Musicologias, História e Ciências Sociais

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XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Pelotas - 2019

Musicologias, História e Ciências Sociais: aproximações necessárias

MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

SIMPÓSIO CIÊNCIAS MUSICAIS: BORRANDO FRONTEIRAS DISCIPLINARES

Carlos Ernest Dias


UFMG – [email protected]

Ian Zadorosny Quadros Vieira


UFMG - [email protected]

Resumo: A comunicação apresenta projeto de pesquisa em andamento e se insere no simpósio por


uma perspectiva interdisciplinar, procurando evidenciar a importância dos estudos históricos,
sociológicos e literários para o desenvolvimento de estudos e análises sobre as músicas brasileiras,
e procurando aproximar as experiências e práticas das ciências e saberes sobre essas músicas. Para
além das fronteiras internas entre Musicologia e Etnomusicologia, propõe-se a adoção de uma
ampla interdisciplinaridade entre as duas “Musicologias”, a História Cultural, a Literatura e as
Ciências Sociais para a compreensão da diversidade musical brasileira.

Palavras-chave: História cultural. Etnomusicologia. Diversidade musical. Interdisciplinaridade.

Musicology, History and Social Sciences: necessary approximations

Abstract: The communication presents an ongoing research project and is inserted in the
symposium by an interdisciplinary perspective, seeking to highlight the importance of historical,
sociological and literary studies for the development of studies and analyzes on Brazilian music,
and seeking to bring together the experiences and practices of the sciences and knowledge about
these songs. Beyond the internal boundaries between Musicology and Ethnomusicology, it is
proposed to adopt a broad interdisciplinarity between the two "musicologies", Cultural History,
Literature and Social Sciences for the understanding of Brazilian musical diversity.

Keywords: Cultural History. Ethnomusicology. Musical Diversity. Interdisciplinarity.

1. Premissas, histórico e contextualização


Há um senso comum de que, de todas as práticas artísticas, a música é aquela que
exerce há longuíssimo tempo maior penetração na realidade sociocultural brasileira.
Marcando importantes momentos históricos e dando sentidos à vida em sociedade, as práticas
musicais se configuram como um dos aspectos definidores do ser brasileiro e de sua história.
Nesse sentido, pretendemos nos inserir no debate “Ciências Musicais: borrando fronteiras
disciplinares” a partir de uma discussão sobre as práticas musicais vistas sob uma perspectiva
historiográfica e, ao mesmo tempo, comunicar uma pesquisa em andamento, a qual conta com
a participação de um bolsista de Iniciação Científica e está sendo fomentada com auxílio
financeiro da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG. Resultados importantes vêm sendo obtidos
pelo trabalho, cujo levantamento inicial do material de pesquisa constatou o grande número
de autores e autoras de diferentes campos de conhecimento que vêm frisando a importância
das práticas musicais como fator de conhecimento histórico e de desenvolvimento

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sociocultural. Lida-se aqui com algumas ideias não muito presentes nos ambientes
acadêmicos relacionados à Música. Uma delas é a ideia de “consciência prática” proposta
pelo sociólogo britânico Raymond Williams:

A consciência prática é aquilo que está sendo realmente vivido, e não apenas aquilo
que acreditamos estar sendo vivido. (...) É um tipo de sentimento e pensamento que
é realmente social e material, mas em fases embriônicas, antes de se tornar uma
troca plenamente articulada e definida (WILLIAMS, 1979,133).

Outra linha de pensamento a que este trabalho se alinha é a ideia de “arte como
experiência”, do educador norte-americano John Dewey.

Quando os objetos artísticos são separados das condições de origem e


funcionamento na experiência, constrói-se em torno deles um muro que quase
opacifica sua significação geral, com a qual lida a teoria estética (...) para
compreender o significado dos produtos artísticos, temos de esquecê-los por algum
tempo, virar-lhe as costas e recorrer às forças e condições comuns da experiência
que não costumamos considerar estéticas (DEWEY, 2010, 60).

