17.08 - Psicologia Social, Saber, Comunidade e Cultura
17.08 - Psicologia Social, Saber, Comunidade e Cultura
17.08 - Psicologia Social, Saber, Comunidade e Cultura
INTRODUO Neste trabalho a anlise da forma representacional construir as premissas para discutir o problema da variabilidade do saber e de como esta variabilidade se expressa scio-historicamente. Para fazer esta discusso, vou introduzir o conceito de polifasia cognitiva (MOSCOVICI, 1976), traar as origens do conceito e apontar sua fecundidade para explicar tanto a variao como a relao entre saberes. A polifasia cognitiva refere-se a um estado em que registros lgicos diferenciados inseridos em modalidades diferentes de saber coexistem em um mesmo indivduo, grupo social ou comunidade. Ligar o saber ao seu contexto e reafirmar sua relao com a representao tarefa necessria, mas no fcil. Toda base do pensamento moderno est definida em termos de uma razo progressiva e da capacidade do sujeito do conhecimento colocar a si prprio como objeto e aprender suas prprias condies de possibilidade. Cogito ergo sum: se possvel apontar um comeo para mundo moderno ele est l, nesta frase. A nova 20
conscincia da modernidade nasce desta convico fundamental de que o domnio da natureza e da histria por uma racionalidade destinada a saber e compreender era desprovido de mistrios; ele era prometido ao sujeito do conhecimento como inteligibilidade plena. A Idade da Razo destronou o poder da autoridade e da religio e condenou a si mesma a livrar-se de sua conexo com sujeito, comunidade e cultura. O desenvolvimento e o progresso do saber torna-se um processo atravs do qual as estruturas internas do conhecimento libertam-se da emoo, do habitus e da autoridade impostos pela cultura, para atingir sua forma plenamente racional, verdadeira, desculturada e deslocalizada. Ora, ns sabemos que este programa no se desenvolveu sem antinomias. Mas o paradoxo de fundo continua marcando nossa relao com os saberes, qual seja, para ser saber, o saber deve descolar-se do contexto de sua produo, livrar-se das impurezas de quem o produz, dos interesses, paixes e motivos que esto ligados a uma pessoa
humana, a uma polis humana, a uma cultura humana, e buscar a certeza da perfeita descrio do objeto do saber. Assim definem-se as condies do saber, de tarefa humana a tarefa humanamente impossvel. Gostaria de justapor a esta tendncia um argumento que recupera a representao enquanto processo psicossocial e teoriza todo saber como representacional. Trata-se ento de entender a forma que o saber assume enquanto representao e aquilo que expressa enquanto sistema psicossocial firmemente radicado em um contexto social. Trata-se tambm de entender como a variabilidade das formas do saber se realiza em esferas pblicas e como ela tratada. Isso porque enquanto alguns saberes gozam de credenciais epistemolgicas plenas, reconhecimento e legitimidade, outros so vistos como distoro, superstio e erro. Resta saber se esta distino parte de uma caracterstica interna dos saberes ou de determinantes sociais mais amplos que conferem poder a alguns saberes e pelo mesmo movimento desapropriam outros de qualquer reconhecimento. REPRESENTAO, MEDIAO E SABER A CONTRIBUIO DA PSICOLOGIA SOCIAL
autora diz sobre RS e discorre sobre algumas caractersticas da mesma.
A psicologia social , no meu entendimento, a cincia do entre. Isso significa dizer que o lugar privilegiado do inqurito psicossocial no nem o indivduo nem a sociedade, mas precisamente aquela zona nebulosa e hbrida que comporta as relaes entre os dois. O foco no entre , obviamente, um dispositivo terico, j que empiricamente nos deparamos sempre com instanciaes objetivadas produzidas pelo espao relacional que constitui o entre. Estas objetivaes se apresentam como unidades, como todos, como realidades acabadas e fechadas. Mas, to logo comeamos a escavar sua superfcie a realidade, que aparece como um todo contido e fechado, se esvanece. Surgem ento redes mveis e extremamente complexas de relaes, cuja natureza necessita ser investigada, descrita e se possvel explicada. nesta zona mais subterrnea de mediaes, profundamente relacionada, contudo, com a superfcie que ao mesmo tempo ela cobre e revela, que reside o psicossocial. Categorias como a identidade, o eu, o discurso, a representao e a ao, para citar apenas algumas, so todas produzidas l, no espao do entre. minha convico que este espao constitui o objeto especfico do inqurito psicossocial e o entendimento detalhado deste espao que a psicologia social pode oferecer a um dilogo interdisciplinar.
