Alienindi Os Portais Dos Mundos Ebook

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA

REITOR
Miguel Sanches Neto

VICE-REITOR
Everson Augusto Krum

PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS CULTURAIS


Edina Schimanski

CONSELHO EDITORIAL COLEÇÃO RETOMADAS


Aline Ngrenhtabare Lopes Kayapó
Casé Angatu
Eliane Potiguara
Felipe Milanez
Florencio Rekayg Fernandes
Geni Nuñez
Gersem Baniwa
Márcia Wayna Kambeka
Taquari Pataxó
Felipe Coelho Iaru Yê Takariju

ALIENINDI∞∆
Os portais dos mundos
Copyright © by Felipe Coelho

Equipe editorial
Edição Letícia Fraga e Ligia Paula Couto
Revisão Eliana Souza Pinto
Ilustrações Felipe Coelho Iaru Yê Takariju
Capa Álvaro Franco da Fonseca Junior sobre
desenho de Eliana Souza Pinto
Projeto Gráfico e Diagramação Andressa Marcondes

Takariju, Felipe Coelho Iaru Yê.


T136a Alienindi: Os portais do mundo/ Felipe Coelho Iaru Yê
Takariju. Ponta Grossa: UEPG-PROEX, 2021.
194 p; il.

ISBN: 978-65-86967-43-2
DOI: 10.5212/65-86967-43-2

1. Povos indígenas. 2. Cosmologia indígena. 3.Etnocídio.


4. Colonialismo. 5. Racismo. I. Takariju, Felipe Coelho Iaru
Yê. II. T. III. Série.

CDD: 306.089

Ficha catalográfica elaborada por Rodrigo Pallú Martins – CRB 9/2034/O

Depósito legal na Biblioteca Nacional

Apoio- Editora UEPG

2021
Sumário

AGRADECIMENTOS....................................................................................................................................8

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................10

INTUIÇÃO para A PRIMEIRA PARTE


Este é o Brasil, o país dos equívocos........................................ 12

CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ


Descobrimento não, invasão das terras indígenas.................. 15

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES”


“Desaparecimento dos indígenas no Siri-ará”........................ 28

CAPÍTULO 3 - PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA “OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E


NARRATIVAS DE RETOMADAS
Um breve palavreado..............................................................48

CAPÍTULO 4 - A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO TECNOLOGIA DE MORTE


História (artificial) “oficial”....................................................59

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL


Estado-mercado: modelo de controle oficial........................... 69
INTUIÇÃO PARA A SEGUNDA PARTE
Nossa linguagem é energia, somos memória, sonho e ação ��� 82

CAPÍTULO 6 - ESPAÇO-TEMPO DIFERENCIAL INDÍGENA


O ritmo da terra.......................................................................85

CAPÍTULO 7 - UM BREVE PASSEIO PELA COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA”


Ciência “moderna”, a ciência da dualidade............................ 94

CAPÍTULO 8 - A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO” VERSUS O RITMO DA TERRA


O ritmo da destruição............................................................ 105

CAPÍTULO 9 - PERCEPÇÃO TRANSCOSMOLÓGICA


O campo afetivo..................................................................... 115

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS
Conexões ancestrais.............................................................. 122

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES


Retomada conceitual............................................................. 136

CAPÍTULO 12 -Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆


Solstício................................................................................. 159

OS PORTÕES DO MUNDO
(Narrativa da retomada de mundo dos Takarijú)................. 187

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................190
Dedico este livro ao planeta,
aos que amam
e a todos os povos indígenas originários da Terra.
AGRADECIMENTOS

Ao meu povo Takariju, em especial às mulheres Takariju.


A todos os indígenas que tombaram na luta contra a invasão do
“mundo moderno”.
A todas as mulheres da minha família, que me ensinaram o amor,
a olhar pro céu, a imaginar e a caminhar leve com os pés firmes no nosso
chão. Sem vocês eu não estaria aqui. Agradeço por lutarem antes e agora
junto comigo.
À Maria Balbino da Conceição, minha Tataravó, que trouxe toda a
força encantada do nosso povo.
À Maria Vieira de Sousa, minha Bisavó, que me abriu os portões dos
mundos Takariju.
À Maria Aldeci de Sousa, minha tia-avó, que me criou com muito amor.
À Ana Célia de Sousa, minha mãe, que me criou com muito carinho
e dedicação.
À Regina Telma Coelho, minha mãe, que me carregou dentro de si
e que me abriu os portões da vida.
Ao meu pai, Gonçalo de Oliveira Brito. Sua união com minha mãe
me trouxe a vida.
Ao meu tio-avô, Luiz Gonzaga de Sousa, que sempre apostou em
mim e me ajudou.
A todos os professores e professoras que me atravessaram e me
deram um pouco de seus mundos, em especial, às professoras Cristiane
Marinho, Lígia Paula Couto, Ada Kroef e Giselle Gallicchio.
À Claudiana Nogueira de Alencar, minha orientadora na graduação.
Mais do que uma querida amiga, é uma aliada de vida que sempre acre-
ditou em mim.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos |8


À Letícia Fraga, querida amiga e aliada de luta, orientadora e pessoa
de enorme coração que sempre acreditou em mim, e ao Álvaro Fonseca,
parente, aliado e amigo de vida, que apostou em mim e sempre se faz
presente, aconselhando e ajudando. Sem vocês isso não seria possível.  
Ao CEAI, ao PRAGMACULT e a todos os seus membros, que são ami-
gos queridos.
À UEPG, que cumprindo com sua responsabilidade social em relação
aos povos originários, financiou essa obra.
À Eliana Souza Pinto, que é minha companheira na vida, que me
ajuda, escuta, acolhe e apoia, e que está sempre comigo. Sem ela esse tra-
balho não seria possível. Agradeço seu amor, companheirismo e carinho.
A todos os meus amigos de vida.
A todos os indígenas em retomada.
A todos os encantados que nos protegem e guiam.

Agradecimentos |9
APRESENTAÇÃO

Não somos índios, não somos humanos e não somos animais. Tudo
o que a ciência ocidental afirma sobre nossos povos não é verdade. Vocês
não nos conhecem. É sob essa perspectiva, potencialmente polêmica para
alguns, que o Alienindi ganha vida e força de ação. Uma obra movida por
intuição e ousadia, que, a partir das visões do autor, de suas vivências
enquanto Takarijú da Serra Grande, pode e pretende ajudar outros pa-
rentes no processo de Retomada. É um convite ao reencontro com nossas
origens, ao pensamento crítico acerca dos conceitos coloniais que seguem
nos violentando, um convite para pensar as diferenças que formam nossos
povos e relação com a Terra. Uma obra que abre portais e oportuniza a
criação e percepção de nossas próprias conexões e perspectivas de mundo.
O livro traz considerações importantes sobre as diferenças, sobretu-
do no que diz respeito à questão conceitual. O pensamento colonial criou
polos e valora no extremo negativo tudo o que difere das suas estruturas. É
preciso que lutemos pelo nosso direito de existir em nossas diferenças, sem
que sejamos exotizados como fetish exploratório das ciências modernas.
Nossas formas de sentir e pensar foram subestimadas por muito tempo,
silenciadas como nossas línguas e narrativas, que precisaram encontrar
formas de sobreviver ao esmagamento da narrativa hegemônica colonial.
Já fomos animalizados num sistema de referencial antropocêntrico
em que o não-humano (leia-se não-branco) é sempre descartável; fomos
“humanizados” neste mesmo sistema que nos transforma em escravos
igualmente sem valor. Somos identificados de diversas maneiras através
dos tempos, mas permanente e ostensivamente como inimigos, seres que
não geram identificação e, portanto, não despertam empatia, ou se colocam
como barreira ao progresso de um sistema que desrespeita, objetifica e
explora todas as outras formas de vida. Somos, ao final, indefiníveis pelos
parâmetros do mundo moderno, pois pertencemos a outros mundos, mas
coabitamos o mesmo planeta.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 10


Nossas lutas são diversas, nossas vivências de povos e narrativas tam-
bém. A colonização não acabou e ainda avança, atuando de formas distintas
contra nossos povos, porém com mesmo propósito. O plano conceitual é
palco de guerra, onde nossas cosmologias e modos de vida são atacados,
para que sejamos anulados por uma igualdade que nos descaracteriza
e desliga de nossas raízes ancestrais a ponto de nos tornarmos vazios a
sermos preenchidos pelas necessidades artificiais, pelos desejos que não
são nossos, práticas que não são coerentes com a vida, pelo sacrifício do
presente renunciado por um futuro que nunca chega.
O reconhecimento de todas essas diferenças implica na rejeição
do ideal purista que nos impuseram da identidade de índio e do estigma
do falso índio. Na aceitação de perspectivas não dualistas, encontramos
potências de luta por uma existência harmônica com o planeta. Por isso,
este livro é mais do que necessário, é um chamado à união dos povos e
parentes através das palavras intuitivas do Felipe Coelho Iaru Yê Takarijue
do sopro dos nossos encantados.

Eliana Souza Pinto (Tremembé).

Apresentação | 11
INTUIÇÃO para A PRIMEIRA PARTE

Este é o Brasil, o país dos equívocos

Este é o Brasil. A história desse Estado-Mercado-nação é uma história


oficial de equívocos. Equivocaram-se há 520 anos dizendo que nos “des-
cobriram”. Erraram quando seus grandes sábios discutiam se tínhamos
alma, raciocínio e sentimento, ou se éramos animais. Erraram em chamar
de “progresso”, a morte, a ação de humilhar, de perseguir, conquistar,
submeter. Erraram quando trouxeram a palavra de Deus para nos matar,
com a desculpa de “evangelizar”. E erram ainda hoje, quando a este mundo
chamam de “moderno”.
Erram quando dizem que nossas narrativas orais são lendas, que
nossa ancestralidade é mito, que nossa ciência é mística, que nossas cren-
ças são superstições, que nossos jogos, danças e vestimentas são folclore,
que nossos governos são antidemocráticos, que nossa língua é travada,
dialeto, que nosso amor é pecado e baixeza, que nosso andar é arrastar-
-se e nosso físico é feio, que somos os negros da terra, que nossa maneira
é incompreensível.
Para eles, dar-nos um lugar é mostrar-nos a sepultura, a prisão, o
esquecimento. No mundo Brasil, não cabemos, a menos que sejamos mudos,
quietos, mortos. Se eles perseguem, encarceram e matam é lei. Se nós resis-
timos, é crime. Se eles mandam, é paz. Se nós resistimos, é guerra. Se eles
falam, é preciso responder. Se nós resistimos, é preciso fechar os ouvidos.
Mesmo diante de tudo isso, de todos esses erros, continuamos aqui,
na Terra de nossos ancestrais (PINDORAMA), brotando dela, de sua vida
e de sua força. Vocês nunca vão nos destruir. Enquanto houver Terra,
continuaremos a brotar. Somos povos da esperança, somos os povos que
sonham, aqueles que não se rendem, os filhos da Terra.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 12


“SOMOS OS DE ONTEM, MAS SOMOS NOVOS”. MIL GERAÇÕES
VIVEM EM MIM.
Somos a retomada de Pindorama.
Indígenas da Terra, uni-vos!

Coelho Takarijú.

Este é o Brasil, o país dos equívocos | 13


ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 14
CAPÍTULO 1
O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS
TUDO PERMANECERÁ1

Descobrimento não, invasão das terras indígenas

A disparidade fundiária no Brasil é a colheita maldita, fruto da in-


vasão dos europeus e de todos os processos vigentes oriundos das épocas
colonial, imperial e republicana até os dias de hoje. É forjada em processos
de violentos avanços contra nossos povos originários, violência legitimada
nas leis, forjando a posse das terras, criando uma verticalidade a partir
da propriedade, impondo a nossos povos outras organizações e relações
com a Terra. A partir disso, cria-se toda uma tensão de guerra cosmopo-
lítica que envolve a questão fundiária relacionada aos povos indígenas e
à demarcação de suas terras.
Os problemas fundiários no Brasil são acontecimentos oriundos
da colonização e de tudo que ela traz, ou seja, a fundação e formação do
Brasil é o próprio problema no que se refere à posse e luta pelas terras.
Antes disso não se fazia guerra pela Terra. Por essa razão, a percepção da
Terra enquanto propriedade e lucro é o principal problema da formação
fundiária do país. Essa percepção tornada sentimento “naturaliza-se”
como sociabilidade e isso vai mudando a relação não só com a Terra, mas
com a vida. O sequestro e encarceramento da Terra em favorecimento do
desenvolvimento territorial e econômico do Brasil atinge diretamente o
modo de vida dos povos indígenas, que são os mais violentados quando
se trata da questão fundiária no país.
1
“Suaçuamussará”, profecia Tremembé.

CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 15


Quando os europeus invadiram as terras indígenas no início da
colonização, os povos originários foram perdendo autonomia sobre as
terras que habitavam e sobre suas formas de vida. Então se iniciou um
dos processos que formou e forma o Brasil até hoje do ponto de vista
fundiário, a grilagem. A invasão das terras indígenas foi oficializada por
grandes processos de roubo, que tinham todo um aparato “legal” de falsi-
ficação das documentações do território, feito pelos portugueses e outros
povos europeus, amparado em suas instituições burocráticas. Esse foi o
início de um dos processos de sequestro e encarceramento das terras, que
destituiu os povos originários do seu livre acesso a elas, transformando
terras livres em terras cativas, controladas pela vontade do colonizador,
e os povos indígenas, filhos delas, em invasores. Com o roubo das terras
e a transformação das terras livres em “terras da coroa”, os portugueses
e os demais europeus tornaram-se donos “legais” do Brasil, mas filhos
ilegítimos da Terra.
O Brasil, como nação em sua formação fundiária e ideológica, é fruto
de um grande projeto físico e metafísico de roubo, assassinato, genocídio,
estupro, epistemicídio e grilagem. A megalomania dos europeus era tamanha
que, antes da chegada dos invasores no que hoje são terras brasileiras, eles
já se consideravam donos dessas terras, a partir do tratado de Tordesilhas.
Portanto, quando iniciada a colonização in loco, os primeiros invasores já
chegam com o pensamento de que essas terras eram suas propriedades.
Com as capitanias hereditárias2 e as sesmarias3, é implantado o embrião
da propriedade privada no Brasil.
A transformação das terras livres em propriedade da coroa, ou seja,
em terra apreendida, teve início através das concessões de Sesmarias, das
trocas e legitimações de posses pela coroa que aconteceram no decorrer do
período colonial do país. Porém, outra “transformação” junto ao avanço
territorial começa a ocorrer nesse processo, que é a transformação cosmo-
lógica nas formas de viver dos povos originários. Essa transformação de
2
As Capitanias hereditárias foram pensadas a partir das expedições de invasão de Martim Afonso
Sousa, em 1530, mas só foram verdadeiramente implantadas pela coroa portuguesa a partir de 1534.
O sistema de capitanias hederitárias consistia em dividir o território invadido em pedaços de terra,
cedidos a nobres de confiança da coroa.
3
O nome sesmaria provém de sesmar, dividir. No Brasil, o sistema de sesmarias foi implantado para
garantir a posse do território, já dividido em capitanias hereditárias. O sistema de sesmarias durou
de 1534 até 1822, quando foi abolido.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 16


âmbito cosmológico atinge os espaços-tempo dimensionais da vida livre
dos povos originários com a Terra. O campo afetivo4 gravitacional da
Terra de cada povo mudou com a chegada do vírus destruidor do invasor
europeu, uma mudança que atingiu a afinidade, a percepção e a relação
com a Terra.
A mudança relacional de cada povo em sentir a Terra e da Terra
sentir o povo também mudou, pois a Terra passou a ser escravizada por
um modo de exploração/ produção/ pensamento trazido com e pelos
invasores. Essa mudança traz a guerra cosmológica que inclui a guerra
pela Terra. Desse modo, para nossos povos originários, estamos em guerra
desde 1500, lutando junto com a Terra e os seres que a ocupam por sua
liberdade e para não sermos extintos.
As dinâmicas dos espaços-tempo nas frequências dos modos de vida
dos povos originários foram abaladas e, a partir de então, passaram a existir
outras frequências interagindo com a Terra, convivendo com os povos,
uma frequência de existência que não sente o espaço-tempo junto com a
natureza como cúmplice, mas, sim, como objeto de exploração e lucro. O
tempo e o espaço que os invasores utilizam para controlar os movimentos
históricos é o tempo kronos, cronológico, linear, um tempo-espaço contado,
demarcado e encarnado como universal, que foi implantado e imposto pe-
los invasores aos indígenas na figura dos aldeamentos e da capela (igreja).
As missões eram demarcação e controle do território, cercando os
indígenas num espaço menor, tirando deles a liberdade de deslocamen-
to pelas terras, impondo limites aos seus corpos e às suas dimensões de
pensar o espaço e o tempo, mudando suas dinâmicas de relação com a
natureza. Se antes o indígena tinha a Terra livre para ir aonde quisesse,
agora só poderia ficar no cercado do território da missão, subordinado à
figura do jesuíta e do rei; se antes ele se baseava no tempo observando e
sentindo a Terra, hoje ele conta as horas a partir do sino da igreja. Assim,
uma experiência de referencial artificial de espaço-tempo implantada pelos
invasores começa a ganhar forma e vai violentando os povos originários.

4
Entendo campo afetivo como algo comparado à teoria quântica de campos, em que os campos das
coisas, a matéria, a energia, a frequência, tudo influencia a vida e em como viver. Para conhecer mais
sobre o tema, sugerimos a leitura de “O Universo Elegante”, de Brian Greene (Editora Companhia
das Letras).

CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 17


Controlar a sociabilidade a partir do controle do espaço-tempo é uma
ferramenta da colonização, isso vai minando a singularidade dos povos
aldeados enquanto povos originários. No regime de funcionamento das
missões jesuíticas dos aldeamentos, conviviam juntos diferentes povos,
obrigatoriamente, visando à mestiçagem, à mistura e descaracterização
da língua e dos costumes singulares de cada povo para produzir uma única
massa de identificação.
Transformada a postura de relação com a Terra, transforma-se a
relação de vida com ela. A Terra usada como propriedade, ou seja, a Terra
enquanto território, com título, é apartada daquele que a ocupa, causando
um estranhamento entre ela e quem a tem como dono. O “eu” e a Terra
não são um, o “eu” é dono da Terra. Aquele que quer ser “dono” da Terra
é alheio a ela, não a sente como vida, só a enxerga como meio de explo-
ração e produção.
Com a transformação da vida em propriedade, transforma-se também
a forma de se relacionar com ela. A relação de cumplicidade, respeito e
vida com a Terra, dá lugar a um modo de produzir, à morte e à destruição.
O caráter exploratório de destruição da Terra e da vida começa com as
invasões europeias desse período e vai se estendendo por todo o planeta
de maneira mais intensa e voraz até os dias de hoje, se atualizando cada
dia mais no capitalismo, destruindo e devorando a Terra. Os povos indí-
genas desde esse primeiro período estão lutando e resistindo contra essa
investida de destruição do planeta. Esse é o fator principal dos conflitos
cosmológicos entre os povos indígenas e os Estados-Mercado-nação. De
um lado os que se veem e se sentem filhos da Terra, pertencentes a ela
e, do outro, aqueles que se acham donos da Terra e por isso se acham no
“direito” de escravizá-la e explorá-la de maneira predatória.
O etnocídio dos povos indígenas andou/anda lado a lado com o
processo de alienação das terras e com a mudança de relação com a Terra.
Os modos de vida indígenas foram confrontados pelo modo de produção
escravista colonial, pela monocultura e pela alienação das terras. O modo
de produção implantado pelos invasores não tem características apenas
econômicas, mas principalmente cosmológicas, pois prevê outra relação
com a Terra, esvaziando-a como ser vivo para fazer funcionar um modo
de explorar, devorar tudo da Terra como um objeto apenas em nome do

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 18


lucro. Lucrar não diz respeito somente ao dinheiro, mas também ao modo
de pensamento individualista, personalista, consumista, egocêntrico,
que se espalha pelo cotidiano e vai moldando-o, tornando-se referen-
cial de relações oficiais, de uma socialização artificial implantada pelo
Estado-Mercado-nação.
O modo de produção-exploração também arrasta consigo um modo
de sociabilidade, um modo de relação com a vida, apresentando-se como
único modo possível de relação com a Terra e com a vida. O modo de
produção capitalista cria uma temporalidade-espacial própria, artificial,
gerando, a partir disso, sua historicidade própria. Tempo e espaço são pro-
duzidos também, tudo é produzido artificialmente e pode ser consumido,
“otimizado”. No Estado-Mercado, sempre se está produzindo em demasia,
o tempo é o da produção. Todo dia é produzido um “futuro novo” e todo
dia é descartado um “passado”. O produto novo é o desejado pela psique do
consumidor. O consumidor-cidadão “de bem” é o “sujeito” de encarnação
dessa historicidade, espacialidade e temporalidade do Estado-Mercado.
O projeto colonizador é um projeto de criação de um mundo artificial
e ampliação desse mundo a único mundo possível, ele vai consumindo
todas as outras formas de vida e transformando tudo no igual, igual a
ele, regendo as formas de vida, impondo sua violência de ação e avanço
tecnológico. As formas de vida que não aceitam essa imposição, criam
estratégias de luta e retomada contra as tecnologias da invasão colonial,
essa é a força dos nossos povos.

A invasão europeia no Ceará e seus desdobramentos no Brasil

O período Sesmarial estendeu-se até o século XIX e só terminou de


fato, quando surgiu outro regime de propriedade no Brasil com a chamada
Lei das Terras, de 18505. Contudo, qual o “legado” da formação fundiária
do Brasil para os povos originários? E como todo esse processo de guerra
pela Terra é ponto crucial para a emergência dos povos originários no

5
Em termos gerais, dispõe sobre as terras devolutas no Império e sobre as que eram possuídas por
titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais.

CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 19


Nordeste, a partir da década de 70, e no Ceará, a partir da década de 80
do século XX? Pensar sobre isso e sobre esses interesses nos faz perceber
que essa guerra não é e nunca foi apenas por território, mas, sobretudo,
é uma guerra cosmológica de extermínio dos modos de viver dos povos
originários, em nome de uma unidade social, epistemológica e cosmológica
chamada Brasil.
A implantação “perfeita” do modo de produção capitalista no Brasil
requer a exploração máxima da Terra para aumento do lucro. Entre o
Estado-Mercado e a concessão de exploração máxima das terras brasileiras
por mineradoras, hidrelétricas, empresários do ramo do turismo, agrone-
gócio etc, existem os povos indígenas, que vivem, sentem e se relacionam
com a Terra em outro ritmo, um ritmo que requer cumplicidade, uma
afinidade de percepção com todos os seres que vivem e se relacionam
com o planeta. Essas duas posturas de pensar a ocupação da Terra estão
em constantes conflitos, que expõem graves questões cosmopolíticas. A
Terra sendo devorada pelo capital altera a sua gravidade de vida e ação,
fazendo disso um significativo problema para os que vivem da Terra e no
planeta. Os povos indígenas são os povos de resistência da Terra contra o
modo de produção de morte capitalista.
Nessa guerra cosmológica contra nossos povos originários, foram
criadas algumas tecnologias de invasão, pensadas para irem destruindo
e apagando nossos povos na mesma medida que vão criando a “história
artificial” e impondo seus métodos de vida e sociabilidade, transformando
povos plurais em uma massa de população genérica. Essas tecnologias de
invasão implantadas pelos invasores foram demarcando o seu ritmo no
cotidiano, nas leis, no imaginário e na forma de sentir a vida, atingindo
as formas de resistência dos povos originários, mas não nos aniquilando
por completo, pois fomos nos adaptando e mudando, continuando a luta.
O Nordeste é um lugar de constante e violenta luta para os povos
indígenas, o local de primeira invasão, de maior permanência e de violento
ataque aos povos originários. A destruição dos modos de vida indígenas
no Nordeste teve maior ação entre a segunda metade do século XVII e a
primeira metade do século XVIII. A invasão começou pelo Nordeste, por
isso trouxe mais consequências danosas ao longo do tempo aos povos
originários desta região.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 20


As chamadas missões de aldeamentos religiosos, implantadas pela
Igreja em comunhão com a coroa, foram tecnologias de guerra utilizadas
pelos invasores europeus para controlar, cercar e limitar os povos originá-
rios, mudando a perspectiva, a postura de sentir a vida e o espaço-tempo
dos povos indígenas, substituindo pelo seu, que tem na propriedade e na
penitência da Igreja seus marcadores de orientação na vida.
Os aldeamentos missionários tinham em seus projetos de funcio-
namento três objetivos “principais”: misturar, amansar e criar mão-de-
-obra servil. “Misturar” povos diferentes, com intuito de enfraquecer
suas organizações singulares enquanto povos. Através da penitência e
religião, objetivavam “amansar” os indígenas, tornando-os tementes a
um deus, implantando o pecado como tecnologia de servidão, garantindo
que aqueles povos não iriam se rebelar, “civilizando-os”. Já misturados,
amansados e civilizados, os indígenas aprenderiam a trabalhar e a gostar
do trabalho como modelador de caráter, resultando em obediência e
combate à “vadiagem”, alcançando o objetivo de produzir mão-de-obra
escrava indígena para atender à demanda de produção e avanço colonial
em terras brasileiras.
Outro fator que contribuiu para caracterizar essa “mistura” e para
descaracterizar o indígena-índio, foi o decreto do diretório pombalino6 que
buscava integrar o indígena à colônia nos termos de “civilidade, cultura
e comércio”, ou seja, destruir a relação de povo que o indígena tinha com
seus parentes e a sua relação de cumplicidade e vida com a Terra, concre-
tizando o plano de transformar os “selvagens” em colonos, subordinados
à coroa portuguesa, civilizados, normatizados às leis. Assim, deixariam de
ser indígenas pertencentes a um povo singular, para se tornarem colonos
e, posteriormente, cidadãos pertencentes a um Estado-nação, processo
“natural” de colonização e de extermínio da pluralidade dos povos para
se adequar à “igualdade” perante as leis do Estado-Mercado.
Isso perdura até os dias atuais, pois a colonização não foi homogênea,
ela ainda acontece. O Estado brasileiro ainda tenta deslegitimar os povos
originários de diferentes maneiras, visando à escravização total da Terra

6
O chamado Período Pombalino, compreende os anos de1750 até 1777, quando o ministro de Estado
português, Marquês de Pombal, implantou inúmeras novas regras e leis no Brasil colônia. Uma dessas
leis foi a explusão dos jesuítas para alavancar a invasão das terras e a destruição dos povos indígenas.

CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 21


para a extração máxima de lucro, e quer a todo custo, desde 1.500, eliminar
os povos indígenas para se apoderar e lucrar com suas terras.
A partir do movimento da mistura e mestiçagem, o Estado-Mercado
quer impor que os povos originários estão aculturados, misturados, por-
tanto, não são mais indígenas e, sim, brasileiros; e se os indígenas são
“todos brasileiros”, as terras são de “todos” e todos são iguais perante
as leis da nação. No entanto, o Estado-Mercado-Nação é regido pelos
interesses do lucro e controlado por grandes empresários, banqueiros e
latifundiários, que querem as terras só para si; as terras não pertencem
à “nação”, mas a uma minoria egoísta que faz política desde a época da
colônia para se manter no poder e na posse da máquina bélica, legislativa,
burocrática, judiciária e executiva. Essa perspectiva de ocupação da Terra
que o Estado-Mercado traz em sua formação de subjetividade, coloca
nossos conhecimentos ancestrais como conhecimentos de nível inferior.
Torna-nos todos “iguais”, todos pobres em diferentes sentidos, e os que
não partilham do seu pensamento, como nós, indígenas, são designados
como primitivos, obsoletos.
O conceito de “Estado-nação” é abstrato e metafísico, só existe no
imaginário e na figura da bandeira e da representação, ele não existe de
fato, pois é governado por poucos. O sistema colonial de burocracia e be-
nefícios que só servem a esses senhores, vem manipulando o poder desde
1500. O sistema se atualiza, mas a ideia-esquema do “lucro para poucos e
miséria para muitos” continua vigente. A pobreza que o Estado-Mercado
compartilha é também uma pobreza de experiência com a Terra, com o
outro, uma sociedade do “eu” em que o relacionar-se com o outro é apenas
num sentido competitivo, comparativo e depreciativo.
Entendemos que todos que vivem neste planeta estão ligados à Terra,
sentimos isso através do peso da gravidade de cada povo e da relação que
eles compõem com a Terra. Os “homens modernos” não sentem mais essa
relação, ela foi substituída pela relação de sociabilidade da competição e
exploração do capital. Numa velocidade enorme, o capitalismo vai devo-
rando e mudando a paisagem do planeta, mastigando a Terra, destruindo
nossos parentes, rios, montanhas, animais, insetos, todos os povos origi-
nários que estão ligados a ela. Para nós, indígenas, os povos originários
da Terra são todos esses.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 22


Nós, povos originários, estamos com a Terra e a destruição dela
atinge diretamente nossos conhecimentos, pois nossa biblioteca “central”
é a Terra. Aprendemos com os parentes animais, rios, montanhas, vento,
chuva, sol e lua; compartilhamos a vida, tudo nos ensina, tudo faz parte
de nossa experiência coletiva e de nossa ciência ancestral. A experiência
coletiva vai compondo, movendo e criando a memória singular de cada
povo. A singularidade de cada povo é composta, atravessada, flui junto com
os saberes coletivos da Terra. Nossa singularidade é coletiva. É “Nossa”
Terra e não “Minha” terra. Essa é uma das diferenças cruciais entre as
cosmovisões dos Estados-Mercado e a indígena, que estão em guerra aqui
já faz 520 anos.

Siri-ará antes dos invasores: o que é ser filho da Terra?

Historiadores e pesquisadores “modernos” do começo do século XX


que escreveram algo sobre nossos povos7, consideraram a hipótese de que
não seríamos AUTOCTÓNES8, pois seríamos povos que migraram da América
Central, ou seja, seríamos povos ALÓCTONES9. A perspectiva exposta por
esses pensadores em seus trabalhos científicos mostra como eles nos veem
e mostra como criam conceitos para deslegitimar nossos povos da conexão
com a Terra, ao mesmo tempo que legitimam a colonização. Essa postura
em relação aos povos originários vem desde o início da guerra de invasão
em 1500, constantemente eles querem nos deslegitimar, dizer que não
somos indígenas da Terra, para legitimar o roubo das terras, seus conceitos
e a destruição de nossa relação com a vida. A ciência ocidental é usada
até hoje como tecnologia de invasão para fazer guerra aos nossos povos.
No Ceará, que não tinha esse nome e nem as fronteiras que tem
atualmente, nossos povos viviam livres, povoando todo o território e
se espalhando até por onde hoje são os estados do Piauí, Rio Grande do
7
Carlos Studart Filho, em Aborigenes do Ceará I e II, e Notas Históricas sobre os indígenas cearenses; Padre
Luiz Figueira, em Relação do Maranhão, 1608; Thomas Pompeu Sobrinho, em Tapuias do Nordeste;
dentre outros.
8
O que ou quem é natural do país ou da região que habita e descende das raças que ali sempre
viveram; aborígene; indígena.
9
Aquele que não é originário da região onde habita.

CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 23


Norte, Pernambuco, Maranhão e Paraíba. As nossas populações tinham
suas próprias organizações de vida. Existiam migrações sazonais, festas,
guerras, alianças, mas nunca com o objetivo de extermínio de um povo
ao outro. Nossos povos sabem que as diferenças que existem entre nós
é o que nos torna fortes, a diferença é o que faz o planeta equilibrado. O
planeta é diferente e é na diferença que vivemos bem. O argumento da
migração é também utilizado pelos invasores para nos expulsar das terras
e escravizá-las. As migrações mudaram com a chegada dos invasores. Eles
trouxeram outro tipo de movimento, uma guerra de extermínio, uma guerra
que declara morte à diferença. Neste ponto, começa toda uma mudança
relacional de campo gravitacional da vida: não só nossos povos vão ser
alvo de extermínio, mas a Terra também.
As perspectivas de vida dos nossos povos enquanto singularidades
são de diferença. Na singularidade de povo de cada experiência coletiva,
acontece e vive um céu. Céus emaranhados, compartilhados com os outros
diferentes povos em cumplicidade com a Terra. Nossos povos se encontram
e se emaranham numa rede de sentimento com a Terra. A Terra é campo
de cumplicidade, nossa morada. A partir da invasão europeia, esse campo
sofre uma mudança considerável, a guerra de extermínio faz mudar as
relações. Os invasores europeus só veem e sentem a terra como fonte de
exploração e lucro, não como cúmplice.
As perspectivas diferenciais de relação com a vida entre povos origi-
nários e invasores europeus entram em choque permanente e mostram-se
na forma como se relacionam os povos em guerra e na guerra. Essa guerra
não tem data de começo, ela não tem passado, presente nem futuro. Ela é
constante. A colonização é todo dia. As tecnologias de invasão utilizadas
pelos colonizadores têm como base a destruição da forma de vida dos povos
originários e implantação pela força e violência, da forma de vida deles.
É isso que é a colonização, tomar de assalto, saquear o corpo, a terra, o
espírito, roubar, mentir, estuprar, matar. Também é a criação ideológica
de conceitos fortificando as tecnologias psicológicas da colonização.
A pergunta “de onde vêm os povos originários do Ceará?” não busca
responder apenas a uma perspectiva histórica de “origem”. O que está
ancorado a esta resposta, o que está por trás da tentativa de responder
“de onde vêm” nossos povos? Quando se afirma que nossos povos não são

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 24


daqui, e sim vieram em migrações, afirma também a ideia de que nossos
povos não são AUTÓCTONES, ou seja, indígenas. Esse debate torna-se
crucial para o avanço colonial sobre as Terras dos povos originários do
Ceará, pois “se esses povos não são originários dessas terras, as terras não
pertencem a eles”.
Essa perspectiva de pensamento é legitimada pela ciência e pelos
pesquisadores e historiadores que escrevem a “história oficial” da colo-
nização, justificando o avanço e as mortes no processo. A ciência, por sua
postura universal incutida em seus métodos, coloca como sinônimo de
verdade seus discursos e narrativas históricas acerca dos nossos povos.
Então, quando a ciência diz que somos povos ALÓCTONES, ou seja, aliení-
genas da terra, cria-se o conceito e a justificativa perfeita para o avanço
colonial, baseado numa verdade inventada pela própria ciência, que é criada
pelos colonizadores e serve aos seus propósitos. Assim, percebemos que
o movimento de colonização implantado não é apenas físico, territorial,
mas também histórico, científico e conceitual.
Esse processo colonizador vem se atualizando ao longo dos séculos
de guerra contra nossos povos. No Siri-ará, o território era/é bem ocupado
por nossos povos. Serra, litoral, sertão e ribeiras de rios eram, e ainda são,
locais de ocupação e vida das diferentes singularidades de povos indígenas.
O movimento entre nossos povos era constante: festas, guerras, migrações
sazonais, busca de alimento, caça, coleta, agricultura. Viviam-se diferentes
vidas e todos os povos que se conheciam, se respeitavam. Nossos antigos
nos falam que nunca foi travada uma guerra de extermínio antes da in-
vasão europeia.
A maioria dos povos praticava migrações que aconteciam de forma
sazonal, determinadas pela época do ano, ou por algum deslocamento
impulsionado pelo encontro com outros povos, mas isso não significa que
nossos povos não se estabeleciam em aldeias por épocas. A fixação em
aldeias, durante um período, frequentemente ocorria ao longo do vasto
caminhar pelo território. Tudo acontecia pelo sentir o campo da Terra. O
campo e o ritmo do movimento eram sentidos e assim nossos povos iam se
movendo, movendo a energia de cada povo e atualizando suas experiências
de vida, de viver junto à Terra e ao território. Nossos povos são singula-
ridades que entendem o movimento como algo necessário, mover-se na
hora certa, sentir o momento certo, conectar-se com os sonhos da Terra.
CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 25
A dinâmica do movimento dos nossos ritmos de povos mudou com a
invasão dos mundos ocidentais, mudou o ritmo de vida, do campo, do ca-
minhar, de se mover. Implantaram, a partir da violência, outro movimento,
outra energia, outro ritmo. Por isso, nossos povos tiveram que também
mudar o seu ritmo, para continuar a viver e a sentir a Terra. As migrações
não aconteciam mais por percepções de sentimento, agora eram para se
esconder, fugir do extermínio gerado pelo modo de produção trazido
pelos ocidentais, as Serras e o Sertão tornaram-se locais estratégicos de
esconderijo e tática de guerra.
Com a invasão tudo muda. A primeira mudança é a mais “sutil”, mas
também uma das mais importantes: a mudança do campo de vida, invisí-
vel aos olhos físicos, mas sensível aos olhos do sentimento. Nossos povos
sentiram o peso da invasão e ali souberam que “o tempo grande terminou,
mas que tudo iria permanecer”, pois o que permanece em nossos povos é
a mudança e o encantamento com a Terra e com os nossos antigos, para
continuarmos a viver nossas vidas e nossos modos de ser em cumplici-
dade com a Terra. Nosso tempo grande acabou, mas nossa ligação com a
Terra, nosso encantamento e nossos modos de ser, permanecem, e isso é o
que nos faz saber e sentir que somos parte de povos originários da Terra.
Não é a ciência que nos traz essa confirmação, mas o sentimento, nossa
ancestralidade e os sonhos com a Terra, que se revelam para nós através
da nossa memória ancestral, linguagem e energia.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 26


CAPÍTULO 1 - O TEMPO GRANDE ACABOU, MAS TUDO PERMANECERÁ | 27
CAPÍTULO 2
“QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS
NÓS SOMOS SEMENTES”10

“Desaparecimento dos indígenas no Siri-ará”

A questão indígena nunca foi uma questão homogênea no terri-


tório nacional, principalmente no que se refere aos povos indígenas no
Nordeste, e em específico aos povos indígenas do Ceará. O Nordeste foi local
de permanente e intensa guerra, uma guerra não só física, mas também
religiosa, ideológica, psicossocial e relacional, vivida no cotidiano desses
povos desde 1.500 até os dias atuais. A capitania que hoje é o Ceará tem
sua particularidade histórica quando se trata dos povos indígenas, pois
foi um dos pontos de maior resistência desses povos contra os invasores
europeus no Brasil.
Na capitania do Siará Grande, antigo nome do Ceará, como na maio-
ria dos estados do Nordeste, se deu o “fenômeno” do “desaparecimento”
dos povos originários. A extinção foi declarada, “naturalmente”, através
de relatórios oficiais no século XIX, mais precisamente a partir do ano de
186311, enterrando a experiência coletiva indígena nas terras cearenses,
colocando-a apenas como referência do passado. Esse fenômeno foi mol-
dando o imaginário coletivo dos habitantes dessa região e do Brasil, criando
o mito de que no Nordeste, no Ceará, não existem mais povos originários.

10
Provérbio indígena.
11
Ver: 1863: o ano em que um decreto - que nunca existiu - extinguiu uma população indígena que nunca
deixou de existir, de Ticiana de Oliveira Antunes.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 28


Se perguntarem sobre isso a um “cearense comum”, ele responderá que
no Ceará não existem mais povos originários.
No decorrer da segunda metade do século XIX, essa desinformação
ganhou força e se cristalizou como “natural”. O Estado-Mercado naturaliza
a destruição da memória dos nossos povos e relaciona a nossa experiência
coletiva a um tempo antigo, ultrapassado e não verdadeiro. Ele quer nos
transformar em parte do passado da sua temporalidade-espacialidade
cronológica artificial, eliminando nosso presente e futuro. Essa análise
espaço-temporal amplia-se para além da questão social, econômica e
política, ela apresenta outras características da guerra cosmológica entre
Estado-Mercado e povos originários.
Nós, povos originários, estamos em guerra cosmológica contra o
Estado-Mercado. O suposto “desaparecimento” dos povos originários no
território cearense se deu também por interesses cosmológicos, e não
apenas econômicos. O interesse em “civilizar” os “selvagens” não era
apenas para lucrar com eles e com o roubo de suas terras, mas também
objetivava assassinar sua singularidade ancestral, colonizando seu pen-
samento e modo de vida, tomando suas mentes, almas, tempo, espaço,
corpos e sentimentos, mudando suas relações consigo mesmos e com a
Terra para garantir que esse seja um movimento sem retorno, e depois
lhes tomarem os territórios.
O mundo ocidental “moderno” quer colonizar os mundos indígenas,
destruir a diferença e pluralidade para implantar a igualdade genérica do
Estado-Mercado. Por isso, proponho pensar a questão indígena no Ceará
e no Brasil não apenas como um problema geopolítico e econômico, mas
como uma questão cosmopolítica, um problema que transpassa relações
de frequências de vida, mais que econômico e de classe.
Após essa análise, ficam mais explícitas a intenção e estratégia do
poder geral e local do Estado-Mercado no intuito de destruir os povos
indígenas. Eles deslegitimam a singularidade dos povos, destruindo e proi-
bindo suas práticas de vida, tornando-os “índios mansos”, implantando
o pecado como lógica de punição e rédea para depois alienar as terras,
transformando-as em bens, colocando-as à venda para serem compradas
pelos donos do lucro. Assim, os invasores deixam de ser invasores e adqui-
rem “legalmente” as terras, passam a ser donos, transformando os povos

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 29


indígenas de povos invadidos em indigentes, sem-terra, invasores. Essa é
a inclusão que exclui. Incluídos no Estado-Mercado, mas excluídos da vida.
Essa questão mostra que o corpo do indígena, era/é disputado jun-
tamente com sua Terra, pois corpo e Terra não se distinguem para os
povos originários. E corpo aqui não se entende apenas pelo corpo físico,
mas também o corpo coletivo ancestral e extrafísico. Esses dois temas
estavam em debate pela coroa quando se tratava dos povos indígenas: o
destino de suas terras e a mão-de-obra escrava indígena. Mas o que fazer
com aqueles que não são mais “índios”? Esta é uma questão que ainda hoje
permanece, uma confusão criada pelos invasores, dificultando o afirmar
desse lugar de escolha, do pertencer à Terra para os povos no Nordeste.
No Nordeste, nós, indígenas, temos que provar que estamos vivos e que
somos indígenas todos os dias.

Guerra aos “selvagens” do Siri-ará: tecnologias assassinas


da colonização

No Siri-ará existiam muitos povos. Há uma estimativa de, no mí-


nimo, 22 nações Tapuyas12 e outras 70 aldeias Tupi13 apenas na Serra da
Ibiapaba. Com a invasão, tudo mudou conceitualmente, inclusive a forma
de se aldear. Se antes existiam as diferentes aldeias de diferentes referen-
ciais e organizações indígenas, com a invasão foram implantadas, à força
e violência, as missões de aldeamento religioso. Aldear é se organizar em
pensamento coletivo, é sentir a vida em conjunto, é passar as experiências
coletivas adiante.
A partir de um aldeamento, seja ele fixo ou móvel, pode-se perceber e
sentir experiências coletivas de um povo. Os aldeamentos dos nossos povos
eram fluidos, fixos e móveis ao mesmo tempo, pois isso dependia da sensação
e da percepção do povo em relação à Terra. As aldeias fixas de referencial
indígena funcionavam em coletividade, independentemente da forma de

Nome genérico e preconceituoso utilizado pelos invasores para identificar, de forma errada, os
12

povos que não eram tupis.


Nome genérico e preconceituoso utilizado pelos invasores, de maneira errada, para designar os
13

povos que eram seus aliados.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 30


organização do povo, pois nós, povos indígenas, nos entendemos como
povos coletivos e seres coletivos. O individual é virtual e não existe como
para os ocidentais. As aldeias móveis funcionavam como dunas móveis,
iam fluindo com o vento, encontrando locais onde o campo da Terra iria
proporcionar uma experiência coletiva de sustentação para aquele povo.
Com a invasão europeia, outra forma de aldeamento foi implan-
tada na base da violência e essa forma de se aldear foi elevada à única
forma verdadeira, oficial e legal. As missões de aldeamentos religiosos de
referencial ocidental se colocam em contraposição às aldeias de referen-
cial indígena, criando um binarismo no conceito de aldeia. As aldeias de
referencial plural indígenas eram combatidas e colocadas como hereges
em suas formações e organizações, enquanto as missões e aldeamentos
religiosos eram considerados locais de educação e formação do homem
civilizado. As aldeias indígenas foram colocadas no polo negativo do pen-
samento binário eurocêntrico, já as missões de aldeamento religioso no
polo positivo de libertação.
As missões de aldeamentos religiosos dos invasores funcionavam e
se organizavam com base no pensamento binário dos povos ocidentais,
ou seja, de maneira genérica e homogênea, pensada, sentida e organizada
segundo uma dualidade extremista, provinda dos pensamentos “clássicos”
da Europa: bem/mal, verdadeiro/falso, belo/feio, justo/injusto, etc. Já as
aldeias de referencial indígena funcionavam a partir da pluralidade de vida
e de pensamentos dos diferentes povos. Tinham em suas organizações as
experiências singularmente coletivas de cada povo com a Terra.
A partir dessas perspectivas diferentes de sentir a vida, a guerra entre
esses mundos, iniciada com a invasão europeia, começou a criar outras
tecnologias de extermínio dos nossos povos. O objetivo dos invasores era
se estabelecerem aqui em nosso lugar, mas não apenas fisicamente. Eles
queriam que nós nos tornássemos deles, iguais a eles, esse é o objetivo final
de uma colonização. As missões de aldeamentos religiosos representam
uma dessas tecnologias, mas houve outras tão assassinas quanto. Podemos
elencar algumas que, para nossos povos no Ceará, foram e ainda são difíceis
de combater: a mestiçagem, as guerras justas e a conversão. Esta última
começa apenas com as missões de aldeamentos religiosos.

