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Nazismo

Em nome dessa idéia, um país inteiro se armou e destruiu a Europa. De onde ela veio? O
que havia nela que fascinava as pessoas? E qual é a chance de que aconteça de novo?
Por Eduardo Szklarz
Julius era um sujeito querido. Sua namorada o amava, seus amigos o consideravam boa-
praça, seus colegas de trabalho admiravam sua competência. Aos 29 anos, ele já
comandava uma equipe de 550 pessoas. Tinha uma voz boa e, no seu tempo livre,
gostava de ir a festas, cantar e dançar.

O nome completo dele era Julius Wohlauf, o comandante da 1a Companhia do Batalhão


101, o mais sanguinário corpo de extermínio nazista. Seu trabalho, que ele fazia tão
bem, era manter a ordem na Polônia ocupada, o que incluía mandar judeus para a morte
certa e fuzilar poloneses. Em junho de 1942, ele se casou com Vera em Hamburgo e
voltou com ela à Polônia para seguir com a matança. Durante a lua-de-mel, grávida de 4
meses, Vera assistia aos fuzilamentos de dia. À noite, o casal cantava e dançava nas
festas do batalhão.

Como é que Julius conciliava a vida pacata em família com a rotina de assassinatos? E
não foi só ele. Milhares de cidadãos participaram da matança - os ferroviários que
levavam judeus à morte, as donas de casa que delatavam fugitivos, os médicos que
faziam experimentos com prisioneiros, os funcionários das diversas indústrias públicas e
privadas que compunham a máquina de matar de Hitler. Sem falar nos milhões que
assistiram a tudo sem protestar, até com um sentimento de aprovação. Como uma coisa
dessas pôde acontecer em pleno século 20, no coração do Ocidente democrático e
"civilizado"?

A explicação está numa idéia: o nazismo. Julius, como quase toda a Alemanha,
acreditava sincera e profundamente nela. Há 60 anos, quando Hitler se suicidou, o
nazismo foi dado também como morto. Por décadas, o mundo olhou para ele como se
não passasse de um surto de loucura - um desvairio coletivo sem sentido ou explicação.
Mas, agora, vários pesquisadores têm tido coragem de procurar alguma lógica nele,
inclusive para evitar que se repita. E algumas conclusões estão surgindo.

Segundo elas, o nazismo não é uma idéia louca vinda do nada e sumida para sempre. Ele
é conseqüência de 5 outras idéias - todas aparentemente inofensivas sozinhas, todas
vivas até hoje. Esta reportagem procurará entender cada uma delas - para chegar perto
de compreender o nazismo.

A 1ª idéia: o carimbo da ciência


Como uma pessoa comum pode conviver com sua consciência após assassinar inocentes?
A resposta: fica mais fácil dormir à noite quando se acredita que seus atos trarão o bem
à humanidade. Hitler convenceu os alemães - e muitos estrangeiros - de que, após o
massacre, nasceria um mundo melhor.

Isso pode soar absurdo hoje, mas era um fato aceito pela ciência da época. "O
Holocausto não ocorreu no vácuo. Ele seguiu décadas de crescente aceitação científica à
desigualdade entre os homens", diz o alemão Henry Friedlander, historiador e autor de
The Origins of Nazi Genocide ("As Origens do Genocídio Nazista", sem versão brasileira).
Friedlander se refere a um conceito nascido no século 19 nas melhores universidades: a
eugenia.

A eugenia surgiu sob o impacto da publicação, em 1859, de um livro que mudaria para
sempre o pensamento ocidental: A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Darwin
mostrou que as espécies não são imutáveis, mas evoluem gradualmente a partir de um
antepassado comum à medida que os indivíduos mais aptos vivem mais e deixam mais
descendentes. Pela primeira vez, o destino do mundo estava nas mãos da natureza, e
não nas de Deus.
Darwin restringiu sua teoria ao mundo natural, mas outros pensadores a adaptaram - de
um jeito meio torto - às sociedades humanas. O mais destacado entre eles foi o
matemático inglês Francis Galton, primo de Darwin. Em 1865, ele postulou que a
hereditariedade transmitia características mentais - o que faz sentido. Mas algumas
idéias de Galton eram bem mais esquisitas. Por exemplo, ele dizia que, se os membros
das melhores famílias se casassem com parceiros escolhidos, poderiam gerar uma raça
de homens mais capazes. A partir das palavras gregas para "bem" e "nascer", Galton
criou o termo "eugenia" para batizar essa nova teoria.

