Texto 01. Vigilância Ambiental No SUS

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% Rev Saúde Pública 2006;40(1):170-7

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Vigilância ambiental em saúde e sua


implantação no Sistema Único de Saúde
Environmental surveillance in health in
Brazil’s Unified Health System
Christovam Barcellosa,* e Luiz Antônio Dias Quitériob
a
Departamento de Informações em Saúde. Centro de Informação Científica e Tecnológica. Fundação
Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. bCentro de Vigilância Sanitária. Núcleo de Planejamento e
Informação. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Descritores Resumo
Vigilância ambiental. Exposição A incorporação da vigilância ambiental no campo das políticas públicas de saúde é
ambiental. Vigilância em saúde. uma demanda relativamente recente no Brasil. Um dos principais desafios da vigilância
Saneamento. SUS. ambiental em saúde é a definição do seu objeto e a especificidade de suas ações. O
conceito ampliado de exposição, tratado não como um atributo da pessoa, mas do
conjunto de relações complexas entre a sociedade e o ambiente, é central para a
definição de indicadores e para a orientação da prática de vigilância ambiental. Entre
as dificuldades encontradas para sua efetivação no Sistema Único de Saúde estão a
necessidade de reestruturação das ações de vigilância em saúde e a formação de
equipes multidisciplinares, com capacidade de diálogo com outros setores, além da
construção de sistemas de informação capazes de auxiliar a análise de situações de
saúde e a tomada de decisões. Nesse sentido, foi realizada uma revisão do objeto e
conceitos da vigilância ambiental em saúde, bem como identificados os desafios para
a sua implantação no Sistema Único de Saúde.

Keywords Abstract
Environmental surveillance. The incorporation of environmental surveillance in the field of public health policies
Environmental exposure. Health is a relatively recent demand in Brazil. One of the major challenges in environmental
surveillance. Sanitation. SUS (BR). health surveillance is defining its object and the specificity of its practice. The expanded
concept of exposure, treated as a set of complex relations between a society and the
environment, and not as a personal attribute, is central to the definition of indicators
and should guide the practice of environmental surveillance in the health sector.
Among the difficulties encountered in applying this concept within the Brazilian Health
System, is the need to restructure health surveillance activities and to form
multidisciplinary teams capable of dialoguing with other sectors. Furthermore,
information systems capable of aiding in health situation analysis and decision
making must be constructed. Taking this into consideration, a review of the object and
concepts of environmental health surveillance was undertaken and the challenges
with respect to its implementation in the Brazilian Health System were identified.

Correspondência/ Correspondence: *Bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - n. 303798/2004-1)
Christovam Barcellos Recebido em 20/12/2004. Reapresentado em 29/6/2005. Aprovado em 8/8/2005.
Departamento de Informações em Saúde
Fiocruz
Av. Brasil, 4365
21045-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: [email protected]
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INTRODUÇÃO gia, o conceito de exposição é tratado de forma vaga


