MARIOLOGIA
MARIOLOGIA
MARIOLOGIA
Um texto comea, muitas vezes, ali onde outro termina. Algo acon-
tece, no obstante, no intervalo. Entre o ponto final de um texto j ter-
minado e a letra com que se inaugura o seguinte existe uma importante
cesura. A morte , talvez, um espao em branco: o que medeia entre dois
aforismos... Entre um texto e outro vive-se uma experincia de mudan-
a, de alterao. Chega-se assim, talvez, a outra forma de ser.2
1
Mara, la mujer consagrada (Pub. Claretianas, Madrid 1979); Mara en la comunidad del Reino. Sntesis de Mariologa (Pub.
Claretianas, Madrid 1988).
2
Trias, E., La edad del espritu (Ensayos/Destino, Barcelona 1994), 11.
3
Apareceram nesse tempo alguns manuais dignos de meno: cf. M. Ponce Cullar, Mara, Madre del Redentor. Manual de
mariologa (Badajoz 1995); J. L. Bastero de Elizalde, Mara, Madre del Redentor (Univ. de Navarra, Pamplona 1995); AA.VV.
Mariologa fundamental (Secretariado Trinitario, Salamanca 1995); W. BeinertH. Petri (dirs.), Handbuch der Marienkunde, 2
vols. (Friedrich Pustet, Regensburg 1996-1997); D. Fernndez, Mara en la historia de la salvacin: ensayo de una mariologa
narrativa (PCI, Madrid 1999).
SIGLAS E ABREVIATURAS
MARIOLOGIA BBLICA
De me de um judeu marginal a Rainha do cu
Dou por ttulo desta primeira parte Mariologia bblica. Isso responde con-
vico, que depois comprovaremos passo a passo, de que Maria, a me de Jesus,
foi uma mulher que fez pensar a Igreja. Sobre ela foi sendo elaborado um discur-
so teolgico que foi e continua sendo a base e o germe de qualquer reflexo ma-
riolgica posterior. A Igreja apostlica no estava interessada em nos transmitir
unicamente notcias histricas sobre sua figura. Parece que nesse ponto sua so-
briedade foi at excessiva. A Igreja apostlica meditou a fundo sobre o significa-
do de Maria, a me de Jesus, tanto para compreender o prprio Jesus e o projeto
de Deus quanto para perceber melhor o alcance da vocao crist e eclesial.
Assim como em cristologia nos perguntamos pelo Jesus da histria e pelo
Cristo da f, em mariologia podemos e devemos nos fazer idntica pergunta:
quem foi Maria na histria, quem foi Maria na f?
O percurso que fao nessa primeira parte comea e termina fora do mundo
bblico em sentido estrito. Iniciamos essa parte com um captulo que se interroga
sobre a existncia de Maria. Dei-lhe o ttulo A me de um judeu marginal. Nele
trato da questo da existncia histrica de Maria baseado em autores no cristos
e em textos bblicos considerados como mais diretamente histricos. Concluo
essa parte com um captulo cujo ttulo pode parecer sensacionalista, mas na ver-
dade no : Maria e as deusas: o contexto religioso da sia Menor. o captulo
de engaste entre a Igreja do Novo Testamento e a Igreja dos Padres. O Apoca-
lipse, o Protoevangelho de Tiago e o contexto religioso das deusas nos situam
diante dos desafios que a teologia teve posteriormente de encarar.
***
A ME DE UM JUDEU
MARGINAL
BIBLIOGRAFIA
Alcal, M., El evangelio copto de Toms (Sgueme, Salamanca 1989); Brenner,
A., The israelite women (Sheffield 1985); Crossan, J. D., The historical Jesus. The
life of a mediterranean jewish peasant (Harper & Row, San Francisco, 1991); Eu-
sbio de Cesareia, Historia Ecclesiastica II-III; Flusser, D., Mara: la figura de la
madre de Jess desde las perspectivas juda y cristiana, em El Olivo 11 (1987), 5-18;
Gmez-Acebo, I. (ed.). Mara, mujer mediterrnea (Descle de Brouwer, Bilbao
1999); McArthur, H. K., The son of Mary, em NovT (1973), 38-58; Horsley, R.-
Hanson, J. S., Bandits, Prophets and Messiahs: Popular Movements in the time of
Jesus (Press Seabury Books, Minepolis, Winston 1985); Klausner, J., Jesus of
Nazareth. His life, times and teaching (Mcmillan, New York 1925); Kraemer, R.
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the greco-roman world (New York-Oxford 1992); Meier, J. P., Um judeu marginal.
Repensando o Jesus histrico (Imago, Rio de Janeiro 1993); Orgenes, Contre Celse,
I: em SC 132 (Cerf, Paris 1967); Scharberg, J., The illegitimacy of Jesus. A feminist
theological interpretation of the Infancy narratives (Harper & Row, San Francisco
1987); Sestieri Schazzocchio, L., Maria, donna, sposa e madre ebrea, em EphMar
44 (1994), 45-65; Stauffer, E., Jesus. Gestalt und Geschichte (Franke Verlag, Bern-
Mnchen 1957); Stefani, P., Maria figlia di Sion e le radici ebraiche di Ges: tracce
per una ricerca, em Mar 147 (1997), 17-30; Strack-Billberbeeck, Kommentar zum
Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I (Munich 1924); Tcito, Historias, li-
bro 4 (Coleccin Austral 462); Tosato, A., Il matrimonio israelitico (Roma 1982).
Captulo I. A me de um judeu marginal
1
John P. Meier, Um judeu marginal. Repensando o Jesus histrico (Imago, Rio de Janeiro 1993), 65.
2
Nasceu no ano 37 d.C. Era membro da aristocracia sacerdotal de Jerusalm. No ano 64 esteve em Roma, na presena de
Nero, para defender alguns sacerdotes, seus companheiros. Voltou para a Palestina e liderou como general uma rebelio
judaica na Galileia. Precisou se render diante de Vespasiano no ano 67 d.C. e lhe profetizou que iria ser imperador. Quando
isso aconteceu (no ano 69), foi libertado. Foi testemunha ocular da destruio de Jerusalm, tendo servido de intrprete a
Tito. Em Roma, viveu com Vespasiano. O apelativo de Flvio, acrescentado a seu nome de Josefo, deve-se ao tempo em que
conviveu com os imperadores flavianos, Vespasiano e seus dois filhos sucessores, Tito e Domiciano.
21
Mariologia bblica
na tradio crist. Os nicos autores que citam Josefo a partir do sculo II so os-
Padres da Igreja. Graas a eles sua obra foi transmitida para o Ocidente cristo3.
a) Um testemunho no cristo
Esse interesse por Flvio Josefo deve-se a razes apologticas4. O cristianismo
necessitava demonstrar aos que o taxavam de simples novidade que era uma re-
ligio com razes na Antiguidade. As obras de Josefo Antiquitates e Contra Apion
eram apresentadas como provas5. A Igreja era agora o autntico Israel. Tambm
o cristianismo tinha de explicar o sentido da morte de Jesus. Josefo narrava a
queda de Jerusalm e explicava o motivo: o pecado de Israel. Desse modo, os
cristos podiam esclarecer o motivo da morte de Jesus6. Muitas geraes crists
leram Josefo sob essa perspectiva. O relato da destruio de Jerusalm dava um
toque final ao Novo Testamento.
Por outro lado, Flvio Josefo transmitia dados que corroboravam o Novo
Testamento: o censo de Cirino, governador da Sria, a crueldade de Herodes, o
Grande, a pregao de Joo Batista, a quem Josefo admirava. Os textos referentes
a Jesus so motivo de discusso entre os especialistas. Praticamente ningum
aceita a autenticidade do texto interpolado em De Bello Judaico 2, em sua viso
eslava. Aceita-se sim mas com crtica o texto de Antiquitates livro 18, chama-
do Testimonium Flavianum, e sem reservas o texto de Antiquitates livro 20.
A objetividade histrica de Josefo foi afetada por suas alianas pessoais tanto
com o imperialismo romano quanto com a aristocracia judaica e tambm por
seu oportunismo. Temos em sua obra verses diferentes dos mesmos fatos7. Sua
obra pr-romana, defensora da elite judaica, antirrevolucionria e certamente
anticamponesa8. Josefo se opunha a qualquer movimento popular, liderado por
3
A obra foi traduzida completamente para o latim, parcialmente para o sriaco e para o aramaico, com parfrases como a de
Hegesipo (sculo II) para o latim e se fizeram adaptaes dela, como a eptome de Zonaras no sculo X. No sculo XI se fez
uma verso em russo antigo (verso eslava). Na verso eslava da Guerra dos Judeus 2,9,2 & 169, quando aparece Pncio
Pilatos, introduz-se uma interpolao crist na qual se condensam vrios acontecimentos evanglicos. A quase totalidade dos
especialistas reconhece sua inautenticidade: cf. J. P. Meier. Um judeu marginal, 65.80-81.
4
Cf. Mirelle Hadas-Lebel, Flavius Josphe. Le Juif de Rone (Fayard, 1989), 261-269.
5
Cf. Tertuliano, Apologetica, XIX,6; Orgenes, Contra Celsum, I,16; Eusbio de Cesareia, Preparatio evanglica, VIII,7,2
6
Poderia-se dizer que o atentado contra Jesus foi a causa dessas desventuras que recaram sobre o povo, porque entregaram
morte o Cristo anunciado pelos profetas: Orgenes, Contra Celsum, I,47. Esse escritor (Josefo) conta como uma multido
de trs milhes de pessoas que haviam chegado de toda a Judeia nos tempos da festa da Pscoa foi encerrada em Jerusalm
como em uma priso. Coincidiu efetivamente que, naqueles mesmos dias em que eles haviam se esforado por encher com
os sofrimentos da paixo o Salvador e Benfeitor de todos, o Cristo de Deus, eles mesmos foram reunidos como em uma
priso para receber a morte que lhes destinava a justia divina: Eusbio de Cesareia, Historia ecclesiastica, III,5.
7
Cf. Shaye Cohen, Josephus in Galilee and Rome: His Vita and development as a Historian (Columbia Studies in the Classical
Tradition 8, Leiden, Brill 1979), 51-66. Esse autor demonstra que muito difcil confiar na objetividade histrica de Josefo
devido s diversas verses que oferece dos mesmos fatos. No se deve procurar harmonizar as duas verses, nem optar por
uma delas; mas preciso fazer uma leitura crtica de todas elas, sabendo que em sua trajetria histrica Josefo passou de um
apologeta dos romanos diante dos judeus a um apologeta dos judeus diante dos romanos.
8
R. Horsley J. S. Hanson, Bandits, Prophets and Messiahs: Popular Movements in the time of Jesus (Press Seabury Books,
Minneapolis, Winston 1985), XIX-XX.