Galton se inspirou nas obras então recém-descobertas de Gregor Mendel, um monge


checo morto 12 anos antes que passaria à história como fundador da genética. Ao cruzar
pés de ervilhas, Mendel havia identificado características que governavam a reprodução,
chamando-as de dominantes e recessivas. Quando ervilhas de casca enrugada cruzam
com as de casca lisa, o descendente tende a ter casca enrugada, pois esse gene é
dominante.

Os eugenistas viram na genética o argumento para justificar seu racismo. Eles


interpretaram as experiências de Mendel assim: casca enrugada é uma "degeneração"
(hoje sabe-se que estavam errados - tratava-se apenas de uma variação genética, algo
ótimo para a sobrevivência). Misturar genes bons com "degenerados", para eles,
estragaria a linhagem. Para evitar isso, só mantendo a raça "pura" - e aí eles não
estavam mais falando de ervilhas. O eugenista Madison Grant, do Museu Americano de
História Natural, advertia em 1916: "O cruzamento entre um branco e um índio faz um
índio, entre um branco e um negro faz um negro, entre um branco e um hindu faz um
hindu, entre qualquer raça européia e um judeu faz um judeu".

As idéias eugenistas fizeram sucesso entre as elites intelectuais de boa parte do


Ocidente, inclusive as brasileiras. Mas houve um país em que elas se desenvolveram
primeiro, e não foi a Alemanha: foram os EUA. Não tardou até que os eugenistas de lá
começassem a querer transformar suas teorias em políticas públicas. "Em suas mentes,
as futuras gerações dos geneticamente incapazes deveriam ser eliminadas", diz o
jornalista americano Edwin Black, autor de A Guerra contra os Fracos. A miscigenação
deveria ser proibida.

Programas de engenharia humana começaram a surgir, inspirados por técnicas advindas


de estábulos e galinheiros. O zoólogo Charles Davenport, líder do movimento nos EUA,
acreditava que os humanos poderiam ser criados e castrados como trutas e cavalos.
Instituições de prestígio, como a Fundação Rockefeller e o Instituto Carnegie, doaram
fundos para as pesquisas, universidades de primeira linha, como Stanford, ministraram
cursos. Os eugenistas americanos ergueram escritórios de registros de "incapazes",
criaram testes de QI para justificar seu encarceramento e conseguiram que 29 estados
fizessem leis para esterilizá-los.

As primeiras vítimas foram pobres da Virgínia, e depois negros, judeus, mexicanos,


europeus do sul, epilépticos e alcoólatras. Segundo Black, 60 mil pessoas foram
esterilizadas à força nos EUA. Em seguida, países como a Suécia e a Finlândia
começaram programas parecidos.

Portanto, quando a Alemanha de Hitler começou a esterilizar deficientes físicos e


mentais, em 1934, não estava inventando nada. Só que eles foram mais longe. "Hitler
está nos vencendo em nosso próprio jogo", indignou-se o médico americano Joseph
DeJarnette, que castrava pobres. Em 1939, os alemães começaram a matar deficientes,
num programa de "eutanásia forçada". Médicos usaram o gás inseticida Zyklon B para
eliminar 70 mil pessoas "indignas de viver". O programa foi suspenso após protestos,
mas serviu de ensaio para os campos de concentração, onde Zyklon B exterminaria
qualquer um que ameaçasse o projeto da raça pura e a conseqüente "melhora da
humanidade".
"Hitler conseguiu recrutar mais seguidores entre alemães equilibrados ao afirmar que a
ciência estava a seu lado", diz Black. "Seu vice, Rudolf Hess, dizia que o nacional-
socialismo não era nada além de biologia aplicada." Com o carimbo da ciência, ainda que
meio falsificado, ficou mais fácil para gente como Julius compactuar com o absurdo
nazista.

A 2ª idéia: um ódio ancestral


A eugenia forneceu a base teórica para o assassinato de ciganos, deficientes,
homossexuais e outros "inferiores". Mas por que só um povo foi marcado para o
extermínio? Por que os judeus? Essa resposta é ainda mais antiga. "O primeiro anti-
semitismo foi o dos romanos, que não toleravam costumes judaicos como o shabat (dia
do descanso) e o culto ao Deus único", escreveu o historiador francês Gerald Messadié
em História Geral do Anti-Semitismo.