pela maioria dos textos básicos da disciplina. Opera-
A crise ambiental global tem obrigado todos os cionalmente, a exposição pode ser definida como a
setores da sociedade a rever conceitos e valores, ex- relação entre o ambiente (o externo) e o indivíduo (o
plicitado conflitos de interesse e evidenciado a in- interno), bem como sua capacidade de reagir a condi-
sustentabilidade do modelo de desenvolvimento. A ções adversas. O esquema de análise que relaciona fa-
crise ambiental também é uma crise de conhecimen- tores de risco e efeitos sobre a saúde, realizado por
to. O saber ambiental é, como uma alternativa à crise, meio de medidas de associação entre pares de variá-
o reconhecimento da complexidade que envolve as veis coletadas no nível individual, sem dúvida contri-
relações entre sociedade e ambiente.13 buiu para a comprovação de hipóteses causais sobre os
danos à saúde de diversas substâncias químicas. Esses
São evidentes os sinais de deterioração do ambien- esquemas são baseados na separação de subpopulações
te na escala planetária. A destruição de ecossistemas, expostas e não-expostas a esses fatores de risco. Den-
a contaminação crescente da atmosfera, solo e água, tre as críticas a esse modelo de análise destacam-se a
bem como o aquecimento global são exemplos dos desconsideração de possíveis gradações e ações sinér-
impactos das atividades humanas sobre o ambiente. gicas entre formas de exposição, que pode conduzir os
Esses problemas são exacerbados em situações lo- resultados a uma falsa inversão na tendência e magni-
cais em que se acumulam fontes de riscos advindas tude dos riscos.9 A estratégia de dicotomização da ex-
de processos produtivos passados ou presentes, como posição empobrece os estudos sobre a relação entre
a disposição inadequada de resíduos industriais, a condições de saúde e ambiente. A idéia de “exposição
contaminação de mananciais de água e as más condi- zero” a substâncias químicas é uma meta dos progra-
ções de trabalho e moradia. Não raro esses problemas mas de vigilância ambiental e ocupacional que não
interagem sobre grupos populacionais vulneráveis. encontra factibilidade devido ao espalhamento glo-
É comum citar a coexistência dos efeitos da industria- bal de substâncias, tanto naturais como industriais.1
lização e urbanização com a permanência de proble- Em diversos outros casos, como o aquecimento glo-
mas seculares como a falta de saneamento na descri- bal, deve-se considerar todos como expostos por falta
ção dos problemas ambientais brasileiros.8 Essa con- de dados de comparação.14
junção de fatores torna o Brasil, e alguns outros paí-
ses em desenvolvimento, singulares na configuração Além disso, esses modelos não consideram as inte-
dos riscos à saúde advindos de condições ambientais rações entre os fatores de risco e os macro-determi-
adversas. Por outro lado, impõe a necessidade de es- nantes socioespaciais, produzindo análises descon-
tudar e intervir sobre novos problemas, bem como textualizadas. Grande parte das ações de saúde pú-
abordar velhos problemas segundo uma nova pers- blica ocorrem no nível coletivo, que não pode ser
pectiva integradora. captado por estudos de base individual.6 Alguns au-
tores têm proposto a separação entre as causas (ime-
O setor saúde tem sido instado a participar mais diatas) dos problemas de saúde e seu contexto (estru-
ativamente desse debate,2,10,15 seja pela sua atuação tural), como estratégia para a revelação de determi-
tradicional no cuidado de pessoas e populações atin- nantes desses problemas.2 O processo de produção de
gidas pelos riscos ambientais (como as intoxicações doenças é determinado e condicionado por diversos
por produtos químicos, os acidentes de trânsito, as fatores ambientais, culturais e sociais, que atuam no
doenças transmitidas por vetores) seja pela valoriza- espaço e no tempo, sobre as condições de risco e po-
ção das ações de prevenção e promoção de saúde. pulações sob risco. A organização espacial que a so-
Essa tendência tem apontado a necessidade de supe- ciedade adquire historicamente viabiliza a circula-
ração do modelo de vigilância à saúde baseado em ção de agentes patogênicos ao estabelecer um elo,
agravos e a incorporação da temática ambiental nas que une, de um lado grupos populacionais com ca-
práticas de saúde pública. racterísticas sociais que podem magnificar efeitos
adversos, e do outro, fontes de contaminação, locais
Nesse sentido, foi realizada uma revisão do objeto de proliferação de vetores e outros. A sociedade im-
e conceitos da vigilância ambiental em saúde, bem põe uma lógica de localização e funcionamento de
como identificados os desafios para a sua implanta- materiais e populações, tanto para a produção quan-
ção no Sistema Único de Saúde (SUS). to sua reprodução. O exemplo da saúde dos trabalha-
dores é talvez o mais evidente, em que a posição do
EXPOSIÇÃO COMO OBJETO DA VIGILÂNCIA indivíduo no espaço de trabalho está fortemente re-
AMBIENTAL EM SAÚDE lacionada à função por ele exercida e toda a estrutura
de produção. 4 Esse conjunto de variáveis, que é
Apesar de freqüentemente utilizado na epidemiolo- indissociável, determina as condições de risco a que
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os trabalhadores estão submetidos. Tais rela-


Fontes de risco Exposição Agravo à saúde
ções não são tão evidentes no chamado am-
Presença do agente de risco, Presença de suscetíveis, Produção de efeitos clínicos.
biente geral, isto é, no espaço de moradia, de
Dinâmica do agente de risco. Contato entre agente e suscetíveis,
circulação e de consumo. Nesse caso, cabe à
Produção de efeitos adversos.
vigilância em saúde investigar o conjunto
de fatores ambientais que atuam sobre a po- Figura 1 - Processo de desenvolvimento de riscos ambientais (adaptado
pulação e as relações sociais que estruturam de Thacker et al,17 1996).
estes fatores. Em resumo, essas relações são
complexas e historicamente construídas, sen-
do mediadas por fatores sociais, econômicos Forças motrizes Pressão Estado Exposição Efeito