H uma longa tradio, tanto dentro como A influncia da dictomia cartesia no pensamenfora da psicologia, que milita contra o entre. No to atual, separar as coisas dicotomicamente, "a lgica do isso ou aquilo" h aqui tempo ou espao para elaborar o impacto e poder constitutivo da filosofia cartesiana sobre o desenvolvimento da psicologia enquanto disciplina. Basta dizer que tanto o behaviorismo como o cognitivismo, ambos se construram sobre a hiptese cartesiana (MARKOV, 1983) e nenhuma das duas abordagens deve ser minimizada enquanto foras que deram forma abrangncia, aos objetivos, aos arranjos institucionais, aos cdigos e prticas da psicologia. O cartesianismo imps a lgica do ou isso, ou aquilo no modo como pensamos sobre o psicolgico e sua constituio. Tratase ou do indivduo (representando o psquico) ou do social, ou do corpo ou da mente, ou do discurso ou da representao, ou da atitude ou do comportamento e assim por diante. A lista de dicotomias infindvel, como ns todos sabemos bem. Seria injusto, entretanto, culpar apenas a psicologia por pensar atravs destas dicotomias e seria certamente injusto culpar apenas a Descartes; como podemos esquecer a lgica aristotlica e a lei da nocontradio? As dicotomias esto to profundamente arraigadas no pensamento e auto-interpretao ocidental que at hoje elas continuam influenciando o conjunto das cincias sociais (MARKOV, 1983). Se eu coloco nfase nesta concepo de psicologia social porque a noo de representao e polifasia cognitiva que vou apresentar, dependem desta viso de nossa disciplina como a cincia do Citao indireta no artigo entre. Uma vez que ns tomamos a srio o entre, concepes mentalistas sobre a representao caem por terra e a representao j no mais definida atravs de processos intra-psquicos e isolados que encontramos na forma dominante da cincia cognitiva. Ao mesmo tempo uma clarificao do entre permite a integrao tanto do objeto quanto do outro na conceituao da representao. Como a nova psicologia social da coisa mostra (Bauer, 2000), a representao no pode prescindir de sujeitos em relao e de objetos. Nesse sentido, a representao tanto social como est enredada na materialidade do mundo (LATOUR, 1996). Da que a especificidade da Psicologia Social teorizar espaos de mediao que residem na contradio e coexistncia de opostos. A Psicologia Social se fizer a devida justia ao seu objeto de estudo pode dar uma contribuio incisiva aos debates mais amplos sobre representao, identidades, discursos e linguagem, estudando como estas categorias se relacionam e ao mesmo tempo constituem a vida e o contexto cotidiano de comunidades humanas. 21
REPRESENTAO: MEDIAO ENTRE SUJEITO, OBJETO E OUTRO A noo de representao central para uma teoria dos saberes sociais e para qualquer epistemologia. Ela obviamente um dos conceitos-chave da teoria das representaes sociais. A noo tem sido cercada de controvrsias desde sua concepo e no minha inteno aqui traar sua trajetria filosfica, ou como ela usada em diferentes disciplinas das cincias sociais. Em Psicologia, a representao teve uma histria turbulenta e seu papel crucial, de fato constitutivo, na formao do sujeito psicolgico nem sempre foi vista de forma consensual. O problema da representao se inicia com a no-imediaticidade do mundo existente para os humanos. Quando me refiro ao mundo existente, note, no estou me referindo a alguma realidade externa que independente do saber humano. Estou me referindo a tudo aquilo que existe para as pessoas, incluindo o prprio Eu, o Outro, objetos fsicos e artefatos culturais, saberes acumulados, enfim, a tudo que constitui o existente. Seguindo a Psicologia do Desenvolvimento de Piaget (1969, 1975, 977) e Winnicott (1971, 1988), eu chamo este tudo de objeto-mundo. O objeto-mundo no se entrega aos humanos perfeitamente e ns tambm no estamos equipados para nos colar perfeitamente a ele. Em suma, no h uma relao direta, uma correspondncia perfeita entre o ser humano e o mundo. O objeto-mundo somente se torna nosso conhecido se ns nos dermos o trabalho de represent-lo. Faz parte, tanto de nossa histria ontogentica como filogentica, nos darmos a este trabalho: um trabalho que leva tempo e um trabalho duro, que envolve um processo intenso e apaixonado de co-construo entre infante, aquele que lhe presta cuidados e o objeto-mundo (DUVEEN, 1997, 2001; VALSINER, 2000) . Esta no correspondncia entre os seres humanos e o objeto-mundo est inscrita em nossa constituio biolgica e seria uma bobagem ignor-la. Qualquer Psicologia humana deve enfrentar o corporificao das estruturas psquicas, at porque a gnese do pensamento e do saber se encontra na ao do corpo. Se nossa constituio biolgica no fosse importante, qualquer organismo serviria para produzir um ser humano. Ns sabemos, contudo, que tentativas de ao comunicati22
va com alguns de nossos parentes genticos mais prximos, os bononos, fracassaram em produzir uma forma distintamente humana de comunicao (SAVAGE,RUMBAUGH AND FIRLEDS, 2000; STRAYER, 2000). Ora, o biolgico importa, e a chave para entender a no-correspondncia entre os seres humanos e o objeto-mundo. Mas a Psicologia deve avanar e dar conta daquilo que a Biologia sozinha no consegue explicar. Quando as fundaes biolgicas se complexificam pelo desenvolvimento de um sujeito que tanto psicolgico como social, a abrangncia da explicao cientfica tambm dever ser levada adiante. A representao, enquanto fenmeno psicolgico e social, um conceito central nesta tarefa. A representao uma estrutura de mediao entre o sujeito-outro, sujeito-objeto. Ela se constitui enquanto trabalho, ou seja, a representao se estrutura atravs de um trabalho de ao comunicativa que liga sujeitos a outros sujeitos e ao objeto-mundo. Neste sentido pode-se dizer que a representao est imersa na ao comunicativa: a ao comunicativa que a forma, ao mesmo tempo que forma em um mesmo e nico processo, os participantes da ao comunicativa. A ao comunicativa envolve a linguagem assim como envolve ao de tipo no-discursivo; estas se manifestam nas prticas do cotidiano, nas instituies sociais e nas estruturas informais do mundo vivido (HABERMAS, 1988). O trabalho comunicativo da representao produz smbolos cuja fora reside em sua capacidade de dar sentido, de significar. A representao trabalha colocando algo no lugar de algo, seu trabalho um trabalho de deslocamento simblico. Este deslocamento de objetos e pessoas que d a cada um e a todos uma nova configurao a essncia da ordem simblica. Ele mostra claramente que a criao e a construo esto na base do registro simblico, j que suas operaes esto ontogeneticamente ligadas e envolvem resduos da capacidade de fazer-de-conta desenvolvida na primeira infncia. Ele tambm demonstra a concepo entre a construo do simblico, a arte e a cultura, j que esta ltima um acmulo de significados e smbolos que se solidificam ao longo do tempo. Esta concepo de representao enquanto estrutura de mediao pertencendo ao espao do entre pode ser vista na Figura 1: (ilustrao na pgina seguinte)
Neste pargrafo a autora faz o link entre a representao at a polifasia, considerando que o representar um movimento simblico que movido pelos novos sentido dados aos novos objetos e fenmenos que surgem durante nossas vivncias.
