Usos e Abusos No Emprego Do Conceito de Modo de Produção

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U)l!O) VJ\115 VCJ VliLHn13J CXTl!N3~
oy~)VZlllAI::) 3 VICIQlSIH
SUMARIO

APRESENTAI;AO
Genildo Ferreira da Silva 7

CRISE E HISTORIA
Jorge Grespan 11

RACIONALIZAI;AO E APRENDIZADO EM HABERMAS E RAWLS


Andre Berten 25

DO ESPAI;O DO MUNDO AO TEMPO DOS HOMENS:


a fllosofla da hlst6rla como Teodlceia em Agostlnho
Isabelle Koch 43

JOHN LOCKE, SAMUEL PARKER E 0 DEBATE SOBRE A TOLERANCIA


AntOnio Carlos dos Santos 67

JOHN STUART MILLE A EMANCIPAI;AO DAS MULHERES


COMO PROCESSO CIVILIZATORIO
Pascal Taranto 81

VOLTAIRE E A CRiTICA AO OTIMISMO: apontamentos


Edmilson Menezes 99

A FILOSOFIA DIALETICA DA HISTORIA, DE NIETZSCHE


Jose Cris6stomo de Souza 115

HEGEL E MARX: como se pode compreender a Hlstoria


Ana Selva Castelo Branco Albinati 127

TELEOLOGIA E HISTORIA NOS GRUNDRISSE DE MARX i


i)
Pedro Leao da Costa Neto 139 ..;;

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USOS E ABUSOS NO EMPREGO DO ,'j


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CONCEITO DE "MODO DE PRODU(,':AO" '
Mauro Castelo Branco de Moura 151 'l"
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USOS E ABUSOS NO EMPREGO DO CONCEITO DE
"MODO DE PRODU(,(AO"
Mauro Castelo Branco de Moura

0 conceito de "modo de prodw;iio" encerra, pelos pr6prios termos


que o configuram, sutil, pon:'m proftmda, ambiguidade. 0 em pre go expli-
cito da palavra "prodw;:ao" sugere, de imediato, uma primazia da esfera
produtiva em detrimento de outws momentos do processo de reprodw;:ao
soda!. Neste sentido, nao resta duvida de que o conceito de "modo de
produ~ao" parece eivado por uma conota~iio reducionista, porquanto
o termo produ~ao esta nele explicitamente privilegiado, ensejando o
reducionismo economicista que erigiu o "fa tor economico", tao evocado
pela vulgata dos manuais de proselitismo, como panaceia explicativa das
sociedades hurnanas. Nao obstante, a interpreta~:ao reducionista nao a e
{mica possivel.
e
A ideia de urna produ~:ao ensirnesrnada urn absurdo niilista, absolu-
tarnente carente de sentido. 0 rnornento produtivo do processo de repro-
du~:ao social s6 tern senti do, quando vinculado ao momento consumptivo.
"Sem produ~:ao- afirmava Marx- nao ha consumo, porem, sem consumo
tarnpouco ha prodw;iio, ja que neste caso a produc;ao nao teria objeto".
(MARX, 1979, p. 47) Ambos os momentos siio, portanto, partes inelutaveis
de uma mesma totalidade irredutivel. Marx inicia a chamada lntmduriio
de 1857', com o sugestivo subtitulo: produriio, consumo, distrilmiriio, troca

Texto p(:lstumo que fa? partl' dos Gnmdrisse, pon!-m quL' foi publicudo com ~lnterioridade.
A publica~ao dos Gmndrisse iniciou-seem 1939 na fin ada URSS c a llllrodu~iiode 1857 integrou-se
as reedi.;lies da Critica da enmomia politica de 1859, desdt~ o inido do 5eculo XX, provavelmente
porque o prehkio .:lquele texto de 1859 contt?m umfl alusao exp!icita ao de -1857, quando Marx
explica a inconveniencia de adiantar te.s-t~s que deveriam scr naturalmentc- demnnstrarlas an
Iongo da obra.

Hist6na e Clvlllzac,:ao 1.51


'

(cirwlar;iio). (MARX, 1979, p. 39) 0 texto, infelizmente fragmentitrio, pros-


segue exarninando cada urn desses momenlos do processo de reprodw;iio
social e suas rela<;oes entre si.
A reprodw;ao social revela-se ai inicialrnente como urn processo pro-
dutivo/consumptivo, forma pela qual o ser social integra-se il nah1reza,
garantindo sua autoperpetua.;:ao. Entretanto, as esferas da prodw;ao e
do consumo estao interligadas porum terceiro momento: o distributivo. 1
Cada figura social caracteriza-se por uma peculiar inter-rela.;:ao destas
esferas que, sem embargo, conformarn-nas em guaisguer de suas versoes
hist6ricas. 0 processo de interdhnbio de materias com a natureza e sua
integra<;;ao ao ciclo social reprodutivo humano manifesta-se atraves destes
tres momentos.
Uma das principais peculiaridades da figura rnercantil do processo de
reprodw;:ao social esta em gue, nela, a distribui\iio, esta esfera mediadora
entre a prodw;ao e o consurno, autonorniza-se, constituindo paulatina-
mente a esfera hipostasiada do mercado. Por isso, Marx (1979, p. 56) alinha
produ~iio, distribui~ao, intercambio e consumo, afirmando gue:

0 resultado a que chegamos nao ~que a prodw;ao, a distribuiy8.o,


o intercftmbio eo consumo sejam id€ntlcos, sen.J.o que constituem
as articula<;iies de uma totalidade, diferenciar;iies dentro de wna
unidade j ... j.