e culturais. Breilh5 sugere a substituição da


categoria exposição pelo estudo da imposi- Figura 2 - Modelo para a construção de indicadores em saúde e ambiente
ção, já que essas situações são raramente vo- (Corvalán et al,7 1997).
luntárias, mas produzidas pela própria orga-
nização de produção e reprodução social. divulgado pela OECD. A sua adaptação para a gestão
de saúde e ambiente é voltada para o atendimento
Alguns modelos conceituais têm sido propostos das especificidades dessa área, permitindo análises
para a análise de riscos ambientais à saúde. Dentre das questões relacionadas à saúde e vinculadas às
eles, destacam-se a associação entre fontes de risco e questões ambientais. Dessa maneira possibilita a de-
os agravos à saúde, proposto por Thacker et al17 finição de indicadores, organizados conforme o es-
(1996); a relação entre pressão-estado-resposta, su- quema enunciado por Corvalán et al,7 mostrando cin-
gerido pela Organization for Economic Cooperation co níveis em que os riscos ambientais podem ser ava-
and Development (OECD); e o modelo de construção liados (Figura 2).
de indicadores ambientais elaborado por Corvalán et
al7 (1997). Em comum, todos esses modelos ressal- A adoção desse modelo conceitual, denominado
tam o papel dos macro-determinantes sociais e am- FPEEEA (força motriz, pressão, estado, exposição,
bientais dos agravos à saúde, situando a exposição efeito e ação), objetiva fornecer um instrumento de
como evento central da determinação dos agravos. A entendimento das relações abrangentes e integradas
preocupação comum de contextualizar riscos à saú- entre saúde e meio ambiente que auxilie na adoção
de indica que há algo além ou anterior à exposição,17 do conjunto das ações de promoção e prevenção a
ou a exposição é, por si, um processo complexo en- serem desenvolvidas. O modelo sistematiza as prin-
volvendo diversos fatores de risco que atuam sobre cipais etapas do processo de geração, exposição e
diferentes níveis de determinação.6 O objeto da vigi- efeitos dos riscos ambientais, bem como as princi-
lância ambiental em saúde é, portanto, a exposição, pais ações de controle, prevenção e promoção que
deslocando o foco tradicional da vigilância dos agra- podem ser desenvolvidas. Esse modelo revela a ne-
vos para a vigilância dos fatores coletivos de risco. cessidade de integrar as análises dos efeitos dos ris-
cos ambientais para a saúde das populações, com o
A vigilância ambiental em saúde é apoiada no reco- desenvolvimento e implementação de processos
nhecimento da relação entre riscos e seus efeitos ad- decisórios, políticas públicas e práticas de gerencia-
versos sobre a saúde.17 Uma das tarefas primordiais para mento de riscos. O modelo também indica a necessi-
o estudo da relação entre ambiente e saúde é a seleção dade de integração entre as várias políticas relacio-
de indicadores para esses níveis de manifestação dos nadas ao desenvolvimento com as necessidades soci-
problemas ambientais. Esses componentes devem es- ais, de saúde e intersetorialidade, já que as ações nes-
tar combinados para que se defina uma estratégia efi- sas fases envolvem necessariamente diferentes níveis
caz para a prevenção ou redução do impacto dos pro- e setores do governo e da sociedade.
blemas ambientais sobre a saúde. Um modelo de
interligação desses componentes é mostrado na Figu- As forças motrizes representam as características mais
ra 1, onde são destacados os eventos que devem ser gerais do modelo de desenvolvimento adotado pela
monitorados pelas ações de vigilância ambiental. sociedade e produzem atividades e fontes de risco à
saúde, condicionando o ambiente e suas repercussões
Por meio da união entre os processos desencadea- sobre a saúde. Por exemplo, favorecem a proliferação
dores de riscos ambientais pode-se estabelecer uma de atividades poluentes ou a existência de grupos so-
seqüência de passos metodológicos que permitem a ciais mais vulneráveis. A pressão corresponde às ca-
análise global de riscos à saúde. A proposta para de- racterísticas das principais fontes de pressão sobre o
senvolvimento metodológico dos indicadores da Or- ambiente e populações, como emissões de poluentes
ganização Mundial da Saúde apóia-se no modelo ou a manutenção de ambientes propícios para a proli-
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feração de vetores. Estão associadas às características Cabe à vigilância ambiental examinar esse conjun-
da ocupação e exploração do ambiente, como o to de indicadores e, pelo relacionamento entre esses,
desmatamento, crescimento urbano e a produção in- analisar os contextos particulares em que os riscos ocor-
dustrial, que são fontes de poluição ou geram outros rem. A ausência de relação entre os indicadores, ao
fatores diretos de degradação ambiental. O estado re- contrário de ser um resultado negativo de uma investi-
fere-se à condição e qualidade do ambiente que se gação é, antes de tudo, uma pista para identificar pa-
encontram em permanente modificação, dependendo drões de proteção ou de agravamento de riscos.
das pressões que recebem. Inclui não somente os ní-
veis de poluição por fatores biológicos e não biológi- O desenvolvimento e aperfeiçoamento de indica-
cos, mas também os riscos naturais, como os associa- dores específicos para a qualidade de vida associa-
dos às enchentes, inundações e secas, que podem ser dos aos de qualidade do ar, da água, nível de ruído, e
agravados pelas atividades humanas. outros, bem como a sistematização, difusão e disse-
minação da informação de modo ágil devem fazer
A exposição envolve a relação direta entre o ambi- parte das ações de vigilância ambiental em saúde.
ente imediato com determinados grupos de popula- Uma abordagem integrada considera os indicadores
ção. No caso de substâncias químicas, a exposição como elementos interdependentes, já que, na prática,
inclui a dose absorvida pelo organismo e pelos ór- estão referidos a uma realidade dinâmica em que di-
gãos atingidos. No caso das doenças transmissíveis, versos aspectos interagem.3 Outro aspecto a ser con-
a exposição corresponde ao processo de infecção das siderado é a construção de metodologias integradoras
pessoas. Finalmente, os efeitos sobre a saúde podem de indicadores para a constituição de um sistema de
manifestar-se em populações expostas e podem vari- informação. Essas devem ter a capacidade de, simul-
ar em função do tipo, magnitude e intensidade, de- taneamente, serem amplas o bastante para abranger
pendendo do nível e duração da exposição, idade, uma grande diversidade de problemas, e bem delimi-
formação genética, e outros. tadas para permitir a comparabilidade de resultados.

