MINAYO. METODOLOGIA DE PESQUISA Cap.2 PDF

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Cap 2 - METODOLOGIA DE PESQUISA​. ..

SOCIAL E EM SAÚDE​……..… …..

Especificidade das Ciências Sociais

A CIENTIFICIDADE não pode ser reduzida a só uma forma de conhecer: ela


pré-contém por assim dizer, diversas maneiras concretas e potenciais de realização. A
diferenciação entre métodos específicos das ciências sociais e das ciências físico naturais e
biológicas refere-se à natureza de cada uma das áreas. Aqui se ressalta alguns pontos que
distinguem as Ciências Sociais e as tornam peculiares no campo do conhecimento dos seres
vivos, resumidos a panir de Demo (1981).

O primeiro deles é o fato incontestável de que objeto das Ciências Sociais é histórico. As
sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação social e configurações
culturais são específicas. Elas vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro
que em si traz, dialeticamente, as marcas pregressas, numa reconstrução constante do que está
dado e do novo que surge. Toda investigação social precisa registrar a historicidade humana,
respeitando a especificidade da cultura que traz em si e; de forma complexa, os traços dos
acontecimentos de curta, média e longa duração, expressos em seus bens materiais e simbólicos.
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Mas as pesquisas sociais contemporâneas precisam também compreender a
simultaneidade das diferentes culturas e dos diferentes tempos num mesmo espaço, como algo
real e que enriquece a humanidade. Isso significa compreender o global e o local, convivendo e
sendo, ao mesmo tempo, mutáveis e permanentes. Pois o ser humano é autor das instituições,
das leis, das visões de mundo que, em ritmos diferentes, são todas provisórias, passageiras,
trazendo em si mesmas as sementes de transformação.

Como consequência do primeiro princípio, pode-se dizer que a sociedade e os indivíduos


têm consciência histórica. Ou seja, não é apenas o investigador que dá sentido a seu trabalho
intelectual, mas os seres humanos, os grupos e a sociedade dão significado e intencionalidade e
interpretam suas ações e construções. As instituições e as estruturas nada mais são que ações
humanas objetivadas. De acordo com o desenvolvimento das forças produtivas e com a
organização particular da sociedade e de sua dinâmica interna, criam-se visões de mundo, com
nuanças e diferenciações relacionadas ás condições de vida e às heranças culturais, Tal
consciência se projeta no mundo da vida, assim como passa a ser registrada nos processos
eruditos de construção do conhecimento.
Goldmann (1980) introduz nas suas análises da cultura os conceitos de ​consciência
possível e de ​consciência real,​ para separar os diferentes níveis de elaboração ideológica. Essas
categorias baseiam-se no conceito marxista de ideologia, segundo o qual a sociedade tende a
perceber a dominação de forma invertida. O conceito de "consciência possível” indicaria que
determinados atores sociais superariam os níveis elementares da ideologia, conseguindo
compreender melhor e atuar positivamente diante dos processos de alienação social. No entanto,
a idéia de consciência histórica traz também embutida em si a tese que se deve sempre analisar a
contribuição de determinado ator social ou coletivo levando em conta o tempo histórico em que
viveu, pois conhecimento e sua prática são relativos aos limites das relações sociais de produção
concretas, O pensamento e a consciência são processos que, ao mesmo tempo, têm como base a
dinâmica histórica que por sua vez é influenciada pelas ideologias. As ciências sociais São
também fruto de urn tipo de "consciência possível" e fazem parte dos bens públicos e coletivos
criados historicamente, tendo por limites o desenvolvimento social
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Os pesquisadores são, dialeticamente, autores e frutos de seu tempo histórico. Crises,
conflitos e contradições tem reflexo tanto no desenvolvimento como na decadência de
pensadores e de teorias sociais. As transformações socioeconômicas e culturais, por sua vez,
influenciam decisivamente os processos internos e as condições de possibilidades do
desenvolvimento da ciência.

