Thiago Pessoa Walter Pereira

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FAZENDEIROS-NEGREIROS: PERSONAGENS E LUGARES DO TRÁFICO

ILEGAL DE AFRICANOS NO LITORAL DO SUDESTE BRASILEIRO


(C.1831-1856).1
Thiago Campos Pessoa2

Walter Luiz Carneiro de Mattos Pereira3

Fazendeiros-negreiros: Um projeto em construção.

O texto que trazemos à discussão no 9º Encontro Escravidão e Liberdade é resultado do


enlace de duas pesquisas independentes que começam a se alinhavar no escopo de um projeto
recentemente aprovado pela Chamada Universal MCTI/CNPq 28/2018. Nesse primeiro momento,
buscaremos inserir nosso objeto na produção historiográfica das últimas décadas a fim de
apresentarmos dados iniciais de nossas pesquisas individuais que sustentam a hipótese central do
projeto: a formação de fazendas negreiras em toda extensão do sudeste cafeeiro, estruturadas para
empreenderem a finalização dos comércio atlântico de escravos. Nesse sentido, no âmbito desse
Encontro, mais do que dados tratados e acabados, propomos como debate as possiblidades de
enfrentamento da agenda de trabalho a ser encaminhada nos próximos três anos de pesquisa: lugares
e personagens que no litoral e na imensidão do Atlântico reergueram a escravidão africana
eclipsados pela clandestinidade.
Como sabemos, a ilegalidade do tráfico de africanos no mundo atlântico passou a compor a
agenda da política externa luso-brasileira desde o início do oitocentos. De 1810 a 1817 tratados
foram ratificados entre a coroa portuguesa e o império britânico a fim de abolir progressivamente o
comércio de escravos para o principal porto negreiro das Américas, radicado na cidade do Rio de

1
Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de
maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ Versão
significativamente ampliada desse texto foi aceito para publicação no número 66 – Dossiê “Escravidão e Liberdade nas
Américas” da Revista Estudos Históricos – FGV/CPDOC, a ser publicado em abril/2019.
2
Pesquisador pós-doutor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF),
bolsista FAPERJ.
3
Professor do Departamento de História de Campos do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento
Regional, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campos dos Goitacazes, RJ.

1
Janeiro. Com a Independência do Brasil, selava-se o último acordo da era legal do tráfico de
africanos. A partir da prerrogativa britânica de reconhecimento da nação brasileira, em 1826,
estabelecia-se convenção que previa que o Império recém-criado aboliria o tráfico três anos após a
ratificação do novo acordo, feita no ano seguinte. O texto daquela convenção de 1826 equiparava o
comércio de africanos ao crime de pirataria, com todas as suas implicações no âmbito do direito
internacional.4 Assim, em março de 1830, o comércio negreiro entre a África e o Brasil deveria
chegar ao fim. Pouco tempo depois, o componente da pirataria e a ameaça à soberania brasileira
levaram a aprovação do Projeto Barbacena que originou a lei de 7 de novembro de 1831. Em seu
artigo primeiro ficava estabelecido que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do
Brasil, vindos de fora, ficam livres”.
Entretanto, até meados dos anos de 1830, a perspectiva de aplicabilidade da lei de 1831
caminhou sempre acompanhada de seu questionamento, fosse por interesses políticos ou pela
própria prática social escravista circunspecta a realidade brasileira. Somente após a renúncia da
regência liberal de Feijó, os rumos da repressão ao tráfico mudariam. Na frente do novo gabinete,
acumulando as pastas do Império e da Justiça, figurava Bernardo Pereira de Vasconcelos, maior
representante do Partido Conservador e, àquela altura, arguto defensor da reabertura do tráfico
negreiro em escala atlântica. O regresso conservador, ao estabelecer-se no poder no início de 1838,
conduziria a reabertura do tráfico de maneira tácita, e assim a sustentaria durante toda a década de
1840, a despeito da repressão inglesa.5
Somente no início da década de 1850, doze anos após intensa atividade traficante, quando
cerca de 800 mil africanos foram reduzidos ilegalmente à escravidão no Império, o limite
institucional, político e moral do tráfico para o Brasil foi definitivamente decretado. A lei de 4 de