Os indicadores de cada um desses níveis formam IMPLANTAÇÃO DA VIGILÂNCIA AMBIENTAL


um conjunto interligado de meios para a avaliação e EM SAÚDE NO BRASIL
monitoramento de condições ambientais adversas,
isto é, um sistema de indicadores.3 Esse modelo foi Diversos programas, planos e práticas propostos pelo
adaptado para a vigilância da qualidade da água para setor saúde envolvem aspectos ambientais. Historica-
consumo humano pelo antigo Centro Nacional de mente as ações de saneamento têm concentrado maior
Epidemiologia. A própria contaminação da água deve interesse do setor entre as intervenções de saúde de
ser tomada, nesse caso, não só como causa de agravos cunho ambiental. É bastante conhecida e amplamente
à saúde, mas também como conseqüência de proces- divulgada relação entre a saúde e a provisão de água
sos sociais e ambientais, configurando uma cadeia em quantidade e qualidade apropriadas, e seu respec-
de eventos relacionados ao saneamento que são mo- tivo destino pós-utilização (esgotamento). Essa rela-
nitorados por meio de indicadores específicos. ção moveu, e ainda hoje move, o setor saúde na dire-
ção das chamadas práticas sanitárias que, sistematiza-
Não se pode esperar uma associação direta e linear das, conformam a área temática do saneamento.
entre os indicadores de risco dos diferentes níveis
sugeridos. Por exemplo, os locais próximos a fontes Definido anteriormente como “modo de vida, qua-
de emissão de contaminantes nem sempre são os que lidade de viver expressa em condições de salubrida-
apresentam maior contaminação. Da mesma maneira, de, com casa limpa, comércio e indústria limpos (...)
as populações que habitam áreas mais contaminadas [e] sendo um modo de vida, deve vir do povo, ser
podem não ser as mais afetadas pela contaminação. O alimentado pelo saber e crescer como um ideal (...)
raio de influência de uma atividade poluidora pode nas relações humanas”.* O saneamento tem sua ex-
variar em função da forma química na qual um conta- pressão mais cabal nas intervenções do homem sobre
minante é emitido e das condições locais de trans- o meio ambiente mediante a construção de sistemas
porte dessa substância. Por exemplo, o regime local de abastecimento de água, de coleta e tratamento de
de ventos pode afetar a distância que um contami- esgotos, de drenagem em áreas inundáveis, entre ou-
nante será transportado e onde será acumulado. Em tros. Nesse sentido, fazer saneamento se reduz a fazer
alguns casos, como no acidente de Minamata, Japão, obras de saneamento, e em setores que permitam um
as vítimas da intoxicação por mercúrio residiam a rápido retorno do capital investido por meio da tari-
dezenas de quilômetros da fonte de emissão. fa. Isso também explica a concentração desse tipo de

