MINAYO. METODOLOGIA DE PESQUISA Cap.2 PDF
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O primeiro deles é o fato incontestável de que objeto das Ciências Sociais é histórico. As
sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação social e configurações
culturais são específicas. Elas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro
que em si traz, dialeticamente, as marcas pregressas, numa reconstrução constante do que está
dado e do novo que surge. Toda investigação social precisa registrar a historicidade humana,
respeitando a especificidade da cultura que traz em si e; de forma complexa, os traços dos
acontecimentos de curta, média e longa duração, expressos em seus bens materiais e simbólicos.
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Mas as pesquisas sociais contemporâneas precisam também compreender a
simultaneidade das diferentes culturas e dos diferentes tempos num mesmo espaço, como algo
real e que enriquece a humanidade. Isso significa compreender o global e o local, convivendo e
sendo, ao mesmo tempo, mutáveis e permanentes. Pois o ser humano é autor das instituições,
das leis, das visões de mundo que, em ritmos diferentes, são todas provisórias, passageiras,
trazendo em si mesmas as sementes de transformação.
Uma terceira característica das Ciências Sociais é que elas trabalham no nível da
identidade entre a sujeito e o objetivo da investigação. A pesquisa nessa área lida com seres
humanos que, por razões culturais, de classe, de idade, de religião ou por qualquer outro motivo,
tem um substrato comum de identidade com o investigador, tornando-os solidariamente
imbricados e comprometidos como lembra Lévi-Strauss: “Numa ciência onde o observador é da
mesma natureza que o objeto, o observador, ele mesmo, parte de sua observação” (1973. p.
215). Isso significa. segundo O pensamento de autores cøma Schultz ( 1982) que o primeiro
construto interpretativo das investigações sociais é realizado pelos próprios atores no nível do
senso comum. Por isso, é papel do pesquisador compreender essa lógica interpretativa de
“primeiro nível", uma vez que ela é potente e eficaz para fazer o mundo da vida se realizar.
Outro aspecto distintivo das Ciências Sociais é o fato de que ela é intrínseca e
extrinsecamente ideológica. Ninguém hoje ousaria negar a evidência de que toda ciência, em
sua construção e desenvolvimento, passa pela subjetividade e por interesses diversos. Nos
processos de produção do conhecimento se veiculam interesses e visões de mundo
historicamente construídos. Mas as ciências físicas e biológicas participam de forma diferente
do comprometimento social, uma vez que existe um distanciamento de natureza do físico e do
biológico em relação a seu objeto. Embora, sempre exista um imbricamento relacional entre o
pesquisador e seu objeto. Uma vez que, de um lado, o investigador depende dos artefatos
criados anteriormente por outros; e de outro ele é limitado pelo nível de desenvolvimento
desses dispositivos.
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Na investigação social, porém, a relação entre o sujeito investigador e o sujeito
investigado é crucial. A visão de mundo de ambos está implicada em todo o processo de
conhecimento, desde a concepção do objeto até o resultado do trabalho. O reconhecimento dessa
contingência é uma condição sine qua non da pesquisa que, uma vez compreendida, pode ter
coma fruto investimentos radicais no processo de objetivação (Demo, 1981) do conhecimento.
Isto é, cabe ao pesquisa. dor usar um acurado instrumental teórico e metodológico que o
municie na aproximação e na construção da realidade, ao mesmo tempo que mantém a crítica
não só sobre as condições de compreensão do objeto como de seus próprios procedimentos.
Por fim, é preciso declarar que o objeto das Ciências sociais é essencialmente qualitativo.
A realidade social é o próprio dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de
significados que transborda dela. A possibilidade de enumeração dos fatos, por exemplo, é urna
qualidade do indivíduo e da sociedade que contêm, em si, elementos de homogeneidade e de
regularidades. Essa mesma realidade é mais rica que qualquer teoria. que qualquer pensamento e
qualquer discurso político ou teórico que tente explicá-la.
Portanto, trabalhar dentro dos marcos das Ciências Sociais significa enfrentar o desafio
de manejar ou criar (ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo) teorias e instrumentos capazes de
promover a aproximação da suntuosidade e da diversidade que é a vida dos seres humanos em
sociedade, ainda que de forma incompleta, imperfeita e Insatisfatória. O acervo dessas Ciências
contempla o conjunto das expressões humanas constantes nas estruturas, nos processos, nas
relações, nos sujeitos, nos significados e nas representações.
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As regularidades desse conjunto de elementos se expressam nas abordagens
quantitativas, fazendo a junção das dimensões de extensividade e de intensividade inerentes a
todos os processos que dizem respeito aos seres vivos e, principalmente aos seres humanos.
Como lembra Kant em sua Matemática Transcendental a quantidade é, em si mesma, uma
qualidade do objeto, assim como a qualidade é um dos elementos da quantidade.