Tal perspectiva se diferencia dos paradigmas existentes nas argumentações


musicológicas em nosso país, os quais nem sempre estabelecem conexões entre as condições
estéticas tratadas pelas ciências musicais e pelas condições da experiência dadas pelas práticas
musicais. Parece claro que a Etnomusicologia tem se ocupado mais das práticas e a
Musicologia mais das ciências. Mas como ficaria a abordagem historiográfica sobre as
músicas brasileiras nessa discussão? Como se precaver de recair no isolamento e
desatualização da Musicologia em relação aos estudos históricos e às Ciências Sociais,
aspectos apontados e publicados por musicólogas como Maria Alice Volpe (VOLPE, 2007, p.
109), por historiadoras como Carla Bromberg (BROMBERG, 2011, p. 432) e apontado pela
etnomusicóloga Ângela Elizabeth Lunning nas considerações sobre o Congresso 2018 no site
da ANPPPOM1?
Nesta pesquisa apontamos para a elaboração de uma historiografia musical que
caminhe lado a lado com a História Cultural, com as Ciências Sociais e com a Literatura,
observando as condições socioculturais, sociopolíticas e socioeconômicas que afetam a
criação e as práticas musicais, possibilitando um maior e melhor entendimento sobre como se
constituiu a imensa diversidade musical existente no país e, ao mesmo tempo, refletir sobre as
razões que levaram diversos musicólogos a negligenciarem a existência dessa diversidade,
atendendo a orientações políticas, estéticas e/ou ideológicas.
Não que tenhamos a intenção de escrever ou reescrever uma “história da música”
brasileira. Ao contrário, a direção da pesquisa aponta para a organização do volumoso

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conhecimento que ora se produz anualmente sobre as nossas músicas, procurando organizá-lo
por tópicos temáticos, temporais e interdisciplinares, reunindo em cada um deles um grupo de
autores que se dedicaram àquele tópico ou época. As diretrizes gerais do trabalho são dadas
pela História Cultural, a qual já foi entendida em termos de História das Mentalidades, de
Nova História, ou de “História Total”, ou seja, uma história que considera todos os aspectos
que circundam um determinado objeto de estudo, sejam eles sociais, culturais, políticos,
econômicos ou ambientais.
A pesquisa não pretende chegar a um formato bibliográfico fechado e conclusivo,
mas sim a uma proposta de constante organização de todo esse conhecimento para finalidades
pedagógicas. Trata-se da análise e seleção de uma produção bibliográfica acadêmica e
interdisciplinar sobre as músicas brasileiras produzidas nos últimos anos, a qual abrange
diferentes períodos históricos. A premissa central da pesquisa é a crença de que o
conhecimento musical gerado por diferentes ângulos e disciplinas pode contribuir para um
maior desenvolvimento dos saberes e práticas musicais em nosso país, para o conhecimento
de sua História Cultural e para o desenvolvimento sociocultural do país. Dessa forma, usando
a consciência prática, ou seja, um tipo de pensamento social e material, o projeto busca
promover a utilização da historiografia nas salas de aula dos cursos de graduação, de forma a
contribuir para o aperfeiçoamento do próprio ensino de música em âmbito universitário e
quiçá também nos níveis médio e fundamental.
“Meu sentimento era de que nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse
explicáveis em nossos próprios termos, fundada em nossa experiência histórica”, disse o
escritor e antropólogo Darcy Ribeiro, que se empenhou em construir uma teoria do Brasil
(RIBEIRO, 1995, p. 13). A assertiva é plenamente válida para o campo da Musicologia.
Ainda que se considere e se respeite a produção musicológica estrangeira que mais nos afeta
(normalmente a europeia e a norte-americana), não nos parece adequado deixarmo-nos ser
guiados por ela, uma vez que a realidade histórica, econômica e sociocultural daqueles países
do hemisfério norte é extremamente diferente da nossa, e ainda porque não se pode importar
conceitos ou teorias de outros tempos e de outras realidades socioculturais sem que nesse
processo haja uma radical mudança de sentidos e significados nessa importação.
A professora Vanda Bellard Freire argumentou longamente neste sentido. Dizia
ela em 1994 que
A História da Música tem sido feita, salvo algumas exceções, com o olhar europeu
do século XIX. Os significados têm sido negados explícita ou implicitamente em seu
discurso, ou reduzidos à determinação do social-econômico, à concepção causal, à
lógica tradicional. A realidade dos países colonizados tem sido frequentemente

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desconsiderada, quando a maioria dos estudos a analisa pela ótica europeia e termina
por concluir de seu atraso ante os centros "adiantados" (FREIRE, 1994, 167).

A partir dessas premissas e argumentos, que foram aprofundados durante o


período de doutoramento entre 2013 e 2017, é que nasceu a ideia do projeto de pesquisa.
Passamos agora a apresentar alguns exemplos de produções bibliográficas recentes que se
inserem no escopo do projeto, e que julgamos imprescindíveis constarem nessa nova
historiografia.