*Fundação Serviços Especiais de Saúde Pública (FSESP). Manual de saneamento. 2a ed. Rio de Janeiro; 1981.
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investimento nas áreas urbanas de maior densidade setor saúde, por seu lado, percebe-se um deslocamento
populacional no Brasil. Abordar o saneamento urba- gradual das ações mais próximas da execução de obras
no fora desse paradigma soa, ainda hoje, como uma para as atividades de vigilância sanitária sobre o ambi-
utopia, embora exista vasta literatura e experiências ente. A vigilância da qualidade da água para consumo
indicando a viabilidade das chamadas intervenções humano é exemplo emblemático do papel de audito-
não-estruturais. Essas intervenções são centradas na ria da qualidade que o setor saúde passa a desempe-
adoção de novos comportamentos em saúde e alian- nhar a partir do início da década de 90.
do padrões tecnológicos apropriados às condições
socioculturais e econômicas dos usuários.* Se no tocante ao tema saneamento básico o SUS
encontrou um espaço de atuação no escopo das ações
A participação do setor saúde nas ações de saneamen- de vigilância sanitária, o mesmo não ocorre quando
to vem oscilando ao longo da história. O clássico “Ma- o assunto é poluição do ar (contaminação e ruído) ou
nual de Saneamento”, editado em 1947 pela extinta do solo (por produtos perigosos), temas recorrentes
Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP), fornece na pesquisa acadêmica brasileira nos anos 90. O mo-
subsídios para que o próprio profissional de saúde ori- nitoramento da qualidade do ar está no escopo do
ente a construção de sistemas de abastecimento, fossas Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), que
e redes coletoras de esgoto, entre outras atividades típi- tem nos órgãos estaduais de controle ambiental os
cas do chamado saneamento básico (abastecimento de principais executores da política.
água, coleta e tratamento de esgotos e do lixo). Embora
fruto de política pública do setor saúde, os Serviços O setor saúde poderia estender a vigilância epide-
Autônomos de Água e Esgotos (SAAE) deveriam bus- miológica às doenças com etiologias associadas àque-
car “as melhores relações” com as Unidades Sanitárias, les contaminantes. Iniciativas nesse sentido nunca
garantindo o adequado desempenho dos papéis já defi- avançaram na direção de sua absorção como rotina
nidos. À Unidade Sanitária caberia empenhar-se para pelos sistemas locais e estaduais de saúde e, ainda
que o sistema de abastecimento atingisse, o quanto an- que o tivessem, restaria a questão de o que fazer com
tes, sua meta de ligações efetivamente realizadas, medi- os resultados obtidos. Na questão da água para con-
ante as conhecidas estratégias de persuasão e coerção, sumo humano existe uma empresa de saneamento res-
via fiscalização sanitária. Aos SAAE competiria esten- ponsável legal pelo adequado tratamento e distribui-
der redes de abastecimento e coleta de esgotos, para o ção dessa água e, portanto, passível de auditoria pelo
qual o financiamento, via retorno tarifário, é compo- SUS. Porém, na questão do ar e solo contaminados os
nente fundamental. responsáveis estão, na maior parte das situações, dis-
tribuídos em diferentes níveis da cadeia produtiva,
A extensão da cobertura de abastecimento de água cuja auditoria, de parte deles, é competência de ór-
e coleta de esgotos propiciada pelo Plano Nacional gãos extra-SUS (as Agências Estaduais de Controle
de Saneamento (Planasa) durante as décadas de 70 e da Poluição, por exemplo).
meados de 80, ocorreu notadamente nos grandes cen-
tros urbanos, mediante a constituição de empresas O modelo que permite visualizar o setor saúde nes-
estaduais. Ela determinou que as ações de saneamen- se cenário é preconizado pela promoção da saúde,
to ocupassem lugar específico nos organogramas da que estabelece como estratégias fundamentais à de-
administração pública. Com isso, essas ações – leia- fesa da saúde, a capacitação e a mediação. Por defesa
se obras – passaram a ser definidas no bojo do plane- da saúde entende-se a luta para que fatores políticos,
jamento das empresas de saneamento, obedecendo a econômicos, socioculturais e ambientais sejam cada
critérios próprios e, não raro, descolados de qualquer vez mais favoráveis à saúde. A capacitação pressu-
referencial de saúde. põe indivíduos aptos a conhecer e controlar os fato-
res determinantes da sua saúde. Finalmente, o enten-
Aparentemente, é esse distanciamento que mobiliza dimento de que a saúde se realiza num contexto de
o setor saúde na regulamentação do artigo 200 da Cons- múltiplos atores e interesses determina a necessidade
tituição Federal, Lei 8.080/90, art. 6o, inciso II, com de mediação entre eles. Nesse sentido, a saúde deve
dispositivo que inclui no campo de atuação do SUS a ser vista menos como um compartimento da adminis-
participação na formulação da política e na execução tração pública e mais como um pressuposto na for-
de ações de saneamento. Concretamente, entretanto, mulação de políticas, planos, programas e projetos. A
as metas de saneamento, incluindo a tecnologia, o participação da sociedade civil neste processo é pri-
porte e a localização das obras continuam obedecen- mordial para garantir a priorização, continuidade e
do à lógica das empresas, com poucas exceções. No transparência de políticas públicas.