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 31


Missões de aldeamentos religiosos: tecnologia colonial de
demarcação de espaço, tempo e morte

As missões de aldeamentos religiosos, como já mencionado, fun-


cionavam com base no pensamento colonial de regime ocidental. Suas
estruturas de formação e dinâmica de relação eram pautadas e moldadas a
partir dos vilarejos europeus. Possuíam o intuito religioso de levar a “ver-
dade” do deus único da Igreja e converter os indígenas à forma única de
sociabilidade do povo ocidental. Para isso, eles praticavam o regime cativo
de escravidão, pois acreditavam que só assim conseguiriam exterminar
a selvageria daqueles povos, “civilizando-os e libertando-os dos pecados
em nome de Deus”. A coroa, que comungava da mesma premissa violenta
de pensamento binário da Igreja, casa-se perfeitamente com ela. Logo, as
frentes oficiais e espirituais estavam atuando em conjunto no assassinato
dos povos originários, implantando violentamente o modo de produção
e pensamento ocidental, negando as formas plurais de vida indígenas,
destruindo suas experiências coletivas de povo com a Terra e literalmente
assassinando seu corpo. Assim, as missões de aldeamentos religiosos iam
roubando as almas e as terras dos povos originários, entregando para a
coroa cidadãos obedientes e sem terra.
Igreja e coroa sempre estiveram bem alinhadas com o nefasto inte-
resse de destruir a vida dos povos originários e roubar suas terras. Nossos
povos tinham suas aldeias, que se organizavam a partir de cada universo
cosmológico das experiências coletivas daquele povo. Todo povo tem seu
céu. Já os aldeamentos missionários jesuíticos que eram moldados e geridos
pela igreja e pela coroa, tinham um único céu. Os aldeamentos jesuíticos
funcionavam em regime de escravidão, os povos que eram ali aldeados
não tinham liberdade, juntavam propositalmente diferentes povos como
tática de enfraquecimento e homogeneização.
Há três principais elementos dos aldeamentos missionários que, nessa
perspectiva, são importantes para compreender a violência implantada
com o intuito de transformar os povos originários em pobres sem terra:
as cercas, que demarcam uma nova experiência espacial, o espaço agora é
limitado e tem dono; o sino, que demarca uma nova experiência temporal,
o tempo agora é condicionado a um estímulo ligado ao templo, ou seja, o

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 32


tempo cotidiano é regido pelo tempo espiritual da Igreja; e o pelourinho,
que marca o corpo e a alma em forma de violência e culpa, a punição física
e psicológica do pecado. As missões jesuíticas funcionavam no expresso
controle contínuo espaço-tempo-violência-culpa.
As cercas escravizavam a terra, criando fronteiras, determinando
aonde ir e aonde não ir. Isso demarcou não só fronteiras físicas, mas
também conceituais, criando a dualidade Terra x território. Quem fosse
capturado fora do território da missão era considerado fugitivo e punido
com o pelourinho. A violação das fronteiras era punida. Uma violenta
dinâmica espacial e conceitual criada entre Terra e território é imposta
aos nossos povos a partir do medo e da morte. Esse movimento vai mol-
dando uma nova forma de sociabilidade baseada na violência. As cercas
nos aldeamentos jesuíticos demarcavam não só uma propriedade, mas
também, outra experiência cotidiana de sentir o espaço, separando-o do
tempo, apartando-o de si mesmo e criando uma relação do espaço apenas
com o campo físico da propriedade, a partir das leis, regido pela violência.
A separação e mudança relacional no espaço imposta pelos invasores aos
povos originários também faz parte da violência colonial da implantação de
outra forma de se perceber e sentir o espaço. Para nossos povos, as reações
e relações são de afinidades coletivas, espaço-tempo é um emaranhado de
relações, não se separam, no entanto, os invasores criaram uma experiência
coletiva artificial de espacialidade e temporalidade, separando o espaço e o
tempo para dominar e escravizar a Terra, eliminando os povos indígenas.
O sino da igreja demarca a separação do tempo, marca o dia de
trabalho e marca também na alma o horário violento do “rezar”. Quem
não cumprisse com a reza era castigado no pelourinho, pois estava sendo
“rebelde”. A experiência de temporalidade imposta nas missões não de-
marcava e separava apenas fisicamente o tempo, um horário, disciplinas
e regras, mas internalizava e demarcava outra relação temporal com o
cotidiano, externa e internamente. O tempo antes sentido e percebido no
emaranhado com o espaço físico e extrafísico, agora é individualizado. A
experiência espaço-temporal sentida e percebida no aqui-agora, a partir
do campo da Terra, do campo de tudo que compõe a vida, e que não de-
termina onde está o passado, o presente e o futuro, agora está aprisionado
e é regido pelo sino, por uma experiência artificial de contar o tempo.

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 33


Ao se criar essas experiências artificiais de viver e contar o tempo, a
perspectiva de pensar, sentir e viver a memória também é afetada. Assim,
não se cria só uma experiência artificial de tempo no cotidiano, mas tam-
bém uma experiência artificial de memória. Portanto, a singularidade
dos povos vai se tornando individualidade e cada indivíduo e família vai
criando o “seu tempo”, o “seu espaço”, e outra memória. Esse movimento
é propositalmente articulado para desvincular os povos de suas terras em
corpo e alma. Dentro dessa relação imposta pelo modelo de sociabilidade
colonial, a experiência artificial ganha força e vai se ampliando na violência
e nas leis, desta forma, a colonização vai avançando.
A terceira marca de violência implantada pelas missões no coti-
diano dos povos indígenas missionados é o símbolo físico e espiritual do
pelourinho. O pelourinho marca na pele e na alma a violência do regime
de missões jesuíticas. A violência espacial do pelourinho é demarcada com
as chicotadas, ter seu corpo escravizado e punido. A violência temporal é
marcada a partir do “tempo” da punição aplicada e sentida na pele ape-
nas por ser quem se é. Além de marcar o espaço e o tempo na violência
da punição, o pelourinho marca também o tempo espiritual, emocional
e psicológico. A culpa, o medo e a vergonha são marcados nos corpos e
nas almas daqueles povos. A humilhação pública implanta no indígena a
culpa, a vergonha e o medo dele ser quem é. A alma marcada pela violên-
cia por ser diferente, o sentimento de merecimento da violência por ser
diferente, deixam feridas emocionais, mentais e espirituais. A culpa por
ser diferente e a dor da vergonha de não querer mais ser violentado por
isso, funcionam como silenciamento.
O pelourinho marca o silenciamento da colonização sobre nossos
povos. Assim, o silêncio dos povos indígenas aparece como meio para
sobreviver e não sofrer mais. Muitos indígenas sentiam-se perdidos, sem
poder se afirmar, sem saber para onde ir, muitos fugiam ou se matavam.
As missões de aldeamentos religiosos deixaram feridas imensas nos povos
indígenas e resumem bem todas as atrocidades do mundo ocidental. O re-
gime dos aldeamentos jesuíticos vai se atualizando, nas vilas, nas cidades,
e, hoje, no Estado-Mercado. A colonização continua, ela quer exterminar
nosso sentimento de pertencer à Terra. O espaço e o tempo tratados se-
paradamente funcionam de maneira complementar na forma de controle
da coroa e da Igreja. “Dividir para conquistar”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 34


O regime de missões de aldeamentos religiosos era apenas uma das
tecnologias de invasão dos europeus. Juntamente com esse esquema de
violência, os invasores tinham outras tecnologias de morte e todas funcio-
navam de maneira articulada, se retroalimentando numa engrenagem de
morte que não dormia. As “guerras justas”, a conversão e a mestiçagem são
algumas dessas tecnologias que operavam outras, e assim sucessivamente.
Dentro das “guerras justas” estavam as leis, que legitimavam o rou-
bo das terras indígenas e a oficialização da morte dos povos em “legítima
defesa”. Dentro do equipamento violento da conversão estava também
a proibição por lei do uso de nossas línguas mães, e a desobediência era
passível de punição. Dentro do equipamento da mestiçagem, para além da
violência sofrida no processo em si, existia também a criação de uma iden-
tidade nacional homogênea, na qual, quem não fosse brasileiro e patriota,
seria considerado inimigo e, portanto, punido. A violência, quando se trata
dos nossos povos em relação ao Estado-Mercado, sempre foi o começo e o
fim. O cheiro de morte sempre vinha misturado ao de pólvora e incenso.

As tecnologias de invasão: fazendas de gado e guerras justas

No Siri-ará, as guerras eram e ainda são constantes contra nossos


povos, principalmente por nossos povos serem insubordinados. No terri-
tório onde hoje é o Ceará, nossos ancestrais dificultaram muito o avanço
da colonização, e, hoje, nós, filhos, netos e bisnetos dos seus sonhos, con-
tinuamos sua luta. A luta contra a invasão para nossos povos continua,
não existe um fim, não somos povos vencidos, somos povos em guerra.
As guerras de extermínio promovidas pelos invasores eram cons-
tantes, pois esse é um dos meios mais rápidos dos invasores exterminarem
nossos povos e escravizarem a Terra. Guerras, mortes, chacinas, aprisiona-
mentos, torturas, estupros, escravização, eram-são técnicas utilizadas pelos
invasores em meio aos ataques de avanço sobre o território. A paz entre
nossos povos e os invasores nunca foi o objetivo deles, eles não querem
entender a diferença e pluralidade dos nossos povos até hoje, querem nos
subjugar, destruir nossas vidas e escravizar nossos corpos, almas e terras.

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 35


As fazendas de gado, assim como as missões de aldeamentos religio-
sos, foram/são tecnologias de invasão. As “guerras justas”, a conversão
e a mestiçagem agem concomitantemente. Os aldeamentos religiosos
“focavam” na conversão e na mestiçagem, transformando os indígenas
em “índios mansos”. As fazendas “focavam” nas “guerras justas” e na mes-
tiçagem, invadindo os territórios, exterminando os “índios selvagens” e
criando uma identidade homogênea, aniquilando a pluralidade dos povos.
As missões e as fazendas são duas formas potentes de armas de etnocídio
contra nossos povos.
As fazendas de gado14 eram verdadeiros quarteis militares implanta-
dos para ocupar o território. Nelas existia um poderoso arsenal bélico para
fazer guerra e exterminar os TAPUYA, “índios selvagens”. Funcionavam
como núcleos de invasão e apoio à destruição no local onde se estabele-
ciam. O que sustentava o modo de produção colonial das fazendas era a
criação de gado, que ia invadindo o território, assim como o plantio de
monocultura. Esses foram os marcos da invasão “legalizada” dos territórios
originários. Destruir o local era minar as possibilidades de vida e movimento
dos povos Tapuya que resistiam na guerra, empurrando-os para regiões
diferentes. As “propriedades” funcionavam como táticas de guerra móvel
que iam se instalando ao longo do território para produzir morte e impor
uma experiência artificial da sociabilidade invasora, cúpulas coloniais de
reprodução do modo de produção e sociabilidade hierárquica do homem
branco ocidental no cotidiano de nossas terras. As estruturas cosmológi-
cas ocidentais foram implantandas às custas da morte dos nossos povos.
Tal como as missões de aldeamentos religiosos, as fazendas também
traziam em sua organização inclusiva-excludente da forma estrutural de
sentir a vida, a estrutura hierárquica vertical dualista do pensamento
colonizador. A implantação do sistema vertical de sociedade a partir das
fazendas foram os primeiros centralizadores de poder na consumação da
empresa colonial. Foi a partir da disseminação desse sistema de classes
sociais que essa estrutura vertical foi criada, cristalizando as hierarquias das
classes sociais. Esse movimento proporcionou poder de “dono” ao invasor
da Terra. A extensão desse poder e domínio se efetivou nos corpos daqueles
que estavam sob seu jugo na fazenda, negros e indígenas escravizados.
As fazendas de gado começaram a partir do séc XVII no Ceará. A pecuária gerou uma nova dinâ-
14

mica e estrutura sociais no interior do território, em especial nas áreas mais afastadas do litoral.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 36


O pensamento dualista hierárquico das classes sociais criou, a partir
do dinheiro e das posses, o movimento de superioridade e inferioridade.
As relações que eram cultivadas nas fazendas, com a terra e com aqueles
que lá viviam, tornavam-se cotidianas e passadas de geração a geração,
cristalizando o modo de produção no cotidiano das relações de vida. Esse
modelo foi se replicando em todos os campos de ação da sociedade que
estava sendo implantada. A sociedade moderna no nordeste do Brasil tem
em seu embrião a replicação de uma grande fazenda.
As fazendas eram como “vilas” e tinham seu próprio exército de ja-
gunços, representando o poder imenso do coronel fazendeiro na localidade.
Alguns fazendeiros eram mais influentes do que governadores, algumas
fazendas mais importantes economicamente do que algumas sedes de
vilas. A pressão dos fazendeiros sobre a coroa foi um dos fatores que fez
com que o regime das missões de aldeamentos indígenas chegasse ao fim,
abrindo caminho para as guerras “justas” de avanço colonial e para mais
e mais invasões de terras por meio da morte e da escravidão. O gado é um
marco do roubo e invasão das terras.
As câmaras municipais se formavam a partir dos interesses dos
coronéis fazendeiros, interesse de ganância por status com a coroa e por
ampliar seu território. Por outro lado, havia interesse também da coroa
em colonizar e exterminar os povos originários quando “legalizava” o
avanço dos fazendeiros, dessa forma, os dois ganhavam e os povos indí-
genas perdiam. As câmaras municipais, sendo criadas pelos invasores,
garantiam que eles próprios criassem as leis a seu favor. O Brasil cunhou
seu sistema jurídico todo a partir das tecnologias de invasão e, até hoje,
o parlamento brasileiro funciona desta maneira. As câmaras municipais,
como mecanismo criado pela colonização, transformaram nossos povos
em povos “ilegais”, em invasores da Terra à qual pertencem. A democracia
burguesa é uma experiência ilusória metafísica de igualdade, assim como
o conceito de Estado-Mercado.
O tempo e o espaço também eram concebidos separadamente nas
fazendas, porém a figura do fazendeiro era a figura de poder e ele não estava
subordinado a um “poder superior” como os padres jesuítas. Os fazendei-
ros não queriam tutelar os indígenas e os catequizar, queriam escravizar,
matar os povos indígenas e roubar as terras, eram diferentes formas de

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 37


violentar os povos. Os fazendeiros se utilizavam de qualquer situação para
assassinar nossos povos, frequentemente a vingança dos fazendeiros pelo
“roubo de gado” e “invasão das fazendas” funcionava como justificativa
para assassinar indígenas. As fazendas eram tecnologias de ocupação do
espaço, do tempo e de guerra aos povos indígenas.
Nas “guerras justas”, os “índios mansos” eram convocados para
unirem-se aos invasores contra seus parentes chamados, pelos invasores,
de “índios selvagens”, resultando em outro mecanismo da tecnologia de
invasão somado às “guerras justas”, o mecanismo da vassalagem, que está
também conectado à outra tecnologia de invasão, que é a conversão. As
“guerras justas” de extermínio contra povos originários eram encaradas
como “movimento natural de progresso” pela Igreja e pela coroa. A for-
mação da sociedade moderna no Brasil nos moldes hierárquicos foi sendo
cristalizada junto com o modo de produção, de pensar e de se relacionar
do europeu. Assim, o movimento de morte aos povos originários vai se
tornando uma expressão do mecanismo inevitável do progresso.

Tecnologias de invasão: conversão e vassalagem

A conversão acontece por diversas perspectivas de controle e ati-


vação desse controle. A prática da catequização imposta pelos religiosos,
a criminalização de nossas práticas ancestrais, a criminalização de nossa
língua e de nossos modos de viver, o medo, a culpa, a vergonha de ser di-
ferente, a busca por uma identidade de massa e o pacto de vassalagem, são
algumas dessas diversas ativações do controle imposto por essa tecnologia
de invasão chamada conversão. Não podemos falar de conversão sem fa-
lar em resistência, O movimento de conversão é um movimento violento
de imposição de um mundo, esse movimento encontra uma frequência
diferencial de resistência nos povos originários.
Existem diferentes formas de resistir e lutar a guerra dos mundos. O
avanço das “guerras justas”, na figura das fazendas e das missões de aldea-
mentos religiosos no Siri-ará, foi “empurrando” alguns povos para a região
da Serra Grande, a Serra da Ibiapaba, que se transformou em um refúgio
para muitos povos indígenas. Os indígenas que não foram missionados em

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 38


aldeamentos religiosos e nem escravizados em fazendas compunham uma
força chamada pelos invasores de “índios selvagens e Tapuya”.
A força diferencial de guerra Tapuya é plural e contrária a todo pen-
samento colonial, logo, aqui no Siri-ará, os povos “Tapuya”, são as forças
anticoloniais de guerra em movimento desde 1.500 até hoje. Uma das forças
anticoloniais Tapuya que habitavam ao longo da região da Ibiapaba entre
Ceará e Piauí, é o povo TAKARIJÚ, também conhecido por outros nomes
como: TOKARIJÚ, TOCOIÚ, TUKURIJÚ, TOKAIÚ, TAKARIÚ, KARARIJÚ.
A força ancestral desse povo ascende em mim, minha família vem dessa
linhagem de pensamento-vida e singularidade de povo, as mais de mil
gerações Takarijú vivem em mim.
O povo TAKARIJÚ é um povo que tem poucos registros históricos
“oficiais”, pois desde sempre se colocou como inimigo dos portugueses e
religiosos que invadiram a Serra Grande. O único relato sobre a presença
deste povo no Ceará está no texto conhecido como “Relação do Maranhão,
1608, pelo jesuíta padre Luiz Figueira15”. Nesse registro, nas poucas linhas
que se referem ao meu povo, o jesuíta relata que o povo Takarijú atacou e
matou o padre Francisco Pinto. Esse ato, classificado pelos invasores como
“rebeldia” e classificado por mim como legítima defesa, mostra, mesmo
que de forma pequena, um pouco da dinâmica de guerra entre os povos
indígenas Tapuya e os invasores.
Esse ato de guerra e de defesa do meu povo contra os jesuítas de-
sencadeou uma reação de vingança dos invasores. Essa vingança acontece
apoiada pelo mecanismo de invasão da conversão16 chamado de vassala-
gem, pacto de “lealdade” forçado pelo medo que os invasores impingiam
a alguns grupos indígenas. A guerra feita ao meu povo pelos portugueses
em vingança pela morte do padre Pinto teve apoio de alguns grupos do
povo Tabajara, que eram aliados dos portugueses e se tornaram inimigos
dos TAKARIJÚ. Assim, meu povo foi alvo da vassalagem, de uma “guerra
justa” e do apagamento “oficial” de sua história como povo originário,
sendo até hoje considerado “oficialmente” um povo extinto, mas estamos
aqui hoje na luta de retomada, contrariando os registros oficiais.

15
Ver Relação do Maranhão.
16
Conversão é uma das tecnologias de invasão utilizadas pela colonização, e sua forma de utilização
é a vassalagem.

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 39


A vassalagem era um mecanismo da tecnologia de invasão da con-
versão, que prometia terra, proteção e “paz” aos grupos indígenas que se
aliassem aos invasores, mas, na prática, não era bem assim que funcionava.
O pacto de vassalagem tinha caracteríscas específicas: a lealdeade para
com a coroa era motivada pelo medo ou por promessas de uma vida em
“paz”. A reprodução do modelo de vida do invasor nas aldeias, assim como
o apoio bélico aos invasores contra os Tapuyas eram exigências da coroa.
Ou seja, os povos eram enganados e escravizados. Existiam também duas
principais formas de solicitação e organização, o pacto de vassalagem
individual e o pacto de vassalagem coletiva.
A vassalagem individual se dava da seguinte forma: o principal ou os
principais líderes daquele grupo solicitavam sesmarias junto à coroa para
viverem em “paz”. A individualidade da solicitação e a centralidade em
torno da chefia do principal, a forma de se organizar as relações e o terri-
tório, caracterizavam o funcionamento desse tipo de pacto de vassalagem.
A “doação” dessas sesmarias pela coroa para esse principal gerir o grupo
indígena não era um ato de bondade, mas, sim, de controle e interesse em
amansar nossos povos e promover o avanço colonial. As sesmarias funcio-
navam como instrumento de invasão e abertura de cúpulas das empresas
coloniais, de sociabilidade e reprodução da forma de produção do invasor.
As sesmarias “doadas” pela coroa para funcionarem dentro do pacto
de vassalagem também tinham sua regência e organização nos moldes
da sociabilidade e modo de vida dos invasores, porém em sincretismo
com os costumes daqueles grupos indígenas ali aldeados. O principal que
solicitava a sesmaria junto à coroa para viver com o grupo indígena, era
subordinado às regras, leis e vida impostas pela coroa. Todo o processo
gestado nas sesmarias de pacto de vassalagem funcionava para reproduzir
a forma de sociabilidade invasora e combater os “índios selvagens”, por
isso, esse mecanismo utilizado por determinados grupos indígenas para
sobreviver também ajudou no massacre de outros parentes.
Os grupos indígenas que faziam o pacto de vassalagem, mesmo
servindo à coroa, fazendo guerra aos Tapuya e reproduzindo o modo de
vida invasor, também sofriam preconceitos, não participavam dos lucros
da coroa, não tinham direitos, eram escravizados, viviam na miséria, suas
mulheres e crianças eram violentadas e não podiam viver seus modos de

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 40


vida ancestrais. Os povos eram coagidos e enganados pela promessa de
“paz” e de um espaço de terra cedido pela coroa que a qualquer momento
poderia tomar as terras de volta, como foi feito a partir das leis pombalinas,
quando o regime de sesmarias foi substituído pela alienação das terras, se
confirmando mais tarde com a Lei de Terras de 1850.
As sesmarias que funcionavam a partir do pacto de vassalagem, além
de instrumento e maquinaria colonial de avanço pastoril, funcionava tam-
bém como “prêmio” aos “vassalos úteis”. Os principais grupos indígenas
“mansos” que serviam bem à coroa poderiam solicitar uma sesmaria para
continuar servindo, agora em escala maior de reprodução e administração.
A coroa entendia o processo de pacto de vassalagem como um estágio de
socialização, assim, o indígena deixaria de ser “índio” e se tornaria cidadão.
O pacto de vassalagem coletiva funcionava não apenas ligado à figura
de um principal, um grupo inteiro de indígenas poderia solicitar à coroa
uma sesmaria para viver. Esse movimento do pacto de vassalagem estava
crescendo entre os grupos indígenas, tornando-se alvo de ambição para
alguns povos que se rendiam. Para eles, buscar esse pacto era uma forma
de “garantir” seus “direitos” à Terra, tornando-se “súditos da coroa”. Esses
grupos indígenas viam no pacto de vassalagem uma “estratégia legal” que
poderia reduzir o grau de incertezas e violências diante da colonização e
do avanço da morte da Terra. Esse é o problema de se lutar por direitos
dentro do esquema do invasor: representa apenas uma “redução de danos”
e uma “garantia de direitos” ilusória, pois hoje podemos ver que essas
“garantias” não ajudaram nossos povos.
Outro aspecto importante da mudança na forma de sentir e se rela-
cionar causado pelo pacto de vassalagem, foi a mudança na forma como
esses grupos indígenas se relacionavam entre si. Os grupos indígenas en-
volvidos nesse pacto, aprenderam a se relacionar e a viver em sincretismo
com as formas de produção dos invasores. Esse sincretismo foi importante
por um lado para fazer continuar a aparecer a vida indígena na oralidade
desses grupos, mesmo que de forma velada, mas por outro lado trouxe
problemas nas formas de se relacionar, pois alguns valores de produção
e de relação de vida dos invasores ficaram incrustados na forma de viver
desses grupos.

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 41


O conceito e valor do chefe, do líder e da chefia foi um desses valores
modificados, modificando também as formas de luta e de organização. O
principal, líder eleito pela coroa, agora tem poder jurídico e tribal, a chefia
deixou de ser um conceito transitório que se manifestava em determinados
contextos de guerra, mas que não tinha nenhum poder de chefia sobre
o grupo fora deste contexto, agora se torna cargo político de confiança,
detentor do poder ligado à coroa. O principal se torna os olhos e ouvidos
da coroa na aldeia, em troca, ele pode “negociar” com a coroa “melhorias”
para os grupos indígenas. Essa forma de se organizar e se relacionar com
a liderança e com a chefia tornou-se forma de organização permanente
em alguns povos, e isso até hoje é uma questão que, em alguns pontos,
provoca problemática na luta contra o Estado-Mercado.
Os povos “Tapuya” optaram por outras formas de se organizar e
lutar, buscaram manter-se mais próximos dos ancestrais e preservar seu
modo de vida, não só nos costumes do cotidiano, mas na forma de lutar,
pensar, sentir e viver as relações. Esses povos eram inimigos dos invasores
e a única relação entre eles era o conflito. Assim, os ascendentes desses
povos são colocados ainda hoje como “índios selvagens”, pois sua forma
de guerrear, combater, pensar, viver e sentir contra o Estado-Mercado é
diferente. Meu povo, Takarijú, é um desses povos.
Isso não significa que uma forma de lutar é melhor ou mais legítima
que a outras, significa apenas que as posturas de luta de alguns grupos indí-
genas tiveram suas consequências para outros povos. Existem pluralidades
nas formas de enfrentar o Estado-Mercado, porém, a forma de negociação e
luta por direitos é a menos ofensiva para ele. Enquanto “negociamos” com
o Estado-Mercado, a colonização continua avançando. As negociações com
o Estado-Mercado são ilusórias e não trazem mudanças reais aos nossos
povos, pois são cosmologias e cosmopolíticas completamente diferentes;
nunca vai existir, dentro da sociedade capitalista, direitos para nossos
povos. A sociedade capitalista e a pluralidade de nossos povos sentem a
vida de maneira diferente. Não se pode lutar apenas por direitos dentro
de uma sociedade capitalista.
Existem outras formas plurais dos nossos povos lutarem e se organi-
zarem contra o Estado-Mercado, e, quando elas não buscam negociar, são
criminalizadas e vistas como radicais. Essa ideologia de considerar “radical”

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 42


a luta de alguns povos, degrada a pluralidade dos povos indígenas em suas
formas de viver, lutar e se organizar, e cristaliza uma “melhor” e “menos
radical” forma de “enfrentar” o Estado-Mercado. A exemplo, podemos citar
o mecanismo de vassalagem, que foi se atualizando na forma de negociar
com o Estado-Mercado e juntando-se à luta ideológico-partidária, sendo
até hoje um grande problema que habita as formas de organização e luta
de alguns povos. Enquanto não nos libertarmos dessa forma “mansa” de
luta, o Estado-Mercado nunca vai nos ouvir e nos respeitar. Ao apostarem
nessa estratégia de guerra e organização de vassalagem, esses grupos de
indígenas contraíram com o Estado-Mercado uma ligação e com os outros
povos, uma dívida.

Tecnologias de invasão: mestiçagem e criação de


identidades genéricas

O movimento de invasão pensado e organizado pelos europeus


funciona em articulação com tecnologias de invasão e mecanismos que
dialogam entre si. A mestiçagem é uma dessas tecnologias que está sempre
conectada às outras duas. Para converter, precisa misturar e para misturar
tem que controlar, violentar, escravizar, matar, impor medo, guerrear. O
medo físico imposto pela violência da guerra de extermínio é ampliado pelo
medo ideológico implantado pela conversão religiosa. Esse medo ganha
mais força com a mestiçagem, a criação de uma identidade nacional e a
diluição da singularidade de pertencimento de cada povo.
A guerra dos mundos entre nossos povos e os invasores está vinculada
à luta contra essas três principais tecnologias de invasão que se atualizam
reiterada e permanentemente. As “guerras justas” ainda acontecem, os
territórios indígenas continuam sendo invadidos e nós, indígenas, con-
tinuamos a ser nomeados pela grande mídia como “invasores”. A Igreja
ainda quer nos converter e nos colocar uma coleira na alma, nos incutindo
a culpa. A mestiçagem hoje se atualiza nos assuntos de racialização e nos
conceitos de identidade, trazendo a questão do purismo e a pergunta que
começa com a implantação da tecnologia da mestiçagem: quem é indígena?

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 43


Ao chegarem nestas terras, os invasores perceberam que nossos povos
compunham uma pluralidade de vida e de maneiras de sentir e viver, e para
conquistar, teriam que homogeneizar nossos povos. A colonização é um
movimento homogêneo, genérico e que pretende ser universal, uniformi-
zante. Ele contém normas a serem seguidas, norma ideológica, norma de
sociabilidade e norma de pensamento, e todos necessitam viver, pensar e
se relacionar de uma maneira homogênea. Porém, homogêneo, não quer
dizer harmônico, neste caso quer dizer submisso, igual, controlado, fácil
de rastrear e manipular.
Assim, os invasores criaram a mestiçagem como tecnologia de in-
vasão, com o propósito de destruir a pluralidade heterogênea dos nossos
povos originários. A mestiçagem, como tecnologia de transpassagem da
heterogênese para a homogênese, busca promover a destruição da dife-
rença e da pluralidade em prol de uma massificação na forma de pensar,
viver e se relacionar.
O movimento da mestiçagem funciona conectado à conversão e à
guerra, esses movimentos são bem articulados e montados para deterio-
rar as formas de pensar, viver e se relacionar dos povos originários. Os
primeiros movimentos produzidos nesse sentido são as invasões e “guer-
ras justas” na implantação das missões dos aldeamentos religiosos e das
fazendas. A mestiçagem não minava apenas a singularidade de cada povo,
mas também ia incutindo naqueles grupos de indígenas, a partir da mistura
com diferentes povos e da imposição da forma de vida e sociabilidade do
cotidiano de vida europeu, a ideia de que eles não eram mais indígenas.
Assim, nasce o “descendente de indígena”, que é nomeado primeiramente
como “índio manso” e depois como caboclo, mestiço, sertanejo, e mais
tarde como cearense, nordestino e brasileiro.
A mestiçagem, enquanto sociabilidade e forma de transpassagem
entre o indígena e o “súdito”, ou seja, o “descendente”, tem início com as
missões de aldeamentos religiosos e as fazendas, mas depois de implanta-
da, é reproduzida por todas as formas de aglomeração e organização que
tenham contato com os invasores. Os grupos indígenas que se ligavam
à coroa pelo pacto de vassalagem, em suas sesmarias solicitadas junto à
coroa, reproduziam a forma de sociabilidade, pensamento e vida cotidiana
impostos por ela, reproduziam as tecnologias de invasão. Era um pacto de
rendição e passagem.
ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 44
A mestiçagem funciona no âmbito físico, literal, mas atua também
no campo conceitual, pois ajuda a criminalizar as singularidades plurais de
vida e pensamento dos povos indígenas que não se rendiam, colocando-os
como terroristas e inimigos da coroa e de Deus, ao mesmo tempo que ajuda
a forjar os conceitos de identidade utilizados pela coroa para controlar
e discriminar quem é ou não indígena. Aqueles povos indígenas que são
contra a tirania da coroa são chamados de “selvagens”, “radicais”, esses
merecem a morte, já os povos indígenas aliados da coroa vão ser incluí-
dos no sistema colonial, tornando-se súditos e “protegidos” pelo Estado-
Mercado. A mestiçagem cria a dualidade cidadão-selvagem, colocando
parente contra parente, criando essa separação a partir de um conceito
de identidade que se propõe universal.
A mestiçagem é imposição de transpassagem de uma singularida-
de de povo para a identificação com os registros, leis e conceitos que o
Estado-Mercado criou sobre nós. Destrói os conceitos de pluralidade e
diferença e cria conceitos de identidade essencial, nacional e regional,
moldando características com as quais você tem que se identificar para ser
classificado como pertencente àquele grupo e os que não se identificam
são classificados como anomalias.
A identidade é um conceito criado com base nos conceitos de seme-
lhança e analogia aristotélica, conceitos trazidos pelos invasores europeus,
atualizados e gestados no embrião dos Estados-nação a partir de seu mo-
vimento filosófico chamado de “renascença”. Esse conceito é implantado
aqui física e conceitualmente pela tecnologia de invasão da mestiçagem,
para roubar as terras, deslegitimar nossa pluralidade de povos e nos assas-
sinar. Hoje a mestiçagem é utilizada conceitualmente no Siri-ará contra
nossos povos, principalmente quando se trata das questões de retomada
indígena. A guerra contra os povos Tapuya, os “selvagens” que lutavam e
lutam contra as tecnologias de invasão, é composta pela Igreja, imprensa,
câmaras municipais e exército. Isso nos faz pensar e sentir o Tapuya, como
o primeiro conceito anticolonial.
Com as tecnologias de invasão implantadas cotidianamente, os
conceitos de vida, todos eles, são modificados ou criados. O conceito de
trabalho, as relações que são compostas nele e tudo que significava sentir
e pensar o espaço-tempo. A noção e o conceito de trabalho sentido pela

CAPÍTULO 2 - “QUISERAM NOS ENTERRAR, MAS NÓS SOMOS SEMENTES” | 45


maioria dos povos era o de atividade de vida e não como trabalho para
produção de excedentes. Pescar, caçar, fazer cestos, não eram trabalhos,
eram atividades de vida que faziam os povos se relacionarem com os cam-
pos de viver diferentes, não eram encaradas como obrigação, atividades
que dependem de si mesmas, não existe ninguém obrigando a produzir,
nem um espaço, nem um dono, nem um tempo. Essas cotidianidades são
sentidas nas relações de mudança dos grupos indígenas que vão sendo
aglutinados na forma de viver dos invasores.
Com o avanço da colonização e a destituição do sistema sesmarial,
em 1757 com o diretório pombalino, as missões de aldeamentos religiosos
deixam de existir e suas terras são cedidas a fazendeiros, fechando mais
ainda o cerco sobre os grupos indígenas que agora estão sob seu domínio.
Assim, a colonização vai avançando e massacrando nossos povos originá-
rios como um todo: as armas de guerra vão matando os nossos, a Igreja vai
formando um sistema dual, cruz e espada, as fazendas vão implantando
as classes sociais, os cartórios e câmaras municipais vão forjando e legiti-
mando o roubo das terras a partir dos papeis e da ciência, que se tornaram
as únicas formas oficiais de registro.
Como um elétron que perde energia e salta para outro campo quântico
de vida, nossos povos “sumiram” para continuar vivos, mas hoje estamos
retomando a energia e voltando a “aparecer”. Como um elétron que ganha
energia e salta para um campo quântico de frequência de vida, estamos
retomando energia ancestral de vida indígena, saltando e reaparecendo
para assombrar o Estado-Mercado.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 46


CAPÍTULO 3
PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA
“OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E
NARRATIVAS DE RETOMADAS

Um breve palavreado

A perspectiva histórica indígena dos povos do Nordeste, principal-


mente do Ceará, é constituída por muitas singularidades nesse percurso.
Primeiramente não podemos tomar como verdade única e absoluta os
documentos e artigos produzidos acerca de nossos povos, pois foram
produzidos pelos invasores e eles tinham interesse na produção de uma
“história oficial” escrita, arquivada e “legalizada”, a história que ganharia
força de “verdade”. Quando se produz uma “história oficial” ela é cheia
de lacunas e mentiras, pois sempre tem um lado, o interesse de quem a
cria. Não existe imparcialidade, só existem perspectivas, então, quando
os invasores a partir dos jesuítas escreviam, registravam e criavam a “his-
tória social” de cada povo, eles também produziam a sua própria versão
da história “oficial”.
O pensamento ocidental “moderno” funciona filosoficamente a
partir de uma dualidade excludente, uma comparação, uma analogia,
uma semelhança. O conceito conhecido como identidade, é positivado, e a
outra ponta dessa dualidade chama-se diferença, que é a “parte negativa”
da estrutura filosófica, ideológica, epistêmica de pensamento moderno
ocidental. Por conseguinte, a versão da “história social” de muitos povos
originários no Brasil, encarna, na forma de pensar ocidental, a diferença

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 48


como “negativa”, por isso a versão criada pelos invasores da história “ofi-
cial” é a de que os povos indígenas são os inimigos.
Uma versão histórica que faz de assassinos, heróis; de genocidas,
“desbravadores”; de guerras de extermínio, guerras “justas” de coragem
e amor à pátria, em que estupros viram romances e contos fantásticos de
amor e constituição de identidade. Essa história “oficial” contada pelos
invasores vai semeando o terreno fértil para nascer no imaginário coletivo
um Estado-Nação, em que os sujeitos, seus súditos, são identificados com a
identidade nacional, com a bandeira, fazendo com que eles se reconheçam
nessa “história oficial”, defendendo e propagando com orgulho o código-
-fonte do Estado-Mercado, a ponto de comemorarem datas de morte e
sangue dos nossos povos com desfiles e festas.
A história oficial de um Estado-Mercado-Nação esconde a história de
mortes, roubo, ganância, estupros, genocídio, escravização e extermínio da
Terra e dos povos que vivem com ela. A história “não-oficial” é a história
do cotidiano, da resistência, da oralidade, da luta. Nessa versão histórica
oficial, nós, indígenas, somos classificados e separados de maneira genérica.
A singularidade de diferença entre nossos povos assusta os invasores. Se na
história “oficial” eles são os heróis, nós somos colocados como inimigos.
De invadidos, passamos a invasores.
Essa construção histórica escrita e documental da “história social”
dos nossos povos, oficializa uma temporalidade e uma historicidade criada
e implantada pelo Estado-Mercado em torno desse movimento de perceber
a vida, a ponto de se considerar natural e normal esse modo de produção e
sociabilidade do Estado-Mercado. Esse método racista de criar uma única
historicidade-temporalidade artificial altera e destrói as experiências co-
letivas de outros mundos. Assim, as narrativas ancestrais de mundos de
muitos povos, pelo simples fato de não terem registro “oficial” a partir do
método “oficial” de registro estipulado pelo Estado-Mercado, são conside-
radas extintas. Existem muitos mundos indígenas que não têm registros
históricos “oficiais” porque eram inimigos da coroa. Não fazer o registro
desses povos é uma forma de matar na historicidade e na temporalidade
aquele povo-mundo, apagando-os da história “oficial”.
Implantados como “oficial” e fonte “segura”, os arquivos dão força
de lei à historicidade-temporalidade criada pelo Estado-Mercado, criando

CAPÍTULO 3- PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA “OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E NARRATIVAS DE RETOMADAS | 49


a falsa impressão de que o “tempo passa” e a “história é escrita com o
passar do tempo”, uma história que demarca o espaço (historicidade) e
marca o tempo (temporalidade). Essa força oficial é ampliada com a ciência
ocidental, diminuindo os saberes, as ciências dos nossos povos, pensando
e colocando-os como “mitos”, “folclore” e “misticismo”.
Nós temos outras maneiras de nos colocar no espaço-tempo, so-
mos diferentes, a história oral de cada povo tem outras perspectivas de
viver. A história “oficial” considera as narrativas de criação dos nossos
mundos como “mentira”, ou seja, considera nossas vidas “falsas”, e esse
movimento sistemático e articulado entre ciência e registros “oficiais”
criam as classificações dos nomes, encorpando o poderoso instrumento
colonizador conceitual.
Isso desencadeia uma constante ação-composição de morte concei-
tual, articulada, atualizada, justificada e executada com as “guerras justas”,
com a conversão e com a mestiçagem. O conceito-imagem criado pelo
Estado-Mercado para encaixar os povos originários é ampliado, povoando
o imaginário de todo brasileiro. O Brasil criou em sua história “oficial” a
imagem-conceito de “índio” e a “oficializou”, como o apagamento genocida
da pluralidade dos nossos povos.
Aqui no Ceará não foi diferente, e como o Nordeste foi a região de
primeira invasão, temos alguns anos de guerra a mais que outras regiões do
país. Uma guerra literal é também acompanhada de uma guerra conceitual.
A partir das tecnologias de invasão, junto com a criação de uma história
“oficial”, conectou-se o primitivo ao indígena, criando uma imagem-
-conceito mítica, obsoleta, que só tem lugar no passado. Esse movimento
científico-sistemático propagado serviu, e ainda serve, para colonizar e
destruir a história de ocupação dos nossos povos nos territórios sagrados.
O Estado-Mercado tentou prender os povos originários à tempo-
ralidade-historicidade criada por ele, nos enclausurando em conceitos e
difundindo esses conceitos no imaginário coletivo do brasileiro comum. O
indígena tornou-se apenas parte formadora do povo cearense, compondo
o mito da mestiçagem e da conversão. O indígena foi enclausurado nos
romances de José de Alencar, ficou no passado, nas páginas amarelas da
história. A criação e legitimação de uma “história oficial” é parte das
tecnologias de extermínio do mundo ocidental, mas nós não morremos e
agora estamos de volta para nossa retomada.
ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 50
Muitos dos nossos povos sumiram estrategicamente para recuperar
força, mas sempre estivemos aqui, fortalecendo-nos junto à nossa an-
cestralidade, junto aos nossos, junto à Terra. E agora, cheios de energia,
energia provinda dos contatos com nossos troncos velhos, sonhos e aces-
sos à memória ancestral, voltamos. Estamos em retomada de posição e de
força unidos à Terra e aos nossos antigos. Nossa história oral é passada
pelo vento, pelas plantas, pelos costumes, pelo fogo, pela lua, pelo sol, pela
intuição, acessamos a frequência da Terra e nos conectamos com a fonte.
Meu povo TAKARIJÚ, segundo os documentos “oficiais”, está extinto,
mas isso não é verdade, meu povo sempre esteve aqui, sumimos estrate-
gicamente como parte da guerra, mas sempre estivemos conectados com
a fonte de singularidade de nosso povo, com nossa ancestralidade, com
a Terra. Nesse sentido, a existência do meu povo e de tantos outros em
retomada é uma afronta à colonização, desmentindo a história “oficial”
do Brasil.
A morte conceitual dos mundos indígenas gera alterações gravi-
tacionais na sociabilidade e na forma de perceber e sentir a vida de cada
povo e parente, causando danos consideráveis em suas composições de
vida, fazendo com que nossos povos e parentes não se afirmem mais como
indígenas. Essa ferida colonial é forte e atinge campos de ações físicos,
emocionais e espirituais, mas aos poucos essa ferida vai sendo curada
pela Terra, começamos a sonhar de novo com ela e retomamos nossa as-
cendência originária, acendendo o fogo da luta, retomando nossa posição
anticolonial de Tapuyas, aqueles que não se rendem.
Definitivamente a invasão do “mundo moderno” mudou a gravidade
da Terra, trazendo ameaça à vida do planeta, um rastro de morte pauta-
do pelo lucro. O modo de produção capitalista trazido por eles é GRAVE,
em todos os sentidos, o capitalismo e seu modo de produção de morte e
sociabilidade de competição, é a maior e real ameaça à vida do planeta.
Nunca antes na história da Terra houve a possibilidade de ela ser destruída
pelo “humano”. Apesar disso, em cada retomada de um povo, retomamos
conceitos ancestrais dos nossos mundos indígenas e nos colocamos em
contraposição ao movimento de morte do capitalismo, fazendo aparecer
e ferver vida.