Uma terceira característica das Ciências Sociais é que elas trabalham no nível da
identidade entre a sujeito e o objetivo da investigação. A pesquisa nessa área lida com seres
humanos que, por razões culturais, de classe, de idade, de religião ou por qualquer outro motivo,
tem um substrato comum de identidade com o investigador, tornando-os solidariamente
imbricados e comprometidos como lembra Lévi-Strauss: “Numa ciência onde o observador é da
mesma natureza que o objeto, o observador, ele mesmo, parte de sua observação” (1973. p.
215). Isso significa. segundo O pensamento de autores cøma Schultz ( 1982) que o primeiro
construto interpretativo das investigações sociais é realizado pelos próprios atores no nível do
senso comum. Por isso, é papel do pesquisador compreender essa lógica interpretativa de
“primeiro nível", uma vez que ela é potente e eficaz para fazer o mundo da vida se realizar.
Outro aspecto distintivo das Ciências Sociais é o fato de que ela é ​intrínseca e
extrinsecamente ideológica. Ninguém hoje ousaria negar a evidência de que toda ciência, em
sua construção e desenvolvimento, passa pela subjetividade e por interesses diversos. Nos
processos de produção do conhecimento se veiculam interesses e visões de mundo
historicamente construídos. Mas as ciências físicas e biológicas participam de forma diferente
do comprometimento social, uma vez que existe um distanciamento de natureza do físico e do
biológico em relação a seu objeto. Embora, sempre exista um imbricamento relacional entre o
pesquisador e seu objeto. Uma vez que, de um lado, o investigador depende dos artefatos
criados anteriormente por outros; e de outro ele é limitado pelo nível de desenvolvimento
desses dispositivos.
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Na investigação social, porém, a relação entre o sujeito investigador e o sujeito
investigado é crucial. A visão de mundo de ambos está implicada em todo o processo de
conhecimento, desde a concepção do objeto até o resultado do trabalho. O reconhecimento dessa
contingência é uma condição ​sine qua non da pesquisa que, uma vez compreendida, pode ter
coma fruto investimentos radicais no processo de ​objetivação (Demo, 1981) do conhecimento.
Isto é, cabe ao pesquisa. dor usar um acurado instrumental teórico e metodológico que o
municie na aproximação e na construção da realidade, ao mesmo tempo que mantém a crítica
não só sobre as condições de compreensão do objeto como de seus próprios procedimentos.

Por fim, é preciso declarar que o objeto das Ciências sociais é essencialmente ​qualitativo​.
A realidade social é o próprio dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de
significados que transborda dela. A possibilidade de enumeração dos fatos, por exemplo, é urna
qualidade do indivíduo e da sociedade que contêm, em si, elementos de homogeneidade e de
regularidades. Essa mesma realidade é mais rica que qualquer teoria. que qualquer pensamento e
qualquer discurso político ou teórico que tente explicá-la.

Portanto, trabalhar dentro dos marcos das Ciências Sociais significa enfrentar o desafio
de manejar ou criar (ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo) teorias e instrumentos capazes de
promover a aproximação da suntuosidade e da diversidade que é a vida dos seres humanos em
sociedade, ainda que de forma incompleta, imperfeita e Insatisfatória. O acervo dessas Ciências
contempla o conjunto das expressões humanas constantes nas estruturas, nos processos, nas
relações, nos sujeitos, nos significados e nas representações.
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As regularidades desse conjunto de elementos se expressam nas abordagens
quantitativas, fazendo a junção das dimensões de extensividade e de intensividade inerentes a
todos os processos que dizem respeito aos seres vivos e, principalmente aos seres humanos.
Como lembra Kant em sua ​Matemática Transcendental ​a quantidade é, em si mesma, uma
qualidade do objeto, assim como a qualidade é um dos elementos da quantidade.
Por exemplo, quando se fala de ​Saúde ​ou ​Doença​, observa-se que essas duas categorias
trazem uma carga histórica, cultural, política e ideológica que não pode ser contida apenas numa
forrñula numérica ou num dado estatístico, embora os estudos de ordem quantitativa apresentem
um quadro de magnitude e de tendências que as abordagens históricas e socioantropológicas nio
informam. Ambas as abordagens são importantes e o ideal no campo da pesquisa em saúde é
que sejam trabalhadas de forma que se complementam sistematicamente. Gurvitch (1955)
lembra que a realidade tem camadas que interagem e a grande tarefa do pesquisador é
compreender e apreender, além do visível, do "morfológico e do ecológico", os outros níveis
que se interconectam e tornam o social tão complexo.