*Quitério LAD. Educação e participação em ações de saneamento no reassentamento Fazenda Laranjeiras [dissertação de mestrado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo; 1995.
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A incorporação da vigilância ambiental no campo recomendar e adotar as medidas de prevenção e con-


das políticas públicas de saúde é uma demanda relati- trole dos fatores de riscos e das doenças ou agravos
vamente recente no Brasil. Entre as dificuldades en- relacionados à variável ambiental”.10
contradas para sua efetivação estão a necessidade de
reestruturação das ações de vigilância nas secretarias A articulação interinstitucional é uma alternativa
estaduais e municipais de saúde e de formação de equi- às lacunas ou sobreposições de atribuições entre os
pes multidisciplinares, com capacidade de diálogo setores de saúde e ambiente. Para sua efetivação, um
com outros setores. Além dessas, cita-se a construção programa de vigilância da qualidade da água, por
de sistemas de informação capazes de auxiliar a análi- exemplo, deve contar com infra-estrutura laboratorial,
se de situações de saúde e a tomada de decisões. Por se meios de notificação e investigação de doenças de
tratar de uma área de interface entre diferentes disci- veiculação hídrica, instrumentos para a proteção de
plinas e setores, o papel do SUS no controle ambiental mananciais, mecanismos legais de coerção junto a
tem sido sobre uma das discussões em curso. A Lei companhias de saneamento, de inspeção aos siste-
8.080/90 inclui no campo de atuação do SUS a “cola- mas de abastecimento de água, de alimentação e aná-
boração na proteção do meio ambiente”, bem como o lise de informações, entre outros. Um programa com
controle da água para consumo humano e de substân- essa abrangência pressupõe a articulação institucional
cias tóxicas e radioativas. No âmbito do SUS, a incor- entre órgãos de controle ambiental, departamentos
poração de programas de vigilância sobre o ambiente de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica,
está sendo implementada, no nível federal, pela cria- secretarias de obras, saneamento e recursos hídricos.
ção da Coordenação Geral de Vigilância Ambiental As primeiras iniciativas de implantação desse pro-
(CGVAM), em 1999, responsável pela implementação grama datam de 1986, tendo sido efetivado somente
do Sistema Nacional de Vigilância Ambiental em Saú- em alguns Estados do Brasil, com graus de desenvol-
de (SNVA). Em alguns Estados houve a criação de de- vimento dependentes da infra-estrutura e capacidade
partamentos e programas de vigilância ambiental. de articulação local.