4
BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil, e a questão do comércio
de escravos (1807-1869). Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1976. CONRAD, Robert.
Tumbeiros: o tráfico de africanos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.
5
NEEDELL, Jeffrey D. The Party of Order: the Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-
1871. Stanford: Stanford University Press, 2006. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no império do Brasil,
1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. EL YOUSSEF, Alain. Imprensa e Escravidão: política e
tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822 – 1850). São Paulo: Intermeios / FAPESP, 2016.

2
setembro de 1850, aprovada quando Eusebio de Queiroz ocupava a pasta da Justiça, incorporava os
estatutos de 1831 e os colocava em prática, depois da tentativa fracassada de ab-rogação da lei
anterior. A repressão decisiva nos primeiros anos da década de 1850 desenvolveu-se no mar e nas
fazendas litorâneas suspeitas de acolherem os desembarques de africanos durante a ilegalidade.6 De
fato, as forças de repressão tinham informações detalhadas dos desembarques e de sua
complexidade, capazes de identificar os principais agentes da clandestinidade.
Nosso objeto de estudo situa-se exatamente nesse espaço atlântico de desembarques, entre a
reabertura do tráfico e sua abolição definitiva, cuja ilegalidade estava delimitada juridicamente
pelas leis de 1831 e 1850. A hipótese central do nosso projeto é que a montagem do complexo
cafeeiro se relaciona de maneira estreita à reabertura do tráfico, mantendo estruturas em portos de
desembarques ilegais no litoral da província. Esses recortes costeiros formados por praias, portos e
ancoradouros, estiveram em pleno funcionamento e sobrepuseram o abastecimento das fazendas e o
escoamento da produção ao desembarque de africanos, desempenhando função vital na construção
da economia imperial, sobretudo na expansão cafeeira na bacia do Paraíba. Nesse sentido, os
grandes fazendeiros praieiros não se valiam dos negócios negreiros apenas de maneira utilitária.
Antes, estavam intimamente vinculados àquela dimensão, diretamente através de suas propriedades,
de seus agentes e das redes de negócio estabelecidas no litoral. Enquanto agiam politicamente a fim
de viabilizarem a reabertura do comércio negreiro, empreendiam a montagem de complexos
agrários e mercantis tendo por base a reorganização da logística traficante no litoral que margeava o
sudeste cafeeiro, e a rearticulação das redes de negócio no Atlântico.7
Não há dúvidas de que foi exatamente a reabertura do tráfico e sua sustentação tácita, por
quase duas décadas, que viabilizou o boom da economia cafeeira entre 1830 e 1860. A construção

6
PEREIRA, Walter Luiz Carneiro de Mattos. José Gonçalves da Silva: tráfico e traficante de escravos no litoral norte
fluminense, depois da lei de 1850. Tempo [online], Niterói, nº 31, 2011. PESSOA, Thiago Campos. O império dos
Souza Breves nos oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos Comendadores José e Joaquim de Souza Breves.
Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010.
7
PESSOA, Thiago Campos. A indiscrição como ofício: o complexo cafeeiro revisitado (c.1831-c.1888). Tese
(Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2015, p.90-140; Do mesmo autor: Sob o signo da
ilegalidade: o tráfico de africanos na montagem do complexo cafeeiro (Rio de Janeiro, 1831-1850). Tempo [online]
Niterói, vol.24, n. 3, p.422-449, 2018c.