22
Captulo I. A me de um judeu marginal
9
Cf. J. B. Croissan, The historical Jesus. The Life of a mediterranean jewish peasant (Harper, San Francisco 1991), 99-100.
10
Antiquitates, 18.3.3. & 63-64.
11
Cf. a anlise detalhada, exaustiva e crtica sobre o texto, confrontada com as opinies de muitos outros autores, em J. P.
Meier, o.c., 66-77.80-94
23
Mariologia bblica
nentes do povo judeu perante Pilatos. Este o condena morte de cruz. E, todavia,
os seguidores de Jesus lhe permaneceram fiis; tanto assim que surpreendente-
mente essa tribo se mantm ativa. No mesmo livro 18, Flvio Josefo fala de Joo
Batista12; mas a ele no tem nada a ver com Jesus, de quem Josefo fala primeiro,
o que seria impensvel se se tratasse de um escrito cristo.
O nome Tiago ( Jacob, Jac) era muito comum. Josefo faz referncia a no
poucos que tm esse nome. Para especificar de quem se tratava, Josefo no ape
o nome do pai. Identifica-o por referncia a seu irmo mais conhecido, Jesus,
o chamado Messias. Desse Tiago se fala vrias vezes no Novo Testamento e
denominado o irmo do Senhor (Gl 1,19; 1Cor 9,5). Tambm Hegesipo,
historiador da Igreja do sculo II, judeu convertido, fala de Tiago, o irmo do
Senhor14. Contudo, Josefo e Hegesipo diferem no relato da morte de Tiago.
Segundo Josefo, Tiago foi apedrejado at morrer por ordem de Ananias antes de
deflagrar-se a Guerra Judaica (comeo do ano 62). Segundo Hegesipo, o mar-
trio aconteceu pouco depois do cerco de Vespasiano a Jerusalm (ano 70) e foi
perpetrado por escribas e fariseus, que arrojaram Tiago das ameias do templo de
Jerusalm e depois o apedrejaram, sendo detidos por um sacerdote; finalmente
um lavadeiro teria acabado com ele a pauladas15.
12
Cf. Antiquitates, 18,5,2 & 116-119.
13
Cf. Antiquitates judaicae, 20,9,1 & 200. Est atestado em sua verso principal que a grega. Da autenticidade desse texto
quase ningum duvida: cf. J. P. Meier, o.c., 65-67.80.
14
Eusbio, Historia ecclesiastica, 2,23.4.
15
Eusbio, Historia ecclesiastica, 2,23.3,19.
24
Captulo I. A me de um judeu marginal
Eis aqui, pois, o testemunho de Flvio Josefo, um judeu que escreveu nos anos
93-94. Diz-nos que no governo de Pncio Pilatos entre os anos 26 e 36 sur-
giu no cenrio religioso da Palestina um homem chamado Jesus, homem sbio
em atos e palavras, que atraiu a si muitos seguidores. Talvez por isso os lderes
judeus tenham-no acusado perante Pilatos. Este o condenou morte na cruz.
Apesar de uma morte to indigna, seus seguidores mantiveram sua fidelidade
a ele e ainda nos tempos de Josefo continuavam sua existncia. Seus seguidores
se denominam cristos, porque Jesus era chamado o Cristo. Um irmo seu,
Tiago, morreu apedrejado por ordem do sumo sacerdote.
2. O testemunho de Tcito
Pblio Cornlio Tcito foi senador, cnsul, governador da provncia da sia o
tero ocidental da sia Menor , orador e historiador. Viveu aproximadamente
entre os anos 56/57 e 118 d.C. Devemos a ele notcias sobre a situao da Palestina
no tempo de Jesus. Em seu livro Historias descreve os primeiros sessenta anos de
convivncia entre romanos e judeus16. Narra a morte de Herodes no ano 4 a.C.
e a diviso de seu reino em trs partes, uma para cada um de seus filhos17. Desse
tempo diz Tcito que viveram aquietados sob o imprio de Tibrio Csar18.
Onde Tcito fala de Jesus e seus discpulos em sua obra Os Anais, livro XV.
Narra ali as excentricidades e maldades de Nero, o incndio de Roma. Nesse
contexto diz:
16
No livro IV: cf. Tcito, Historias, livro IV, Coleccin Austral 462, 234-237.
17
Cf. Tcito, Historias, 5,9. Esses trs filhos foram Herodes Arquelau (etnarca da Idumeia, Judeia e Samaria desde o ano 4 a.C.
at o ano 6 d.C.; depois foi exilado para a Glia e seus territrios foram confiados a um prefeito romano), Herodes Antipas
(tetrarca da Galileia e da Pereia desde o ano 4 a.C. at 39 d.C.; foi tambm desterrado para as Glias e seus territrios foram
entregues a seu neto, Herodes Agripa I) e Herodes Filipe (tetrarca dos territrios do norte e nordeste do mar da Galileia
desde o ano 4 a.C. at o ano 33 ou 34 d.C.).
18
Tcito, Historias, livro 4; Collecin Austral 462, 235.
25
Mariologia bblica
26
Captulo I. A me de um judeu marginal
20
Cf. Orgenes, Contra Celsum I,32, ed. Marcel Borret, Origne, Contre Celse, t. I, SC 132 (Cerf, Paris 1967), 162-163.
21
J. P. Meier, Um judeu marginal. Repensando o Jesus histrico, 223.
22
Klausner cita vrias baraitas (doutrinas rabnicas antigas no includas na Mishnah) de Rabi Eliezer ben Hircano e de Rabi
Ismael (fim do sculo I e incio do II). Cf. J. Klausner, Jesus of Nazareth. His life, times and teaching (Mcmillan, New York
1925). Ethelbert Stauffer escreveu: Em um registro genealgico do ano 70 aparece Jesus como bastardo de uma mulher
casada (Jebamoth 4,13)... Os rabinos posteriores (ao evangelista Mateus) chamam Jesus, simplesmente, o filho da adltera,
o filho da prostituta (Sabbath 104b; Sanh 67a; Pes Rabbathi 100b). Eles conhecem bem o nome do pai desconhecido: Pan-
thera. J nos antigos textos rabnicos escutamos falar de Jesus ben Panthera (Tosefta Hullin 2,24, etc.): Ethelbert Stauffer,
Jesus Gestalt und Geschichte (Franke Verlag, Berne-Mnchen 1957), 23.
27
Mariologia bblica
a) Chamava-se Maria
A me de Jesus chamava-se Maria. Era um nome tipicamente hebreu: Mi-
ryam. Ela tinha o mesmo nome que um grande personagem do Antigo Testa-
mento, a irm de Moiss e de Aaro26. Aquela que vigiou o menino quando foi
23
La Mishnah. Las cuadas (Yebamoth) 4,13 (ed. preparada por Carlos del Valle). (Ed. Nacional, Madrid 1981), 442.
24
J. Jeremias, Les paroles inconnues de Jsus (Cerf, Lectio Divina, 62, Paris 1970).
25
Cf. a tradio de Josu-ben-Peragchja, b-Sanh 107b; a tradio de Ben-Stada, bShab 104b: cf. os textos em Strack-Billber-
beeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I (Mnchen 1924), 84s. Celso expressa a ideia de que
Jesus trabalhou quando adulto como operrio no Egito. Celso sabe tambm que quando menino Jesus fugiu para o Egito.
Provavelmente essa dupla permanncia no Egito seja afirmada porque a aprendizagem da bruxaria s seria possvel quando
a pessoa fosse adulta. Ulrich Luz pergunta-se: De onde procede a notcia de que Jesus trabalhou como operrio? Aqui se
entrev uma informao que no se pode entender nem como prolongamento de tradies de Mateus nem como polmica
anticrist: U. Luz, El Evangelio segn San Mateo. Mt 1-7, I (Sgueme, Salamanca 1993), 177, nota 20.
26
Amro e sua mulher Jocabed, filha de Levi, nascida no Egito, tiveram trs filhos: Aaro, Moiss e Maria, sua irm: Nm 26,59;
1Cr 5,29. Cf. Le Deaut, R., Myriam, soeur de Mos, et Marie, mre du Messie, em Biblica 5 (1964), 198-219.
28
Captulo I. A me de um judeu marginal
atirado ao Nilo e negociou com a filha do Fara a forma de cri-lo (cf. Ex 2,4-9).
Depois da passagem do mar, ela estava encabeando o canto e a dana de agra-
decimento. Era chamada Maria, a profetisa (Ex 15,20). Morreu em Cades e ali
foi enterrada (Nm 20,1). S uma vez, e em contexto muito pouco claro, aparece
outra mulher com o mesmo nome no Antigo Testamento27. No Novo Testamen-
to o nome Maria mostra-se mais comum.
No contexto da Palestina do sculo I, nomes como Maria, Jesus, Jos tinham
uma intencionalidade reacionria forte. Como se pode ver, na maior parte do
Antigo Testamento os israelitas no recebiam os nomes dos grandes patriarcas
mencionados no Gnesis e no xodo. Porm, comearam a chamar-se dessa
maneira depois do desterro, a partir da rebelio dos Macabeus contra Antoco
IV Epfanes, que reinou de 175 a 164/163 a.C. Receber um nome patriarcal ou
matriarcal significava identificar-se como autntico judeu no meio de uma socie-
dade cada vez mais helenizada por causa da reforma de Antoco.
29
Mariologia bblica
29
Martinho Lutero, Predigt vom Tage Mari Verkndigung, 23. Mrz 1521: LW 9, 627. Seu pai Joaquim a chamaria Miriam, ou
seja, tristitia, turbatio eorum, ao contemplar a pssima situao daquela terra por causa do governo arbitrrio de Herodes.
Diria: seu nome Maria, Tristeza: Martinho Lutero, Tischrede. Ergnzungen, n. 7151: LW 48, 69
30
O nome completo aparece em Dt 3,21 e Jz 2,7.
31
Flvio Josefo menciona cerca de 20 pessoas que se chamavam Josu, Jesua ou Jesus: cf. Martin Hengel, Between Jesus and
Paul (SCMA, London 1983), 187, n. 79.
32
Flon dizia que o nome Jesus significa salvao do Senhor: De mutatione nominum, 21 & 121.
30
Captulo I. A me de um judeu marginal
33
Cf. Jane Scharberg, The illegitimacy of Jesus. A feminist theological interpretation of the Infancy narratives (Harper & Row,
San Francisco: 1987), 197: cf. 164-165.
34
Cf. M. Alcal, El evangelio copto de Toms (Sgueme, Salamanca 1989), 102.
35
P45, famlia 13, minsculas 33, 472, 543, 565, 579, 700, os manuscritos em latim antigo a, b, c, e, i, r2, , aureus, muitos
manuscritos da Vulgata, trs manuscritos do copta boharico ou etope e implicitamente Orgenes no Contra Celsum 6,36.
31
Mariologia bblica
36
Harvey K. McArthur, The son of Mary, em NovT 45 (1973): cf. 38-58.
