Endereçamento Estética e Normatividade - Monique Roelofs
Endereçamento Estética e Normatividade - Monique Roelofs
Endereçamento Estética e Normatividade - Monique Roelofs
1
Ensaio @ Monique Roelofs. Tradução de Gustavo Guimarães, Pedro Fernandes Galé e
Oliver Tolle.
2
Um pequeno exemplo de escritos relevantes incluem Louis Althusser, “Ideology and Ide-
ological State Apparatuses (Notes Toward and Investigation),” in Lenin and Philosophy and
Other Essays (New York: Monthly Review Press, 1971); Michel Foucault, The History of Sexuality,
vol. 1: An Introduction, trans. Robert Hurley (New York: Vintage, 1978); Gayatri Chakravorty
Spivak, “Can the Subaltern Speak?,” in Marxism and the Interpretation of Culture, ed. Cary
Nelson and Lawrence Grossberg, 271-313 (Urbana: University of Illinois Press, 1988); Stuart Hall,
“New Ethnicities,” in Stuart Hall: Critical Dialogues in Cultural Studies, ed. David Morley and
Kuan-Hsing Chen, 441-449 (New York: Routledge, 1996); Miriam Hansen, Babel and Babylon:
Spectatorship in American Silent Film (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1991); Jacques
Rancière, The Emancipated Spectator, trans. Gregory Elliott (London: Verso, 2009); e Judith
44
Colheres, portas [...] como remetentes e destinatários | M������ R������ 45
Butler, Giving an Account of Oneself (New York: Fordham University Press, 2005).
3
Sobre este relato da estética, endereçamento e a centralidade do endereçamento para a
estética, veja Monique Roelofs, The Cultural Promise of the Aesthetic (Nova Iorque: Bloomsbury,
2014), 1-2, 10, 27, 207, 209-11 , 215-16n. 22.
46 Rapsódia 11
ao um vídeo dela, o qual foi criado em parceria com Tiago Mata Machado.4
abrangência do nós e para nós que ocorrem frequentemente no que eu disse dão
origem a uma multidão de perguntas legítimas —, faz sentido pensar no sol em
que nos aquecemos, na onda que está prestes a rebentar sobre nós, na nuvem de
areia que vem na nossa direção e no vento que nos causa frio como entidades que
nos endereçam.
Ao invés da indicação incontestável de um ponto de vista ilusório, alucinante
ou devastadoramente solitário, essa maneira de pensar reconhece a importância e
as inúmeras tonalidades de signi��cados que criamos nas experiências cotidianas
de nossos ambientes e nos quais dependemos dos comportamentos evidenciados
não apenas pelas criaturas vivas, mas também, mais amplamente, pelos objetos
e forças materiais com os quais interagimos. Em poucas palavras, minha visão
ampla e inclusiva de endereçamento procura auxiliar na compreensão das proxi-
midades entre pessoas e coisas. Decididamente, com isso não se deve ignorar o
signi��cado que as diferenças entre atos intencionais e não intencionais podem ter
e muitas vezes têm. Em vez disso, recusamo-nos a permitir que essas distinções
nos façam perder de vista o que também precisamos reconhecer: a centralidade da
experiência e os conteúdos fenomênicos inerentes ao nosso envolvimento mútuo
com artefatos e outros objetos.
O endereçamento é caracterizado por sua relacionalidade e direcionalidade
fundamentais: ocorre entre remetentes e destinatários; além disso, ele é enviado
dos remetentes para os destinatários e vice-versa. (E os remetentes, assim, como
já foi indicado, certamente podem ser pardais ou oradores, mas também poços,
torneiras, sonatas de piano ou decretos legais). Na medida em que todo ende-
reçamento serve de suporte para as relações e as direções, os relacionamentos
particulares e estratos de direcionalidade — que codi��camos nas redes de ende-
reçamento em que nos inserimos — variam e passam por turnos à medida que
nos envolvemos no endereçamento. A relacionalidade e a direcionalidade que
marca o endereçamento, portanto, assume formas evolutivas conforme adotamos
e retomamos modos especí��cos de endereçamento.