3
de amplas fortunas entre fazendeiros-negreiros esteve assentada nessa escravidão ilegal, sustentada
em consensos políticos e numa frágil base jurídica.8 Não somente porque esses senhores
transformaram suas fazendas no resultado concreto dessas transações, mas, sobretudo, porque foram
eles os agentes que viabilizaram a logística da retomada dos negócios negreiros com conexões
atlânticas.
Portanto, se a hegemonia e a ordem empreendida pelos conservadores garantia certa
estabilidade política e institucional no processo de recrudescimento do tráfico, fora ele próprio
resultado da tessitura do projeto hegemônico no Império do Brasil, no qual o fortalecimento da
escravidão, através do comércio de africanos, assumia característica edificante. Na prática social,
negreiros e fazendeiros do Vale, molas mestras da economia imperial, foram agentes protagonistas
dessa construção hegemônica, atuando diretamente na retomada do tráfico. Assim, propomos como
questão norteadora desse projeto a análise do vínculo estruturante entre as grandes fortunas do
Império e a migração forçada de milhares de africanos debaixo do signo da ilegalidade.
Retomaremos essa relação em sua dimensão histórica, na dinâmica dos agentes, das redes de
sociabilidade e dos vínculos políticos, econômicos e sociais estabelecidos por aqueles que na
montagem do complexo escravista agiram igualmente em prol da retomada do tráfico no mundo
atlântico no contexto da clandestinidade.

A historiografia brasileira sobre o tráfico ilegal, fazendas e fazendeiros-negreiros.

Nas últimas duas décadas, o tráfico ilegal de africanos tem sido objeto constante da
historiografia brasileira. No entanto, seja pela escassez de fontes, ou pela ênfase em análises no
âmbito político, os especialistas sobre o tema negligenciaram a estrutura de recepção dos africanos
na costa brasileira e os agentes que operavam a complexa rede transcontinental de negócios que
cortava o Atlântico. Se há consenso sobre a amplitude do comércio negreiro durante a década de

8
MAMIGONIAN, Beatriz. O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava: a lei de 1831 e a matrícula
dos escravos de 1872. Almanack, Guarulhos, n. 2, p. 20-37, 2o sem. 2011.Da mesma autora: Africanos livres: a
abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
PESSOA, Thiago Campos. O império da escravidão: o complexo Breves no Vale do café (Rio de Janeiro, c.1850-
c.1888). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018a.

4
1840, quase nada sabemos acerca das estruturas de recepção e dos sujeitos que as operavam, não
obstante referências a tais agentes surgirem de longa data em fontes primárias, guia de fontes e
referências bibliográficas.9 A cumplicidade do governo imperial com o ilícito trato, até a lei de 4 de
Setembro de 1850, fez com que nomes e documentos deixassem de ser produzidos e, com isso, um
silêncio tácito se erguesse sobre o comércio de africanos na construção e consolidação do Império
do Brasil.
As primeiras pesquisas acadêmicas sobre o período ilegal do tráfico para o Brasil se
concentraram nos processos de elaboração de tratados de restrição e abolição do comércio negreiro
entre 1810 e a aprovação da “Lei Eusébio” em 4 de setembro de 1850.10 Quase ao mesmo tempo,
outros estudos retomaram a discussão, aprofundando os significados e as consequências desses
acordos para o comércio atlântico de almas.11 Nos últimos vinte anos, o campo de estudos sobre o
tema se desenvolveu a partir de análises que tomaram como mote diferentes dimensões do tráfico
ilegal. Nessa perspectiva foram analisadas as redes de relações comerciais transcontinentais no
contexto de consolidação do capitalismo e de reestruturação dos negócios negreiros no Atlântico.12
O processo de construção da ilegalidade no parlamento e na política brasileira13 e as experiências
dos indivíduos que de perto conheceram a diáspora africana também foram objetos dos
pesquisadores.14