Foi, precisamente, pela dentmcia da hipostase da esfera distributiva


sob a forma de mercado, que Marx p6de dernonstrar o carater contingente
da figura social burguesa. De instancia mediadora entre a prodw;ao e o
consumo, a esfera distributiva semiaut6noma e substantivada incrusta-se
no processo de reprodu.;ao social, passando a determina-lo e a economia
polltica chancela esta hipbstase como uma evidencia empirica aparente-
mente inquestiom\vel.

Ctm1 outras palavrds Bollvar Echeverria exprcss,:l esta mesma idda da S(:guinte formB:
"0 sujeito social Q o centro de aten~ao do discurso tet1rico mar:xista, do disct..Jrso rr\tico de
Marx. E este sujcito s,ocial que, para subsistir, t.~stit cnnsumindll e est.1 produzindo em uma
determinada forma. A exist'i·nda do suj~:.~itn social se movt' sernprl' dentro destds duas fases: a
fasc 'produtiva' e a fase 'consumptiva'. 0 sujcito social <""lhlil sobn~ a nuture:ra para lograr um
determinJdo prnduto, um conjuntn global de 'produtns'; est a riqueza :,;ocinlnbjctiva e Z1 qul'
elc vai consumir como um conjunto total de 'bens'. Entrc,1 fase produtiva e a f.-1se consurnptiva
h6, entfin, nccessariamente, um 'momento circu\atOrio"'. (ECHEVERRIA, ·19R6, p. 138)

!52 Hist6na e c\v!hlaG.30


Conceber a produ\ao isoladamente, fora do contexto do processo de
reprodu\3.0 social em seu conjunto, contraria explicitamente, portanto,
as indica<;oes metodologicas expostas por Marx nesta celebre Introdu(iio
de 1857, as quais, sem embargo, nao permaneceram constringidas, como
neste exemplo, a trabalhos ineditos, como se pode apreciar na seguinte
l,
passagem d'O Capital:
e
2 Qualquer que seja a forma social do processo de prodw;ao, este
tem de ser continuo ou percorrer periodicamente, sempre de novo,
lS
as mesmas fases. Uma sociedade nao pode parar de consumir,
es
tampouco deixar de produzir. Considerado em sua permanent€'
Ja conexiio e constante fluxo de sua renova<;3o, todo processo social
;es de produ\50 e, portanto, ao mesmo tempo, processo de reprodw;ao.
(MARX, !J983J, p. 153)
de
ora Desta maneira, o processo de reprodu<;ao social niio pode deixar de
;na- levar em considera~ao as formas puras da socialidade, procria\ao inclusi-
;lha ve. Esta e a porta heuristica para uma aborda gem material.ista, porem, nao
reducionista, das figuras sociais, compreendendo-se algumas institui.;oes
cruciais como a religiao e a familia-' So assim, portanto, e possivel uma
aproxima<;ao adequada e consistente as formas da cultura e Rosa Luxem-
burg (1967, p. 13) intuiu, com admin\vel elegancia, esta possibilidade
quando afirmou que:
Reprodw;ao, no senti do literal de palavra, esimplesmente prodw;ao
nova, reitera,ao, renova,ao do processo de produ,ao. E aprimeira
<i!!<
vista parece llUe nao seW porque haveria de ser necessiirio distin-
guir o conceita de prodll\'5.0 para todos compreensfvel, nem porque
haveria de empregar-se para designil··lo uma expressao novae des-
concertante. Contudo, cabalmente, a repeti<;ao, a renova<;iio coTistan-
te do processo de prodw;ao, brinda-nos ja, por si, um element a de
import.3ncia. Em primeiro Iugar, a reiterat;fio regular da prodw;ao
eo suposto e fundamento geral do consume regular, e, portanto,
a condh;ao previa de existencia da sodedade ~umana sob todas
as suas formas histOricas. Neste senti do, o conceito de reprodw;-ao
encerra um elemento entn'la~ado as formas da cu \tura ! ,.. 1.

.~ Yer nwu trabolho intitulado Mar:r e 11 procriat;t'i(): pnr ur11 mnterinlismo wio era1wmicista, (Cf.
MOURA, 200R, p. 241-253)

H1st6na e C!V!It7aqao 153


. -·-··------·--- _________ , ___ _
'

Is to porque a produ~ao regular, reiterada, supoe sempre a reprodu-


<;iio da organiza~ao social que a executa, o que seria inconcebivel sem a
reprodw;ao tambem da cultura que enforma o processo reprodutivo em
seu conjunto ...
Alem do inequivoco sentido das am\lises de Marx em sua Introduvao
de 1857, reiteradas em sua obra magna, conforme jii foi mencionado, ha
outras indica~oes que corrobora~ o sentido das aprecia<;:oes aqui propos-
las. Em correspondencia a Annenkov, de fins de 1846, Marx ja advertia
clara mente, por exemplo, que:
1... ] as forc;as econOmicas sob as quais os homens "produzem, con-
somem e trocam", sao transitOrias e histOricas. Ao adquirir novas
for~as produtivas, os homens mudam seu modo de prodw;ao, e com
o modo de prodw;ao mudam toda~ as rela\Oes econdmicas, que nao
eram rna is que as rela\Oes necessitrias daquele modo concreto de
prodU<;ao. (MARX, [198-], p. 444, gri fo nosso)