32
Captulo I. A me de um judeu marginal
Estes defendem sua legitimidade espiritual. Quando os judeus atacam Jesus, di-
zem dele que um samaritano, um heterodoxo ou cismtico.
Portanto, parece que sobre textos anteriores se projetam questes posteriores surgi-
das em mbitos judaicos hostis ao cristianismo sobre a concepo ilegtima de Jesus.
3. Me de um carpinteiro ou de um campons?
Talvez Jesus e toda a sua famlia se dedicassem, em tempo parcial, ao cultivo
da terra. Atravs de Eusbio37, Hegesipo (sculo II) conta o seguinte: o impe-
rador Domiciano, suspeitando que algum dos netos de Judas, um dos irmos de
Jesus, pudesse alegar que era descendente do rei Davi, fez-lhes um interrogatrio.
Eles lhe responderam que tudo o que tinham se reduzia a uma pequena extenso
de terra, que lavravam com suas prprias mos. Talvez isso nos transmita alguma
memria autntica da condio camponesa da famlia de Jesus. interessante
observar que cristos palestinos (como provavelmente Hegesipo) apresentavam
os descendentes da famlia de Jesus no como carpinteiros ou artesos, mas como
lavradores38. Isso poderia explicar a razo pela qual no poucas parbolas se ins-
piram no vocabulrio da agricultura, e no no da carpintaria.
Maria e Jesus viviam em uma sociedade agrria. Talvez dedicassem parte de
seu tempo ao trabalho agrcola. A identificao de Jesus com um carpinteiro
baseia-se em meio versculo (Mc 6,3a). Nem Mateus, nem Lucas identificam Je-
sus como carpinteiro. Essa profisso nunca mencionada nas pregaes de Jesus
nem em outros pontos do Novo Testamento.
A antiga palavra englobava no s as funes do carpinteiro de hoje,
mas tambm as do pedreiro, as do canteiro, as do ferreiro. No tempo de Jesus
os habitantes de Nazar no tinham condies para construir casas inteiras de
madeira, ou de prov-las com piso de tbuas. Jesus teria trabalhado em portas,
esquadrias, fechaduras de madeira, rtulas, janelas, mas tambm em peas de
mobilirio, como camas, mesas, bancos e candeeiros, bem como bas, armrios
e arcas. Justino mrtir diz que Jesus fabricava arados39. Muitas ferramentas se
construam ento com madeira. Dentro daquele contexto, ser implicava,
portanto, bastante habilidade tcnica e uma boa dose de fora muscular.
Pode-se dizer que em um principado sem importncia e dependente como a
Galileia, os verdadeiramente ricos eram pouqussimos: talvez Herodes Antipas,
seus poderosos dignitrios de corte, os proprietrios de grandes propriedades,
os mercadores e alguns supervisores de impostos e tributos. No obstante, eram
37
Historia ecclesiastica 3.20.1-3.
38
Cf. J. D. Crossan, The historical Jesus. The life of a mediterranean jewish peasant (Harper, San Francisco 1991), 124-136.
39
Dilogo con Trifn 88.
33
Mariologia bblica
40
Cf. W. F. Albright C. S. Mann, Matthew (Doubleday, Garden City 1971), 21-22, 172-173; C. S. Mann, Mark (Doubleday,
Garden City 1986), 289; R. A. Batey, Is not this the Carpenter?, em NTS 30 (1984), 249-258; G. W. Buchanan, Jesus and the
upper Class, em NovT 7 (1964-1965), 195-209.
41
Os reformadores protestantes nunca duvidaram dessa tradio eclesial.
34
Captulo I. A me de um judeu marginal
Se a investigao histrica sobre Jesus e Maria difcil, quanto mais o ser so-
bre seus parentes. De Jos se diz em Mt 1,25 que no teve relaes sexuais (no a
conheceu) com Maria at que ( ) ela deu luz um filho. A conjuno at
que em grego no implica descontinuidade a partir desse momento, ou alterao
do que se realizou at ento. Um exemplo disso o famoso salmo 109[110],1:
Disse o Senhor a meu Senhor: senta-te minha direita at que eu ponha teus
inimigos como escabelo dos teus ps. No significa que depois de serem subju-
gados os inimigos ele deixar de estar sentado direita do Pai. Segundo isto, no
obrigatrio entender a frase como se necessariamente, depois do nascimento de
Jesus, Jos e Maria precisassem ter relaes.
Mas se Mt 1,25 nos diz que Jos no teve relaes com Maria at que ela
deu luz um filho, nos diz tambm em Mt 13,55 que a me de Jesus se chamava
Maria e seus irmos eram Tiago, Jos, Simo e Judas. Unindo esses dois textos
tem-se a impresso natural de que, depois do nascimento de Jesus, Maria e Jos
tiveram outros filhos. Essa impresso se refora quando examinamos como Mt
13,55 revisa a verso de Mc 6,3 (No este o carpinteiro, filho de Maria, irmo
de Tiago, Jos, Judas e Simo? E no vivem aqui entre ns suas irms?). Marcos
no menciona Jos; s Maria como me de Jesus e os quatro e as outras como
irmos e irms de Jesus. No obstante, em Mateus a ordem diferente. Quem
carpinteiro Jos, o pai de Jesus. A ele se refere a pergunta: No este o fi-
lho do carpinteiro? (Mt 13,55). Depois fala da me e dos outros irmos como
formando um grupo separado de Jos. Mateus continua: No vivem entre ns
suas irms? (13,56). Mateus situa, pois, os irmos de Jesus junto com sua me
biolgica, no junto com seu pai legal. A me e os irmos de Jesus so mencio-
nados em outro lugar: Mt 12,46-50. D a impresso de que formam um grupo
caracterizado pelos laos de sangue.
36
Captulo I. A me de um judeu marginal
37
Mariologia bblica
III. NA MARGINALIDADE
A categoria marginalidade importante para entender quem foram Jesus e
Maria. necessrio ressaltar um dado que notavelmente histrico e que se
pode aduzir como tal. Que Jesus foi um judeu marginal e Maria tambm foi uma
mulher judia marginal. Vou fixar-me em dois aspectos: a aldeia de Nazar e a
morte de Jesus como justiado.
1. Nazar: uma aldeia marginal
Flvio Josefo, responsvel pelas operaes militares que se desenvolveram na
Galileia durante a Guerra dos judeus, cita 45 cidades da Galileia, mas nunca
menciona Nazar. Tambm o Talmud se refere a 63 cidades da Galileia, mas nem
uma s vez fala de Nazar. A primeira meno a Nazar em textos no cristos
encontra-se em uma inscrio realizada em um fragmento de mrmore proce-
dente do sculo III ou IV de nossa era51.
Das escavaes arqueolgicas realizadas em Nazar durante os anos 1955-
1960 o franciscano Belarmino Bagatti diretor delas chegou seguinte con-
cluso: Em termos cronolgicos, temos tmulos de meados da idade do bronze
(c. 2000-1500 a.C.); silos com cermicas da metade da idade do ferro (c. 900-
539 a.C.); e depois, sem interrupo, cermicas e construes que vo desde o
perodo helenstico (c. 332-63 a.C.) at os tempos atuais52. Dos estudos ar-
queolgicos se deduz que Nazar era uma aldeia muito pequena e que mesmo
na poca romana se manteve como uma aldeia profundamente judaica; que a
51
Depois da destruio de Jerusalm, no ano 70, os sacerdotes do templo sobreviventes, divididos em 24 ordens diferentes
que exerciam por turnos o servio do templo, reorganizaram-se e se instalaram em diversas cidades e aldeias da Galileia. Na
parede da sinagoga de Cesareia havia uma inscrio com a lista dessas localidades. O fragmento a que nos referimos assim
diz: Dcima oitava ordem religiosa chamada Hapizzez, instalada em Nazar.
52
B. Bagatti, Excavations in Nazareth. Vol. 1, From the Beginning till the XII Century (Franciscan Printing Press, 1969), 29-32.
38
Captulo I. A me de um judeu marginal
atividade principal dos aldees de Nazar era a agricultura, mas sem nenhum
tipo de prosperidade53.
Nazar encontra-se no extremo sul da baixa Galileia. Est construda a
mais de 300 metros de altura e tinha uma nica fonte. Estava isolada dos
caminhos mais frequentados. Nazar ocupava a categoria de aldeia dentro
das cidades da baixa Galileia. Nessa regio a cidade mais importante era
Bethshan/Citpolis, e seguiam-na como cidades menores, Sforis e Tibrias;
Cafarnaum e Magdala eram povoados. Nazar era uma aldeia e se encontrava
a uns 4 ou 6 quilmetros de Sforis. Parece que quando morreu Herodes, o
Grande, no ano 4 a.C., Sforis se transformou no centro rebelde da baixa
Galileia. Judas, filho de Ezequias, apoderou-se do arsenal real; mas, como
represlia, Quintlio Varo, procnsul da Sria, destruiu a cidade e vendeu seus
habitantes como escravos. Herodes Antipas fortificou Sforis e mudou seu
nome para Autocratoris54. Josefo descreve Sforis como uma cidade situada
no corao da Galileia, rodeada por diversas aldeias55. Por Sforis passa-
va a principal artria que cortava a Galileia na direo leste-oeste; saa de
Ptolemaida, passava por Sforis e ia terminar no mar de Tiberades. Sforis
era tambm o ponto final da estrada montanhesa que saa de Jerusalm em
direo ao norte.
Nazar no era lugar de passagem, mas no ficava distante de um dos ca-
minhos mais transitados. Nazar, pois, estava muito prxima de uma cidade na
qual havia tribunais, uma fortaleza, um teatro para trs ou quatro mil especta-
dores, um palcio, uma via com colunatas no alto da acrpole, duas muralhas,
dois mercados, arquivos, banco real, um arsenal e uma populao de cerca de 30
mil habitantes56. J. D. Crossan chega concluso de que, embora o nome de
Nazar no tenha sido citado em nenhuma das fontes fora do cristianismo, seus
camponeses viviam sombra de uma importante cidade administrativa, no meio
de uma rede urbana densamente povoada, em relao de continuidade com uma
tradio cultural helenizada... Jesus cresceu prximo de uma das vias comerciais
mais transitadas da antiga Palestina, em pleno centro administrativo do governo
provincial romano57.
53
Cf. E. Meyers J. F. Strange, Archaeology, the Rabbis, and earl Christianity: the social and historical setting of Palestinian
Judaism and Christianity (Nashville, Abingdon 1981), 56.