9
CASADEI, Thalita de Oliveira (org.) Documentos sobre a repressão ao tráfico de africanos no litoral fluminense. Rio
de Janeiro: Secretaria de Educação e Cultura / Departamento de Difusão Cultural / Biblioteca Pública do Estado do Rio
de Janeiro / Sala de Estudos Matoso Maia, Janeiro de 1966. OSCAR, João. Escravidão & Engenhos – Campos; São
João da Barra; Macaé; e São Fidelis. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985. FERREIRA, Roquinaldo. História sobre o infame
negócio de africanos da África Oriental e Ocidental, com todas as ocorrências desde 1831 a 1853. Estudos Afro-
Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 28, out. 1995, p. 219-229. PESSOA, Thiago Campos. A “delação alcoforado” e o comércio
ilegal de africanos: notas de pesquisa. In: OSÓRIO, Helen; XAVIER, Regina. Do tráfico ao pós-abolição: trabalho
compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2018b, p. 165-206.
10
GOULART, Maurício. Escravidão Africana no Brasil: Das Origens a Extinção do tráfico. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1949. BETHELL, Leslie. Op.Cit.
11
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos
Séculos XVII ao XIX. Salvador: Corrupio, 2002. CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico de africanos para o Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
12
TAVARES, Luis Henrique Dias. Comércio Proibido de Escravos. São Paulo: Ática, 1988. FERREIRA, Roquinaldo.
Dos Sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830-1860. Luanda: Editora
Kilombelombe, 2012.
13
RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio. Propostas e Experiências no Final do Tráfico de Africanos para o Brasil
(1800-1850). São Paulo: Ed. UNICAMP / CECULT, 2000. PARRON, Tâmis. Op.Cit.
14
MAMIGONIAM, Beatriz. Op.Cit. RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: Escravos, Marinheiros e Intermediários
do Tráfico Negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

5
Apesar do amplo avanço no campo, os desembarques na clandestinidade aparecem na
historiografia, de forma recorrente, como episódios fragmentados, realizados de maneira
desarticulada nas praias desertas do litoral brasileiro. Entretanto, os estudos que analisam o outro
lado do Atlântico evidenciam exatamente o contrário: uma complexa rede logística e econômica
montada a fim de viabilizar os negócios negreiros na clandestinidade.15 Assim, se a repressão
empreendida pelo abolicionismo inglês e a própria extinção do tráfico decretada por Portugal, em
1836, de um lado desarticularam as estruturas traficantes antes estabelecidas, por outro provocaram
a dispersão dos embarques para zonas mais afastadas, supostamente imunes às pressões inglesas.
O processo de desarticulação e dispersão do tráfico na África encontrou correspondente na
margem brasileira do Atlântico. Após aprovação da lei de 1831 as antigas estruturas portuárias de
desembarque, acomodação e distribuição dos africanos recém-chegados foram desmontadas ao
longo daqueles anos. Entretanto, antes mesmo da reabertura do tráfico em escala nacional, no final
de 1830, a logística de desembarque, quarentena e redistribuição dos novos africanos foram refeitas
em outras bases e lugares, tendo à frente novos agentes, diferentes daqueles que empreenderam,
financiavam e seguravam os empreendimentos negreiros entre o final do século XVIII e as três
primeiras décadas do século seguinte.16
Essa renovação estrutural do comércio atlântico de africanos representou mudanças também
em relação aos negociantes que faziam funcionar as redes atlânticas. Comparando os grandes
traficantes atuantes entre o Rio de Janeiro e a costa da África entre 1811 e 183017, com as
referências daqueles envolvidos no tráfico após 1831, somente José Bernardino de Sá já figurava
ativamente nos negócios negreiros antes de 183018. Assim, parece patente que durante a
clandestinidade houve um amplo processo de reestruturação e renovação das redes dos negreiros,
possivelmente atrelada à maior proximidade entre traficantes e fazendeiros, marcando um novo

15
FERREIRA, Roquinaldo. Op.Cit. CAPELA, José. Conde de Ferreira & C.a. Traficantes de Escravos. Lisboa: Edições
Afrontamento, 2012.
16
CARVALHO, Marcus J.M de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos depois de 1831.
Revista de História, São Paulo, n. 167, p. 223-260, jul./dez. 2012.
MATTOS, Hebe (Org.). Diáspora negra e lugares de memória: a história oculta das propriedades voltadas para o
tráfico clandestino de escravos no Brasil imperial. Niterói: EDUFF, 2013.
17
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.-254-256
18
FERREIRA, Roquinaldo. Op.Cit.