Assim, o conceito de "modo de produ~ao" estaria associado nao so


com a produ~ao stricto sensu, mas a produ~ao, ao consumo e, pela via
da troca a distribui~ao tambem. Nao obstante, a concep<;ao reducionista
unilinear prevalecente no imediato p6s-guerra nao privilegiaria tais suti-
lezas. Mesmo contariando as advertencias do proprio Engels em rela<;ao a
determina~ao em ultima instancia' ou sobredetermina~ao, como preferiu
Althusser (1974, p. 71-106 ), o reducionismo granjeou adeptos entre epigo-
nos e detratores, sobretudo sob os influxos do chamado "stalinismo". 0
debate sobre o surgimento do capitalismo (DOBB, 1973; DOBB et al., 1973),
mas, sobretudo, a grande polemica com rela.;ao ao "modo de produ.;iio
asiatico", estimulada ao final da decada de cinquenta pelo Jan.;amento do
controvertido livro de Karl Wittfogel (1966), desemboca num profundo
questionamento da concep.;ao unilinear dos "cinco estagios".
A querela, que se inicia pela interpreta<;ao historica das sociedades
asiaticas, rapidamente se estende a Africa e ao continente americano
pela via das sociedades pre-colombianas, abrindo espa.;o a uma intensa
"() desenvolvimento politico, juridico, fiiosMico, religioso, literario, artistico, etc., repousa
no dt.-senvolvimento econ6mico. Mas, todos eles repercutem tambem uns sobre os outms e
sobre sua baseeconOmica. Niio Q que a :)itua~ao econ6mica seja a 'causa', o 'Unico ativo', e tudo
o mai.s efeitos purmnente pilssivos. Hi.l um jogo de a~Oes t! rea~Oes, sobrc a base da necessidade
cconOmica, que sc impOe st~mpre, em '{1ltima instJ.ncia"'. {ENGELS, [198-1 t. 11, p. 507-SOR, grifo
nosso)

154 Hist6na e CIVIIIZSG.30


controversia sobre as sociedades pre-capitalistas, incluindo-se ai a his to-
ria colonial e posterior da America Latina.' 0 pano de fundo do debate,
como em outras ocasioes, foi a caracteriza\iiO da revoluc;:iio socialista em
paises que nao obedeceram ao modelo classico da Europa OcidentaL No
plano te6rico entra em crise o paradigma da sucessiio universal c linear
de "rnodos de prodw;:iio", interpreta~iio dominante durante duas decadas.
Essa irrup\ao de diferentes modalidades de conceber o processo hist6rico
coincicte, excetuando-se a rninoritaria vertente trotskista, com a quebra
do monolitisrno do movimento comunista internacional, que se havia
consolidado pela defesa do "socialismo em urn s6 pais". A rnultiplica-
,.:ao de partidos e rnovimentos de inspira~ao marxista foi acompanhada,
pari passu, pela diversifica,.:ao das interpreta<;:oes, a nivel te6rico, sobre o
processo hist6rico, tanto em rela\iio ao passado, quanto its caracteristi-
cas de urn hipoh~tico devir revolucionario. Gerou-se uma "escoh\stica"
abstrusa, tanto no plano puramente te6rico, quanto no da periodiza~ao
hist6rica. Ern nivel mais abstrato, a discussao buscou precisar o conceito
de "modo de produ\ao", estabelecendo eventuais distin.;oes com o de
"forrna.;ao econ6rnico-social" (GEBRAN, 1978; LUPORINJ eta!., 1980),
preferencialmente ernpregado por Lenin. Ja no plano da interpreta<;ao
hist6rica do continente latino-americano foram levantadas quase todas
as hip6teses analiticamente possiveis. Assim, sobre a hist6ria colonial
da America Latina e, mais, concretamente, no que diz respeito ao Brasil,
defenderam-se as seguintes teses:
a. Feudalismo na America Latina- Muitos e variados foram os auto res
que propuseram a existencia, passada ou presente (sob a forma de
reminiscencia) de feudalismo na America Latina. Segundo alguns
deles, mesmo no 5eculo XX, ainda seriarn detectiiveis vestigios feudais
nas sociedades latino-americanas contemporaneas. Em geral foram as
forrnas de prodw;ao agricola e apropria~ao ftmdi<\ria, relativamente
arcaica ou pouco conformes its rnodalidades propriamente capitalis-
tas, que induziram estes autores a essa categoriza.;;ao. Excluindo-se os
muitos argumentos sujeitos a comprova<;iio empirica usados contra
ou a favor da tese das rela~oes feudais na Amt'rica Latina, em geral,
e no Brasil, em particular, seria possivel refutar a tese de feudalismo
no continente, esgrimindo-se o argumento de que a America penetra
5
A respeitn VC'T: Godelier (197'1 ); Sofri ( 1971 );'Bartra (197') ); Chesna ux (l97S) c nutrns.

HISt6na e CIVII1Za~8o 1
---~-----·-1:'----

na "hist6ria mundial" precisamente em virtude e como consequen-


cia do declinio do feudalismo europeu. A Europa em transi<;ao ao
capitalismo, que se expande na dire~ao do continente americano e
do resto do mundo, ja nan e urn a Europa propria mente feudal. Seria
dificil conceber urn feudalismo pari do de uma sociedade em vias de
super<\-lo em si mesma.
Nao obstante, acerca do caso brasileiro, Alberto Passos Guimariies
contra-argumenta da seguinte forma:
A despeito do importante papel desempenhado pelo capital co-
mercia! na coloniza~ao de nosso pais, ele n5o pOde desfrutar aqui
a mesma posi~Jo intluente, ou mesmo dominante, que havia as-
sumido na metr6pole; nao conseguiu impor a sociedade co\oniai
as caracteristicas fundamentais da economia mercantil e teve de
submeter-se e amoldar-se a estrutura tipicamente nobiliilrquica
e ao poder feudal instituidos na America Portuguesa. Por c:on-
seguinte, o processo evolutivo em curso na sociedade lusa nao
veio continuar-se no Brasil-ColOnia, onde o regime econ6mico
instaurado significou urn recuo de centenas de anos em rela.;ao ao
seu ponto de partida na metrOpole. f... } A grande aventura, para
os fidalgos sem fortuna, seria reviver aqui os tempos clureos do
feudalismo clilssico, reintegrar-se no dominio absoluto de latiflm-
dios interminilveis como nunca houvera, com vassalos e servos a
produzirem, com suas maos e instrumentos de trabalho, tudo o que
ao senhor proporcionasse riqueza e poderio f... ]. (GUIMARAES,
1985, p. 22-23)

