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RESUMO
As teses de Dilthey sobre a especificidade das ciências humanas permane-
cem fazendo efeitos e orientando as questões metodológicas. Se o viés epis-
temológico, sobretudo nos aspectos historicistas e psicológicos, já não é
aceitável, nem por isso a distinção entre explanar relações causais e materi-
ais e compreender relações semânticas e sociais foi eliminada. A historicida-
de e a artefatualidade do ambiente humano, na sua pluralidade e diversida-
de, se impôs como fundamento incontornável. Embora se tenha avançado na
naturalização do humano, os conceitos e princípios básicos das ciências hu-
manas ainda são subsumidos nas categorias de sentido, significado, intenci-
onalidade e propósito, as quais pressupõem a aplicação do conceito de agen-
tes interativos e não de objetos passivos.
Palavras-chave: Dilthey, artefatualidade, historicidade, pluralismo,
humanidade
ABSTRACT
Dilthey's theses on the specificity of the human sciences continue to have
effects and guide methodological issues. If the epistemological bias, especi-
ally in the historicist and psychological aspects, is no longer acceptable, this
does not mean that the distinction between explaining causal and material
relations and understanding semantic and social relations has not been eli-
minated. The historicity and artifactuality of the human environment, in its
plurality and diversity, has become an unavoidable foundation. Although
there has been progress in the naturalization of the human, the concepts and
basic principles of the human sciences are still subsumed in the categories
of sense, meaning, intentionality and purpose, which presuppose the appli-
cation of the concept of interactive agents and not of passive objects.
Key-words: Dilthey, artifactuality, historicity, pluralism, humanity
1
https://doi.org/10.51359/2357-9986.2023.258419
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Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected]. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0377-3987.
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contingencialidade. A própria filosofia era por ele praticada como uma con-
sideração articuladora das disciplinas teóricas e das práticas históricas na
busca incessante e interminável de apreender o sentido das experiências e a
estruturalidade dos eventos mundanos. Ainda jovem, Dilthey caracterizou a
filosofia como uma “ciência experimental dos fenômenos espirituais”
(1924/GS. V, p. 27) e na sua maturidade se referia à atividade filosófica com
a palavra alemã “Besinnung” que tanto indica a reflexão teórica quanto a
orientação prática reflexiva no plano dos sentidos e significados.
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Nas últimas obras, após ter aderido a explicações idealizadas sob in-
fluência de Husserl, as considerações sociológicas e pragmáticas se so-
brepõem à consideração psicologizante das primeiras obras. Com efeito, se
nas primeiras obras, sobretudo Introdução às Ciências do Espírito (1883) e
Ideias para uma Psicologia Analítica e Descritiva (1894), a Psicologia era o
fundamento das ciências humanas, sobretudo pela distinção metodológica
entre experiência interior e experiência exterior, com o primado da primeira
sobre a segunda, já nas últimas obras, Aufbau (1910) e Weltanschauungen
(1911), Dilthey estabelece uma abordagem a partir dos conceitos de espírito
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minadas. Para Dilthey, isso também precisa ser enfrentado, mas de modo al-
gum eliminado. A sua solução era pensar que as ciências humanas precisa-
vam apenas estabelecer e descrever padrões ou “tipos, linhas de
desenvolvimento e regras de transformações” (DILTHEY, 1992, p. 119).
Mas, para ele, essas regularidades não estancam as transformações: “toda a
fixação é apenas provisória” (p. 120), o que indica sua fidelidade ao fundo
evolutivo-histórico da condição humana.
A conclusão é direta: “A religião e a filosofia buscam firmeza, força
atuante, dominação, validade universal. Mas, a humanidade não avançou
um passo sequer por este caminho” (DILTHEY, 1992, p. 120). O próprio
Dilthey, embora admitisse o fato da diversidade e da multiplicidade, buscou
uma saída nos conceitos de vida, conexão estrutural e de natureza humana, o
que o leva a se contradizer. A questão é que ele assume que a “vida propor-
ciona deste modo a si, a partir de cada indivíduo, o seu próprio mundo”
(DILTHEY, 1992, p. 112) e na mesma página afirma: “assim como a nature-
za humana é sempre a mesma, também os rasgos fundamentais da experiên-
cia da vida são a todos comuns”. No entanto, ainda assim, a sua conclusão é
que o fundamento da diversificação e da pluralidade é a própria história e,
em última instância, a própria vida, cuja categoria básica é a de agente ativo,
e não a de objeto passivo. Por isso, o que resta da reflexão histórico-compa-
rativa é uma “multiplicidade de sistemas” (p. 135) que se deixa comparar
em termos de tipos, mas não se deixa fixar definitivamente. A história é
múltipla e diversificante, assim como sua base, a vida. Esta conclusão esta-
beleceu a diretriz principal do pensamento filosófico do século XX e está na
base do pós-modernismo, do relativismo cultural e do multiculturalismo, e
hoje do pluralismo epistemológico e antropológico.