6
padrão das relações de comércio no Atlântico. No entanto, ainda hoje, há um grande
desconhecimento a respeito dos negociantes que atuaram na ilegalidade, a despeito de há décadas
tal lacuna ser evidenciada.19 Quando citados, aparecem quase sempre desvinculados de uma
estrutura operacional organizada para efetivação do empreendimento negreiro. Não custa lembrar
que foram essas estruturas e esses sujeitos que possibilitaram a redução de homens e mulheres
juridicamente livres à escravidão ilegal no Brasil.
Nesse sentido, em consonância com nossos trabalhos, defendemos a hipótese de que
comendadores, fazendeiros e barões do café foram os sujeitos que viabilizaram a reabertura do
tráfico e a revitalização da escravidão no Brasil. Procuraremos encaminhar o argumento de que
esses senhores negreiros atuaram diretamente no processo de reestruturação do tráfico de africanos
no oitocentos. Ao erguerem seus complexos agrários tiveram por base a reabertura do comércio
negreiro e sua estabilização na década de 1840. Portanto, as maiores fortunas imperiais, assim como
a própria receita do Estado imperial, estiveram indelevelmente atreladas à reabertura e manutenção
do comércio negreiro na clandestinidade.
Embora conheçamos melhor o período posterior à segunda lei abolicionista, de 1850,
continuamos sem saber sobre a relação entre os traficantes, suas redes de negócio, e a logística
edificada no litoral brasileiro durante o final dos anos de 1830 e toda a década seguinte. No projeto
a ser desenvolvido propomos a ampliação do levantamento de dados em arquivos nacionais e
estrangeiros a fim de estreitar aquelas lacunas.
Nessa perspectiva, serão mapeados os principais complexos de fazendas espraiados até o
mar, do litoral norte de São Paulo ao sul do Espírito Santo. Partimos da análise do complexo da
família Breves, formado por quase quarenta fazendas integradas entre o litoral de Mangaratiba e
Angra dos Reis20, e das propriedades de André Gonçalves da Graça e Joaquim Thomaz de Faria,
estabelecidas ao longo da costa norte fluminense, como modelo.21
Ampliaremos o recorte para investigar a atuação de outras agências diretivas do tráfico
ilegal, que se fizeram do litoral do sudeste aos barracões da costa africana, como no caso de José

19
FERREIRA, Roquinaldo. Op.Cit.; RODRIGUES, Jaime. Op.Cit.; MAMIGONIAM, Beatriz. Op.Cit.; MATTOS,
Hebe. Op.Cit.
20
PESSOA, Thiago Campos (2015; 2018a; 2018b; 2018c);
21
PEREIRA, Walter Luiz Carneiro de Mattos (2011; 2018; 2019)