Neste livro. porém, o escopo é específico: tratar do caråtet qualitativo das ciências sociais
e da metodologia apropriada para construir teoricamente o significado de Saúde e de Doença.

Conceito de Metodologia

Começo dizendo que o próprio conceito de metodologia, foco da discussão, já é, em sim,


assunto controverso. Há quem o iguale a métodos e técnicas, como é caso da maior parte dos
manuais e textos americanos, produzidos para a formação de pesquisadores. Há quem o coloque
no campo da epistemologia, separando-o da operacionalização. como faz a maioria dos
intelectuais franceses que trabalham com teorias das ciências.
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Há quem separe teoria e método como faz o cientista americano Thomas Merton (1969) e
há os que consideram esses dois termos inseparáveis, devendo ser tratados de maneira integrada
e apropriada quando se escolhe um tema, um objeto, ou um problema de investigação. Filio-me
a este último grupo que tem em Benzin (1973) um dos mais brilhantes pensadores. Portanto,
discutir metodologia é entrar num forte debate de idéias. de opções e de práticas.

Durante os últimos vinte anos venho tentando contribuir para superar as posturas,
muitíssimo freqüentes, de tratar se. parada.mente questões epistemológicas e instrumentos
operacionais uma vez que considero o conceito de Metodologia de forma abrangente e
concomitante: (a) como a discussåo epistemológica sobre o "caminho do pensamento" que o
tema ou o objeto de investigação requer; (b) como a apresentação ade quada e justificada dos
métodos, das técnicas e dos instn,tmentos operativos que devem ser utilizados para as buscas
relativas às indagações da investigação; (U) e como o que denominei "criatividade do
pesquisador", ou soa, a sua marca pessoal e específica na forma de articular teoria, métodos,
achados experimentais, observacionais ou de qualquer outro tipo específico de resposta às
indagações científicas.

A metodologia ocupa lugar central no interior da sociologia do conhecimento, uma vez


que ela faz parte intrínseca da visão social de mundo, veiculada na teoria. Em face da dialética,
por exemplo o método é o próprio processo de desenvolvimento das coisas. Lênin comenta que
o método não é a forma exterior, é a própria alma do conteúdo porque ele faz a relação entre
pensamento e existência e vice-versa (1955, p. 146). A metodologia constitui o "caminho do
pensamento", segundo Habermas (1987), e constitui uma “prática teórica pensada", na
expressão de Bourdieu em ​Ésquisse d'une Théorie de la Pratique​ (1972).
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Isso quer dizer, trocando em miúdos. que é diferente pensar a metodologia de uma pesquisa de
inspiração funcionalista, ou marxista, ou fenomenológica ou que utilize a abordagem sistêmica,
Por sua vez. é diferente pensar o desenho e a metodologia de uma pesquisa unidisciplinar ou a
que tem caráter interdisciplinar e se fundamenta na filosofia da complexidade.