No entanto, sua explica~iio niio consegue superar as dificuldades das


rela~oes deste "feudalismo" brasileiro como mercado mundial. Com efei-
to, niio parece atilado supor urn feudalismo criado porum (e direcionado
em suas atividades econ6micas determinantes, para um) mercado mundial
em conforma~iio, baseando suas rela,;;oes fundamentais na escravidiio sans
phrase (para utilizar a expressiio de Marx) dos africanos e seus descendentes
e na aberta ou disfan;ada da popula~iio amerindia (os "negros da terra"
no Brasil) atraves das wcomimdas, haciendas etc.
Um feudalismo escravagista epouco admissfvel, a menos que se su-
ponha um "feudalismo" com rela~oes de produ~iio distintas das que lhe
sao pr6prias. Alias, houve quem defendesse precisamente um conceito de
"feudalismo" tal que abarcasse toda esta seric de obje.;\'ies. Este eo caso,
por exemplo, de Carmagnani (1979, p. 12), quando a firma que:
156 H1st6ria e Clvlll:t,ar;ao
---·--"-----

[... Jievando em conta qut' as rela<;Oes de produ<;ao nao coincidem


necessariamentecom o modo de produ\~ao, pode-se admitir tam bern
a hip6tese de que a escravidao nao enecessaria mente incompative\
com 0 sistema feudal r... ].
0 argumento central de Carmagnani radica na constatac;:iio, de res-
to verdadeira, de que o feudalismo nao esta constituido por unidades
econ6micas ("feudos") completamente fechadas e totalmente autossu-
,,.
ficientes. Se e certo, sem embargo, que o comercio sempre se manteve
-;r nos intersticios do regime feudal, nao e menos certo que admitir a ideia
\
de um feudalismo mercantil, com relac;:oes de prodw;ao escravistas (dis-
farc;:adas ou nao), ainda que ligadas a produc;:ao comercial, s61eva a uma
descaracterizac;:ao e esvaziamento do pr6prio conceito. Cumpriria notar,
entretanto, que a postulac;:ao de urn feudalismo na America Latina ajusta-
se harmonicamente a teo ria stalinista dos "cinco estagios". Neste sentido,
ainda que seja preferivel o alargamento do ambito do conceito, para que
este abarque realidades destoantes da esquematica dominante, do que o
"estreitamento" da "realidade" no sentido de que se ajuste ao conceito,
e injustificado o emprego do conceito de "feudalismo" em acep.;;ao tao
limite, que pouco ou nada tenha a ver com o original.
b. "Cinco eshigios" imanentes ahistoria do Brasil-Seas r<?lac;:oes escra-
vistas de prodw;:iio e a natureza comercial da pon;:ao mais dinamica
da prodw;:iio dificultam a aplicac;:iio do conceito de "feudalisrno"
(mesmo na versao sui generis de Carmagnani) a realidade hist6rica
latino-arnericana e, em consequencia, sua inserc;:iio automatica nas
supostas etapas do desenvolvimento hist6rico universal, houve quem
tratasse de superar esta dificuldade intemalizando estes estagios.
Esse e o caso de Nelson Wemeck Sodre, autor de obra verdadeira-
mente enciclopedica, que, ao falar do Brasil do SCcuio XVIII, emite a
seguinte opiniiio:

A terra, agora, ea medida de todas as coisas, e sobre e!a se levan tam


as relat;Oes feud a is que substituem as rela\Oes escravistas a que a
minera\'ao se adaptara e que tanto modificara. Dominando a ex-
tensao amazOnica, as planicies sulinas, a vastfssima zona sertaneja,
o interior do centro-sui antes minerador, corroendo o decadente
escravismo 3\UCareiro, as relat;6es feu dais dominam a quase totali-
dade da extensao territorial da colOnia e cercam as <ireas escravistas

H1st6ria C C!VIIIZB980 157


- ·-.,---

litorfmeas. E nao apenas dominam a 3rea maior, mas, o que e n1ais


importante, a maior parcela da popula,·ao, substituindo a contra-
di<;ao entre senhores e escravos pela contradh;ao entre senhores e
servos[ ... ]. (SODRE, 1967, p. 149)

Desta maneira, Wemeck Sodre tende a reproduzir na hist6ria do


Brasil, de forma intemalizada, o esquema geral dos "cinco estagios".
Posto que, antes do "descobrimento" seria plausivel que se propusesse
certo "comunismo prirnitivo", em seguida, com a ocupa.;ao portuguesa,
instaurar-se-ia o "escravismo", o qual transitaria, por sua vez, ao "feu-
dalismo", como demonstra de modo cristalino o trecho citado, e assim
sucessivarnente. Seria de born alvitre, no entanto, nao perder de vista
que Wemeck Sodre nao aceitaria sem reservas que se !he imputasse tal
analogia. Segundo Wemeck Sodre (1967, p. 149),
No Brasil, no nosso modo de ver, tanto houve escravismo, e pas-
sagem ao feudalismo, quanta feudalismo, e passagem ao capita-
Jismo. Esta seqUencia por assim dizer normal, porque acon1panha
o modelo conceitual eo esquema stalinista, decorre da analise do
particular brasileiro, e nao da simples ado<;ao de uma fOrmula,
como se fora universal e obrigat6ria 1... 1.