7
Bernardino de Sá, um dos maiores negreiros no Atlântico escravista e fazendeiro no litoral norte de
São Paulo. Cruzaremos informes sobre os agentes do tráfico ilegal nos mares do sudeste brasileiro
às territorialidades de suas atuações, visando construir um mapeamento detalhado dos principais
complexos de fazendas atrelados ao comércio negreiro.
A partir daí, priorizaremos documentos de natureza política, especialmente àqueles
produzidos no contexto da repressão do tráfico atlântico de africanos pelas autoridades nacionais e
estrangeiras. Em um primeiro plano analisaremos a documentação produzida no âmbito local,
produzida pelas autoridades litorâneas locais em correspondência com as presidências das
províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo sobre as ocorrências dos negócios ilícitos
no tráfico. No sentido reverso, acompanharemos as ações da Secretaria de Polícia das províncias; da
Auditoria Geral da Marinha; e do Ministério dos Negócios da Justiça, acerca das ações de repressão
aos negócios do tráfico no mesmo litoral. Tendo em conta a dimensão da documentação,
recortaremos especialmente as informações referentes aos espaços de recepção de africanos na
clandestinidade, e, quando possível, as redes de negócio do tráfico atlântico de escravos,
enfatizando, especialmente, as atividades do comércio negreiro agenciadas por comendadores e
barões do Império.
Como durante toda a década de 1840 o Estado brasileiro produziu, intencionalmente, um
silêncio tácito sobre o comércio de africanos, uma importante saída metodológica será recorrer à
documentação produzida pela repressão inglesa. Nesse sentido investiremos na coleta de dados no
fundo Foreign Office, Slave Trade Departament /UK, em parte digitalizados pelo Arquivo Nacional
britânico. Devido à dimensão do acervo, concentraremos a análise na documentação que expressa a
repressão inglesa entre o litoral paulista e capixaba e suas conexões com a costa da África.
Em relação aos Souza Breves, donos de um dos maiores complexos escravistas no Império,
Thiago Pessoa identificou, inclusive, o agente daquela família na África. Segundo Joaquim de Paula
Guedes Alcoforado, traficante redimido a serviço da legação inglesa na Corte e do Ministério da
Justiça do Império do Brasil, Joaquim Henrique Ulrich era quem articulava as negociações
negreiras dos irmãos José e Joaquim Breves na costa africana. 22 As relações de Ulrich com a África
foram exploradas recentemente por Pessoa, por meio da documentação do Governo Geral de

22
PESSOA, Thiago Campos. Op.Cit. (2018b)

8
Angola pertencente ao Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.23 Da mesma forma, Walter
Pereira identificou a menção ao nome de André Gonçalves da Graça pelo ministro inglês James
Hudson, no Rio de Janeiro, como um dos principais envolvidos no tráfico ilegal ao norte da
província do Rio de Janeiro. Acreditamos que a análise da documentação internacional, sobretudo a
inglesa, permitirá a ampliação e o aprofundamento das constatações feitas por Alcoforado e por
Hudson.
Por outro lado, é patente na historiografia o protagonismo de portugueses nos negócios da
ilegalidade, a exemplo de André Gonçalves da Graça e José Bernardino de Sá. Graça, por ter sido
marinheiro, empreendeu viagens à costa da África, atreladas aos negócios do tráfico. José
Bernardino de Sá, manteve na costa angolana barracões montados para os negócios negreiros,
marcando presença ativa em Lisboa, sendo, inclusive, nobilitado com os títulos de Barão, no início
da década de 1850, e de Visconde, pouco antes de morrer, em 1855. Será necessário, portanto,
empreender investigações sobre negócios mantidos por esses agentes em Portugal e na costa da
África, reestabelecendo sua dimensão atlântica.
A análise prevista será a base para a reescrita de duas histórias imbricadas, mas
equivocadamente apartadas pela historiografia: a ampliação do tráfico de africanos sob o signo da
ilegalidade e a construção do complexo negreiro fluminense. A problematização desse processo
histórico certamente produzirá uma nova agenda de estudos com suas demandas e compromissos
para os especialistas na história da escravidão, da política e da economia brasileira do século XIX.

Aristocracia negreira: uma ideia em construção.