CAPÍTULO 3- PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA “OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E NARRATIVAS DE RETOMADAS | 51


TUPI-TAPUYA: conceitos genéricos do pensamento
dualista ocidental

O movimento classificatório dualista a partir da matriz de pensa-


mento ocidental para nomear nossos povos foi o binarismo TUPI-TAPUYA.
Essa classificação-nomenclatura errônea, preconceituosa, foi dada pelos
invasores aos nossos povos de propósito, não foi por desconhecimento. A
verdade é que eles nunca quiseram conhecer nossas diferenças, eles sem-
pre quiseram criar classificações e nomenclaturas para tornar mais fácil
o domínio e a instalação do movimento colonial. Classificar, sistematizar,
separar, tornar genérico é um movimento oriundo do pensamento dualista
de controle ocidental.
A forma de perceber e entender os mecanismos das tecnologias
conceituais dos invasores é importante para percebemos como eles nos
pensam até hoje e para entender a fundação de alguns conceitos que hoje
ainda são aplicados aos nossos povos. Esse movimento também é impor-
tante para começarmos a contra-pensar e cunharmos nossos próprios
conceitos a partir de nossas experiências coletivas singulares de cada povo
e da guerra cosmológica oriunda da invasão. A guerra não é só física, ela
é espiritual e conceitual também.
O binarismo do pensamento ocidental colocou primeiro o “índio-gentio”
e, posteriormente, o “tupi-tapuya”, como formas preconceituosas e genéricas
de referenciar nossos povos. Índio e gentio eram classificações discriminati-
vas que giravam em torno do universo linguístico, índios eram aqueles que
falavam língua tupi e os gentios aqueles que não falavam. Posteriormente
essa nomenclatura foi atualizada para o binarismo TUPI-TAPUYA, seguin-
do o mesmo critério linguístico, porém, o critério de diferenciação para
classificar e separar de forma genérica em TUPI-TAPUYA foi um critério
linguístico idêntico para classificar o bárbaro na Europa. Tapuya era quem
falava a língua “travada”, assim como o bárbaro na Europa.
Ao criar o código binário TUPI-TAPUYA, os invasores conceitual-
mente criaram e destruíram ao mesmo tempo. Criaram o conceito de índio
genérico tupi e o de índio genérico tapuya, e destruíram a singularidade
múltipla dos diferentes povos tupi e a singularidade múltipla dos “povos
tapuya”. A dualidade TUPI-TAPUYA era difundida também pelos jesuítas em

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 52


seus registros, mostrando mais uma vez a sincronia entre Estado-Mercado
(coroa) e Igreja. Esse conceito “registrado oficialmente” nos documentos
reforça a dualidade da forma “oficial”, isso teve e tem até hoje consequ-
ências desastrosas para os nossos povos.
As consequências desastrosas desse movimento-pensamento dual
reverberam nos poucos registros “oficiais corretos” sobre os diferentes po-
vos “tapuya”, já que todos eram tratados de forma genérica como TAPUYA.
Essas práticas de registros racistas e grosseiras são formas taxinômicas e
técnicas propositais de controle e destruição da história de nossos povos,
sobrepondo e deixando registrada a história dos invasores.
Tupi não é o nome de um povo, mas um tronco linguístico que abrange
diferentes povos, e Tapuya não é sequer o nome de um tronco linguístico,
mas é um nome em língua tupi que significa, dentre outras coisas, inimigo.
Assim, os invasores conceitualmente se utilizaram de um nome genérico
para atualizar, classificar e cristalizar um conceito de inimigo. Tudo que
é tupi não é tapuya e tudo que é tapuya é inimigo. Nomear o inimigo é o
primeiro passo para “naturalizar” sua posição de “inimigo”. Tapuya agora
não é mais apenas uma palavra em língua tupi para dizer “inimigo”. Tapuya
agora é inimigo em todas as línguas. Os tapuyas são os primeiros inimigos
“oficiais” do Estado-Mercado. Assim, os povos originários, na perspectiva
dos invasores, foram classificados a partir do pensamento binário carac-
terístico do homem branco “moderno” entre TAPUYA (inimigos; “índio
selvagem”) e TUPI (aliados; “índio manso”).
Os povos denominados de Tapuya eram chamados também de “povo
do mato”, “povo do interior” e o significado que mais interessa conceitu-
almente: “aqueles que não se rendem”. Os povos chamados de tapuya são
os povos arredios, os chamados pelos jesuítas de “índios selvagens”. Meu
povo é um povo chamado tapuya, tenho sangue arredio em minhas veias,
meus ancestrais mataram jesuítas em legítima defesa, nossos antigos não
negociavam com a coroa, com a Igreja e nem com o Estado-Mercado. São
esses antigos que nos falam as linguagens de nossas memórias ancestrais
e sonhos, trazendo ensinamentos, ensinando a postura de luta diante dos
invasores, ensinando um sentimento tapuya. Somos um povo anticolonial.
Os aldeamentos jesuíticos criaram “outros indígenas” a partir do con-
tato violento com o invasor e seu mundo. Os povos que foram missionados,

CAPÍTULO 3- PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA “OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E NARRATIVAS DE RETOMADAS | 53


agora todos chamados de “índios”, vivem um ritmo diferente dos outros
povos que não foram missionados. A relação com a guerra dos mundos
para cada povo transpassou cada experiência de luta de maneira diferente.
Os chamados “índios mansos” têm uma relação de amor e ódio com
a coroa, com o mundo dos invasores, eles são “protegidos” e atacados
ao mesmo tempo pelo Estado-Mercado (mais atacados que protegidos).
“Protegidos”, pois em seu “conceito ideal” o Estado-Mercado se coloca
como protetor de seus “filhos” e atacados, pois no conceito real de Estado-
Mercado, ele não os considera seus filhos legítimos, e esses indígenas
lutam por direitos, legalidades, espaços, dentro deste que os ataca. O
Estado-Mercado, por sua vez, os usa para fazer guerra conceitual aos seus
parentes indígenas que não se encaixam no conceito de indígena criado
pelo Estado-Mercado.
O conceito de “índios selvagens” que assombrou a época da coroa,
hoje assombra o Estado-Mercado com diferentes nomes, um deles é indí-
genas em retomada. Os “índios selvagens” não lutam por direitos dentro
do Estado-Mercado, eles querem a destruição daquilo que destrói a Terra.
Entendem perfeitamente que o capitalismo e uma sociedade capitalista
são contrários a uma vida de cumplicidade com a Terra.
Entre os diferentes povos existem diferentes formas de se organi-
zar e lutar, aqui trago apenas essas mais difundidas midiaticamente, para
pensarmos o movimento de inclusão-exclusão que o Estado promove
conceitualmente e a guerra que decorre disso. Não existe juízo de verdade
nas lutas, existem diferentes formas de lutar.

Atualizações conceituais da colonização


Os dualismos inclusivos-excludentes do pensamento por identi-
dade e por classificação de matriz ocidental moderna vão se atualizando
a partir do movimento colonial de apropriação da vida. A forma de vida
dos invasores é uma forma de vida baseada na morte, então é um modo
de morte e não um modo de vida. O modo de produção de mortes que
eles implantaram baseia-se em movimentos que, ao nomear, incluem, ao
incluir, excluem, ao excluir, eliminam transformando naquilo que vai lhes
dar lucro, conceitualmente e literalmente.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 54


De tapuya-tupi, o conceito foi atualizado para “índios mansos” versus
“índios selvagens”. “Índios mansos” eram aqueles que interagiam com
o invasor em seus aldeamentos e em suas alianças de guerra contra os
“índios selvagens”. O “índio manso” não é um “selvagem”, mas também
não é um “civilizado”, o “índio manso” aqui é uma categoria de transição
criada pelos invasores para classificar aqueles grupos que estão no processo
“evolutivo” de transpassagem para deixarem de ser “índios” e se tornarem
cidadãos brasileiros. Mas essa categoria de transição nunca encontra o seu
fim, ela não tem fim, ela é o fim em si mesma, não se chega a ser cidadão,
pois o conceito de cidadão é utópico e hoje é atualizado no capital, é como
um sinônimo de consumidor. Então o “índio” vai ser transformado em
consumidor, aquele que tem na relação de vida uma relação de consumir
tudo que tem e que vê.
A relação de vida que baseia um consumidor é o consumo, o desejo
de possuir, de ter, um desejo de controlar e de acumular, um desejo de
mostrar e de dizer que pode ter. Consumir tudo até não sobrar mais nada,
nem externo nem interno, o consumidor se consome internamente e ex-
ternamente ao mesmo tempo, até não sobrar mais nada para consumir.
A relação externa de consumo são suas relações sociais e de vida, que se
baseiam na propriedade e no lucro, as relações internas de consumo são
as relações emocionais e mentais, que se baseiam na figura do proprietário
e do status. O consumidor demarca e marca externa e internamente sua
relação de consumo com a vida e expande isso a todas as suas relações,
essa é a base de uma colonização: o desejo de consumo.
O Selvagem Tapuya foi classificado pelo invasor como uma catego-
ria “anterior” ao “índio manso” e inferior ao bárbaro, porém, a partir do
mesmo critério de classificação deste. O conceito de selvagem foi criado
pelos invasores a partir desse encontro com nossos povos, um conceito
que ajudou a Europa a criar o conceito de cidadão. O selvagem para o
pensamento europeu era/é aquele que vive na “selva” em suas formas de
existir, pensar, agir, se mover, é aquele que pensa por outras fontes de
mundo. Mas o selvagem não é só aquele que vive na “selva”, é aquele em
quem a “selva” vive, por isso esse conceito é perigoso ao Estado-Mercado
e ele tenta negativá-lo a todo custo, colocando-o numa posição de inimi-
go. Aquele que não se rende, tem a “selva” dentro de si, escuta e sonha

CAPÍTULO 3- PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA “OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E NARRATIVAS DE RETOMADAS | 55


com a Terra, com os ancestrais, ouve o vento e aprende com a Lua, essa
energia insurgente, inconstante, insubordinada de ação conceitual contra
o Estado é perigosa.
Assim, o selvagem é um inimigo alien cosmológico “natural” do
humano civilizado e de todos os processos e categorias de transição até
se chegar ao cidadão-consumidor. O selvagem-tapuya, aquele que não se
rende, não leva apenas no nome essa força cosmológica contra o Estado-
Mercado, mas em seu modo de vida e em sua postura de luta. As classificações
e criações do Estado-Mercado não são por acaso, atos isolados, mas, sim,
parte de projetos cosmopolíticos, que envolvem classificação-valoração de
mundos. A guerra de extermínio promovida pelos invasores contra os povos
originários é também uma guerra conceitual e uma guerra contra a vida.
Podemos dizer, então, que “índio manso” é um conceito transitório
criado do encontro entre o invasor e o selvagem, uma interface do civi-
lizado, mas que ainda não é cidadão, uma atualização mais “mansa” do
selvagem, mas que não é bárbaro. O “índio manso” sofre ataques violentos,
preconceituosos e racistas por parte do invasor, não tem direito nenhum
dentro do Estado-Mercado e é violentado sempre, não participa de nada da
forma de vida dos invasores, mas tenta participar, tenta reproduzir, tenta
encarnar e internalizar sua sociabilidade e leis inventadas pelos invasores.
Eles estão nessa Zona alien, uma zona em que ele não é mais “índio”, nem
cidadão, a zona do fora, do esquecimento, da confusão. Ficou perdido na
transpassagem dos mundos, se tornou um indigente. O “índio manso”
depois de muito tempo, aqui no Ceará é chamado de “não-índio”, de “fal-
so índio”, e recebe vários nomes, menos o de indígena. Ele é o caboclo, o
caipira, o matuto, o mateiro, mas não é mais o indígena.
O “índio manso” foi se atualizando aos poucos em colono, caboclo,
sertanejo, mateiro, caipira, mestiço, cearense, brasileiro, retirante, pobre,
mercadoria. A atualização do conceito de “índio aculturado” em seus vários
graus e categorias ministradas pela coroa, pelo império e, mais tarde, pelo
Estado-Mercado, foi transformando o indígena em indigente, fazendo com
que ele mesmo se convencesse de que não é mais indígena e que tivesse
medo e vergonha de ser quem é.
Fazer se desconectar da singularidade de um povo, da Terra, dos sen-
timentos, do que é pertencer a ela, é o movimento “central” do pensamento

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 56


de extermínio dualista de matriz ocidental. O objetivo deles é extermi-
nar a diferença e transformá-la numa variação do igual, replicação do
código-fonte do Estado-Mercado, valendo menos que uma mercadoria,
razão pela qual pode ser exterminada. A ideia central do movimento dual
de pensamento é que o povo se olhe no espelho e se identifique com o
Estado-Mercado, com as leis, com o lucro, com a morte, com o consumo,
e depois morra.
Atualizado o sujeito colono, ou seja, colonizado, restando nele, no
máximo, uma “descendência”, o indivíduo ou grupo pensa sempre em
sua ancestralidade indígena no passado, colocando nossos povos como
escala de transição entre o “mundo primitivo” e o “mundo moderno”.
Esse movimento nos aponta que as atualizações conceituais acontecem
também de acordo com a historicidade-temporalidade implantada pelo
modo de produção invasor.
O capitalismo hoje é a atualização conceitual vigente que atua não
só no campo econômico, mas também no campo conceitual e gravitacio-
nal da Terra. Pela primeira vez, existe a ameaça de devorar o planeta e
destruir o equilíbrio do emaranhado dos mundos. Se isso acontecer, todos
os céus vão desabar. A partir disso podemos pensar que as questões não
são mais geopolíticas, envolvem múltiplos mundos, todas as cosmologias.
Para nós, povos originários, desde a invasão a guerra é cósmica, ou seja,
cosmopolítica. O capitalismo é uma guerra de extermínio cósmico. Isso
se amplia e alcança não só o plano “físico”, mas também outros mundos,
mundos extrafísicos.

CAPÍTULO 3- PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA “OFICIAL”: PRESSÃO COLONIAL E NARRATIVAS DE RETOMADAS | 57


CAPÍTULO 4
A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO
TECNOLOGIA DE MORTE

História (artificial) “oficial”

A história dos invasores é oficializada na escrita, eles elegeram a


escrita como o modus operandi oficial da composição dessa história e impu-
seram aos mundos indígenas como única forma de aparecer oficialmente
na história. Os invasores tornaram oficial a forma deles de registrar e
sentir a história a partir das suas relações de mundo. Escrever, registrar
e documentar são métodos de controlar uma experiência colocando-a na
artificialidade da escrita, registrando-a num tempo e localizando-a num
espaço. As formas de registrar e documentar que compõem o método de
criação da história “oficial” dos invasores são compostas, sobretudo, a partir
dos conceitos criados para separar e controlar o espaço e o tempo. A expe-
riência histórica “oficial”, articulada com os registros e documentos, cria
uma experiência artificial de ler o espaço-tempo no Estado-Mercado-Nação.
A história “oficial” é tendenciosa e tende a exaltar o invasor. A his-
tória escrita é a forma de controle que o invasor acha mais prática para
sobrepor suas narrativas e colocá-las em patamar de verdade, dominando o
lugar de narrativa, dando-lhe o valor de “oficial”. O pensamento ocidental
“moderno” dá maior importância à escrita como essa instrumentalidade de
descrever o mundo. Através da forma de pensar e registrar as experiências
de vida, podemos perceber o marcador diferencial entre os povos indígenas
e os povos invasores. As diferenças de sentir a vida entre povos invasores e
povos originários acontecem em muitos aspectos, um deles está na forma

CAPÍTULO 4 - A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO TECNOLOGIA DE MORTE | 59


de narrar suas experiências coletivas singulares. As formas diferenciais de
pensar o conceito de história para povos invasores e povos indígenas dizem
muito sobre suas formas de pensar e sentir as relações de vida.
A história “oficial” contada, escrita e ensinada pelos invasores so-
bre nossos povos constitui uma das faces de extermínio, naturalização
e concretização do pensamento colonial. Ela cria de maneira proposital
fragmentos e lacunas sobre a existência e história de nossos povos, essas
faltas, buracos e silêncios são reflexos diretos do projeto invasor, criando
esse lugar de esquecimento para nossos povos dentro da história oficial.
O lugar da imprecisão, do mito, da lenda, da “inverdade”, aquilo que não
se sabe ao certo. É com esses olhares que o “mundo moderno” enxerga
nossos povos.
Uma história “oficial” criada e narrada pelos invasores gera uma
história tendenciosa, positivando suas “conquistas e descobertas”, e im-
prime no imaginário geral a imprecisão sobre a história de nossos povos,
negativando e acoplando aos povos indígenas a imagem conceitual de
lenda e mito. Para que a história “oficial” seja verdade, as experiências
coletivas indígenas devem ser narrativas míticas, e mito aqui se torna outro
nome para erro. A verdade da história “oficial” é justificada e criada pelos
métodos de criação dela mesma, o método científico é o método verda-
deiro de se chegar a uma verdade acerca de uma narrativa, já os métodos
indígenas, que não seguem os métodos ocidentais, são classificados como
“imprecisos”. Assim, os povos indígenas e suas narrativas de formação dos
seus mundos e modos de vida são colocados como “lendas”.
A história “oficial” como verdade, de certa forma, justifica o movi-
mento violento da colonização, fazendo com que nós, indígenas, sempre
sejamos vistos como inimigos da história “oficial”. Portanto, os movimentos
de retomada são “criminalizados” e vistos como um movimento “antinatu-
ral”, pois não são pautados na história “oficial”, então, um povo ancestral
que luta para retomar seu lugar de escolha, retomando seu posicionamen-
to e postura como povo originário, não tem apoio histórico, ideológico,
jurídico, antropológico, social, somos sempre vistos com desconfiança e
imprecisão por todos. “Será que esse povo é índio mesmo?”, “Onde eles
buscam as informações históricas de fontes seguras para afirmarem que
são índios?”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 60


Os movimentos conceituais de criação e deslocamento de conceitos
para apagar nossas narrativas de formação de povo, minando nossas forças
de ação e retomada, são arquitetados propositalmente pelo Estado-Mercado,
que é o maior interessado em não retomarmos esse lugar de escolha, pois
assim fica mais fácil escravizar as terras e lucrar com a destruição do
planeta. O movimento de deslocamento conceitual cria um conceito e em
seguida inverte sua polaridade, servindo ao interesse dos que querem ser
donos da terra. Isso é o que transforma, no imaginário do cidadão de bem,
nós, povos originários, em invasores, e produz um segundo movimento,
fazendo com que nós, indígenas, tenhamos medo de nos afirmar e retomar
nossa ancestralidade e singularidade de povo.
O medo de estar “mentindo”, de ser impreciso, também é um mo-
vimento implantado no psicológico dos nossos povos pela colonização,
um movimento bem articulado conceitualmente pelas tecnologias de co-
lonização: a ciência, formadora dos conceitos; o Estado, formador das leis
e da burocracia; e o mercado capitalista, formador da potência do desejo
de consumo como falta. Tudo isso é criado, trazido e implantado pelos
ocidentais para codificar e pensar as relações entre si e entre os outros,
transformando tudo numa relação de consumo.
A maioria dos conceitos cunhados pela ciência ocidental trabalharam
e ainda trabalham a favor da colonização de algum modo, pois são forjados
pela referência de base de suas relações, que são diferentes das relações
fundantes dos nossos diferentes povos originários. Por isso, os conceitos
criados pelas ciências ocidentais para pensar nossos povos são, de algum
modo, imprecisos. Não dá para pensar e sentir nossos povos utilizando os
mesmos pensamentos e ferramentas conceituais que a matriz ocidental
invasora. Ou seja, não podemos pensar de maneira anticolonial pensando
com os conceitos dos invasores. Por isso se faz necessário pensar a partir
de nossas memórias ancestrais, nossos sonhos e nossos antigos, retomar
conceitualmente, ampliar, e lutar também de forma conceitual. É necessário
pensar nossos próprios conceitos junto com a Terra, propor e criar uma
ciência conceitual indígena para se contrapor a essa que se diz “oficial” e
rasgar a verticalidade da imposição colonial, criando horizontes de eventos
a partir dos pensamentos-vida de cada povo.

CAPÍTULO 4 - A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO TECNOLOGIA DE MORTE | 61


Os movimentos de deslocamentos conceituais e as inversões de
polaridades criadas pelos invasores são perpetuados até hoje, elas vão
acontecendo juntamente com o movimento de avanço da atualização
colonial. Um mundo, quando pretende ser implantado e imposto pela
violência como único, não faz isso apenas pela violência física, ela vem
acoplada à violência conceitual, emocional e espiritual. Colonizar é impor
um mundo e um pensamento através do extermínio e da inclusão-exclusão
dos outros. Colonizar é gerar energia de morte nos outros mundos. Esse
movimento gera uma energia de extermínio, movendo a morte, destruindo
a Terra e matando os povos. Energia é movimento e movimento é energia.
A energia e o campo que a colonização e suas atualizações criam são de
extermínio, e quando modos de vida indígenas são exterminados, todo o
campo da Terra sente.
Nós, indígenas, sentimos e pensamos a vida, as emoções e as relações
de outras maneiras. Nossas relações singulares de povo, nossas experiências
coletivas são gestadas e brotam a partir de outros movimentos. Assim, não
pensamos por dualidades inclusivas/ excludentes, nossos povos são plurais.
Nossos povos vivem em pluralidade de emaranhamentos de sentimentos
e percepções com a Terra, é nesses horizontes de eventos que cada povo
brota, e é nesse lugar de escolha em que nossas experiências coletivas
como povo acontecem. Portanto, os conceitos de matriz europeia não
funcionam para entender e sentir nossos mundos indígenas. Conceitos
como os de natureza e cultura não funcionam do mesmo modo para nossos
povos, bem como não existe a mesma noção evolucionista de pensamento
colonial acerca do espaço-tempo.
A criação dos conceitos de colonização também são armas de grande
alcance, cristalizando-se e atuando dentro da historicidade-temporalidade
artificial criada pelo Estado-Mercado, para naturalizar pensamentos e
formas de ver os povos indígenas. Os conceitos colonias criados para
pensar nossos povos, são utilizados para identificá-los, criando um eterno
“looping”, no qual pensamos os mundos indígenas a partir das matrizes
de pensamento ocidental invasor. Assim, nunca propomos pensar nossos
próprios problemas, sempre pensamos e buscamos resolver os problemas
do Estado-Mercado. Um código-fonte é criado pelo Estado-Mercado para
pensar os povos indígenas e para o indígena pensar.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 62


As noções conceituais que permeiam as diferenças entre mundos
“modernos” e indígenas, ficam explicítas quando pensamos os conceitos
de natureza e cultura criados pelos pensadores ocidentais. A natureza está
acoplada a um código-fonte que prevê uma essência, enquanto a cultura
é um código-fonte que varia em relação à diversidade da natureza. Uma
está em contato com a outra: a natureza inclui as culturas, excluindo ou-
tras naturezas, e as culturas incluem uma única natureza, variando em
diversas culturas.

Experiência coletiva indígena

Nas vertentes transversais de transpassagem e atravessamento,


nossos povos sentem e fazem as suas experiências coletivas acontecerem
de maneiras diferentes. Esses acontecimentos das experiências coletivas
singulares vão compondo narrativas que vão formando, criando e apre-
sentando um povo. Nossa experiência coletiva é transmitida não só de
uma maneira e não a transmitimos em documentos, leis, arquivos e datas.
Nossas experiências com o espaço-tempo não são reguladas por registros
“oficiais”. Nossa experiência com a vida não está morta na lembrança
das páginas amarelas da história. As experiências coletivas17 dos nossos
povos são cultivadas na oralidade, no cotidiano, nos sonhos, na memória
ancestral e no encontro entre mundos, físicos e extrafísicos. Nossas expe-
riências coletivas são experiências de transpassagem. Podemos perceber
a diferença relacional com a vida e com a forma de senti-la e apresentá-la
para as próximas gerações.
A oralidade, para nós, povos originários, é uma composição de dife-
rentes frequências da experiência coletiva singular de cada povo. Ela por
si não é absoluta, mas nossos povos utilizam a oralidade juntamente com a
energia diferencial e de frequência de cada povo, tornando-a instrumento
de transpassagem dos nossos sentimentos. A oralidade é sentimento de
energia coletiva. Quando nossos troncos velhos transmitem parte de sua
sabedoria ancestral para as próximas gerações a partir da oralidade, eles

17
É a expressão através da qual trato o termo “história” para nossos povos.

CAPÍTULO 4 - A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO TECNOLOGIA DE MORTE | 63


não fazem isso de maneira individual, as vozes, os gestos, os sotaques,
os sentimentos, os acessos à memória ancestral são sempre coletivos. As
vozes se emaranham, e não existe mais barreira entre passado, presente e
futuro, a relação com o espaço-tempo acontece e para cada povo acontece
de um jeito diferente, ali existem redes, teias e caminhos emaranhados de
passado-presente-futuro, que estão sendo caminhados, tecidos e criados,
juntos. A oralidade é sentimento de composição coletiva, como tudo que
compõe nossos povos.
Outros sentimentos de composição da nossa experiência coletiva são
os sonhos, as intuições, a memória ancestral, tudo isso compõe a linguagem
dos nossos povos. Como indígena, penso e sinto a linguagem, para além de
símbolos, penso-sinto a linguagem como energia, uma energia de afeto,
afinidade e composição coletiva. Então, quando um tronco velho nos fala
sobre nossa experiência coletiva de povo, ele traz todo esse sentimento e
afeto do que é pertencer à Terra e a um povo filho dela para o aqui-agora.
Ele não fala de uma lembrança, ele está falando a partir do espaço-tempo
de seu povo. Nossa linguagem pela oralidade não transmite e nem traduz
apenas símbolos, signos, nossa linguagem traz energia de afeto e senti-
mento de pertencer a um lugar de escolha, a um povo. Nossa oralidade e
experiência coletiva trazem, transmitem, apresentam às nossas próximas
gerações, para além do espaço-tempo, o sentimento de ser indígena da
Terra. Nossa linguagem transmite energia de sentimento, nossa linguagem
é energética.
Nossa “história” é transmitida também pela oralidade, mas não só
por ela. Não está documentada em cartórios, pois nossa relação “histórica”
não é com o Estado-Mercado, nossa relação de experiência coletiva é com
a Terra. Nossos “registros” não estão arquivados e escritos nos papeis, está
no cotidiano, nos costumes e jeitos, nos sonhos, na memória ancestral e
nos mundos extrafísicos. Sentimos que somos indígenas com a alma. Essa
relação não é controlada, arquivada, datada, ela é livre e se faz todos os
dias cultivando e sendo cultivado na relação com a Terra, acontecendo
com todos os povos e seres que vivem nela em suas diferentes frequências
de vida. Nossas experiências coletivas singulares de povos são livres, orais
e sempre estão acontecendo em movimento e ação, energia e emoção.
Passado, presente e futuro não estão em lugares fixos e nem seguem uma

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 64


“linha do tempo”, uma ordem cronológica, acontecem aqui-agora e seguem
fluxos afetivos que cada povo e cada experiência coletiva faz.
A composição de cada povo em seus horizontes de eventos passa
pela maneira diferente com que eles sentem, vivem e transmitem suas
experiências coletivas. Nossas experiências coletivas transmitem senti-
mento, e pelas próximas gerações, nos fazem brotar.

Relações espaço-temporais de horizontes de eventos

As relações entre nossos povos são relações diferenciais, existe um


diferencial de cada povo que o torna singular, porém essa singularidade é
feita por um campo e pensada, sentida, a partir dos horizontes de eventos18
coletivos. Os sonhos coletivos da Terra formam nossos horizontes de eventos
coletivos, que são compostos pelos emaranhados de transpassagem entre
frequências e planos de ação, são as possibilidades de formação de nossas
experiências coletivas, gestadas a partir da abertura e amplidão de cada
povo em sentir a frequência e energia da Terra e do céu. As informações
ancestrais, estelares, espirituais, vão se emaranhando, juntando-se em
experiências coletivas, criando informações singulares, gerando, brotando
narrativas de formação e criação de mundos, sociabilidades, formas de agir
no cotidiano, isso vai singularizando a frequência diferencial de cada povo.
Essa frequência singular coletiva de cada povo gera campos de ação
coletivos, por isso um “indíviduo” nunca é “um eu”, a singularidade co-
letiva expande a consciência de cada indivíduo, tornando-a consciência
coletiva, todo indivíduo é coletivo. Por isso, para nossos povos, todos somos
corpos e campos coletivos de ação, nosso pensamento e sentimento estão
emaranhados com todos os seres.
É a partir dessa relação e sensação de coletividade diferencial que
aprendemos através dos ensinamentos da Terra que todos estamos inter-
ligados. Por isso não nos sentimos “donos” de nada, não somos “donos” da
Terra e não nos sentimos sós no planeta. Por isso, sabemos a importância
18
Penso “horizontes de eventos” similar ao conceito de “mundo”, mas não como algo fechado. Os
nossos “mundos” indígenas sempre são abertos, por isso, horizontes de eventos mudam, se expan-
dem e brotam.

CAPÍTULO 4 - A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO TECNOLOGIA DE MORTE | 65


e o peso gravitacional de cada povo. Os rios, o vento, o chão, as árvores,
os animais, os espíritos, todos são parentes, nossos irmãos, todos vivem
livres, sentindo o campo da Terra, sonhando, sendo sonhado e cultivado
por ela. Esse diferencial relacional nos faz povos diferentes, que pensam,
sentem e falam diferentemente sua mensagem acerca da experiência
coletiva do viver.
Nossas “filosofias” estão voltadas para a vida e para o viver. As expe-
riências coletivas dos nossos povos, transmitidas pelos relatos orais, não
são apenas linguagem, são energias e sentimentos de vida, trazem nelas
os sonhos, o pensamento da Terra e as vozes dos que vieram antes de nós,
atravessando espaço-tempo, quebrando uma cronologia de uma única
origem que controla. Nossos povos sabem que deixar para as próximas
gerações os sentimentos de vida e do viver com a Terra, é mais importante
do que deixar propriedades e coisas como herança.
Nossa postura diferente de vida bate de frente com a relação que os
invasores impõem à Terra. A proposta de “vida” da colonização é uma única
proposta de controle, quem não a absorver será constantemente caçado,
censurado, atacado, estará na mira do extermínio. A “proposta” de pro-
dução de vida dos invasores é artificial em todos os sentidos, é a produção
de uma vida controlada e a reprodução de um sistema de extermínio. A
história “oficial”, através dos registros escritos tratados como verdadei-
ros, vende a proposta de vida artificial como o fim almejado, dando força
e visibilidade a ela, e esse movimento de cristalização do projeto de vida
artificial credibiliza a história dos invasores como “oficial”, um alimenta
o outro. Desta forma, as experiências coletivas orais dos nossos povos são
sempre colocadas em outros “espaços-tempo” de menor importância.
Os espaços-tempo das narrativas indígenas não são os mesmos da
temporalidade-historicidade artificial criada pelo Estado, estão fora dela.
Assim, as narrativas de criação dos nossos são como narrativas aliens
para o Estado-Mercado, narrativas “não-oficiais”. Cada singularidade de
povo tem um espaço-tempo de criação em seus horizontes de eventos e,
nesse emaranhado, as informações que chegam e compõem os diferentes
horizontes de eventos, vão transpassando-se em experiências coletivas
em que brotam as narrativas de criação e formação de mundos. Em nossos
espaços-tempo de criação de cada povo, sentimo-nos como singularidade

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 66


diferencial e entendemos o nosso lugar de escolha de cada povo, a partir
dos ensinamentos da Terra.
Indo por esse emaranhado de pensamento-sentimento, podemos
perceber que as narrativas de criação de mundos indígenas são muito
diferentes das narrativas artificiais de criação dos “mundos modernos”.
As experiências coletivas orais dos nossos povos com a linguagem são
sabedorias e tecnologias do espírito que transpassam e ampliam-se para
além dos signos, símbolos e significantes, não pensamos nem sentimos a
linguagem como o “homem moderno”.
O movimento de implantação do modo de produção do “homem
moderno” foi tornando-se “natural”, mas não de maneira natural. O modo
de produção de morte foi se reproduzindo em campos, conceitos, leis,
cotidiano, energia, sociabilidade e imaginário. O imaginário do cidadão
comum foi povoado e cristalizado numa única forma de produção de so-
ciabilidade. Esse movimento narrado pela história “oficial” a partir de seus
instrumentos de alfabetização, ou seja, de modelagem de cidadãos, através
da educação, perpetua a história dos invasores como um ato heroico e nos
coloca como ultrapassados e inimigos do progresso.
Portanto, faz-se necessário que o modo de produção do modelo co-
lonial atualizado no capitalismo seja implantado e visto como único meio
viável de sociabilidade. Com isso, os modos de vida dos povos originários
têm que ser deslegitimados e eliminados. Um código-fonte único gerado e
implantado pelo Estado-Mercado invade o pensamento, a alma e o corpo
dos seus súditos cidadãos. A invasão do Estado-Mercado não foi/ não é só
física, ela também se configura numa invasão interior, uma mudança de
percepção e sensação da vida. Uma invasão de mudanças de conceitos e
de implantação conceitual.

CAPÍTULO 4 - A HISTÓRIA “OFICIAL” COMO TECNOLOGIA DE MORTE | 67


CAPÍTULO 5
GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL

Estado-mercado: modelo de controle oficial

O Estado-Mercado é o maior interessado nas terras indígenas e no


desaparecimento dos modos de vida indígenas, é o maior mandante dos
crimes e assassinatos contra os povos originários. As balas que matam os
povos indígenas, que antes eram disparadas pela coroa, hoje são dispa-
radas do congresso nacional. A formação fundiária do território que hoje
se chama Brasil é o resultado geral da invasão, roubo, morte e destruição,
promovida pelos povos “civilizados” europeus. A implantação e imposição
da hegemonia do Estado-Mercado e suas formas de gerir a territorialidade
e a sociabilidade baseadas na propriedade privada e no individualismo fo-
ram e ainda são as diretrizes de pensamento e produção da vida artificial
do Estado-Mercado.
Assim, o Estado-Mercado toma posição e pretensão universal de
verdade como movimento “natural” de progresso. O conceito de progresso,
trazido e implantado pelas formas de pensamento e produção artificial
de vida dos invasores ocidentais, funciona concomitantemente com os
conceitos de temporalidade e historicidade-espacialidade, criados pelo
Estado-Mercado. O progresso é um movimento que se pretende “ir em
frente”, avançar, “evoluir” na temporalidade cronológica, com o “passar
do tempo” e na espacialidade física, com as narrativas históricas “oficiais”.
O modo de produção de morte capitalista domina e impõe sua ener-
gia de sociabilidade, sua temporalidade e sua espacialidade nas relações.
Sua “filosofia” se torna a referência nas relações cotidianas, econômi-
cas, sociais, políticas, geopolíticas, cosmopolíticas, emocionais, mentais,

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 69


espirituais e no imaginário, controlando a morte. Aos diferentes e con-
trários ao modelo de produção de morte do Estado-Mercado só restam
dois caminhos: a conversão, que é a inclusão, que exclui e extermina aos
poucos, ou o extermínio literal imediato. A produção de morte em massa
promovida pelo Estado-Mercado transforma todos em consumidores e
tudo em algo consumível, visando também transformar a grande maioria
dos “sujeitos” consumidores em pobres, miseráveis, famintos, sem-terra,
sem-teto, desprovidos do dinheiro, que é o mecanismo de valoração da
vida no jogo capitalista, para gerar dependência e dívida para muitos,
lucro e vida para poucos.
A experiência coletiva no Estado-Mercado é a experiência do con-
sumir. Consumir uns aos outros, consumir a Terra, consumir dinheiro,
consumir a si mesmo, para gerar o valor ilusório de uma experiência de
vida artificial, que produz e gera morte, um desejo megalomaníaco base-
ado no poder e no egocentrismo de uma ideia universal de controle. Uma
forma de organização implantada no imaginário coletivo dos seus súditos
brasileiros como, oficial, natural, universal e única possível. A implantação/
imposição de um modelo de produção que mata a vida do planeta. Não
existe capitalismo, ou sistema de produção em massa de excedentes que
seja sustentável e esteja em harmonia com a Terra. O modo de produção
capitalista, se não for parado, vai destruir o planeta.
O Embrião do Estado-Mercado invadiu e implantou pela força da
violência uma hegemonia de pensamento oficial, ele pensa e forma sua
sociabilidade por propriedade e não em conjunto com a Terra. Esse pensa-
mento oficial é vinculado a uma sociabilidade criada pelo Estado-Mercado.
Como exemplo disso podemos citar o nacionalismo, fenômeno que reivin-
dica uma espacialidade e temporalidades artificiais, metafísicas e que só
tem conjunto ideológico, ou seja, não se efetiva no cotidiano como força
ativa, mas se efetiva no cotidiano como força manipulativa. Não é neces-
sário efetivar na prática a ideia. A ideia se efetiva no coletivo imaginário
e a partir daí programa a artificialidade das relações, noções e formas de
sociabilidade. Os conceitos geográficos oficiais de fronteiras e a história
“oficial” criados pelo Estado-Mercado são ferramentas conceituais e cien-
tíficas utilizadas para implantar nesse imaginário essa unidade nacional.
Essas ferramentas oficiais são implantadas no coletivo imaginá-
rio dos súditos cidadãos brasileiros a partir da educação, que também

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 70


é completamente formulada nos moldes de enriquecimento do Estado-
Mercado. Assim, os brasileiros, filhos do Estado, desde que nascem são
registrados, rotulados, nomeados e introduzidos desde cedo no programa
de educação do Estado-Mercado. O Estado-Mercado implanta o quanto
antes, um modo de “ter” no embrião de cidadão, motivando-o a consumir,
gerenciando suas experiências artificiais com a vida a partir da sociabi-
lidade de consumo. Esse é o modo de produção do Estado, que produz
consumidores, moldando suas formas de pensar e viver.
O Estado-Mercado “ensina” seus cidadãos a desejar, ter posses, a se
relacionar por propriedade e em todas as relações o cidadão vê em seu
fim, “fins lucrativos”. O Estado capitalista ensina o seu “filho” a ser con-
sumidor. Os conceitos de humano, cidadão e consumidor, na sociabilidade
e pensamentos ocidentais de Estado-Mercado, são sinônimos, funcionam
às vezes aglutinados, às vezes individualizados, mas nunca separados de
sua natureza que interage diretamente com o Estado-Mercado, o desejo
de consumo. Tudo é propriedade, mercadoria e pode ser consumido, as
relações são de posse e controle, o pensamento é dualista de certo e erra-
do, a norma e a “igualdade” são definidas de acordo com a meritocracia.
O Estado-Mercado cria um código-fonte de interação e sociabilidade
artificial que vai reger a experiência artificial coletiva de temporalidade
e historicidade produzida no cotidiano do próprio Estado-Mercado. O
sentimento nacionalista opera nesse código-fonte que se relaciona e
interage com o Estado-Mercado. O conceito de brasileiro também opera
por esse código-fonte e é composto por ele, o cidadão brasileiro é o súdito
que interage com as “luzes” do Estado-Mercado, encarnadas na ideologia-
-sociabilidade burguesa de consumo, nas leis e no imaginário coletivo do
cidadão comum. O consumidor é o conceito em simbiose com o código-fonte
do Estado-Mercado. Este conceito está em todas as articulações e mecanis-
mos de sociabilidade, as relações do Estado-Mercado são de consumo, tudo
se consome na sociedade “moderna” e o desejo de consumir é instigado e
tratado como normal. Produzir uma experiência de artificialidade de vida
pautada no consumo é o objetivo do Estado-Mercado e isso é articulado
na criação e na interação do código-fonte. Esses conceitos se articulam e
estão em simbiose com o código-fonte gerado pelo Estado e pelo Mercado.
Para que o modo de produção da empresa colonial fosse implantado,
criando o embrião do código-fonte de Estado-Mercado, e fosse se atualizando

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 71


até hoje, os modos de vida dos horizontes de eventos dos povos originários
teriam que ser eliminados, transfigurados, decodificados e recodificados.
Um código-fonte único e novo iria invadir o pensamento, alma e corpos
dos povos indígenas, o código-fonte colonial pensado a partir dos conceitos
burgueses iluministas de cidadania, progresso e propriedade.
A Terra, o espírito, a encantaria, as formas de se relacionar, o espaço-
-tempo, a memória ancestral, os sonhos, a língua, a linguagem, a aparência,
as vestimentas, tudo nos foi roubado, criminalizado, mudado, tudo agora
obedece à lógica do código-fonte, do poder, da posse, da produção, do
consumismo. Esse conceito de código-fonte, trataremos aqui como maté-
rias bariônicas19, matérias artificiais conceituais ideológicas criadas pelo
pensamento dualista ocidental para interagirem com as “luzes” do Estado-
Mercado e sua pretensa universalidade. As matérias bariônicas fundantes e
articuladoras do código-fonte da sociedade “moderna” interagem com as
leis e a sociabilidade artificial de temporalidade e historicidade “oficial”
criada pela própria experiência. O Estado-Mercado implanta esse código-
-fonte no desejo do cidadão de bem, e ele age por si, ampliando o desejo
de consumir.
O capital é esquizofrênico e se move sem lógica linear, mas cria a
experiência coletiva artificial de progresso, baseada na temporalidade
cronológica, que não está ligada ao tempo, mas ao consumo do tempo, ao
“passar” do tempo. Assim também essa experiência artificial é baseada
numa historicidade “oficial” demarcada pelos arquivos e datas “oficiais”,
que não está ligada ao espaço, mas a uma espacialidade, que acontece
junto com o passar do tempo. Esse movimento é chamado de progresso. A
temporalidade-historicidade é acoplada e implantada no cotidiano como
experiências artificiais que se cristalizam como “oficiais”, logo, temos uma
falsa experiência espaço-temporal com a vida. Essa experiência artificial
não se efetiva só no campo da vida física cotidiana, ela também acontece
em outros campos do viver. Os campos de relações emocionais, mentais e

19
Na física, matéria bariônica é toda matéria que interage com a luz. Partindo do pensamento que
o modelo de Estado-nação que foi utilizado para forjar o Estado brasileiro foi o que se baseava nos
ideais iluministas, busco mostrar que o brasileiro, conceito criado a partir do Estado-nação, é feito
de semelhanças conceituais de base e código-fonte de ideais iluministas. Assim, matéria bariônica
de estado é todo aquele brasileiro que interage com as luzes do iluminismo como conceito de for-
mação de uma nação. Matéria bariônica é toda a massa do estado-nação que é favorável aos ideais
de progresso do iluminismo e do capitalismo.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 72


espirituais, também são afetados, fazendo com que as experiências nesses
campos sigam a lógica artificial da temporalidade-historicidade implantada
pelo Estado-Mercado.
Nós, povos originários, não interagimos a partir da identidade com
o Estado-Mercado. Nossa interação com ele é baseada na diferença entre a
identidade universal do Estado-Mercado e a pluralidade de nossos povos.
A identidade Estatal de mercado quer impor sua forma de pensamento e
escravização a todos e à Terra. Isso gera o conflito, a guerra de mundos
entre nossos povos e o Estado-Mercado. Para nós, a vida é mais importante
que o lucro, a Terra, nossa cúmplice, é mais importante que a produção,
“estar junto” e “fazer com” é “prioridade” e não propriedade; como bem
declara o Pajé Luiz Caboco, “Quando digo: ‘eu’, estou só”20.
O Estado-Mercado está sempre na ofensiva, é agressivo, quer de-
vorar a Terra, quer o controle soberano de tudo e extermina quem quer
impedi-lo. O Estado-Mercado quer controlar o território, física e ideolo-
gicamente, buscando controle sobre o corpo, a alma, o pensamento e as
relações. Assim, quando ele é atacado ou desobedecido por formas de vida
que colocam sua pretensa soberania em questão, ele aumenta a intensidade
dos ataques em várias frentes, “resolvendo” o problema, por assimilação
e por eliminação direta e literal.
É nessa perspectiva de destruição da força de singularidade indígena
que o Estado-Mercado ataca para matar. A existência de outras formas de
vida, dentro do “território nacional” é o indicativo da não soberania do
Estado-Mercado, uma incongruência neste conceito. A esse movimento
de fora das matrizes do Estado chamo de um movimento Bae Damã, o
alien, de fora. Um movimento de campo diferencial energético contra o
Estado-Mercado, diferente do movimento da produção de morte da socia-
bilidade que ele produz. Para nós, povos originários, indígenas, a luta não
é por território (propriedade) e, sim, com a Terra (vida). Não lutamos por
direitos dentro de um Estado-Mercado, não queremos fazer parte de uma
sociabilidade e de uma sociedade que destrói e escraviza a Terra, lutamos
pela não existência delas, lutamos por vida em cumplicidade com Terra e
com todos que são diferentes e fazer isso é demarcar um lugar de escolha
que não faz parte de um Estado-Mercado. Lutar com a Terra é lutar contra
20
Pajé Luiz Caboco, povo Tremembé de Almofala.

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 73


a hegemonia de uma única visão de mundo e pela garantia de que todos
os mundos cosmológicos diferentes possam continuar existindo.
A Terra para o pensamento ocidental é um espaço que está ali para
servir e ser explorado pelo humano. No pensamento ocidental, tanto no
religioso (judaico-cristão), como no científico (evolucionismo), o humano
é o ser mais evoluído do planeta e isso faz com que ele seja o “gerente” de
todos os outros seres, se colocando no topo da hierarquia, olhando todos
os outros seres e povos, de cima pra baixo, não se colocando dentro do
ciclo de vida das diferentes cosmovisões que se conectam no planeta. Desta
forma, a ideia de preservação, de sustentabilidade, de exploração cons-
ciente, presente hoje no Estado-Mercado, vem da ideia e do pensamento
de que só os humanos sabem explorar e gerir bem a vida e o progresso da
sociedade no planeta. Sem eles, o planeta seria “primitivo”. O conceito
de progresso está ligado ao tempo que passa e ao espaço que é modifica-
do, ou seja, ao tempo e espaço que são consumidos. O tempo no mundo
“moderno” devora tudo, consome, e traz com ele o “progresso”. O espaço
“primitivo” é consumido, modificado e dá lugar ao espaço “moderno”, é
a força do “progresso”.
O conceito de progresso está articulado e acoplado aos conceitos de
ciência e humano. O espaço conectado ao conceito de ciência é o espaço da
verdade, do laboratório e dos métodos “modernos”. O conceito de humano,
está ligado ao tempo e à sociabilidade das relações, e, sobretudo, ao con-
ceito de identidade. Só se é humano quando você consegue identificar no
outro sua humanidade. Esses blocos conceituais são criados e estão todos
amarrados ao Estado-Mercado, interagem diretamente com as “luzes”
primeiras do Estado-Mercado burguês do iluminismo. Por esse motivo, a
Terra ganha o aspecto de espaço-tempo vazio de vida, em que os huma-
nos podem moldar sua experiência, produzindo, lucrando, explorando e
destruindo sem nenhum remorso.
A Terra, a partir do pensamento ocidental cunhado na revolução
burguesa, é vista, sentida e vivida como objeto de posse, lucro e luxo para
os humanos. E esses humanos não são todos, eles são poucos, são algumas
pessoas. Aqueles que não são humanos em sua essência sempre estão no
meio do caminho entre o selvagem e o humano, mas nunca irão se tornar
humanos. Isso faz com que o conceito de identidade no Estado-Mercado

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 74


seja uma busca que não tem fim. A identidade é variante, diversa, mas
não é diferente, ela é centralizadora, pois a natureza é única, a humana.
Então, das duas, uma: ou já nascemos todos humanos, só não sabemos que
somos, e vamos nos tornar, ou não nascemos humanos e nunca vamos nos
tornar um. Esse conceito de humano cria o acoplamento de uma iden-
tidade planetária a partir dos Estados-Mercado. É assim que nascem os
“direitos humanos”, baseados numa perspectiva de humano cunhada pelo
pensamento ocidental, e é a partir deles que muitas invasões no “mundo
moderno” são iniciadas, disfarçando os interesses comerciais.
A percepção da Terra, para o Estado-Mercado, não passa pelo afeto
e pela afinidade, ele a vê como mercadoria, é apenas um recurso material
que deve ser explorado para a produção de mais mercadoria e consumido-
res, mantendo o “progresso” e a continuidade da “sociedade moderna”. A
sociedade “moderna” na forma de “humanidade” devora a Terra e chama
isso de “progresso”. Nós, povos indígenas, vivemos em cumplicidade com
ela e somos chamados de selvagens. Nossos povos e a Terra são afins, assim
como são afins o Estado-Mercado e o lucro. O olhar do modo de produção
capitalista retira todo o encanto da Terra, transformando-a em território de
mercado, território de pensamento do consumo, alienando, escravizando
e “esvaziando” as terras de afetos e afinidades ancestrais.
Os “modernos” não têm nenhuma ligação ancestral de encantamento
com a Terra, a ligação deles é de consumo e desarmonia. O funcionamento
do pensamento binário ocidental se aplica no binarismo territorial estatal
público/privado. Essas são as relações de território que o Estado-Mercado
impõe. O público/privado funciona como duas faces de um mesmo pen-
samento, que tem no lucro e na propriedade seus maiores expoentes. O
Estado-Mercado vê a Terra de forma dual, propriedade-lucro. Os povos
indígenas a veem de maneira multidimensional.