Mesmo na suposi<;ao de que o esquema de Wemeck Sodre emanasse


do esh1do concreto da realidade brasileira, de tao similar ao de Stalin, rne-
receria urn a explicao;:ao do porque desta semelhan.;a, a qual, certamente,
nao poderia ser considerada, sem mais, rnera coincidencia. No fundo,
mesrno se lhe concedendo o ter partido da "analise do caso particular
brasileiro", subjacente ateoria de Sodre estaria uma concep~;ao da hist6ria
do Brasil vista como urna especie de expressao concentrada da hist6ria
mundial, na medida ern que teria seguido seus rnesmos passos, o que,
evidenternente, nao e de trivial aceita.;iio.
Nao obstante, mesrno desconsiderando-se as dificuldades desta "coin-
;:•,
cidencia", a compara.;ao da realidade hist6rica brasileira como modclo
,.l\.: esquematico de Sodre enfrenta-o a obje<;iies dificeis de contornar. Dentre
r· elas, seria cabivel arguir acerca da plausibilidade de uma transio;ao do
!'
i:' "escravisrno'f.p "feudalismo" no Brasil do Seculo XVIII, na medida em que
i}
f.'
a escravidao s6 foi abolida ao final do Seculo XIX, acarretando, inclusive,
[ o fim do sistema monarquico no pais e demonstrando, assim, a estreita
liga.;ao havida entre escravidao e imperio. 0 regime escravocrata no pais
f.
;;
):
10;:

~ 158 Hist6na e c1vilizac;ao


i
[:,

nao definhou no Seculo XVIII, mas manteve-se na lideranc;a politica do
Estado nacional, antes e depois da independencia. A produ,·ao cafeeira,
que nao e tipica do Brasil colonial, por exemplo, em sua primeira fase
serviu-se do bra<;o escravo, so depois utilizando a mao de obra livre.
Os alicerces da escravidao s6 serao abalados, verdadeiramente, com as
lirnitac;oes irnpostas pela Inglaterra ao comercio negreiro intemacional.
Destarte, a rnenos que se considerem as relac;oes de produc;ao escravistas
do Seculo XIX como "feudais", com as dificuldades ja assinaladas para
a forrnula<;ao de Carmagnani, o esquema de Sodn' resulta de dificil fun-
damentac;ao.
c. Capitalismo desde as origens · Em face das dificuldades inerentes
as proposic;oes de "feudalismo" na America Latina houve quem,
hipostasiando suas fortes ligac;oes, desde a conquista, a urn nascente
mercado mundial, chegasse a sustentar ter havido a qui capitalismo
des de as origens. Esse e o caso de Gunder Frank (1970, p. 38), para
quem:
A America Latina Ionge deter superado recentemente ou de niio ter
superado ainda o feudalismo (que, na realidade, nunca conheceu),
ou deter tornado h<l pouco um papel ativo no teatro mundial, ini-
ciou sua vida e sua histOria posterior aConquista como parte inte-·
grantee explorada do desenvolvimento capitalista mundialj ... j.

Se, de urn !ado, nao hi1 como minimizar a importancia da America


Latina no rnercado mundial; de outro, e dificil aceitar a ideia sugerida
por Frank, de "capitalismo" desde os priml'lrdios da ocupa<;i'io americana
pelos europeus. Em primeiro Iugar, porque na "Conquista" nao havia
ainda capitalismo, stricto sensu, na propria Europa, sequer na Inglaterra,
onde so dois seculos mais tarde o capitalisrno se consolidaria. Em segtm-
do Iugar, porque as rela<;-oes de produ<;i'io vigentes na America Latina
ate, pelo rnenos, o Seculo XIX sao htdo, menos capitalistas. Niio se pode,
portanto, em pro! do louvavel reconhecirnento dos indisso!ttveis nexos
entre a historia latino-americana e a conforrna<;ao e desenvolvimento do
mercado mundial, subsumi-la nele. A realidade latino-americana nao se
explica, nem ern suas rela<;oes puramente econ6micas mais relevantes,
apenas a partir de sua inser<;ao no mercado mundial ou mediante a carac-
teriza<;ao da domina<;ao colonial ou imperialista 0 corolario complexo de
rela<;oes de prodw;ao da regiiio e, sem duvida, crucbl para a explicac;ao

H1sl6na e CIVIIil8J;:2iO 159


de sua hist6ria, a qual, sem embargo, niio se esgota apenas an ni.vel das
determina.;oes ex6genas.
d. Escravismo colonial - Na busca do resgate da especificidade do
processo hist6rico latino-americano ou, pelo menos, de certas re-
gioes do continente e, em especial, do caso brasileiro, chegou-se a
defender a tese de "modos de produ<;ao" peculia res a essa realidade.
A proposta, que parece ter sido origim\ria de Ciro Flamarion Santana
Cardoso (1977a, 1977b), foi, para o caso do escravismo, extensamente
desenvolvida por Jacob Gorender em seu livro 0 escravismo rolonia/.
0 prop6sito primordial de Gorender, nesta obra, foi ode formular e
aplicar as leis do, por ele denominado, "modo de produ.;ao escravista
colonial".
0 livro, que tem meritos inegaveis, enfrenta, sem embargo, alguns
obstaculos inerentes apr6pria formula<;ao como tal. A principal dificulda-
de e assinalada pelo pr6prio au tor em outro Iugar, quando a firma que:
Para o capitalismo, o mercado externo nao constitui senao um
prolongamento do mercado interno. Do ponto de vista teorico, o
mercado externo nao precisa ser conceituado e, por isso mesmo, mlo
encerra significa\ao teOrica em "0 Capital", se bem que constasse
dos pianos de Marx o estudo especial das rela\Oes capitalistas no
ambito do mercado mundial. Jc1 no concernente ao escravismo colo-
nial, o mercado externo unao escravista" constitui urn pressuposto ~.