54
Flvio Josefo, Antiquitates Judaicae, 14; 17; 18; Id., De Bello Judaico, 1; 2. Cf. J. D. Crossan, The historical Jesus. The life of a
mediterranean jewish peasant (Harper, San Francisco 1991), 16-18
55
F. Josefo, Autobiografa, 346.
56
A. Overman, Who were the first urban christians? Urbanization in Galilee in the first century, em SBLSP (1988), 27, (Atlanta
Scholar Press, 1988), 164
57
J. D. Crossan, o.c., 19
39
Mariologia bblica
58
Cf. Flusser, D., Mara: la figura de la madre de Jess, desde las perspectivas juda y cristiana, em El Olivo 11 (1987), 5-18;
Sestieri Schazzocchio, L., Maria, donna, sposa e madre ebrea, em EphMar 44 (1994), 45-65.
40
Captulo I. A me de um judeu marginal
famlia, seu emprego, para viver errante, criando um grupo simblico e desem-
pregado, sem se preocupar com o alimento nem com as vestes. Desligou-se das
grandes crenas e prticas dos grupos religiosos judeus de seu tempo: optou pelo
celibato, no valorizou em excesso o jejum e a observncia do sbado, ops-se
totalmente ao divrcio. Ensinava como mestre sem pertencer a nenhuma escola
famosa e desafiou com seus ensinamentos os grandes mestres. Embora no princ-
pio tenha tido muito xito entre o povo, pouco a pouco foram-no abandonando,
at o ponto de que, quando o condenaram morte, muito poucos estavam ainda
do seu lado. As autoridades de Jerusalm, pertencentes aristocracia, aos grupos
intelectuais e ricos, viram-se confrontados com um homem que vinha da Ga-
lileia. Era um simples leigo, pertencia ao ambiente rural, proclamava doutrinas
novas e fazia gestos perturbadores: aparecia como um marginal do sistema.
4. A marginalidade ou liminaridade do Jesus histrico explicam tambm sua
marginalidade nas atas dos historiadores oficiais do judasmo e do Imprio Ro-
mano. Explica igualmente que seu grupo foi taxado da mesma forma e que o
cristianismo nascente fosse detestado e desprezado pelos representantes da ofi-
cialidade e dos sistemas imperiais ou judaicos.
5. A me e a famlia de Jesus s so mencionados para ofender sua figura e
sua memria. Para nada mais. Um seu irmo tambm foi justiado. Sua me foi
uma mulher infiel ao marido. A marginalidade de Jesus estende-se a sua famlia.
A sua me. Assim pode parecer tudo mais plausvel.
6. As notcias histricas que nos foram transmitidas sobre a famlia de Jesus
mostram-se especialmente interessantes quando so lidas no contexto cultural da
Palestina do sculo I. Por exemplo, os nomes familiares revelam o cunho daquele
cl familiar. Maria tinha o mesmo nome que um grande personagem do Antigo
Testamento, Miryam, irm de Moiss e de Aaro. Aquela que foi chamada Ma-
ria, a profetisa. Receber esse tipo de nome indicava uma profunda conscincia
de pertena ao povo, contrariando um ambiente helenizante e pago. Tambm
Maria impe a seu filho um nome patriarcal, profundamente identificador com
a alma do povo: Josu/Jesus. E os chamados irmos de Jesus tinham tambm
nomes patriarcais.
7. No tocante ao modo como foi concebido Jesus no temos dados histricos
confiveis que mostrem uma fonte de informao diferente dos Evangelhos de
Mateus e de Lucas. Nem mesmo Mc 6 ou Jo 8 so textos com suficiente consis-
tncia para prov-lo. Os ditos rabnicos a esse respeito, as famosas tradies ju-
daicas de Jesus ben Panthera, parecem segundo o estado atual da investigao
reaes polmicas aos dados oferecidos pelo Evangelho de Mateus.
41
Mariologia bblica
42
Captulo II
2. O prlogo cristolgico
O Evangelho de Mateus inicia com o que acertadamente se chamou de prlo-
go cristolgico3, ainda que outros o chamem evangelho da infncia. Falar de um
prlogo cristolgico no referir-se a um acrscimo acidental ou arbitrrio a uma
1
Com o aparecimento de Jesus, o Messias, Deus cumpre suas promessas a Israel. Mas Israel recusa-se a aceitar Jesus como
Messias. E, por conseguinte, o Evangelho passa para as naes: F. J. Matera, The plot of Matthews Gospel, em CBQ 49
(1987), 243.
2
Em seu excelente trabalho, Frank J. Matera distingue estes momentos: a) A chegada do Messias (Mt 1,14,11): o nascimento
de Jesus (Mt 2,1a) o cumprimento da promessa de Deus tal como aparece na genealogia (Mt 1,1-17). Citaes do Antigo
Testamento demonstram que tudo o que acontece nesse nascimento e em torno dele leva a cumprimento as velhas profecias
(cf. Mt 1,22-23; 2,6.15.17-18.23). O Messias de Deus acolhido por Jos, pelos magos e por Joo Batista; Herodes procura
mat-lo (Mt 2,16) e Satans o coloca prova para que recuse a misso recebida (Mt 4,1-11). Prope-se a pergunta: Jesus
o Messias, o Filho de Deus, sim ou no? Joo Batista o testemunha em seu ministrio proftico (Mt 3,1-12). Deus o proclama
como Filho amado no batismo (Mt 3,13-17). Satans o coloca prova e sai derrotado (Mt 4,1-11). b) O comeo do ministrio
messinico (Mt 4,1211,1): quando o Batista colocado no crcere, Jesus inicia dirigindo-se para a Galileia seu ministrio
de pregao, ensinamento e curas (cf. Mt 4,23-25; 9,35; 11,1). Enquanto as multides parecem acolher Jesus (Mt 7,28-29;
9,33), os fariseus o rejeitam (Mt 9,34). c) Crise no ministrio messinico (Mt 11,216,12): os mensageiros de Joo enquan-
to ele est no crcere introduzem uma questo decisiva: quem Jesus? Uns se oporo a ele (Mt 12,14), as multides no
o compreendero (Mt 13,13), o povo de Nazar o rejeitar (Mt 13,57), mas os discpulos compreendero que Jesus o Mes-
sias, o Filho de Deus (Mt 13,51; 14,33). d) A confisso de Pedro em Cesareia de Filipe e a caminhada do Messias sofredor
para Jerusalm (Mt 16,1320,34): a resposta definitiva pergunta pela identidade de Jesus. Pedro se converte, depois de
sua confisso, em pedra da Igreja, e a partir da Jesus anuncia sua paixo e ressurreio, como uma forma de messianismo
sofredor, que os discpulos no chegam a entender. Todos se encaminham para Jerusalm. e) A purificao do templo e a
morte e ressurreio do Messias (Mt 21,128,15). Diante desse fato as autoridades questionam o poder de Jesus. Jesus pro-
nuncia trs parbolas contra as autoridades (Mt 21,2822,14) e prediz a destruio do templo (Mt 24,1-2). acusado disso
diante do tribunal (Mt 26,61), riem-se dele por isso (Mt 27,40) e quando morre rasga-se a cortina do templo (Mt 27,51). As
autoridades no reconhecem o Messias, e por causa disso tambm o povo rejeita o Messias. f) A grande misso (Mt 28,20):
o clmax de todo o Evangelho. Jesus permite a seus discpulos anunciar o Evangelho aos gentios. Mas o leitor sabe, pelo
discurso escatolgico de Jesus (Mt 24,125,46) e pelo discurso das parbolas (Mt 13,1-52), o que suceder da Ressurreio
at a Parusia: cf. F. J. Matera, o.c., 243-253.
3
Gerhard Ludwig Mller prope com nfase, a meu ver, essa expresso para identificar o que ordinariamente costuma se cha-
mar Evangelho da Infncia. Indica-se assim de forma mais clara qual o objetivo dos captulos 12 de Mt e Lc: cf. Gerhard
Ludwig Mller, Nato dalla Vergine Maria. Interpretazione teologica (Morcelliana 1994).
46
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
4
S. Rimmon-Kenan, Narrative fiction: contemporary poetics (New Accents, London/New York 1983), 120; D. E. Smith, Narra-
tive beginnings in ancient literature and theory, em Semeia 52 (1991), 1-9.
5
Cf. F. J. Moloney, Beginning the Gospel of Matthew. Reading Matthew 1:1-2:23, em Salesianum 54 (1992), 341-359.
6
Cf. U. Luz, El evangelio segn San Mateo. Mt 1-7, I (Sgueme, Salamanca 1993); F. J. Matera, The plot of Matthews Gospel,
em CBQ 49 (1987), 246-247.
47
Mariologia bblica
7
As genealogias foram de uso frequente em Israel. Eram a forma de justificar a prpria pertena a um povo n-
made. A genealogia no , simplesmente, o privilgio de todos: implica uma famlia que tenha uma histria, e
tambm uma terra na qual tal histria se tenha desenvolvido: A. Paul, Lvangile de lEnfance selon S. Matthieu
(Paris 1968), 10.
8
S. Blanco Pacheco, Las mujeres en la genealoga mateana de Jess (Mt 1,1-17), em EphMar 43 (1993), 10-11. A genealogia
de No (Gn 5,1-32) prepara sua primeira meno, a de Moiss se oferece muito depois de seu nascimento, quando vai iniciar
sua misso (Ex 6,14ss).
9
Conta Eusbio de Cesareia que obrigou os judeus a queimar seus documentos genealgicos para que ningum pudesse
disputar-lhe o trono com cartas de legitimidade genealgica: cf. Eusbio de Cesareia, Historia ecclesiastica, 1,7,13.
10
A meu ver, a contraposio entre Davi, que gera seu filho roubando de Urias sua mulher de fato, essa a nica identi-
dade dada a Betsab, cujo nome nem mencionado , e Jos, que no participa da gerao de Jesus e decide repudiar e
separar-se de sua legtima esposa, Maria, no uma simples casualidade. A presena das quatro mulheres na genealogia
deve ser abordada de forma diferente segundo se trate das trs primeiras, Tamar, Raab e Rute, ou da quarta, a que havia
sido mulher de Urias.
11
Os exegetas sentem-se intrigados diante da genealogia de Mateus. Cada um procura contribuir com algo: cf. S. Blanco
Pacheco, Las mujeres en la genealoga mateana de Jess (Mt 1,1-17), em EphMar 43 (1993), 9-28; D. B. Bauer, The liter-
ary function of the genealogy in Matthews Gospel, em SBLASP 29 (1990), 461-463; E. D. Freed, The women in Matthews
Genealogy, em JSNT 29 (1987), 3-19; J. P. Heil, The narrative roles of the women in Matthews genealogy, em Biblica 72
(1991), 538-545.
48
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
12
Quatro mulheres pecadoras? Tamar d descendncia a seu sogro; a ao providencial mediante a qual a este se garante
a descendncia. Jud a qualifica de mais justa que eu (Gn 38,26). A Bblia louva a descendncia de seu filho Fars e a
indica a outros como exemplo (Rt 4,12). Raab a prostituta que hospeda em sua casa os enviados de Josu. A Bblia no a
critica por sua prostituio. No Novo Testamento aparece como modelo de f e de obras (Hb 11,31; Tg 2,25). Rute no tem
nenhum comportamento pecaminoso. Betsab, a mulher de Urias, comete adultrio com Davi; mas a Bblia nunca atribui
o pecado a Betsab, e sim a Davi, ladro e assassino. Mateus no d nome mulher de Urias; como se quisesse ignorar
por completo seu adultrio: cf. S. Blanco Pacheco, a.c., 21-22.