Neste estudo, portanto, teoria e metodologia caminham juntas e vinculadas. Por sua vez,
o conjunto de técnicas que constitui o instrumental necessário para aplicação da teoria aqui é
tratado como elemento fundamental para a coerência metódica e sistemática da investigação.
Evito tanto o endeusamento teórico como a reificação da realidade empírica, por. que no
primeiro caso há um menosprezo pela dinâmica dos fatos. E no segundo, concretiza-se uma
redução da verdade à dimensão dos acontecimentos localizados. A excessiva teorização e a
improvisação de instrumentos para abordar a realidade, provenientes de uma perspectiva pouco
heurística, produzem divagações abstratas, impressionistas e pouco precisas em relação ao
objeto de estudo.

Se teoria, método e técnicas são indispensáveis para a investigação social, a capacidade


criadora e a experiência do pesquisador também jogam papel importante. Elas podem relativizar
o instrumental técnico e superá-lo pela arte. O que se denomina "criatividade do pesquisador" é
algo difícil de se definir uma vez que esta expressão se refere ao campo da história pessoal e da
experiência subjetiva. Este termo é aqui usado no mesmo sentido em que Wright Mills (1972;
1974) e Denzin (1973) denominam "imaginação" e outros autores falam de "intuição”. Essa
"criatividade do pesquisador" corresponde a sua experiência reflexiva, a sua capacidade pessoal
de análise e de síntese teórica, a sua memória intelectual, a seti nível de comprometimento com
o objeto, a sua capacidade de exposição lógica e a seus interesses.
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Fazendo coro com grande número de estudiosos (Weber, 1965; Gadamer, 1999; Habermas,
1987; Myrdal, 1969; Granger, 1967; Gurvitch, 1955; Denzin 1973; dentre outros), entendo que
não se pode acreditar em ciência neutra, pois todo o processo de construção teórica é, ao mesmo
tempo, uma dialética de subjetivação e de objetivaçäo. Assim o que aqui considero "criatividade
do pesquisador" diferencia os resultados das investigações, o que pode ser constatado quando
vários trabalham têm os mesmos objetos e as mesmas indagações.

A reflexão sobre metodologia enquanto sistemática de abordagem da realidade é assunto


para pesquisadores comuns que se exercitam em seus respectivos campos de conhecimento, Os
génios não precisam desses dispositivos, pois atravessam parâmetros estabelecidos e projetam,
em poucas linhas, novos insights modificando paradigmas em seus campos científicos (Kuhn,
1962).

Conceito de pesquisa Social

Entrar no campo da Pesquisa Social é penetrar num mundo polémico onde há questões
näo resolvidas e onde o debate tem sido perene e não conclusivo. O tema mais problemático é o
da sua própria cientificidade que deve ser pensado como uma idéia reguladora de alta abstração
e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos. Entendo que deve existir uma
unidade no mundo da ciência quando se diz que qualquer produção científica só pode ser
reconhecida quando contém teoria, métodos e técnicas de abordagem. E todo discurso teórico
deve conter conceitos, categorias, teses e hipóteses ou pressupostos. Esses são elementos
indispensáveis e universais de auto-regulação do processo de conhecimento. Mas também
entendo que a unidade científica deve ser tratada de forma complexa. incluindo a diversidade
das áreas de conhecimento, no interior das quais todo o arcabouço teórico geral se transforma
em especificidade e adequação.
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Nesse sentido, o labor científico caminha sempre em duas direções: numa, elabora
marcos teórico-metodológicos e instrumentais operativos para conseguir resultados; noutra,
inventa, ratifica caminhos, abandona certas vias, faz novas indagações e se orienta para outras
direções. Ao fazer essas trilhas, os investigadores aceitam os critérios de historicidade, de
colaboração e da única certeza possível: a de que qualquer conhecimento é aproximado, é
construído. A história da ciência revela não um a priori, mas o que foi produzido em
determinado momento histórico corn toda a relatividade que o dinamismo do processo social
requer.

Defino ​Pesquisa como a atividade básica das Ciências na sua indagação e construção da
realidade. É a pesquisa que alimenta a atividade de ensino. Pesquisar constitui uma atitude e
uma prática teórica de constante busca e, por isso, tem a característica do acabado provisório e
do inacabado permanente. E uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se
esgota, fazendo uma combinação particular entre teoria e dados, pensamento e ação.