Quando o Império Romano adotou o cristianismo, no século 4, a perseguição cultural e


política virou religiosa. "Esquecendo-se de que Jesus foi judeu, os partidários da Igreja
iriam, em nome de Jesus, cobrir os judeus de acusações", diz Messadié. A maior delas
veio em 325, quando a Igreja culpou os judeus pela morte de Cristo, uma acusação só
retirada em 1965. A cristandade medieval viu crescer os mitos de que judeus eram
aliados do diabo, utilizavam sangue de crianças cristãs e tramavam o domínio do mundo.
Muitos judeus se converteram ao cristianismo para não terminar nas fogueiras da
Inquisição.

Ou seja, também nesse aspecto, o nazismo não foi novidade, como deixa claro o livro
Christian Antisemitism, A History of Hate ("Anti-Semitismo Cristão, Uma História de
Ódio", sem versão no Brasil), de William Nicholls, estudioso da religião da Universidade
de British Columbia, Canadá. Nicholls mostra que muitas medidas anti-semitas da lei
canônica medieval são reencontradas quase palavra por palavra na jurisdição nazista dos
anos 30. Tanto a obrigação do uso de uma insígnia nas roupas quanto as proibições aos
cristãos de vender bens, casar ou fazer sexo com judeus já existiam em leis da Igreja do
século 13. Mas o século 19 trouxe uma novidade. Antes, os judeus tinham uma saída, a
conversão. Agora, com a eugenia, o anti-semitismo deixou o caráter religioso e
incorporou um novo conceito: a raça. A natureza dos judeus agora era imutável e nem se
converter os salvaria.

Com a vitória dos nazistas e a fundação do 3° Reich, em 1933, o anti-semitismo pela


primeira vez se tornou política de Estado, e a população, convencida pelos mitos
medievais, não pareceu se incomodar. O historiador inglês Norman Cohn, da
Universidade de Sussex, constatou isso ao ler interrogatórios de ex-membros das SS, as
tropas de repressão nazistas. "O genocídio dos judeus foi motivado pela idéia de que eles
eram conspiradores decididos a dominar a humanidade - uma versão secularizada da
idéia de feiticeiros empregados por Satanás", afirma Cohn no livro Conspiração Mundial
dos Judeus: Mito ou Realidade?.

Daniel Goldhagen, professor de Estudos Sociais e Governamentais da Universidade


Harvard, ampliou a pesquisa ao estudar pessoas como Julius, que participaram do
assassinato de judeus. "Movidos pelo anti-semitismo, os perpetradores acreditavam que
acabar com os judeus era justo, correto e necessário." Segundo ele, nenhum homem de
Julius nem de qualquer outro batalhão foi morto ou mandado a campo de concentração
por se recusar a matar judeus. Ou seja, tal ato não era considerado errado naquele lugar
e naquela época. No discurso de alguns ideólogos nazistas, era uma medida sanitária.
Quase como exterminar ratos.

3ª idéia: o amor à pátria


A eugenia emprestou a fachada científica e o anti-semitismo forneceu a motivação, mas
os nazistas não teriam feito tanto barulho sem uma 3ª idéia: o nacionalismo. Hitler
seguiu as pegadas do primeiro-ministro prussiano Otto von Bismarck, que ajudou a
inventar a identidade germânica e, com isso, unificou o então fragmentado país, em
1871, e fundou o 2o Reich. Assim, Bismarck venceu os franceses na Guerra Franco-
Prussiana. Tinham se passado 12 anos da publicação de A Origem das Espécies e a
Alemanha estava vitoriosa e cheia de entusiasmo. Aí o país se lançou ao imperialismo
baseado no "darwinismo social", declarando sua superioridade sobre os africanos e
asiáticos e justificando assim seu direito de dominá-los.

