Inovacao Responsavel

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ESPAÇO TEMÁTICO: COVID-19 – CONTRIBUIÇÕES DA SAÚDE COLETIVA

THEMATIC SECTION: COVID-19 – PUBLIC HEALTH CONTRIBUTIONS

Promovendo o bem comum em tempos


de COVID-19: a perspectiva da Inovação
Responsável em Saúde

Fostering the common good in times of COVID-19:


the Responsible Innovation in Health perspective

Promoviendo bien común en tiempos de COVID-19:


la perspectiva de la Innovación Responsable Hudson Pacifico da Silva 1
Robson Rocha de Oliveira 1
en Salud
Renata Pozelli Sabio 1
Pascale Lehoux 2

doi: 10.1590/0102-311X00157720

A pandemia de COVID-19 é um dos problemas de saúde pública mais graves das últimas décadas. 1 Public Health Research
Center, University of
Em 10 de junho de 2020, aproximadamente 7,3 milhões de casos e 413 mil mortes haviam sido ofi-
Montreal, Montreal,
cialmente notificados no mundo todo 1. Embora muitos países tenham conseguido achatar a curva de Canada.
infecção pelo SARS-CoV-2, a situação é particularmente grave na América Latina, região considerada 2 Department of Health

recentemente o novo epicentro da pandemia segundo a Organização Mundial da Saúde. Diante desse Management, Evaluation
and Policy, University
cenário, agravado pela inexistência de vacina ou tratamento eficaz contra a COVID-19, diversas solu- of Montreal, Montreal,
ções têm sido propostas para o seu enfrentamento. Tais soluções incluem testes para rastreamento Canada.
e confirmação diagnóstica 2, intervenções não farmacológicas de alcance individual, ambiental e
Correspondência
comunitário para reduzir a velocidade de transmissão do vírus 3 e tecnologias para o tratamento H. P. Silva
dos pacientes 4. Public Health Research
Além de questões relacionadas à eficácia e à segurança dessas soluções, a rapidez com que elas Center, University of
Montreal.
têm sido desenvolvidas e disponibilizadas à população levanta também um conjunto importante de
7101, avenue du Parc, 3e
questões éticas, legais, sociais, econômicas e ambientais. Por exemplo, os testes diagnósticos, os medi- étage, Montréal / Québec -
camentos e as demais tecnologias contribuem para reduzir ou aumentar as desigualdades em saúde? H3N 1X9, Canada.
[email protected]
As soluções propostas para monitorar os cidadãos violam seus direitos fundamentais à privacidade e
à autonomia? Quais são os impactos dessas soluções para o meio ambiente? E em que medida elas são
compatíveis com a sustentabilidade dos sistemas de saúde?
Acreditamos que a perspectiva da Inovação Responsável em Saúde (IRS) oferece elementos impor-
tantes para responder essas questões. Em primeiro lugar porque contempla um conjunto de atributos
de responsabilidade que amplia a compreensão sobre o valor das inovações tecnológicas no campo
da saúde. Em segundo, os atributos enfatizados pela IRS se referem não apenas ao produto em si, mas
também aos processos de concepção e desenvolvimento das inovações e à organização que as produz
e as disponibiliza aos usuários. Esses elementos permitem contemplar as características que condicio-
nam os propósitos, as funções e os custos das inovações antes que elas cheguem no mercado e sejam
adotadas nos serviços de saúde.
Apresentamos a seguir as origens da IRS e os elementos do seu quadro conceitual, juntamente
com exemplos de soluções recentemente desenvolvidas para combater a COVID-19, a fim de ilustrar
alguns atributos de responsabilidade que podem contribuir para a tomada de decisão durante os
estágios iniciais do desenvolvimento das inovações em saúde, quando ainda é possível redefinir as
características dos produtos, seus processos de desenvolvimento e aspectos organizacionais.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença


Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodu-
ção em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja
corretamente citado. Cad. Saúde Pública 2020; 36(7):e00157720
2 Silva HP et al.