48 Rapsódia 11
mente, uma sociedade de cidadãos do mundo. Assim, ele imagina uma plataforma
cosmopolita para o endereçamento estético.7
Podemos encontrar um movimento análogo em Hume. Em seu ensaio fun-
damental Of the Standard of Taste, ele fala de obras de arte que são "endereçadas
a um público"(grifo meu) e exige que seu observador obtenha liberdade frente a
preconceitos ao lidar com essas obras.8 De acordo com isso, o observador estético
deve tornar o modo de endereçamento que adota em relação à obra adequado
à forma pública de endereçamento da obra. Hume, entretanto, espera que esta
forma pública de endereçamento, por sua vez, seja receptiva aos modos de en-
dereçamento que os perceptores podem presumir diretamente a partir da obra.
Assim, ele esboça um modelo de endereçamento mútuo que ocorre entre obras
de arte e observador. Este cenário recíproco, conseqüentemente, serve como base
para uma estética cosmopolita, que ultrapassa países e épocas especí��cas. Surpre-
endentemente, as teorias de Hume como de Kant postulam públicos compostos
pela humanidade em geral e círculos particulares e historicamente especí��cos (no
caso de Hume, públicos visando determinadas produções culturais e, no caso
de Kant, públicos históricos que ele considera necessitados de esclarecimento
cada vez maior). Em ambos os ��lósofos, cuja centralidade para a compreensão
contemporânea da estética é difícil de superestimar, encontramos uma dualidade
e uma coincidência de especi��cidade e generalidade, particularismo e abstração.
É a dimensão particularista de endereçamento que ocupa um lugar central em
análises culturais mais recentes, as quais entendem o endereçamento como um
veículo para trabalhos raciais e para o posicionamento contextual das obras de
arte. A teórica literária Barbara Johnson, por exemplo, usa a noção para identi��car
as orientações e solicitações que as obras de arte dirigem a públicos em contextos
históricos concretos. Em uma discussão do ensaio de Zora Neale Hurston, How it
Feels to be Colored Me, Johnson mostra como Hurston "desconstrói os próprios
motivos de uma resposta” à pergunta encapsulada no título de Hurston, respon-
coisas e lugares, e eles para nós e para cada um dos outros. O endereçamento,
então, ocorre em todos os sentidos, na cognição e na emoção. Em sua coleção de
estórias de 1962, Historias de Cronopios y de Famas, Cortázar investiga as capaci-
dades e limitações de vários tipos de endereçamento. O conto de abertura, que
não possui título, da primeira parte do livro, este sim denominado "O Manual de
Instruções”, endereça ao leitor várias instruções. Aqui está uma dekas:
objetos, bem como o nosso senso de nós mesmos como atores que lidam com
esses objetos. A segunda parte, intitulada “Ocupaciones raras”, descreve com-
portamentos insurgentes que questionam as maneiras pelas quais as coisas são
normalmente realizadas em vários tipos de contextos institucionalizados. A ter-
ceira parte, “Material plástico", apresenta substâncias transmutadoras. A quarta
parte, “Historias de cronopios y de famas”, gira em torno de três tipos de criaturas
inventadas. Cronopios são seres apaixonados e desordenados que prosperam
em estados de incalculabilidade. Famas gosta de controlar o que está aconte-
cendo. Esperanza aguarda o que acontecerá. Os comportamentos dos três tipos
de personagens e seus confrontos na última parte do livro — juntamente com o
repertório de instruções, comportamentos incomuns e substâncias mutáveis nas
três primeiras partes — nos proporcionam um grande número de oportunidades
para considerar o endereçamento em atividade: o plano da coleção de estórias
de Cortázar é propício para re��exões sobre as oscilações do endereçamento entre
as dualidades de liberdade e restrição, bem como de estase e mobilidade. Ao
longo da coleção, a conduta das pessoas e as atividades da linguagem surgem
segundo seu uso material e em seu envolvimento com os comportamentos de
coisas e lugares. A organização do livro também se presta a um exame das formas
pelas quais ambos os lados das polaridades de liberdade e restrição e estase não
estão operantes no outro, mas, em última análise, também dependem do outro.
Esta interligação se torna evidente primeiro na estória de abertura sem título de
Historias de cronopios y de famas, a qual agora vamos examinar mais de perto.
la mesa [que] eche a andar otra vez en la bicicleta de nuestros anteojos” (12). Na
mesma linha, parece não haver maneira de superar a distância que nos separa de
“lo otro tan cerca de nosotros”, por empurrar [empujar] “del centro del ladrillo
de cristal... hacia afuera” para esse “inalcançável” outro (12). O ladrilho se coloca
entre indivíduos, impedindo a sua conexão. Como habitante do compartimento
de cristal, o destino do narrador é estar encaixotado.