Mas, nos anos 30, o clima era outro: a Alemanha estava deprimida. Perdera a 1ª Guerra
e naufragava na desordem, na crise econômica e na desunião. Como Bismarck, Hitler
fomentou o nacionalismo. "A utopia hitleriana se baseava em 3 erres: reich (império),
raum (espaço) e rasse (raça)", diz a alemã Marlis Steinert, historiadora do Instituto de
Altos Estudos Internacionais de Genebra. Segundo ela, o sonho do reich remontava à
lembrança mística de Frederico Barbarossa, senhor do Sacro Império Romano-
Germânico, o 1° Reich, que começou por volta de 800 e durou 1000 anos.

Já as noções de espaço e raça vinham do século 19 e simbolizavam o vínculo entre a


natureza, a terra e o homem, como cantavam os poetas do romantismo. Hitler queria
expandir o território e dar à história alemã seu verdadeiro sentido, devolvendo ao povo
seu espaço vital. Ele afirmava que traria de volta os tempos de grande potência e
fundaria o 3º Reich. Não é à toa que a investida contra a União Soviética se chamou
Operação Barbarossa.

A trilogia dos erres se encaixou na velha ideologia volkisch ("do povo"), arraigada na
Alemanha antes da chegada do nazismo. Segundo ela, um povo só floresce se todas suas
partes estão saudáveis. É aí que entra a interpretação nazista do socialismo. Afinal, você
já deve ter se perguntado por que o partido de Hitler (o Nacional-Socialista) tinha
socialismo no nome, se era absolutamente anti-comunista. "Para Hitler, o socialismo era
a ciência da prosperidade coletiva e nada tinha a ver com marxismo", afirma Marlis. O
"socialismo" dos nazistas tinha esse nome porque supostamente colocava o coletivo
(social) acima do indivíduo.

E qual era a principal ameaça a esse ideal nacionalista de um corpo saudável? Os judeus,
por não terem um lar nacional. Aos olhos nazistas, eles formavam uma nação
internacional e eram portanto mais perigosos que qualquer país estrangeiro, por corroer
a Alemanha de dentro, como uma infecção. Em seus discursos, Hitler os acusava de
desnacionalizar o Estado e alterar a pureza do sangue ariano para destruir o povo. Ele os
chamava ora de comunistas, ora de capitalistas, mas sempre materialistas, em oposição
ao idealismo germânico. "Para o pensamento hitlerista, ser socialista é também ser anti-
semita porque o socialismo se opõe ao materialismo e protege a nação", diz Marlis.

Mais uma vez, gente como Julius tinha uma justificativa para matar. Na sua cabeça, era
em nome da nação, do coletivo. E, para alguns, fica mais fácil tolerar a injustiça contra
indivíduos quando se acredita que o objetivo final é o bem comum.

4ª idéia: a fria modernidade


"O Holocausto foi executado na sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de
civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano. Por isso, é um problema da
nossa civilização e da nossa sociedade", diz o sociólogo polonês Zygmunt Baumann,
autor de Modernidade e Holocausto. Por isso é tão difícil falar abertamente sobre o
assunto. O nazismo diz respeito a nós. Auschwitz é tão ocidental e moderno quanto a
calça jeans. O Holocausto foi feito ao modo moderno: racional, planejado,
"cientificamente" fundamentado, especializado, burocrático, eficiente.

Os genocidas obedeciam a rotinas de organização. Julius e seus homens fumavam entre


os fuzilamentos, como um funcionário de escritório. Relaxavam, batiam papo e voltavam
a disparar. Foi com uma solução moderna, os cartões perfurados das máquinas Hollerith
da IBM, que os nazistas localizaram suas vítimas. A IBM não só forneceu máquinas, mas
idealizou o sistema e prestou assessoria técnica para que tudo funcionasse nos
conformes.

Quando os nazistas perceberam que tiros não seriam suficientes para eliminar os 11
milhões de judeus da Europa, recorreram a outra solução moderna, as câmaras de gás,
inspiradas nas mais avançadas tecnologias de dedetização. Auschwitz era uma fábrica de
matar - tinha capacidade para queimar 4 756 corpos por dia em 5 crematórios. Uma
grande "inovação", se comparada aos métodos usados pelos turcos contra os armênios
em 1915: fuzilamento, golpes de clavas e baionetas.

A tecnologia moderna libertou o homem de séculos de domínio da natureza. Graças a ela


o homem pela primeira vez acreditou que não era apenas uma "criatura de Deus", a
mercê de Seus desígnios, mas um sujeito capaz de moldar o mundo. Foi justamente o
que os nazistas quiseram fazer: mudar a Terra, construir sua utopia. E pretendiam fazer
isso do jeito moderno: sem questionamentos morais, em nome do "progresso".