Este modelo representa uma fatia do processo representacional vista no tempo e em contexto. Bauer e Gaskell (1999) projetam a figura acima no tempo e prope o Modelo Toblerone que adiciona a dimenso fundamental de projeto ao processo representacional. Como eles observam a este tringulo bsico uma dimenso temporal, tanto de passado como de futuro, adicionada para denotar o projeto explcito ou implcito ligando os sujeitos e o objeto (1999: 170). O problema do tempo, que corresponde ao problema fundante da histria, portanto claramente integrado ao processo representacional. Temos, portanto, os vnculos sujeito-sujeito-objeto- projeto- tempo- contexto- ao comunicativa como fenmenos constituintes do processo total do fenmeno representacional. Da que o estatuto da representao polivalente. A representao uma construo ontolgica, epistemolgica, psicolgica, social, cultural e histrica. Ela todas estas dimenses ao mesmo tempo e cada um destes atributos s pode ser entendido em relao a todos os outros, j que do ponto de vista fenomnico eles so dimenses simultneas do sistema representacional. Quando as pessoas se engajam em processos de comunicao que as situa em relaes concretas ligadas a uma especfica configurao cultural, social e histrica que elas ativamente (re)produzem elas ao mesmo tempo produzem os meios simblicos que constroem uma representao particular de um objeto seja ele concreto, fsico ou abstrato que entra na rede de outras representaes de um quadro social, cultural e histrico. Este processo ontolgico na medida em que tem um papel constitutivo na emergncia do sujeito humano como um ser que representa a si mesmo e, portan-
to, possui uma identidade. epistemolgico na medida em que permite o (re)conhecimento: o saber sobre o objeto tanto o Eu como um objeto para si mesmo como o objeto-mundo. Ele um processo psicolgico na medida em que se estrutura e se manifesta como processo psquico suscetvel aos estratagemas da paixo, da iluso e do desejo. um processo social porque o intersubjetivo sua condio de possibilidade e sua matria advm da inteligibilidade da histria e da cultura. Este status polivalente reafirma a sua estrutura mediadora. A representao no est localizada em nenhum dos cantos do tringulo de mediao; seu espao o entre do tringulo e os elementos constituintes que o formam. Dentro de tal concepo de representao, vises intra-mentais da representao se tornam obviamente redundantes: a representao pertence ao entre da comunicao humana e da ao social; no produto de uma ao humana fechada em si mesma. Esta viso tambm descarta aquelas concepes que negam o papel dos objetos no processo de formao da representao. Aqui a representao no o ato nico de um sujeito cuja ao d forma representao. A materialidade do objeto-mundo integral ao processo representacional e interage com o sujeito dando forma tanto quanto ele d ao resultado representacional. Finalmente, esta concepo de representao no d ao processo representacional o poder de definir completamente o objeto. No nos esqueamos dos perigos envolvidos na hiper-representao, o termo que eu uso para descrever aquelas situaes onde as representaes so produzidas sem considerao alguma com a realidade do objeto. A representao tambm distorce, mente, ilude e confunde. A hiper-representao , naturalmente, parte do poder da representao, j que o simblico uma esfera onde a lei do faz-de-conta se aplica. Esta a faceta do processo representacional que tem um papel decisivo tanto na dimenso criativa e positiva da sua construo como na dimenso negativa e nas possibilidades de subjugao que esto presentes no construcionismo exagerado. Dentro de relaes de poder mais amplas que operam em qualquer sociedade, estes efeitos podem, e certamente so, usados por vrios grupos sociais em vrios momentos para produzir efeitos ligados a interesses e projetos. Da que a distino entre representao e seu objeto crucial e precisa ser preservada como nica possibilidade de sustentar a idia de crtica e preciso na cognio. A no ser que queiramos nos relativizar at a morte, por assim dizer, impor23
tante reconhecer que o objeto-mundo vai alm de nossos esforos para represent-lo. Este o caso no apenas porque a pluralidade humana abre este objeto para os esforos de representao de outros diferentes e diferentes contextos, mas tambm porque a representao humana uma forma de mediao que nunca consegue capturar plenamente a totalidade de um objeto. Tendo ento discutido, o problema da representao e seu status polivalente, na prxima seco discutirei o conceito de polifasia cognitiva. Como se ver, a polifasia cognitiva um conceito que expande o lao entre representao e contexto e, ao mesmo tempo, permite uma concepo malevel e plural de saber social. O CONCEITO DE POLIFASIA COGNITIVA: SABER, COMUNIDADE E CULTURA O conceito de polifasia cognitiva foi introduzido por Serge Moscovici em seu estudo clssico sobre representaes e psicanlise na Frana (MOSCOVICI, 1961/1976). Ele foi cuidadoso em apresent-lo como uma hiptese, mas os dados eram claros: havia evidncia suficiente no material para sugerir que tipos diferentes de racionalidade estavam envolvidos na construo de representaes sobre psicanlise. Estas racionalidades diversas dependiam de seu contexto de produo e procuravam responder a objetivos diferentes. O que era interessante notar, contudo, era que ao contrrio de interpretaes estabelecidas de