O ponto decisivo na teoria de Dilthey é a tese “a estrutura é tudo”
(1982/GS XIX, p. 446). Por “estrutura”, porém, Dilthey entendia um concei-
to descritivo, não-substancial, capaz de apreender tanto a dinâmica interna
quanto a diferenciação de uma entidade ao longo de seu processo transfor-
macional, tal como esse conceito era utilizado na biologia do século XIX.
Este conceito permite ao filósofo e historiador conciliar o psicologismo com
o objetivismo necessário às ciências. O princípio fenomenológico, segundo
o qual tudo é dado na experiência interna, pois a própria experiência externa
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são plena, completa e, por isso, passível de uma apreensão objetiva, a exege-
se se consuma na interpretação dos resíduos da existência humana contidos
na escrita”, o que o leva a concluir que as ciência humanas estão fundadas
em operações filológicas e que “a ciência dessa arte é a hermenêutica” (DIL-
THEY, 2010, p. 200).
A questão levantada por Dilthey supõe que os objetos das ciências
humanas seriam constituídos pelas exteriorizações e expressões dos indiví-
duos históricos particulares, enquanto dotadas de sentido, na sua concretude,
e ele pergunta então pela validação científica em termos de como a com-
preensão desses objetos particulares poderia pretender uma validade univer-
sal. Nas suas obras iniciais, Dilthey adotara um modelo psicológico, no
sentido de que esta compreensão seria uma forma de apreensão de algo
psíquico, as vivências e as cogitações do agente ou do autor, por meio da in-
terpretação de uma exteriorização na forma de um sinal ou expressão que
poderia ser apreendido pela sensibilidade. O procedimento estava baseado
na suposição de uma analogia, pela qual apreendemos a experiência do ou-
tro e sua expressão por similaridade com nossas próprias experiências e suas
expressões. Nisso se mostrava o entendimento e a recepção das teorias da
compreensão hermenêuticas do século XIX, enquanto estas supunham uma
comunidade empática entre todos os humanos, o que habilitaria o intérprete,
ou o historiador, a reconstruir a experiência interior que deu origem à ex-
pressão ou à ação. O método da interpretação psicológica permitia às ciên-
cias humanas “unificarem o seu procedimento metodológico” (RÖMER,
2016, p. 87) e concomitantemente distinguirem-se em relação às ciências da
natureza. Pois, ele abria o âmbito do vivido e do sentido, para além do âmbi-
to do percebido, ou seja, o âmbito dos sentidos e significados humanos para
além dos fatos e eventos da naturais. O âmbito do vivido e do sentido, repa-
ra criticamente Dilthey, apenas surge “na medida em que estados humanos
são vivenciados, em que esses estados ganham expressão em manifestações
vitais e essas expressões são compreendidas” (DILTHEY, 2010, p. 28). Em-
bora o conceito de vivência esteja vinculado diretamente ao psiquismo indi-
vidual, o que implicaria um problema para a compreensão por outrem,
Dilthey contrapõe a esse fato um procedimento objetivo, equivalente no mo-
delo hermenêutico de Schleiermacher à interpretação gramatical, reformu-
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ria de sentido e significado, na busca de integrar sob uma única visada me-
todológica o inteiro domínio das ciências humanas. Na sua base está o pos-
tulado de que esse âmbito é constituído pelas “exteriorizações da vida”
enquanto estas são “expressão de algo espiritual” (DILTHEY, 2010, p. 185).