O ladrilho, de fato, conhece estados variáveis de con��namento, assumindo a
forma do apartamento e do prédio onde a ação se dá. Mas também é grudento e
viscoso: compreende uma “la masa pegajosa” (11); torna-se uma “masa transpa-
rente” (11); e se transforma em uma “pasta de cristal congelado” (12). Não sem
paradoxo, o cômodo de vidro muda de um estado de constrição para outro: de
jornal ele se transforma em globo, no intestino do narrador, no seu pênis, na cama
que ele compartilha com uma mulher e no “paralelepipedo de nombre repug-
nante” (11) que ele visita pela manhã e que Cortázar deixa inonimado. Alguma
medida de ��uidez não é estranha ao ladrilho.
De fato, vários acontecimentos inesperados, como a canção dos vizinhos do
andar de cima, rompem a previsibilidade associada ao compartimento do cristal.
Uma mariposa pode de repente pousar no lápis, que “late como un fuego cenici-
ento, mírala, yo la estoy mirando, estoy palpando su corazón pequenísimo, y la
oigo, esa polilla resuena en la pasta de cristal congelado, no todo está perdido” (11).
O ladrilho tem certa plasticidade. O jornal, além disso, de que somos informados
istno ��nal da história, precisa ser comprado na esquina da rua.
vila. Vira isso do ónibus. A vila além do número 106 tinha uma plaqueta onde
estava escrito o nome das casas. Chamava-se ‘Nascer do Sol’. Bonito o nome que
também augurava coisas boas."14 Macabéa encontra alegria nos detalhes estéticos
que ela percebe nas margens da cidade – elementos que muitas vezes comunicam
agudamente o leitor de sua posição (de Macabéa) em, ou melhor, para além do
tecido social aceito. Ela saboreia os pingos que ouve no rádio, os avisos dos navios
de carga passando pelas docas e os gritos de um galo. Assim como Macabéa ama
marginália estética, Rodrigo a ama. “Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha
querida Maca, apaixonado pela sua feiura e anonimato total pois ela não é para
ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela."15 Não obstante –
ou talvez precisamente por causa de – seu amor esteticamente alimentado pelo
personagem que ele criou, Rodrigo a deixa morrer depois que uma cartomante
prediz seu encontro iminente com um estrangeiro rico e justo, inspirando nela
um anseio pelo futuro, que ela nunca sentira antes. Neste momento, Macabéa
deixa sua perspectiva estética desinteressada e Rodrigo perde o interesse por sua
protagonista.
A novela denuncia o papel desempenhado pela beleza – e a estética mais
amplamente – no abandono de Macabéa. A hora da estrela desa��a o sistema de
endereçamento em que sua protagonista é colocada, junto com o leitor e a própria
Lispector.16 Aqui vou condensar uma longa análise para focar apenas em alguns
aspectos do endereçamento da novela. Em poucas palavras, o romance se abstém
de postular uma estrutura de endereçamento que ofereça uma visão inabalável
e unidirecional sobre o bem e a verdadeira beleza. Lispector, portanto, desloca
o léxico da beleza, perturbando o padrão de endereçamento e relacionamentos
que esse conceito ajuda a manter – padrão simultaneamente de gênero, classista,
colonial e racializado.17 Uma atitude ética e esteticamente legítima por parte dos
14
Idem, p. 57.
15
Idem, p. 72.
16
Para uma discussão mais detida desses aspectos do romance, ver Roelofs, The Cultural
Promise of the Aesthetic, 89-93, 102-105, 178-86, 195, 198-99, 203-205.
17
Para uma investigação mais ampla do signi��cado de endereçamento para críticas artísticas
das formações de racialização, de sexismo, construção de classes e colonialismo (em seu entrela-
çamento com outras categorias da diferença), ver Monique Roelofs, “Estética, endereçamento
e ‘sutilezas’ raciais” (Aesthetics, Address, and Racial “Subtleties”), in Estética em preto e branco,
Colheres, portas [...] como remetentes e destinatários | M������ R������ 61
privilegiados para com os pobres não é oferecida – nem Rodrigo, nem Lispector,
nem o leitor são absolvidos da cumplicidade com as desgraças de Macabéa. Lis-
pector mina a linguagem da beleza e da feiúra que sustenta o negligenciável ser
social de Macabéa e decreta seu abandono.
