Artigo Métier Musical LabEtno
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Resumo: No presente trabalho, discuto a pertinência dos princípios arquivísticos à realidade dos
arquivos musicais brasileiros. Além disso, os tipos de arquivos de música são apresentados, a partir
desse ponto de vista. A necessidade de discutir essa questão se deve à convicção de que a teoria deve
surgir da observação da realidade, e que essa observação necessita de uma grande amostra ao invés de
uma simples tradução de termos entre áreas do conhecimento.
Palavras-chave: Arquivística. Métier musical. Arquivos.
Archival Principles x Musical Metier: the foundations of the theoretical building
Abstract: In this paper, I discuss the relevance of archival principles to the reality of Brazilian musical
archives. In addition, the types of music files are presented, from that point of view. The need to discuss
this issue is due to the belief that the theory must arise from the observation of reality, and that this
observation needs a large sample instead of a simple translation of terms between areas of knowledge.
Keywords: Archivology. Musical Metier. Archives.
1. Introdução
2. Documento
A definição de 2005 se mostra um tanto quanto abrangente, talvez mesmo pela pouca
quantidade de dados que o enunciado traz, sendo documento a “Unidade de registro de
informações, qualquer que seja o formato ou o suporte” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p.73).
Já em 2002 nos parece ser mais complexa, abarcando com maior eficiência a natureza do
documento, pois leva em consideração uma gama maior de implicações, sobretudo quando
considera o registro de fenômenos, formas de vida e pensamentos do homem:
É toda informação registrada em um suporte material, suscetível de consulta, estudo,
prova e pesquisa, pois comprova fatos, fenômenos, formas de vida e pensamentos do
homem numa determinada época ou lugar. De acordo com seus diversos elementos,
formas e conteúdos, os documentos podem ser caracterizados segundo o gênero, a
espécie e a natureza. (BRASIL, 2002, Portaria 05).
Documento que se caracteriza por conter informação musical, isto é, aquela que
emana tanto da dimensão fenomenológica da música (fixada em registros sonoros e
audiovisuais) quanto da sua dimensão linguística e semiológica (materializada nos
registros em notação musical ou musicográficos). Instantâneas da dimensão
fenomenológica e reprodução (total ou parcial) da dimensão linguística e semiológica
podem se materializar em registros iconográficos (BRASIL, 2019, p. 13).
Ocorre que esta visão deixa de fora outros fatores e atividades igualmente importantes
e que deveriam ser constituintes desse mesmo edifício teórico. Onde ficariam, nesse esquema,
os documentos que passaram décadas, senão séculos sem utilidade prática, de onde ocorreram
mudanças nas finalidades práticas das instituições e que de repente são fruto de versões fac-
similares, utilizados em repertório de bandas, orquestras, e instrumentistas atuais? Seriam estes
documentos da fase corrente (prática) e permanente ao mesmo tempo? E o que dizer daqueles
documentos que nem sequer foram recolhidos a uma instituição de caráter permanente, que
permaneceram na fase intermediária e têm suas informações utilizadas em edições críticas?
Uma prova dessa realidade é a destinação que os documentos musicais do Hospital Dom Luiz
I, em Belém, receberam do musicólogo Fernando Duarte:
O acervo que foi tratado com vistas à fase permanente passou a ter também uma
função corrente, [...] A reintegração do repertório litúrgico à sua função original foi
uma maneira encontrada para a difusão deste repertório, com vistas a restabelecer os
vínculos diretos com a comunidade para a qual as fontes foram produzidas (DUARTE
& CUNHA, 2018, p. 85).
Com a citação acima, percebemos claramente que, sendo esta uma atividade muito
comum na área da música, o que nos falta é o devido tratamento - arquivístico - que represente
a natureza de tal atividade. O autor acima utiliza as expressões permanente e corrente nas duas
frases, para tentar explicar o que ocorre na área da música de forma tão natural. Do contrário,
o mesmo raramente ocorre com documentos administrativos, cujos valores são, esses sim,
muito mais palpáveis a uma tal classificação no Ciclo Vital de documentos. Ora, não se verá
um documento administrativo em fase permanente sendo colocado numa posição de utilidade
prática após séculos, como ocorre na música, da mesma forma que um cheque ou uma
procuração de 100 anos não serão novamente utilizados na mesma finalidade para a qual foram
produzidos.