Ainda assim, não faltaram contradições no casamento entre o nazismo e a modernidade.


Hitler usou as técnicas, mas combatia as idéias modernas. Era contra os valores de
igualdade, liberdade e democracia emanados pela Revolução Francesa. E, como você vai
ver a seguir, quis reinstaurar a Antiguidade grega em pleno século 20.

5ª idéia: a ilusão da beleza


Este último componente do nazismo é talvez o mais chocante. Por trás da tragédia do
Holocausto e da morte de 50 milhões de pessoas, estava o sonho de criar um mundo
mais puro, mais harmonioso - enfim, mais belo. "O nazismo também era estética", diz o
sueco Peter Cohen, diretor do documentário Arquitetura da Destruição. "Pregava que
uma nova Alemanha surgiria, mais forte e bonita, num sonho ao qual só os artistas
podiam dar forma."

O 5º elemento do nazismo aflorou da personalidade de seus líderes. Joseph Goebbels,


ministro da Propaganda, escrevia romances e peças teatrais e vários outros líderes
nazistas eram artistas e escritores. Hitler pintava aquarelas. Com o amigo de infância
August Kubizek, ele escreveu uma ópera seguindo uma idéia do compositor Richard
Wagner, expoente do romantismo alemão e da escola volkisch. A trama se passa na
Roma medieval e o protagonista é um tal Rienzi, um plebeu que tenta restabelecer a
Antiguidade.

O führer parecia decidido a encarnar Rienzi na vida real. Seria ele o artista-príncipe que
anunciaria a nova civilização clássica, inspirada na Grécia e em Roma. Tanto que o
ditador era também diretor, cenógrafo e protagonista dos comícios nazistas. Ele mesmo
desenhou as bandeiras, os estandartes, os uniformes e a temível insígnia da suástica.
Quando a guerra começou, ele mandou artistas ao front para pintar as glórias do exército
e ordenou a confecção de esculturas gigantescas inspiradas no ideal grego de beleza.
Uma dessas esculturas era dele próprio e seria colocada no centro de Berlim, planejada
para ser a cidade mais grandiosa do mundo, capital da futura civilização. Hitler tinha uma
idéia peculiar sobre arte. Assim como os arianos eram a raça pura, os clássicos eram a
arte pura. E a arte moderna seria a equivalente dos judeus (e das ervilhas enrugadas):
degenerada. As fileiras nazistas estavam cheias de artistas, mas a classe profissional
mais numerosa no partido era a dos médicos. Tanto uns como outros tinham um sonho
em comum: uma sociedade mais "harmônica" e, conseqüentemente, mais "saudável".

Na vida real, Hitler só encenou o 1º ato de sua ópera. Projetou sua megalômana Berlim e
desenhou os esboços de prédios monumentais para várias cidades alemãs. A morte de
todos os judeus faria parte desse projeto estético de um mundo mais harmonioso.
Felizmente, não deu tempo de terminar nem as obras nem o extermínio. Em 1941 ele
percebeu que não venceria. Quanto mais perto da derrota, mais intensificava o genocídio
- convencido de que o esforço valeria a pena se pudesse deixar para a posteridade um
mundo sem judeus. Apesar da necessidade de logística na guerra, os trens davam
prioridade ao transporte de prisioneiros para os campos. "Para Hitler a perda da guerra
não significava o fim do nazismo, pois a queda do 3º Reich influenciaria as futuras
gerações", diz Cohen. "O país se reergueria das ruínas. Da derrota total, brotaria uma
nova semente."

Sobrou uma semente?


O sonho de Hitler, felizmente, não se realizou. O nazismo deixou de existir como
alternativa política no momento em que a 2ª Guerra Mundial acabou. Mas será que ele
pode voltar?

"Embora a História se repita, nunca é da mesma maneira. Dificilmente veremos uma


situação idêntica à da Alemanha nazista", diz a escritora e ex-deputada espanhola Pilar
Rahola. "Mas não estamos livres da estruturação do nazismo em partidos políticos, como
os do austríaco Jorg Haider e do francês Jean-Marie Le Pen, que camuflam sua ideologia
com discursos ultracatólicos". Cresce também o totalitarismo ideológico, incluindo o de
base islâmica. "Não é à toa que terroristas islâmicos têm se conectado com grupos de
extrema direita e o próprio Haider é admirador de bin Laden", diz Pilar.