Fazendeiros negreiros atuaram na viabilização, na reabertura do tráfico e na revitalização da


escravidão no Brasil. Reforçamos o argumento de que esses senhores agenciaram diretamente o
processo de reestruturação do tráfico de africanos nos oitocentos. Ao erguerem seus complexos
agrários tiveram por base a reabertura do comércio negreiro e sua estabilização na década de 1840.
A construção da questão nesses termos garante uma abordagem inovadora de dois objetos
erroneamente apartados da historiografia: a formação do amplo complexo cafeeiro do Vale do

23
Idem, 2018c

9
Paraíba, cuja extensão paralela ao arco litorâneo da província do Rio de Janeiro, estende-se do norte
de São Paulo ao sul do Espírito Santo, e o comércio negreiro em sua fase clandestina.24
Algumas pesquisas já realizadas25 fazem ver que os espaços montados para a prática do
crime de redução de indivíduos juridicamente livres ao cativeiro envolviam redes transatlânticas de
negócios e poder. Da mesma forma, esses lugares serviam de suporte aos desembarques, à
recuperação e à redistribuição de africanos destinados à lavoura açucareira e aos cafezais que
cresciam nas bacias do Paraíba e do Itapemirim-Itabapoana. Note-se que não estamos nos referindo
a simples portos de recepção de tumbeiros. A descrição dos bens dos comendadores Graça e Faria,
dos irmãos Breves e do barão/visconde de Vila Nova do Minho revelam amplas propriedades
costeiras, que poderíamos chamar de “complexos negreiros”: ilhas, praias, barracões, trapiches,
brigues e iates compunham patrimônios oceânicos postos a serviço da finalização dos
empreendimentos negreiros. Ao longo do litoral brasileiro, outros complexos semelhantes foram
montados com o intuito de reduzir indivíduos livres à escravidão e remontar a estrutura de
mercados negreiros, semelhante ao Valongo, fechado na Corte como decorrência da lei de 07 de
Novembro de 1831. Sobre eles, sabemos muito pouco. Remontá-los em sua estrutura, funções e
agências dos que os faziam funcionar é o primeiro passo para rompermos com o compromisso de
silêncio alinhavado pelo Estado imperial brasileiro.
Vale destacar que devemos navegar em águas profundas para trazer de lá sujeitos ancorados
na ilegalidade. Ilegalidade expressa pela diáspora forçada de milhares de africanos entregues à
escravidão no Império do Brasil. Traficantes nobilitados pela monarquia brasileira, a despeito de
afrontarem as leis nacionais. Reconhecidos por negociarem a “carne humana”, como denunciava o
jornal O Philantropo, expoente na imprensa abolicionista dos anos de 1850. Consolidava-se, assim,
uma “aristocracia negreira”. Comendadores e barões fizeram do crime profissão no Império do
Brasil e, com esse ofício, amealharam fortunas colossais. Muitos, em seu descanso eterno,
ocultaram-se por trás do compromisso do Estado, materializado nas palavras do então Ministro
Eusébio de Queiroz, em não “resolver o passado”. Marca indelével da nossa história, agentes,
lugares e a cumplicidade do país recém fundado e de sua sociedade com negócios negreiros foram
24
PESSOA, Thiago Campos. Op.Cit. (2015), p.90-140.
25
FERREIRA, Roquinaldo. Op.Cit; MATTOS, Hebe. Op.Cit; CARVALHO, Marcus de. Op.Cit.; PEREIRA, Walter
Luiz Carneiro de Mattos. Op.Cit; PESSOA, Thiago Campos. Op.Cit.

10
relegados intencionalmente ao esquecimento porque atentavam contra seus próprios estatutos
jurídicos, contra a própria moralidade do mundo dito civilizado em meados do oitocentos,
evidenciando, em última instância, a natureza da formação nacional e do mundo do trabalho em
redefinição no Brasil. Nesse sofisticado arranjo, o Estado brasileiro cobriu com o véu sedoso a
aristocracia reinventada nos trópicos, livrando-a da adjetivação negreira, incensada pelo manto
imperial. Confrontar o passado que se fez calar é desafio aberto e inconcluso, que procuramos
encaminhar nesse texto que se encerra como agenda para o futuro.

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