fenmenos cognitivos, estas racionalidades diversas no apareciam em grupos diferentes, ou em contextos diferentes; ao contrrio, elas eram capazes de existir lado a lado em um mesmo contexto, mesmo grupo social e, mutatis mutandis, no mesmo sujeito individual. As pessoas lanariam mo de um ou outro saber dependendo das circunstncias particulares em que se encontravam e dos interesses particulares que sustentavam em um dado espao e tempo. Moscovici props este conceito no contexto de debates ligados a diversidade do saber e como dar conta das diferenas entre a lgica e a racionalidade embebida em formas de saber como a crena, a cincia, a representao social, etc. Para que possamos entender o conceito e sua contribuio especfica investigao do lao entre saber social e contexto necessrio traar as origens do debate sobre a diversidade dos saberes e os temas centrais que nele esto presentes. Isso tambm nos permitir ligar o problema da diferena na forma do saber com a conceituao de representao que foi proposta no incio deste texto. 24
SABER EM CONTEXTO: RE-VISITANDO OS PIONEIROS Ao desenvolver a noo de polifasia cognitiva e us-la para dar sentido aos dados empricos de seu estudo sobre a psicanlise, Moscovici estava se posicionando em uma tradio particular. De fato, a teoria das representaes sociais como um todo se desenvolveu em relao direta com os debates clssicos sobre a racionalidade do saber conduzida por psiclogos, socilogos e antroplogos europeus no incio do sculo XX. Estes debates, profundamente influenciados por tradies fenomenolgicas, buscavam explicar como a racionalidade do conhecimento se intersecciona com a condies sociais concretas de sua formao1 . Na psicologia em particular este problema sempre foi constante; Piaget e Vygotsky, para no mencionar James e Freud lutaram com o problema da conscincia, sua formao, desenvolvimento e a racionalidade que ela produz. A tentativa de estabelecer que para cada forma de saber corresponde um conjunto fundamental de relaes sociais foi central para o pensamento que se desenvolveu sob a influncia da fenomenologia e da hermenutica. Foi tambm central para as psicologias de Piaget e Vygotsky, que tinham um entendimento claro da natureza social da lgica e se propuseram a demonstrar em detalhe a maneira atravs da qual a sociedade d forma ao desenvolvimento das estruturas lgicas na criana. Os dois mostraram que relaes sociais diferentes levam a modos de saber diferentes. Piaget, em As Operaes Lgicas e a Vida Social (1967), discutiu o problema extensivamente. L ele afirma que uma vez reconhecido o papel da interao social na formao da lgica, o problema no mais o impacto do social, mas qual o tipo de interao social que prevalente e qual a lgica que produz. A anlise da constrio e da cooperao - os dois tipos de relao social que Piaget estudou forneceram mais evidncia proposio de que formas diferentes de interao produzem lgicas diferenciadas. A psicologia de Vygotsky no estava menos preocupada com o problema. Studies in the History of Behaviour: Ape, primitive and child, escrito por Vygotsky e Luria (1993) constitui uma tentativa de estabelecer as trs linhas de desenvolvimento que produzem aquilo que chamamos o homem cultural. Ao analisar o uso de instrumentos por macacos antropides, as formas do pensar de povos ditos primitivos e o desenvolvimento ontogentico da criana, eles se propem a construir uma noo de desenvolvimento que une o
evolucionrio, o histrico e o ontogentico. Como Wertsch nota em seu prefcio, o livro um dos mais importantes documentos que temos para entender o que Vygotsky entendeu por desenvolvimento. Como ele escreve: o termo psicologia do desenvolvimento se aplica quase exclusivamente ao domnio gentico da ontognese, e tipicamente de forma ainda mais estreita aos perodos da infncia e adolecncia. Em contraste a esta lente estreita, Vygotsky e Luria argumentam que uma verdadeira anlise gentica deve dirigir-se aos modos como o conhecimento sobre todos os trs domnios genticos contribui para nosso entendimento do comportamento e do funcionamento mental. Da que, alm de considerar como uma forma particular do funcionamento mental reflete as transies ontogenticas que levam at ele, tambm necessrio levar em conta as foras da filognese e da histria sociocultural que lhe formou. (WERTSCH, 1993:x, minha traduo). Este livro tambm fornece um panorama extremamente interessante da extenso dos dilogos que se travavam entre os psiclogos russos e psiclogos, antroplogos e socilogos ocidentais. Khler, Lvy-Bhrul, Mauss, Durkheim, Rivers, Wertheimer, Kofka, Kurt Lewin para citar somente alguns, esto presentes na discusso. Khler, LvyBhrul e Piaget, em particular, fornecem a base para trs captulos do livro. Isso no um acidente. Talvez nenhum outro problema tenha sido to central para este perodo histrico como o debate sobre o que constitui a unidade e a evoluo da razo. As expedies antropolgicas que estavam colocando intelectuais ocidentais face a face com modalidades de pensar de outras culturas eram empurradas no apenas pelo poder e fora do Imprio, mas tambm pelo desejo de dar apoio ou descartar a ideia central de uma racionalidade una. neste contexto que Vygotsky e Luria conduzem seu estudo sobre as diferentes modalidades de saber no Uzbekisto e na Khirgizia. Como j foi dito antes, eles foram claramente influenciados pelas idias de Durkheim de que o psicolgico se origina no social e tinham um conhecimento detalhado dos debates entre LvyBhrul e W.H.Rivers. Seu estudo foi importante no apenas porque comparou como culturas diferentes levam a processos diferentes de pensar e de saber;
