida e de morte. Pelo imobilismo ou omissão, o Estado acaba jogando para as
costas dos movimentos sociais a única forma de fazer a reforma andar, ou seja, a partir das
bases sociais, de baixo para cima. Dependendo da força da pressão social que
desencadeiam e, evidentemente, da reação contrária, os trabalhadores conseguem, então,
fazer a reforma agrária com as próprias mãos, mas a um custo muito alto, na medida em
que tornam-se alvos da violência desencadeada pelas forças vinculadas aos grandes
proprietários rurais.

O imobilismo do Estado, a quem competiria, de fato, executar a reforma, como


controlador dos mecanismos jurídicos, econômicos e políticos por ele próprio criados, é que
vai, na prática, motivar a organização dos trabalhadores e fomentar a luta que
desencadeiam. E ao lutarem pelo direito de acesso à terra a eles negado em todo o
processo histórico da ocupação regional, os trabalhadores conquistam território em nome
dos movimentos que os representam, principalmente o MST. É a territorialização da luta e
de seus resultados, que vão se configurar na região Noroeste, marcados por uma realidade:
dos 28 assentamentos rurais implantados, nenhum se constituiu em iniciativa do Estado.
Todos foram conquistados à base da pressão dos trabalhadores, envolvendo os
mecanismos já tradicionalmente conhecidos: a identificação do latifúndio, sua ocupação, o

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confronto armado, a batalha judicial...Só depois de tudo acontecer é que o Estado aparece
para legalizar, para demarcar, para selecionar, para assentar...

REFERÊNCIAS
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Unicamp, 1992.
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COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARANÁ. Colonização e Desenvolvimento do Norte do
Paraná (publicação comemorativa dos 50 anos da CMNP). São Paulo: Edanee, 1975.
FERNANDES, Bernardo Mançano. MST: formação e territorialização. São Paulo: Hucitec, 1996.
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira do Brasil de 1930 aos dias
atuais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
FRANÇA, Ary. A marcha do café e as frentes pioneiras. XVIII Congresso Internacional de Geografia (Guia de
Excursões). Rio de Janeiro: UGI-CNG, 1960.
GONÇALVES, Sérgio. O MST em Querência do Norte – PR: da luta pela terra à luta na terra. Maringá, 2004.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de
Maringá.
HARACENKO, Adélia Aparecida de Souza. Querência do Norte: uma experiência de colonização e reforma
agrária no Noroeste do Paraná. Maringá: Massoni, 2002.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos Agropecuários: 1970, 1975, 1980, 1985, 1996.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos Demográficos: 1970, 1980, 1990, 2000.
PADIS, Pedro Calil. Formação de uma economia periférica: o caso do Paraná. São Paulo, Hucitec, 1981.
SERRA, Elpídio. Processos de ocupação e a luta pela terra agrícola no Paraná. Rio Claro, 1991. Tese de
doutoramento apresentada à UNESP, campus de Rio Claro.
SERRA, Elpídio. A Reforma Agrária e o Movimento Camponês no Paraná. XI Encontro Nacional de Geografia
Agrária, Anais. Maringá, 1992.

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