Cosmovisões em conflito

O Estado-Mercado em seu conceito central de existência afirma-


-se como soberano, e soberania, neste sentido, quer dizer originário de
todo poder. Por isso, em sua ideia inicial não se pretende coletivo, mas,

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 75


sim, único. E para manter o controle soberano de seu território necessita
ser soberano belicamente, economicamente, ideologicamente e cosmo-
logicamente, eliminando as formas de vida que não interagem e nem se
submetem a ele. O Estado-Mercado soberano impõe fronteiras, limites e
posses ao seu território, ele é dono e soberano de tudo. Mas o que é “ser
dono” de algo? Já o sentimento cosmológico indígena é diferente, não
pensa a Terra como propriedade, e muito menos que somos “donos” da
Terra. Nós pertencemos a ela. Mas o que é “pertencer” à Terra? Essas duas
perguntas cosmológicas são perguntas que iniciam mundos e continuam a
ser feitas na guerra dos mundos. “Pertencer” e “ser dono” são perspectivas
cosmológicas bem diferentes de se relacionar com a Terra.
Pertencer à Terra, saber que sua relação com a vida é de aconte-
cimentos, fluxo e coletividade, é sentir as relações horizontalmente a
partir de afinidades singulares entre povos, é sentir que todos os povos
são diferentes e que todos são importantes no emaranhado da teia da vida
que se amplia no planeta. Pertencer à Terra é pertencer a um povo e uma
experiência coletiva de relação com ela, sabendo que ela nos nutre como
maior, como cúmplice e nós a nutrimos existindo em convivência com ela e
com os outros povos. Pertencer à Terra, é pertencer a um lugar de escolha
de relacional, é ter postura coletiva, bem diferente do querer “ser dono”.
Pertencer é sentir o emaranhado e as conexões que nos ligam uns
aos outros, entendendo a diferença que nos separa não como conflito, mas
como possibilidade diferencial do novo. Os modos de vida que sentem,
pensam e convivem com a Terra, relacionando-se com ela como cúmplices,
não a veem apenas como territórios físicos, um chão que se habita, mas
como horizontes de eventos que criam experiências coletivas singulares
de povos que ampliam o campo de emaranhamento e ação da Terra.
A Terra para nós, indígenas, é campo de vida que amplia as expe-
riências coletivas singularidades de cada povo, as experiências entre os
povos e com a própria Terra. É campo de campo, vida de vida, em que
a morte não existe e nem é sentida como é para os ocidentais. A morte,
para nossos povos, é ampliação da mudança de estado energético e ação
junto à Terra, é mudança e simbiose entre nós e a Terra, assim como a
vida. Morremos para brotar do chão. Nossos povos não morrem, nossos
antigos não morrem, nossos mundos não morrem, nossos modos de vida

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 76


não morrem, eles se encantam, transpassam, ampliam sua conexão com
a Terra em outras frequências de viver e continuam vivendo. Não existe
uma única referência como identidade de vida, mas diferentes e múltiplas
ações de viver.
O campo gravitacional, campo de gravidade, campo de vida, cam-
po de memória ancestral, campo de sonho, campo cósmico, campo de
encantaria, campo da oralidade são campos que compõem os horizontes
de eventos da Terra e que se emaranham e se relacionam com os campos
ancestrais de cada povo. Isso cria nossa singularidade de povo da Terra, o
horizonte de evento de cada povo. Essa relação que cada povo tem com a
Terra é muito mais ampla do que o território-local que ela ocupa (locus).
O pensamento ocidental, de “ser dono”, baseia suas formas de pensar
a partir do desejo de consumo como falta, a busca pelo que não se é e pelo
que não se tem, a posse, a propriedade, o dualismo “eu-outro”, a profunda
relação individual com o “eu”. Essa matriz de pensamento cria as formas
dos povos ocidentais de se relacionarem e organizarem suas sociabilida-
des. As estruturas psíquicas, mentais, emocionais e espirituais dos povos
ocidentais, por organizarem-se de formas diferentes das formas de vida
indígenas, veem a diferença como problema, enxergam tudo aquilo que
não se identifica com o “eu”, como inimigo.
Essa forma de se organizar mentalmente, espiritualmente e emo-
cionalmente reverbera nas formas sociais de suas instituições e relações
de vida. A propriedade, “ser dono”, ocupar a terra dessa forma, acumular
bens é sinônimo de prosperidade e “progresso”. Os invasores mudaram
tudo, implantaram seus conceitos de mundo e os universalizaram à custa
de violência e morte. Os pensamentos e ações dos mundos dos povos origi-
nários foram deslocados para o plano do primitivo pelo mundo “moderno”
único do invasor. Todos os conceitos “modernos” foram implantados e
ganharam força cosmopolítica e de imposição através da ciência “mo-
derna” e das leis que se efetivaram a partir do mercado. Toda sociedade
moderna é artificial, não existe nada de natural, é uma experiência artificial
implantada que visa ao lucro.
Os povos originários indígenas passaram de invadidos a invasores,
de povos livres a povos devedores. Tudo se modifica. A Terra passa a se
chamar território e a se atribuir valor e escritura a ela, as fronteiras e as

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 77


cercas aparecem, a geografia muda, a física de sentir e pensar o espaço-
-tempo muda, a forma como registrar e transmitir a experiência coletiva
histórica muda, a língua muda, a sociabilidade muda. Todos passam a ser
chamados genericamente de brasileiros, respondendo e interagindo com a
identidade nacional de massa, com a matéria bariônica, criada pelo Estado-
Mercado para unificar metafisicamente no imaginário coletivo suas dire-
trizes de funcionamento. O referencial diferencial de pensamento e vida
dos povos originários sofre uma mudança, um deslocamento conceitual
gravitacional. O conceito de identidade, implantado pelos ocidentais, é o
conceito-chave para se entender a cosmologia invasora.
Pertencer à terra é pensar, viver, agir e orientar-se em outros campos
de espaço-tempo, ou seja, em outro paradigma que não se refere apenas
ao território físico, mas a uma Terra afetiva, ancestral, espiritual, suas
outras dimensões de vida. É uma afinidade percepcional. Assim, território-
-propriedade e Terra, como aqui analiso, são duas categorias distintas que
marcam um limite dimensional entre duas percepções de sentir a vida.
São espaços-tempo de ação e ocupação diferentes, são histórias, geogra-
fias, sentimentos e experiências coletivas distintas e, portanto, produzem
gravidades e efeitos de campos gravitacionais bem distintos quando se
transpassam. É no campo do planeta que os efeitos da gravidade dessas duas
maneiras de se relacionar com a Terra se manifestam, gerando ondas de
impactos uma na outra, criando formas de conflito e de postura distintas.
A expressão dessa afinidade de percepção dos povos indígenas com
a Terra não está inscrita na figura das leis ou dos títulos, mas na viva re-
lação que nossos povos têm com ela. Uma relação que transpassa e ocupa
todos os povos e todos os povos a ocupam, dimensões múltiplas que se
emaranham. É a gravidade afetiva da Terra, ou seja, o peso afetivo que nós,
indígenas originários, sentimos em nossa relação com ela. Caminhamos
por dentro das águas, das matas, nas areias, com os pés descalços sentindo
cada vibração e cada pulsação da Terra, sobrevoamos Vuóvogú21 com au-
xílio e ensinamentos de nossos encantados, sentindo o cheiro dos bichos,
do vento e dos dias. São esses sentimentos e sensações que nos ensinam
a perceber a Terra, a sentir os mundos singulares de cada povo, a viver
os mundos e as dimensões dos não-humanos e a aprender sobre nossa

21
Vocábulo da língua Guaná, do povo Aruak, que quer dizer “Nossa casa”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 78


experiência coletiva, sentindo o nosso lugar de escolha de cada povo. É a
linguagem da Terra “sem língua” que sabemos falar e que os brancos e os
outros não-indígenas não sabem ou desaprenderam.
O emaranhamento relacional dos povos com a Terra se amplia,
revigora e propaga na luta. Isso vai para além do território físico, a ener-
gia da Terra está em cada povo, inscrita como linguagem de afinidade
percepcional. Assim, a ancestralidade memorial de cada povo chega até
hoje, através dos sonhos, dos encantados e da Terra, rasgando o espaço-
-tempo cronológico oficial, pois essa ancestralidade não se propaga pela
temporalidade-historicidade cronológica, ou pela cor de pele, ou pela
língua, ou pela cultura, ou pelas características fenotípicas. Ela é sentida
e vivida, é o que nos dá força para lutar, brotar e resistir sempre.
O passar do tempo histórico cronológico, que é o tempo “oficial” do
Estado, não é suficiente para eliminar o campo de gravidade relacional que
os povos originários têm com a Terra. Esse campo é sentido na memória
ancestral e está em nossos sonhos, em nossa ação. Mil gerações vivem em
mim. Então, desde que se mantenha viva nossa ligação com a memória
ancestral da Terra, nossos ancestrais vivem em nós e lutam conosco, co-
nectados pelos sonhos da Terra, usando a força da Terra. Essa é a nossa
força afetiva, que nos faz continuar.
A conexão da memória ancestral entre nós e os antigos ganha força
no campo da Terra e materializa os ensinamentos e a ação dos antigos no
aqui-agora, ampliando as perspectivas de retomada, criando uma nova
fase em nossa experiência coletiva enquanto singularidade de povo. Viajar
pela memória ancestral dos nossos antigos é viajar pela memória da Terra.
Essas novas visões nos dão novo conhecimento de nossa história ances-
tral, a partir da qual aprendemos novos aspectos sobre nós mesmos como
povo, ampliando o campo de nossas experiências coletivas, criando novas
lembranças e experiências com nossos antigos. Isso mostra como nossa
relação com a Terra, com a memória ancestral e com os sonhos é dinâmica
e está em intensa criação. Essa conexão cada vez mais nos dá acesso aos
sonhos da Terra. Somos povos que sonham com a Terra.
A relação e ocupação afetiva com a Terra atravessa a temporalidade-
-historicidade cronológica registrada nos arquivos e tornada “oficial” pelos
invasores, e entra em conflito com essa forma de querer controlar a vida.

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 79


O sistema de produção de morte do capitalismo devora e desequilibra o
campo gravitacional da Terra e todos os outros campos que estão ligados
a ela. Nós, indígenas, não queremos fazer parte da sociedade que devora a
Terra. Nossos modos de vida estão emaranhados com a Terra e sua saúde.
Esse pensamento multidimensional coletivo é o que move nossos povos.
Os diferentes povos indígenas funcionam em diferentes espaços-
-tempo, exercendo forças, frequências e gravidades junto à Terra, con-
fluindo em vida coletiva. Existem conflitando a oficialidade da tempora-
lidade-historicidade cronológica “moderna oficial” da sociabilidade do
Estado-Mercado, ameaçando sua soberania da narrativa temporal-histórica,
colocando as “certezas oficiais” do Estado-Mercado em xeque. A guerra
cosmológica dos mundos entre Estado e povos indígenas originários não
é travada só no campo físico, ela é travada em outros sentidos e campos
para nossos povos.
A partir de 1980, com o processo de “redemocratização” do Brasil,
os povos indígenas ganharam mais visibilidade política e o processo de
demarcação foi abordado de maneira mais explícita com a constituição
de 1988, a primeira a citar as populações indígenas originárias no texto
oficial. A partir desta data, o processo administrativo de delimitação,
demarcação física, homologação e registro recebeu mais atenção, o que
durou até meados da década de 1990, mas até hoje as determinações da
constituição não foram cumpridas e ainda faltam muitas terras indígenas
a serem demarcadas.
A tensão entre forças diferentes de relação com a Terra tem, de um
lado, o Estado-Mercado, detentor dos instrumentos de extermínio com-
postos pelos aparelhos militares, jurídicos e burocráticos que pretendem
a continuação do controle exclusivo, exploração e destruição da Terra,
e, de outro, os povos originários indígenas, que vivem outros modos de
vida e viver.
A luta dos povos indígenas com a Terra e contra o Estado-Mercado
reúne diferentes povos, que possuem sua singularidade coletiva e cosmo-
logias localizadas e conectadas às diferentes regiões do país, formando
emaranhados de afeto em que se articulam, fazendo transbordar a luta local
numa luta planetária. O conceito de emaranhamento de afetos com a Terra
sentido nas relações dos povos indígenas com a vida, não está conectado

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 80


ou tem matriz de pensamento junto ao conceito de identidade trazido pelo
pensamento dualista ocidental. Nossos povos e seu emaranhamento com
a vida não se orientam pelo pensamento e sentimento de identidade de
unidade de massa, nunca formaremos uma “unidade nacional” dos povos,
pois nossa força está em sermos plurais, diferentes. É isso que faz trans-
passar e movimentar diferentes ritmos nas singularidades de povo. Essa
diferença de campo plural de nossos povos é o que nos dá força, é o que
nos encanta, é o que afronta e tensiona o conflito com o Estado-Mercado.
O Estado-Mercado chama todos os nossos povos de “índios”, para
tentar classificar, esvaziar e controlar de maneira genérica nossa plura-
lidade singular de povos, mas nós não somos “índios”, somos indígenas
originários. Não por postura de identidade e cultura, mas por relação
diferencial com a vida. Cada povo tem sua singularidade coletiva, todos
são diferentes e plurais.
Desta forma, sou Tapuya-Takariju, indígena originário, nordestino,
cearense e brasileiro, tudo ao mesmo tempo, em espaços-tempo diferentes,
em ações, relações e movimentos distintos, mas todos num vetor de luta
com a Terra, contra o Estado-Mercado. O movimento “quântico” conceitual,
relacional e diferencial do sentir a vida dos povos originários indígenas
confunde os censores e códigos do Estado-Mercado. Nossos povos são
como fumaça, cura, some e aparece. Somos como o vento, brisa e furacão,
somos a Terra, somos os sonhos dos nossos antigos, aparecendo e sumin-
do, lutando com a Terra. Nossos povos são imortais, sempre brotaremos
enquanto houver planeta Terra.

CAPÍTULO 5 - GUERRA COSMOLÓGICA CONCEITUAL | 81


INTUIÇÃO PARA A SEGUNDA PARTE

Nossa linguagem é energia, somos memória,


sonho e ação

Para além de pensar um conceito de língua...


Para além de pensar um conceito de linguagem...
Para além de pensar em símbolos, signos, significantes e
significados...
Pensar sem rigidez, pensar em coletivo, pensar dentro da
memória e dos sonhos.
Para nós, povos indígenas, linguagem funciona como transpas-
sagem das experiências coletivas, que compõem nossas narrativas
de formação de mundo.
Os mundos não se traduzem. Eles acontecem. Nós o vivemos
em nossas experiências coletivas de povos singulares.
Linguagem é intuição, criação, memória, sonho e ação.
Viver é entoar a linguagem-vida, fazer brotar, o povo-energia.
Nossos diferentes povos sentem as linguagens por naturezas
diferentes.
Os mundos em atravessamento cósmico cruzam-se e aconte-
cem em linguagem.
Nossos povos sentem sua linguagem no rio; outros, nas matas;
outros, na fumaça e junto com os espíritos.
Percebemos a linguagem como energia, um sentimento que
nos conecta com a Terra.
A língua é viva, e a linguagem coletiva.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 82


Elas não separam mundos, elas conectam diferenças a partir
da memória, do sonho e da ação. Nossa linguagem é Terra.
Para nós, indígenas, a linguagem é um meio de compor e
transpassar energia e sentimento, criar vida, uma comunicação
energética, para além da língua.
Nossa linguagem conecta-se com o sol, as estrelas, os animais
e os espíritos.
Comunicamos-nos com todos os povos, sem língua.
Transmitimos e sentimos a memória ancestral, a energia dos
povos da Terra, os sonhos dos ancestrais.
Sonhamos com a Terra e somos sonhados por ela.
Independentemente de sabermos ou não nossa língua-mãe,
sentimos a linguagem da Terra, sentimos sua energia e vida.
E isso nos faz indígenas da Terra.
Nossa linguagem é energia, somos memória, sonhos e ação.

Coelho Takarijú.

Nossa linguagem é energia, somos memória, sonho e ação | 83


ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 84
CAPÍTULO 6
ESPAÇO-TEMPO DIFERENCIAL
INDÍGENA

O ritmo da terra

A diferença de perspectivas relacionais com a vida dos diferentes


povos que atravessam o Brasil apresenta-se nos vários emaranhamentos
e acontecimentos que emanam das lutas com a Terra. Essa diferença de
perspectivas não aponta só uma diferença cultural, mas também uma dife-
rença gravitacional, ou seja, uma diferença referencial. Cada povo tem um
“peso gravitacional”, um ritmo, um campo de ação e relação com a Terra
e isso é crucial para se entender a vida e a experiência coletiva singular
que envolve os diferentes povos e suas relações com a Terra.
Os diferentes povos que vivem em diferentes frequências de relação
com a Terra transpassam-se uns aos outros, atravessando e compondo
campos de vidas coletivas de ação com a Terra. Isso não significa compor
uma “cultura”, mas compor horizontes de eventos diferenciais que po-
dem mudar dependendo da percepção, da sensação, do sentimento e da
afinidade que o povo tem com a Terra. Assim, compomos o Dzu-dé Undé22,
“nosso lugar” no planeta. Confluindo com a Terra, é o lugar de escolha na
experiência coletiva singular de cada povo.
A perspectiva de pensamento e proposta que trago não caminha em
acordo com os termos dos pensamentos multiculturais. Busco aproximar
diferentes vertentes e pensamentos, dialogando com outras áreas e pro-
postas de pensar para compor uma singular percepção de sentir/pensar um
22
Vocábulo da língua DZUBUKUÁ, antiga língua Kariri, que quer dizer “Nosso Lugar”.

CAPÍTULO 6 - ESPAÇO-TEMPO DIFERENCIAL INDÍGENA | 85


povo, o campo, a gravidade, a ancestralidade, a memória e o pertencimento
à Terra. Procuro aliar o pensamento multidimensional ancestral indígena
com o pensamento multidimensional23 da física quântica, compondo um
pensamento emaranhado entre nossa ancestralidade e a física moderna,
ampliando as formas de ver o planeta e pensar as relações.
Assim como os invasores fizeram diversos deslocamentos concei-
tuais para implantar suas formas de pensamento nas relações cotidianas,
proponho alguns deslocamentos conceituais a partir dos pensamentos
e memórias ancestrais dos nossos povos, aproximando essas formas de
pensar das formas de pensamentos que dançam com os multiversos, as
cosmologias relacionais de percepção da Física Quântica. As diferenças
singulares nos horizontes de eventos dos campos de percepção do pen-
samento e as diferenças referenciais afetivas que os povos indígenas
possuem, aliam-se às diferentes possibilidades de pensar/sentir a vida da
física quântica, alimentando uma relação, emaranhando-se na criação de
pensamento-sentimento-vida com a vida no planeta.
Nós, povos originários, pensamos a relação com o planeta e com seus
lugares ancestrais por sentimentos e percepções de campos multidimen-
sionais, gravitacionais quânticos de frequências não-locais, compostos por
outros espaços-tempo. A física quântica com sua cosmologia pode dialogar
com as formas de sentir a Terra dos povos originários, tanto no âmbito
“material” como num campo extrafísico.
Por tanto, a partir dessa aliança-transpassagem entre esses dois
campos de pensar/viver, proponho uma perspectiva de criar conceitos
para pensar as cosmologias indígenas em diálogo com outras cosmologias,
uma retomada conceitual para nossos pensamentos acerca da guerra
dos mundos, uma proposta para debater as diferentes dimensões de se
manifestar, aproximando os horizontes de eventos da física quântica e
dos pensamentos indígenas, criando um diálogo entre esses horizontes
de entendimento e conhecimento, “acolhendo-os” em suas diferenças e
afirmando-os em suas aproximações. O pensamento indígena e a física
quântica, em uma dança cosmológica, conceitual, cosmopolítica, ampliam

23
Os livros que tomei como base para criar uma articulação e diálogo com o mundo “moderno”,
foram: “O Universo Elegante: supercordas, dimensões ocultas e a busca da teoria definitiva”, de
Brian Green, e “A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas”, de Carlo Rovelli.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 86


os campos de entendimento dos mundos e de suas relações que atravessam,
afetam e compõem o planeta.
Os diferentes horizontes de eventos entre os povos indígenas e a
Terra são de cumplicidade, de relação horizontal, apresentando diferentes
formas de perceber a vida e o cosmos a partir das afinidades de percepção
das relações. A maneira percepcional dos povos indígenas sentirem a Terra
amplia suas atividades criadoras de modos de vida e os torna singulares,
diferentes de outros agrupamentos no país. O horizonte de percepção é
singular, assim, o espaço-tempo em que a experiência coletiva se realiza
também é. O planeta pode ser o mesmo, porém, os mundos, os horizontes
de eventos e as dimensões de percepção de vida não são.
A Terra age sobre nossa espiritualidade e memória, trazendo o acesso
às dimensões ancestrais e aos encantados. Como nossa cúmplice e geradora,
a Terra compõe, conflui na compreensão e formação do mundo de cada
povo, criando uma relação de pertencimento de um povo, uma família,
um clã, e, no campo macrocósmico, criando a ligação de pertencimento ao
planeta, fazendo-nos entender que somos parte de uma família interestelar.
Nossos povos têm um ritmo forte de marcação singular com a Terra
e esse ritmo se expressa em nossas memórias, em nossos sonhos, em nossa
língua, no encanto de nossa espiritualidade. O espaço-tempo relacional de
cada povo com a Terra é singularidade de ritmo. Um espaço-tempo singular
é o ritmo de cada povo que fica marcado em sua memória ancestral, nos
seus corpos, nos seus sonhos e na sua ação. A mente coletiva ancestral é
acessada por todos os indivíduos do povo, não importando onde ele este-
ja, nem em que tempo esteja. O ritmo da experiência coletiva ancestral,
a relação-ritmo, é não-local, ela existe para além do espaço-tempo, ela é
alimentada e ampliada pela percepção do ritmo da Terra.
A relação de afinidade que os povos indígenas têm com a Terra, o
aspecto multidimensional, espiritual, dos sonhos, ancestral e cosmológico
que transpassa o território e sua dinâmica, cria esse emaranhado de re-
lações com o planeta e as diferentes frequências de povos que o habitam.
A afinidade relacional entre os povos originários e a Terra é traçada por
alianças afetivas, sentimentos que são percebidos em seus modos de viver
e ocupar o espaço-tempo de vida no planeta. A experiência coletiva de
vida em seus territórios manifesta-se na sua memória ancestral de povo

CAPÍTULO 6 - ESPAÇO-TEMPO DIFERENCIAL INDÍGENA | 87


ligada à memória cósmica ancestral da Terra. Essas memórias nos chegam
em todos os momentos da vida, basta estarmos prontos e conectados com
o campo da Terra.
Nós, povos indígenas, somos povos originários até hoje, pois nunca
esquecemos essa conexão. A experiência coletiva do povo atravessa a
dimensão da experiência coletiva da própria Terra, em que cada povo
também é atravessado pela experiência coletiva dela, demarcando, assim,
o ritmo e essa simbiose dos povos originários com a Terra. Essa experiência
coletiva de cumplicidade dimensional dos povos indígenas não consegue
ser “medida” pela identidade histórico-temporal colonizadora. A diferença
conceitual entre identidade e ritmo é a diferença conceitual entre povos
indígenas e o mundo “moderno”.
A historicidade do colonizador se pretende universal e oficial. Ela
se orienta por uma temporalidade linear cronológica de produção e pelo
espaço controlado e limitado por fronteiras (propriedade privada). A
sociabilidade no Estado-Mercado é a sociabilidade do “eu”, controladora,
soberana, que pensa o planeta apenas como um bem de consumo. O modo
de produção de morte capitalista é, por natureza, autodestrutivo, explo-
rador, devorador de terras e criador de misérias e morte. Os conceitos
criados para o funcionamento cosmológico do Estado-Mercado, são todos
pensados a partir dessa matriz de morte e exploração.
Para o Estado-Mercado e seu mundo “moderno”, outras experiências
coletivas de ocupar, sentir e viver na Terra, são inimigas, pois impedem
sua soberania e contínua exploração, então ele tenta eliminá-las a todo
custo. Assim, desde 1492 do calendário invasor, nossos povos lutam con-
tra o projeto de extermínio da colonização. O “tempo da história oficial”
imposto pelos colonizadores, pretende, assim como o titã kronos, engolir
e devorar outras formas de vida. Em contrapartida, nossos povos origi-
nários têm sua singularidade dimensional de sentir, viver e pensar. Essas
experiências antagônicas são o cerne da guerra dos mundos.
Os espaços-tempo dos povos originários funcionam e são sentidos
de diferentes maneiras referentes a cada singularidade de povos. Assim,
cada povo possui conexão com o campo da Terra para além do físico, essa
conexão se amplia para além das relações dualistas e binárias, frente-trás,
dentro-fora, acima ou abaixo, verdadeiro ou falso, passado ou futuro. As

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 88


relações de sentir a vida e o viver para nossos povos não existem apenas
como código binário, existem e são sentidos como possibilidades pluridi-
mensionais. O espaço-tempo não é visto nem sentido apenas de maneira
quadrimensional, como pensam os ocidentais e a ciência “moderna”, mas
também a partir de múltiplas dimensões e ações da vida, da encantaria,
dos encantados, dos mundos e dos povos físicos e extrafísicos.
No espaço-tempo de singularidade da experiência coletiva de cada
povo, o “passado”, o “presente” e o “futuro” são dinâmicos, múltiplos,
nômades, brotam, aparecem e somem, mas permanecem e acontecem.
O espaço não é apenas o físico visível. O extrafísico e o invisível também
compõem as forças, frequências e experiências coletivas de cada povo. A
lembrança, para nossos povos, como sentimento da memória, não está
presa no passado, separada pelas fronteiras do presente e do futuro, num
tempo já vivido e que não acontece mais. Ela não é apenas uma data ou
episódio na história, as lembranças são sentimentos vivos das memórias
ancestrais, elas acontecem a todo instante, elas não estão presas, são livres
e trazem consigo as experiências sempre vivas. Por isso, não há distância
entre nós e nossos antigos, eles vivem nas memórias ancestrais e nos
ensinam pelas lembranças no aqui e agora. Assim, espaço-tempo, para
nossos povos, tem diferentes fluxos de ação, ele se move pelos sentimen-
tos, pelas ações, pelos sonhos e percepções de cada povo em sua relação
e experiência singular com a Terra.
Vivemos na transpassagem relacional entre vida e Terra, vivemos
nos sonhos dos nossos ancestrais, sonhamos com eles e somos sonhados
por eles, acessamos pelos sonhos novas memórias ancestrais, trazidas nos
ensinamentos que a Terra e nossos antigos nos dão. Nossa conexão com
a memória ancestral e as lembranças interfere no cotidiano, fazendo o
povo “se lembrar” todo dia do que tinha “esquecido” com a chegada da
guerra de extermínio com o mundo “moderno”. Dessa forma, retomamos
e somos retomados pelos encantados e pela Terra. Somos visitados pelos
encantados que nos ensinam e apresentam outras percepções dimensionais
dos nossos próprios povos.
O conceito de “identidade” não existe como instrumento de iden-
tificação do Estado-Mercado para nossos povos. Nós, povos originários
indígenas, caminhamos por referenciais de espaços-tempo plurais que

CAPÍTULO 6 - ESPAÇO-TEMPO DIFERENCIAL INDÍGENA | 89


não compõem identidades fixas e códigos fonte binários identificadores
e controladores. Somos pluralidade viva em nossas ações, somos a não
explicação que o Ego ocidental não suporta não entender, somos a dife-
rença. Portanto, fica bem explícito que a relação dos povos originários
com a Terra e consigo mesmos não acontece e nem se faz apenas no plano
físico. A Terra não é só território físico, a Terra é território de encanto.
Como nossos mundos indígenas não possuem uma frequência uni-
versal, o Estado-Mercado não consegue nos codificar de forma genérica.
Então, ele cria uma classificação para nos rotular, uma identidade descrita
como processo e objeto de uma cultura. Os conceitos de identidade e cultura
foram criados pela ciência “moderna” para classificar e codificar de manei-
ra genérica, as diferentes formas de manifestação da relação com a vida.
A relação proposta pelos povos originários é com a vida que se ativa
na atividade com a Terra, é com o chão e com o “céu” e com tudo que vive
no planeta, nas várias dimensões que compartilhamos a percepção que
se chama vida. É relação percebida por afinidade entre naturezas, pelo
contato de transpassagem de seus campos gravitacionais dos horizontes
de eventos singulares de cada povo. Os povos originários indígenas em
suas multiplicidades de horizontes de eventos são singularidades que
confluem com a Terra.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 90


Aos parentes,

Então nascer aqui e voltar a chorar,


Teu meio te formando clareado, obrigado,
Ouvindo tua mãe calar, não te ensinar a língua
Que te identifica, não aprendeste nas lições,
Aprendeste nas visões, nos clarões exteriores da
Tua mente flutuante que tentam branquear.
Não há como negar o que tens que carregar em ti,
Os sorrisos, as lágrimas, o encantado, a fúria no olhar
Dos espíritos parentes, desses meus ausentes.
Nem teu avô aceitava tua vó morena, ribeirinha, Amazonense,
Paraense, mãe Paraguaia, guarani na fala, guarani no olhar.
O que nos faz ter coragem não é o negar, mas, sim, o confirmar,
Dizer sim sou, me lembro, que sofro, que fui, que voltarei a ser
Inteiro, na fumaça de um cachimbo, quando sinto a mata, quando
Mergulho em um rio, em um mar, eu lembro, eu fui,
Eu sou.

Álvaro Franco da Fonseca Júnior.

CAPÍTULO 6 - ESPAÇO-TEMPO DIFERENCIAL INDÍGENA | 91


Imagem1: desenho de Álvaro Franco da Fonseca JúnioR

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 92


CAPÍTULO 7
UM BREVE PASSEIO PELA
COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA”

Ciência “moderna”, a ciência da dualidade

Isaac Newton, com sua filosofia e perspectiva de pensar o mundo,


baseada na geometria24 euclidiana, transformou a maneira de pensar e
sentir o mundo do homem europeu. Essa perspectiva percebe e pensa a
vida a partir da visão de evolução. A geometria euclidiana influencia as
bases de pensamento físico-matemático do renascimento e, portanto, da
perspectiva de formação do pensamento ocidental, as “luzes” do ilumi-
nismo. O espaço e o tempo para Euclides eram medidos por distâncias e
retas infinitas, trabalhando com a dualidade de pensamento frente-trás,
acima-abaixo, direita-esquerda, passado-futuro.
O tempo e o espaço sendo influenciados pela maneira euclidiana de
pensar foram encarnados, deslocados e atualizados pelos ocidentais em
sua sociabilidade para criação dos conceitos do “mundo moderno”, com
perspectiva de passagem e deslocamento apenas linear: um tempo e um
espaço infinitos para trás e um tempo e um espaço infinitos para frente.
Dessa maneira, se constrói a forma de pensar e viver da maioria dos pen-
sadores ocidentais do iluminismo. A palavra e o conceito de evolução, na
“modernidade”, estão ligados a uma geometria que quer medir e deter-
minar um espaço e um tempo e está diretamente conectada à palavra e
ao sentimento de “progresso” e superioridade.

Geometria é o ramo da matemática que pensa a vida, o espaço e o tempo, pela perspectiva de
24

medida. Geo, do latim, “terra”; Metria, do latim, “medir”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 94


Com a lei da gravitação universal e as três leis de Newton (final do
século XVII), influenciadas pela perspectiva de pensamento euclidiana,
Newton funda a mecânica clássica e se coloca e coloca os povos ocidentais
europeus no patamar de universais e evoluídos. Esse pensamento, até hoje,
justifica através da ciência ocidental o progresso, a colonização, as invasões
e o cosmocídio25 dos mundos originários indígenas. O poder unificador e
“profético” de suas leis, que funcionam a partir da razão e que podem revelar
o funcionamento da natureza, funda não só uma “revolução científica”,
mas também ajuda a fundar o pensamento “moderno” de que o homem
pode entender o funcionamento da natureza, subjugando-a ao seu prazer.
É a partir do pensamento de Newton que o “homem moderno” se coloca
definitivamente acima da natureza e entende que ela está ali para servi-lo.
O pensamento, a percepção gravitacional, o espaço e o tempo trouxe-
ram outras perspectivas de entendimento da natureza. Newton “demons-
trou”, a partir de suas leis, que a força da gravidade influencia o espaço e
o tempo e que a partir disso, podemos controlar e saber, determinar onde
um objeto estará, com precisão, no espaço e no tempo de maneira uni-
versal. Porém, essa não foi apenas uma mudança de paradigma na ciência
ocidental, mas também uma grande mudança na forma de pensar, sentir e
viver o cotidiano de sociabilidade das sociedades ocidentais, pois a partir
de suas ideias, os iluministas pensariam mais tarde a sociedade “moderna”.
As sociabilidades das sociedades ocidentais foram universalizando-
-se aos moldes newtonianos de pensar espaço e tempo, mescladas com as
ideias iluministas de identidade e nacionalismo dos Estados-nações. Aos
poucos, as sociedades ocidentais foram moldadas num padrão de sentir e
viver no espaço e no tempo, de se relacionar com a vida. Quando Newton
uniu o Céu e a Terra em sua teoria, criou uma ideia universal de entender a
natureza que serviu para os iluministas basearem seus conceitos e criarem
suas formas de controlar, viver e sentir o espaço e o tempo, o que foi sendo
implantado na forma de lei. O tempo passa a ser cronometrado, a vida e
sua produtividade são medidas e controladas pelo tempo que passa. Os
espaços são medidos e controlados pelas fronteiras geográficas do conceito

25
Termo que cunhei para me referir à destruição de mundos indígenas.

CAPÍTULO 7 - UM BREVE PASSEIO PELA COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA” | 95


de público e privado. Essa forma nova de se organizar e de sociabilidade
vai aos poucos sendo aderida ao cotidiano e ao imaginário coletivo das
sociedades ocidentais. Assim, o Estado-Mercado vai ganhando patamar de
universal e forma superior de progresso e organização social e metafísica.
Uma nova concepção de mundo ocidental estava sendo criada, uma
concepção de mundo com aspirações universais. As “luzes” do pensamento
iluminista do Estado26 pensam o espaço e o tempo de forma separada e
como estrutura imóvel, controlável que pode ser marcada. Essa forma de
pensar, criada pelos iluministas, foi vista com muita beleza e euforia, pois
é uma forma de reprodução que poderia ser replicada e possibilitaria a
acumulação de “bens”, invasão e o controle dos outros mundos. A burguesia
tinha acabado de cortar as cabeças dos reis e assumir o poder econômico
na Europa, ela precisava criar um único mundo, uma única sociabilidade
de organização social que lhe permitisse se manter no controle, para não
correr o risco de ser tirada do poder.
Dessa forma, os mundos das trevas estavam acabando e o mundo das
“luzes” iria começar. É preciso criar um mundo novo com novos conceitos
e novas sociabilidades de pensar, sentir e se relacionar. A burguesia ilumi-
nista criou seu mundo baseado no desejo de consumir, na materialidade e
na propriedade privada, fundando o Estado-Mercado a partir dessa con-
cepção de pensamento e moldando o espaço e o tempo, controlando-os a
partir da ciência ocidental.
O pensamento ocidental “moderno” é megalomaníaco, o desejo de
consumo só quer devorar e não para. A partir dessa experiência de desejo
de consumo, da propriedade privada e da percepção de que eles, ocidentais,
são uma sociedade superior, avançada e evoluída, pois entendem e domi-
nam as leis da natureza, as invasões e as colonizações foram pensadas. O
gérmen deste pensamento já estava presente no processo de colonização,
o qual se tornou o projeto de universalização da perspectiva ocidental, a
base do Estado-Mercado.
O iluminismo, de Kant e Voltaire, motivado em parte pela teoria
newtoniana de pensar o espaço e o tempo, cria referências para pensar o

Utilizo o termo ESTADO (e não o termo composto Estado-Mercado), pois em seu começo o ESTADO-
26

NAÇÂO era o embrião do ESTADO-MERCADO, que posteriormente foi sofrendo as atualizações do


desejo de consumo do capitalismo.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 96


controle espacial e a marcação do tempo no cotidiano e na sociabilidade
do Estado-Mercado. A filosofia newtoniana serviu como base e modelo
referencial para os iluministas criarem uma historicidade-temporalidadea
artificial de Estado. A historicidade-temporalidade artificial criada pelo
pensamento dualista de Estado é crucial para o sucesso da implantação
do Estado-Mercado como cotidianidade e sociabilidade de maneira global.
Assim, em sua formação, os Estados-Mercado-nação têm como base uma
historicidade-temporalidade artificial implantada e solidificada pela ciência
“moderna”, que é um instrumento de controle do espaço-tempo do Estado.
A perspectiva de pensamento e organização de uma sociabilidade a
partir do controle espacial e temporal, através da historicidade-tempora-
lidade artificial, é atualizada juntamente com o capitalismo, atualizando,
assim, o desejo de consumo, as formas de se relacionar com o espaço e o
tempo, as formas de se relacionar uns com os outros e as formas de se re-
lacionar com a Terra. Ou seja, o Estado-Mercado cria uma gestão artificial
da vida a partir de uma historicidade-temporalidade própria, na qual o
que importa não é a vida, mas, sim, consumir.
Com o avanço da ciência “moderna”, outras perspectivas de pensar
a vida e sua relação com o cotidiano foram sendo criadas. Anteriormente
a Einstein, o físico teórico Michael Faraday apresenta outra perspectiva
de pensar a vida para além do modelo artificial de sociabilidade do Estado.
Faraday traz o conceito de campo para pensar espaço e tempo como uma
frequência. Segundo o teórico, não devíamos pensar a relação do espaço
e do tempo como Newton, a partir de forças gravitacionais que atuam
diretamente entre objetos distantes um do outro, mas pensar que existem
forças reais que atravessam, transpassam e agem em todas as partes do
espaço e do tempo. Uma gigantesca energia invisível que ocupa e trans-
passa tudo ao nosso redor. Essa definição e perspectiva de conceito de
campo, pode ser deslocada conceitualmente para pensar o tecido da vida
pela perspectiva de campo.
Outra perspectiva diferente de pensamento sobre o espaço e tem-
po que surgiu com a “ciência moderna” foi a de Albert Einstein. Ele foi o
ícone da reviravolta na forma de pensar a vida, percebeu que o univer-
so tem perspectivas curvas, dinâmicas, distorcidas e que não é baseado
nas medidas e pensamentos euclidianos. Também percebeu que a visão

CAPÍTULO 7 - UM BREVE PASSEIO PELA COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA” | 97


newtoniana sobre a gravidade, espaço e tempo estavam muito equivocadas.
Assim, Einstein é o primeiro a propor uma filosofia que vai de encontro
à geometria euclidiana e à mecânica de Newton. Surge então a teoria da
relatividade geral, proposta por ele, outra gigantesca explosão na maneira
de pensar do mundo ocidental, ampliando as perspectivas de pensar a vida.
A relatividade geral de Einstein tem como perspectiva de pensamento o
espaço/tempo como um “bloco”, ou seja, não estão separados, e nem são
estáticos; estão vivos, dinâmicos, maleáveis, se interpenetram e se interfe-
rem sofrendo gigantesca ação da gravidade em relação aos outros corpos.
A vida e o espaço-tempo social ocidental agora tinham outra pers-
pectiva para se pensar, porém, o Estado-Mercado mantém a sociabilidade
baseada no dualismo, apenas atualizando-a. O molde do pensamento
newtoniano sobre espaço e tempo, que foi adotado socialmente como orga-
nização e sociabilidade pelas filosofias e ciências ocidentais fundadoras do
Estado-Mercado como categoria criadora da historicidade-temporalidade
artificial, não sofrem alteração, elas apenas se atualizam e continuam
mantendo o controle. Por isso, vemos ainda hoje filosofias e ciências que
pensam dualidades, um pensamento dualista que se atualiza, mas continua
com sua mesma “essência em 2D”.

Geometria ancestral

Nossos povos pensam, sentem, percebem e se relacionam com o


espaço-tempo de forma plural, cada povo de maneira singular. O conceito
de evolução criado pelos ocidentais é cronológico, linear e gera dualidades.
As perspectivas indígenas são circulares, curvas, dinâmicas, não-lineares,
energias de vortéx, elas não criam dualidades, são plurais, e não giram em
torno de um único eixo. Por isso nossos povos não pensam a vida, nem a
história, nem a geografia, ou seja, o espaço-tempo, pelo conceito ocidental
de evolução.
Nossos povos sentem, pensam, percebem a vida pela perspectiva
da ascensão, uma perspectiva circular-escalar e sempre diferente dos
espaços-tempo. Nossas geometrias sagradas estão em confluência com
os espaços-tempo de cada povo e com o ritmo da Terra. Não buscamos

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 98


medir a terra em números, nossa “geometria” ancestral busca sentir o
ritmo da Terra, o compasso, o balanço, a gravidade, o desejo, o pulsar, os
sonhos da Terra. A cosmometria ancestral dos povos indígenas sente os
ritmos da Terra.
Nossas tecnologias ancestrais e ciências indígenas são sentidas e
conhecidas através da nossa relação coletiva com a Terra. Sonhamos com
os antigos, com outros povos que vivem em outros planos e se relacionam
conosco no tecido da vida. Acessamos sabedorias e tecnologias que fazem
nossos povos continuarem a viver, trazemos sentimentos e percepções
de outros mundos para viver bem e encantar nosso olhar e nossa relação
com a vida. Não precisamos de salas e laboratórios, ambientes “ideais”
para sentir e pensar a vida. Nossa ciência encantada acontece nos mundos
possíveis. Nossa ciência é ensinada e vivida ao mesmo tempo.
Nossos povos não teorizavam através da razão as experiências co-
letivas e o entendimento sentido através da relação com o espaço-tempo.
Nós as sentimos e as praticamos através dos nossos encontros com outros
seres e povos da Terra, a partir dos sonhos, da memória ancestral, da espi-
ritualidade e ancestralidade. Não existe só uma perspectiva de espaço e de
tempo acontecendo, não existe homogeneidade nas relações com o espaço
e o tempo, essas relações são plurais, existiam múltiplas perspectivas, en-
tradas e percepções, assim, como existem pluralidades dos povos. Nossos
povos originários indígenas se organizam e criam sua sociabilidade de povo
com a Terra a partir dessas experiências coletivas de sentir espaço-tempo
no campo da Terra, não querem controlar os espaços-tempo da Terra e
implantar uma única forma de viver, como Newton e os ocidentais do
“mundo moderno” pensam. Nós, povos originários indígenas, queremos
viver nossas diferentes singularidades coletivas de cada povo.
A partir dessas perspectivas de pensamento dos mundos ocidentais
de sentir e pensar o mundo, aproximamos os pensamentos e experiências
coletivas dos nossos povos originários, buscando sentir e compor conceitos
a partir das nossas perspectivas. Nossos povos sentem o espaço-tempo em
conexão e essa conexão se amplia como campo em frequências singulares
coletivas das experiências que vão fazendo brotar os povos.
Cada povo, cada mundo, cada cosmovisão indígena, tem um campo
gravitacional de ação que se conecta com as outras dimensões de vida da

CAPÍTULO 7 - UM BREVE PASSEIO PELA COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA” | 99


Terra. Conseguimos sentir os diferentes campos que transpassam a Terra,
que nos emaranham e que nos compõem. Campo ou conceito de campo é a
atribuição de quantidade, complemento e qualidade dada a todo ponto no
espaço, porém, para nós, indígenas, o espaço não é apenas físico, empírico,
ele também é extrafísico. É a partir do emaranhamento conceitual dessas
perspectivas de pensar que iremos compor os conceitos de retomada, para
criar nossa cosmologia e tecnologias de entendimento da guerra cosmo-
lógica dos mundos enfrentando o “mundo moderno”.