ele era, de fato, nico, porque foi conduzido sob condies de extrema mudana social possibilitadas pela Revoluo Russa. Este estudo relatado nas memrias de Luria (LURIA, 1979) e constitui um exemplo fascinante de combinao de metodologias vindas da psicologia e da antropologia. Ao invs de pesquisar remotos vilarejos russos, eles optaram por vilarejos e campos nmades do Uzbekisto e da Kirgizia na Asia Central onde grande discrepncia entre formas culturais prometia maximizar a possibilidade de detectar mudanas tanto nas formas bsicas como no contedo do pensar (LURIA, 1979: 60). L eles buscaram determinar se as novas relaes sociais e o acesso escola possibilitados pelo novo regime socialista poderiam produzir mudanas no contedo e na forma de pensar das comunidades experienciando estas mudanas. Os resultados foram inequvocos: encontraram-se transformaes claras na organizao do pensamento ligadas a diferentes tipos de atividades e a estrutura social especfica dos grupos envolvidos. Alm disso, eles verificaram que estas mudanas ocorriam em um perodo de tempo relativamente curto. Graas a estes estudos hoje ns podemos afirmar que tanto o conhecimento como a mentalidade do sujeito do saber que lhe corresponde so organicamente vinculados ao contexto social da comunidade em que eles so produzidos. A VARIABILIDADE DOS SABERES: HIERARQUIA, EXCLUSO OU CO-EXISTNCIA DA DIFERENA? Da proposio que o saber amarrado a uma comunidade e seu contexto, segue-se a derivao quase bvia que os saberes variam. H um nmero infinito de formaes sociais que produzem um nmero infinito de formas diferentes de saber. E aqui que comea o problema. Se h variao nas formas do saber, como eles so comparados? Reconhecer variao e diferena Importantssimo!! entre, saberes no o fim de nossa histria. Na verdade, apenas o comeo. O problema, diria, no tanto o de entender que as estruturas psquicas e cognitivas mudam na medida que condies sociais mudam. O problema o velho problema da modernidade, o centro mesmo de uma racionalidade iluminada: como formas inferiores desenvolvem-se at formas superiores e como estas formas superiores, uma vez estabelecidas, deslocam o inferior para sempre. Variao na forma do saber ento coloca o problema crucial de como conceber esta variao e de que quadros explicativos ns vamos utilizar a fim de dar sentido diferena contida nesta 25
Parei aqui !
variao. Mais uma vez, o problema no novo e nos leva de volta a concepes sobre o desenvolvimento e a transformao do saber. Como muda o saber de uma forma a outra? Haveria uma escala progressiva cujo enquadre geral explicaria o desenvolvimento de todo saber desde as formas baixas/primitivas/simples at as formas altas/ civilizadas/complexas? Colocando-se em outras palavras: seria o saber de uma criana uma forma primitiva do saber adulto? Ou seria o saber de outras culturas (primitivas ou inferiores como as chamava a literatura do sculo XIX e incio do sculo XX) uma forma rudimentar da lgica encontrada em sociedades ocidentais, ditas civilizadas? Estas questes, espero, sejam suficientes para demonstrar porque estes temas continuam a ser nossos contemporneos. A idia de uma escala progressiva que leva a uma forma de saber, mais desenvolvida e melhor, que serve de norma a todos os outros saberes invasiva. No apenas este o caso na tradio acadmica que constituiu as cincias sociais e a Psicologia. A idia tambm se fundou em reas de aplicao que vo desde a promoo a sade, a intervenes desenvolvimentistas em sociedades no-ocidentais, at os embates entre cincia e saber cotidiano em esferas pblicas contemporneas (veja, por exemplo, debates sobre biotecnologia, vacinao, meioambiente, etc.). Em Durkheim e Piaget era claro que formas superiores de saber, encontradas em adultos e populaes civilizadas, deslocariam formas primitivas, encontradas em crianas e povos primitivos. Para eles, o saber progride em direo ao domnio total do mundo objetivo baseado em operaes lgicas que deixam para trs os mitos, as supersties e as crenas. O artigo de Piaget sobre as operaes lgicas e a vida social argumenta que a socializao, ou a internalizao das regras sociais pela criana, a condio sine qua non para a emergncia da lgica e da educao da razo. Contudo, como nota ele, nem toda a socializao conduz ao pensamento lgico. Povos primitivos, cujo sociocentrismo analogo ao egocentrismo da primeira infncia, no produzem o tipo de lao social que requerido para o alcance do saber racional. somente em sociedades onde a individuao e a argumentao preponderam que a razo propriamente dita pode ser alcanada. Ainda que Lvy-Bhrul e Vygotsky tenham problematizado esta viso, eles no escaparam totalmente da idia de progresso. Lvy-Bhrul que, como veremos, virou essa viso hierrquica de cabea para baixo, tambm no esteve completamente imune noo de progresso. Ao 26