Segundo a lógica de descentralização, a execução Um outro limitante diz respeito à própria cultura
dos programas é de co-responsabilidade do municí- do setor saúde, voltado historicamente para a vigi-
pio ou, dentro desses o distrito sanitário, o que impõe lância de agravos. Apesar dos incentivos estabeleci-
a necessidade de se estabelecer canais de diálogo dos por meio de projetos induzidos (e.g., Vigisus), de
entre as diferentes esferas de governo. O Sistema Na- instrumentos financeiros (e.g., Programação Pactua-
cional de Vigilância Ambiental em Saúde (SINVAS) da Integrada) e de programas (e.g., PACS/PSF) que
foi regulamentado com a Instrução Normativa No 1 promovem a superação do modelo assistencial do
do Ministério da Saúde, de 25 de setembro de 2001, SUS,16 alguns problemas têm sido enfrentados para a
que definiu competências no âmbito federal, dos Es- efetiva implementação das ações de vigilância am-
tados e dos municípios. No entanto esse sistema vem biental como prática do setor saúde. A vigilância em
adquirindo diferentes configurações institucionais em saúde é constituída pelas etapas de coleta, análise e
cada um desses níveis de governo. Nas secretarias interpretação sistemática de dados sobre eventos de
estaduais e municipais de saúde, a vigilância ambien- saúde que afetam a população.17 A vigilância da saú-
tal em saúde tem sido organizada, ora dentro dos de- de tem uma concepção mais abrangente, além da sim-
partamentos de epidemiologia, ora em departamen- ples análise de situação ou da integração institucional
tos de vigilância sanitária, ora como departamentos entre a vigilância sanitária e epidemiológica. Ela prevê
autônomos. Na rede básica de saúde, a atuação de a intervenção sobre problemas de saúde; a ênfase em
agentes de saúde dos Programas de Saúde da Família problemas que requerem atenção e acompanhamen-
e de controle de endemias podem garantir a necessá- to contínuos; a operacionalização do conceito de ris-
ria capilaridade do sistema. co; a articulação de ações de promoção, prevenção e
assistência; a atuação intersetorial; as ações sobre o
Por outro lado, cabe ao setor saúde o controle siste- território; e a intervenção sob a forma de operações.16
mático de fatores ambientais que possam ocasionar A ampliação do campo de atuação da vigilância da
risco, dentre esses a qualidade da água e do ar, que no saúde faz parte do mesmo processo de descentraliza-
entanto, ainda não dispõe de informações ou instru- ção e territorialização dessas ações.
mentos técnicos para sua operacionalização. A vigi-
lância ambiental em saúde é definida pelo SUS como Finalmente, os técnicos e pesquisadores atuantes
“um conjunto de ações que proporcionam o conheci- nessa interface ainda carecem de instrumentos que
mento e a detecção de qualquer mudança nos fatores permitam analisar conjuntamente informações tanto
determinantes e condicionantes do meio ambiente sobre o ambiente quanto de saúde. Para conhecer mais
que interferem na saúde humana, com a finalidade de detalhadamente as condições de saúde da população
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é necessário trabalhar com meios que permitam ob- A água servida à população pode ser um veículo de
servar a distribuição desigual de situações de risco e disseminação rápida de agentes infecciosos, causan-
dos problemas de saúde, com dados demográficos, do surtos, principalmente quando o sistema de abas-
socioeconômicos e ambientais, promovendo a inte- tecimento distribui água fora dos padrões bacterioló-
gração dessas informações. Nesse sentido, é funda- gicos de potabilidade (presença repetida de colifor-
mental que as informações sejam contextualizadas mes). Esse indicador, altamente sensível para a con-
no tempo e no espaço, fornecendo elementos para taminação fecal nos países de clima temperado,
construir uma cadeia explicativa dos problemas de pode estar sujeito, em países tropicais, a interferên-
saúde e aumentando o poder de orientar ações cias da presença de animais, temperatura e da alta
intersetoriais específicas. concentração de nutrientes nas águas.12 Mesmo na
ausência de coliformes, podem ser encontrados al-
ABORDANDO O SANEAMENTO COM OS guns vírus em sistemas de abastecimento, como o de
INSTRUMENTOS DA VIGILÂNCIA AMBIENTAL hepatite A. Também os indicadores quantitativos de
EM SAÚDE cobertura dos sistemas de abastecimento são insufi-
cientes para avaliar a proteção da população e a satis-
Conforme o exposto, um dos exemplos mais fação das necessidades de saneamento básico. Esses
marcantes da interação entre saúde e ambiente é dado indicadores não levam em consideração a intermi-
pelo saneamento. O processo de urbanização nos paí- tência no fornecimento de água, que constitui um
ses periféricos tem tido o papel duplo de permitir um risco para a saúde das comunidades atingidas.
maior acesso a diversos serviços públicos, mas por
outro lado, promove o aumento de interações entre Os sistemas de informação de saúde passaram por
agentes infecciosos e populações. Isso aumenta risco um processo inegável de melhoria de qualidade, prin-
de adoecer e morrer nos grupos populacionais sem aces- cipalmente ao longo da década de 1990, bem como de
so a esses serviços. A proteção à saúde é colocada inva- facilitação e universalização de acesso e análise por
riavelmente como uma das conseqüências benéficas meio de sistemas computacionais simples. No entan-
do saneamento. A comprovação epidemiológica dessa to, dados sobre condições ambientais são muitas ve-
relação é, no entanto, de difícil verificação devido ao zes coletados e organizados de forma assistemática.
grande número de variáveis intervenientes no proces- Os componentes dos sistemas de abastecimento de água
so de determinação das doenças. Os riscos de infecção (tipo de manancial, estação de tratamento e pontos de
e adoecimento de uma população estão relacionados à amostragem) estão sendo cadastrados pelo Sistema de
suas condições de habitação,de hábitos, à concentra- Informação do Programa de Vigilância da Qualidade
ção e tipo de agentes patogênicos ingeridos e à da Água para Consumo Humano (Sisagua), de respon-
suscetibilidade e estado geral de saúde da população.11 sabilidade da Secretaria de Vigilância em Saúde do
Ministério da Saúde (SVS/MS). O Sisagua permite a
Apesar das relações teóricas e técnicas entre recur- recuperação de dados sobre o abastecimento de água
sos hídricos, saneamento e saúde, estes setores são ge- de modo que se produzam periodicamente relatórios
ridos por uma grande diversidade de órgãos federais, sobre o funcionamento do sistema e a qualidade da
estaduais e municipais. Desse modo, as informações água, incluindo as chamadas soluções alternativas de
sobre tais temas têm sido coletadas pelos instrumentos abastecimento. A Agência Nacional de Águas (ANA)
e sistemas de informação próprios de cada instituição. mantém um programa de monitoramento da qualida-
Isso dificulta a análise integrada de dados sobre quali- de da água com postos de monitoramento situados nos
dade e quantidade da água, o acesso da população a maiores rios do Brasil, o que permite a utilização des-
este recurso, bem como sobre sua condição de saúde. sas informações em um sistema integrado.