Contribuições da Inovação Responsável em Saúde no contexto da COVID-19

A IRS foi inspirada na literatura sobre Pesquisa e Inovação Responsáveis (RRI, da sigla em inglês),
um campo de pesquisa surgido na última década sob o impulso dos estudiosos da inovação e dos for-
muladores de políticas de ciência e tecnologia. A RRI enfatiza abordagens participativas e inclusivas
no desenvolvimento de soluções que sejam “eticamente aceitáveis, sustentáveis e socialmente dese-
jáveis” no enfrentamento dos grandes desafios da sociedade 5. Mais especificamente, quatro requi-
sitos processuais são enfatizados 6: antecipação de riscos, impactos e consequências das inovações;
reflexividade em relação aos sistemas de valor e práticas sociais que regem a inovação; processos de
desenvolvimento inclusivos; e capacidade de resposta aos conhecimentos, resultados e mudanças de
contextos emergentes.
A IRS pode ser entendida como um esforço para adaptar os requisitos da RRI às especificidades
do setor saúde. De acordo com o Silva et al. 7 (p. 5), a IRS “consiste em um esforço colaborativo em que
as partes interessadas se comprometem a esclarecer e cumprir um conjunto de princípios, valores e requisitos
éticos, econômicos, sociais e ambientais ao desenvolver, financiar, produzir, distribuir, usar e descartar soluções
sociotécnicas para atender às necessidades e desafios dos sistemas de saúde de forma sustentável”. O quadro
conceitual proposto por esses autores (Figura 1) adota uma perspectiva global dos sistemas de saúde e
integra nove atributos de responsabilidade organizados em cinco domínios de valor, os quais devem
ser considerados ao longo do ciclo de vida de uma inovação, tendo em vista o contexto onde os usuá-
rios pretendidos estão localizados.

Valor para a saúde da população

Embora uma tecnologia que gere benefícios individuais à saúde seja valiosa, inovações responsáveis
em saúde devem, em primeiro lugar, aumentar nossa capacidade de atender às necessidades cole-
tivas 8 e combater as desigualdades em saúde 9. Os atributos desse domínio estão relacionados com
as seguintes questões:
(i) A inovação busca atender uma necessidade de saúde relevante na região onde estão localizados
seus usuários?
(ii) A inovação foi desenvolvida considerando os meios disponíveis para mitigar seus impactos nega-
tivos em termos éticos, legais e sociais?
(iii) Em que medida a inovação promove a equidade em saúde?
Considerando a gravidade da pandemia no Brasil e no mundo, pode-se argumentar que as solu-
ções propostas para combater a COVID-19 são relevantes do ponto de vista sanitário. Entretanto,
muitas delas foram provavelmente desenvolvidas sem que tenham sido previstos os meios apropria-
dos para mitigar suas implicações éticas, legais e sociais, ao passo que a capacidade de se beneficiar da
inovação pode variar entre os usuários em razão da situação socioeconômica, posição social ou capa-
cidades individuais. Um bom exemplo são os aplicativos de rastreamento de contatos, cuja finalidade
é incentivar o autoisolamento de pessoas que tenham sido potencialmente expostas ao coronavírus 10.
Um mapeamento recente mostra que pelo menos 47 aplicativos de rastreamento de contatos estavam
sendo utilizados em 28 países, sendo que uma proporção considerável deles apresentava problemas
de natureza ética: 23% dos aplicativos não tinham uma política de confidencialidade, 53% não divul-
gavam por quanto tempo os dados dos usuários ficariam armazenados e 60% não tinham medidas de
anonimato declaradas publicamente 11. Além disso, o acesso aos meios necessários para o uso desses
aplicativos é bastante desigual, penalizando grupos vulneráveis que possuem carga de morbimortali-
dade mais alta em razão de sua identidade e do lugar onde crescem, vivem e trabalham.

Valor para o sistema de saúde

Este domínio chama a atenção para a extensão com que uma solução fornece uma resposta apropriada
aos diversos desafios do sistema de saúde 12. Os atributos que integram este domínio buscam respon-
der às seguintes questões:
(i) O processo de desenvolvimento da inovação incluiu um conjunto diversificado e relevante de
participantes?