Proposta de retomada conceitual indígena

As experiências coletivas dos nossos povos, entre si e com a Terra, têm


uma datação de, aproximadamente, 20 mil anos. Então, os Estados-Mercado,
nações europeias, Estados Unidos, Cuba, comunismo, capitalismo, anar-
quismo, e quaisquer outras estruturas e ideias oriundas do pensamento
“moderno” de sociabilidade e organização, são experiências do pensamento
e organização de sociedades não indígenas. Portanto, pensar as questões
voltadas para a Terra a partir delas, é pensar pela matriz ocidental.
Precisamos abrir caminhos a partir da atividade do emaranhamento
conceitual, percursos e transpassagens entre mundos indígenas e não-
-indígenas, atravessando espaços-tempo, buscando propor composições
de pensamentos e conceitos a partir da retomada originária indígena e,
assim, compor nossos conceitos, nossa ruptura com o pensamento e o
sentimento colonial ocidental do Estado-Mercado, fazendo isso a partir de
nossa ciência encantada, dos nossos troncos velhos, de nossa espirituali-
dade, ancestralidade, memória ancestral, linguagem e métodos de sentir
e perceber os mundos e os “entre-mundos”. Fazer avançar uma retomada
conceitual indígena para que nossos encantos e modos de vida continuem
existindo, apresentando outras perspectivas de vida, colocando em xeque os
conceitos hegemônicos impostos e naturalizados pelo “mundo moderno”.
A guerra cosmológica dos mundos é também uma guerra conceitual, então,
proponho a criação dos nossos conceitos de retomada, para pensarmos os
nossos problemas e os nossos mundos.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 100


A invasão ocidental aos mundos originários indígenas não se deu em
uma única data, ainda acontece todos os dias, quando a guerra cosmológica
de extermínio dos mundos indígenas é acionada e nossos povos lutam, seja
literal ou conceitualmente contra as imposições do “mundo moderno” que
se pretende universal e homogêneo. A aproximação, invasão e implantação
do mundo ocidental com o projeto universal do Estado-Mercado a partir
da colonização, trouxeram emaranhamentos e encontros entre mundos.
O mundo ocidental e o projeto homogêneo de produção artificial de vida
através do Estado declararam guerra cosmológica de extermínio a todos
que não aderissem ao seu molde de sociabilidade. Nossos povos disseram
não e até hoje resistem-existem. Essa guerra cosmológica é também tra-
vada no campo conceitual, conceitos homogêneos de vida artificial são
implantados pelo Estado-Mercado para substituírem os conceitos de vida
dos diferentes povos originários indígenas, assim, tornando mais fácil o
avanço do pensamento invasor.
A guerra conceitual cosmológica travada por esses mundos ainda
acontece. De um lado, a ciência “moderna” chama os conhecimentos e
saberes ancestrais indígenas de mito, lenda e folclore; de outro, os povos
originários indígenas veem que o modo de produção capitalista é o modo
de destruição que irá levar todos os mundos indígenas e o planeta ao co-
lapso. Esses mundos em conflito vivem, percebem, pensam, sentem e se
relacionam de maneira bem diferente consigo mesmos, com os outros e
com a Terra. São modos de viver, projetos de sociabilidade que estão em
confronto conceitual, dividindo entre opostos um sentimento singular
coletivo que vê na pluralidade dos mundos a harmonia, e o desejo do
consumo como maior expoente de multiplicação das riquezas materiais,
da miséria, da morte, da destruição da diferença.
Nessa parte da caminhada da mata ardente e plural onde estamos
inseridos, nessa viagem acerca da relação sensorial e extrassensorial,
faremos movimentos conceituais trazendo sabedorias, pensamentos,
sentimentos e percepções ancestrais que nossos povos têm com a Terra,
para assim compor conceitos de retomada e apresenta-los, desmitificando
toda a história “oficial” e os conceitos da ciência acerca dos nossos povos,
mostrando que existem perspectivas de mundos e não um único mundo
verdadeiro. Com isso, afirmamos nossa pluralidade de mundos, rompemos

CAPÍTULO 7 - UM BREVE PASSEIO PELA COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA” | 101


com a imagem conceitual de que o “mundo moderno” é avançado e bom e
que os mundos dos povos indígenas são atrasados e ruins, apresentando,
assim, outras perspectivas de pensar a Terra, a partir de outros paradigmas.
Dessa forma, iremos propor e compor esses conceitos para pensar
a perspectiva de campo entre os povos e a Terra, e as diferenças em suas
maneiras de se apresentar, ocupar, conhecer e pensar os diferentes mun-
dos que compõem o planeta, refletindo sobre o que nos une na relação
com o campo da Terra.
Nesse deslocamento e emaranhamento conceituais, alguns conceitos
da física clássica, como o de gravidade e de campo, e também alguns con-
ceitos da física quântica, como o princípio da incerteza, da não-localidade,
estado quântico e emaranhamento quântico, serão atravessados e pensados
por outras perspectivas de mundos, pela ciência ancestral, pelo pensamento,
sentimento, afeto e sabedoria originária indígena. A gravidade é uma das
quatro forças fundamentais da natureza, segundo a ciência ocidental, e
basicamente tem como ação exercer uma força de atração para que a ma-
téria dispersa no espaço se aglutine. É uma força poderosa de atração que
mantém a “ordem” de junção dos objetos no espaço. Assim, a gravidade
também exerce influência no modo de pensar, viver e sentir o mundo,
muito mais do que imaginamos.
A relação de influência gravitacional entre as cosmovisões de mundo
não se dá apenas pela gravidade, já que é uma das forças, porém, não a
única que age. Existem outras forças que se atravessam e se combinam
para criar o movimento, emaranhado cosmológico. Uma dessas forças
“fundamentais” da natureza que se atravessam é a força eletromagnética,
que mantém a matéria, os átomos e os elétrons unidos. A força eletromag-
nética pode ser considerada uma força maior que a gravidade, porém, a
mais importante perspectiva proporcionada pelo eletromagnetismo, que
utilizo aqui, é o conceito de “campo”.
Tal princípio estabelece um limite na precisão entre certos pares
de propriedades de uma dada partícula física. A mecânica quântica é um
esquema conceitual que possibilita a compreensão das propriedades mi-
croscópicas do universo. A mecânica quântica, por sua vez, mostra que,
mesmo no nível microscópico não se pode saber jamais as coisas com total

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 102


precisão, pois a natureza não permite que os seus componentes sejam
encurralados, sendo o princípio da incerteza o seu coração.
A Não localidade, em mecânica quântica, se refere a uma função
de estados quânticos entrelaçados, na qual dois estados entrelaçados
“colapsam” simultaneamente no ato de medição de um dos componentes
emaranhados, independentemente da separação espacial entre os dois es-
tados. Estado quântico é qualquer estado de distribuição de probabilidade
que um sistema isolado possa apresentar.
A partir disso, iremos propor outras perspectivas de pensar não só
esses conceitos da ciência “moderna” em si, mas deslocá-los para pensar a
guerra cosmológica dos mundos e as relações de sociabilidade, de afinida-
de e afeto com a Terra. Assim, a ciência “moderna” será atravessada pela
ciência encantada ancestral indígena, transpassando, criando e fazendo
funcionar conceitos cosmológicos dos mundos originários indígenas.

CAPÍTULO 7 - UM BREVE PASSEIO PELA COSMOLOGIA OCIDENTAL “MODERNA” | 103


CAPÍTULO 8
A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO”
VERSUS O RITMO DA TERRA

O ritmo da destruição

A destruição do planeta de maneira universal e continuada, teve


início a partir das invasões dos mundos europeus aos outros mundos. Os
autointitulados “humanos modernos”, a “evolução da raça”, são os maio-
res predadores do planeta. Modernidade é consumismo, e consumismo
é destruição. O Estado-Mercado, no seu ritmo de consumo e destruição,
cria e passa para as próximas gerações um sistema de pensamento, vida
e significação, de exploração, que vai devorando a Terra modificando sua
gravidade. Isso é um problema gravíssimo. A sociabilidade artificial do
Estado-Mercado vai sendo reproduzida, num movimento esquizofrênico
de recolonização. O ritmo do “mundo moderno” é autodestrutivo. Assim,
as mudanças climáticas estão diretamente ligadas à forma de ocupação
destrutiva do “desenvolvimento do progresso” do “mundo moderno”. Essa
mudança afeta a todos no planeta, e mais fortemente aos povos originários
indígenas. O planeta consegue viver sem nós, mas nós não conseguimos
viver sem o planeta.
Os pontos de destruição gerados pelo “mundo moderno”, alteram o
clima, intimamente ligado ao campo da Terra, que nos liga a todos numa
rede de vida. Portanto, uma mina em funcionamento, seja na China ou no
Chile, não abre só um buraco físico na Terra. O efeito da destruição não
é apenas local, é planetário, físico e extrafísico. As “políticas ambientais”
dos Estados-Mercados capitalistas, são políticas que visam a exploração e

CAPÍTULO 8 - A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO” VERSUS O RITMO DA TERRA | 105


o lucro. Não existe capitalismo sustentável, esse é um dos maiores mitos
do “mundo moderno”. O modo de produção capitalista se reproduz a par-
tir da morte e exploração da Terra, ele consome a Terra e sua vida como
recurso. As leis e políticas ambientais do “mundo moderno”, são apenas
garantias para a contínua destruição e exploração da Terra.

Terra afetiva: relação de encanto com a vida

Em nossa oralidade, caminhamos pelos sonhos, pelos nossos mundos,


e, assim, aprendemos e sentimos o encantamento da Terra. Caminhamos
pela escuta e pelas conversas com nossos troncos velhos, sentindo suas
linguagens como energias. Caminhamos com os espíritos e aprendemos
a pintar, a cantar, a guerrear, a sonhar. Caminhamos junto com os que
se encantaram e junto com a mata. Aprendemos a coletividade nesse
percurso. Surfamos nos espaços-tempo das sabedorias desses encontros,
sobrevoamos e encantamos nossas experiências coletivas.
Os encantos e encantarias que vivem em cada um dos nossos po-
vos não são fixos. Somos povos do movimento, da mudança, estamos no
lugar de escolha de sermos quem somos, lugar onde nunca deixamos
de estar conectados com a experiência coletiva ancestral do campo da
Terra. Cada povo tem sua percepção dos sentimentos em relação à vida,
é isso que acessamos na memória ancestral, em nossos sonhos, em nossa
oralidade, e é isso que passamos para as próximas gerações. Essas redes
de emaranhamentos, são nossos ramos de conexão entre o ancestral e o
aqui-agora. Através dessa forma de se relacionar ancestral, fazemos brotar
as próximas pontas de rama, que vão fazer continuar nossas experiências
coletivas de cada povo.
A passagem dessas expressões e linguagens-energia para as próxi-
mas gerações, compõem nossas “histórias”. Porém, nossas experiências
coletivas são conexões não lineares, e não seguimos uma única linha
espaço-temporal. O conceito universal de história cunhado pelo “mundo
moderno”, se fragmenta na ruptura espaço-temporal proposta pelos dife-
rentes mundos indígenas. Isso demarca a fronteira dos diferentes campos
conceituais dos mundos em guerra.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 106


As percepções diferenciais de sentir a vida e se relacionar com ela,
chamo de Afinidade Percepcional27. Uma percepção para além dos campos
sensoriais e racionais, uma percepção de afetos e afinidades entre mundos,
entre dimensões físicas e extrafísicas. Sentimento de conexão com a vida
e com a Terra. Uma conexão de emaranhamento das diferenças entre
os campos quânticos singulares coletivos de cada povo originário com a
Terra. E é aqui, a partir desse tensionamento conceitual de perspectivas,
que o conceito de indígena é ampliado.
O termo “indígena” (o de dentro da Terra) ganha força cósmica para
além de espaço-tempo, e amplia o campo de alcance e ação, ganhando
força conceitual de criação, ou seja, não é mais apenas simbólico. Indígena
é diferente de “índio”. Indígena, pensado a partir das afinidades percep-
cionais, não é mais um conceito que está subordinado ao espaço-tempo
cronológico positivista da “evolução”. É nessa força que sabemos e sentimos
nosso lugar de escolha, nos afirmando como indígenas.
O indígena não se conecta com o conceito de “índio’’, pois o conceito
de “índio” está conectado ao de evolução, e o de indígena, está conecta-
do ao de ascensão. Enquanto o “índio” evolui para se tornar um cidadão
“moderno” consumidor, o indígena ascende e se aproxima de seus antigos
e dos sonhos ancestrais da Terra. Então, nesta perspectiva, para o Estado-
Mercado, o indígena se torna ALIEN, o “de fora”, fora do Estado-Mercado,
que pensa as relações por evolução; mas não ALIENÍGENA, pois não é de fora
da Terra. Assim, o conceito do ALIEN não se aplica como o de estrangeiro,
nem como “índio”. ALIEN indígena, para o Estado-Mercado, é a ascensão
que vem de fora.
As singularidades de percepção dimensional de cada povo se ema-
ranham com os mundos em ação na Terra. Por isso, sempre andamos com
os pés no chão, com os olhos nas matas, com os ouvidos no céu, com os
sentimentos e encantos à espreita; para sentir a Terra respirar, seu campo
vibrar, para aprender com o vento, ouvindo o invisível, sentindo a força
dos antigos, aqui-agora, com cada um de nós. É nesse movimento de afi-
nidade de percepções, que os diferentes povos indígenas vão compondo

27
Conceito que pensa as percepções dimensionais de narrativas e sentimentos, entre os mundos, e em
relação com a Terra. Penso esse conceito a partir das tecnologias ancestrais dos sonhos, da memória
ancestral e da oralidade, junto aos conceitos de não-localidade e campo quântico da física quântica.

CAPÍTULO 8 - A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO” VERSUS O RITMO DA TERRA | 107


suas ciências encantadas. A ciência encantada indígena é plural, e a ciência
“moderna” é genérica.
Não pensamos a vida em termo “ideais”, pensamos a vida numa
conexão possível com a Terra. O possível para nossos povos, é o impos-
sível para os “modernos”. Nossa ciência ancestral é diferente da ciência
ocidental, ela acontece no mistério e muitas vezes não pode ser explicada,
analisada e replicada; apenas sentida, percebida e vivida. Nossa ciência é
encantamento e encantaria, que extrapola o conceito ocidental de matéria,
conectando-se a tudo que é vida, seja visível ou invisível. Nossa ciência an-
cestral indígena não se pretende universal, acolhe diferentes perspectivas
e se relaciona com todos os mundos que se emaranham com ela.
As memórias ancestrais, os sonhos e as linguagens, são campos
conceituais que se ampliam e geram campos de campos conceituais, como
energia de movimento, ondas de impacto. Esse processo faz brotar dife-
rentes povos no planeta, e traduz a força da ação coletiva das afinidades
de percepção. Essa força-energia cria uma linguagem-energia singular
de cada povo. A força energética de ação da Terra é contrária à força de
exploração do Estado-Mercado. É força de repulsão sintrópica28 atuando
contra o “mundo moderno”, que quer eliminar e engolir os mundos indí-
genas como um gigantesco buraco negro.
Nossa luta não é pelos direitos criados por um mundo “moderno”.
Não queremos fazer parte da “democracia dos brancos”. Lutamos pela
Terra livre, pelos nossos mundos livres, para que nossos lugares de escolha
possam continuar a existir, para que nossos horizontes de eventos sejam
possíveis para os que estão por vir, e o encantamento pela vida continue
a existir.

28
Força sintrópica é um conceito da física que desloco e articulo, para me referir à força de equili-
brio e conexão entre os diferentes mundos indígenas emaranhados no campo da Terra. Essa força
contraria a força constante de entropia criada pelo Estado-Mercado, que quer manter soberano
seu poder e controle.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 108


Diferencial relacional de ritmos

A percepção de afinidades dos mundos indígenas não acontece


pela historicidade-temporalidade, não criamos uma experiência coletiva
artificial única e vivemos em função dela. O “mundo moderno” não tem
ancestralidade, ele foi inventado, produzido a partir do assassinato da
ancestralidade dos povos-mundos indígenas. O “mundo moderno” cria
uma história “oficial”, para criar e replicar uma “tradição artificial”, que
só tem conexão com a morte, lucro e consumo.  
O movimento cosmológico do “mundo moderno” afirma-se como
força consumidora de si mesmo e dos outros mundos. A propriedade é o
valor de mercado e um dos desejos de consumo. Esse desejo de consumo
deseja a propriedade, mas não apenas como uma mercadoria material,
e, sim, como mercado de consumo e desejo. O desejo de consumo quer o
seu desejo como mercadoria, o “mundo moderno” fabrica o seu desejo de
desejar. O desejo de consumo não tem fim, ele cria o desejo como mercado
e o mercado do desejo cria a guerra de extermínio.
O desejo de consumo é o que emaranha os “mundos modernos”. A
produção artificial de vida no Estado-Mercado, é feita e ativada pelo desejo
de consumir. Consumir o outro, consumir a si mesmo, consumir o tempo,
consumir o espaço, consumir a tecnologia mais “avançada”, consumir
conhecimentos, consumir o planeta até o limite, e planejar ir a outros
planetas para continuar a consumir. Assim, são os sonhos dos “humanos
modernos”, o desejo de consumo é o desejo colonial atualizado ao extremo
da exploração e da destruição de si e do outro. Os “humanos”, seus desejos
de consumo e seus “mundos modernos”, são pragas que ameaçam o cosmos.
O desejo de consumo é o que molda a temporalidade-historicidade
artificial do Estado-Mercado. O “tempo” é o tempo do consumo, seja ele
referente à produção ou ao consumo propriamente dito. O dinheiro é o
tempo do desejo de consumo materializado. Quanto tempo de consumo o
dinheiro que você tem pode comprar? O desejo de consumo é metafísico,
esquizofrênico, paranoico e ilusório. Um valor material que não existe de
fato, ele só existe na megalomania dos cidadãos de bem consumidores, as-
sim como o Estado, que não existe de fato. O Estado-Mercado é metafísico,
mas, ainda sim, utilizado para legitimar suas ações de destruição, guerra e

CAPÍTULO 8 - A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO” VERSUS O RITMO DA TERRA | 109


controle sobre a Terra e os outros mundos. O Estado-Mercado, como força
metafísica, executa o desejo de consumo do “mundo moderno”.

Singularidade coletiva ≠ identidade

Uma singularidade é diferente de uma identidade. Uma singulari-


dade não reproduz ritos, símbolos e estereótipos culturais, ela não é uma
reprodução, não se replica, não busca refletir ou se identificar com algo.
A analogia e a semelhança não são as diretrizes de composição de uma
singularidade. Uma singularidade coletiva é composta por pluralidades,
ela afirma a si mesma sem precisar de referencial, ela é sua própria re-
ferência. Uma singularidade de um povo é ação relacional de campos
e seres coletivos, uma relação diferencial com os espaços-tempo, uma
relação diferencial com a vida. Uma singularidade não é homogênea, é
heterogênea. É cultivar a relação de diferenciação e ação no cotidiano,
fazê-la transpassar e ampliar o alcance da sua força de mudança e vida,
emaranhada aos sentimentos de pertencimento e lugar de escolha de um
povo na sua ancestralidade.
Nossos povos são singularidades coletivas. Nós não somos identi-
dades culturais, como classifica a ciência “moderna” dos brancos. Uma
singularidade coletiva não se identifica, se experimenta. Uma singulari-
dade coletiva é singularidade plural de diferenciação, por isso não existe
e nem existirá um conceito de massa de identificação universal para os
povos indígenas. O Estado-Mercado, a partir de seus conceitos universais
de identidade e cultura, quer nos classificar genericamente como “índio”,
mas nossos povos não se identificam assim. Cada povo é uma singularidade
coletiva. Somos povos plurais. Genérico é o Estado-Mercado.
O processo de aprendizado, ensinamento e conhecimento não fun-
ciona da mesma forma para nossos povos, eles não nos ensinam através
de técnicas e métodos de controle da razão, não vinculam a sua sabedoria
àquilo que se vê e que se pode reproduzir. Quando nossos povos passam os
conhecimentos e sabedorias para as próximas gerações, não passam ape-
nas símbolos, signos, significados e significantes, através de um código de
comunicação da linguagem. Nós, povos originários da Terra, transmitimos

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 110


e transmigramos o sentimento de pertencimento do nosso lugar de esco-
lha indígena, não passamos apenas os códigos identificadores e os signos
culturais, nós transpassamos o sentimento singular de cada povo, o afeto
do que é ser uma singularidade coletiva de povo.
Quando nossos antigos e os encantados nos contam as experiências
coletivas singulares de nosso povo, quando cantam, quando dançam,
quando sonham, quando têm visões, eles transmigram junto e vivem em
nós, nos transmitem afeto, sentimento e ação, por isso todos os antigos
vivem em nós, por isso nunca caminhamos sozinhos pela experiência da
vida no planeta, por isso mais de mil gerações vivem em nós, por isso a
memória ancestral não funciona por lembrança, pois ela é presente, aqui
e agora. Os encantados nos ensinam e ativam o lugar de escolha de cada
povo dentro de nós, por isso somos singularidades coletivas. Uma singu-
laridade coletiva não pode ser identificada, codificada e controlada, pois
ela não tem um único rosto, é diferente a todo instante, muda a cada brisa.
Uma singularidade coletiva de povo só pode ser sentida e não explicada,
é o nosso lugar de escolha que nos faz quem somos.
Nossa comunicação-linguagem não acontece só por signos, símbolos,
significantes e significados. A relação que temos com a linguagem trans-
passa a perspectiva de linguagem do “mundo moderno”. Nós, indígenas,
nos comunicamos pelos sentimentos, por uma linguagem-energia, nosso
ritmo é de afinidade, afetos e amor com o ritmo da Terra. Dançamos e
cantamos com a Terra. Sentimental e espiritualmente, nossas relações,
ensinamentos ancestrais e ciência encantada ampliam-se e ganham al-
cance. Nossa linguagem é energia coletiva.
As relações entre diferentes mundos e cosmovisões é um movimento
cotidiano para nossos povos. O movimento energético diferencial do en-
contro entre “mundo moderno” ocidental e mundos indígenas culmina na
guerra de extermínio cosmológico dos mundos indígenas. A guerra, para
nós, indígenas, não tem sentido de extermínio, tem um sentido espiritual
de transpassagem cósmica de diferenças. É conhecer outras inteligências,
inteligências de outros mundos. Uma alteridade guerreira. Não extermina-
mos a diferença, nós a conhecemos, e isto significa deslocar os horizontes
de eventos ao encontro de outros, acontecendo, nesse movimento, eventos
diferenciais de deslocamentos espaço-temporais.

CAPÍTULO 8 - A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO” VERSUS O RITMO DA TERRA | 111


A guerra para os “mundos modernos” tem o sentido de extermínio,
ela é impregnada por um valor externo, pelo desejo de consumo. A guerra
não é importante por si, ela é um instrumento para se chegar a um valor
externo imposto pelo desejo de consumo interno do “eu”, que só quer
consumir. É necessária a guerra para o “mundo moderno”, para que ele
elimine os outros mundos que não são afins com seus ideais. Não é uma
relação, é para conquistar, controlar e escravizar. O sistema de guerra
e sentimento de extermínio oriundo do desejo de consumo do Estado-
Mercado que busca exterminar aquilo que não é igual ao seu eu-mundo-
ego. O “mundo moderno” quer exterminar a diferença e fazer multiplicar
o igual, a identidade, fazendo disso algo “natural” e normal. A implantação
do modelo de organização e sociabilidade baseada no Estado-Mercado-
Nação necessita da guerra de extermínio para acontecer em seu egoísmo
universal.
A guerra constante do “mundo moderno” contra nossos povos é
parte do projeto de progresso do Estado-Mercado, as diásporas, os reagru-
pamentos de povos, a miscigenação, tudo isso é tecnologia de extermínio
que o mundo ocidental pratica contra nossos povos. Nós “sumimos” no
espaço-tempo, para não sermos encontrados pelos assassinos do Estado-
Mercado, mas hoje reaparecemos ganhando força da Terra. Retomamos e
estamos aqui e agora, resistindo, existindo. Lutamos para continuarmos a
viver livres com a Terra em nossos lugares de escolha.
A destruição dos modos de vida dos povos indígenas e a destruição
da vida de todos os outros seres e da Terra são proporcionais ao avanço
territorial do ritmo capitalista sobre o planeta. A Terra é subordinada ao
ritmo de destruição, exploração, escravização e consumo do “mundo mo-
derno”. A mudança de ritmo gravitacional no campo da Terra causada pela
exploração destruidora do capitalismo gera, além das mudanças no clima,
mudanças no magnetismo e no eixo da Terra, resultando no movimento de
destruição e morte não só dos povos originários indígenas, mas do planeta.
A resistência indígena à invasão do pensamento do consumo, a insis-
tência na vida, a luta, as emergências dos povos, e tudo mais que envolve
a guerra contra o capital e a favor da Terra, são processos constantes que
assolam nossos povos desde 1500. Brotamos como vida, brotamos como os
anticorpos da Terra contra o capitalismo. Somos povos encantados, somos

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 112


encantamento. A resistência dos nossos povos é a resistência da Terra.
Somos os sonhos vivos sonhados pelos nossos avós. Somos as retomadas
dos sonhos de nossos ancestrais.

CAPÍTULO 8 - A GRAVIDADE DO “MUNDO MODERNO” VERSUS O RITMO DA TERRA | 113


CAPÍTULO 9
PERCEPÇÃO TRANSCOSMOLÓGICA

O campo afetivo

O conceito de campo pensado pela física, é pensado e sentido por


nós, indígenas, a partir de conexões e relações circulares, nossos povos
não pensam pela geometria linear, nossa geometria ancestral é rítmica. O
conceito de campo é o que nos possibilita pensar o campo de afetividades e
afinidades de percepções que transpassam, compõem e criam a singulari-
dade dos nossos povos indígenas originários com a Terra. O campo afetivo
de pertencimento à Terra atravessa e compõe nossa memória ancestral,
nossos sonhos, nossa oralidade, nossas linguagens e nossos horizontes de
eventos singulares.
O campo afetivo que evoco, é um campo de percepção e sensação
não apenas físico das relações de afinidade, afeto, gravidade e aliança que
nossos povos nutrem com a Terra. Somos povos do sentimento. Esse campo
nos liga à rede de emaranhamentos de campos gravitacionais dos outros
povos, criando um emaranhado com o ambiente, ampliando a relação afe-
tiva de povo para povo, criando a confluência necessária que transpassa
o espaço-tempo. A experiência coletiva relacional de nossos povos tem
afinidade de percepção com a Terra para além do espaço-tempo.
A afinidade percepcional é esse conceito de retomada indígena que
percebe o campo emaranhado das redes gravitacionais entre os povos e
a Terra. Nossa experiência coletiva singular de povo com a Terra compõe
nossa ancestralidade, um campo singular de povo que transpassa a Terra
e é transpassado por ela. A conexão singular de afinidades e percepções
com a Terra e com o campo dos sonhos e dos encantados é não-local,

CAPÍTULO 9 - PERCEPÇÃO TRANSCOSMOLÓGICA | 115


conscienciosamente coletiva, em que cada povo conflui com o curso da
vida, relacionando-se com a geometria ancestral circular, gerando e fa-
zendo sempre brotar mais relações.
A partir da força da Terra, que co-manda as relações de cada sin-
gularidade que ocupa lugar no espaço-tempo, as singularidades geram
ritmos, campos, assim como canta a cigarra, chamando a chuva e a chuva
vem. Ritmo que pulsa numa frequência de uma sambada, da batida dos
corações e dos cânticos dos nossos povos. A dança rítmica das relações são
composição e pertencimento de cada povo a si mesmo e à Terra, a dança
da vida vai emaranhando os campos, os cânticos se atravessam, as vozes
ganham força e não se tem mais apenas a voz, quem fala é a linguagem
energia, o ritmo de afinidade das percepções que canta, que “pesa” e cria
a magnética gravitacional que nos conecta à Terra.
Os povos originários e sua ancestralidade têm peso na Terra e sentem
o peso dela em suas vidas. Os campos cosmológicos de emaranhamento
indígenas com a Terra funcionam como uma singularidade gravitacional29.
Cada povo tem seu peso diferente no planeta, com seu ritmo singular de
relação com a Terra. A diferença gravitacional entre as singularidades dos
povos está na relação singular de cada povo com a Terra. Portanto, formas
diferentes de relação com a Terra, vibram formas diferentes de impacto
gravitacional no planeta, porém, a diferença entre essas formas de vida
se emaranha no mesmo campo da Terra, que acolhe e faz nascer sempre.
A relação afetiva com a Terra é vibração de frequência coletiva e
gera um campo afetivo que faz brotar vida, ampliando a convivência com
os outros seres e cosmovisões do planeta. Este campo afetivo que sentimos
com a Terra, é o que nos une, não como uma massa de identidade e cul-
tura, mas como uma singularidade coletiva que é diferente em si mesma,
mas conflui em cumplicidade e harmonia com o planeta. Somos povos
diferentes, mas somos os povos da Terra. Esse campo afetivo de sentir a
Terra nos une numa conexão relacional com o planeta. Terra afetiva de
afinidades percepcionais são campos de emaranhamento que transpassam
todos os povos, é percepção transcosmológica física e extrafísica da vida.
29
Uma singularidade gravitacional (algumas vezes chamada singularidade espaço-tempo) é, apro-
ximadamente, um ponto do espaço-tempo no qual a massa, associada à sua densidade, e curvatura
do espaço-tempo, associada ao campo gravitacional de um corpo, são infinitas. Uma singularidade
representa a si mesma.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 116


Assim, a guerra cosmológica de extermínio imposta pelo “mundo
moderno” aos mundos indígenas, passa por essas percepções e sensações
conceituais diferentes de sentir o planeta e isso vai influenciar a maneira
de agir, sentir, entender e se relacionar com a Terra. O campo relacional
de ritmo singular de vida gerado pela Terra envolve as diferentes cosmovi-
sões, esse campo não atravessa e move apenas questões ligadas à “ciência
moderna”, como as históricas, geográficas, empíricas ou econômicas. O
campo afetivo do ritmo da Terra move campos espirituais, encantados,
rítmicos, de danças, cantos e vidas ancestrais.
A “ciência moderna” sente a Terra a partir de sua forma de se rela-
cionar com ela, das técnicas e métodos de replicar e controlar. Seu ensino
é voltado para a exploração da Terra e dos cidadãos criados pelo “mundo
moderno”. Nossos mundos indígenas sentem a Terra através das afinidades
percepcionais, não se limitam por métodos empíricos do pensamento e
da geometria dualista-materialista. Sentimos e tocamos o céu como en-
cantaria e alcance dos nossos mundos. Nossos antigos e encantados nos
ensinam nossa ciência ancestral e geometria sagrada da Terra. Nossos
mundos sentem e pensam além do “mundo moderno”, nos relacionamos
com a vida para além da política e economia.
As percepções de afinidades são perspectivas de como sentir, perce-
ber e se relacionar com a Terra, os planetas e os universos. Funcionam em
espaços-tempo diferentes, e se encontram em suas diferenças compondo
um planeta plural. A pluralidade de universos nas diferentes plêiades
que formam os povos indígenas são frutos dos acontecimentos cósmicos
gerados pelas transpassagens dos campos gravitacionais de vida da Terra.
Independentemente de como o movimento se manifesta, o ritmo de afeto
da Terra é o pensamento que nos atravessa e nos aproxima para sentir
todo o ambiente ao nosso redor, físico e extrafísico. Nossas perspectivas
de vida são sentidas em horizontalidades. São horizontes de eventos que
se enxergam e sentem-se “olhando” da mesma altura. Neste sentido, todas
as perspectivas singulares de povo são horizontes de eventos, cada povo
é um horizonte de evento e não existe um único ou melhor horizonte de
evento que outro.
A partir desta percepção afetiva com o campo da Terra, percebemos
que tudo está em conexão e que todas as diferentes formas de vida são

CAPÍTULO 9 - PERCEPÇÃO TRANSCOSMOLÓGICA | 117


importantes. Todos os diferentes povos30 têm relação, influência e impor-
tância na Terra. Assim, a produção em massa, o lucro, a competitividade, o
personalismo, a identidade, o acúmulo de bens, a geometria do pensamento
dualista e o desejo de consumo, não são necessários e importantes para uma
vida melhor em cumplicidade com a Terra. Em nossa ciência ancestral, os
saberes das plantas, as veredas nas matas, o caminhar da onça, os voos nos
sonhos, o som das matas, os cânticos, danças e relações com os encantados,
tudo isso compõe nossos mundos e nos faz sentir o cotidiano dos outros
mundos, nossa ciência ancestral são ensinos para viver bem. A relação
que um povo tem com a Terra é o que mais “importa” para se viver bem.
A relação dos mundos e dos campos de ação de cada povo se aces-
sa, conecta, pela afinidade percepcional, que é perceber e se relacionar
afetivamente com a Terra e com o povo através do campo gravitacional
que nos liga a ela. Afinidade percepcional é a capacidade de sentir outros
campos-mundos através do campo rítmico que liga todos os povos e afeta
de maneira sensível e ancestral, criando a afinidade com o campo da Terra.
Afinidade percepcional é uma transpassagem de ritmos da Terra entre nos-
sos povos e o que nos faz sentir singular. É sentir afinidades e percepções
de diferença, unindo as forças, os campos emaranhados como teias entre os
povos, gerando mudanças uns nos outros e fazendo perceber as diferenças
de campo e de cada povo, criando uma alteridade a partir da pluralidade
das diferenças de campo. Assim, nos tornamos mais fortes, numa relação
de teia e conexão, somos tudo e tudo somos nós, mas não como absoluto,
não como um todo, mas, sim, como conexão, singularidades coletivas.
Nossos povos atuam como “ondas gravitacionais” que vêm de longe,
de outros mundos e se atravessam, tornando-se fortes e plurais. Ir pela
perspectiva das afinidades de percepções faz brotar em nós as narrati-
vas gravitacionais31, pluralidades de cada povo. Perceber as influências
gravitacionais de outros campos da vida, sentir outros rastros, físicos e
extrafísicos, apresenta o instante em que a historicidade-temporalidade
30
Nesta perspectiva penso povo para além da perspectiva humana trazida pela “ciência moderna”,
penso todos os seres que interagem e confluem com a Terra em seu fluxo de vida, assim, existem
povos das águas, povos das matas, povos das montanhas, povos dos animais, povos encantados,
“invisíveis” ao olho “moderno”, mas sensíveis e visíveis a nós, indígenas. Povo, como pensamos,
são todos que se conectam e vivem em cumplicidade com a Terra.
31
Narrativas gravitacionais são narrativas que têm peso de formação de singularidade coletiva de
um povo e dos mundos em conexão.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 118


artificial cronometrada, medida e controlada do “mundo moderno” não
faz sentido. Percebemos que o tempo pensado como uno, pelo “mundo
moderno”, corre descompassado com as histórias dos outros mundos, e o
espaço “moderno”, pensado como propriedade, cria fronteiras e invade
outros mundos e universos.

A artificialidade do Estado-Mercado

Nossas formas de diferenciar as percepções, afinidades e sensações


de cada mundo são singulares. Quando dançamos Toré32, todos juntos,
singularmente diferentes, criamos em nossa ação e sentimento uma lin-
guagem energética de mesma frequência, a energia nos move e movemos
a energia, alinhamos nossos espaços-tempo com o dos nossos ancestrais
e eles nos dançam e nos cantam, fazem a transpassagem conosco, todos
juntos, mil gerações estão aqui e agora, brotando força e sentimento
num campo gravitacional de afeto com a Terra. Somos singularidades no
coletivo, cada um cantando, dançando, mas todos conectados, sem per-
sonalismo. Somos um com o sentimento e percepção da Terra. Estamos
conectados pelas afinidades de percepções dos campos de afeto da Terra.
Somos emaranhados de singularidades coletivas.
Nossos corpos não são partículas, nem corpúsculos e individua-
lidades, o conceito de corpo para nós, indígenas, se amplia em campos
emaranhados de frequências. Nossos campos singulares atravessam os
campos coletivos da Terra e isso nos nutre. Somos um campo coletivo
físico e extrafísico, não um corpo material. As afinidades de percepções
são sentidas para além do espaço-tempo, elas são não-locais, podemos
sentir a conexão com nosso território sagrado sem estar pisando nele
exatamente, pois ele vive em nós espiritualmente e isso compõe o campo
de cada singularidade coletiva. Isto significa que todos estamos e não há
localização precisa de onde podemos nos manifestar, os espaços-tempo
são percursos por onde nos deslocamos, eles não passam por nós, nós que
passamos por eles, por isso passado-presente-futuro estão aqui e agora.

32
Dança ritualística sagrada dos povos indígenas do Nordeste.

CAPÍTULO 9 - PERCEPÇÃO TRANSCOSMOLÓGICA | 119


Nossos antigos podem viajar pelos sonhos, pelos tempos e pelos espaços
para nos trazer ensinamentos. É assim que funcionam nossas sensibilidades
sociais de cada povo em relação com a Terra.

Netçowonhé Warakidzã33

A afinidade percepcional é conexão que ativa outras frequências


de vida, através dos afetos e das experiências coletivas de cada povo. Os
espaços-tempo passados para as gerações seguintes, são ações que ascendem
da oportunidade de percepção e afinidade. As memórias não fluem sozinhas
como arquivos, elas andam sempre acompanhadas dos sentimentos, como
relâmpagos de intuição, e têm uma duração. A duração e a intuição não
estão subordinadas ao espaço-tempo, são sentidas e percebidas pela força
do encanto. O campo gravitacional da força do encanto da Terra não está
nos espaços-tempo, ele é criado a partir do emaranhado de campos entre
a Terra e os diferentes povos indígenas.
A força que emana de cada povo é o portão de acesso aos sonhos da
Terra. É um caminho para sentir as ancestralidades e acessar os mundos.
A força encantada ancestral dos nossos povos não se move na linha da
dualidade, e, sim, em circularidades ascendentes. Os ciclos iniciam e termi-
nam, não existe uma “eternidade”, existem diferenciações de movimento,
e criação de dimensões. Tudo que acontece no visível, está conectado com
o invisível, não existem limites de ação entre eles. O ritmo relacional que
faz perceber a mudança de campo, é uma passagem de afinidade de per-
cepção e sentimento, são conexões de afinidades.
Para nossos mundos indígenas, não existem limites físicos. O limite
não é algo que separa, é um portal de acesso às diferentes frequências
dos mundos extrafísicos, onde co-habitamos como povo, onde convive-
mos com nossos ancestrais e outros povos encantados. A razão ocidental
como atributo apenas do cérebro, não alcança. Não existem linhas que
separam experiências de espaço-tempo, existem modos de relação, de
sensação, de percepção e de energia.

33
“Sabedoria do sonho mágico”, em Dzubukuá, Kariri antigo.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 120


CAPÍTULO 10
RETOMADAS

“Era um caminho quase sem pegadas


Onde tantas madrugadas folhas serenaram
Era uma estrada, muitas curvas tortas
Quantas passagens e portas ali se ocultaram”
(SIBA, 2002).

Conexões ancestrais

Quando o poder do Estado forja o “desaparecimento” dos povos


originários indígenas, através de relatórios oficiais, de leis, da ciência ou
pela história “oficial”, ele também declara que o “trabalho” de colonização
está acontecendo a todo vapor e que esse é o caminho “certo” para o pro-
gresso do país. O “índio” é como um processo na evolução social humana,
ou seja, deixar de “ser índio” e se tornar um cidadão de bem consumidor,
é o “caminho do progresso”, o fim almejado.
As leis do Estado-Mercado são leis de consumo, são leis de mercado.
As leis artificiais cunhadas a partir do desejo de consumo são implantadas
profundamente na estrutura psíquica artificial e sentidas como desejo de
falta. Assim, o inconsciente coletivo do “mundo moderno” cria o desejo
de consumo disseminado aos cidadãos consumidores, que se relacionam
uns com os outros a partir desse princípio. Consumidor é sinônimo de
“homem moderno”. Nós, povos indígenas, compomos os mundos aliens, que
estão de “fora” da forma de se relacionar do Estado-Mercado, pois somos
povos que não sentem e não percebem suas experiências coletivas pelo
desejo de consumo. Não vivemos a sociabilidade do “mundo moderno”,

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 122


e, consequentemente, somos considerados inimigos do “progresso” do
Estado-Mercado, por isso, querem nos exterminar. Um povo que destrói
a terra, polui rios e extingue animais por “progresso” e outros que
vivem em cumplicidade com a Terra. Qual das duas perspectivas de
vida é brutal?
O movimento conceitual de extermínio e não validação das narra-
tivas das experiências coletivas dos povos originários é propositalmente
articulado pelo “mundo moderno”. As narrativas do “mundo moderno”
são pautadas na sua ciência, ou seja, naquilo que pode ser replicado, re-
produzido, tornando esse movimento conceitual de reprodução “oficial”.
O genérico é a característica do modo de produção artificial de vida do
Estado-Mercado.
As narrativas de experiências coletivas indígenas não são réplicas,
elas acontecem em locais que não se replicam, pois cada uma é vivida,
percebida e sentida na fundação de um mundo e um povo singular. As
narrativas de formação dos mundos indígenas são singulares para cada
povo, mas não se replicam para os outros povos. Cada povo tem em seu
sentimento rítmico ancestral, sua narrativa singular. A pluralidade de
narrativas e relações com a Terra é o que caracteriza nossos povos.
Para o Estado-Mercado, o consumo é a única narrativa e desejo acei-
tável, sendo o descarte a sua forma mais dissimulada e vazia de coletivida-
de. O “mundo moderno” cria desejo de consumo, que acumula e descarta.
Duplo movimento de acúmulo: acúmulo de bens e acúmulo de lixo, pois o
que não é mais “moderno”, pode ser descartado. Esse pensamento não gera
nenhuma conexão com a Terra, é fruto de um sentimento individualista,
sentimento artificial gerado, gestado e produzido pelo Estado-Mercado.
A ciência, as universidades, as escolas, as mídias sociais, todos os
meios de comunicação do “mundo moderno”, são feitos para atingir a massa,
contribuem para a disseminação da ideia de que o “tempo passa” e que o
“progresso” se torna “natural” à vida no Estado-Mercado. Esse movimento
conceitual de experiência da sociabilidade, articulado pelo Estado-Mercado
para dificultar conceitualmente toda forma de resistência que o afronte,
faz com que nós, indígenas originários, principalmente da região Nordeste,
sejamos apontados como impostores quando nos afirmamos como indígenas

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS | 123


em nossas retomadas, por não obedecermos à norma conceitual do que é
ser “índio” no século XXI para o Estado-Mercado.
Porém, nós, indígenas, vivemos outras relações, nos relacionamos
por outros meios. Nosso lugar de escolha e ancestralidade de cada povo
está vivo, vivemos como viviam nossos avós, temos os jeitos daqueles que
não se rendem. Por essas e por muitas outras coisas que não podem ser ex-
plicadas, apenas sentidas, somos indígenas da Terra, e estamos aparecendo
em retomada para lutar contra a destruição da Terra e dos nossos povos.
A retomada indígena é um movimento ancestral e conceitual de
guerra contra o extermínio da Terra e dos nossos modos de viver, no qual
a perspectiva de história como ciência de narrativa oficial é questiona-
da, pois, para nossos povos, as perspectivas de narrativas ultrapassam a
perspectiva documental arquivada. Assim, para nós, povos do Nordeste,
e mais especificamente do Ceará, manter-nos conectados às nossas an-
cestralidades, é a força encantada da luta constante para não sermos
engolidos pelo pensamento e a sociabilidade do invasor. Manter-nos
ouvindo os sonhos e as memórias ancestrais nos faz continuar brotando.
Nossa retomada é movimento de brotar, de sonhar, de cultivar sentimento
com a Terra.