A construção de indicadores epidemiológicos para Além das informações coletadas por esses sistemas,
o saneamento tem como primeira etapa a seleção de outros dados podem ser incorporados para a análise
doenças que melhor representem condições ambien- de condições de vida e infra-estrutura urbana no ní-
tais adversas e sua categorização segundo os meca- vel local. Nesse caso, alguns dados podem ser busca-
nismos de transmissão em que a água está envolvi- dos em órgãos e entidades de atuação restrita, como
da.11 Devido às suas diferentes características de por exemplo as agências locais de saneamento, cujos
infectividade, patogenicidade e virulência, as doen- dados não fazem parte dos grandes sistemas de infor-
ças de veiculação hídrica podem ser captadas com mação, de cobertura nacional.
maior ou menor eficiência pelos sistemas de infor-
mação em saúde. Por isso, a construção de indicado- CONSIDERAÇÕES FINAIS
res epidemiológicos para o saneamento pode ser afe-
tada pela representatividade dos dados disponíveis. A incorporação da Vigilância Ambiental em Saúde
Rev Saúde Pública 2006;40(1):170-7 Vigilância ambiental em saúde %%
www.fsp.usp.br/rsp Barcellos C & Quitério LAD

envolve alguns processos mais gerais que tem ocorri- ainda de instrumentos de avaliação e controle. Entre
do no sistema de saúde brasileiro, tal como a as metodologias propostas para a vigilância ambien-
descentralização de ações de saúde e a reestruturação tal em saúde destaca-se o papel do mapeamento e da
do campo da vigilância em saúde. Por outro lado, será avaliação de riscos, bem como a incorporação da abor-
necessária a delimitação mais precisa do objeto de tra- dagem epidemiológica para questões ambientais.
balho da vigilância ambiental em saúde e sua diferen-
ciação em relação a áreas tradicionais da saúde coleti- O modelo conceitual da vigilância das situações de
va como a vigilância sanitária e a vigilância epidemi- risco é baseado no entendimento que as questões per-
ológica. Neste trabalho ressalta-se a exposição como tinentes às relações entre saúde e ambiente são inte-
objeto específico da vigilância ambiental em saúde, grantes de sistemas complexos, exigindo abordagens
que deve ser tratada não como um atributo da pessoa, e articulações interdisciplinares e transdisciplinares,15
mas do conjunto de relações complexas entre a socie- palavras de ordem da promoção da saúde. Atuar nessa
dade e o ambiente. Esse esforço pressupõe também a perspectiva é reconhecer e encarar a complexidade
ampliação das ações ambientais coordenadas pelo se- inerente ao processo de produção da saúde, exigência
tor saúde, que tem se mantido como parceiro de outros do atual estágio no qual as sociedades defrontam, a
setores, principalmente nas ações de saneamento. A um só tempo, a necessidade de garantir a permanência
vigilância ambiental em saúde também estende sua e democratização das condições ambientais favorá-
atuação sobre fatores biológicos representados por veis à vida já conquistadas nas sucessivas etapas do
vetores, hospedeiros, reservatórios e animais peço- desenvolvimento e de reivindicar a correção ou mitiga-
nhentos, bem como fatores não biológicos como a água, ção das conseqüências desfavoráveis desse mesmo
o ar, o solo, contaminantes ambientais, desastres natu- desenvolvimento. Engajada na tarefa de consolidar o
rais e acidentes com produtos perigosos.10 SUS, a Vigilância Ambiental em Saúde deve emergir
tendo a intersetorialidade e a interdisciplinaridade
Esse novo campo de atuação do setor saúde carece como pressupostos e a humildade como atitude.

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