Parece que as definições de valor primário e valor secundário se ajustam muito mais à
realidade da documentação musical. Nessa forma de entender a utilização dos documentos, o
valor primário é aquele:
Valor atribuído a documento em função do interesse que possa ter para a entidade
produtora, levando-se em conta a sua utilidade para fins administrativos, legais e
fiscais (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p.171).
Este entendimento pode ser estendido, no campo da música, ao valor dado mesmo ao
documento musical mesmo que tenha sido enviado a outra instituição, pelo seu valor prático.
Já o valor secundário do documento parece se ajustar de forma satisfatória ao que ocorre com
a documentação musical, quando passa a ser fruto de novos estudos e edições:
Valor atribuído a um documento em função do interesse que possa ter para a entidade
produtora e outros usuários, tendo em vista a sua utilidade para fins diferentes
daqueles para os quais foram originalmente produzidos (ARQUIVO NACIONAL,
2005, p.172).
4.1 Arquivo
4.3 Fundo
O fundo implica uma plenitude, uma completude, uma totalidade. Argumentaria que
nenhum arquivo tem, terá ou já teve "a totalidade dos documentos" de qualquer
produtor (MILLAR, 2015, p. 150).
A definição a seguir nos demonstra o quanto ela foi elaborada num pensamento longe
da realidade arquivística da documentação, seja ela de órgãos governamentais ou mesmo de
uma pessoa singular. Esta definição de fundos prima por uma totalidade dos documentos,
jamais alcançada:
Em outubro, Lange consegue reaver os restos de sua biblioteca e móveis que haviam
sobrevivido ao incêndio de 1959, como menciona em carta a Clóvis Salgado, “os
tristes remanentes [sic] da minha biblioteca, dos meus arquivos e dos bens da casa”
(COTTA, 2009, p.307).
[...] deixar agrupados, sem misturá-los a outros, os arquivos provenientes de uma [...]
pessoa física ou jurídica determinada, [assim como] respeitar a ordem estrita em que
os documentos vieram [...], a seqüência original de séries (BELLOTTO, 1991, p. 81).
A coleção foi tida, por algum tempo, como o “patinho feio” da arquivística, sendo
estigmatizada como um anti-fundo, pois seus documentos não teriam sido agrupados de uma
forma natural; em função das atividades de uma pessoa, empresa ou órgão governamental; não
trariam uma impressão de completude, como se acreditava que seria um fundo. Porém, com a
reformulação ocorrida entre o princípio da proveniência e o conceito de fundos, a coleção passa
a demonstrar o quanto seus documentos podem ter a proveniência detectada, e por isso, recebe
igual tratamento arquivístico, ao invés de um tratamento meramente biblioteconômico, como
ocorria na maioria das vezes. As coleções são agora encaradas como possuidoras de valor
arquivístico tal e qual os fundos foram até aqui tratados, mesmo sendo os documentos de uma
coleção, um “Conjunto de documentos com documentos características comuns, reunidos
intencionalmente” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p.52). Uma prova disso é a atual pesquisa
desenvolvida por mim, no programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, a respeito da
percepção de proveniência no Acervo João Mohana. Uma série de informações observadas in
loco têm contribuído para determinar a proveniência de inúmeros documentos.
Um grupo de autoras considera que o princípio da proveniência carece de
apontamentos mais contextuais da sua produção ao invés da recolha de datas e nomes
(FRANCO; THIESEN & RODRIGUES, 2017, p.36) e que o conceito de fundo necessita de
uma compreensão universal frente às mudanças nas administrações ao longo das últimas
décadas, pois, não seria mais um conceito aceitável até por ser rechaçado em alguns casos (Op
cit., p. 47).