)
necessaria do processo de produ,ao [... ].(GOREN DEI~, 1980, p. 56,
,'~'

grifo do autor)
''
'f;
·t;-
E mais adiante acrescenta: 'if_'

[... ] enquanto o modo de produ,ao capitalista cria seu proprio tipo


de circula~ao, que o integra internamente, o escravismo colonial
se vincula a uma circulat;Eio externa, que ele prOprio nao cria 1---l-
(GORENDER, 1980, p. 57)

Destarte, apesar de que Gorender (1980, p. 57) sustente o contrario, e


impossivel construir "[ ... ] uma totalidade organica, conceitualmente defi··
nida como tal,[ ... ] pela vigencia de leis rigorosamente especificas" para o
"modo de produ\iiO escravista colonial", em virtu de de que este, para ser
explicado em seus aspectos essenciais, necessita recorrer ao concurso de
::1)'
leis totalmente ex6genas. Hipostasiar a endogenia das rela<;oes escravistas -~­

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160 Hist6na e crvil1za~ao

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na America significa, em verdade, priva-las do contexto, do entomo geral
que e responsavel pelo seu dinamismo.
Tratar de configurar urn "modo de produ~-ao" regido por leis que
nao pod em cabalmente explicar, nem suas origens, nem sua destrui<;iio,
vale dizer, nem seu movimento intemo, sem o concurso a sua inser.;ao
em urn dinamismo muito mais amplo, no qual se encontra subsumido, e
circunscrever, niio uma "totalidade organica", mas talvez, apenas, uma
"parcialidade" organicamente articulada ao movimento da acumula.,:iio
originaria do capital. Epor esta razao que Marx ([1983], p. 291) afirmou
que: "De maneira geral, a escravidao encoberta dos trabalhadores assala-
riados na Europa precisava, como pedestal da escravidao sans phrase, do
Novo Mundo". Alias, o "escravismo colonial", em tanto momento (sem
dtlvida, niio o menos importante) desse processo mais amplo, encontra
seu termo com a consolida<;:iio definitiva e com a incxoravel expansao do
capitalismo. Niio tern muito sentido, pois, a proposi<;:iio de um "modo de
produ~iio" com tantas limita<;:6es que suas proprias leis nao o expliquem e
que sejam incapazes de dar conta de aspectos cruciais de seu dinamismo.
Ao inves de facilitar o acesso as especificidades da realidade que a pro-
posi~iio de um "modo de prodw;ao escravista colonial" pretende abarcar,
com esta enfase na explica,ao endogena, consegue-se, em verdade, des-
caracterizar e esvaziar o pr6prio conceito de "modo de produ<;:iio".
e. Articula~ao de vanos "modos de produ~ao" na America Latina- Com
o intuito de categorizar as peculiaridades das diferentes sociedades e
tratando de resgatar teoricamente os aspectos dessas realidades, que
nao se deixam abarcar facilmente por "modos de prodw;ao" puros,
como, em geral, eo caso das sociedades latino-americanas, muitos
autores aderiram a formula da articula<;:iio de diferentes "modos de
produ<;:iio" nelas atuando simultaneamente. Destarte, as especifici-
dades das distintas sociedades seriam explicadas pela diferenciada
articula,ao dos "modos de prodw;ao" que as comporiam. Para Pou-
Jantzas (1974, p. 6), por exemplo, "A forma<;:ao social constitui por si
mesma uma unidade complexa 'com predominio' de certo modo de
produ<;:iio sobre os outros que a com poem [... ]". Esta ideia tambem
esta presente em Perry Anderson (1979, p. 14), quando afirma que
"( ... ] cada forma(iio social concreta e sempre uma especifica com-
bina(ao de diferentes modos de produ\ao [... j". No en tanto, outros

Hrst6na e clvii1Zat;:8o 161


autores tambem poderiam ser arrolados na defesa de postula.;:oes
semelhantes.
A principal dificuldade desta conceihwliza.;:iio repousa na constata~iio
de que ela niio resolve nenhum dos problemas detectados para as formu-
lao;6es anteriormente analisadas. Apesar de conferir urn melhor matiz a
certos problemas, para nao cair numa articula<;iio indetenninada e, portan-
to, inservivel, de "modos de produo;ao", os defensores desta modalidade
conceitual sao obrigados a eleger, para cada situa<;iio his to rica particular,
urn "modo de prodw;ao" domin<mte. Assim, para a historia colonial brasi-
leira, por exemplo, poder-se-ia escolher urn capitalismo articulado a outras
influencias, urn feudalismo matizado com outros "modos de prodw;iio",
urn escravismo igualmente afetado por outras coisas, ou algum "modo de
produo;iio" novo, dentre os que Ciro Cardoso acredita terem existido na
America Latina (os quais, diga-se, eHpassaHI, por serem menos abrangen- 3,
tes e caracterizaveis que o "escravismo colonial" de Gorender, estariam,
com maior razao, sujeitos as obje.;:6es a ele formuladas) e, ainda assim, a
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problematica nao estaria resolvida. Pequeno, ou nenhum, seria o avano;o
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em rela.;:ao as proposi.;:oes de urn feudalismo ou urn capitalismo sui gmeris. .,"'
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Todos os problemas anterionnente levantados para cada caso renasceriam, ,f'
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a depender do "modo de produ~ao" escolhido como dominante, com o
inconveniente da multiplica\ao desnecessaria de "modos de prodw;:ao". · ;~
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Corre-se ainda o risco, na busca pel a especificidade propria do caso con-
creto, de se perder o "essencial", o fundamental de cada sociedade, o que !
toma possivel enquadra-la, com outras, na mesma analise generica de urn
"modo de produo;ao". Neste sentido, valeria recordar o procedimento de
Marx com rela.;:ao ao "modo de produo;ao" capitalista.
0 insigne renano trata em 0 Ca1'ital de detectar as determina<;c>es
gerais do capitalismo, aplicaveis a qualquer sociedade capitalista concreta.
No nivel de abstrao;ao em que trabalha, nem a formao;iio social capitalista
por excelencia de seu tempo, a Inglaterra, ajustar-se-ia a seu eshtdo do
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capitalismo em estado "puro", livre de certas perturba<;6es. Para chegar
as conexoes mais profundas do capitalismo, por exemplo, Marx supoe no
Livro I que a for<;a de trabalho e paga pelo seu valor, coisa que ele mesmo
,.;···
se apressa em mostrar que, no plano concreto, nem sempre acontece, mas '(,