2. As muitas músicas brasileiras


O livro mais recente sobre a presença dos jesuítas no Brasil é o de
Marcos Holler intitulado Os jesuítas e a música no Brasil colonial, lançado em 2010 pela
Editora Unicamp. Além de detalhar o processo de criação da Companhia de Jesus na Europa e
o percurso que os trouxeram ao Brasil, o livro traz a geografia da próspera rede de
estabelecimentos que os jesuítas criaram em território brasileiro, detalhando também os
diversos gêneros e instrumentos musicais utilizados na função de catequese indígena. Como
importante contribuição aos estudos musicais e históricos, o livro propicia ao leitor a
compreensão sobre as diferentes estratégias desenvolvidas pelos padres portugueses e
espanhóis na catequese indígena, ressaltando como o regime de repartição usado pelos
portugueses trouxe muitos prejuízos ao desenvolvimento musical nas colônias lusitanas,
enquanto nas espanholas alcançou-se melhores resultados do ponto de vista das práticas
musicais (HOLLER, 2011, p. 208-9).
A destruição de documentos, a restrição ao acesso a eles, ou ainda, o falseamento
ou silenciamento sobre a história ocorrida no período colonial brasileiro é um aspecto penoso
para musicólogos, historiadores ou para qualquer pessoa interessada na História do Brasil.
Pesquisas recentes, no entanto, ajudam a reverter esse quadro. Entre elas, podemos citar o
trabalho do pesquisador José Ramos Tinhorão sobre Domingos Caldas Barbosa, livro
indispensável e presença obrigatória neste projeto de pesquisa. Indispensável - assim como a
História Social da Música Popular Brasileira do mesmo autor - pois segundo Tinhorão,
Barbosa foi aluno da última turma do Real Colégio das Artes dirigido pelos jesuítas, situado
no Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, uma das mais destacadas instituições educacionais do
Brasil daqueles tempos, pelo qual passaram proeminentes literatos setecentistas como Basílio
da Gama, Santa Rita Durão, Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto e Silva Alvarenga.
Barbosa, ao se dirigir a Coimbra para dar continuidade a seus estudos, levou na
bagagem, além da viola, seus talentos como músico e versejador, talentos que o projetaram

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como uma figura de sucesso na cena cultural lusitana da segunda metade do século XVIII.
Essa ponte cultural entre colônia e metrópole, ainda segundo Tinhorão, terá importantes
desdobramentos no estabelecimento da modinha e do lundu como dois dos principais gêneros
musicais a serem praticados na capital portuguesa, aspectos igualmente abordados por
pesquisadores como Edilson de Lima e Manuel Veiga.
O estudo das modinhas e lundus por um viés histórico e cultural alcança projeções
muito mais profundas do que aqueles estudos que consideraram esses gêneros como
“populares” em oposição aos “eruditos”, e consequentemente “menores”, pois de acordo com
esses autores, a modinha e o lundu foram gêneros centrais para o exercício dos novos
costumes e novas práticas de socialização tanto nas novas classes burguesas do século XVIII
quanto nas sociedades cortesãs e nos entremezes das óperas e operetas encenadas na capital
portuguesa e em outras cidades europeias.
Outro importante e aprofundado trabalho construído pelas premissas da História
Cultural sobre o período é o livro O Som social – música, poder e sociedade no Brasil (Rio de
Janeiro, séculos XVIII e XIX), de Lino de Almeida Cardoso, lançado em 2011. Escrutinando
diversos arquivos e bibliotecas brasileiros e portugueses, além de manuscritos e periódicos de
várias cidades europeias e norte-americanas, a vasta pesquisa documental deste autor traz à
luz as impressões de muitos viajantes estrangeiros de passagem pelo Brasil sobre as práticas
musicais no período que antecede à chegada da corte de D. João em 1808 ao Rio de Janeiro.
O som social, reunindo impressões sobre as práticas musicais realizadas no Rio de Janeiro no
tempo dos vice-reis anotadas em cartas, ofícios, crônicas e relatos de oficiais, diplomatas e
outros funcionários de governo de diferentes países em viagem ao Brasil, contesta
respeitosamente as principais “histórias da música” brasileiras, as quais consideram o período
anterior à chegada da corte portuguesa em 1808 como um período vazio e inexpressivo do
ponto de vista da produção musical.
São, portanto, duas pesquisas que tratam do mesmo período percorrendo trilhas
diferentes, mas que se complementam e convergem para a elucidação do trânsito cultural
entre Brasil e Portugal na segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Se
Tinhorão traz à luz o sucesso do mulato Caldas Barbosa na sociedade portuguesa, Cardoso
ilumina a figura da negra Lapinha, cantora lírica brasileira, sensação dos teatros de ópera
cariocas e portugueses.
Com o traslado e permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro a partir de
1808, a adoção de valores filosóficos e culturais oriundos da Revolução Francesa provocariam
profundas alterações nas práticas musicais cortesãs da cidade do Rio de Janeiro, valores que,