Compreendo como P​esquisa Social os vários tipos de investigação que tratam do ser
humano em sociedade, de suas relações e instituições, de sua história e de sua produção
simbólica. Como quaisquer fenômenos humanos, investigações sociais estão relacionadas a
interesses e circunstâncias socialmente concatenadas. Pesquisas nascem de determinado tipo de
inserção no real, nele encontrando razões e objetivos. Enquanto prática intelectual, o ato de
investigar reflete também dificuldades e problemas próprios das Ciências Sociais, sobretudo sua
intrínseca relação com a dinâmica histórica

Conceituo como ​Pesquisa social ​em saúde t​ odas as investigações que tratam do
fenômeno saúde/doença, de sua representação pelos vários atores que atuam no campo; as
instituições políticas e de serviços e os profissionais e usuários.

Analisando o conceito de ​pesquisa do ponto de vista antropológico, pode-se dizer que


sempre existiu a preocupação do ​Homo sapiens​ com o conhecimento da realidade. As tribos
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primitivas por meio dos mitos, já tentavam explicar os fenômenos que cercam a vida e a morte;
o lugar dos indivíduos na organização social com seus mecanismos de poder, controle,
convivência e reprodução do conjunto da existência social. Dentro das dimensões de espaço e
tempo, a religião tem sido um dos relevantes fenômenos explicativos das indagações dos seres
humanos sobre os significados da existência individual e grupal.

Hoje todas as modalidades de conhecimento convivem concomitantemente, buscando


soluções para dramas humanos e para o avanço da humanidade. Uma delas é hegemônica: a
Ciência​. As ​Ciências n​ a era moderna conseguiram se constituir como esquemas de explicações
dominantes. Nessa etapa do desenvolvimento do capitalismo pós-industrial, elas se tomaram a
força produtiva mais importante da história. Nem por isso, no entanto, seu arcabouço
explicativo exclusivo e conclusivo. Os problemas atuais dos seres humanos e da organização
social trazem questões cruciais como a fome, a migração, a violência. para as quais a ciência,
mesmo a social, continua sem resposta e sem formulações.

Do ponto de vista histórico, a Pesquisa Social vem carregada de ênfases e interesses mais
amplos do que seu campo específico. Alguns autores, como Schrader (1978) fazem uma revisão
dessa prática acadêmica no tempo, mostrando que ela nasceu de grupos contestadores das
desigualdades produzidas pela sociedade industrial. Seu desenvolvimento exponencial se deu na
segunda metade do século XX e muitos pesquisadores renomados como Lazarsfeld, Jahoda e
Gunnar Myrdal iniciaram suas carreiras de investigadores na busca de solução para os
problemas sociais causados pela Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos por exemplo,
ela nasceu nos jornais de crítica social, segundo o autor.

Mas não existe urna história única da pesquisa social. Na Inglaterra, por exemplo, os
antropólogos avançaram muito na compreensão de sociedades primitivas, realizando
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pesquisas de interesses dos colonizadores. No entanto, as investigações antropológicas
levantaram questöes que contrariavam os interesses da metrópole e dos seus financiadores,
trazendo à luz temas como o do relativismo cultural, do pensamento lógico dos primitivos e da
auto-suficiência de sua organização social.

A partir da Segunda Grande Guerra, com a ampliação do poder dos Estados Unidos e sob
o signo da industrialização, do crescimento económico e populacional, houve grande avanço da
pesquisa social voltada para o planejamento estratégico e para a produção de intervenções na
organização dos meios gerais de produção e de reprodução e, sobretudo, na avaliação dos
investimentos públicos e privados voltados para o desenvolvimento. Particularmente muito foi
investido no dimensionamento dos chamados problemas, sociais referentes à pobreza, à saúde,
educação e às políticas de bem-estar. O termo ​Pesquisa em Políticas Sociais passou a significar
um campo científico com implicações imediatas do ponto de vista de controle do Estado. A
proliferação de centros de pesquisas sociais, tanto nos países industrializados como nos
subdesenvolvidos, veio junto com o interesse do poder público de conhecer, regular e controlar
a sociedade civil ou de articular-se com ela para solucionar as mazelas sociais sempre presentes
no capitalismo e aprofundadas no atual período de pós-industrialização.