A guerra de retomada

A região Nordeste foi o primeiro local de invasão dos povos ociden-


tais aos mundos indígenas originários no território que hoje corresponde
ao Brasil. Assim, aqui no Nordeste, nossos povos estão em guerra cons-
tante desde 1500. A guerra cosmológica de extermínio dos mundos para
nossos povos do Nordeste tomou outras perspectivas e proporções. Nesse
confronto, nossos povos tiveram que mudar muito sua forma de resistir,
seguindo e criando um fluxo de vida diferente para não serem consumidos
pelo “mundo moderno”.
Nossos povos indígenas originários brotam do chão rítmico desde
os tempos ancestrais, vivendo em heterogeneidade com a Terra. Com a
invasão dos povos europeus, nosso chão sagrado foi banhado com sangue,

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 124


dando início à guerra dos mundos. O “mundo moderno” quer transformar
nossos mundos indígenas num só mundo genérico. O conceito de “mundo
moderno” é implantado através da morte, do genocídio e do sofrimento dos
nossos povos, da imposição de uma nacionalidade, uma pátria e suas leis,
transformando as paisagens, alienando a relação com a Terra, destruindo
o planeta e os mundos indígenas.
As perspectivas e estratégias de luta e resistência dos nossos povos
aconteceram de diversas maneiras, alguns tiveram que sumir “oficialmen-
te” por determinado período, para voar abaixo dos radares da morte do
Estado-Mercado. Muitos se camuflaram atrás de interfaces regionais para
continuar vivendo seu modo de vida. Aqui no Nordeste, nossos povos se
utilizaram do sincretismo como um instrumento e uma arma de continui-
dade dos nossos costumes, como forma de “desaparecer” para não sermos
perseguidos. Nossos mundos indígenas sofreram ataques de extermínio
completo, porém não fomos exterminados, ainda estamos aqui e cada
vez mais fortes, ascendendo e retomando em diferentes povos. Sempre
estivemos aqui, vocês que não tinham “olhos de ver”.
A história “oficial” contada pelos invasores sobre nossos povos é
uma história propositalmente cheia de fragmentos, mentiras e lacunas,
e mesmo nessas lacunas continuamos a viver, a cultivar e a transmi-
tir nosso sentimento de povo originário para as próximas gerações. Foi
nessas lacunas que nossos avós cultivaram seus sonhos que hoje vivem
em nós. Nas lacunas da história “oficial”, continuamos a viver e sentir
nossos espaços-tempo singulares de cada povo, nos encontrando com os
encantados, aprendendo os cânticos e nossas linguagens energéticas que
nos fazem povos originários indígenas, alcançando nosso lugar de escolha.
Assim, nossos avós abriram os portões dos mundos para nós entrarmos, e,
hoje, a Terra que se chama Nordeste vê ascenderem os povos originários
indígenas daqui. Nossa retomada é coletiva.
A guerra do “mundo moderno” contra os mundos dos nossos povos
indígenas se atualiza a cada movimento, reiteradamente desde o primeiro
contato, e nós, indígenas, também nos atualizamos para não sermos engo-
lidos pelo consumo do “mundo moderno”. As fazendas que hoje pertencem
a latifundiários foram o início de um movimento de apagamento dos nossos
povos. Elas pressionaram a coroa, assim como hoje faz o agronegócio, por

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS | 125


medidas que resultaram em consequências como o diretório pombalino,
que levou os aldeamentos a serem extintos e considerados terras devolutas,
os “índios mansos” a serem considerados escravos e os “índios selvagens”
a serem caçados como inimigos.
Posteriormente, com a Lei de Terras de 1850, todas as terras são alie-
nadas e colocadas à venda. Esta lei teve um caráter crucial de mudança na
guerra em relação à Terra para nós, povos indígenas do Nordeste. Ela não
pode ser pensada apenas no contexto histórico/jurídico, que é o contexto do
“mundo moderno” e que obedece à historicidade-temporalidade artificial
e “oficial” do Estado-Mercado. Ela tem que ser considerada como parte do
desenvolvimento das ações que obedecem à ordenação cronológica linear
dualista da história “oficial”.
A Lei de Terras deve ser pensada em termos e efeitos cosmopolíticos
a partir dos mundos indígenas, uma vez que afetou os modos de relações
e vida dos povos com seus territórios. Ela foi uma ruptura cosmológica
implantada na forma de lei, engendrando e impondo uma ordenação e
organização violenta contra as formas dos mundos indígenas se relacio-
narem e ocuparem a Terra. A Lei de Terras causou uma fissura no campo
gravitacional da força afetiva dos povos com a Terra, desequilíbrio nos
modos de viver, migrações indesejadas e o principal: a necessidade de
“sumir” para não sermos exterminados.
No Ceará, apenas alguns anos depois da Lei de Terras, em 1863, um
relatório toma força de decreto e extingue “oficialmente” os “índios”,
com a alegação de que todos estão devidamente misturados à sociedade e
todos agora são cidadãos cearenses. O conceito de identidade, na forma de
caboclo, sertanejo e cearense substitui o conceito de “índio”, identidade
criada pelo invasor como categoria de transição. Agora o “índio” alcançava
outro estágio da evolução social, se tornava “cidadão”.
Alguns antigos aldeamentos e fazendas se tornaram vilas e poste-
riormente cidades, nas quais o modo de produção do Estado-Mercado se
reproduz ferozmente nas leis e nas relações de consumo da sociabilidade no
cotidiano. O Estado-Mercado dita as regras e normas de como se relacionar
com sua historicidade-temporalidade artificial, isso vai sendo passado às
próximas gerações a ponto de os “súditos” do Estado-Mercado se enten-
derem como individualidades e pertencentes a uma “nação”. O desejo de

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 126


consumo do Estado-Mercado vai sendo implantado no inconsciente das
pessoas a partir da mudança de relações do cotidiano, produzindo uma
relação artificial com o desejo e os sentimentos e, consequentemente, com
a vida e suas relações.
Assim, o cidadão pensa que é uma individualidade, que tudo é fruto
dos seus méritos, não se entende como ser coletivo, mas, sim, como ego,
como centro, almejando sempre o topo, ter “sucesso” e ser o “melhor”. Esse
desejo de consumir os sentimentos como uma “conquista” é o desejo de
consumo que o Estado-Mercado implanta naqueles que interagem com ele
nas relações dualistas de produção do consumo. O movimento de imposição
de padrão de consumo muda violentamente o modo de perceber a vida.
Os clãs e famílias indígenas que viviam nas cidades, ou em sistemas
de sociabilidades que eram organizados pelos moldes do Estado-Mercado,
foram forçados a adotar padrões de consumo, foram forçados a vender sua
força de trabalho, no entanto, não podiam gastar seu dinheiro de forma
“livre”. Apenas três gêneros de artefatos eram colocados à “disposição” das
famílias indígenas para compra: a cachaça, a farinha e o fumo. O movimento
de viciar os indígenas no fumo e na cachaça visava destruir socialmente
aquele clã e família, aprisionando-os num ciclo de miséria social. Os vícios
foram implantados como tecnologia de extermínio de nossos povos, tática
usada até hoje pelo Estado-Mercado.
Essa sociabilidade imposta nas formas de se organizar implantada
nas vilas e cidades do Nordeste cria a dualidade entre “cidadão” versus
“índio”, na qual, respectivamente, um é a face “moderna”, e o outro a face
primitiva (obsoleta). Buscando condições de sobrevivência, quando os al-
deamentos foram extintos, muitos povos migraram para as vilas, formando
posteriormente a periferia das cidades. Tiveram que se “adaptar” para não
sofrerem mais perseguição, mas continuavam sofrendo preconceito por
viverem de modo diferente dos demais “cidadãos”.
Muitos clãs e famílias indígenas que faziam parte dos indígenas
chamados pelos invasores de “índios selvagens” também migraram de
seus territórios sagrados para sobreviver à morte e à perseguição, se es-
condendo em locais de difícil acesso no interior dos interiores. Estes indí-
genas começaram ali uma vida de menos guerra direta e mais de cultivo,
dando continuidade aos seus modos de vida ancestrais. Com a atualização

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS | 127


e o avanço da colonização, estes grupos também foram atingidos pelo
“progresso” e, para não serem perseguidos, passaram a se camuflar em
sincretismo com algumas práticas ocidentais. Assim, povos como o meu,
tiveram sua língua materna assassinada para que eu estivesse aqui, minha
trisavó teve que ensinar o português para não sermos perseguidos, porém
a linguagem energética do sentimento do que é ser Takarijú ela nos passou
na forma de nos relacionarmos com o cotidiano, com a coletividade, com
os outros seres, com a Terra e com a vida.
Percebendo a questão pelo prisma de guerra cosmopolítica, fica
explícito que o discurso oficial adotado pelas elites invasoras que se esta-
beleceram aqui no Ceará como “elites locais”, em que afirmavam o desa-
parecimento dos povos originários, é uma forma “legal” e de justificação
para se apropriar do que restou das terras e transformar os indígenas em
pobres assalariados, servindo em regime de escravidão às elites fazendei-
ras. Como o interesse do governo imperial, federal e local era a eliminação
dos povos originários e a usurpação de suas terras, foi fácil manipular a
legislação e elaborar falsos documentos que atestavam a posse das terras
para essas elites. As províncias passaram a tomar medidas anti-indígenas
explicitamente. Assim, o Ceará tornou-se a primeira província a negar a
existência dos povos originários, alegando que todos já estavam “mistura-
dos” à população e agora todos faziam parte de um só povo, o povo cearense.
Por vezes, sem entendimento do motivo da perseguição, sem po-
der contar suas experiências coletivas, impedidos de falar a sua língua
mãe, de praticar suas ancestralidades, impedidos pelo Estado-Mercado
de serem quem são, muitos dos nossos sentiram o peso dos preconceitos
e desenvolveram problemas psicológicos decorrentes da violência do
“mundo moderno”. Isso também é uma sequela da colonização e do efeito
que o Estado-Mercado e sua sociabilidade causam em nossos povos aqui
do Nordeste.
Os 521 anos de guerra se atualizam de diferentes formas, essas do-
enças psicológicas foram passando de geração para geração, fazendo
com que muitos não se afirmem mais indígenas, por temer a exclusão e a
perseguição. Porém, também não são “aceitos como cidadãos”, pois não
têm o “perfil” branco e nem pensam pela dualidade ocidental. Essas cica-
trizes confundem, machucam e chegam ao ponto de causar vergonha nos

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 128


indígenas de dizer que são indígenas. Essa vergonha vem com a lembrança
do medo, da dor e do preconceito.
Esse mal implantado pelo “mundo moderno” e pelo homem branco é
mais profundo do que a moléstia no corpo. São cicatrizes psicológicas que
contribuíram para nosso apagamento. Como consequência, no Nordeste,
nossa presença é considerada encerrada e apenas acervo histórico de povos
que foram exterminados, nossas línguas foram substituídas pelo português
e os que não morreram foram assimilados, passando a ser chamados de
“descendentes”.
Porém, a história “oficial” sobre nossos povos no Nordeste é menti-
rosa e os povos originários indígenas sempre estiveram aqui. Resistimos ao
apagamento e agora estamos aparecendo em retomada. A retomada não
é só um movimento físico, ela é um movimento nos sentimentos, nossos
mundos e seus sentimentos foram feridos, precisamos nos curar das feridas,
a partir dos ensinamentos dos nossos antigos, da Terra, dos sonhos e dos
encantados, sem ressentimento, mas retomando, atualizando e criando
nossos mundos ancestrais e outras possibilidades de viver. A retomada
é uma rede emaranhada de campos indígenas, em que os fios são os di-
ferentes povos e vão vibrando, “despertando”, retomando o encanto da
força um no outro, e assim vão retomando seu lugar vivo e seus mundos.
A alma indígena retorna ao acolhimento de seus ancestrais, retoma seu
encantamento. Os mundos indígenas se encantam e aparecem outra vez.
A retomada faz brotar mundos. Esse é o movimento anticolonial, fazer
brotar mundos.
No século XIX, os povos indígenas no Nordeste foram considerados
extintos pelo Estado-Mercado e pela ciência “moderna”, tornando-se objeto
apenas de estudos acadêmicos. A perspectiva viciada de pensamento do
“mundo moderno”, classifica, nomeia e determina. A partir de seus conceitos
com pretensões universais, a linearidade de pensamento da historicidade-
-temporalidade do Estado-Mercado é molde para a ciência “moderna” e isso
faz com que todos sejam arrastados nesse fluxo de consumo e “progresso”.
A perspectiva de sempre caminhar numa linha reta como único fluxo de
historicidade-temporalidade, é uma performance de negação de outras
perspectivas e experiências coletivas com o espaço-tempo.

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS | 129


O movimento do progresso como lei universal do Estado-Mercado
arrasta todos para a “modernidade”, não existe escolha. O país que não
é “moderno” nos moldes do capitalismo e do desejo de consumo é visto
como atrasado, primitivo e sofre preconceitos. Esse movimento de pro-
gresso também está evidenciado nas formas de se relacionar com o Estado-
Mercado. Logo, o “índio” é o estágio mais primitivo, a transição de “índio”
para “cidadão” é o caminho do progresso nas Américas, assim como foi a
transição do “bárbaro” para o “civilizado” na Europa.
Durante o século XIX, mesmo com a declação de extinção dos nossos
povos, esse movimento de transição continuou a avançar pelo interior do
Nordeste, povoar e colonizar as terras ainda não dominadas e a transformar
os indígenas e seus “descendentes” em pobres trabalhadores rurais sem
terra. O olhar científico para o Nordeste em relação aos povos indígenas
não tinha nada de científico, a ciência “moderna” era um instrumento ra-
cista, político e estatal dos roubos e invasões das terras indígenas, criando
conceitos e documentos “oficiais”, cristalizando e justificando o roubo e
as invasões. A colonização não foi homogênea e não acabou.
Ao transformarem os indígenas em pobres, transformavam-os em
brasileiros pobres, lhes roubavam a singularidade de povo e lhes davam
uma identidade genérica de nordestino, cearense, sertanejo e brasileiro.
Neste ponto de vista, a identidade como conceito de semelhança e de iden-
tificação de um povo e cultura não dá conta das singularidades diferenciais
dos povos indígenas. O conceito de identidade foi criado pelo colonizador
com a invenção do “índio”.
Os invasores acusavam os indígenas de falsos “índios”, questionando
sua relação de pertencimento a um povo originário a partir de um conceito
de semelhança e identidade que eles mesmos criaram. No pensamento
linear dualista do “mundo moderno”, duas coisas não podem existir ao
mesmo tempo: o “ou” é o que determina conceitualmente o que você é,
ou é “índio” ou é “brasileiro”. Se você é “índio”, se afirma como invasor
das terras do Brasil e inimigo do Estado. Se é “brasileiro”, se afirma per-
tencente à nação, e, portanto, você acata as leis e suas punições. Assim,
o movimento conceitual de identidade cria essa armadilha cosmológica,
conceitual, jurídica, antropológica para nossos povos na luta com a Terra.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 130


O projeto de transição para transformar o “índio” em “cidadão”, ou
seja, em mão-de-obra trabalhadora consumidora e pobre, é um dos proces-
sos de destruição da singularidade dos povos, desaguando na expropriação
de suas terras e, por conseguinte, na destruição de seu modo de vida. Esse
é um projeto que não atinge só a nós, povos originários, mas ao planeta,
então atinge a todos. Esse projeto é sempre atualizado de acordo com a
legenda vigente do capitalismo.
À sua maneira, cada um dos “lados políticos” prima pela dissolução
de nossos povos em favorecimento da formação de uma “massa” unificada
numa nação. Pensar em termos de massa, de “unidade”, para nós, povos
originários, é negar nossas singularidades de povos ancestrais e isso é im-
possível. Nós somos povos de aliança, mas não somos povos que renegam
sua singularidade coletiva de povo. Enquanto a política moderna pensa
uma “solidariedade”34 unificante, nós, povos de aliança, pensamos uma
singularidade coletiva dentro de nossas diferentes frequências e campos,
é o coletivo e o singular coexistindo, um não anula o outro.
O Estado-Mercado com o avanço da invasão vai criando instrumen-
tos e instituições para tutelar os povos indígenas. Para nós, indígenas do
Nordeste, o caminho de retomada é bem mais complexo, uma vez que
nossos povos estão há muito mais tempo na luta contra a invasão e já
sofreram diferentes mudanças no decorrer da guerra. Mudamos, mas
continuamos a ser indígenas, pois não existe uma “fórmula” que se replica
do “ser indígena” como o Estado-Mercado conceituou. O movimento de
retomada dos povos originários indígenas do Nordeste é um movimento
de ações anticoloniais, é uma contestação à “história oficial” escrita com o
sangue dos nossos antigos. A retomada originária indígena no Nordeste é
um reencantamento dos mundos. O aparecimento daqueles que sumiram,
mas sempre estiveram aqui.
Nossas narrativas de retomadas são singulares, tudo em nossos povos
é processo de retomada e encantamento, nossos povos não são “unidades
de massa e medida” e nem pontos de partida, “origens”, somos povos ori-
ginários, pois vivemos com a Terra como nossa origem, mas não somos
originários no sentido do “original”. Nossos povos não se pautam e nem

Termo derivado do verbo solidare, de etimologia latina, que significa consolidar, segurar, fazer sólido.
34

Solidariedade, portanto, implica fazer parte de algo maior, contribuir para solidificar, consolidar algo.

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS | 131


buscam “pureza”, não existe “índio puro” como quer o Estado-Mercado.
Somos os sonhos vivos sonhados por nossos antigos e por nossos avós,
somos a retomada e o revide contra a “história oficial”. Somos o efeito
colateral vivo do Estado-Mercado, os aliens do Brasil e filhos da Terra.

Era uma linha, sem começo e fim


E as flores desse jardim, meus avós plantaram
Era uma voz, um vento, um sussurro
Relampo, trovão e murro nos que se lembraram
(SIBA, 2002).

Brotamento

O não “reconhecimento” dos povos indígenas ainda é utilizado para


deslegitimar nossas singularidades de povos e luta com a Terra. Os povos
indígenas brotaram da Terra fértil de sua linguagem viva como energia,
de seus sonhos e suas memórias ancestrais. O movimento de retomada
não é apenas um fenômeno social, material, físico do reaparecimento de
um povo que os antropólogos e sociólogos chamam de etnogênese35. A
retomada é também um movimento conceitual, gravitacional, anticolonial,
de resistência e que se choca contra o Estado-Mercado. As retomadas dos
povos do Nordeste e do Ceará estão ligadas e emaranhadas às frequências
ancestrais que nos transpassam e conectam com os povos e a Terra.
O brotamento36 dos povos no Nordeste e no Ceará é um evento sin-
gular no microcósmo do campo dessa região, que reverbera diretamente
no macrocosmo do país e do planeta. O movimento de brotamento é
“anterior” ao de retomada, brotar é ser cultivado pela Terra e aparecer;
quando o povo brota como sentimento certeiro, os portões dos mundos
se abrem e o lugar de escolha aparece. Assim, a retomada se inicia de for-
ma “visível” e o povo começa a retomar sua singularidade coletiva. Em
contraposição ao extermínio da colonização, nossos povos originários do
35
Processo social de ressurgimento de um povo ou etnia já existente ou criada.
36
Aparecimento “visível” na afirmação de retomada de um povo é sobre brotar, é ser cultivado pela
Terra. Nossos povos sempre estiveram aqui, agora estamos aparecendo e nos mostrando como
fenômeno “visível”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 132


Nordeste brotam vida, brotam mundos plurais e diferentes. Nosso jeito
de viver, nosso jeito de “ser” e de criar nossas experiências coletivas de
espaço-tempo junto à Terra vive em nós. Quando brotamos, isso aflora,
floresce e um povo retoma a força ancestral e aparece.
Nascer, brotar, como um olho d’água, como uma nascente, como
pontas de ramo. Esse ritmo de vida está marcado em nós, como povo, então
não importa o quanto tentem nos exterminar, continuaremos brotando do
chão, dos rios, das serras, pois a Terra é plural e coletiva, é nosso berçário
de vida e resistência. A memória ancestral vive em nós, não é lembrança,
não está localizada no passado, ela é não-local. A memória ancestral dos
nossos povos acontece em espaços-tempo simultâneos que se atravessam.
Quando se cria uma perspectiva de afinidade de percepção, quan-
do uma perspectiva de espaço-tempo entra em colapso, ela deixa de ser
possibilidade e se efetiva na vida. Assim é a conexão com nossa memória
ancestral: ela circula, conecta e atua nesse campo emaranhado dos povos
com a Terra, atravessando os espaços-tempo, se movendo fora deles, mas
se efetivando neles. É ação e acontece no aqui-agora. A memória ancestral
é campo que atravessa nossos troncos velhos, nossos sonhos, os ensina-
mentos dos encantados, e vai compondo, se emaranhando e formando o
ritmo, frequência e campo de singularidade de cada povo com a Terra,
formando os espaços-tempo das experiências coletivas, em que as reto-
madas acontecem.
As retomadas não estão subordinadas ao tempo linear cronológi-
co dualista do Estado-Mercado. Elas o atravessam, mas não agem só na
historicidade-temporalidade artificial “moderna”, elas criam suas expe-
riências espaço-temporais de ação a partir das memórias ancestrais e dos
sonhos que nos conectam com os antigos e com a Terra. Por isso, estamos
em espaços-tempo diferentes, por isso nossas cosmologias são diferentes
e nossos povos têm uma singularidade, um campo e uma afinidade de
percepção com a Terra e a vida diferentes.
A conexão singular apresentada pelos povos na luta de retomada
no Nordeste e no Ceará é sentida num campo mais “sutil” e se manifesta
nas diferentes órbitas de vida. No Nordeste, “ser” um povo originário é
sentir as afinidades de percepção a partir de conexões espirituais, por
uma linguagem sútil de “sentir” o seu lugar de escolha de povo e a Terra.

CAPÍTULO 10 - RETOMADAS | 133


Brotar indígena no Nordeste é um processo de retomada rítmico íntimo
de sentir o chamado da Terra e dos antigos. A linguagem energética não
é transmitida apenas pela língua, mas por uma linguagem de afeto, de
sentir a Terra se emaranhando com as memórias, os sonhos e os encantos.
A retomada está acontecendo e vem crescendo. Os povos indígenas
originários no Nordeste, e, especificamente no Ceará, brotam da Terra,
rasgando o Estado-Mercado por dentro, como aliens37, Bae Damã, brotan-
do da Terra. “Somos os de ontem, mas somos novos”38. Brotamos junto
com a força encantada ancestral da Terra, reorganizando as perspectivas
de forças na luta com a Terra contra o capital, retomando a partir dos
sentimentos cotidianos dos nossos avós, dos dizeres deles e de suas lutas
cotidianas no viver como povo indígena originário. A força da retomada
desmente todas as informações erradas e “naturalizadas” contadas pela
“história oficial” de que no Ceará e no Nordeste não existem mais povos
indígenas originários.
Histórica e oficialmente o poder público nacional se omite em relação
ao massacre sofrido por nossos povos. Essa omissão se dá porque o Estado-
Mercado é o único beneficiado se nossos povos forem extintos. O projeto
completo de colonização e progresso do mundo moderno positivista está
estampado na bandeira nacional, com o mote: “ordem e progresso”. Essa
afirmativa é também uma ameaça que passa pela eliminação completa dos
povos originários. O projeto de construção do Estado-Mercado “legítimo”
Brasil é o projeto de eliminação dos nossos povos, projeto esse que nunca
será terminado, pois ele é um ideal sem fim, o desejo de consumo não tem
final, senão pela sua própria autodestruição. Portanto, enquanto houver
Terra e povos originários, o Estado-Mercado continuará tentando nos
eliminar e escravizar, mas continuaremos a brotar e resistir.
Um grito mudo
Perguntando aonde
Nossa lembrança se esconde
Meus avós gritaram.
(SIBA, 2002).

37
Ver o filme “Alien, o oitavo passageiro”.
38
Dizeres do EZLN, Exército Zapatista da Libertação Nacional.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 134


CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 135
CAPÍTULO 11
NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES

Retomada conceitual

A retomada conceitual é a retomada dos sentimentos e percepções


dos povos indígenas, para pensarmos e sentirmos nossas próprias relações
e experiências coletivas de espaços-tempo, sem buscar semelhança com
a figura conceitual da ciência “moderna”. A retomada conceitual é uma
busca do pensamento com a Terra, dos sentimentos com nossos antigos,
dos acessos às forças encantadas dos nossos sonhos para, a partir disso,
criar e retomar nossos mundos, novos mundos de retomada, pensar nossos
próprios problemas sem nos basearmos na matriz colonialista de pensa-
mento acerca de nós mesmos.
O projeto colonizador é a implantação da sua verdade como único
sentimento do passar da vida, é um projeto de desencantamento dos
mundos indígenas originários e da vida, para a implantação de uma pro-
dução de artificialidade e morte do ego do “mundo moderno”. Os modos
e experiências coletivas indígenas de se relacionar entre si e com a Terra
são atacados pelo modo de produção individualista de morte, controle e
propriedade do Estado-Mercado “moderno”. Esse acontecimento rela-
cional encarna na mudança das maneiras de agir e sentir o cotidiano e é
o primeiro grande acontecimento diferencial de energia decorrente do
contato/conflito entre os povos indígenas e o Estado-Mercado.
O campo dos povos indígenas amplia-se e vai mudando de forma
mais intensa por influência da guerra de extermínio imposta pelo “mundo
moderno”. Essa mudança, porém, é atualização e resistência cultivada
para continuarmos a brotar nas retomadas. No Nordeste, nossos povos

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 136


indígenas originários estão em fluxo incessante de movimento de retomada
contra a constante guerra de extermínio que o Estado-Mercado impõe, é
um movimento cosmológico conceitual de repulsão contra a colonização.
Estado-Mercado é o movimento de atração para um mundo genéri-
co; retomada é o movimento plural diferencial de repulsão contra o
Estado-Mercado.
A experiência artificial dualista da historicidade-temporalidade do
Estado-Mercado caracteriza a maneira como são criadas as experiências
de cotidiano do “mundo moderno”. A retomada conceitual indígena busca
explicitar esses movimentos, emaranhados conceituais que compõem o
pensamento identitário do Estado-Mercado acerca dos povos indígenas.
Nossa retomada conceitual propõe criação de conceitos a partir das plurais
matrizes de pensamento, sensação e percepção dos povos indígenas origi-
nários, mas também, entender a artificialidade do pensamento “moderno”,
apontando as relações que o compõem, mostrando que o Estado-Mercado
é uma perspectiva de experiência e não a única perspectiva possível.

A força gravitacional das Retomadas

Pensar a mudança de relação com a Terra e as diferentes percepções


de mundo é pensar uma mudança de relação com a vida, é pensar um cho-
que cosmopolítico entre mundos em perspectivas diferentes de relação
com o planeta. Os plurais modos de vida dos povos indígenas originários e
o modo de produção do “mundo moderno” são diferentes perspectivas de
relação, diferenças dimensionais de ritmo, diferentes ações e vida em seus
campos de estar e afetar o planeta. Então, pensar o indígena-originário
transformando-se em cidadão, “livre trabalhador” e “livre consumidor”, é
legitimar a violência conceitual cosmológica “moderna”. Esse movimento
conceitual do Estado-Mercado é movimento de captura constante com
intuito de deslegitimar os povos originários para roubar as terras, dese-
quilibrando a relação singular que os povos têm com a Terra e com suas
experiências coletivas ancestrais de cada povo.
Impor o “progresso” como único movimento de experiência com a
sociabilidade no cotidiano cria o mito de que os povos originários e seus

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 137


modos de vida são “atrasados”, inferiores. Portanto, analisando os ditos e
os não-ditos da “história oficial” do Brasil, podemos perceber que os povos
indígenas originários e o Estado-Mercado Brasil são “interfaces” de duas
cosmovisões diferentes: a cosmovisão do Estado-Mercado, que é pautada
na analogia, controle e identidade, e as cosmovisões indígenas, que são
plurais. O brasileiro, filho do Estado-Nação Brasil, “já nasce” destituído
de sua relação plural com a Terra e conectado ao “mundo moderno” pela
relação individual com o consumo e a propriedade. Nossos povos indígenas
originários são filhos da Terra, singularidades coletivas que brotam mundos.
A dominação do mundo do “outro” e a subordinação ao seu como
única verdade, a vontade dominante de supremacia racial, territorial e
epistemológica visando ao lucro e ao desejo de consumo, são o combustível
de destruição do planeta que alimenta o motor da dominação do “mundo
moderno” sobre os outros mundos. É uma simbiose entre consumo e poder,
um não vive mais sem o outro. Esse é o movimento conceitual articulado
para fazer continuar, a todo vapor, a reprodução do “mundo moderno”.
Essa é a diferença conceitual, dimensional e relacional dos mundos que
estão em guerra. A partir dessa apresentação do problema, podemos en-
tender que toda guerra junto com a Terra não é apenas uma luta por ter-
ritório, mas uma luta cosmológica conceitual pela vida e contra o “mundo
moderno”. Portanto, pensar a retomada conceitual como pluralidade de
força encantada indígena originária é pensar em todas as perspectivas de
forma diferencial cosmológica.
Os povos originários se unem não numa única frequência de pensar
e agir, não é uma massa-partícula-unidade, mas em ritmos de ondas esca-
lares de diferenciais entre cada povo. É isso que impulsiona a retomada,
criando uma força repulsiva ao Estado-Mercado, mas gravitacional com a
Terra, nos afastando do desejo de consumo artificial do Estado-Mercado e
nos aproximando e conectando com a força encantada da Terra. A singu-
laridade coletiva de cada povo transpassa e se emaranha num campo com
a Terra, e se amplia em campos de experiências coletivas gravitacionais
que exercem efeito uns nos outros, formando uma rede. Por isso, as cos-
mologias indígenas são plurais em suas singularidades, porém, sentindo o
campo de ritmo gravitacional planetário da Terra que transpassa a todos.
A Terra para nós, indígenas, não é só território, é campo de encantamento,

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 138


a Terra é palco das manifestações singulares das experiências coletivas
dos mundos de cada povo.

Horizonte de eventos

“Era uma dança


Quase uma miragem
Cada gesto, uma imagem
Dos que se encantaram.” (SIBA, 2002).

O conceito horizonte de eventos é sentido e percebido a partir das


perspectivas horizontais de pluralidade da relação dos povos indígenas
originários com a Terra, em suas diferentes experiências coletivas singu-
lares que compõem cada povo. O horizonte de eventos é um conceito que
propõe pensar e perceber as relações de experiências coletivas dos povos
indígenas originários que criam outras perspectivas de relacionar-se. Esse
conceito funciona como plano de ação e campo de experiência singular,
no qual cada povo vai criar sua singularidade de relação com a Terra,
criando um ritmo próprio. Funciona como um campo de possibilidades
e informações não determinadas, emaranhadas pela força encantada,
possibilitando cada povo, em sua experiência singular coletiva, criar seu
próprio espaço-tempo, suas próprias narrativas de formação de mundo,
sua própria cosmologia.
Para entendermos melhor o conceito de horizonte de eventos e
como esta perspectiva se faz presente hoje nos processos de retomada,
contrapondo-se ao modo único de formação de mundo influenciado pela
geometria euclidiana que compõe a estrutura de controle e medição do
Estado-Mercado, precisamos entender como essas duas perspectivas de
campos são sentidas e como elas encarnam nos modos de vida.
O primeiro movimento de geometria euclidiana, conceitualmente
falando, que ajudou a cristalizar a formação da sociabilidade e da identi-
dade do Estado-Mercado aqui no Brasil, ocorreu quando os invasores do
“mundo moderno” nomearam os diferentes povos daqui com o termo
genérico “índio”. Essa forma conceitual de medição e controle do que

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 139


eram aqueles povos ajudou a classificar e enquadrar dentro do conceito de
“índio” tudo o que era oposto ao conceito de civilizado e, posteriormente,
de “cidadão”. Nessa dualidade está o embrião da guerra cosmológica dos
mundos que se arrasta até hoje.
O conceito de “índio” funciona como o conceito de “negro” para o
Estado-Mercado, são similares. Ou seja, “índio” é um conceito genérico que
traz junto todo preconceito, racismo e desejo de extermínio do “mundo
moderno” em relação aos mundos indígenas. Para o “mundo moderno”,
os conceitos de “negro” e de “índio” referem-se àqueles que são inimigos
da “luz do iluminismo”, um dos ideais de fundação do Estado-Mercado, ou
seja, “negro” e “índio” são conceitos inimigos do “mundo moderno”. Ao
fazer esse movimento, o Estado-Mercado cria a narrativa de sua formação
como “mundo moderno” a partir da dualidade de “bem contra mal”, “luz
contra trevas”, na qual o “mundo moderno”, o progresso, as tecnologias, o
mundo civilizado e as leis são o futuro, e os mundos indígenas são o atraso,
o primitivo, o mundo selvagem, a vida sem leis.
A narrativa de formação do Estado-Mercado é construída pela matriz
de pensamento dualista com forte influência da geometria euclidiana. Isto é,
a matriz de campo na qual a narrativa do Estado-Mercado que sustenta sua
estrutura é vertical, uma estrutura hierárquica-dualista em que o “mundo
moderno” se ancora para reger todas as suas outras relações de vida. Assim,
o campo em que o Estado-Mercado se funda é um campo cartesiano com
coordenadas bem definidas que controlam não só o seu mundo, mas que
buscaram universalizar esse movimento com a colonização, engolindo e
destruindo outros mundos.
Portanto, o “mundo moderno” cria o conceito de “índio” para criar
o campo de ação estrutural de coordenadas nas quais ele possa se po-
sicionar como a “verdade”. Dessa maneira, no pensamento de campo
dualista do Estado-Mercado, a diferença é algo anômalo, aquilo que não é
identificado, aquilo que é perigoso. Por isso, nas relações sociais comuns
de cotidiano entre os indivíduos no Estado-Mercado, tudo que é diferente
causa medo. O Estado-Mercado cria, num movimento duplo a partir do seu
campo dualista conceitual, a diferença, criminalizando sua existência, e
a identidade, aquilo que pode ser reconhecido, aquilo que é identificável,
portanto, “seguro”, “legítimo”, “oficial”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 140


Os horizontes de eventos, conceito pelo qual o campo da Terra age e
emaranha-se ao campo dos mundos indígenas em formação de suas singu-
laridades, são completamente diferentes em suas matrizes de sentimento
e percepção. Enquanto o “mundo moderno” se baseia pela matemática e
geometria de uma medição e controle, os campos e horizontes de even-
tos dos mundos indígenas baseiam-se pela experiência coletiva e pelas
afinidades de percepção entre os campos circulares de força da Terra. Os
horizontes de eventos dos mundos indígenas sentem e percebem as forças
de encantamento da Terra e confluem com elas. A partir disso, as perspec-
tivas e formações de mundos indígenas ganham narrativas, expressões,
conceitos, pluralidades e diferença. Os horizontes de eventos são forças,
campos e informações que podem compor os mundos indígenas originários.
A diferença dos mundos indígenas não é gerada e nem medida pela duali-
dade, não pensamos por opostos e semelhantes. A diferença é relacional.
Os diferentes povos sentem e percebem as afinidades de frequência
e força da Terra de forma singular, com base no território onde eles es-
tão. Assim, cada povo vai criando seu mundo e seu ritmo a partir da sua
relação singular coletiva com a Terra e os encantados que ali confluem
com ele. Os povos indígenas originários sentem o fluxo e vivem com ele.
Nós não queremos dominar a Terra nem ser donos dela, queremos viver
em equilíbrio sentindo as forças visíveis e invisíveis que nos atravessam.
A Terra caminha em energia escalar39, em ondas de vortéx a partir
de sua órbita em torno de si mesma e em torno do sol, confluindo com
o movimento da galáxia e com o cosmos. Isso vai gerando vida plural no
planeta, nos diferentes campos de frequência visível e invisível. Nossos
povos sentem esse fluxo e, a partir das afinidades, vão se emaranhando a
ele, criando seus mundos, ritmos, ancestralidades e conexões com os mun-
dos físicos e encantados daquele território. Assim, toda vez que os ciclos
se compõem geram forças e encantos diferentes, nunca são idênticos, não
dá para ser medido mais de uma vez, não se replicam, apenas mudam, mas
a cada mudança ensinam um fluxo e um sentimento diferente de vida.
Nossos povos são plurais e os horizontes de eventos de diferença
são os pontos de força da formação dos nossos mundos, portanto, não

39
São campos de energia potencial que aqui chamo de energia potencial da Terra ou campos esca-
lares da Terra.

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 141


podemos classificar os povos indígenas originários de forma genérica
como o Estado-Mercado e sua ciência “moderna” pretendem, pois, antes
de sermos “índios”, somos singularidades coletivas que compõem cada
povo. Pensar como esses conceitos funcionam no contexto de guerra dos
mundos entre mundos indígenas e “mundo moderno” é crucial para que
nossos povos continuem a retomar e a pensar seus próprios conceitos
baseados em suas percepções e sensações de relação com a Terra.

“Índio” - indigente versus indígena

O conceito de “índio” foi cunhado a partir do encontro entre a dife-


rença dos mundos plurais indígenas e a semelhança e analogia da identidade
dos mundos ocidentais. Os povos do ocidente buscam referenciais para
medir sua identidade e controlar as relações a partir da semelhança ou
diferença, os povos indígenas originários buscam diferenciais para sentir
e ampliar as relações a partir da singularidade e ritmo.
O termo indígena vem do latim e quer dizer: “natural de onde se
vive, gerado dentro da terra que lhe é própria”. É a junção dos termos Indi,
“movimento para dentro, de dentro”, e gena, “gerar”, “Terra”. Ou seja,
INDÍGENA é o “gerado de dentro da Terra”. Porém, o Estado-Mercado
atualiza o termo indígena e engloba aquele que nasce na Terra, a terra
aqui com significado de território nacional. Assim, o brasileiro pode se
reivindicar “indígena” do Brasil. Temos, então, duas significações para
indígena: os que nascem e interagem com o Estado-Mercado, com seu
território nacional, os indígenas do Brasil ou brasileiros; e os indígenas
que não interagem com as “luzes” do Estado-Mercado, os que nasceram
da Terra antes de ela ser medida e escravizada, os indígenas da Terra, os
povos indígenas originários. Conceitualmente, existem duas perspectivas
de indígena que são entendidas por matrizes diferentes de sentir, pensar
e perceber a Terra.
Dentro dessas perspectivas conceituais de diferentes campos de
pensamento cosmológico, existem movimentos de classificação criados
pelo Estado-Mercado. O indígena do Brasil, ou brasileiro, é um duplo mo-
vimento de afirmação e negação. Ele se afirma nacionalista, brasileiro,

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 142


filho da nação, ao interagir com o desejo de consumo e sociabilidade do
Estado-Mercado, negando os mundos indígenas. Ainda dentro da perspectiva
conceitual do Estado-Mercado, existe o movimento classificatório que ele
impõe aos mundos indígenas originários. O Estado-Mercado, classifica-nos
de forma preconceituosa, criando no imaginário dos brasileiros uma noção
genérica dos nossos povos, enquanto afirma sua forma de vida baseada
na identidade. Nesse movimento, o “índio” ganha mais uma característica
preconceituosa, a de indigente. INDIGENTE, vem do latim, indĭgens, “que
tem falta de; necessitado”. Significa “aquele que vive em indigência, sem
condições de suprir suas próprias necessidades; miserável, necessitado,
pobre”. As características do indigente são, sobretudo, características da
escória do “mundo moderno”. O “índio” e o indigente são sinônimos para
o Estado-Mercado “moderno”, devem ser eliminados. Os “índios” não são
ameaça; mas os indígenas, sim.
Os povos indígenas originários e suas retomadas são ameaça ao
“mundo moderno”, pois estão há mais de cinco séculos resistindo. São
empecilhos, pois os mundos indígenas vivem, sentem, percebem e pensam
por outras matrizes de relação, tornando difícil a conversão total ao “mundo
moderno”. O conceito de “índio” como indigente é criado para atender a
esse movimento de conversão do tempo linear do “mundo moderno”, é
uma inclusão que exclui. Incluir no “mundo moderno”, excluindo do seu
próprio mundo, eliminando-o. ÍNDIO-INDIGENTE é a mácula gerada pelo
Estado-Mercado “moderno”, portanto, os indígenas assim classificados,
convertidos na figura do pobre, são descartáveis, são os alvos das forças
de extermínio do Estado-Mercado.
Os questionamentos acerca das tecnologias conceituais do Estado-
Mercado e de suas ciências “modernas” são importantes para entender
como funcionam as matrizes de classificações e padrões dos ocidentais e,
a partir dessa percepção, ampliar os movimentos de retomada, criando
nossos próprios conceitos, avultando nossa ciência ancestral, apresentando
nossa pluralidade diferencial de vida, buscando estender o brotamento dos
mundos singulares dos povos indígenas, aumentando a resistência contra
o “mundo moderno” e seus conceitos genéricos. Ampliando os conceitos a
partir dos horizontes de eventos diferenciais indígenas, podemos pensar que
“ser indígena” não é apenas um conceito genérico, mas um conceito plural.

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 143


Segundo alguns pesquisadores brancos, “ser índio” é “ser membro
de povos e comunidades que têm consciência de sua relação histórica com
os antigos que viviam nestas terras antes da chegada dos invasores”. Esse
conceito de “ser índio” é um conceito impregnado do pensamento dualista
e da influência da geometria euclidiana, ou seja, essa definição é apenas
uma perspectiva cunhada pelo “mundo moderno” e é insuficiente para
se aproximar das plurais maneiras de ser dos diferentes povos. Podemos
pensar o que é “ser índio” a partir da perspectiva do diferencial circular
de força encantada da Terra e criar conceitos de formação e informação
do que pode ser o indígena, pois o indígena nunca é, ele pode ser, porque
vibra em força diferencial de pluralidade e causa colapso na definição
genérica do “mundo moderno”.
Cada povo tem um ritmo diferente de compor sua singularidade de
povo. Assim, não podemos tornar genérico o que é “ser indígena”. Quando
um povo acha seu ritmo, muda a cada ciclo de força escalar de encanto
com o movimento do campo da Terra. Quando o Estado-Mercado tenta
classificar os povos indígenas em conceitos genéricos, faz com que as
frequências de ondas indígenas de viver entrem em colapso para que ele
tente medi-las e identificá-las, mas esse conceito de identidade só existe
no ideal metafísico dualista do “mundo moderno”. Nossos povos indíge-
nas não obedecem a essas expectativas e características axiomáticas da
ciência “moderna”.
Matar o indígena e seu mundo, “transformar” o TAKARIJÚ em “ín-
dio”, o “índio” em “manso, o “índio manso” em assistido-tutelado, o
“índio tutelado” em sem-terra, o “índio sem-terra” em “não-índio”, “o
não-índio” em pobre, o pobre em consumidor. Fazer esse pobre achar
que não existe mais “índio” e que é “protegido” pelo Estado-Mercado e
depende dele. Atacar e explorar esse pobre por ele ser aquilo no que o
Estado-Mercado o “transformou”, por ser a diferença, o “lixo” do Estado-
Mercado. O movimento linear e dualista do pensamento “moderno” vai
seguindo o “progresso”, fazendo avançar o colonialismo, enquanto nossos
povos indígenas em outros movimentos de antilinearidades vão brotando
conceitos e diferenciações de experiências coletivas de espaços-tempo,
fazendo brotar as retomadas, fazendo avançar a força encantada ancestral
dos nossos antigos e da Terra em resistência contra o “mundo moderno”.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 144


Os conceitos do “mundo moderno” não atingem os mundos in-
dígenas apenas de forma física e material. O Estado-Mercado propõe o
movimento linear de “evolução” do “índio” para o “cidadão”, para dar
“autonomia” de “cidadão” aos indígenas, mas para isso, propõe que os
indígenas deixem de ser quem são e sejam tutelados pelo Estado-Mercado e
suas leis. O capitalismo é um monstro que não dorme, ele é nosso pesadelo
acordado. Os mundos extrafísicos indígenas também são afetados pela
mudança de campo que o “mundo moderno” impõe com a destruição da
vida no planeta. Então, uma retomada conceitual é um reencantamento
das formas de se relacionar com a Terra, apresentam esse reencantamento
ao brotar, ao buscar se conectar com seus antigos e com as frequências
dos mundos indígenas. A retomada conceitual indígena é importante
para apresentar outros conceitos e outras perspectivas, outras ciências
de relação com a Terra.
A destruição dos modos de vida dos povos indígenas é proporcional
ao avanço conceitual do modo de produção do Estado-Mercado. À medida
que os conceitos de destruição e consumo se tornam comuns, cotidianos,
ninguém mais se indigna com a destruição do planeta e com a forma
como as relações acontecem. O “mundo moderno” com seus conceitos de
consumo não invade e devora só o chão visível, mas também o encanto da
vida e a parte espiritual da Terra. O “mundo moderno” se torna “normal”.
Nossos povos sentem as afinidades de percepção com a Terra, estamos
conectados a ela e sentimos sua destruição. Por isso resistimos, porque
sabemos que sem Terra não existe vida. Terra para nós não é apenas o
chão que se vê, é o mistério de tudo que não entendemos, mas sentimos.
A Terra é nossa cúmplice, mãe e parente. Neste ponto, entramos num
conceito crucial para entendermos as retomadas e as relações dos povos
nesse emaranhado de campos, o conceito de parente, que tem uma pers-
pectiva muito mais ampla do que a perspectiva que estrutura a psiquê da
psicologia “moderna” alcança.
“Quase uma queda
Quase uma descida
Uma seta remetida
As mãos se apertaram” (SIBA, 2002).

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 145


Parente, Povo e Lugar de escolha

O conceito de parente para nossos povos sofreu diferentes atuali-


zações em meio à guerra dos mundos iniciada com a invasão do “mundo
moderno”. Na forma como é sentido, pensado e percebido a partir dos
horizontes de eventos dos povos indígenas originários, esse conceito
amplia-se a uma conexão não apenas filial, parental, consanguínea, mas
uma aliança de campo de luta e resistência. Usado hoje na guerra, repre-
senta um fortalecimento das conexões e redes de resistência dos povos
em retomada, principalmente no Nordeste.
O conceito de parente está conectado ao conceito de povo, funcio-
nam diferencialmente em suas perspectivas, porém, estão relacionados
pela diferença que os compõem em suas pluralidades. O conceito de povo
indígena cunhado pela “ciência moderna” afirma que compor um povo é
fazer parte de uma comunidade ligada a um lugar específico. O conceito
de povo que apresento, a partir das perspectivas de horizontes de eventos
do meu povo, não está necessariamente atrelado a um “lugar específico”,
pois todos os lugares da Terra são específicos para nossos povos. Todo lugar
onde um indígena pisa é terra indígena, o planeta Terra é terra indígena.
A invenção das fronteiras às “luzes” do “mundo moderno” não se aplica
a nós. Portanto, povo está num campo de sentimento mais amplo do que
apenas físico ou local.
Compor um povo tem a ver com sentir as afinidades de percepção
com a Terra e com as experiências coletivas que estão emaranhadas nessa
relação. Compor um povo é sentir o seu “lugar de escolha” a partir das
percepções da memória ancestral, dos sonhos e das linguagens de encan-
taria, que agem no campo de cada ritmo de coletividade singular. Um povo
é um ritmo, não com um “lugar específico”, apesar de o lugar específico
compor nosso lugar de escolha. O meu “lugar de escolha” faz com que eu
continue sendo TAKARIJÚ, mesmo que meu povo tenha sido expulso de
seu lugar específico.
O lugar de escolha do povo TAKARIJÚ vive em mim e eu vivo nele,
vive nas memórias ancestrais de minha bisavó, que vivem em mim; vive
nas memórias ancestrais da Serra da Ibiapaba, que vive em mim; vive nas
matas antigas e nos rios dos cânions do Piauí, que vivem em mim; vive em

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 146


cada um dos antigos que vieram antes de mim e agora estão aqui comigo.
O lugar de escolha de um povo é um conceito que não se explica, não se
define, mas se sente, se ouve, se sonha, se encanta. Integrar um povo é
sonhar com os antigos e com a Terra, sentir o sonho em nós, em todos
os momentos aqui e agora. Por isso, indígena é sempre sentido no plural,
sempre como um povo. O “nós” é nossa “primeira pessoa” e o “eu” não
existe como instância de fortalecimento do ego na consciência, pois a
consciência é sempre coletiva.
O conceito de povo se amplia para além do “lugar específico”, pois
nossos povos não entendem Terra e território apenas como algo material.
Os diferentes povos que vivem no planeta também compõem o conceito
de povo para nós, indígenas. Dessa forma, existe o povo das onças, o povo
dos rios, o povo das montanhas, o povo dos encantados, o povo dos espí-
ritos, o povo das estrelas e muito mais pluralidades. Assim, o conceito de
povo sentido, pensado e percebido a partir da pluralidade das perspectivas
indígenas é ampliado para além do que diz o conceito de povo criado pela
“ciência moderna”.
A partir desse emaranhado de conexões entre os campos e ritmos
dos diferentes horizontes de eventos dos povos, podemos sentir, perceber
e pensar o conceito de parente, que se ampliou e atualizou em um conceito
de retomada na guerra cosmológica. O conceito de parente é um conceito
de conexão e guerra ao mesmo tempo, pois ele conecta diferentes povos
na luta contra o “mundo moderno”.
Por suas afinidades e suas singularidades de percepções e relações
com a Terra, os diferentes povos nunca estão isolados, sempre estão ema-
ranhados com o campo de sonhos de ação da Terra e com as singularidades
de constelações de povos. Por isso todos sentem o que acontece uns com os
outros e com a Terra. Por isso é que os povos se entendem como parentes,
por essa afinidade de percepções que se estende também aos parentes que
“morreram”, mas estão vivos e continuam sendo sentidos como parentes,
continuam em conexão com o povo e com a Terra. Essa perspectiva de
sensação e percepção extrapola o campo psíquico estrutural familiar do
conceito de parente cunhado pela “ciência moderna”.
Assim, nossos povos são todos parentes, todos estão conectados uns
com os outros numa rede, num emaranhado invisível que nos conecta

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 147


com os antigos e os encantos da Terra. Esse conceito foi atualizado num
conceito de guerra e resistência a partir da invasão do “mundo moderno”
sobre nossos mundos indígenas. Com esse novo contexto de guerra de
extermínio imposto aos nossos povos, principalmente aqui no Nordeste,
nós tivemos que movimentar essa energia e força encantada ancestral
para continuarmos a resistir e a brotar. Isto posto, o conceito de parente
também é um conceito de retomada de conexão no sentido de ascendên-
cia, fazendo aparecer e brotar povos. O conceito de parente, por conectar
todos os povos em um emaranhado, não admite a definição genética e
genealógica de povo. Parente é um conceito relacional que interage com
a Terra e não com o campo da ciência “moderna”.
O conceito de ascendência no contexto de retomada e de guerra dos
mundos é também deslocado, passando a funcionar de outra maneira. O
conceito de ascendência é contrário ao conceito de descendência, imposto
pelo conceito de evolução. Ascender funciona em duplas setas ao mesmo
tempo, rasgando os conceitos de evolução da ciência “moderna”. Quando
nossos povos ascendem em retomada, causamos um colapso na idealização
metafísica de linearidade da descendência e da evolução do progresso do
Estado-Mercado.
Neste movimento, nos aproximamos dos nossos antigos, da nossa
memória ancestral, dos sonhos com a Terra, das linguagens energéticas da
força ancestral encantada, que para o “mundo moderno” e sua ciência, estão
no passado; e assim rompemos com a noção de historicidade-temporalidade
artificial do Estado-Mercado. Ascender em retomada é também acender o
fogo criador da força circular escalar e conectar todos os espaços-tempo
de relações com a Terra, é acessar as experiências coletivas dos nossos
povos, sentindo nosso lugar de escolha.