Por exemplo, quando se fala de Saúde ou Doença, observa-se que essas duas categorias
trazem uma carga histórica, cultural, política e ideológica que não pode ser contida apenas numa
forrñula numérica ou num dado estatístico, embora os estudos de ordem quantitativa apresentem
um quadro de magnitude e de tendências que as abordagens históricas e socioantropológicas nio
informam. Ambas as abordagens são importantes e o ideal no campo da pesquisa em saúde é
que sejam trabalhadas de forma que se complementam sistematicamente. Gurvitch (1955)
lembra que a realidade tem camadas que interagem e a grande tarefa do pesquisador é
compreender e apreender, além do visível, do "morfológico e do ecológico", os outros níveis
que se interconectam e tornam o social tão complexo.
Neste livro. porém, o escopo é específico: tratar do caråtet qualitativo das ciências sociais
e da metodologia apropriada para construir teoricamente o significado de Saúde e de Doença.
Conceito de Metodologia
Durante os últimos vinte anos venho tentando contribuir para superar as posturas,
muitíssimo freqüentes, de tratar se. parada.mente questões epistemológicas e instrumentos
operacionais uma vez que considero o conceito de Metodologia de forma abrangente e
concomitante: (a) como a discussåo epistemológica sobre o "caminho do pensamento" que o
tema ou o objeto de investigação requer; (b) como a apresentação ade quada e justificada dos
métodos, das técnicas e dos instn,tmentos operativos que devem ser utilizados para as buscas
relativas às indagações da investigação; (U) e como o que denominei "criatividade do
pesquisador", ou soa, a sua marca pessoal e específica na forma de articular teoria, métodos,
achados experimentais, observacionais ou de qualquer outro tipo específico de resposta às
indagações científicas.
Neste estudo, portanto, teoria e metodologia caminham juntas e vinculadas. Por sua vez,
o conjunto de técnicas que constitui o instrumental necessário para aplicação da teoria aqui é
tratado como elemento fundamental para a coerência metódica e sistemática da investigação.
Evito tanto o endeusamento teórico como a reificação da realidade empírica, por. que no
primeiro caso há um menosprezo pela dinâmica dos fatos. E no segundo, concretiza-se uma
redução da verdade à dimensão dos acontecimentos localizados. A excessiva teorização e a
improvisação de instrumentos para abordar a realidade, provenientes de uma perspectiva pouco
heurística, produzem divagações abstratas, impressionistas e pouco precisas em relação ao
objeto de estudo.
Entrar no campo da Pesquisa Social é penetrar num mundo polémico onde há questões
näo resolvidas e onde o debate tem sido perene e não conclusivo. O tema mais problemático é o
da sua própria cientificidade que deve ser pensado como uma idéia reguladora de alta abstração
e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos. Entendo que deve existir uma
unidade no mundo da ciência quando se diz que qualquer produção científica só pode ser
reconhecida quando contém teoria, métodos e técnicas de abordagem. E todo discurso teórico
deve conter conceitos, categorias, teses e hipóteses ou pressupostos. Esses são elementos
indispensáveis e universais de auto-regulação do processo de conhecimento. Mas também
entendo que a unidade científica deve ser tratada de forma complexa. incluindo a diversidade
das áreas de conhecimento, no interior das quais todo o arcabouço teórico geral se transforma
em especificidade e adequação.
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Nesse sentido, o labor científico caminha sempre em duas direções: numa, elabora
marcos teórico-metodológicos e instrumentais operativos para conseguir resultados; noutra,
inventa, ratifica caminhos, abandona certas vias, faz novas indagações e se orienta para outras
direções. Ao fazer essas trilhas, os investigadores aceitam os critérios de historicidade, de
colaboração e da única certeza possível: a de que qualquer conhecimento é aproximado, é
construído. A história da ciência revela não um a priori, mas o que foi produzido em
determinado momento histórico corn toda a relatividade que o dinamismo do processo social
requer.
Defino Pesquisa como a atividade básica das Ciências na sua indagação e construção da
realidade. É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino. Pesquisar constitui uma atitude e
uma prática teórica de constante busca e, por isso, tem a característica do acabado provisório e
do inacabado permanente. E uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se
esgota, fazendo uma combinação particular entre teoria e dados, pensamento e ação.
Compreendo como Pesquisa Social os vários tipos de investigação que tratam do ser
humano em sociedade, de suas relações e instituições, de sua história e de sua produção
simbólica. Como quaisquer fenômenos humanos, investigações sociais estão relacionadas a
interesses e circunstâncias socialmente concatenadas. Pesquisas nascem de determinado tipo de
inserção no real, nele encontrando razões e objetivos. Enquanto prática intelectual, o ato de
investigar reflete também dificuldades e problemas próprios das Ciências Sociais, sobretudo sua
intrínseca relação com a dinâmica histórica
Conceituo como Pesquisa social em saúde t odas as investigações que tratam do
fenômeno saúde/doença, de sua representação pelos vários atores que atuam no campo; as
instituições políticas e de serviços e os profissionais e usuários.