examinar o funcionamento da mentalidade prlgica no captulo trs de How Natives Think, ele declarou que a lgica a condio necessria para a liberdade do pensamento e o instrumento indispensvel para seu progresso. O programa de Vygotsky, ainda que no to explcito como o de Piaget, possua uma preocupao muito similar. O socialismo, esperava-se, produziria uma sociedade baseada na cincia, capaz de deixar para trs o mito, a superstio, a crena e o senso comum. Comparar o saber dos camponeses da sia Central, vistos como detentores de crenas atrasadas e irracionais e o novo sujeito racional produzido pelas condies sociais novas do socialismo, tinha como objetivo mostrar como um tipo especfico de condies sociais podia produzir racionalidade. Intrnseco ao trabalho destes pioneiros estava a premissa implcita de que esferas pblicas des-tradicionalizadas, baseadas na argumentao, na cincia e no enfraquecimento da tradio so o lugar por excelncia de toda racionalidade possvel. So estas sociedades que produzem saber, um saber que descarta a irracionalidade da crena, da superstio e do mito e busca o controle lgico do mundo objetivo. A questo bvia perguntarmonos ento sobre outras formas de organizao social. Ser que elas podem produzir lgica e saber racional? Ainda que Lvy-Bhrul e Vygotsky tenham valorizado muito o desenvolvimento da lgica e o progresso da razo, o trabalho deles contm elementos para produzir uma crtica radical destas idias e recoloc-las de forma completamente diferente. O trabalho de Lvy-Bhrul sobre a mentalidade primitiva constitui, no meu modo de ver, um dos movimentos mais importantes em direo decentrao das cosmovises e, no h dvida, que foi mais dele do que de Durkheim, que Moscovici buscou inspirao para propor o estado de polifasia cognitiva (MOSCOVICI, 2001). Lvy-Bhrul desmantelou a concepo dominante de seu tempo, que sustentava que h apenas um tipo de racionalidade, e qualquer evidncia contrria nada mais era que um conjunto de estgios sub-desenvolvidos destinados a progredir at chegar a este tipo ideal. Ele mostrou que a lgica , ela prpria, uma categoria malevel e que lgicas diferentes no so menos lgicas que nossa prpria lgica. De fato, todas as tentativas de enquadrar lgicas diferentes em categorias lgicas que so nossas, mostram apenas as limitaes de nossa prpria lgica. Ele tambm demonstrou que lgicas diferentes no so mutuamente excludentes e no operam sob o imperativo da substituio. Ao comparar a
chamada mentalidade pr-lgica dos povos primitivos com a mentalidade lgica dos povos desenvolvidos ele enfatizou que o pensamento lgico no ir superar inteiramente a mentalidade pr-lgica. Este a razo pela qual o pensamento lgico no consegue preencher as funes que ele exclui e pela qual certa poro de pensamento prlgico subsistir. Os insights de Lvy-Bhrul sobre a relao entre padres culturais e modalidades do saber ajudaram a iluminar a gnese e variao dos cdigos semiticos que do forma ao modo como comunidades humanas do sentido ao mundo e se comportam em relao a ele. H muitos paralelismos entre a noo de desenvolvimento de Vygotsky e as idias de LvyBhrul. Mesmo sendo crtico de Lvy-Bhrul em vrios aspectos de seu trabalho, Vygotsky coincidia na noo mais fundamental de que a transformao do saber descontnua e no h substituio nas formas do saber, mas co-existncia. Ao invs de conceber o desenvolvimento e transformao do saber dentro de uma escala progressiva e linear que substituem formas primitivas por formas superiores, eles viram cada forma de saber como uma entidade prpria. As formas de saber se relacionam uma a outra, mas no necessariamente sucedem uma a outra linearmente. Elas necessitam ser entendidas em relao ao contexto em que so usadas e em relao s funes que preenchem. As formas do saber coexistem e podem ser contraditrias, mas isso no um problema se ns abandonamos a lgica formal e sua dualidade ao conceb-las como opostas e abraamos uma perspectiva dialtica. Moscovici foi muito influenciado por estes insights (MOSCOVICI, 1998; 2000). A descoberta da polifasia cognitiva em seu estudo sobre a psicanlise corresponde a uma continuao, desta vez dentro da Psicologia Social, de um debate que j havia iniciado h muito tempo e do qual LvyBhrul provou ser uma das mais importantes fontes de inspirao. Em A Psicanlise, sua Imagem e seu Pblico, Moscovici recupera o debate sobre os sistemas cognitivos e a racionalidade que eles possuem luz dos dados empricos de seu estudo. Estes mostravam a presena de estilos de raciocnio prximos s operaes concretas da criana. Mas o raciocnio estudado era o de toda uma sociedade e os participantes eram adultos. Como explicar a presena de uma modalidade do pensar relacionada infncia que, de acordo com as concepes dominantes sobre a transformao do conhecimento, deveriam ter sido superadas? A resposta de Moscovici mais a la Lvy-Bhrul e Vygotsky do que a la Durkheim e Piaget. A
coexistncia de sistemas cognitivos deveria ser mais regra do que exceo, ele escreveu. (MOSCOVICI, 1976:286, minha traduo). E mais adiante: o mesmo grupo e, mutatis mutandis, o mesmo indivduo so capazes de utilizar registros lgicos diferentes nos domnios em que se relacionam com perspectivas, informao e valores que so distintos. (...) De modo geral, pode-se dizer que a coexistncia dinmica interferncia e especializao de diferentes modalidades de saber correspondendo a relaes especficas entre o homem e seu contexto determinam um estado de polifasia cognitiva. (MOSCOVICI, 1976: 286, minha traduo). A hiptese da polifasia cognitiva, argumentou Moscovici, poderia abrir novas perspectivas na Psicologia Social, j que nos levava a estudar no apenas as correspondncias entre situaes sociais e modalidades de saber, mas tambm