Troncos Velhos e Pontas de Rama

Os conceitos de parente, povo, lugar de escolha e ascendência, todos


estão nesse emaranhado de sentimento e percepção dos povos indígenas
originários em retomada aqui do Nordeste. São conceitos que se conectam

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 148


aos conceitos de ponta de rama e tronco velho, que ampliam o brotamento
e a ascendência da retomada.
E o lampejo
Da luz estupenda
Que atravessou a fenda
Que tantos enxergaram. (SIBA, 2002).

Os conceitos de retomada dizem respeito às retomadas conceituais


que funcionam em concomitância, ao passo que são criados a partir da
perspectiva de experiência coletiva dos povos indígenas, se contrapõem
ao modelo de controle dualista do pensamento do “mundo moderno”.
Portanto, os conceitos de retomada são conceitos de guerra e resistência, são
conceitos que mudam à medida que seu uso na guerra pede essa mudança.
A retomada no Nordeste é uma retomada cosmológica, não só dos
mundos físicos e extrafísicos, mas também dos mundos conceituais dos
nossos povos indígenas originários. É uma retomada do encantamento dos
mundos e dos conceitos que os compõem e nos fazem sentir nosso lugar
de escolha. Nossos povos do Nordeste, por força da guerra de extermínio
imposta pelo Estado-Mercado, estrategicamente tiveram que “sumir”,
diminuir a frequência de sua energia e seu movimento, se camuflando
entre os brasileiros para continuarem a viver passando para as próximas
gerações seus encantos, esperando a hora certeira de ascender e aparecer.
A ascensão da retomada dos nossos povos no Nordeste não é um
movimento linear que obedece a um tempo cronológico, pois não é uma
evolução, é um movimento energético ascensional, um movimento que
aparece, que não se move no espaço-tempo, ele se move nos emaranhados
dos horizontes de eventos que criam os espaços-tempo, por isso nossos
povos em retomada são povos originários, mas não são povos “puros”,
nós nos movemos entre espaços-tempo, não estamos subordinados a eles.
A ascensão dos movimentos de retomada acontece por “saltos quân-
ticos”, saltos nos espaços-tempo, não obedecem à medição e à geometria
euclidiana do Estado-Mercado, vivem e acontecem em seus horizontes de
eventos, retomando as experiências coletivas diferenciais dos espaços-
-tempo de cada povo. Os povos foram forçados a diminuir sua energia e força
por causa do extermínio do Estado-Mercado, para não serem destruídos,

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 149


mas estavam ali, continuavam vivendo, habitando o lugar de escolha de
cada povo e agora a ascenção está acontecendo. Os povos indígenas do
Nordeste que um dia foram dados como “extintos” pela ciência “moder-
na”, “aparecem”, vivos, cheios de encanto, força e energia, retomando os
conceitos encantados de formação dos seus mundos, lutando com a Terra
contra o “mundo moderno”.
A descontinuidade e a dinâmica na relação com os espaços-tempo da
perspectiva diferencial dos povos indígenas do Nordeste causam colapsos
nos conceitos do “mundo moderno”, que funcionam apenas pela continui-
dade, dualidade, cronologia e linearidade das relações artificiais criadas pela
historicidade-temporalidade do Estado-Mercado. As retomadas indígenas
dos povos originários do Nordeste demonstram politicamente a diferença
relacional dos mundos em sentirem e perceberem as experiências coleti-
vas de espaços-tempo, demonstrando também, que os espaços-tempo não
existem como plano universal, mas, sim, como plano e campo cosmológico
de ações e perspectivas, pluralidades, percepções e afinidades.
O movimento de retomada dos povos indígenas do Nordeste é um
movimento para além do conceito de espaço-tempo, nossos povos entendem
que as conexões acontecem pelas afinidades e pelos campos e não estão
subordinadas ao espaço-tempo. Assim, espaço-tempo é uma perspectiva e
cada povo cria o seu a partir de suas experiências coletivas com o campo
do território onde estão. As perspectivas diferenciais escalares de sentir as
relações com os campos e a força da Terra nos permitem cunhar conceitos
a partir das experiências coletivas de cada povo, dessa forma, sentimos
e percebemos como estamos conectados. Essa conexão não está limitada
pelo espaço físico e pelo tempo cronológico, nossos povos sabem que as
experiências espaço-temporais são apenas algumas das experiências que
podem ser vivenciadas com a Terra, mas que não são as únicas.
A partir dessas perspectivas de sentir e perceber as relações dos
campos com a Terra e com os outros povos, nossos povos originários do
Nordeste se utilizaram dessa ciência ancestral e criaram os conceitos de
tronco velho e ponta de rama. Esses conceitos são fundamentais para se
entender a retomada dos povos indígenas originários. No Nordeste, o mo-
vimento de ascensão das retomadas indígenas de nossas ancestralidades
tem no conceito dos troncos velhos a ativação e a conexão de entrada para

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 150


ascensão e aparecimento. Os troncos velhos são os pontos vivos emaranha-
dos dos nossos povos que estão conectados mais fortemente com os antigos
e com a frequência ancestral. São os troncos velhos que nos ensinam essa
conexão através do sentimento da oralidade, pelas relações que compõem
suas vidas. Os troncos velhos nos ensinam fazendo, mandam obedecendo.
O conceito de tronco velho é um conceito vivo, não é um conceito
cunhado e vivido apenas na razão metafísica, é um conceito possível. Os
troncos velhos são acessos vivos, eles nos levam até os portais, abrem os
portões dos mundos indígenas. Em suas relações cotidianas com o visível
e o invisível, os troncos velhos nos ensinam frequências novas de se rela-
cionar com a Terra, traçam campos e horizontes de eventos, ampliando e
cultivando o campo para a ascensão da retomada.
São acessos às memórias ancestrais, à espiritualidade e ao sentimento
de lugar de escolha de cada povo, trazendo a experiência singular de cada
um deles. As memórias ancestrais que falam pelos troncos velhos não tra-
zem “lembranças de um passado”, trazem acontecimentos que ainda estão
acontecendo e que possuem sabedorias e perspectivas ainda não percebidas.
Os troncos velhos deslocam a experiência coletiva de singularidade dos
povos e dos antigos para o aqui-agora, a relação de experiência da força
encantada do sentimento, que não é medida, controlada e nem explicada.
As narrativas dos troncos velhos ganham outras perspectivas de
sentimento, pensamento e percepção no desdobramento da sociabilidade
do cotidiano de cada povo. Quando eles falam, não falam apenas palavras,
signos e significantes, eles falam energia, força de ascensão indígena.
Essa linguagem de força energética é a ascensão das retomadas em todos
os sentidos. Os troncos velhos compartilham o sentimento coletivo que
a razão não alcança, pois é uma experiência que não pode ser descrita,
explicada, apenas vivida. Eles não nos ensinam só no plano físico, nossos
troncos velhos no campo físico nos ensinam a sentir a presença e o amor
dos antigos, a partir dessa conexão os troncos velhos que vivem nos planos
extrafísicos também vêm nos ensinar e ajudar na ascensão das retomadas.
A retomada nunca é individual, é sempre coletiva, nunca é apenas material,
sempre é plural.
Os troncos velhos do campo físico são fontes vivas de água, nascen-
tes de sabedoria e conexão com os outros mundos, a ciência dos nossos

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 151


povos é uma ciência de conexão, coletiva, que não cria fronteiras. Nossos
troncos velhos nos ensinam a vencer a morte, a morte como pensa o
“mundo moderno” não é sentida para nossos povos, não existe fronteira
que nos separe, nem a morte. Estamos todos conectados no emaranhado
campo de vida da Terra. O passado, o presente e o futuro, não seguem em
linearidade para nossos povos e nossos troncos velhos nos ensinam isso
a partir da confluência com a Terra.
Os movimentos circulares diferenciais dos campos de vida da Terra
apresentam outras perspectivas de “passado”, presente e “futuro”, apenas
como perspectivas de relação e não como referencial único e fixo. Desta
forma, os acontecimentos não se engendram pela linha do tempo, os
acontecimentos se emaranham e ganham força de experiência coletiva nos
sentimentos e forças que são sentidos em afinidades. Os troncos velhos,
nossos campos de força encantada com a Terra, nos ensinam a viver e a
sentir continuando o ritmo de cada povo.
Os troncos velhos trazem, em suas palavras, rostos, gestos e jeitos, o
acesso aos portões dos mundos, o encontro de experiências coletivas entre
os de antes e os de hoje, e esse encontro de forças caminha no presente
retomando os mundos e conceitos indígenas de cada povo do Nordeste. Não
é um resgate, é uma retomada. Estamos criando, a partir do movimento
circular diferencial do encontro com os ancestrais, o novo, a vida, outros
mundos possíveis onde poderemos continuar a sentir a Terra e a viver em
cumplicidade com ela e com todos que aqui habitam. Essa é a importância
dos troncos velhos, eles são composição de força ancestral de ascensão
das retomadas, conceitos indígenas originários vivos.
A percepção desse conceito de retomada se faz por associação com
o campo de agir e viver dos mundos vegetais. A relação conceitual com a
mata, a Terra e o verde, conecta os povos à vida. Como todos os povos estão
emaranhados, uns sentem os campos dos outros, aprendem e ensinam,
trocam e compartilham. É nessa partilha e conexão com os troncos velhos
que surgem as pontas de rama. Os troncos velhos têm vivência e sabedoria,
são antigos e têm seus mistérios, deles nascem outros ramos, outras pontas
que irão se emaranhar a outras, ganhando força e ascendendo. Eles são
ogivas de vida, pois com a ajuda e a partir deles já nasceram e vão nascer
outros troncos. A força vegetal da criação, vida e resistência é a sabedoria

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 152


que os povos vegetais nos ensinam e, assim, ouvindo e aprendendo no
silêncio das sombras verdes, começamos a retomar.
Os troncos velhos cultivam e ramificam. A ramificação não segue uma
origem, segue a força de emaranhamento e encanto da Terra, conectando
todos os povos. Ramificação é ampliação do campo da Terra que vai fazendo
brotar mais e mais povos em ascensão de retomada. As pontas de rama
vão se ampliando como ondas e ganhando mais força em suas frequências,
ampliando também seu alcance e gerando um campo gigantesco de força
de retomada, fazendo “aparecer” outros povos indígenas originários.
O campo das ramificações não se distancia dos troncos velhos, pois
estão conectados pelo sentimento e não pelo espaço-tempo. As ramifica-
ções ganham vida, criam seus campos de campos e se conectam com seus
troncos velhos que criam conexões com os campos de campos da Terra.
Esse movimento faz com que não se identifique uma “origem”, mas plu-
ralidades horizontais originárias. Logo, a partir da perspectiva circular
diferencial de força, quanto mais o campo de campos ganha alcance, mais
a força encantada indígena de ascensão das retomadas aumenta.
O conceito de ponta de rama é um conceito conectivo, que apresenta
a diferença entre o tronco velho e os mais novos, mas também afirma a
conexão para além da distância. Entre os troncos velhos e os novos ramos
existe uma diferença, mas também uma conexão de muito amor, e é a
partir dessa conexão que se transmite o sentimento do lugar de escolha
de cada povo. A ponta de rama é a frequência de conexão entre o antigo
e o novo, entre o lugar de escolha e a ancestralidade. Se os troncos velhos
são as entradas dos portões dos mundos de cada povo, as pontas de rama
são as chamas que ascendem as retomadas.
Os conceitos de pontas de rama e troncos velhos são conceitos
de retomada que causam colapso no conceito de mestiçagem criado
pelo Estado-Mercado. Por serem conceitos encarnados no cotidiano, no
sentir e no perceber, e por agirem e funcionarem em outras relações de
espaços-tempo, não estão subordinados à historicidade-temporalidade
da “história oficial”.
A perspectiva de relação que os conceitos de troncos velhos e pontas
de rama trazem são bem diferentes da perspectiva de pensamento dua-
lista do “mundo moderno”. A conexão entre troncos velhos e pontas de

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 153


rama amplia-se nos campos de conexão com outros povos em ascensão
de retomada e ganha a força ancestral de parente. Pensado a partir das
perspectivas indígenas dos povos em retomada do Nordeste, o conceito de
parente amplia os campos para todos os povos, conectando uns aos outros.
Todos aqueles povos que estão conectados ao campo da Terra de luta con-
tra a escravização da Terra pelo “mundo moderno”, são nossos parentes.
Parente é um conceito que pode funcionar em plurais direções: é
tanto o ente consanguíneo, como o aliado de guerra, como os povos do
mesmo clã, família e tronco linguístico, parentes são povos de outros pla-
nos extrafísicos, parentes são aqueles que estão buscando sua retomada
e ascensão. Assim, parente é um conceito de retomada que possibilita a
abertura e ampliação dos campos de aparecimento e brotamento de mais
e mais povos indígenas originários no Nordeste. A partir desses conceitos
de guerra e vida, os povos indígenas originários no Nordeste estão em
intensa ascensão de retomada.
“A gente é tudo parente”. Essa afirmação é a força que amplia e conecta
todos os nossos povos na luta contra o extermínio dos nossos mundos e do
planeta pelo “mundo moderno”. Afirmar que todos os povos são paren-
tes, é afirmar nossa conexão com a Terra, uns com os outros e, ao mesmo
tempo, afirmar a pluralidade de cada povo. A afirmação de sermos todos
parentes ultrapassa o plano físico, abrindo portais de sentimento e cone-
xão com os mundos extrafísicos que estão conosco em nossas retomadas.
Essa afirmação também é uma chave de acesso e acolhimento espiritual.
Aqueles que tombaram na luta antes de nós, continuam conosco em co-
munhão na retomada.
A energia e força ancestral de encantamento com que a Terra nos
alimenta criam círculos de terra fértil, assim somos cultivados. A des-
continuidade da produção, a não acumulação, a vida sendo sentida em
movimentos circulares, o cotidiano sendo sentido e percebido como possi-
bilidade, tudo isso é campo diferencial de pluralidade dos povos indígenas
da Terra. A força encantada da Terra é a conexão entre os plurais povos,
é isso que nos faz sentir que somos todos parentes.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 154


O oitavo passageiro40

Na perspectiva de ação em meio à guerra de extermínio cosmoló-


gico implantada pelo “mundo moderno” desde 1500, percebemos que,
para o Estado-Mercado, tudo que vem dos povos indígenas é considerado
como falso e inferior. A criação de leis legitimando as invasões das terras
fez parte do instrumento de diferenciação criado para dizer quem é ou
não indígena. A narrativa de criação do “cidadão brasileiro”, “fruto” da
miscigenação dos povos indígenas que foram “misturados” ao branco e ao
negro, foi crucial para a criação do conceito metafísico de Estado-Mercado
Brasil e para sua implantação no imaginário do “cidadão comum”. Esse
movimento cria zonas fantasmas de indiscernibilidade constante, para
deslegitimar nossos povos.
O Estado-Mercado cria uma zona alien41, em que ele classifica tudo que
é contrário ao seu modo de produção. Essa zona é campo de concentração
e extermínio conceitual dos mundos que não interagem com o “mundo
moderno”, e nossos povos indígenas são os primeiros a serem colocados
lá, pois sem os povos indígenas, o Estado-Mercado pode explorar de for-
ma total a Terra. O que não é código-fonte brasileiro, é o “anti-brasil”, o
inimigo que deve ser eliminado.
Entre o “passado” e o “futuro” na historicidade-temporalidade cro-
nológica artificial do Estado-Mercado, separada de cada acontecimento,
é criada conceitualmente uma “zona de fora”, o que chamo de zona alien.
Uma zona conceitual que atua e encarna no cotidiano, funcionando como
uma extensão da estrutura psíquica inconsciente artificial criada pelo
Estado-Mercado, cristalizando a historicidade-temporalidade artificial
cronológica do “mundo moderno” como a única experiência de relação
com o espaço-tempo.
Na zona artificial criada pelo Estado-Mercado, os acontecimentos não
estão no passado ou no futuro, são apenas momentos, instantes esvaziados

40
Referência ao filme “ALIEN – O OITAVO PASSAGEIRO” de Ridley Scoot ;
41
Conceito que se refere a um “lócus” fora do “mundo moderno” e do desejo de consumo, segundo o
qual, quem é lançado, conceitualmente, torna-se um alien, um anormal, e seu extermínio e conversão
são fases do progresso. É a zona negativa na qual se cria a dualidade negativa do conceito “oficial”
de cidadão do Estado-Mercado.

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 155


de qualquer importância conceitual, ancestral e filosófica. É nessa zona de
acontecimentos que o Estado-Mercado mata conceitualmente os outros
mundos. Dessa forma, os acontecimentos “históricos” no Estado-Mercado
são vistos e sentidos apenas como lembranças, passado, uma “data histórica”
que aconteceu num “tempo histórico”, são acontecimentos enclausurados
em forma de arquivos esvaziados de toda sua força viva de indignação e
resistência no aqui-agora. O cidadão do Estado-Mercado é um ser esvaziado
de memória e entupido de datas vazias.
A historicidade-temporalidade do Estado-Mercado é um instrumen-
to tecnológico de destruição da resistência e enclausuramento da força
dos acontecimentos, tratando os acontecimentos como algo distante,
abandonado no passado, sem força nenhuma no aqui-agora, dando a falsa
impressão de que o “tempo passa” aumentando essa distância e que, ine-
vitavelmente, temos que seguir os “trilhos do progresso”. Dessa maneira,
o Estado-Mercado limita a existência e resistência dos nossos povos indí-
genas do Nordeste a uma data arquivada na historicidade-temporalidade
do “mundo moderno”.
Na zona alien, portanto, não é inserido apenas o conceito de indígena
como um conceito de transição para o “progresso” do “mundo moderno”, é
nessa zona que é construída a ideia de que os povos originários “pararam”
no espaço-tempo e de que nós somos obsoletos em relação ao Estado-
Mercado do “mundo moderno”. Nessa zona, também é formada a ideia
de que a oralidade, potência de acesso às experiências coletivas indígenas
criadoras de outros espaços-tempo, tem menor importância. Assim, a zona
alien discrimina tudo que é “de fora” do Estado-Mercado e do desejo de
consumo do “mundo moderno”, todas as outras narrativas dos mundos
indígenas são consideradas pseudociências, mitos, lendas e folclore.
Os mecanismos de defesa conceitual e física do Estado-Mercado
agem contra os modos de vida dos povos indígenas. No Nordeste, com
a ascensão das retomadas, não querendo admitir o genocídio, o roubo e
a sua falsa naturalidade, o Estado-Mercado investe pesadamente contra
nossos povos para tentar nos desarticular, deslegitimar e conceitualmente
demonstrar que estamos errados, nos acusando de “falsos índios”. Ou seja,
para o Estado-Mercado, as retomadas indígenas dos povos originários no
Nordeste são “invenções”, no sentido de falso, os indígenas que se dizem

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 156


indígenas, não são “puros”, já são “misturados”, e com esse argumento
de “pureza”, o conceito de mestiçagem institui que “somos todos brasi-
leiros”, o Estado-Mercado tenta desarticular o pensamento anticolonial
dos povos em retomada.
O Estado-Mercado “reconhece” os povos indígenas que estão sob
a sua tutela, os povos que estão fichados na FUNAI, mas aqueles que não
estão, aqueles povos que buscam uma forma de retomada e organização
diferente da que o Estado-Mercado aceita, os “misturados”, não são mais
“considerados” indígenas, portanto, estão sob a tutela das leis comuns a
todo “brasileiro”, sujeitos à punição.
Assim, justificando sua violência literal, o Estado-Mercado nunca
perde sua soberania conceitual. Os povos indígenas que estão “fichados” na
FUNAI são desrespeitados e atacados pelo Estado-Mercado que quer suas
terras. Os povos indígenas que estão buscando uma retomada diferente de
qualquer ligação com a FUNAI, também são atacados pelo Estado-Mercado,
acusados de ‘falsos índios”. O Estado-Mercado e o “mundo moderno” nunca
vão admitir nossos povos indígenas como cosmo nações diferentes, pois
admitir isto seria admitir sua não soberania dentro de “seu próprio terri-
tório”. Não existe conciliação e diálogo amigável com o Estado-Mercado, se
não buscarmos enfrentá-lo a partir de nossas perspectivas de pensamentos
e mundos, estaremos sempre sujeitos a ele.
Por isso, o “mundo moderno” nos vê como inimigos, os insurgentes,
os aliens do Mercado-nação, “os de fora” do “mundo moderno”. Somos
Aliens do Brasil, se vistos pelo ângulo do “mundo moderno”. Porém, somos
filhos da Terra (Indi, “de dentro”), logo, indígenas da Terra, de dentro da
Terra, enquanto conceito de emaranhamento de campo. Somos como “O
oitavo passageiro”. O alien-indi que rasga o Estado-Mercado por dentro,
estando fora.

CAPÍTULO 11 - NO SILÊNCIO DAS SOMBRAS VERDES | 157


CAPÍTULO 12

Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆

Solstício...

As inquietações que moveram a composição dessa escrita vieram


de questionamentos a partir das perspectivas cosmológicas indígenas de
pensar e sentir a Terra: como uma nave planetária, navegando no cosmos,
composta por diferentes cosmovisões; como singularidade plural que
caminha, flutua, segue o fluxo da energia do cosmos; como planeta que
se relaciona no físico e no extrafísico, com todos os mundos e povos que
compõem essas relações e emaranhados de campos que se transpassam.
A Terra e seus filhos, os povos indígenas, travam uma guerra cosmológica
contra seu extermínio, guerra esta que vem sendo atualizada há 521 anos,
numa permanente defesa da vida contra o “mundo moderno”, fato que
evidencia as diferentes perspectivas cosmológicas envolvidas.
O Estado-Mercado, filiação e encarnação do “mundo moderno”,
impõe “perguntas científicas” para classificar quem é ou não indígena,
com o interesse de tomar terras. Assim, interrogações como: “quem é
“índio” do Brasil?” e “quem é índio de verdade?”, começaram a ser ven-
tiladas no cotidiano, nos documentos “oficiais”, nos conceitos científicos
e na educação em geral, criando uma “imagem” do que é “ser índio”. Essa
questão abordada a partir do pensamento dualista de medição e controle
que orienta as epistemologias dos “mundos modernos” ocidentais tem
carácter eliminatório, pois a resposta através dos argumentos e crité-
rios são pautados pela identidade, que identifica características que se

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 159


assemelham, busca uma média e classificação que se resume a um “é ou
não é”, ou, “ser ou não ser”.
Essa perspectiva dualista de pensamento e forma de se organizar,
observar e viver, fixa em características estereotipadas e culturais aque-
les que se assemelham, ou seja, a analogia é utilizada como elemento de
“conexão”, criando uma pseudo diversidade, um falso movimento de
pluralidade que gira em torno de uma essência que é o “molde padrão”
de identificação. A diferença é diferente da diversidade. Ela é pluralidade,
não se assemelha e nem busca analogias, é diferencial, não tem referência
de comparação, é singularidade.
A busca por analogias e identidades dos povos indígenas é o “molde
de controle” com que a ciência “moderna” quer classificar e julgar nossos
povos. A partir desse movimento conceitual dualista de “ser ou não ser”,
nasce o questionamento “quem é índio no Brasil?”, pois classificando os
indígenas por características de identidade, discriminam quem é “mais
indígena que o outro” e descartam todo o processo violento da invasão
dos mundos pelo “mundo moderno”, mudando o foco da questão para
uma pergunta sobre o que é “verdadeiro” ou “falso”.
Dessa forma, a criação conceitual do “mundo moderno” elimina o
caráter violento da guerra dos mundos na forma da colonização, colocando-
-o como processo “natural do progresso”, elimina também a pluralidade
conceitual dos povos indígenas que não se adequam aos critérios de “ser
índio”. Portanto, os povos originários indígenas não são “índios”. “Índio”
é um conceito genérico de analogia e bases dualistas identitárias criado
pelo “mundo moderno”, implantado e usado pelo Estado-Mercado como
tecnologia de extermínio da pluralidade dos povos indígenas originários.
Certamente esta questão não é apenas antropológica, cultural ou ju-
rídica, mas notadamente, uma questão de “mundos”, como já foi colocado.
O que também faz um mundo funcionar são os conceitos sobre o funcio-
namento dele. Os acontecimentos e os conceitos caminham emaranhados.
Portanto, uma guerra cosmológica não é travada apenas no campo físico,
mas no campo conceitual cotidiano de percepções de mundos. O próprio
conceito de conceito não tem apenas o significado de significação, o con-
ceito é articulado e emaranhado com o acontecimento cotidiano, físico e
extrafísico, consciente e inconsciente.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 160


O conceito de “índio”, criado pelo “mundo moderno”, apaga as plu-
ralidades dos povos indígenas originários, pois assim, é possível classificar
e dizer o que é e o que não é “ser índio”. O “ser indígena” é energia de
incerteza em relação à classificação e controle da denominação “índio”.
“Ser indígena” não é fração de analogia, é condição singular de campo e
ritmo de conexão de cada povo com a Terra. Logo, os conceitos de “índio e
indígena” diferenciam-se em frequências e campos de dimensão: um está
ligado ao pensamento genérico do “mundo moderno”, pelos códigos-fonte
criptografados pelo Estado-Mercado, e o outro às relações ancestrais com
a sabedoria dos sonhos mágicos da Terra. Pertencer a um lugar de esco-
lha é bem mais complexo que o conjunto de interações e características
culturais elencadas por orientações e categorias ocidentais, utilizadas ge-
nericamente para classificar e diferenciar os povos indígenas originários.
A quem interessa a identificação? A criação egoísta de uma imagem de si,
só interage com as “luzes do progresso” trazidas pelo “mundo moderno”.
O Estado-Mercado e o “mundo moderno” buscam criar códigos-
-fonte de controle para concluir a escravização das terras e a eliminação
dos povos indígenas. A ciência “moderna” e seus conceitos pautados nas
matrizes dualistas de pensamento ocidental criam classificações e carac-
terísticas para determinar quem é “índio”. Mas quem pode fazer isso? A
ciência “moderna” criada pelo Estado-Mercado que quer nos eliminar?
Essas questões são importantíssimas de serem debatidas. Os argu-
mentos e características de identidade construídas pela “ciência moderna”
a partir do conceito universal de cultura para enquadrar nossos povos,
geram um debate cosmológico conceitual, em que o Estado-Mercado
aciona como mecanismo de defesa a dualidade “verdade e mentira”, como
valoração “do certo e do errado” para deslegitimar o movimento de reto-
mada. Assim, o movimento anticolonial de retomadas indígenas amplia o
debate, deslocando a epistemologia do seu lugar de destaque e trazendo
outras perspectivas de mundos.
De fato, só os próprios povos indígenas em retomada podem se
autodeclarar. A força encantada do lugar de escolha do povo e os seus
antigos habitam neles. Não é um censor do Estado-Mercado, com conceitos
do “mundo moderno” e sua ciência “moderna”, que pode classificá-los.
Uma retomada nunca é individual, mesmo que seja “só” um indivíduo

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 161


daquele povo, esse indivíduo é coletivo e singular, e todos os outros que
vieram antes estão com ele, dando força de encanto, ensinamentos e di-
reções na retomada. Uma retomada é a ascensão da força encantada do
mundo indígena de um povo singular. Indígena é singularidade coletiva,
indígena é parente.
Portanto, a questão é muito mais complexa quando analisamos os
vários fluxos relacionais de vida emaranhados entre os mundos. A guerra
dos mundos entre “mundo moderno” e mundos originários indígenas é
intensa, complexa, não-local, não-linear, acontece e some em diferentes
campos de ação e o que abordo nesta obra é o campo conceitual que se
emaranha ao cotidiano. A problemática se apresenta nas agitações rela-
cionais, do início da guerra dos mundos até a implantação do modo de
produção de morte do “mundo moderno” capitalista em nossas terras, que
se arrasta até hoje, e na forma como esses fluxos fizeram e fazem nossos
povos mudarem para continuar a existir e a lutar na guerra dos mundos.
Criar possibilidades de percepção e ação contra-hegemônicas e an-
ticoloniais é o que nossos povos buscam tecer nessa guerra dos mundos,
criando conceitos a partir de percepções, afinidades, sensações e senti-
mentos diferenciais, referenciais conectados aos modos de vida originários
indígenas. Pensar, sentir e perceber como a vida para nós, indígenas, está
hoje em conflito com o “mundo moderno”, é entender como o Estado-
Mercado nos assedia, tentando nos identificar e controlar, nos violentando
em todas as frentes. Atravessar os aspectos percepcionais e relacionais
do que transpassa os conceitos de cidadão, filho da nação, e de indígena,
filho da Terra, é perspectivar a guerra de mundos, ampliando a questão e
apresentando como os conceitos do “mundo moderno” não podem servir
em nossos diferentes mundos indígenas.
Os conflitos decorrentes da guerra dos mundos tornam-se, por parte
do Estado-Mercado, política “oficial” e lei, tecnologia de destruição dos
mundos indígenas. Em movimento diferente, para os povos indígenas
originários tornam-se brotamento de vida, de mundos e luta em parceria
com a Terra.
Onde estará
Aquele passo tonto
E as armas para o confronto

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 162


Onde se ocultaram? (SIBA, 2002).
Devemos começar a pensar sobre os discursos que surgem a partir dos
conceitos do “mundo moderno” e como isso cria e cristaliza uma ideologia
de Estado-Mercado. Diferenciar e pensar como foi feito, como funciona
esse movimento e o que isso aponta, é importante para entender como
funciona a guerra dos mundos. Os conceitos de “índio” e “indígena” carre-
gam não apenas um significado específico, mas também todo um sentido
e peso operacional de como se formou o Estado-Mercado Brasil. Os nomes
“índio” e “indígena” simbolizam a identificação, criação e cristalização
de conceitos negativos em relação aos povos originários, o pensamento
dual ocidental como parâmetro de verdade. Essa “verdade” coloca o lado
“positivo”, o cidadão, fruto do progresso e filho do “mundo moderno”, em
oposição ao lado “negativo”, os povos indígenas, os que resistem contra a
“verdade” do progresso, os primitivos que resistem ao “mundo moderno”.
Porém, nos mundos indígenas existem outras perspectivas de sen-
timento do que é “ser indígena”, pois cada povo é singular e estamos em
constante movimento e mudança, assim como as matas, os rios, os animais,
o planeta. Essas diferentes perspectivas desconstroem o entendimento
ocidental e os conceitos do “mundo moderno”, ampliando-se para além
da capacidade dualista do pensamento “moderno” de pensar as relações.
A criação de leis legitimando as invasões das terras pelos europeus
faz parte do instrumento de diferenciação criado para dizer quem é ou
não indígena. A criação do “mito” do “cidadão brasileiro”, fruto do mito
da “miscigenação das raças”, dos invasores brancos com os povos que aqui
habitavam e os negros sequestrados e trazidos para serem escravizados, foi
crucial para a construção do imaginário do “cidadão” do Estado-Mercado
Brasil. A implantação desse conceito no imaginário comum do “cidadão”
cria o ilusório e artificial sentimento de pertencimento ao Estado-Mercado-
Nação, assim, se cria artificialmente o brasileiro e, ao mesmo tempo, um
sentimento artificial que gera uma zona fantasma de indiscernibilidade
constante, a zona alien. Os mundos que não se relacionam pelo desejo de
consumo são aliens do Estado-Mercado.
A retomada no Nordeste para nossos povos indígenas originários é
bem complexa, principalmente para aqueles povos que não foram missio-
nados e que querem manter uma relação diferente com o Estado-Mercado.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 163


Nossos povos querem autonomia e isso o Estado-Mercado não vai conceder
de maneira pacífica, na forma de “direitos” dentro do seu sistema capita-
lista. Os povos indígenas nunca terão autonomia se quiserem negociar com
o Estado-Mercado nos moldes das leis de Estado, pois o Estado-Mercado
sempre buscará tutelar os povos para garantir sua soberania de Mercado e
modo de produção de desejo de consumo. Para o Estado-Mercado, admitir
a autonomia dos povos indígenas é atestar sua “fraqueza” como Estado.
A zona alien foi/é crucial para a criação e cristalização do “cidadão de
bem” brasileiro, que é o polo “positivo” de interação e suposta subordina-
ção do Estado-Mercado. Os “de fora” são o polo negativo, os “marginais”,
“os negros da terra”, aqueles que passaram de invadidos a invasores. A
criação da zona alien, conceitualmente falando, é a inversão dos polos
conceituais do que é “ser indígena”. Nossos povos indígenas são os “de
dentro da Terra”, indígenas originários, e os brasileiros são os “de dentro
do Estado-Mercado”. Se nós, indígenas originários, para o Estado-Mercado,
somos aliens do “mundo moderno”, “de fora do Brasil”, para nossos povos
originários, o brasileiro é alienado da Terra, “de fora da Terra”, pois não
se relaciona com ela, e sim, com o desejo de consumo do Estado-Mercado.
O processo de catequização do “mundo moderno” a partir do desejo
de consumo é o movimento chamado civilizatório, no sentido “moderno”,
o movimento de tornar-se cidadão, humano e consumidor e com isso
encarnar e incorporar o modo de sociabilidade do “homem moderno”. A
criação e implantação da sociabilidade “moderna” passam por movimentos
dualistas de purificação/eliminação, que vêm junto com o sentimento de
nacionalismo e desejo de propriedade. Este instrumento de ação cosmo-
política está articulado diretamente à mudança de relação com a Terra.
É assim que o “mundo moderno” vai sendo implantando e se infiltrando
nos outros mundos, criando códigos-fonte, cristalizando e controlando
isso em conceitos de um padrão dualista e identitário, fazendo com que
aqueles que não se identificam, sintam-se “perdidos”, numa zona alien.
A historicidade-temporalidade artificial criada pelo Estado-Mercado
é colocada como única experiência espaço-temporal de relação. Uma
experiência que é sentida a partir de uma “linha do tempo” que prevê
uma “evolução”, uma contagem de dias e anos, uma temporalidade que
se resume a números e estatísticas, marcada por datas, onde o passado é

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 164


apenas uma lembrança opaca e superficial, mas sustenta o orgulho nacio-
nal, criado por uma narrativa oficial.
Assim, esse conceito criado junto com o movimento de implantação
do “mundo moderno” forma um bloco de conexão e sociabilidade entre o
Estado-Mercado e seus “súditos”. Uma sociabilidade que é autocentrada
no “eu” como potência individualizadora de relação, na meritocracia, na
propriedade privada, no desejo de consumo e no lucro. As relações no
“mundo moderno” tendem a ser artificiais e frágeis, elas não se relacio-
nam em relação, as percepções e sentimentos não são sentidas em caráter
relacional diferencial, mas, sim, em comparação. O “mundo moderno” é
o mundo genérico das comparações. O “mundo moderno” sente as rela-
ções como duais, imediatas, instantâneas, solúveis, automáticas, objetos
separados e sem vida. O que não lhe serve, é descartável.
A historicidade-temporalidade cria uma experiência de “tempo
artificial” em que as lembranças só existem “oficialmente” porque são
arquivadas, mas não têm relação nenhuma com o presente, e, sim, com
o controle e o arquivo do que “oficialmente” aconteceu. As comemora-
ções das “datas históricas” são esvaziadas de presente e preenchidas com
lembranças forjadas pelas narrativas românticas de formação do “mundo
moderno”, lembranças mortas e fixas, que enaltecem os invasores como
heróis, experiências coletivas que não se deslocam, ficam enclausuradas
no passado, separadas, sem força nem alcance no aqui-agora. São datas
vazias que só atuam no calendário como feriados.
A experiência do “tempo histórico” no Estado-Mercado é super-
ficial e passa de forma muito rápida. As pessoas não se indignam histo-
ricamente e em seu cotidiano não têm mais “tempo” de se questionar
sobre o que acontece. Tudo gira em torno do desejo de consumir, “tempo
é dinheiro”. A historicidade-temporalidade instantânea é a da notícia, a
informação não causa mais revolta e no momento seguinte já é passado.
O “tempo passa” e o presente nunca chega, o presente é uma experiência
que o Estado-Mercado não nos deixa viver. O deslocamento artificial do
espaço-tempo criado pelo “mundo moderno” nos faz viver num plano do
consumo, não vivemos o aqui-agora, o presente não existe. Essa é uma das
relações diferenciais entre o “mundo moderno” e os mundos indígenas:

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 165


no “mundo moderno” não se vive o presente, no “mundo moderno” só
se vive a produção.
O “mundo moderno”, em sua forma de controlar a experiência
coletiva no Estado-Mercado, cria mecanismos de doenças psicológicas,
físicas e espirituais para manter o controle. A experiência artificial com
o “tempo” no Estado-Mercado gera sintomas como ansiedade, medo, an-
gústias e incertezas. Isso vai esmagando e manipulando todas as outras
relações de sociabilidade, fazendo com que todos se submetam na busca
por sucesso, fama, dinheiro, propriedade e consumo em qualquer que
seja a forma de relação. É o programa cosmológico de autodestruição que
a sociabilidade do “mundo moderno” implanta. O “mundo moderno” e
suas relações de sociabilidade e organização geram desencantamento da
vida e desesperança.
A maquinaria dos conceitos do “mundo moderno” cria o “ambiente
artificial perfeito” para a implantação do cidadão moderno nos outros
mundos colonizados. O conceito de cidadão idealizado e implantado na
Europa não se replica como cópia idêntica aqui nas Américas, nem a for-
mação dos Estados-nação é idêntica, eles são variações de uma mesma
“essência” de sociabilidade, que está pautada pelo pensamento dualista e
pelo desejo de consumo.
O “mundo moderno” funciona a partir do “molde” de implantação
de uma historicidade-temporalidade artificial, que vai moldando a socia-
bilidade a partir do desejo de consumo até chegar à identidade código-
-fonte do Estado-Mercado: o cidadão-consumidor. A cópia identitária do
cidadão-consumidor nas Américas, por sua vez, será uma variação, pois
os contextos de vida e de ambiente são todos diferentes, criando o modelo
de cidadão-consumidor exclusivo de cada Estado-nação. Porém, essa cópia
terá o mesmo código-fonte de interação com o Estado-Mercado e o “mundo
moderno”. Em sua “essência”, são todas “iguais”, uma igualdade que gera
variação, mas elimina a pluralidade.
As variações do conceito de cidadão-consumidor vão se atualizan-
do a partir das atualizações do capitalismo e das relações de consumo, a
normatização do código-fonte que é replicado na formação do cidadão-
-consumidor vai ganhando campo e avançando contra os mundos indíge-
nas. O encontro do código-fonte colonizador do “mundo moderno” e da

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 166


diferença singular de pluralidades dos mundos indígenas em retomada
do Nordeste resulta em tensão e conflito. Os TAPUYA, aqueles que não
se rendem, funcionam e se manifestam como conceitos vivos contra a
normatização da identidade de Estado-Mercado. Os TAPUYA são aqueles
que não se sentem pertencentes a um Estado-Mercado, mas, sim, a povos
indígenas originários da Terra.
Um movimento
Um traquejo forte
Traçado, risco e recorte
Se descortinaram. (SIBA, 2002).