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apesar de controversos, haveriam de permanecer como um fenômeno histórico de longa


duração, percebíveis ainda hoje no ensino acadêmico de música e nas salas de concerto das
principais capitais brasileiras. Podemos percebê-los nas práticas pedagógicas guiadas por
padrões culturais oitocentistas e novecentistas, como por exemplo, a música romântica e a
ópera italiana. Também sobre esse período as pesquisas musicológicas avançaram bastante,
destacando-se os trabalhos de Régis Duprat, Paulo Castagna, Rogério Budasz e Maurício
Monteiro.
Consideramos arriscado, porém, considerar esse período como um período de
“construção do gosto”, como o fez Monteiro. Não desmerecendo essa importante pesquisa, há
que se considerar que muitas músicas se faziam antes da chegada da corte portuguesa e
continuou sendo feita concomitantemente à sua presença no Brasil, como destacou a
pesquisadora Mônica Leme, abordando a existência do próspero mercado editorial que
enriqueceu músicos-empresários como Arthur Napoleão e Pierre Laforge, entre muitos outros.
Outros novos e fundamentais trabalhos sobre o século XIX se incluem na pesquisa, como os
de Avelino Romero Pereira sobre Alberto Nepomuceno e o de Antônio José Augusto sobre o
músico Cavalier Darbilly. Ambos trazem informações reveladoras sobre as relações entre o
tipo de ensino musical desenvolvido no Conservatório de Música do Rio de Janeiro e a
importação de valores culturais e ideológicos europeus, seja no Império ou após a
proclamação da República.
Interfaces profundas entre História e Música têm sido produzidas a partir dos
escritos de Arnaldo Contier, Marcos Napolitano, J. G. Vinci de Morais, Heloísa Starling,
Tânia da Costa Garcia, Cacá Machado, Guilherme Poletto, entre outros. Na Sociologia
destacam-se Renato Ortiz e Santuza Naves e na Literatura José Miguel Wisnik, Luiz Tatit,
Júlio Diniz e André Haudenschild. Na Antropologia e na Etnomusicologia, Carlos Sandroni,
José Jorge de Carvalho, Glaura Lucas, Elizabeth Travassos e Hermano Viana são referências
obrigatórias.
O que queremos destacar é o que já foi dito, que a distância entre a Musicologia
concebida em padrões estrangeiros e as práticas musicais exercidas de longa data por músicos
integrantes de uma sociedade colonizada sempre tenderá a obter resultados parciais e a
incorrer em negligência histórica em relação a gêneros, agremiações, compositores e músicos
de suma importância para a compreensão do processo de amadurecimento musical do país.
Entre esses, podemos citar as irmandades religiosas, as sociedades de concertos, as bandas
militares e civis, as canções, as serestas, as modinhas, os lundus, o mercado editorial, o teatro
de revista, a música caipira, o tango brasileiro, as mágicas, o choro, o maxixe, o samba, o