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PROMOVENDO O BEM COMUM EM TEMPOS DE COVID-19 3

Figura 1

Quadro conceitual da Inovação Responsável em Saúde (IRS).

Fonte: Silva et al. 7.

(ii) A inovação proporciona uma solução dinâmica para um desafio do sistema de saúde que é reco-
nhecido como de grande importância na região onde será utilizada?
(iii) O nível e intensidade dos cuidados exigidos pela inovação são compatíveis com a sustentabilidade
do sistema de saúde?
Um desafio importante se refere à população idosa que vive em abrigos e casas de repouso, onde os
impactos da pandemia têm sido especialmente graves 13. Para enfrentar esse desafio, uma força-tarefa
envolvendo especialistas na área de geriatria e gerontologia, além de profissionais com experiência
na gestão de instituições de longa permanência para idosos, produziu uma série de conteúdos sobre
o tema, incluindo protocolos a serem seguidos por estas instituições. Todos os conteúdos estão dis-
poníveis gratuitamente no website da iniciativa (https://www.ilpi.me) e sua aplicação pode contribuir
para reduzir a taxa de infecção e a mortalidade por COVID-19 entre os idosos. Esse exemplo mostra
que é possível atender uma necessidade importante do sistema de saúde com processos de desenvol-

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4 Silva HP et al.

vimento razoavelmente participativos, ao mesmo tempo em que contribui para reduzir a necessidade
de mobilizar os níveis mais especializados do sistema.

Valor econômico

Este domínio de valor enfatiza a noção de frugalidade, entendida como a capacidade de oferecer solu-
ções mais valiosas a mais pessoas usando menos recursos. Essa capacidade pode ser obtida mediante
redução substancial dos custos de produção e dos custos associados ao uso da inovação, foco nas fun-
cionalidades essenciais do produto e otimização do seu nível de desempenho, considerando o objetivo
pretendido e o contexto de utilização 14. O teste genético para detectar o coronavírus em larga escala
desenvolvido pelo Hospital Israelita Albert Einstein (São Paulo), baseado na tecnologia de Sequen-
ciamento de Nova Geração, é um exemplo interessante desse tipo de inovação. Esse teste apresenta
parâmetros iguais ou superiores aos testes moleculares (considerados o padrão-ouro para o diagnós-
tico da COVID-19), mas tem um custo estimado inferior aos testes existentes e permite analisar um
volume de amostras cerca de 16 vezes maior do que é possível processar hoje pelo método atual 15.

Valor organizacional

Este domínio destaca as estratégias de negócio pelas quais uma empresa entrega valor não apenas aos
compradores e usuários da inovação, mas sobretudo à sociedade 16. Enfatiza que organizações híbri-
das que adotam modelos de negócios alternativos e economicamente viáveis (p.ex.: tornar a inovação
livremente utilizável ou explorável por outros, adotar um esquema de preços baseado na capacidade
de pagamento ou lógica redistributiva, empregar pessoas com necessidades especiais e cumprir com
programas de responsabilidade social) estão em melhores condições de apoiar a inovação responsável
em saúde. Por exemplo, a iniciativa global Hack The Pandemic (https://www.hackthepandemic.org)
reúne um grupo de fabricantes, desenvolvedores e voluntários que trabalham com prestadores de ser-
viços de saúde para desenvolver equipamentos de proteção individual contra a COVID-19. Faz parte
dessa iniciativa uma empresa chilena (Copper 3D) que desenvolve tecnologia de impressão 3D com
materiais antimicrobianos e antivirais com partículas de cobre. Motivada pela escassez de máscaras de
proteção na América Latina, a empresa suspendeu a propriedade intelectual de um de seus produtos,
uma máscara “reutilizável, customizável, monobloco, antimicrobiana, antiviral e feita com nano componentes
de cobre” e liberou o acesso aos arquivos para a impressão 3D (https://copper3d.com/hackthepande
mic/#About_NanoHack).