Em última análise, no entanto, a vida estética do leitor continua, assim como
a do autor: “as nuvens são brancas e o céu é todo azul”.18 A hora da estrela
conclui com a recomendação: “Não esquecer que por enquanto é tempo de
morangos. Sim”.19 A exigência da acusação realizada por Rodrigo e a urgência de
uma narrativa que grita e golpeia o leitor no estômago se dissolve em banalidades
estéticas. Ao mesmo tempo, essas observações coloquiais sinalizam percepções,
desejos e gostos estéticos concretos que compõem nossa experiência de espaço e
tempo e, de tal forma, se dirigem [address] ao leitor como agente estético.
Se o romance atinge o tipo de desfecho que é típico dos ��lmes – o assassinato
de uma protagonista feminina – as últimas palavras de Macabéa, “Quanto ao
futuro”, convidam-nos a contemplar os novos passos do afastamento do sistema
estético que resulta na morte de Macabéa e inventar um quadro alternativo de
signi��cado estético.20 Na dedicatória inicial, o autor-alter-ego-Lispector observa:
“Essa história se desenrola num estado de emergência e calamidade pública. É um
livro inacabado porque não oferece resposta. Uma resposta que espero que al-
guém em algum lugar do mundo possa fornecer. Você talvez?”21 A frase “.Quanto
ao futuro.”, cercada por um ponto inicial e ��nal, apareceu anteriormente como
um dos títulos que Lispector elenca para a obra.22 É também – o ponto ��nal, mas
não o ponto inicial incluído – a frase com a qual Rodrigo imagina começar sua
história de Macabéa. Dado que a novela nos entrelaça como leitores no sistema
estético que denuncia, também nos apresenta várias opções para o endereçamento
para o qual sinaliza o romance, um dos quais seria o de assumir o endereçamento
da segunda pessoa e tentar fornecer uma resposta à catástrofe desencadeante que,
ed. Carla Milani Damião and Fabio Ferreira de Almeida (Goiânia, Goiás: Edições Ricochete and
CEGRAF/UFG, 2018). Obra no prelo, a ser publicada em maio de 2018.
18
Idem, p. 34.
19
Idem, p. 88.
20
Idem, p. 86.
21
Idem, p. 86.
22
Idem, p. 22.
62 Rapsódia 11
Fig. 2: Pope.L, Whispering Campaign, Do- Fig. 3: Pope.L, Whispering Campaign, Docu-
cumenta 14, Kassel, Germany, 2017. Photo menta 14, Neue Galerie, Kassel, Germany, 2017.
Mathias Voelzke © Pope.L. Courtesy of the ar- Photo Mathias Voelzke © Pope.L. Courtesy of
tist and Mitchell-Innes & Nash, NY. the artist and Mitchell-Innes & Nash, NY.
Fig. 4: Pope.L, Whispering Campaign, Docu- Fig. 5: Pope.L, Whispering Campaign, Docu-
menta 14, First Cemetary, Athens, Greece, 2017. menta 14, Areos Park, Athens, Greece, 2017.
Photo Fanis Vlastaras © Pope.L. Courtesy of the Photo Yiannis Hadjiaslanis © Pope.L. Courtesy
artist and Mitchell-Innes & Nash, NY. of the artist and Mitchell-Innes & Nash, NY.
incluem White People Are God’s Way of Saying I’m Sorry (2010), Green People
are a Recent Invention (2011), Orange People the Way Things Used to Be When
They Were in Power (2012) [��gs. 8-10]. Se os agrupamentos de pele e os esque-
mas epidérmicos têm historicamente determinado identidades e continuam a
designá-las de modo que têm efeitos horríveis, a Whispering Campaign de Pope.L,
juntamente com esses Skin Set Drawings, ao empregar a fórmula de identidade
racial por excelência (ou seja, “x-colored people are______”), situam o projeto
de representação de identidade no domínio da imaginação política, rebaixando
a racionalidade do senso comum das asserções de identidade estimuladas por
leituras-de-pele. Esquemas para o que podemos chamar de sk-in-terpretation es-
tão sendo revistos aqui. Pope.L repensa as cenas, lugares, mecanismos e modelos
interpretativos considerados reveladores de identidade, seguindo manchas pretas
que parecem ser (partes de) os corpos de alguns insetos rastejantes. Mudando o
foco artístico da expectativa de identidades representadas para suas armadilhas
68 Rapsódia 11
Fig. 10: Pope.L, White People Are God’s Way of Fig. 11: Pope.L„ Red People Are My Mother
Saying I’m Sorry, 2010. Mixed Media on paper. When She Sick and Visiting Me in the Hospi-
11 3/8 by 9 in. 28.9 by 22.9 cm. © Pope.L. Cour- tal, 2010. Mixed media on paper. 11 1/2 by 9 in.
tesy of the artist and Mitchell-Innes & Nash, 29.2 x 22.9 cm. © Pope.L. Courtesy of the artist
NY. and Mitchell-Innes & Nash, NY.