as transformaes e intercmbios entre as diferentes modalidades. Isso, notou ele, sobretudo importante porque nos permite relacionar o movimento das formas do saber e sua ordem com o problema da interao social e da cultura. Ligar a dinmica dos saberes Psicologia Social dos contextos e da cultura era uma das proposies tericas centrais que substancia o conceito de polifasia cognitiva. Este conceito permite recolocar o problema dos saberes em um outro patamar: saber uma atividade que s pode ser entendida em relao ao contexto do qual ela deriva sua lgica e a racionalidade que contm. Os saberes, portanto, devem ser vistos como uma forma dinmica que emerge continuamente. A dinmica da forma representacional lhe permite a variao e a capacidade de conter tantas racionalidades quantas necessrias variedade infinita de situaes socioculturais que caracterizam a experincia humana. Alm dos estudos clssicos no campo das representaes sociais, a pesquisa recente em Psicologia Social corroborou solidamente a hiptese da polifasia cogntiva (WAGNER ET AL, 1999, WAGNER ET AL, 2000; GERVAIS AND JOVCHELOVITCH, 1998; JOVCHELOVITCH AND GERVAIS, 1999). A DIVERSIDADE E A COMUNICAO ENTRE SABERES A concepo de representao apresentada nas pginas iniciais deste trabalho e a discusso do conceito de polifasia cognitiva mostram que todo saber produzido em uma relao entre sujeito-sujeito-objeto, no tempo e no espao. O entendimento dos saberes e de suas mltiplas lgicas envolve o entendimento da representao, enquanto um sistema de relaes psicossociais que envolvem:
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1) Os produtores/sujeitos do saber, o que abrange a considerao de identidades, interesses, acesso a recursos e poder. 2) Os meios de produo do saber, que correspondem sempre aos tipos de relaes sociais estabelecidas entre as pessoas e seu ambiente tanto social, como natural. 3) Os produtos/objetos do saber, que se referem tanto aos objetos fsicos como aos objetos abstratos que formam o meio-ambiente simblico e material de uma comunidade humana. Estes podem ser, por exemplo, tecnologias de todos os tipos, mas tambm as operaes simblicas e abstratas que do sentido ordem fsico-material e que se tornam objetivadas em monumentos, mquinas, livros, documentos, legislao, na mdia, etc. Neste sentido, o saber um sistema de representaes simblicas organicamente ligado Psicologia Social dos contextos e enredado produtivamente com um modo de vida e com sua cultura. Fica claro aqui que o saber sempre obra de uma comunidade humana e, portanto, deve ser entendido no plural. No h uma forma de saber apenas, mas muitas. Essa variao corresponde variao nas formas de relao social que constituem tanto o saber como a comunidade. Da que o saber uma forma plstica e heterognea, cuja racionalidade e lgica no se definem por uma norma transcendental, mas devem ser avaliadas em relao ao contexto psicossocial e cultural de uma comunidade. Empiricamente, o inqurito sobre os saberes desloca-se de um produto aparentemente fechado e acabado, para a investigao das relaes fundamentais que constituem o entre da formao dos saberes. Estas relaes e sua realizao emprica tornam-se o foco do esforo investigativo. Reconhecer a pluralidade do saber significa reconhecer a localizao fundamental de todo saber e o que essa localizao expressa em termos de ecologias humanas, culturas humanas, psicologias humanas2 . Proposies epistmicas so tambm proposies ontolgicas elas no apenas propem leituras do objeto-mundo mas declaram estados do ser. Permanece, entretanto, o problema de como formas diferentes de saber se encontram e se relacionam. preciso, em outras palavras, indagarmo-nos sobre as possibilidades comunicativas entre formas diferentes de saber, se elas existem, se so possveis, ou se o encontro entre sabe28
res no mundo contemporneo est destinado excluso e opresso. aqui que nos deparamos com questes ligadas aos embates e direitos de sobrevivncia de formas diferentes de saber. Reconhecer pluralidade no basta: preciso perguntar como esta pluralidade foi historicamente tratada e socialmente realizada. Este o problema central ligado ao estudo e discusso sobre os saberes hoje e constitui o dilema central que psiclogos sociais precisam enfrentar quando trabalham com saberes do cotidiano e com o mapeamento de saberes locais vis vis formas dominantes de saber. A proliferao dos meios de comunicao de massa e o impacto de prticas globalizadas em arenas locais intensifica os embates entre formas diferentes de saber e levanta questes sobre como comunidades locais apropriam e do sentido aos saberes que chegam de lugares dominantes (JOVCHELOVITCH, 1997). Estas questes se relacionam diretamente ao problema das assimetrias no status e na valorao de diferentes saberes e como atores sociais com acesso desigual a recursos apropriam os saberes que penetram seus horizontes. As relaes entre saberes so, na maior parte das vezes, assimtricas: assimetria no status e na valorao de formas diferentes de saber impinge diretamente na forma como o saber comunicado, estabelece sua veracidade e constri autoridade. Ao estudarmos representaes em uma diversidade de esferas pblicas ns, psiclogos sociais, queremos revelar como contextos e comunidades diferentes produzem saber sobre si mesmos e sobre outros, bem como sobre questes que so relevantes para seu modo de vida. A preocupao