13
Das quatro mulheres, duas (Rute e Raab) so com toda certeza estrangeiras no povo eleito; sobre Betsab no temos
informao, pois o fato de estar casada com um hitita no autoriza tirar concluso alguma. Nem mesmo sobre Tamar temos
informao direta; o apcrifo Livro dos Jubileus considera-a aramaica, S. Blanco Pacheco, a.c., 22.
14
Cf. R. Le Deaut, Liturgie juive et Nouveau Testament (Rome 1965), 51. Os textos que se citam so posteriores ao Novo
Testamento: sobre Tamar est em GnR 85,9, que do Rabi Huna, aproximadamente do ano 350 (Strack-Billerbeeck, I,17),
e bMak 23b, de Rabi Eleazar, aproximadamente do ano 270 (Strack-Billerbeeck, I,17); Rabi Samuel ben Isaak, ao redor do
ano 300 em GnR 85,12 diz de Tamar: Foi o Esprito Santo que exclamou: por mim ocorreram essas coisas. Sobre Raab cf.
MidrRut 2,1 (Strack-Billerbeeck, I,21). No conhecemos documentos sobre Rute ou Betsab: cf. U. Luz, El Evangelio Segn
san Mateo (Sgueme, Salamanca 1993), 128-130.
15
Cf. a excelente sntese do tema em J. P. Heil, The narrative roles of the women in Matthews genealogy, em Biblica 72
(1991), 545.
16
Cf. J. L. Ska, Lironie de Tamar, em ZAW 100 (1988), 261-263.
17
Jud foi o quarto filho de Jac e de Lia. Quando esta o concebeu, exclamou: Dessa vez louvo a Jav, e por isso o chamou Jud
(Gn 29,35). Jud assume pouco a pouco uma funo de liderana entre seus irmos, ratificada no fim pela bno e profecia do
patriarca Jac: Jud, a ti te louvaro teus irmos, tua mo pegar pela nuca teus inimigos; inclinem-se diante de ti os filhos de teu
pai, filhote de leo Jud... No se afastar de Jud o bculo, o basto de comando de entre teus ps, enquanto no se traga o
tributo das naes (Gn 49,8-12). Mateus o ratifica ao dizer: Jac gerou Jud e seus irmos (Mt 1,2), em vez de dizer Rubem, o
primognito, e seus irmos. A primazia de Jud viu-se ameaada pela morte prematura de Her, a negligncia e morte de On e a
morte de sua esposa. Mas o portento da continuidade superou as primeiras dificuldades graas a uma mulher audaciosa: Tamar.
49
Mariologia bblica
18
Cf. Old Testament Pseudepigrapha (ed. J. H. Charlesworth, Garden City 1983.1985), 1.777-1.778; 2.43-44
19
Cf. a combinao de Mq 5,1 e 2Sm 5,2.
20
T. Jud 14,5. No livro dos Jubileus tambm se diz: Jud reconheceu que o que havia feito era mau porque se deitou com
sua nora (Jub 41,23).
50
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
21
Curiosamente, a resposta de Raab, segundo a traduo dos LXX ( ), a mesma que Maria d
ao anjo no Evangelho de Lucas.
22
Por sua f diz a Carta aos Hebreus Raab no pereceu com os incrdulos por ter acolhido amistosamente os explo-
radores (Hb 11,31). O homem justificado pelas obras e no pela f somente. Do mesmo modo, Raab, a prostituta, no
ficou justificada pelas obras dando hospedagem aos mensageiros e fazendo-os ir embora por outro caminho? (Tg 2,25):
cf. A. T. Hanson, Rahab the harlot in early christian tradition, em JSNT I (1978), 53-60.
23
Contaram-me com detalhe tudo o que fizeste com tua sogra depois da morte do teu marido, e como deixaste teu pai e
tua me e a terra em que nasceste e vieste para um povo que no conhecias nem ontem nem anteontem. Que Jav te
recompense... sob cujas asas tu vieste refugiar-te (Rt 2,11-12).
51
Mariologia bblica
antecipam a figura de Maria. Como ela, me em Belm. Acha graa aos olhos
de Jos depois do conflito. Ambas, por graa, do continuidade bno de Jud.
Tamar, Raab e Rute nos falam de Davi como o nascido de mulher. Falam,
sobretudo, de Jesus como filho de Abrao24. Graas a elas Deus continuou seu
projeto de bno em situaes difceis. Davi filho de mulheres audazes, vir-
tuosas, crentes. Elas colocam em sua vida um matiz importante de ternura e de
confiana depois de situaes enormemente complexas. Tamar, Raab e Rute an-
tecipam a figura de Maria, a me de Jesus. Nelas e nela Jesus tambm nascido
de mulher.
24
A rvore genealgica apresenta assim um matiz universalista: o texto sugere tacitamente que o Filho de Davi, o Messias
de Israel, traz a salvao para os pagos. Da tambm uma indicao interpretativa do termo Filho de Abrao em 1,1 apa-
rentemente to evidente e no obstante to notvel: o texto evoca toda a vasta tradio judaica que v Abrao como pai
dos proslitos. A virada da salvao para os pagos, um tema dominante do Evangelho de Mateus, est j sugerido em seu
primeiro texto: U. Luz, o.c, 131.
25
Urias, o hitita, no pactuava com a mediocridade: era fiel a sua condio de servidor e militar; recusou-se a entrar em sua
casa, descansar e unir-se a sua mulher enquanto a arca de Deus, Israel e Jud habitavam em tendas e estavam no campo
de batalha (cf. 2Sm 11,11). Urias foi considerado pelo Antigo Testamento como um dos valentes de Israel: cf. 2Sm 23,39;
1Cr 11,41.
26
O Testamento dos Patriarcas coloca na boca de Jud palavras que refletem o pecado de Davi: E agora, filhos meus, eu
vos ordeno que no cobiceis o dinheiro nem contempleis a beleza das mulheres. Porque foi por causa do dinheiro e da
presena atraente que me deixei seduzir pela cananeia. E sei que por essas duas coisas minha tribo est condenada ao mal
(T. Jud 17,1-3). A presena do pecado na histria do povo conduzir a um ltimo desastre: a deportao para Babilnia de
Jeconias e seus irmos (Mt 1,11).
27
A essa situao se refere o ttulo do salmo 50: quando o profeta Nat o visitou, depois que Davi havia se unido a Betsab.
52
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
o faz por temor reverencial. Salomo o filho amado por Deus, mas gerado
depois da morte do filho do pecado. Jesus o filho gerado pela fora do Esprito
Santo. Davi manda matar Urias. Jos no quer delatar Maria, nem que lhe faam
o menor dano. Davi menosprezou Jav fazendo o mal a seus olhos (2Sm 12,9).
Jos era justo e obedecia pontualmente a todas as ordens de Deus.
Mesmo com as ressalvas que apresentei entre as trs mulheres anteriores a Davi
e a quarta mulher, a esposa de Davi, as quatro mulheres aparecem na genealogia
sob o sinal comum do extraordinrio e inesperado. Nada destinava essas mulheres
a entrarem na linha dinstica de Jud, mas sim dela, por um ou outro motivo,
as quatro estavam excludas. Todas tinham impedimentos para conectar-se
com o tronco de Jud e figurar como antepassadas do Messias. No obstante, por
graa de Deus, a esto elas. Tambm elas eram filhas de Abrao!
28
Gerar na linguagem bblica significa transmitir no s o prprio ser, mas sim a prpria maneira de ser e de se comportar. O
filho imagem de seu pai. Por isso a genealogia se interrompe bruscamente no final. Jos no pai natural de Jesus, mas
somente pai legal. Isto , a Jesus pertence toda a tradio anterior, mas ele no imagem de Jos, no est condicionado
por uma herana histrica; seu nico Pai ser Deus, seu ser e sua atividade refletiro os do prprio Deus. O Messias no
um produto da histria, mas uma novidade nela. Seu messianismo no ser davdico: J. Mateos/F. Camacho, El Evangelio
de Mateo. Lectura comentada (Christiandad, Madrid 19 81 (22-23)
29
, . P. Bonnard comenta a respeito: Esse texto pressupe o nascimento virginal de Jesus, que ser nar-
rado nos vv. 18-25. Com efeito, o aoristo passivo de () com a preposio seguido de genitivo no pode
ter o significado de gerar. No h porque traduzir: na qual foi gerado Jesus.... O sentido corrente desse verbo, que deve ser
aplicado aqui, o de dar luz... Mas a forma passiva insinua e sugere a interveno de Deus e do Esprito de Deus nesse
nascimento. Existe, pois, uma ligeira diferena a respeito da narrao seguinte: a genealogia fala do nascimento milagroso,
ao passo que o v. 20 falar da conceio ou gerao milagrosa ( ): P. Bonnard, Evangelio segn San
Mateo (Christiandad, Madrid 1976), 30-31. provvel que Mateus recebesse o v. 16 da tradio. O passivo e a
manso de Maria mostram que o nascimento virginal era j um pressuposto. No aparece a ideia da adoo de Jesus por
Jos; a rvore genealgica deixa aberto o caminho pelo qual o filho de Maria o descendente de Davi. U. Luz, El evangelio
segn San Mateo. Mt 1-7, I, 132
53
Mariologia bblica
Jos, apesar disso, imps o nome. Como Raab e Rute, Jos acreditou. Por Ma-
ria e Jos, Jesus foi filho de Davi, Messias Salvador30. Graas a Maria e a Jos,
no s o Rei dos judeus, mas tambm aquele a quem prestam homenagem os
gentios, os magos do Oriente, que encontram o Menino com sua me31.
de todo original que o ltimo elo humano que d passagem para o Mes-
sias seja precisamente uma mulher. Sendo somente os homens os capacitados
para transmitir determinadas prerrogativas ou categorias, estranha a situao
de Maria no elenco genealgico. As mulheres desembocam na Mulher. A des-
cendncia delas prepara a descendncia da ltima. O feminino foi escolhido por
Deus para realizar a promessa.
Maria est grvida por obra de Esprito Santo: recorda a semente santa pro-
curada por Tamar; sobre ela pousa o Esprito, como sobre Raab; a ela o Senhor
abriu a matriz, como para Rute. Ela d continuidade descendncia de Davi,
como Betsab.
Mt 1,22 Is 7,9 TM
Ve d e : a V i r ge m ( ) Vede: a jovem (almah) est (estar)
conceber grvida
e dar luz um filho e dar luz um filho
e lhe poro o nome Emanuel. e (ela) lhe por o nome Emanuel.