INTRODUCTION (PART 1)
I arrived at the perimeter of the city and was met by three emissaries with
large black dots on their foreheads. They looked upon me for a long time
as if measuring me for a dark place. Then without warning, they turned
and walked away, and I followed.26
13 47 7981 4116 5264 7E18
Aus großer Höhe landete ich in den Vororten der Stadt wie ein Rache-
engel, aber ohne Wut oder Flügel, nur ein kleines Päckchen, ich war von
den städtischen Diensten geschickt worden, um wie sie es nannten einen
schwarzen Körper zu empfehlen—am Rand der Anlage wurde ich von
drei Gesandten empfangen—
IGNO RANC EISA VIRT UE99
3133 6202 1231 7897
[De grande altura, desembarquei nos arredores da cidade, como um anjo
de vingança, mas sem ira ou asas, apenas portando uma pequena emba-
lagem. Eu tinha sido enviado pelos serviços da cidade para recomendar
um chamado corpo negro — na borda do lugar, fui recebido por três
emissários.]
A exploração da temática negra por Pope.L nas passagens citadas busca tanto
a ignorância quanto estar mergulhado nela. Ele ecoa a polivalência da máxima
26
Pope.L, Whispering Campaign: Kassel. Exhibition brochure, n.p. , n.d.
70 Rapsódia 11
GEOGRAPHICAL COLLAGE-ATHENS
At the edge of the atrium is the end of the picture, and the beginning of
another part of the photograph, an electronic photograph. On the other
side of this edge is blackness. This blackness, of which I am in, encloses an
entire world. I can see this world but I cannot experience it. Or I should
say there is a part of me that at this moment sits in this room in Chicago
writing and there is a part of me which navigates the darkness and leaps
into the black, disappears into its density which is everything and itself.
XX And simultaneously there is this other part, this European density: I
call it ‘My Europe’, which now appears on its knees staring at the rough
stone ��oor of a vaulted passage, a tunnel beneath the east retaining wall of
the Panathenaic Stadium built in the fourth century BC in a ravine during
the tenure of the archonship of Lykourgos. XXX
[Na borda do átrio está o ��m da imagem e o início de outra parte da fotogra-
��a, uma fotogra��a eletrônica. Do outro lado desta borda está a negritude.
Essa negritude, da qual estou dentro, encerra um mundo inteiro. Eu posso
ver esse mundo, mas não posso experimentá-lo. Ou eu deveria dizer que
ele é uma parte de mim, e é uma parte de mim que neste momento navega
na negritude e salta para o preto, desaparece em sua densidade, que é tudo
e ela mesma. XX E, ao mesmo tempo, há essa outra parte, essa densidade
européia: eu a chamo de ‘Minha Europa’, que agora aparece de joelhos
olhando para o piso de pedra áspera de uma passagem abobadada, um tú-
nel abaixo do muro de contenção leste do Estádio Panatenáico construído
no século IV aC em um barranco durante o mandato da magistratura de
Licurgo. XXX]
e além do quadro fotográ��co. Ela está em Chicago, Atenas, Kassel (como ��ca
evidente na passagem que se segue, que se direciona para uma localização na
última cidade) e Europa. A negritude Pope.L traça mudanças entre o visto e o
não experimentado. Ele assume a forma de uma presença local, bem como uma
negociação cosmopolita/migratória.
Encontramos aqui uma negritude que altera as formas de acordo com a estru-
tura do endereçamento que a abriga. Esta situação repercute com a discussão de
Johnson sobre a compreensão de Hurston acerca da questão “colored me”, bem
como com a imagem do ladrilho metamór��co de Cortázar. Contra o pano de
fundo dos múltiplos quadros de signi��cado acumuladas na matriz da cultura per-
cebida como uma rede de endereçamentos, a negritude pode recrutar as diferentes
formas e normas disponíveis em numerosos esquemas signi��cativos divergentes.