que !he facilita na demonstra.;:ao das formas de expropria<;ao de mais-valor. :£


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Ao livrar-se das contingencias perturbadoras, que so serao cabalmente ;z
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162 Htst6na e ctviltzar;ao
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introduzidas no Livro III, Marx nao o faz na suposic;ao de que a Ingla-
terra do Seculo XIX fora o produto da articulac;ao complexa de "modos
de produc;iio", na qual o capitalista fora o dominante, inclusive porque o
conceito de "modo de prodw;:ao" capitalista seen contra em um nivel de
abstrac;ao diferente ao da analise de qualquer formac;iio social capitalista
em particular. E precisamente por esta razao que Marx pode aplicar efi-
cazmente o conceito de capitalismo a sociedades muito diversas. Destarte,
argumentando por reduc;iio ao absurdo, se no principal pais capitalista
de hoje, os Estados Unidos, ainda sao encontniveis reservas indigenas, no
entanto, seria descabida a proposi<;iio de que ali existisse uma articulac;iio
complexa entre a comunidade tribal (ou coisa semelhante) eo capitalismo,
sendo este ultimo o "modo de produc;iio" dominante. Nao hii sociedade
capitalista contemporilnea a qualniio se possa atribuir formas atipicas as
do capitalismo "puro" examinado por Marx, sem que disso se possa inferir
a articula<;iio entre diferentes "modos de produc;ao". Eprecisamente esta
abrangencia a responsavel pela longevidade d' 0 Capital. Como apontou
corretamente Vygodsky (1978, p. 70),
0 alto grau de abstra.;iio, de generaliza.;ao, da teoria de Marx e
o que determina sua vitalidade, a possibilidade de aplica-la com
exito a circunstancias que diferem substancialmente daquelas nas
quais foi criada a teoria r... [.

A diferen.;a do que sugerem seus defensores, o que existe, na maioria


dos casos, nao e uma articula-;ao de diferentes "modos de produc;ao", senao
uma reorienta-;iio de certos elementos atipicos, que sao transformados em
conformidade a"16gica" do "modo de produc;iio" em questao. Destarte, o
capitalismo costuma readequar formas de expropria<;iio de trabalho exce-
dente que nao sao tipicamente suas, premido por seu afa de valoriza'>ao
do valor, aproveitando os elementos compativeis e eliminando os que
representem entraves a este processo. E por esta razilo que, para Lenin
(1975, p. 328), em seu estudo sobre o capitalismo russo,
[ ... J nenhuma particularidade na posse da terra pode, atendida a
essenda da questao, representar urn obst;iculo insuperclvel para 0

capitalismo, que adota forrnas diversas, de acordo com as d istintas


condi(6es agricoJas, jurfdicas e OS USOS particuJares r... j.'

H1st6na e CJVII1Za9Ei0 163


Assim tambem, por exemplo, a familia, em tanto forma social, an-
tecede em muito o advento do capitalismo, contudo, tendcu a ser ncle
absorvida somente como celula de consumo e de prodw;:ao de nova f(m;:a
de trabalho, perdendo seu cariiter propriarnente produtivo. Quer dizer,
houve uma readequa.;ao de uma forma social previa ao capitalismo,
readequando-a a sua "logica" intema. Cabcria acrescentar, ademais, que
os "modos de produ<;ao" (excetuando-se, talvez, economias de cao;:ado-
res/coletores muito primitivos) se implantam sobre elementos temicos e
culturais previos, frutos de todo urn processo his tori co. Desta maneira, os
"rnodos de produo;:ao" posteriores tern, necessariamente, incorporados
organicamente (e nao so residualmente) elementos de "modos de produ-
<;iio" anteriores. 0 intercambio mercantil, a apropriao;:ao privada da terra,
a propriedade privada dos meios de prodw;:ao, a forma dinheiro e, at('
mesmo, a forma capital etc., nao sao privilegio exclusivo do capitalismo.
Porem, a forma que assume cada urn desses elementos e sua peculiar
articulat;ao configura uma modalidade historica especifica da socialidade
humana que, em certos rasgos essenciais, e compartilhada por muitas so-
ciedades concretas. Nao parece necessaria, pois, propor urn emaranhado
de "modos de prodw;ao" articulados sob a egide de algum dominante
para dar conta de formao;:oes sociais espedficas, o que tenderia a diluir o
proprio conceito de "modo de produ.;ao".
f. Acumula~ao primitiva de capital - Para concluir esta descri<;ao ana-
litica das varias formas em que seria possivel periodizar a historia
latino-americana, caberia agora examinar a soluc;ao que - no meu
modesto juizo- se desprende da propria obra de Marx e que, se for
correta a analise feita ate aqui, permitiria eludir, sem complica~oes
desnecessiirias, as dificuldades apontadas para as formulac;oes an-
teriores. Em primeiro Iugar, a America Latina jii penetra no ambito
daquilo que, a partir daquele momento, poderia passar a ser chamado
de historia mundial no instante em que ja tinha sido dada a arran-
cada para a supera<;ao da modalidade feudal da organizac;ao social,
sem que, contudo, a forma capitalista, propriamente dita, se fizesse
presente. A America Latina ao integrar-se passa a ser parte constitu-
tiva indispensavel deste amplo processo de gestao;:ao do "modo de
prodw;ao" capitalista. Ainda que as formac;oes sociais ai engendradas
apos a conquista europeia guardem importantes diferenc;as entre si,