30
Jesus sempre invocado como filho de Davi dentro do contexto de sua atividade curativa: cf. Mt 9,27; 12,23; 15,22; 20,30-
31; 21,9.15. Uma mulher cananeia dirigiu-se a ele invocando-o como filho de Davi e pedindo-lhe que curasse sua filha (Mt
15,22). Demonstrou uma grande f, como se emergisse nela a mulher cananeia da genealogia, Raab.
31
Cf. Mt 2,11; cf. Mt 8,11-12: viro muitos do Oriente e do Ocidente e se sentaro com Abrao, Isaac e Jac no reino.
32
Cf. Is 8,19-20.
33
Cf. 2Rs 16,3-4.
54
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
riquezas34. O profeta Isaas censurou sua conduta e lhe anunciou que a salvao
se encontrava unicamente em Jav: Se no crerdes em mim, no subsistireis (Is
7,9b). E lhe props um sinal. O rei recusou-o dizendo que no tentaria a Deus.
Isaas ento proclamou-lhe a profecia.
Devido ao contexto dinstico, parece que o filho do qual se fala aqui um
herdeiro do rei, um continuador da dinastia davdica. Discute-se sobre quem a
almah35. No texto massortico hebraico no se diz que a mulher conceba vir-
ginalmente. A profecia anuncia, em todo caso, que a dinastia davdica no estar
em perigo: que Jav manter sua promessa e que a esposa do rei conceber um
filho herdeiro36. Seu nome ser Emanuel, para indicar que Deus est com o povo
e com a casa de Davi: Deus-conosco37. A traduo dos LXX oferece algumas
mudanas importantes em relao verso hebraica:
34
Cf. 2Rs 16,8.
35
Cf. G. del Olmo Lete, La profeca del Emmanuel (Is 7,10-17). Ensayo de interpretacin formal, em EphMar 23 (1973), 345-
361.
36
Alguns opinam que a jovem ou almah poderia se referir (segundo textos assrios, babilnicos e ugarticos) a um persona-
gem cultual: a esposa ritual do rei nas cerimnias religiosas. Ela tinha uma funo anloga das sacerdotisas do Oriente
Mdio. No deveria conceber, pois um possvel fruto de suas entranhas seria um sinal ambguo, inquietador, devido a que
nele se concentraria toda a fora divina, destinada ao cosmos. Podia ser sinal malfico ou sinal benfico para o futuro do
povo: cf. R. Laurentin, Maria nella storia della Salvezza (Torino 1972), 14-15; assume a explicao de H. Lematre em um
curso dado na universidade de Angers.
37
Cf. a interpretao da almah e do Emanuel em H. Wildberger, Jesaja. Kapitel 1-12 (Biblischer Kommentar zum Altem Tes-
tament, 1972). Wildberger opina que a almah uma mulher singular, no uma coletividade (p. 289); a espera do rei (p.
291-292). Emanuel faz referncia afirmao de que Deus est de forma especial com o rei davdico (cf. 2Sm 7,9; 1Rs
1,37; Sl 89,22.25; 1Rs 11,38). O Emanuel o filho do rei. E em que consiste o sinal? Na concepo e no nascimento, mais
que no sentido que tem a imposio do nome. A almah chamar o filho Emanuel, porque tem razo para confessar e para
proclamar que Deus continua com a casa de Davi (p. 293-294).
38
Deve-se perguntar se a traduo grega que provm, como mais tarde, da metade do sculo II de almah em Is 7,14 por
pressupe j a ideia de um nascimento virginal do Messias. Essa pergunta no tem resposta. A palavra
poderia ser entendida em sentido arcaizante como no grego antigo e ser traduzida por menina jovem / mulher jovem...
O orculo pressupe a falta de uma gravidez anterior ou presente, pelo que a traduo de almah por resulta
bvia e no exige afirmar nada a respeito da concepo virginal: H. Gese, Natus ex Virgine, em Id, Vom Sinai zum Zion.
Alttestamentliche Beitrge zur Biblischem Theologie (Mnchen 1984), 145.
55
Mariologia bblica
Em todo caso, aqui aparece uma sexta mulher na qual Mateus contempla a
antecipao proftica por antonomsia de Maria.
39
Assim opina R. Pesch, Eine Alttestamentliche Ausfhrungsformel im Matthus-Evangelium, em BZ 11 (1967), 84.
56
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
refere o conflito entre Jos e a situao criada por ou em Maria (vv. 18b,c-19).
Na quinta (A) apresenta-se o conflito resolvido: Jos no a conheceu e ela deu
luz um filho; Jos lhe deu o nome Jesus. Na segunda parte (B) o evangelista
apresenta a mediao do anjo que anuncia a Jos o que sucedeu e manda acolher
Maria (vv. 20-21). Na quarta parte (B) o evangelista relata como Jos agiu em
resposta ao anjo e palavra de Deus (vv. 24-25). A parte central da percope (C)
demonstra como desse modo se cumpriu a palavra proftica de Deus: a concep-
o da virgem, que d luz o Emanuel. Essa foi a autntica gnese de Cristo.
Cristo o Emanuel. E ser chamado Jesus.
40
Recordemos dois textos do Antigo Testamento que nos falam da gnese: Gn 4,1-2 e 5,1-3. Depois o homem (adam =
solo) conheceu () Eva (vida), sua mulher ( ) e esta concebeu e deu luz ( )
Caim e disse: Eis que adquiri um homem de (com) Jav ( ). Voltou a dar luz a seu irmo Abel (Gn 4,1-2).
Este o livro da Gnese de Ado ( ): no dia em que Deus criou Ado ele o fez imagem de
Deus. Criou-os homem e mulher, abenoou-os e os chamou homem no dia de sua criao. Tinha Ado 130 anos quando
gerou () um filho, a quem ps por nome ( ) Set (Gn 5,1-3). A vida se transmite atravs da
gerao. Ao homem compete conhecer sua mulher. Ela concebe, d luz. O homem impe o nome no filho. No primeiro
texto (Gn 4,1-2) est em primeiro plano a mulher, Eva: ela concebe, d luz e diz palavras de agradecimento a Jav pelo
dom do filho. No segundo texto (Gn 5,1-3) a figura central Ado, talvez em seu sentido indefinido (de ser humano, que
inclui homem e mulher). Ele que gera um filho e lhe d o nome. Correspondeu a Deus dar nome ao casal primordial:
Chamou-os homem no dia de sua criao. Assim se inicia o livro da gnese dos homens.
57
Mariologia bblica
c) Sua me, Maria, se encontrou grvida por obra do Esprito Santo (v. 18)
O relato comea com a entrada em cena de sua me, Maria. Essa sua
carta de apresentao; no ser a esposa de Jos, mas sim ser sua me, a me de
Cristo. Todavia, no se fala de Jesus, mas sim do Cristo. Ainda no foi revelado
seu nome, e portanto este nem lhe foi ainda imposto; por isso diz a gnese de
Cristo41, ou daquele a quem Mateus denomina Cristo.
O narrador d por suposto e conhecido que o nome da me de Jesus era
Maria. Nas comunidades de Mateus no era essa mulher um personagem des-
conhecido. Bastava aludir a seu nome para saber de quem se tratava. Quando o
evangelista fixa seu olhar nela, Maria estava prometida a um homem, Jos, mas
ainda no convivia com ele. Segundo os costumes de Israel, essa promessa se ha-
via realizado solenemente, perante testemunhas42; dava-se-lhe o nome de erusin
ou esponsais. A partir daquele momento, a noiva era considerada juridicamente
como mulher do homem. Este no podia, por isso mesmo, separar-se dela sem
um ato legal ato de repdio43. Na Galileia do sculo I estavam absolutamente
proibidas as relaes sexuais entre noivos antes de passarem a conviver juntos,
isto , antes da celebrao do segundo rito matrimonial (os nisuin) que se rea-
lizava normalmente um ano depois da promessa e consistia na transferncia da
noiva para a casa do noivo. No eram to estritas as normas na Judeia, onde no
obstante Mateus situa a ao44.
O que ocorre a Maria est fora de todo o imaginvel. No que fique ile-
gitimamente grvida (de seu noivo ou de qualquer outro). Trata-se de algo
surpreendente e imprevisto45 . Ela no o procurou nem pretendeu. O que
lhe acontece a surpreende porque est fora de sua deciso 46 . O motivo dessa
situao explicado imediatamente: do Esprito Santo (
). O Esprito Santo exerce uma funo ativa: o gerado nela do
Esprito Santo. O Esprito, em todo caso, no atua como esposo. A par-
tcula empregada para expressar a ao do Esprito . Precisamente a
41
Segundo L. Sabourin, a gnese de Jesus Cristo ( ) est bem atestada nos manuscritos, mas intrinseca-
mente improvvel, porque no Novo Testamento nunca aparece Iesous Christos com o artigo determinado: cf. B. M. Metz-
ger, A Textual Commentary on the Greek New Testament (London 1971), 7s; cf. L. Sabourin, Il vangelo di Matteo. Teologia
ed Esegesi, I (Ed. Paoline, Roma 1976), 203, n. 33.
42
Cf. Ml 2,14.
43
Cf. J. Bonsirven, Le divorce dans le Nouveau Testament (Paris 1948), 21.
44
Cf. R. E. Brown, El nacimiento del Mesas. Comentario a los Relatos de la Infancia (Ed. Cristiandad, Madrid 1982), 122-123.
45
Esse o significado do verbo que Mateus utiliza ( ): encontrou-se grvida (
). Max Zerwick, tendo em considerao o fundo hebraico, prope que este verbo seja traduzido em um
sentido mais fraco que em grego: encontrar-se, sich befinden, sentir-se: em Analysis philologica Novi Testamenti Graeci
(Romae 1966), 1.
46
Jane Scharberg, The Illegitimacy of Jesus. A feminist Theological Interpretation of the Infancy Narratives (Harper & Row, San
Francisco 1987); Id., Las antepasadas y la madre de Jess, em Concilium 226 (1989), 447-457.
58
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
mesma partcula que empregou Mateus em sua genealogia cada vez que
devia indicar a atuao feminina47.
No deixa de ser curiosa a compreenso da ao do Esprito que aqui se observa.
O homem que Maria gera ser uma criatura do Esprito. De fato, no Evangelho de
Mateus, Jesus aparece como o homem sobre quem o Esprito desceu (3,16; 12,18),
que levado e movido por ele (4,1; 12,28), que batiza no Esprito Santo (3,11).
A relao de Maria com o Esprito Santo muito ntima. Nosso Salvador
no nasceu de Jos, mas do Esprito Santo e da santa Virgem48; d-se uma ad-
mirvel correlao entre o Esprito Santo e a santa Virgem49. Cristo concebido
pelo Esprito Santo e a Virgem, diz o Credo. O smbolo niceno-constantinopo-
litano o proclama assim: Incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine50.