O princípio da proveniência é, sem sombra de dúvidas, um princípio basilar da
arquivologia. Porém, sua moderna compreensão com a respectiva aplicação à música, sugere
uma discussão importante, de como a arquivologia pode beneficiar a música. A definição do
termo proveniência como “Termo que serve para indicar a entidade coletiva, pessoa ou família
produtora de arquivo” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 140) demonstra o quanto o fundo
arquivístico tem uma dependência desse fenômeno, sendo ele o fundador da arquivística.
Porém, essa noção basilar da arquivística se mantém em constantes ajustes, frente às novas
realidades arquivísticas observadas a partir das novas configurações do trabalho/produção
ocorridas ao longo do século XX.
Após a década de 1960, a arquivística passou a rever o conceito de proveniência,
expandindo-a para os conceitos de multiprocedências (KUROKI e MARQUES, 2015, p. 314);
proveniência múltipla (HURLEY, 1995, p. 4); proveniências múltiplas e sucessivas
(CUNNINGHAM, 2017, p. 77); a realidades virtuais ou múltiplas (COOK, 2017, p. 13); e a
variação de competência dos organismos (DUCHEIN, 1992, p. 22). A proveniência diz respeito
a uma série importante de implicações, pois ela pode remeter ao ente produtor e/ou utilizador
do documento. O produtor, por sua vez, pode ser o compositor ou o copista. A entidade
“compositor” pode ser representada por duas ou mais pessoas responsáveis por compor/arranjar
a composição, assim como um só documento pode ser copiado/produzido por mais de uma
pessoa, em momentos diferentes ou simultaneamente e em espaços físicos diversos. Por
exemplo, nos arquivos onde ocorreram divisões territoriais e uma cidade ou estado se dividiu
por motivos de conflitos ou de mudanças administrativas, se pudermos reconhecer a
proveniência da documentação, poderemos recompor o seu total, tal e qual no momento de sua
produção (CASANOVA, 1996 apud KUROKI; MARQUES, 2015, p. 313).
Na área da música, os catálogos temáticos por compositor, nos quais os documentos
estão custodiados em diferentes instituições possuem este entendimento. O Catálogo Temático
das obras de José Maurício Nunes Garcia (MATTOS, 1970), por exemplo, apresenta “centenas
de fontes para o CT, em instituições brasileiras e no exterior” (FIGUEIREDO, 2019, p. 5).
5. Conclusões
Inicialmente, como foi demonstrado, a simples tradução de uma nomenclatura
utilizada na Arquivística não satisfaz a realidade arquivística da documentação musical
brasileira. Como foi visto, por ser essa uma documentação especial, em termos da sua utilização
ao longo do tempo, precisamos ainda adequar essa bagagem da arquivística ao mundo musical,
sob pena de prejudicarmos tão importante campo do conhecimento, que tanto beneficia o fazer
musical. Também pudemos observar que, conforme a arquivística se move para compreender
as significativas mudanças em termos de entendimento do seu campo, a música pode e deve
igualmente buscar o seu entendimento em termos arquivísticos, frente a essa nova realidade.
Com esse entendimento, até mesmo as coleções musicais podem receber um olhar mais
atualizado, que contemple a nova compreensão da área da arquivística, como as
multiprocedências, proveniências múltiplas e sucessivas, e etc.
O certo é que ainda há muito o que se fazer, pois somente um cada vez mais largo
escrutínio, baseado na observação da realidade dos arquivos musicais brasileiros poderá
contribuir para uma utilização cada vez mais frutífera dos conhecimentos da arquivística no
mértier musical.
6. Referências
COOK, Terry. O conceito de fundo arquivístico: teoria, descrição e proveniência na era pós-
custodial [recurso eletrônico] / Tradução de Silvia Ninita de Moura Estevão e Vitor Manoel
Marques da Fonseca. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2017.
DUCHEIN, Michel. Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, V. 10-14, N. 1. pp. 14- 33, abr.
1986.
FIGUEIREDO, Carlos Alberto. O Catálogo Temático das obras de José Maurício Nunes
Garcia: da necessidade de sua revisão e atualização. In: Per Musi no. 39. UFMG: Belo
Horizonte, 2019.
HURLEY, Chris, Problems with Provenance. Archives and Manuscripts 23(2), (1995): 234–
259.