164 Hrst6rra e crvilrza~ao


'

no entanto, e indiscutivel que a marca que a "acumula<;ao primitiva"


lhes imprimiu fez com que preservassem, a despeito da multiplicidade
das culturas abarcadas, uma personalidade peculiar que at<' os elias
de hoje as identifica. Tanto faz que sobre a base destc amplo processo
encontrem-se eventos tao eli versos quanto a redu<;ao missionaria dos
guaranis (Paraguai, Brasil, Argentina e Bolivia), ou o exterminio dos
tainos nas Antilhas, ou o saqueio de grandes civilizac;oes como as do
Alto Peru ou do Vale do Mexico; tudn isso (e muita coisa mais!), em
assoda<;ao aescravidao african a, conform a algo que possui uma forte
liga<;ao intema. Encomiertdas, haciendas, re1mrtimicntos, bandeiras, es-
cravidao, enfim, formas sumamente perversas e brutais de submissiio
e extra.;ao compulsoria de trabalho excedente que, apesar de todas as
diferen.;as, fazem parte de urn mesmo processo. Por esta razao para
Marx ({1983], v. 2, p. 285):
A descoberta das terras do ouro e da prata, na America, o exter-
minio, a escravidao e o enfurnamento da popu la~ao nativa nas
minas, o comec;o da conquista e pilhag:em das fndias Orlentais, a
transforma~ao da Africa em um cercado para a ca\a comercial as
peles negras marcam a aurora da era da prodw;<"io capitalista. Estes
processes idilicos sao mementos fundarnentais da acumula~ao
primitiva [... j.

Destarte, sem necessitar recorrer a urn rotulo especifico para encaixar


o que ocorreu historicamente na America Latina no periodo que medeia
entre a conquista e a consolidac;ao do capitalismo, Marx a insere no con-
texto mais amplo da "acumula<;ao primitiva do capital". A America Latina
foi, pois, parte integrante e ativa do processo, inicialmente europeu, de
transi<;ao do feudalismo ao capitalismo, participando desde o inicio, da
constitui.;ao do mercado mundial, conditio sine qua noll de funcionamento
concreto do "modo de prodw;ao" capitalista. Niio faz senti do a busca de
conceitos de "modo de prodw;:ao" que deem conta sem media<;6es das
forma<;oes sociais concretas. Os "modos de produ<;:iio" sao, a final de con-
tas, grandes parametros que servem para recortar o universo hist6rico.
''\·~· Enah1ral, portanto, que na passagem de urn para outro medeiem longos e
j';,
,, complexos periodos de transi<;:ao. Alias, a forma paradigmatica do concei-
~j: to de "modo de prodw;ao", o recorte do uniwrso histt\rico categorizado
como capitalista e amplamente estudado por Marx, e pincelado por eles,
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·~
,\.,).:
j~ H1st6na e CIVIIilaGflO 165
'

como ja foi abordado neste escrito, em seus rasgos mais gerais e abstratos.
0 conceito de "modo de produ~ao" nao pode pem1itir a compreensao cabal
de forma<;5es sociais concretas, em bora seja o ponto de partida obrigat6rio
para o estudo rigoroso do processo his tori co. Parece ocioso, portanto, pro-
curar "modos de produ~ao" particulares que deem conta imediatamente
da hist6ria colonial dos diferentes paises latino-americanos. Feudalismo
mercantilizado, escravismo colonial, capitalismo origim\rio, articula<;ao ",\

complexa de "modos de produ<;ao" etc., sao, no fun do, maneiras de for<;ar


a conceitualiza<;ao original para fazi'-la encaixar-se, sem muitas media.,;oes,
a uma realidade que persiste em sua rebeldia em deixar-se aprisionar tao
facilmente. Colocar a hist6ria Jatino-americana no roteiro da "acumula<;ao
primitiva" do capital, no contexto da transi<;ao do feudalismo ao capitalis-
mo e sua consolidao;ao, nao subtrai a especificidade das forma<;<">es sociais
concretas em sua complexidade multideterminada, senao, ao contrario,
serve de ponto de partida obrigatc\rio sem o qual as condi.;oes peculiares
pareceriam ininteligiveis .
. Visto desta maneira e abandonados os excessos da "escolastica" mar-
xistl'>ide, em parte envelhecida com a supera~ao da conjuntura politica que
a originou, mas, sobretudo, abandonado o reducionismo economicista que
o maculava desde o ben;o, o conceito de "modo de prodw;ao", entendido
como "modo de reprodu~ao", ainda pode prestar relevantes servi~os a
periodiza~ao hist6rica e aoestudo rigoroso das diferentes figuras da so-
ciedade humana, particularmente para aqueles que almejem explica~oes
,'(
amplas para o complexo lenomeno humano e nao se intimidem ante a
condena~ao "p6s-modema" das "grandes narrativas", que, em verdade,
em seu ala rninimalista amesquinhou tanto a investiga<;ao historiografi-
ca, "despolitizando-a" ao ponto de aproxima-la perigosamente da mera
fofoca ...

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