Maria em sua maternidade tem o Esprito por agente. O Esprito realiza sua ao
criadora atravs de Maria. Maria por si s no pode ser me. Sua virgindade a faz
incapaz disso. S a atuao criadora do Esprito que o faz possvel. Maria , segundo
Mateus, o centro da atuao do Esprito quando se trata da origem do Messias e da
inaugurao, com isso, do reino de Deus e de seu novo povo. Existe uma ruptura na
linha de geraes humanas do povo. A novidade surpreende Maria. Dela e do Esp-
rito, sem outros pressupostos, nasce Cristo, o homem absolutamente novo.
Esse relato (o livro da gnese) explica segundo o primeiro evangelista a
filiao divina de Jesus e ao mesmo tempo sua condio humana. Jesus nasceu
do Esprito Santo e de Maria. No batismo, Deus o manifestou como meu
filho predileto e o Esprito desceu sobre ele (3,17). As foras demonacas e
os tentadores humanos se referiam em certas ocasies a sua filiao divina51.
Momento culminante na vida dos discpulos foi quando reconheceram Jesus,
47
Eis aqui as expresses em grego paralelizadas:
de Tamar ( ),
de Raab ( ),
de Rute ( ),
da mulher de Urias ( ),
da qual (Maria) foi gerado Jesus ( ),
do Esprito Santo ( ).
48
Eusbio de Cesareia, glogas profticas, 7,3,15-18: GCS 23,340; PG 22,533D-556B.
49
Os que desejarem crer naquele que veio devero confessar abertamente estas trs coisas: que Ele nasceu da semente de
Davi e da santa Virgem; que nele habita o Filho de Deus que existia precedentemente e no qual consistia consubstancial-
mente; que Deus seu Pai e por Ele foi enviado: Eusbio, Teologia ecclesiastica, 1,6: GCS 14,64-65; PG 24,833C-836A.
50
As partculas latinas de e ex evocam Mt 1,18.20: cf. DS 150, sendo que
o que se l em seu texto grego. No texto grego de Mt 1,18.20 emprega-se a partcula . Em outros smbolos
se encontram diferentes variantes: natus de Spiritu Sancto et Maria Virgine (DS 12,17) ou ex Maria virgine per Spiritum
Sanctum natus (DS 61; 62). Inclusive em alguns smbolos, como o smbolo niceno, falta a meno ao Esprito Santo (DS 50;
60; 125). Essas formulaes procuram explicar ou interpretar o dado bblico; percebe-se certa perplexidade no momento
de entender o modo da relao: cf. A. Ziegenaus, Die Empfngnis durch den Heiligen Geist Zur Wirkweise des Heiligen
Geistes bei der Inkarnation, em Id. (Hrg.), Maria und der Heilige Geist (Verlag Friedrich Pustet, Regensburg 1991), 75-91.
51
Cf. Mt 4,3.6; 8,29; 26,63; 27,40.43.
59
Mariologia bblica
60
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
54
e : um evento correlato se narra no captulo 2 de Mateus. Herodes congregou publicamente todos os
prncipes dos sacerdotes e escribas do povo para saber onde iria nascer o Cristo. Mas depois chamou secretamente ()
os magos (2,7b) para saber o tempo que fazia que a estrela lhes havia aparecido.
55
: em seu nimo (-): trata-se de um particpio aoristo depoente em genitivo absoluto; se a ao
permanece, o lgico teria sido um particpio presente e no aoristo.
61
Mariologia bblica
56
Mishnahh, Baba Bathra, 8,6.
57
Cf. Talmud babilonense, B.B., 134a: cf. L. Sabourin, Il vangelo di Matteo. Teologia ed esegesi (Paoline, Roma 1976), 209.
62
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
58
Cita-o umas 66 vezes. Em 43 ocasies trata-se de citaes textuais. Em 37 ocasies a citao textual est precedida por
uma introduo.
59
Nelas emprega a seguinte expresso grega: - e -: cf. Mt 1,22; 2,15.17.23; 4,14; 8,17; 12,17; 13,35;
21,4; 27,9. Todas as citaes de cumprimento de Mateus procedem dos profetas.
60
R. E. Brown, El nacimiento del Mesas (Cristiandad, Madrid 1982), 149-150.
63
Mariologia bblica
61
Para essa perspectiva e interpretao, cf. H. Wildberger, Jesaja. Kapitel 1-12, BKTA (1972), 289-294.
62
O papa Joo Paulo II, na Redemptoris Custos coloca em realce o significado teolgico do fazer de Jos. Jos fez como o
anjo lhe havia mandado. O papa descobre de maneira muito bela nessas palavras do evangelista a correspondncia ao fiat
de Maria no Evangelho de Lucas.
63
: cf. Mt 8,4, onde Jesus pede ao leproso que apresente a oferenda que Moiss prescreveu, empregando o
mesmo verbo .
64
Em espanhol, quando se diz de algo que no tem lugar at um determinado momento, entende-se que depois desse
momento j no vigora ou no. Mas, estudando o grego depois de uma negao (no... at que, no... antes que,
BAG, 335, 1a, alfa), K. Beyer... indica que em grego e em semtico tal negao frequentemente no implica nada sobre o
sucedido depois do limite desse at que, R. E. Brown, o.c., 130-131.
65
O relato da infncia de Mateus se conclui com a referncia a Jesus Nazareu, ou Nazareno. Nessa narrao est onipresente
a me, junto com Jos. O contexto de nascimento e tambm de ameaa e de morte. Provavelmente pode haver uma
influncia desse relato no do captulo 19 do quarto Evangelho. Ali tambm se alude ao Nazareno (Jo 19,19 Mt 2,23). Est
presente a me de Jesus. Faz-se referncia a ela como mulher e entregue por Jesus, como me, ao discpulo amado. Diz-se
que o discpulo, filho, a partir daquela hora, (Jo 19,27), tomou-a entre seus prprios pertences; tal
como fez Jos. No se poder estabelecer nenhuma correlao entre Jos, justo, e o discpulo amado?
64
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
de uma pessoa. Graas a Jos, Jesus filho de Davi, como ele66. curioso cons-
tatar que os que invocam Jesus como filho de Davi so os pobres, o povo: dois
cegos que pediam sua compaixo (9,27), a gente atnita depois da cura de um
endemoninhado cego e mudo (12,23), a mulher cananeia (15,22), e outros dois
cegos junto do caminho (20,30). No final de sua vida Jesus prope aos fariseus
a seguinte questo: se o Messias filho de Davi, como que Davi, movido pelo
Esprito, o chama Senhor, tal como revela o salmo 110[109],1? Com isso Jesus
procurava superar o simples ttulo davdico e coloc-lo a seu servio.
h) Concluso
Assim foi a gnese de Jesus Cristo! O grande protagonista dessa gnese foi o
Esprito Santo. Atravs dele e em Jesus, Deus se fez o Emanuel, o Deus-conosco.
A salvao e o perdo dos pecados chegaram ao povo. Por meio do Esprito a
histria da salvao no perdeu sua geometria, sua lgica salvfica. O mal que a
invadia foi superado e sublimado. A criao voltou a seu projeto originrio. O
povo no foi destrudo. A promessa a Davi no foi desmentida.
Maria aparece, antes de tudo, como a me do Messias. No um acrscimo
extrnseco genealogia, mas a sublimao por ruptura da genealogia. Como as
mulheres que a precediam, ela tornou possvel o sonho de Deus no meio da
complicao, s vezes diablica, de nossa histria. Alguns se perguntaro por que
a origem de Jesus teve de ser assim: por que a concepo virginal? Em todo caso
e para alm das respostas teolgicas, que analisaremos na terceira parte a fica
o relato de Mateus como um desafio para a vida. um relato que pode originar
outros relatos. Talvez seja muito difcil, talvez impossvel, comprovar sua conexo
total com os fatos histricos; mas certo que esse relato criou histria. Maria
aparece em todo momento levada pelo Esprito, pela lgica da vida; e depois
acolhida por Jos. a graa feita mulher-virgem-me.
Jos emerge no relato como o grande protagonista humano. Sua angstia, seu
sofrimento interior, sua deciso de repdio sem luz suficiente, fazem-nos com-
preender algo que de uma forma ou de outra se torna sempre presente em nossa
vida. Jos tambm invadido pela graa. No sonho, no momento em que era
mais receptivo, recebe a graa da revelao. O anjo do Senhor o surpreende, como
66
A filiao davdica de Jesus um dado fortemente documentado no Novo Testamento. J no final da dcada dos anos 50,
Paulo escreve aos romanos seu credo, no qual confessa Jesus nascido da semente de Davi segundo a carne (Rm 1,3).
Tambm 2Tm 2,8 se refere a outro credo antigo: Recorda-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos, descendente de
Davi. Os primeiros cristos identificaram Jesus ressuscitado com o Messias davdico, rei, entronizado. E viram na ressurreio
o cumprimento da profecia de 2Sm 7,12-14. A pergunta mais radical seria: reconheceram os seguidores de Jesus que ele era o
filho de Davi? Podia-se naquele tempo verificar com certeza uma linha genealgica? Provavelmente isso s puderam faz-lo
algumas famlias muito aristocrticas. Mas tambm provvel que pelo entusiasmo religioso, ou o que quer que fosse, alguns
discpulos chamaram Jesus filho de Davi. Mateus apresenta esse ttulo na boca dos que o seguiam, fala-nos em duas oca-
sies de dois cegos que assim lhe suplicaram (Mt 9,22; 20,30-31), da mulher cananeia (Mt 15,22), e das crianas no templo
(Mt 21,9.15). Em outra ocasio diz que o povo se perguntava: No ser este o filho de Davi? (Mt 12,23).
65
Mariologia bblica
67
O limite entre magos, astrlogos e teurgos fluido... A valorizao dos magos geralmente positiva, coisa compreensvel
devido grande estima de que gozava ento a sabedoria oriental: U. Luz, o.c., 163.
68
Cf. J. D. Crossan, O Jesus histrico. A vida de um campons judeu do mediterrneo (Imago, Rio de Janeiro 1994), 173-
193.
69
: algumas ms tradues falam do recm-nascido rei dos judeus. Esse detalhe no est expresso no texto, pelo que
no se deve deduzir do texto que o nascimento acabara de acontecer.
70
Herodes no era um rei davdico; havia sido nomeado rei por Marco Antonio e Otvio, o futuro Csar Augusto, no ano 40
a.C.; morreu no ano 4 a.C. Era rei da Judeia sem ter nada a ver com o rei Davi.
71
O evangelista une estreitamente o rei Herodes com toda Jerusalm mediante a expresso grega ; esta mesma
expresso referida mais tarde na relao entre o Menino e Maria.