Do ponto de vista teórico e formal, existe uma classificação tradicional que divide a
Pesquisa em “​​ pura" e "aplicada". O investigador inglês, Bulmer (1978), questiona o reducionista
dessa classificação. Comenta que “pura ou básica" e aplicada" referem-se a uma falsa divisão do
conhecimento, uma vez que pesquisas teóricas podem tev e têm importantes conseqûëncias
práticas; e pesquisas aplicadas costumam ter implicações e contribuições teóricas. Essa
dicotomia baseia-se no modelo de tecnologia em que o cliente que paga explicita o que quer. Tal
exigência se torna inadequada às ciências sociais.

Bulmer (1978) propöe urna classificação alternativa de Pesquisa Social, substituindo a


divisão tradicional, As cinco modalidades, referidas abaixo, constituem, segundo o autor,
"tipos” dentro de um ​continuum,​ com o mérito de dar visibilidade e legitimidade a diferentes
formas de abordar a realidade:

1. Pesquisa básica: preocupa-se com o avanço do conheci. mento por meio da construção
de teorias e teste delas ou também corn a satisfação da curiosidade científica. Ela não tem um
objetivo prático em seu projeto inicial, embora as desco bertas advindas dos dados gerados
possam influenciar e subsidiar tanto políticas públicas, novas descobertas, investimentos,
decisões dos homens e mulheres de negócio como avanços na consciência social.
2. Pesquisa estratégica: baseia-se nas teorias das ciências sociais, mas orienta-se para
problemas concretos, focais, que surgem na sociedade; ainda que não caibam, ao investigador,
as soluções práticas os problemas que aponta. Ela tem a finalidade de lançar luz sobre
determinados aspectos da realidade Seus instrumentos são os mesmos com que a pesquisa
básica atua, tanto em termos teóricos como metodológicos, mas sua finalidade é a ação
governamental ou da sociedade Essa modalidade seria a mais apropriada para o conhecimento e
a avaliação de problemas e políticas do setor Saúde.
3. ​Pesquisa orientada para problemas específicos: é uma modalidade operacional que é,
em geral, realizada dentro das instituições governamentais e não-governamentais e empresas,
visando ao conhecimento imediato. Fundamenta-se, sem necessariamente explicitá-lo, nos
conhecimentos gerados por investigações básicas. Os resultados desse tipo de pesquisa visam a
ajudar a lidar com questões práticas e operacionais.

4. ​Pesquisa-Ação: consiste na investigação que segue pari passu o desenvolvimento de


programas sociais ou governamentais para medir o seu impacto. A definição desse termo por
Bulmer (1987) difere do conceito de pesquisa-ação apresentado por Thiollent (1986), segundo
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o qual, por ​pesquisa-ação se entende um tipo de investigação social com base empírica.
concebida e realizada em estreita asqneiaçäo com uma ação voltada à resolução de problemas
comunitários e sociais. Nessa modalidade, os pesquisadores e participantes represen tatiVOS da
situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. A diferença
básica das conceituações de Bulmer e Thiollent reside no fato de que, no primeiro caso, a
investigação acompanha as ações dos programas, mas é externa a elas, No segundo, o
envolvimento do pesquisador e dos que atuam é parte integrante da pesquisa.