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funk, o rap, os inúmeros gêneros sulinos, nortistas e nordestinos, sem falar nos outros saberes
e práticas musicais dos povos afrodescendentes e indígenas, os quais sempre foram
habitualmente tratados de forma “separada” pela Etnomusicologia.
Procurando transpor fronteiras disciplinares e interdisciplinares e baseando-se nas
premissas da História Cultural, o projeto de pesquisa busca elaborar uma proposta pedagógica
e bibliográfica que considere as práticas musicais como parte integrante da vida cultural e
social do país, que considere a diversidade musical brasileira e que dê voz àqueles
protagonistas da história silenciados e esquecidos. Por essas trilhas, acreditamos ter mais
chances de entender e de resolver alguns impasses existentes na historiografia musical, entre
eles a questão da excludente identidade nacional propalada pelo Romantismo e avivada pelo
Modernismo, a qual gerou entre nós um curioso “modernismo folclorista”.
Considerar a diversidade musical é também transpor as fórmulas do tipo
erudita/popular/folclórica, hoje claramente insuficientes como ferramentas de análise, assim
como o redutor binarismo erudito/popular. Esse binarismo é também um fenômeno oriundo
da Europa. Não exclusivo das músicas, ele obedece mais a orientações sociais e políticas do
que propriamente a uma orientação cultural. Peter Burke explica isso com clareza no clássico
Cultura popular na Idade Moderna, mostrando como a alfabetização desempenhou papel
fundamental no reposicionamento e separação das classes sociais. Por aqui, ao invés da
configuração social europeia nobreza-clero-plebe, tivemos uma sociedade marcada pelo
analfabetismo, pela escravidão e pela polarização entre povos brancos livres e povos de cor
escravizados.
Ao longo do tempo, no entanto, principalmente no século XIX, se configurou no
Brasil uma classe média formada por comerciantes, tipógrafos, profissionais liberais,
jornalistas, professores, músicos, etc. a qual é responsável pela criação e consumo de um tipo
de música de alta qualidade que não obedece aos padrões das sociedades cortesãs e tampouco
a um padrão folclórico e camponês como havia na Europa. É uma classe média ativa, crítica e
bem informada, que já determinou por diversas vezes os rumos da História Cultural brasileira,
bastando citar por enquanto alguns ilustres representantes, como Machado de Assis, Antônio
Carlos Jobim e Vinicius de Moraes.
A argumentação acima desenvolvida se confirma vivamente com o fato de, em
março de 2019, a Escola de Samba da Mangueira ter vencido o concurso do carnaval do Rio
de Janeiro com o samba-enredo “História pra ninar gente grande”, A letra do samba-enredo,
como sugere o título, aponta para “os versos que o livro apagou”, para o “sangue das

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mulheres, tamoios e mulatos”, para o “sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”, para
todos os seres que não aparecem no “retrato” da história brasileira.
Verifica-se, portanto que há uma necessidade de atualização de métodos e
procedimentos por parte de nós, professores de Música no Brasil, no sentido de acertarmos o
relógio com o século XXI. Precisamos de ciências musicais sem fronteiras internas, sem
binarismos do tipo erudito/popular, teoria/prática ou Musicologia/Etnomusicologia. Somos
brasileiros, temos uma das melhores e mais diversas músicas do planeta e precisamos de
saberes construídos a partir das próprias práticas, ou como disse Dewey, das forças e
condições comuns da experiência. Da nossa experiência.
Referências:
AUGUSTO, Antônio José. A questão Cavalier: música e sociedade no Império e na
República (1846-1914). Rio de Janeiro: Folha seca: Funarte, 2010.
BROMBERG, Carla. Histórias da Música no Brasil e Musicologia: Uma Leitura Preliminar.
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BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna Europa 1500-1800. Tradução de Denise
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CARDOSO, Lino de Almeida. O som social: música, poder e sociedade no Brasil (Rio de
Janeiro, séculos XVIII e XIX). São Paulo, edição do autor, 2011.
DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução Vera Ribeiro. – São Paulo: Martins Fontes,
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FREIRE, Vanda B. A História da Música em Questão: uma Reflexão Metodológica. Revista
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HOLLER, Marcos. Os jesuítas e a música no Brasil Colonial. Campinas: Editora da
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LEME, Mônica. Mercado editorial e música impressa no Rio de Janeiro (séc. XIX):
modinhas e lundus para iaiás e “trovadores de esquina”. I Seminário brasileiro sobre Livro e
história editorial UFF/PPGCOM. Rio de Janeiro, 2004.
LIMA, Edilson V. de. A modinha e o lundu: dois clássicos nos trópicos. Tese (Doutorado).
ECA/USP, São Paulo, 2010.
MONTEIRO, Maurício. A construção do gosto. Música e sociedade na corte do Rio de
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PEREIRA, Avelino R. Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a república
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RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
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TINHORÃO, José Ramos. Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do
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VEIGA, Manuel. O estudo da modinha brasileira. In: Latin American Music Review /
Revista de Música Latino-americana. v. 19, n. 1. Spring - Summer, 1998, pp. 47-91.
VOLPE, Maria Alice. Por uma nova musicologia. In: Música em Contexto - Revista do
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WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1979.

Notas
1
Disponível em http://anppom.com.br/wp-content/uploads/2018/10/Luhning-Reflexo%CC%83es-sobre-a-
ANPPOM.pdf acesso em 31/03/2019

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