72
: Mateus diz que os discpulos de Jesus ao v-lo caminhar sobre as guas sobressaltaram-se (),
isto , sentiram-se invadidos pelo assombro, pelo estremecimento, pelo medo. E, de fato, Jesus precisou acalm-los, porque pen-
savam que era um fantasma (Mt 14,20). Tambm Lucas diz de Zacarias que estremeceu diante da apario do anjo (:
Lc 1,12). Joo o refere a Jesus, na ltima ceia, quando depois da sada de Judas estremeceu em seu esprito (: Jo 13,21).
67
Mariologia bblica
68
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
78
Cf. Is 60,6, onde o profeta fala da peregrinao escatolgica dos pagos e de seus reis para Sio; Ct 3,6; Eclo 50,8s;
Ct 5,11.13; Ex 23,34. Porm ouro, incenso e mirra nunca aparecem juntos no Antigo Testamento.
79
Segundo a interpretao de Mateus nessas cenas, Jesus, o menino-rei, o filho de Deus, a quem o Senhor chama do Egito:
(2,15). Junto dele est a me, sem nome prprio; a me do Filho de Deus.
69
Mariologia bblica
O xodo adquire nas circunstncias que rodeiam as origens de Jesus uma nova
e definitiva tonalidade80. Providencialmente, em uma situao cheia de amargura
e rejeio, o filho de Deus, nascido do Esprito e da Virgem me, tem de fugir
para o Egito. O Egito paradoxalmente se transforma em lugar de refgio, ao passo
que a cidade santa de Jerusalm e a terra de Jud se converteram em territrio de
ameaas e de morte. O que pareceria uma enorme desventura transforma-se para
Mateus na grande culminao do xodo. O menino-rei, filho de Deus, a me do
filho de Deus e o novo Moiss, Jos, o esposo de Maria, sero introduzidos por
Deus no xodo. Vo realiz-lo de forma nova e definitiva. Pode-se dizer que no
s o povo de Israel nos tempos de Moiss viveu a experincia. O xodo estava in-
completo. Jesus e sua me, conduzidos por Jos como se fosse um novo Moiss
ou um novo Josu o levariam culminao. Tal a fora do xodo nesse relato
de Mateus, que as palavras que Jav diz a Moiss em Madi: Vai, volta ao Egito,
porque todos aqueles que atentavam contra a tua vida esto mortos (Ex 4,19),
Mateus as pe textualmente na boca do anjo, porm ordenando a Jos que se en-
caminhe do Egito para a terra de Israel. A obedincia de Moiss a Jav, paralela
de Jos, ressaltam nestas palavras: Tomou, pois, Moiss sua mulher e seu filho e,
montando-os sobre um asno, voltou para a terra do Egito (Ex 4,20).
A fuga motivada pela atroz iniciativa de Herodes, que, j prximo de sua mor-
te, decide matar todos os meninos da regio de Belm menores de 2 anos. O falso
rei dos judeus demonstra desse modo at onde chega sua maldade. Ataca o prprio
Israel. Esse fato recorda ao evangelista a lamentao da me antepassada, Raquel.
Raquel era pastora, filha de Labo e irm de Lia. Jac se enamorou dela. Mas
era estril (Gn 29,31). Deus se recordou de Raquel e lhe abriu o seio (Gn 30,22).
Teve um filho chamado Jos. Mas, ao ter o segundo, prximo de frata, Raquel
teve um mal de parto e morreu (Gn 35,16.19). Foi sepultada no caminho de
frata, ou seja, em Belm (Gn 35,19). Jac erigiu uma estela sobre seu sepulcro:
a estela do sepulcro de Raquel at hoje (Gn 35,20; cf. Gn 48,7). Segundo outra
tradio, o sepulcro de Raquel no se encontra em Belm, mas sim nos confins de
Benjamim, em Ram, ao norte de Jerusalm (1Sm 10,2), a uns 17 quilmetros. O
evangelista Mateus parece no distinguir ambas as tradies e as une.
Raquel era venerada como uma das grandes mulheres que edificaram a casa
de Israel. Quando louvaram Booz por sua mulher Rute, precisamente em Belm,
recordaram Raquel com estas palavras: Faa Jav com que a mulher que entra
em tua casa seja como Raquel e como Lia, as duas que construram a casa de
Israel. Torna-te poderoso em frata e s tu famoso em Belm (Rt 4,11).
80
Cf. para esse bloco o sugestivo e fundamentado artigo de A. Aparcio Rodrguez, La madre del pueblo en el anti-xodo y en
el nuevo Exodo. Mt 2,13-23, em EphMar 43 (1993), 61-78.
70
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
[...] a me do povo, chora seus filhos que vo para o desterro; chora pelo
povo destrudo... O pranto de Raquel ressoa como lamentao proftica
pelo Israel infiel... Quando se houver consumado o tempo do castigo,
ter soado a hora do retorno do Egito, do novo xodo. Enquanto isso, o
povo exilado o menino e a me tem de permanecer no Egito. O povo
exilado tem de viver toda a histria do povo santo, que Mateus reproduz
em miniatura geogrfica (Belm-Egito-Ram). Raquel, portanto, a
me do povo e, como tal, levou em seu seio todos os filhos que nasceram
dela ao longo dos sculos. De modo semelhante, a me que desce para
o Egito pode muito bem ser a me do novo povo.81
81
A. Aparicio Rodrguez, a.c., 73.
82
A. Aparicio Rodrguez, a.c., 74.
71
Mariologia bblica
No ser esta a ltima ameaa vida de Jesus. No relato da paixo, Jesus ser
condenado morte pelo povo, aulado pelos sacerdotes e ancios do povo. Pilatos
os situar diante de uma alternativa: ou Jesus ou Barrabs (o filho do Ab). Nessa
ocasio se salvar Barrabs. Jesus ser entregue morte. O rei dos judeus cum-
priu sua misso. Inaugurou o Reino. Agora se encaminha para a morte. Porm,
enquanto ele morre, muitos corpos de santos que tinham morrido ressuscitaram
e, saindo de seus sepulcros, entraram na cidade santa e apareceram a muitos (Mt
27,51-53). O centurio romano reconhece e confessa que o rei dos judeus cru-
cificado era o Filho de Deus (Mt 27,54). Nesse xodo seguiram Jesus muitas
mulheres, entre elas Maria Madalena e Maria de Tiago e outras duas, que so
mes: a me de Jos e a me dos filhos de Zebedeu (Mt 27,55-56). E emerge a
figura de outro Jos, tambm discpulo, que pede o corpo de Jesus para envolv-lo
em um lenol limpo e coloc-lo em um sepulcro novo escavado na rocha
(Mt 27,57-58).
O menino, sua me e Jos estabelecem-se no Egito, mas como peregrinos,
instavelmente, at nova ordem. Quando chega a nova ordem, Jos se coloca a
caminho com eles para a terra de Israel.
O regresso do Egito tem como objetivo a terra de Israel, a terra do povo que
ser lugar de sua misso. Se exigssemos de Mateus preciso histrica, no com-
preenderamos como Jos, por medo de Arquelau, o filho de Herodes, dirigiu-se
Galileia, onde quem governava era Herodes Antipas, o futuro assassino de Joo
Batista e tambm filho de Herodes. A soluo encontrada no era melhor. Jos
parece ter um estranho senso de segurana.
Parece que Mateus tinha de introduzir, seja como for, Jesus em Nazar e ex-
plicar o que era um dado tradicional, anterior a sua introduo cristolgica. Que
Jesus era com razo chamado Jesus de Nazar. Uma crux interpretum a aluso
ao que haviam dito os profetas: Ser chamado nazareno (Mt 2,23). Tratava-se
de uma citao bblica buscada por Mateus; devido a ele s conhecer a verso dos
LXX, esta s podia ser Jz 13,5.7 e 16,17. Se se tratasse de uma citao bblica
83
A. Aparicio Rodrguez, a.c., 75.
72
Captulo II. A Me do Rei dos judeus
84
U. Luz, El Evangelio segn San Mateo. Mt 1-7, vol. 1 (Sgueme, Salamanca 1993), 183.
73
Mariologia bblica
Esprito santo e a santa virgem. Maria virgem, movida pelo Esprito Santo, para
Mateus a gnese e o smbolo da filiao divina de Jesus e ao mesmo tempo de
sua condio humana. Jesus nasceu do Esprito Santo e de Maria; por isso ele,
o crucificado, era verdadeiramente o filho de Deus: do Esprito Santo.
8. Uma vez estabelecida a origem divino-humana de Jesus e Maria como
ponto de interseo e catalisador de tantos elementos de gnese, divinos e huma-
nos, Mateus concentra sua ateno na casa de Belm, sede do nascido rei dos ju-
deus, lugar sobre onde paira a estrela vista no Oriente. Nessa sede est o menino
rei junto com sua me. Na Belm de Raquel, de Ruth, de Noemi e de Booz, de
Davi, tem sua casa o novo e definitivo herdeiro. Junto dele est a rainha-me.
9. Mas o ilegtimo ocupante do trono de Davi em Jerusalm, apesar de sua
decrepitude e proximidade da morte, teme. Quando est para morrer, sobressal-
ta-se por aquele que nasceu. Alia-se com Jerusalm contra aquele que est aliado
profundamente com sua me. Comea a executar um programa de perseguio e
morte do menino. A providncia de Deus age. Jos, que aparece trs vezes agra-
ciado por sonhos nos quais Deus lhe revela sua vontade providente por meio de
seu anjo, obedece e se converte no guia seguro. Como um novo Jeremias, vai para
o Egito com o smbolo do povo, com a me do povo que tem de renascer. Em
troca, em Belm fica a me antepassada, Raquel, a me sem futuro, porque seus fi-
lhos esto mortos, porque para ela no existe consolo, porque ser a eternamente
sepultada. No Egito habita por um tempo a reserva messinica de Deus. O povo
alimentado, atendido, pela me. E Deus volta a repetir outra vez a faanha do
xodo, chamando do Egito seu filhinho. Outra vez Jos se transforma em um
novo Moiss. Todavia, o xodo no completo. No se pode entrar ainda na ci-
dade messinica, na Jerusalm do Reino. preciso esperar. E por isso o xodo se
amplia para a Galileia dos pagos. Para l vo o menino-rei e a me, por razes
de segurana e para cumprir a profecia de que seria chamado nazareno.
10. A me est implicada em um destino cruel. Ela assiste ao de Deus
e ao dos homens. Cumpre-lhe estar junto do menino-rei, ser seu contexto
permanente. a casa real e messinica em itinerncia. a corte do novo Reino.
Quando na vida pblica Jesus for aclamado como filho de Davi, ou reconhecido
como filho de Deus, ou condenado morte como rei dos judeus, ningum po-
der esquecer a gnese, na qual ela, Miryam, a me, teve um lugar to decisivo.
Tampouco a Jos, o justo, o obediente, o homem dos sonhos, o novo Jeremias do
antixodo, o novo Moiss do xodo.
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