A relação diferencial cosmológica de pensamento, sentimento e


percepção da Terra é o fator gerador da problemática filosófico-cosmo-
lógica que permeia esse debate entre Estado-Mercado e povos indígenas
originários. A perspectiva de retomada dos povos indígenas originários
no Nordeste apresenta-se provocando colapso do conceito de formação
cronológica do cidadão-consumidor. Nossos povos fazem funcionar, a
partir de suas experiências coletivas, forças de relação espaço-temporal
com a Terra. Essas diferenciações de relação com o espaço-tempo entram
em conflito com a historicidade-temporalidade do Estado-Mercado e com
os conceitos de formação do “mundo moderno”.
O desejo de consumo é o conector que gira a intenção da conquista,
e esta se torna a única forma possível de relação consigo mesmo no “mun-
do moderno”, tornando-se uma relação de destruição da vida e da Terra.
A conquista, como fonte de intenção do desejo de consumo, escraviza a
vida e a Terra, mantendo uma sociabilidade vazia de sentimentos e an-
cestralidades, cultivando um pragmatismo de lucro e de uso instantâneo.
O cidadão-consumidor vê a Terra apenas como recurso natural lucrativo,
um parque de diversão para os seus desejos, que gira em torno de seu
umbigo e ego, pautando suas relações sociais, emocionais, espirituais e
com o planeta apenas por produção, lucro e consumo.
Nossos povos indígenas originários têm outra relação com a vida
e com a Terra. Não nos relacionamos com nenhuma temporalidade va-
zia e historicidade fixa demarcada em datas e arquivos, nós sentimos e
percebemos as diferentes relações com o campo da Terra, criando nossas
próprias experiências coletivas de espaço-tempo, formando, assim, as

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 167


singularidades coletivas de cada povo. Essa composição e transpassagem
de forças encantadas faz sentir, perceber e desejar outras perspectivas de
relação com a Terra.
Nossos povos sentem a Terra e fazem brotar vida segundo o afeto e a
afinidade. É dessa forma que cada povo vai criando sua relação e experiência
coletiva espaço-temporal, fazendo nascer as diferentes singularidades de
povos. As origens dos nossos povos são singulares, todos são diferentes,
por isso cada povo tem uma frequência, um campo, uma ancestralidade,
uma gravidade. Cada povo faz nascer um mundo, brotando pluralidade,
diferente do Estado-Mercado, que produz réplicas identitárias de massa.
As relações de experiências coletivas com a Terra criam os espaços-
-tempo de cada povo, que são sentidos em relação à Terra. Nosso referen-
cial diferencial de pluralidade é a Terra. Os povos indígenas originários
são povos relacionais, vivem modos de vida que não buscam fronteiras e
limites de “contato”. A guerra dos mundos nos impõe inúmeras condições
de resistência e existência. A luta por nossas terras e a demarcação delas é
uma dessas questões, mas a demarcação conceitual do que somos é também
uma guerra que pretendemos travar. A demarcação das terras indígenas
não é apenas demarcação de um território físico, mas a “demarcação” de
um ritmo de vida. A retomada do ritmo de vida de cada povo, é um movi-
mento importante na guerra dos mundos em busca da libertação das terras.
Não somos donos da Terra, não há relação de posse e controle, nós
sentimos seu ritmo e criamos o nosso a partir disso. Por isso vivemos em
equilíbrio. A Terra é lugar onde os encantados vivem, ensinando outras
frequências de vida, trazendo as experiências da encantaria. Nossa ancestra-
lidade e espiritualidade vivem aqui-agora, nessas experiências coletivas de
aprendizado de outros ritmos de vida. A transpassagem entre frequências
e mundos que funcionam em espaços-tempo diferentes compõe a plura-
lidade de céus dos povos indígenas originários. As trocas de perspectivas
e o aprendizado nessa relação são a força encantada dos nossos povos.
As conexões de frequências-mundos se emaranham no planeta,
criando nosso lugar de morada, a Terra. É isso que amplia nossa sensação,
fazendo sentir que a diferença nos faz mais fortes e que não somos os úni-
cos povos que vivem e merecem viver no planeta. O modo de relação com
a Terra é o que cria um ritmo em que os mundos e vidas acontecem. Por

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 168


tudo isso, a guerra cosmológica dos mundos travada entre povos indíge-
nas originários e “mundo moderno” é uma guerra de alcance planetário,
entre quem vive em harmonia com a pluralidade e a diferença, e quem
quer consumir a Terra para obter lucro.
Para os brasileiros, todo mecanismo que medeia a vida é o Estado-
Mercado e as leis. Para nós, indígenas, o critério é a relação direta com
a Terra. Falo em relação direta, pois não existe nenhum mediador entre
nossos mundos originários e os outros mundos que convivem conosco nos
nossos lugares de escolha. É por isso que conseguimos nos relacionar e ver
outros mundos, e é essa relação direta com o encantamento e a força da
Terra que compõe nosso pertencimento a um povo e a um lugar ancestral
de escolha.
A pergunta “feita” pelo Estado-Mercado: “quem é indígena?”, é
uma pergunta que traz todo seu caráter racista, apontando a diferença
como “anômala”. Essa pergunta é a imposição de uma questão, criada
para discriminar. A substância material/conceitual criada pelo Estado-
Mercado para determinar quem é indígena ou não, é composta por uma
gama de características elencadas pelo próprio “mundo moderno”, e isso
está refletido em suas leis e “direitos” vinculados aos povos originários. O
movimento instituído pelo Estado-Mercado coloca parente contra paren-
te, numa disputa para corresponder ao ideal de “índio puro” criado pelos
parâmetros do “mundo moderno”.
Os povos indígenas originários do Nordeste que brotam em retomada
são obstáculos para o Estado-Mercado, por isso suas tecnologias sempre
estão buscando um rótulo para criar a dualidade que nos discrimina com
base na ideia de “verdadeiro versus falso”. Antes, a classificação para
discriminar era TAPUYA-TUPI, hoje é INDÍGENA OFICIAL - INDÍGENA
NÃO-OFICIAL (INDÍGENA EM RETOMADA). O Estado-Mercado se utiliza
da percepção dualista de discriminação e valor para se contrapor ao ar-
gumento da autodeclaração e negativá-lo, “legitima” alguns indígenas
que estão “fichados” na FUNAI e incrimina os indígenas autodeclarados,
oficializando e incentivando uma distinção criada por ele próprio, pois se
fortalece colocando indígena contra indígena.
A criminalização e a negativação do conceito de autodeclaração in-
dígena pelo Estado-Mercado, só favorece a ele mesmo, pois nesse debate

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 169


entra a dualidade do pensamento “moderno” e isso vai criando e crista-
lizando identidades em relação aos povos indígenas, a oposição binária
verdadeiros-falsos. Assim, alguns povos que ainda mantêm vivas suas
“identidades”, serão considerados “os verdadeiros indígenas”, que se en-
caixam nas características ditadas ou aceitas pelo Estado-Mercado, como
numa lista de ingredientes para se formar o “indígena oficial”. Enquanto
isso, outros povos são discriminados e chamados de “falsos índios”.
Esse processo tem a seu favor o argumento mais forte, que é a “inclu-
são” e “luta por direitos42” dentro do Estado-Mercado capitalista. Ou seja, é
necessário identificar os indígenas “oficiais” para não existirem “fraudes”
em relação aos direitos “cedidos” a esses povos dentro do Estado-Mercado.
O problema é que aqueles que defendem a criminalização e negativação
da autodeclaração indígena não entendem que alguns povos indígenas
não querem “ter direitos” dentro do Estado-Mercado, que nossa luta não
é para fazer parte desse jogo, e, sim, para acabar toda estrutura conceitual
do “mundo moderno”.
A cristalização dessa substância conceitual identificadora cria uma
“identidade fixa” que controla a partir do espelho, da identificação, ou
seja, aquilo que não se identifica com os símbolos e signos identificadores
conceituais e “reais” impostos pelo “mundo moderno”, torna-se não-iden-
tificado e, portanto, perigoso. No contexto e organização de pensamento
e sociabilidade do “mundo moderno”, a identidade é o único conceito e
forma de pensar as subjetividades. Assim, uma identidade indígena dentro
dos moldes do “mundo moderno” ganha força e é sinônimo de “verdade”,
tornando “falso índio” aquele que não cumpre as determinações das ca-
racterísticas impostas pela ciência “moderna”. No entanto, esse molde de
identidade criado sobre nossos povos indígenas originários é um conceito
que não respeita nossas pluralidades. O conceito de identidade, quando
levado ao seu extremo identificador, apaga as singularidades coletivas e
impõe uma imagem de “essência fixa”, eventualmente variável.
A identidade indígena se torna uma média genérica do que é “ser
indígena” no imaginário da maioria dos brasileiros, porém com força de

42
Eu, como indígena Takarijú, morador de periferia e cotista, entendo a importância dessa luta para
nossos povos, mas não acredito que ela seja o fim em si mesma, nem trampolim para politicagem
e nem pauta universal para todos os povos. Existem povos pela América que não querem dialogar
com o Estado-Mercado nos termos de inclusão, mas, sim, em termos de guerra.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 170


variedade e diversidade cultural dentro de um parâmetro de identificação
que esconde a “essência” fixa. Como consequência disto, temos a falsa e
artificial impressão de que a ciência “moderna” e o Estado-Mercado aceitam
as diversas culturas. Isso, acontece, desde que a “essência fixa” de identi-
dade seja única, e, nesse caso, para o “mundo moderno”, a identidade de
“essência fixa” é o conceito de humano. Os povos indígenas têm diversas
culturas, mas todos no “mundo moderno” são humanos. O conceito de
única natureza humana, de essência identificadora, é o que amarra todos
epistemologicamente ao “mundo moderno”. Se por um lado o “mundo
moderno” tem no desejo de consumo sua ativação e vontade de potência,
por outro, tem no conceito de humano sua legitimação e amplitude para
invadir e avançar destruindo outros mundos.
Para o “mundo moderno”, o conceito natural de essência e classi-
ficação dos indivíduos é o humano, e o conceito de cultura é variação do
conceito de humano. Ao expandir suas invasões por outros mundos com
a colonização, foi impondo e implantando o conceito de natureza humana
como forma universal de se pensar os indivíduos. Assim suas leis e modos
de sociabilidade foram contaminando outros mundos. O Estado-Mercado-
nação é a ratificação do conceito de humano junto ao desejo de consumo
em forma de leis e sociabilidade.
Os mundos indígenas originários não funcionam unicamente pela
“natureza humana”. Nossos povos sentem e percebem a humanidade por
outras perspectivas conceituais de relação com a vida e com os campos
de ação da Terra. As “naturezas indígenas”, ou seja, as naturezas dos di-
ferentes povos, são criadas a partir da relação que cada povo tem com a
experiência coletiva no modo de viver com a Terra. Cada povo tem uma
natureza singular de ritmo relacional consigo mesmo e com a Terra, e a
rede que conecta todas elas, é o campo da Terra, o campo de sentimento
invisível para a “ciência e mundo moderno”, mas perceptível para nossos
mundos indígenas através de nossas afinidades de percepção.
Nossos povos até entendem e percebem o conceito de humano como
uma natureza, mas não como a única e nem como essência que conecta
todos. O que conecta todos os mundos indígenas originários e todos os
povos na rede emaranhada de afetos e percepções não é o fato de “todos
sermos humanos”, mas, sim, o fato de todos estarmos no planeta Terra.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 171


São diferentes mundos, mas um só planeta. Nesse sentido, o conceito como
parâmetro natural de identificação que o “mundo moderno” e Estado-
Mercado impõem como verdade é apenas uma perspectiva de controle,
não representa verdade “científica”, mas vontade de conquista e consumo.
Não existe uma natureza universal que nos identifique de forma
genérica como “humanos”. Não somos todos humanos, existem os “não-
-humanos” e outras perspectivas de vida que não usam o humano como
referência. A perspectiva de humano surgiu no “mundo moderno” como
uma atualização do civilizado em relação ao bárbaro e ao selvagem. O bár-
baro e o civilizado são polaridades de uma dualidade que se contrapõem
em âmbito regional; com a invasão dos mundos indígenas pelo “mundo
moderno”, o “civilizado” europeu se atualiza no encontro com o “selva-
gem indígena americano”, criando, assim, outra dualidade atualizada, o
cidadão e o selvagem, agora como uma dualidade global. Dessa forma, se
estabelece o humano como conceito universal, acoplado ao de cidadão e ao
Estado-Mercado. O Humano, o cidadão e o consumidor são códigos-fonte
da mesma essência de formação do “mundo moderno”.
Os povos encantados não têm uma “natureza humana” fixa, suas
naturezas são dinâmicas, não-locais, incertas e mutáveis, acontecem de
acordo com o campo em que estão interagindo, no entanto se relacionam
também com aqueles povos que são humanos. A problemática do conceito
de humano é a universalização dele. Alguns dos nossos povos sentem e
percebem sua natureza como humana, mas não como a única natureza
essencial. Existem outras relações para além da dualidade humano/não-
-humano: os seres encantados, as montanhas, as forças da mãe Terra, os
grandes espíritos, os seres cósmicos, todas essas perspectivas de vida são
consideradas e atravessam nossos povos como seres que compõem nossa
rede de afeto e vida. Portanto, o “mundo moderno” e sua ciência não al-
cançam e nem dão conta das perspectivas dos nossos mundos indígenas.
Essas diferenças relacionais de perspectivas de mundos ficam bem evidentes
na guerra dos mundos desde a invasão do “mundo moderno” à Abya Yala.
O movimento conceitual do “mundo moderno” articulado pelo
Mercado-nação molda o código-fonte das identidades. Essa perspectiva de
mundo cria modelos artificiais para classificar os mundos que ela coloniza,
e assim foi criada a ideia genérica de diversidade da identidade indígena.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 172


Por que é interessante para o Estado-Mercado criar essa identificação e suas
variedades? A partir de seu sistema próprio de identificação e classificação,
é mais fácil manter a guerra conceitual de forma burocrática e controlada.
O “mundo moderno” coloniza, muda os parâmetros dos diferentes
mundos indígenas, cria conceitos a partir de sua “ciência moderna” e diz
como nós, indígenas, devemos pensar nossa condição de indígena. Dessa
forma, faz com que os povos indígenas do Nordeste, principalmente os
que estão em retomada, busquem caracteres de identificação, busquem
uma identidade para serem “aceitos” pelo Estado-Mercado como “índios”.
Essa confusão criada pelo próprio pensamento do “mundo moderno” gera
a dualidade entre o verdadeiro e o falso, chegando ao absurdo de alguns
parentes se sentirem “mais indígenas” que outros.
A “legalidade” é instituída e criada pela maquinaria identitária dos
conceitos, das leis e burocracias do Mercado-nação, ela vai contaminando
o imaginário de alguns povos indígenas e não-indígenas, minando a re-
sistência. As características homogêneas e genéricas de universalização
do “ser indígena” atingem os povos e parentes em retomada que não
cumprirem os requisitos do “ser indígena” no “edital do Estado”; deixan-
do claro, portanto, que o Estado-Mercado cria este argumento conceitual
para não aceitar as retomadas e criminalizá-las. As retomadas indígenas,
principalmente no Nordeste, são lançadas na zona alien.
Aqueles indígenas considerados “não-oficiais” pelo Estado-Mercado,
os indígenas em retomada, desaldeados, autodeclarados e em contexto
urbano, são desassistidos em todas as vertentes referentes à luta contra
o “mundo moderno”. O não reconhecimento do Estado-Mercado gera
desconfiança e preconceito por parte de alguns, inclusive de parentes indí-
genas de outros povos, que temem que possamos “ameaçar” sua condição
e imagem “oficial de indígena” instituída pelo Estado-Mercado.
A questão acerca de quem é ou não indígena foi e é crucial para
manter o controle sobre as terras e sobre as investidas dos povos indígenas
contra o Estado-Mercado. Como na região Nordeste a guerra dos mundos
contra o “mundo moderno” está acontecendo mais intensamente desde o
primeiro momento da invasão, aqui nossos povos enfrentam composições
complexas do atravessamento dessa guerra. A questão de autodeclaração
e identidade é uma questão central, tanto para o Estado-Mercado, para

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 173


poder nos controlar, quanto para nossos povos em retomada, que buscam
retomar suas perspectivas de referências de cada povo e brotar, ampliando
e trazendo outras perspectivas para a guerra contra o Estado-Mercado e
o “mundo moderno”.
Essa questão parecia ratificada, pois era consenso para o Estado-
Mercado e sua ciência “moderna”, que no Nordeste não existiam mais povos
indígenas originários, porém, com as retomadas acontecendo a partir da
década de 70 do século passado, a história “oficial” de fundação do Estado-
Mercado Brasil foi ruindo. Hoje, com as retomadas no Nordeste, a questão
sobre quem é ou não indígena, que foi a primeira questão colocada pela
coroa aqui no Nordeste para roubar as terras indígenas, ressurge como
artimanha de guerra por parte do Estado-Mercado para deslegitimar as
retomadas, buscando controlar, identificar e discriminar os povos indí-
genas que estão brotando em retomada.
Portanto, nossos povos indígenas do Nordeste não surgiram dessa
questão, nós sempre estivemos aqui, e agora nos utilizamos desse de-
bate para retomar nossas perspectivas de mundos em âmbito nacional.
Estamos retomando nossos mundos, nossos povos, nossas singularidades
de pensar, sentir e perceber a vida. Passamos muito tempo “sumidos”,
aprendendo com os encantados, e agora retomamos, “aparecemos” como
força encantada da Terra.
O movimento estratégico do jogo de pensamento conceitual dualista e
discriminativo que o Mercado-nação faz colocando parente contra parente,
é um conhecido movimento da colonialidade. Os indígenas “não-oficiais”
sofrem preconceitos, são colocados numa condição de “falsos”, questiona-
dores da história “oficial”, aliens, inimigos, “de fora” do Estado-Mercado.
É nesse sentido que destacamos o discurso que permeia o imaginário do
brasileiro em relação aos indígenas, com falas como: “esse pessoal não é
mais índio, eles têm celular.”; “Tem pouco índio, para muita terra. Liberem
as terras deles”; “O agro é pop.”; ou “Você é índio de qual aldeia?”. O
Estado-Mercado reproduz esse tipo de fala e pensamento no imaginário
e cotidiano do cidadão de bem, o que embala seus sonhos de progresso.
Estar conectado e fazer parte de um povo indígena originário não
tem nenhuma ligação com conceitos universais, nem com características
impostas pelo “mundo moderno” e legitimadas pelo Estado-Mercado para

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 174


dizer o que é “ser índio”. Nossos povos não se identificam com a imagem
de “índio” que o Estado-Mercado criou, este é um conceito baseado na
filosofia da identidade que pressupõe um estado massivo das variedades,
aglutinado num único ponto, tornando genérica toda nossa pluralidade
de povos, reduzindo tudo ao “índio”.
Um indígena nunca existe de maneira individual, ele sempre é cole-
tivo, carrega a ancestralidade de um povo, diferente de “índio”, o conceito
de transição criado pelo Estado-Mercado para identificar e individualizar
os povos indígenas. A força do indígena está no povo e não em uma iden-
tidade individual. “Ser indígena” não é uma questão de cocar, de língua,
de jenipapo e urucum, “ser indígena” é um sentimento de contraposição
a tudo que representa o “mundo moderno”, que quer destruir a Terra.
Ser um povo é saber que somos experiências coletivas singulares para
além do “EU”.
Os “índios” não são os primeiros indígenas do Brasil, como afirma
Viveiros de Castro. Os “índios”, este conceito de transição, é a primeira
tentativa de destruir as singularidades dos povos. Não somos indígenas
do Brasil, somos indígenas da Terra, não temos pátria ou Estado-Mercado.
Nós temos mundos e nossos mundos não têm o código-fonte universal
do “mundo moderno”, nossos mundos são plurais. Nossa ligação com o
Estado-Mercado Brasil é de guerra cosmológica.
Uma palavra
Quase sem sentido
Um tapa no pé do ouvido
Todos escutaram. (SIBA, 2002).

O conceito de “índio” compõe por atualização uma suposta “iden-


tidade indígena”, orbitando em torno de conceitos como humano e cul-
tura. Esses conceitos têm matrizes no pensamento da analogia, que busca
características fundamentais para se reconhecer um no “outro” e para se
reconhecer entre si, entre variações do mesmo. O pensamento proposto
para acessar o sentimento e a percepção dos mundos indígenas é o de
emaranhamento e conexão com a Terra. Os horizontes de eventos são os
planos físicos e extrafísicos de possibilidades não-locais e de incertezas que
criam e se apresentam junto com os movimentos de resistência da vida.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 175


A atividade de conexão não é mental, é de afinidade de percepções.
Não penso os conceitos e as singularidades dos povos a partir do conceito de
analogia e nem do conceito de identidade forjado pelo “mundo moderno”.
Singularidade não tem a mesma função de essência, singularidade não se
reconhece, se afirma. Pode mudar sempre, porém, não deixa de ser o que
já foi, pois o nosso espaço-tempo não é evolutivo e, sim, circular. Tudo que
fomos e somos, existe aqui e agora como singularidade, por isso nossos
povos ainda hoje estão conectados aos antigos, a força encantada do nosso
lugar de escolha de cada povo é viva.
Cada povo tem sua singularidade coletiva de povo, mas ela não
é essencial para que ele seja identificado como povo. A singularidade é
diferencial-relacional, ela muda com as relações e com os movimentos
dos emaranhados de campos afetivos com a Terra. Nossos povos mudam,
mas continuam conectados com sua ancestralidade, pois as experiências
coletivas e afinidades de percepções permanecem. A frequência singular
de cada povo é a relação que ele tem com o planeta que os transpassa.
Na Historicidade-temporalidade artificial do Estado-Mercado, somos
classificados todos como “índios”, ou seja, transição do “mundo moderno”.
“Índio” é um conceito que dentro do Estado-Mercado é sinônimo de “atraso”.
Assim, “índio” se tornou um conceito de identidade que o Estado-Mercado
usa tanto para identificar o “estágio evolutivo” de um indivíduo até que
se torne cidadão-consumidor, como para identificar aqueles que devem
ser eliminados. O objetivo é a eliminação literal, conceitual e cosmológica.
Quando os pensadores “modernos” dizem que “ser indígena” é ter
“consciência histórica” do que se é, eles classificam os mundos indígenas
a partir da experiência histórico-temporal artificial criada pelo “mundo
moderno” e efetivada no Estado-Mercado, eles nos julgam a partir de seus
moldes. Portanto, todos os conceitos que o “mundo moderno” cria sobre
nossos povos, são conceitos de guerra, para classificar e discriminar nos-
sos mundos indígenas. Não existe uma definição do que é “ser indígena”.
Nossa história é experiência coletiva ancestral com a Terra e com os
povos. Como os ocidentais entendem e vivem esse conceito é bem diferente
de como cada povo entende e vive suas experiências. Nossa ancestralidade
é sentida e percebida de plurais formas, e os moldes conceituais genéri-
cos da ciência “moderna” não nos definem. Nossas ancestralidades não

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 176


são “históricas” apenas no sentido cronológico, mas se ampliam e criam
sentidos plurais que transpassam datas e territórios. Então, nesse ponto,
“ser indígena” não é apenas ter “consciência histórica” disso, nossas per-
cepções ultrapassam os conceitos de consciência e de “história”. Nossas
experiências coletivas “históricas” são sentidas a partir das mudanças
gravitacionais de relação com os outros povos e com a Terra, através da
ancestralidade, da oralidade da vivência com o chão, com o silêncio, com
a escuta, com a memória ancestral, com os sonhos, com os encantos e
encantados. São sentidas através da Afinidade percepcional.
O Ʌlieníndi - ∆ é a força encantada de ação que acontece com
a guerra cosmológica dos mundos e se infiltra nos emaranhados de
guerra entre “mundo moderno” e mundos indígenas, ampliando as
pluralidades de se mover, rasgando o código-fonte identificador do
Estado-Mercado. A força encantada que chamo de Ʌlieníndi - ∆ é a força
de energia que faz aparecer e brotar novos povos em retomada, Aliens
do “mundo moderno”, mas indis da Terra.
Aparecemos e desaparecemos quando é necessário. Somos forças
que saltam de campo em campo de frequência de vida para continuarmos
ativos e em conexão com a Terra. Os povos em retomada, principalmente
os do Nordeste, sentem, percebem e vivem essa dinâmica energética de
movimento relacional, mudam de plano de força e energia tornando-se
invisíveis aos radares do Estado-Mercado para continuar existindo, e
tornando-se visíveis na hora do conflito. Somos povos que aparecem
como força encantada de luta da Terra.
Os que desaparecem, aparecem em outras frequências de vida, pois
para nossos povos não existe morte, só existe continuidade da vida em
diferentes frequências e energias de viver. Somos povos dos sonhos, so-
mos povos que vivem. A existência dos nossos povos é singular e coleti-
va, emaranhada e afetiva. Ela é vivida em vários planos e horizontes de
eventos, sejam eles físicos ou extrafísico. Nossas aldeias, matas e antigos
continuam a viver mesmo fora do corpo físico. Nossos povos conhecem
outras realidades e frequências de ação da vida. Frequências diferentes,
lugares onde continuamos a ser um povo e a estar em coletividade com
todos os povos que são cúmplices da Terra.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 177


Entender esse conceito de vida para nossos povos é entender nossa
postura nos diferentes planos da vida. É esse sentimento que nos torna
povos indígenas originários da Terra. O conceito de Terra para nós é bem
mais amplo que o conceito de Terra para os ocidentais. Terra para nossos
povos é um campo afetivo, físico e extrafísico, de afinidades e ações com
todos os seres. Terra para os ocidentais é território geográfico, ambiente
físico gerido numa relação objetal de consumo, lucro, posse e propriedade.
A história da guerra cosmológica dos mundos é um assunto para
além do campo científico ocidental. Se não levarmos em consideração as
narrativas diferenciais dos nossos povos sobre suas relações de guerra entre
mundos, nunca iremos chegar perto de conceber um estudo cosmológico
conceitual que pense os povos originários além de dualidades conceituais.
Não existe “história dos vencidos” que funda nenhum de nossos
mundos e povos. A “história” de fundação dos nossos povos é a história do
planeta e da experiência coletiva que cada povo tem com o campo da Terra
em suas diferentes frequências de vida. Cada céu (Ecuwõbuye43) tem seu
ritmo, e isso não o limita. Ele convive, transpassa e é transpassado pelos
outros céus. A Terra não é nosso corpo, o corpo morre. A Terra é nosso
campo, o campo se amplia, se conecta, muda, vive. Só seremos “vencidos”
quando não houver mais Planeta. O nosso lugar de escolha é que nos afirma
como indígenas da Terra. O indígena não olha apenas para o chão, pois a
Terra não é só o local onde pisamos, Terra também é o que respiramos, o
que bebemos e o que nossos olhos físicos não veem.
Nossas experiências coletivas singulares de povo se constituíram sem
fronteiras e limites, sem tempo e data. As narrativas-caminhadas de cada
povo possuem força de sentimento e afinidade com a Terra, passada de
geração para geração pela oralidade e pelo sentimento de afeto pela vida
e um pelo outro, entendendo que estamos juntos, mas somos diferentes.
Eu, como indígena desaldeado e autodeclarado, sou de um povo que não
tem um “lugar específico” por consequêcia da guerra dos mundos, não
estou ligado a um território, mas a um lugar de escolha, um sentimento
que me foi passado pelos meus antigos, pela oralidade, pelos sonhos, pela
memória ancestral.

43
Céu Superior, em Dzubukuá Kipea, língua antiga kariri.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 178


Nesse lugar de escolha, meu povo vive comigo, mil gerações vivem
em mim, nunca esqueço que sou TAKARIJÚ, povo tapuya que nunca se
rende. Não me oriento pela historicidade-temporalidade de identidade
oficial do Estado-Mercado para acontecer, minha existência enquanto
povo não depende da oficialização do Estado-Mercado, não preciso do
carimbo da FUNAI para ser TAKARIJÙ. A singularidade do povo Takarijú,
vive em mim, transpassa e nomadiza meu corpo, ampliando-o em campo,
fazendo-o agir e emaranhar-se com campo gravitacional da Terra e dos
meus ancestrais. Assim, “eu” não é mais afirmação do ego e de uma indivi-
dualidade, “eu” é “nós”, nos afirmamos em retomada sempre no coletivo,
brotamos como força encantada de ação Ʌlieníndi - ∆. Agora e sempre,
mais de mil gerações vivem em mim.

Matéria bariônica ≠ ɅLIENÍNDI - ∆ (indígenas da Terra,


aliens da Pátria)

A guerra que o “mundo moderno” trava contra os mundos indígenas,


produz matérias bariônicas44, identidades supermassivas que estão aco-
pladas e interagem com o Estado-Mercado em todas as suas composições.
O código-fonte do Estado-Mercado, mensurado pelo desejo de consumo,
cria essas matérias bariônicas de Estado, que interagem com as luzes do
iluminismo, co-fundadoras do “mundo moderno” e da sua ciência. Essa
matéria tem código-fonte e função binária de discriminar quem “é” ou
“não é” brasileiro, com base na interação e subordinação, ou não, aos
códigos-fonte do Estado-Mercado. Isto pode ser constatado, por explo, nas
palavras da Senadora pelo estado do Tocantins e “cidadã de bem”, Kátia
Abreu, quando, em seu discurso oficial no plenário, diz:
[...] este é um movimento (de demarcação das terras indígenas) ma-
nipulado e organizado contra a produção brasileira. Nós já tivemos
um dia o MST, depois nós tivemos o código florestal e agora a questão
indígena. Nós só queremos perguntar aos brasileiros, nossos amigos,

44
Em termos gerais, materia bariônica na física é toda matéria e tudo aquilo que interage com a
luz, aquilo que não interage com a luz é desconhecido, e, portanto, chamado pela física de matéria
escura. A matéria bariônica visível ocupa cerca de 4% do universo que conhecemos. Aqui, desloco
este conceito para outro uso.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 179


brasileiros irmãos, quando os homens e as mulheres do campo terão
paz para trabalhar? Não queremos medalhas pelo PIB, não queremos
subir no pódio pelo PIB, nós só queremos paz. Senhor presidente,
nós temos interlocução privilegiada na mesma altura do que nós
representamos para a economia nacional, esse é o tratamento que
o palácio do planalto nos dá, esse é o tratamento digno que o Agro
merece, se tá com saudade do passado é só dormir e sonhar pra vê
se volta ao passado. O governo tem atendido o setor naquilo que ele
precisa pra continuar crescendo e produzir PIBs. [...].45.

O discurso da Senadora brasileira deixa bem explícita a guerra cos-


mológica entre mundos indígenas e “mundo moderno”, e a diferença
entre indígenas e brasileiros. O Estado-Mercado com seus códigos-fonte,
produz o brasileiro, colocando-o como inimigo dos povos indígenas. O
brasileiro é a frequência de imagem ideal, supermassiva, de alcance glo-
bal do cidadão consumista. O cidadão consumidor nacional “oficial”, é a
matéria bariônica do Brasil.
O cidadão consumidor tem como “referência universal” a carta de
declaração universal dos direitos humanos, que carrega o ideal burguês
de humano e de desejo de consumo. O cidadão consumidor e o humano,
encarnam o mesmo invólucro conceitual do Estado-Mercado “moderno”.
O conceito universal que conhecemos hoje de humano “moderno”, só foi
possível a partir da guerra de extermínio feita aos nossos mundos indígenas.
O humano “moderno” nasce do sangue e assassinato dos mundos indígenas.
A “humanidade” do humano “moderno”, tem como parâmetro
ético, estético e político as organizações e os modos de sociabilidade do
“mundo moderno”, operados pelo Estado-Mercado e pelo desejo de con-
sumo. O humano “moderno” é o molde universal do cidadão consumidor,
e vice-versa. O brasileiro é a matéria bariônica do Brasil e a continuidade
ideológica e conceitual da colonização e do pensamento colonial, natu-
ralizando nesse conceito, os racismos, machismos e verticalização da
sociedade “moderna”.
A guerra cosmológica dos mundos torna-se complexa, em seu en-
tendimento e conceitos, a partir do cotidiano e da estrutura artificial que
o Estado-Mercado impõe. Os conceitos de “índio”, indígena e brasileiro,
quanto cidadão consumidor, têm variações de sentido, principalmente se

45
Discurso da Senadora Kátia Abreu no plenário, transmitido pela TV Senado em 2013.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 180


forem submetidos às perspectivas de cada mundo. O conceito genérico de
“índio” é vago e concreto ao mesmo tempo. É vago, pois é um conceito
genérico, que tenta controlar os mundos plurais indígenas, e é concreto,
pois é a partir do conceito genérico de “índio” que o Estado-Mercado nos
“visualiza” como a transição que será eliminada. Logo, nossos povos não
são “índios”, mas, ao mesmo tempo, o Estado-Mercado nos coloca nessa
posição de “purificação”.
Os mundos indígenas estão nesse ponto de colapso e convergência
dos conceitos do “mundo moderno”. Se, por um lado, a zona alien criada
pelo Estado-Mercado limita e violenta nossos povos, por outro, nossos
povos se utilizam dela para causar rupturas nos conceitos de identidade,
fazendo brotar, assim, as retomadas. A incapacidade de sentir e perceber
as pluralidades dos mundos indígenas e seus emaranhados energéticos, é
a fraqueza do “mundo moderno”, e a capacidade de brotar e criar mundos,
é a força dos nossos povos.
O conceito de “índio” funciona como uma tensão artificial criada
na guerra dos mundos, e o de indígena, é a interface de luta de irmanação
contra o Estado-Mercado. A classificação depende da medição e de onde
está se medindo: se a medição for em MACROfluxo do Estado-Mercado,
somos todos “índios” ou indígenas, como partículas massivas, sem encar-
nar a massa única genérica. Se a medição for MICROfluxo, “subatômica”,
cada povo assume seu lugar de escolha, sua singularidade. Assim, somos
todos indígenas, num sentido amplo, e também somos força encantada
singular Takariju, Kariri, Tremembé, dentre outros, encarnando o ritmo
de cada povo. O Alienindi é a força de ascensão, que atravessa e transpassa
todas essas medições Macro e Micro, rasga espaços-tempo e faz brotar re-
tomadas. Um ritmo- frequência ancestral, invocado no aqui-agora. Então,
o conceito que “permanece” como energia, possibilidade e informação,
mesmo na mudança, não é o de etnogênese social, mas o de criação de
mundos em retomada.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 181


“Horror sem rosto”, “pensamento sem imagem”

O “clandestino” se faz presente nas transpassagens de naturezas


relacionais e gravitacionais entre os mundos emaranhados, nas simulta-
neidades das frequências da guerra dos mundos entre Estado-Mercado
e mundos indígenas. O peso gravitacional de sua “pequenez” deforma
a “história oficial” do “mundo moderno”, criando o aparecimento das
singularidades de cada povo. Os mundos indígenas, segundo o IBGE, são
menos de 1% da população do Estado-Mercado Brasil, porém sua força
de singularidade e gravidade de seus mundos pesam contra o “mundo
moderno” e sua soberania.
A força encantada Ʌlieníndi - ∆ é o “horror sem rosto”, ela é campo
que se amplia em campos e se emaranha a outros horizontes de eventos.
Por não ter corpo, nem rosto ela não tem identificação, não pode ser
codificada de maneira precisa, é o instante que a tradução não alcança. É
uma frequência-ritmo que muda de acordo com o movimento de guerra,
fazendo sempre brotar e retomar as forças indígenas dos mundos. A for-
ça encantada Ʌlieníndi - ∆ é “pensamento sem imagem”, pois não tem
referencial fixo, ela é horizontes de eventos de mundos, possibilidades
emaranhadas com campos de ação de vida. É força de perdição ao se olhar
para o horizonte, não existe uma referência até que se escolha uma. Cada
povo tem seu lugar de escolha no horizonte de eventos do campo da Terra,
criando seu próprio horizonte de eventos, seus campos e suas experiências
coletivas de espaço-tempo.
A energia está em constante mudança e movimento pois a retomada
pede. A simultaneidade de deslocamento é diferente da historicidade-tem-
poralidade do “mundo moderno”. “Agora” e “aqui e agora” são diferentes
formas de se relacionar com as simultaneidades. As experiências coletivas
de espaços-tempo dos mundos indígenas não estão contidas no conceito
de “agora”, este refere-se à simultaneidade do “ao mesmo tempo”, essa é
a historicidade-temporalidade artificial universal do “mundo moderno”.
O “agora” está subordinado à lógica dual que subordina os outros mundos
“ao mesmo tempo” de maneira universal.
O “aqui-agora” não está subordinado e nem subordina nenhum
mundo às suas experiências coletivas de vida. O campo de simultaneidades

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 182


do “aqui-agora” é sentido e percebido numa singularidade coletiva e não
serve a todos os povos, portanto, não existe um “ao mesmo tempo” que
engloba todas as experiências coletivas plurais dos mundos indígenas. O
“aqui-agora” tem caráter diferencial e não universal. O “aqui-agora” não
tem rosto, não tem forma, não tem “ao mesmo tempo”, ele é cada singu-
laridade coletiva diferente de relação com o movimento que acontece no
momento. Percebemos esse movimento, por exemplo, no EZLN46, que busca
se organizar e criar suas cosmologias a partir dessas relações diferenciais
que não podem ser controladas nem identificadas.
O oitavo passageiro, Ʌlieníndi - ∆, é a força de retomada ancestral
de energia encantada que vive dentro do Estado-Mercado, mas não faz
parte dele. A força que cria conexão com a força dos antigos, dos sonhos
e dos encantados, fazendo brotar vida e mundos indígenas de dentro do
Estado-Mercado “moderno”, rasgando o “mundo moderno” e sua história
“oficial”. Ʌlieníndi - ∆ é um termo “substitutivo”, pois, a cada momento
de retomada ele muda de campo e gravidade, eixo, interação, dimensão,
natureza, brotando em outro local. Por isso, é uma força encantada não-
-local, que some e aparece e não pode ser capturada, controlada ou extinta.
O Ʌlieníndi - ∆ é força espiritual, linguagem energética conceitual
de brotamento de mundos indígenas. Se o conceito ocidental de etno-
gênese é gênese social dos povos indígenas a partir do pensamento do
“mundo moderno”, o Ʌlieníndi - ∆ é força de encantamento e brotamento
cosmológico de mundos indígenas, é o aparecimento das singularida-
des de povos indígenas originários. Força que se articula com a Terra e
acontece, arrastando consigo acontecimentos, perspectivas, memórias,
durações, ancestralidades, oralidades, cosmologias e sonhos da Terra,
propondo variações e agitações “quânticas” das relações de vida com a
vida. O Ʌlieníndi - ∆ é uma “informação” indeterminável pelo “mundo
moderno”, mas perceptível. Está ali transpassando e sendo atravessada
pelos campos e horizontes de eventos de ação dos mundos possíveis. A
força Ʌlieníndi - ∆ não é perceptível pela “luz” do “mundo moderno”,
ela só é sentida pela força encantada de conexão com os sonhos da
Terra. É constante cosmológica de vida.

46
Exército Zapatista da Libertação Nacional.

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 183


Nossos mundos estão aparecendo em retomada, nossos povos es-
tão buscando e invocando as forças da natureza, dos ancestrais e de seus
encantados, rompendo com a historicidade-temporalidade do “mundo
moderno”. Os povos em retomada não buscam semelhanças com o “mundo
moderno”, trazem consigo, em retomada, seus mundos indígenas origi-
nários. Essa característica conceitual cosmológica do cotidiano de cada
povo se torna uma “constante cosmológica” nos movimentos de retomada,
por isso os movimentos de retomada nunca são individuais, sempre são
coletivos, sempre trazem e fazem aparecer consigo horizontes de eventos
e mundos indígenas.
Pensar os horizontes de eventos que mudam e criam retomando
mundos indígenas originários, fazendo aparecer as singularidades dos
povos no Nordeste, é pensar por outra natureza cosmológica de sentimento
com a Terra. A força Ʌlieníndi - ∆ acontece em afinidades e percepções
diferentes, em transpassagens entre naturezas e atravessamentos de ondas
rítmicas de cada povo. O brotamento de povos indígenas com a força en-
cantada dos ancestrais amplia o campo de ação da Terra contra a destruição
que o “mundo moderno” causa. Nossos povos estão conectados pela rede
emaranhada das Afinidades percepcionais com a Terra, a força que comanda
os povos indígenas é a da Terra. Os modos de “orientação” do sentimento
Ʌlieníndi - ∆ são plurais e criam as pluralidades dos mundos indígenas em
retomada na guerra cosmológica dos mundos contra o “mundo moderno”.

Ʌlieníndi - ∆: “energia indi” contra o “mundo moderno”

A energia Ʌlieníndi - ∆ é força encantada, “energia indi”, pois não


interage com as “luzes” do “mundo moderno”, ela vem “de dentro” da
Terra, das afinidades, dos afetos, das relações, dos cosmos, e está presente
aqui-agora atuando. É força-movimento que se expande por rede de mo-
vimentos intensivos-afetivos. Age como “energia escura” que transpassa
o MACROcosmo, alterando clandestinamente o funcionamento artificial
da historicidade-temporalidade do Estado-Mercado, ampliando os limites
entre as dimensões de percepção e perspectiva, criando novas visões de
história e novos mundos, retomando a força dos povos da Terra.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 184


Assim, em retomada, surge o alien-Tapuya, o selvagem, aquele que
não se rende e não se sujeita ao “mundo moderno” e ao seu instrumento
de operação que está encarnado no Estado-Mercado. O conceito de Tapuya,
que traz consigo a retomada, simboliza o risco à soberania dos “donos do
mundo”. Se o conceito “moderno” de etnogênese indígena é o surgimento
ou reaparecimento social de uma nova etnia, o conceito Ʌlieníndi - ∆ é a
força de brotamento conceitual dos mundos indígenas que impulsiona as
retomadas, e o conceito de Tapuya é o brotamento conceitual e cotidiano
de resistência dos povos indígenas originários contra o Estado-Mercado.
O Ʌlieníndi - ∆ é um movimento singular de brotamento cósmico.
É uma “informação-energia”, uma força que está ali atravessando e sendo
atravessada por todo o tecido da vida, sumindo, agrupando-se e aparecen-
do quando a ação de resistência se faz necessária. Se o iluminismo foi o
advento da “luz” do “mundo moderno” do povo branco europeu ocidental,
encarnado na colonização violenta do planeta, que destrói vários mundos
transformando-os em propriedade e produção; a energia Ʌlieníndi - ∆ é
o advento de retomada dos mundos indígenas originários, que atravessa
e rasga o Estado-Mercado por dentro.
A energia Ʌlieníndi - ∆ orbita os horizontes de evento dos povos em
retomada, é a força dos antigos aqui e agora, é o emaranhado dos troncos
velhos com as pontas de rama que fazem brotar os mundos indígenas em
retomada contra o capital.
Muitos dos nossos sábios podem em qualquer ponto do terri-
tório em que vivem, estar sentados dentro de uma habitação
e, ao mesmo tempo, fazer pensamento e meditar e visitar e
sobrevoar regiões longínquas e visitar os nossos parentes
e tomar contato com realidades que nem as fronteiras ge-
ográficas são capazes de marcar, de se interpor. (KRENAK,
2015, p. 154).

Cada povo indígena é uma frequência de vibração afim com a Terra.


Somos “indivíduos” coletivos e para além do físico.
O espírito do nosso povo continua podendo viajar na face das
águas, no vento, na floresta, através dos pássaros, através de
muitos outros elementos da natureza. E eu tenho uma ina-
balável fé de que enquanto a gente puder fazer isso, o nosso

CAPÍTULO 12 - Ʌ₤IͼƝINΔI ∞ limn→∞ ∆ | 185


povo vai existir. Seja nesse pedaço de mundo que chamam de
América, seja no pedaço de mundo que chamam de Ásia, de
África, em todas as pequeninas ilhas espalhadas pelo mundo
o nosso povo vai continuar existindo, vai continuar batendo
o coração dessa gente e essa maneira de entender o univer-
so. Ela transcende as ideologias e as formas de organização
política dos brancos. (KRENAK, 2015, p. 154).

Seguimos brotando, amando e voando, com o vento, as aves, os es-


píritos das plantas, das montanhas, dos rios, dos nossos avós, dos nossos
antigos. Seguimos sonhando os sonhos da Terra. Nossos povos entendem as
diferentes frequências de mundos que habitam a Terra e fora dela. Temos
Afinidade cosmológica percepcional com os sonhos da Terra, cumplicidade com
tudo que vive, visível e invisível. Somos povos que sonham, sonhamos
com mundos possíveis, com um planeta onde caibam todos os mundos.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 186


OS PORTÕES DO MUNDO

(Narrativa da retomada de mundo dos Takarijú)

Felipe Coelho Iaru Yê Takariju

É bem no meio, antes do começo, bem perto do fim, na ponta da


ladeira onde os mundos afloravam.
Eram caminhos na serra encantada, rios, cachoeiras e matas, as
imagens foram criadas pelos que se encantaram.
É no encanto do caminho das madrugadas, pisando leve pelas estra-
das, as nuvens nos firmaram.
Somos o povo do céu, o povo das estrelas, o povo que vem com a força
do trovão e dos raios, que ascende como relâmpago, mas continua
brilhando como água cristalina de cachoeira.

De ponta a ponta, a montanha grande e forte


nos ensina que a sorte é uma miragem
e a morte só uma passagem.
O canto lindo das nuvens encantadas, de onde as vozes nos falaram:
“pé no chão sem se calçar, senão nos param”.
O sentimento inspirado pelas nuvens de poeiras d’água, vindas das
cachoeiras que banham com energia a Serra Grande.

Na Serra Grande, tudo se mexia, as matas, as cachoeiras, tudo floreava.


A onça suçuarana nos falava
ensinando seus encantos e como não se render
E os tamanduás bebiam conosco ensinando a festejar.

OS PORTÕES DO MUNDO (Narrativa da retomada de mundo dos Takarijú) | 187


O céu e as estrelas nos acolhiam em sua imensidão, nos ensinavam
no seu silêncio.
As luzes do céu afirmam que somos seus filhos.

Eram caminhos sem começo ou fim, as fronteiras se ocultavam.


Tudo alcançava o dia e a noite, o tempo era menino e aqui-agora
todos brincavam.
Numa linha emaranhada onde todas as pegadas juntas demarcaram.
O movimento do canto e do chão, pisar e juntar as mãos, numa só
voz gritavam.
O dia lindo, tinha voz e falava, o sol forte clareava e os olhos se
despertavam.
A vista limpa cheia de amplitude, e no amanhecer os horizontes
brotavam.

O vento fino, frio e de assobio forte


organizava e criava vida a partir da morte.
A chuva forte regava o chão e fazia brotar na mão os mundos e as falas.
A mata densa, a montanha forte, os povos que vivem são todos
encantados.

“Uma semente no meio da poeira


Chã da lavoura primeira
Meus avós dançaram”
E do escuro num grito de lampejo de mundo meus avós criaram.

“[...] era uma festa


Chegada e partida
Saudações e despedidas
Meus avós choraram”

Era uma festa, sem tempo, nem fim, de lembranças e encantos.


Era uma roda gigantesca e forte que criava e rodava flores circulares.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 188


Uma energia de amor bem forte, cantada numa só voz de alcance
além da morte.
O canto forte, rasgava a carne e atravessava a morte ativando a alma.

O maracá tremia que tudo vibrava.


O chão, a fumaça, a poeira, as nuvens, o céu e as estrelas, tudo estava
ali dançando na criação do mundo que os avós contaram.
O buriti, a gameleira e o carnaubal, ordenam nosso mundo plantado
pelos avós e pelos que se encantaram.
E os lanceios de estrondo do nascer quando se vem um mundo, na
Terra ecoaram.
Era uma dança, um ritmo forte que passou o sentimento dos que se
encantaram.

O movimento sem começo e sem fim fez quebrar enfim a cabaça


do maracá,
As sementes e o pau caíram no chão.
A semente brotou
O pau fincou e firmou a retomada do mundo dos Takarijú da Serra
Grande.

“Ah, se eu pudesse
Só por um segundo
Rever os portões do mundo
Que os avós criaram.” 47

Os portais dos mundos, meus avós abriram.

As citações, no poema, são referentes à música Vale do Jucá, de autoria de Sérgio Roberto Veloso
47

de Oliveira, conhecido artisticamente como Siba Veloso.

OS PORTÕES DO MUNDO (Narrativa da retomada de mundo dos Takarijú) | 189


REFERÊNCIAS

ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um


xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ARRUTI, José Maurício Andion. “Morte e vida do Nordeste indígena: a


emergência étnica como fenômeno histórico regional.” Revista Estudos
Históricos 8.15 (1995): 57-94.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e


esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.v.2.

DI FELICE, M.; BRIGE, Marco F. Votan Zapata - a marcha indígena e a


sublevação temporária. São Paulo: Xamã VM Editora e Gráfica, 2002.

GREENE, Brian. O universo elegante: supercordas, dimensões ocultas


e a busca da teoria definitiva. Tradução de José Viegas Filho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

KRENAK, Ailton. Ailton Krenak (Encontros).1 ed. Rio de Janeiro:


Azougue Editorial, 2015.

NEWTON, Isaac. Principia: princípios matemáticos da filosofia


natural. Tradução de T. Ricci [et al.]. São Paulo: Nova Stella/EDUSP, 1990.

PALITOT, Estevão Pinto (Org.). Na Mata do Sabiá: Contribuições sobre


a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará, 2009.

POMPEU SOBRINO, Thomás. Os tapuias do nordeste e a monografia


de Elias Herckman. Revista do Instituto do Ceará. p. 7-28, 1934.
Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/
biblio%3Apompeu-1934-tapuias/pompeu_sobrinho_1934_tapuias.pdf.
Acesso em:19 ago. 2019.

ALIENINDI∞∆: Os portais dos mundos | 190


ROVELLI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura
elementar das coisas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. Tradução de
Silvana Cobucci Leite.

VELOSO, Sérgio Roberto. Vale do Jucá, In: SIBA- Fuloresta do Samba.


Pernambuco: Produção Independente, 2002. 1CD. Faixa 11.

WATTS-POWLESS, Vanessa. Lugar-pensamento indígena e agência de


humanos e não-humanos (a Primeira Mulher e a Mulher Céu embarcam
numa turnê pelo mundo europeu!). Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v.
11, n. 1, p. 250-272, Jan./Jun. 2017.

Referências | 191
2

1 - Tataravó Maria Balbino da Conceição. 2- Bisavó Maria Vieira de Souza. 3 - Avó


Maria Juraci Rodrigues Coelho. 4- Tia Avó Maria Aldeci de Sousa. 5- Mãe Regina Telma
Coelho. 6- Bisavó paterna bisa Sensata. 7- Segunda mãe Ana Celia de Sousa. 8 - Felipe
Coelho Iaru Ye Takariju.
Felipe Coelho Iaru Yê Takariju, indígena selvagem
em retomada do povo Takariju, CE. Tataraneto de Maria
Balbino da Conceição, Bisneto de Maria Vieira de Sousa,
Neto de Maria Juraci Rodrigues Coelho e filho de Gonçalo
de Oliveira Brito, Ana Célia de Sousa e Regina Telma Coelho.
Membro do Coletivo de Estudos e Ações Indígenas
(CEAI) e estudante do Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem da UEPG.

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