central entender como o saber local produzido, sustentado e defendido por comunidades bem como de que maneira estes processos esto enredados com categorias psicossociais centrais como a identidade, a memria social e a participao na esfera pblica. Estou convicta que o reconhecimento da relao fundamental entre saber e lugar foi um dos resultados mais importantes deste tipo de Psicologia Social. Isso se deu com o esforo para reabilitar os chamados saberes locais de um lado e, de outro, questionar porque alguns saberes so localizados enquanto outros recebem o estatuto e a legitimidade da universalidade. Da a necessidade de avaliar as formas dominantes de produo do saber de forma a produzir uma crtica das aes estratgicas que, tanto na cincia, como em projetos scio-polticos, legitimaram uma forma de saber como superior a todas as outras. importante ento reter, acreditar e lutar pela possibilidade de reconhecer no apenas a diversidade dos saberes, mas tambm a legitimidade
e o status de suas diferentes formas. Esta diversidade precisa ser entendida para mais alm das prticas que localizam o saber em termos de excluso, segregao e, nos casos mais extremos, destruio. O dilogo entre formas diferentes do saber no apenas possvel como desejvel; se o que todo saber deseja , de algum modo, dar sentido ao estranho, isso significa dizer que todo saber capaz de encontrar a estranheza do outro desconhecido e mediar as diferenas que encontra. Ao estudarmos a transformao dos saberes e os potenciais e os perigos inseridos na comunicao entre formas diferentes do saber, a Psicologia Social pode fazer uma contribuio ao entendimento dos dilemas enfrentados por comunidades multiculturais bem como a todas aquelas outras comunidades cujos saberes e modos de vida esto expostos a contnua ameaa e destruio. CONCLUSO A pesquisa clssica sobre a construo do saber em psicologia demonstrou com clareza que O saber no uma escala todo saber localizado, isto , ligado a um lugar progressiva. Lgicas no e, portanto, plural. O saber enquanto sistema so verdades absolutas. Existem vrios tipos de representacional emerge de um contexto de relalgicas, cada uma mais adaptada ao seu contexto socio-cultural. es socioculturais. Entretanto, houve uma forte tendncia a entender a variao do saber em termos de uma escala progressiva. A construo de um padro contra o qual o sujeito do saber poderia ser avaliado levou a um processo scio-poltico de colocar saberes e as pessoas que o produzem em uma escala hierrquica onde formas inferiores e formas superiores de saber (e ser, j que todo saber possui uma dimenso ontolgica) so comparadas. Atravs do conceito de representao e polifasia cognitiva, propus que a Psicologia Social dos saberes deve recuperar espaos de mediao como o lugar central de seu inqurito. Isso envolve: 1) Uma mudana na conceituao do saber que o desloca de uma relao dualista e dicotmica entre indivduo e sociedade para a intersubjetividade e interobjetividade da forma representacional. 2) Aceitar a diversidade das formas do saber e das racionalidades que estas formas contm, bem como reconhecer a legitimidade de diferentes formas e seu potencial comunicativo. 3) Repensar a evoluo e transformao do saber a fim de descartar a idia de uma evoluo ou progresso linear
de formas inferiores para formas superiores. Quando as tentativas de explicao do mundo partem de uma razo que v a si mesma como o parmetro de todo o fenmeno humano, a explicao ser necessariamente parcial e limitada. O reconhecimento da diversidade de lgicas implicadas no saber e, sobretudo, o reconhecimento da coexistncia de racionalidades diferentes no mesmo grupo ou pessoa apagam boa parte das deformaes impostas por construes eurocntricas e nos fornece um conceito mais sbio de razo, uma razo capaz de entender sua diferena interna e estabelecer um dilogo com o seu outro. Ler Lvy-Bhrul nos faz lembrar que preciso entender a luta da razo consigo mesma e aquilo que real em suas antinomias. Somente assim poderemos corrigir as limitaes de perspectivas cntricas e criar uma abordagem conceitual mais compreensiva e decentrada, capaz de explicar no apenas a posio do outro, mas tambm a posio do centro que fala como nada mais do que aquilo que : uma, entra as tantas variaes, que constituem as possibilidades de realizao do fenmeno humano. NOTAS
1 importante observar que este tipo de discusso possui uma longa histria que pode ser lida como uma, entre as tantas formas, com que a racionalidade moderna produziu uma crtica de si mesma. No comeo do sculo XIX Hegel demonstrou o carter social e histrico das estruturas da conscincia, enquanto Marx foi alm para demonstrar que ela tambm prtica e incorporada. Darwin ligou a inteligncia adaptao, enquanto Freud mostrou a existncia do inconsciente no corao da conscincia. 2 Aqui importante notar que, especialmente em esferas pblicas contemporneas, todo local est dialeticamente ligado ao global. O aqui e agora de uma situao est sempre ligado a uma histria e a um conjunto amplo de redes que explode as fronteiras do presente e do local. Para uma discusso excelente da dinmica global/local veja Latour (1993). Ainda que o local e o global estejam profundamente conectados, eles no so inseparveis enquanto termos analticos e empricos. importante ser capaz de delimitar a especificidade do local.
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