Para delinear este ponto nos termos exatos de meu modelo básico de endereça-
mento: na rede de endereçamento – ou, em outras palavras, na montagem de
estruturas de endereçamento –, que é cultura, a negritude pode mobilizar uma
vasta gama de normas, formas, estruturas, cenas e roteiros de endereçamento, da
qual ela pode depender para seus signi��cados, lógica e mecanismos, sua produti-
vidade temporal e espacial e suas dimensões experienciais. Uma noção de cultura
modelada em relação ao endereçamento alimenta as experiências de Pope.L com
negritude, outras identidades raciais e nação. É a cultura em sua capacidade ampla
de rede de endereçamentos que compreende a plataforma para essa perspectiva
experimental sobre as con��gurações de raça e nação. Todos os tipos de formas de
endereçamento podem participar e tem relevância para o projeto de invenção a
partir do qual as posições e identi��cações raciais podem surgir e a partir do qual
nosso repertório de conceitos raciais pode extrair seus signi��cados. Pope.L sugere
que as formas que essas posições e identi��cação tomam podem re��etir as fontes
dispersas em toda a rede de endereçamentos que abrange a cultura.
72 Rapsódia 11
Fig. 12: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017, piso
de grade, pedras e carpete. Chão de caça foi um projeto comissionado pela Fundação Bienal de São Paulo.
© Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da Sprovieri Gallery, Londres (Photo © Ricardo Tosetto)
cadas. Pinturas, feitas em tecido listrado preto e branco e com as listras pretas
pintadas de branco, estavam penduradas nas paredes. O vídeo em looping, que é
mostrado em uma tela colocada na segunda e maior sala do andar, mostrou o que
pareciam ser prisioneiros forjando aberturas no telhado de um prédio, do qual
eles emergiam gradualmente pela abertura em números cada vez maiores. Nuvens
de fumaça começaram a explodir. O quadro e as telhas do telhado ressoavam
conspicuamente com as ranhuras na grade, estabelecendo correspondências entre
o alto e o baixo. O comunicado de imprensa para a exposição referia-se a revoltas
recentes da prisão, não só no Brasil, mas também em Bangkok, Glasgow, Milão,
Sri Lanka, e Sidnei – e poderíamos acrescentar também a Bélgica e a Venezuela.
Figs. 13 e 14: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017. © Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da
Sprovieri Gallery,
Londres (Photo 13 © Ricardo Tosetto and Photo 14 © Monique Roelofs)
Fig. 15: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017; Floresta de sinais,
tinta acrílica serigrá��ca sobre tecido listrado. © Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da Sprovieri Gallery,
Londres. (Photo © Monique Roelofs)
Figs. 16 e 17: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017; Cobra-patuá,
cadarço sobre pedras e cordas. © Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da Sprovieri Gallery,
Londres. (Photo 16 © Monique Roelofs and Photo 17 © Ricardo Tosetto)
Figs. 18 e 19: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017; Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, Nau,
2017. Cinthia Marcelle, Cobra-patuá. © Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da Sprovieri Gallery, Londres. (Photo 18 ©
Ricardo Tosetto and Photo 19 © Monique Roelofs)
Observação ��nal
Tendo localizado o conceito de endereçamento nos escritos dos ��lósofos
Hume e Kant e da estudiosa literária Barbara Johnson, delineei várias característi-
cas principais desse fenômeno, a saber, seu caráter multimodal, sua capacidade
de ir de e para as coisas bem como as pessoas e seu caráter relacional e direcional.
Forneci um modelo básico para compreender o endereçamento: o paradigma das
normas, formas, estruturas, cenas e roteiros conjuntamente operacionais. Em
uma leitura da história de abertura sem título da coleção de Cortázar Historias
de cronopios y de famas, observamos como o endereçamento está subjacente a
76 Rapsódia 11
Fig. 20: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017; Cinthia Marcelle e
Tiago Mata Machado, Nau, 2017, video, 44 mins. © Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da Sprovieri Gallery,
Londres. (Photo © Monique Roelofs)
Figs. 21 e 22: Cinthia Marcelle, visão da instalação Chão de cac¸a, 2017; Cinthia Marcelle e
Tiago Mata Machado, Nau, 2017, video, 44 mins. © Cinthia Marcelle, cortesia da artista e da
Sprovieri Gallery, Londres. (Photo © Ricardo Tosetto)