Do ponto de vista histórico, a Pesquisa Social vem carregada de ênfases e interesses mais
amplos do que seu campo específico. Alguns autores, como Schrader (1978) fazem uma revisão
dessa prática acadêmica no tempo, mostrando que ela nasceu de grupos contestadores das
desigualdades produzidas pela sociedade industrial. Seu desenvolvimento exponencial se deu na
segunda metade do século XX e muitos pesquisadores renomados como Lazarsfeld, Jahoda e
Gunnar Myrdal iniciaram suas carreiras de investigadores na busca de solução para os
problemas sociais causados pela Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos por exemplo,
ela nasceu nos jornais de crítica social, segundo o autor.
Mas não existe urna história única da pesquisa social. Na Inglaterra, por exemplo, os
antropólogos avançaram muito na compreensão de sociedades primitivas, realizando
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pesquisas de interesses dos colonizadores. No entanto, as investigações antropológicas
levantaram questöes que contrariavam os interesses da metrópole e dos seus financiadores,
trazendo à luz temas como o do relativismo cultural, do pensamento lógico dos primitivos e da
auto-suficiência de sua organização social.
A partir da Segunda Grande Guerra, com a ampliação do poder dos Estados Unidos e sob
o signo da industrialização, do crescimento económico e populacional, houve grande avanço da
pesquisa social voltada para o planejamento estratégico e para a produção de intervenções na
organização dos meios gerais de produção e de reprodução e, sobretudo, na avaliação dos
investimentos públicos e privados voltados para o desenvolvimento. Particularmente muito foi
investido no dimensionamento dos chamados problemas, sociais referentes à pobreza, à saúde,
educação e às políticas de bem-estar. O termo Pesquisa em Políticas Sociais passou a significar
um campo científico com implicações imediatas do ponto de vista de controle do Estado. A
proliferação de centros de pesquisas sociais, tanto nos países industrializados como nos
subdesenvolvidos, veio junto com o interesse do poder público de conhecer, regular e controlar
a sociedade civil ou de articular-se com ela para solucionar as mazelas sociais sempre presentes
no capitalismo e aprofundadas no atual período de pós-industrialização.
Do ponto de vista teórico e formal, existe uma classificação tradicional que divide a
Pesquisa em “ pura" e "aplicada". O investigador inglês, Bulmer (1978), questiona o reducionista
dessa classificação. Comenta que “pura ou básica" e aplicada" referem-se a uma falsa divisão do
conhecimento, uma vez que pesquisas teóricas podem tev e têm importantes conseqûëncias
práticas; e pesquisas aplicadas costumam ter implicações e contribuições teóricas. Essa
dicotomia baseia-se no modelo de tecnologia em que o cliente que paga explicita o que quer. Tal
exigência se torna inadequada às ciências sociais.
1. Pesquisa básica: preocupa-se com o avanço do conheci. mento por meio da construção
de teorias e teste delas ou também corn a satisfação da curiosidade científica. Ela não tem um
objetivo prático em seu projeto inicial, embora as desco bertas advindas dos dados gerados
possam influenciar e subsidiar tanto políticas públicas, novas descobertas, investimentos,
decisões dos homens e mulheres de negócio como avanços na consciência social.
2. Pesquisa estratégica: baseia-se nas teorias das ciências sociais, mas orienta-se para
problemas concretos, focais, que surgem na sociedade; ainda que não caibam, ao investigador,
as soluções práticas os problemas que aponta. Ela tem a finalidade de lançar luz sobre
determinados aspectos da realidade Seus instrumentos são os mesmos com que a pesquisa
básica atua, tanto em termos teóricos como metodológicos, mas sua finalidade é a ação
governamental ou da sociedade Essa modalidade seria a mais apropriada para o conhecimento e
a avaliação de problemas e políticas do setor Saúde.
3. Pesquisa orientada para problemas específicos: é uma modalidade operacional que é,
em geral, realizada dentro das instituições governamentais e não-governamentais e empresas,
visando ao conhecimento imediato. Fundamenta-se, sem necessariamente explicitá-lo, nos
conhecimentos gerados por investigações básicas. Os resultados desse tipo de pesquisa visam a
ajudar a lidar com questões práticas e operacionais.
Concluo dizendo que a Pesquisa Social não pode ser definida de forma estática ou
estanque. Ela precisa ser conceituada historicamente e entendendo-se todas as injunções
contradições e conflitos que configuram seu caminho. Por sua vez, seu âmbito de ação precisa
sair dos marcos da indisciplina e do academicismos. Sobretudo no campo da saúde a realidade a
ser abordada se apresenta sempre como uma tota lidade que envolve diferentes áreas de
conhecimento e abrange a dinâmica do mundo da vida.
E por fim, devo ressaltar ainda uma vez que o universo da pesquisa social e dos
pesquisadores vive sob o signo das contingências históricas. De lado, estão as dificuldades de
financiamento que cerceiam ou restringem as possibilidades, tanto da investigação como do
encaminhamento de conclusões. Do outro, existem questões éticas e científicas que o
investigador tem de enfrentar sobre a realidade e sobre o destino do produto artesanal que
realiza, no que diz respeito ao alcance de suas ações e ao uso social que dela possa ser feito para
a sociedade em que vive.