Valor ambiental

Este domínio de valor destaca a necessidade de minimizar os impactos negativos das tecnologias em
saúde sobre o meio ambiente ao longo de seu ciclo de vida. Estratégias para essa finalidade incluem,
por exemplo, o uso de materiais recicláveis e não tóxicos, o uso eficiente de energia, o cumprimento
das normas ambientais e o fato de que a inovação foi projetada para ser reciclada, desmontada, recon-
dicionada ou biologicamente degradada. Mesmo soluções aparentemente imateriais, como softwares
e aplicativos que utilizam inteligência artificial, têm um impacto ambiental considerável, pois depen-
dem de meios digitais como computadores, telefones celulares e centros de dados. Dois exemplos são
ilustrativos 17: os rejeitos das minas de cobalto, matéria-prima utilizada na fabricação de baterias para
telefones celulares, são muitas vezes despejados diretamente nos lençóis freáticos ou no mar, com
impacto negativo sobre a saúde dos ecossistemas e das populações locais, além de deterioração da qua-
lidade do solo; e os centros de dados que hospedam e tratam quantidades gigantescas de dados geram
de 2% a 5% das emissões mundiais de gases do efeito estufa. Dessa forma, é fundamental considerar
os impactos ambientais das soluções desenvolvidas para combater a pandemia, numa abordagem
alinhada com o conceito de saúde planetária 18.

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PROMOVENDO O BEM COMUM EM TEMPOS DE COVID-19 5

Conclusão

A perspectiva da IRS possibilita examinar um conjunto integrado de elementos que raramente são
considerados nas abordagens tradicionais de avaliação de tecnologias em saúde. Um desafio que se
apresenta, porém, é como colocar essa perspectiva em ação. Uma ferramenta desenvolvida recente-
mente permite identificar inovações em saúde potencialmente responsáveis e examinar a presença de
características de responsabilidade com base em atributos, escalas e fontes de informação bem defini-
das 19. Seu uso possibilita examinar, por exemplo, as questões apresentadas no início do artigo, isto é,
em que medida uma inovação reduz as desigualdades em saúde ao atender as necessidades específicas
de um grupo vulnerável; se os meios para mitigar os impactos negativos de uma inovação estão dis-
poníveis para os aspectos éticos, legais e sociais aplicáveis; se uma inovação foi concebida integrando
preocupações de eco-responsabilidade nos diferentes estágios do seu ciclo de vida; e até que ponto
uma inovação contribui para a sustentabilidade do sistema de saúde. No contexto atual, caracterizado
pelo rápido surgimento de soluções destinadas a combater a COVID-19, os fundamentos e conceitos
da IRS convidam todos os atores envolvidos, interessados e afetados por essas soluções a refletir sobre
os atributos de responsabilidade promotores do bem comum.

Colaboradores Agradecimentos

H. P. Silva contribuiu com a redação, coleta e análise Este artigo é fruto do programa de pesquisa In Fie-
de dados, revisão crítica e aprovação da versão final. ri (http://infieri.umontreal.ca/), sobre Inovação
R. R. Oliveira, R. P. Sabio e P. Lehoux contribuíram Responsável em Saúde, sediado na Universidade
com a coleta e análise de dados, revisão crítica do de Montreal (Canadá) e coordenado por Pascale
manuscrito e aprovação da versão final. Lehoux. Agradecemos aos membros da equipe In
Fieri que forneceram comentários valiosos durante
a redação do artigo: Andrée-Anne Lefebvre, Carl
Informações adicionais Maria Mörch, Hassane Alami e Lysanne Rivard.

ORCID: Hudson Pacifico da Silva (0000-0001-


7507-0917); Robson Rocha de Oliveira (0000-0003-
4135-676X); Renata Pozelli Sabio (0000-0002-
8189-1989); Pascale Lehoux (0000-0001-9482-
1800).

Cad. Saúde Pública 2020; 36(7):e00157720


6 Silva HP et al.

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Recebido em 09/Jun/2020
Versão final reapresentada em 11/Jun/2020
Aprovado em 15/Jun/2020

Cad. Saúde Pública 2020; 36(7):e00157720

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