5. ​Pesquisa de Inteligência:​ que se refere aos grandes levantamentos de dados


demográficos, econômicos, estatísticos, epidemiológicos, realizados por especialistas
geralmente vinculados a instituições públicas ou empresas, visando ao planejamento e à
formulação de políticas específicas e a tomada de decisão. Os Censos e as Pesquisas do IBGE
são exemplos clássicos de pesquisas de inteligência. De forma simplificada, as Pesquisas de
Opinião Pública preenchem também essa função sociológica (Bulmer. 1978, pp. 8-9).

Bulmer comenta, referindo-se ao campo das Investigações Estratégicas, que a "Pesquisa


Básica" tem tido, como sua marca permanente, uma forte orientação unidisciplinar dificultando
sua aplicação para políticas públicas. Na ponta oposta, os estudos interdisciplinares tem sido
bastante questionados pela pouca consistência teórico-metodológica. Segundo ele. os surveys se
tornaram o reino do senso comum, pois freqüentemente estão orientados: (a) pelo "empirismo” e
pelo “positivismo", cuja ideologia se baseia no princípio de que os fatos falam por si mesmos e
de que nada existe além dos dados; (b) ou por interesses políticos dos Cientistas ou de
autoridades que encomendam e financiam seu trabalho. Neste segundo caso, há um pressuposto,
geralmente falseado pela realidade, de que os governantes e políticos precisam ​conhecer os
fatos ​para poderem optar ao tornar decisões. O risco do empirismo e do positivismo é a
minimização dos problemas teóricos e da redução do papel do pesquisador a um levantador de
da dos técnicos e provedor de informações. Uma vez que apresenta sua visão técnica da
realidade, seu papel cessa, e a interpretação passa a ser conduzida por outros, e as relevâncias
são expostas por interesses políticos e econômicos, como lembra Wright Mills (1952).

Minha experiência pessoal de mais de vinte anos no campo da investigação social em


saúde em colaboração com epidemiologistas me ensinou que não é preciso fazer escolhas
parciais. É possível desenvolver pesquisas básicas sobre ternas ainda pouco desenvolvidos,
abrangendo problemas estratégicos do ponto de vista de sua relevância social e direcionar os
resultados de forma operacional. Vários estudos da equipe do Claves (Centro Latino-Americano
de Estudos sobre Violência e Saúde/Fiocruz) no qual trabalho, apontam para o fato de que em
todas as investigações da área de saúde coletiva é possível juntar consistência teórica e
relevância social na direção que aqui menciono de bastante concreta: (1) na construção do
projeto prever os produtos que se pretende construir; (2) no seu desenvolvimento realizar todos
os procedimentos (geralmente de forma interdisciplinar contendo aspectos socioantropológicos
e epidemiológicos da problema em foco), teóricos e metodológicos típicos de investigação
básica; (3) no processo de análise, direcionar a reflexão e os resultados para descobrir ou
compreender aspectos da realidade que necessitam de intervenção, orientando-os para níveis de
especificidade; (A) em adendo construir, com dados e análises da pesquisa, um texto complexo
executivo, direto e curto que possa servir ação social.

Concluo dizendo que a Pesquisa Social não pode ser definida de forma estática ou
estanque. Ela precisa ser conceituada historicamente e entendendo-se todas as injunções
contradições e conflitos que configuram seu caminho. Por sua vez, seu âmbito de ação precisa
sair dos marcos da indisciplina e do academicismos. Sobretudo no campo da saúde a realidade a
ser abordada se apresenta sempre como uma tota lidade que envolve diferentes áreas de
conhecimento e abrange a dinâmica do mundo da vida.

E por fim, devo ressaltar ainda uma vez que o universo da pesquisa social e dos
pesquisadores vive sob o signo das contingências históricas. De lado, estão as dificuldades de
financiamento que cerceiam ou restringem as possibilidades, tanto da investigação como do
encaminhamento de conclusões. Do outro, existem questões éticas e científicas que o
investigador tem de enfrentar sobre a realidade e sobre o destino do produto artesanal que
realiza, no que diz respeito ao alcance de suas ações e ao uso social que dela possa ser feito para
a sociedade em que vive.

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