Dilthey subdividiu em três classes tais manifestações. A primeira classe é
formada por conceitos, juízos e construções do pensamento, que constituem
os componentes da ciência destacados e abstraídos da vivência, e conforma-
dos por critérios de adequação à norma lógica, possuindo assim um caráter
fundamental geral e comum. Nesse caso, a compreensão está dirigida para o
conteúdo do pensamento que é sempre igual em cada conexão, permitindo
assim uma compreensibilidade “mais perfeita do que em relação a toda e
qualquer outra manifestação da vida” (DILTHEY, 2010, p.185). A segunda
classe de manifestações da vida é formada pelas ações, enquanto estas não
são propriamente dirigidas pelo interesse de comunicação e transmissão de
pensamentos. A sua compreensibilidade permite apenas suposições prová-
veis e contextuais. Nesse caso, no processo de compreensão, importa sobre-
tudo separar a situação da vida psíquica condicionada pelas circunstâncias,
que desencadeia a ação como uma sua expressão, “da própria conexão vital
na qual esta situação está fundada” (DILTHEY, 2010, p. 186). Este aspecto
determina um grau menor de compreensibilidade e um desafio maior para
uma ciência das ações e práticas humanas. As ações destacam-se em relação
ao fundo da conexão vital de uma época. Por isso, “sem explicitar o modo
como as circunstâncias, a finalidade, os meios e a conexão vital se articu-
lam nela, ela não admite nenhuma determinação universal do interior do
qual surgiu” (DILTHEY, 2010, p.186). A terceira classe de manifestações
vitais é formada pelas expressões de vivências, e Dilthey indica que estas
são os objetos privilegiados da compreensão hermenêutica já não mais base-
ada no exame psicológico, pois se trata de apreender a relação particular en-
tre a expressão, a vida vivida que é sua base e a compreensão, mas a
“expressão pode conter mais da conexão psíquica do que toda e qualquer
introspecção permite reconhecer. Ela a alça das profundezas que a cons-
ciência não ilumina”. (DILTHEY, 2010, p.186).
A conexão entre o vivido, o expresso e o compreendido não é imedi-
ata e direta, pois, de uma expressão de vivência, “a relação entre ela e o ele-
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mento espiritual nela expresso só pode ser colocada com muitas reservas à
base da compreensão” (DILTHEY, 2010, p.186). Dilthey circunscreve assim
o domínio do artístico, na qual repousavam as significações mais elevadas e
que seriam os objetos privilegiados das ciências humanas. O ponto está jus-
tamente na saída da esfera do domínio do conhecimento objetivo e dos do-
mínios práticos e técnicos da ação, e no ingresso no domínio das verdades
que ultrapassam o conhecimento objetivo. Com efeito, nas grandes obras ar-
tísticas emergem conteúdos que ultrapassam a existência subjetiva e tam-
bém comunitária, ao conformar-se como expressão de uma verdade inefável
em sua inteireza: “assim, nos confins entre saber e ação, emerge uma esfera
na qual a vida se revela em uma profundidade que não é acessível à observa-
ção, à reflexão e à teoria. (DILTHEY, 2010, p.187).
Nessa passagem mostra-se de modo claro o lugar central e a relevân-
cia do conceito de vida, como base para as ciências humanas, e sua função
de delimitador das pretensões do conhecimento científico e técnico, na filo-
sofia de Dilthey. A vida como um ser que se expressa e se interpreta ininter-
ruptamente. A hermenêutica então deixa de ser apenas o método ou a ciência
dos produtos do espírito e é concebida como esse aspecto de auto-expressão
e de auto-interpretação da própria vida. A teoria da compreensão de Dilthey
permanece vinculada à ideia de comunhão espiritual entre quem compreen-
de e quem é compreendido, comunhão esta que implica a existência de pon-
tos em comum entre diferentes indivíduos e épocas, sobretudo na “forma de
pertencimento a um mesmo passado que continua presente e efetivo” (DIL-
THEY, 2010, p. 189). No estilo de vida, nos hábitos, no sistema jurídico, nas
instituições, na religião, na arte, nas ciências e na língua, essa presença efeti-
va do passado conforma uma “comunhão de ideias e de vida espiritual” e o
“compartilhamento de um ideal”, que embasaram a possibilidade da com-
preensão. Esta compreensão, em última instância, seria uma forma de reco-
nhecimento. A identidade e o ser da humanidade apenas nos são dados em
termos de suas possibilidades realizadas ao longo de sua história cujo cerne
é a constante transformação e alteração das condições vitais e sociais. A vida
humana determina-se a cada vez pelas condições históricas particulares e
concretas. Um ser humano apenas existe dentro de uma cultura historica-
mente específica. Os sentidos e significados da vida humana, as metas e ta-
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Recebido em 30/04/2023
Aprovado em 14/05/2023
REFERÊNCIAS
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