Edwin Black diz que a eugenia também está viva e continua definindo o valor do
indivíduo com base no seu valor genético. A diferença é que os eugenistas de hoje não se
guiam por bandeiras e sim por dinheiro. De posse de banco de dados com identidades de
DNA, agências de emprego e companhias de seguro estão negando serviço a pessoas
que têm doenças degenerativas. "Assistimos à aparição de uma subclasse discriminada
por sua linhagem ancestral", afirma. "O Parlamento inglês chamou esse fenômeno de
gueto genético."

Os genocídios tampouco deixaram de existir após o Holocausto. Nos últimos anos,


assistimos à morte de 100 mil curdos no Iraque, 200 mil bósnios na ex-Iugoslávia e 800
mil tutsis em Ruanda. Para o escritor israelense Amos Oz, autor de Contra o Fanatismo,
ideologias que pregam a superioridade de uns sobre os outros nunca fizeram tanto a
cabeça dos jovens. "Quanto mais complicada a vida se torna, mais buscamos respostas
simples. E essas respostas às vezes são fanáticas", diz ele.

O nazismo pode até ter morrido. Mas os seus 5 pilares, as 5 idéias que deram origem a
ele, sobreviveram à guerra e aos 60 anos depois dela. O carimbo de "aprovado pela
ciência" continua sendo distribuído a esmo, e dando aval a projetos imorais. O racismo e
a noção de que os homens são desiguais continuam a ser forças que movem multidões, e
o nacionalismo exacerbado anda quase sempre ao lado deles. A "busca do progresso" e a
modernidade continuam sendo argumentos invencíveis, que quase sempre dispensam a
ética em nome da eficácia (ou, cada vez mais, do lucro). E as utopias continuam
convencendo o homem a desprezar o indivíduo em nome do "moderno", do "belo" ou do
"sonho". Pelo menos já sabemos no que essa mistura pode dar. É melhor não esquecer.

De Darwin a Hitler

1859 Charles Darwin


Publica A Origem das Espécies, em que defende a seleção natural.

1866 Gregor Mendel


Identifica as características dominantes e recessivas.

1869 Francis Galton


Diz que a hereditariedade transmite qualidades mentais. Galton não queria eliminar os
indesejáveis, mas incentivar a procriação dos desejáveis. Daí a idéia ser conhecida como
"eugenia positiva".
1876 Cesare Lombroso
Relaciona traços físicos com propensão ao crime e afirma que alguns bandidos nascem
para o mal. Com isso, alimenta o ódio racial.

1880 Alfred Ploetz


O socialista alemão vai aos EUA e se impressiona com as idéias de Galton. Na volta,
funda a Sociedade para Higiene Racial, a estréia da eugenia na Alemanha.

1911 Charles Davenport


Líder dos eugenistas americanos, considera a inferioridade um traço dominante. É
pioneiro da "eugenia negativa", cujo objetivo era eliminar os "incapazes".

1921 Eugen Fischer, Erwin Baur e Fritz Lenz


Publicam O Ensino da Hereditariedade Humana e da Higiene Racial, livro de cabeceira de
Hitler na cadeia, em 1924.

1925 Adolf Hitler


Em Mein Kampf ("Minha Luta"), escrito na cadeia, afirma que só humanos com traços
hereditários valiosos devem procriar - os judeus estão fora.

O mito da conspiração

325
O Concílio de Nicéia acusa os judeus de terem matado Jesus.

1348
A Inquisição acusa judeus de envenenar poços.

1797
O francês Augustine Barruel diz que a Ordem dos Templários é uma sociedade secreta
maçônico-judaica para abolir as monarquias e o papado.

1869
O historiador francês Gougenot des Mousseaux diz que o mundo está nas garras dos
judeus cabalistas, adoradores de Satanás.

1886
O sérvio Osman-Bey menciona uma tal "aliança israelita universal" e propõe o extermínio
dos judeus.

1890
O jornal jesuíta La Civilità Cattolica descreve o povo judeu como um polvo gigante
apertando o mundo.

1903
O editor russo P. A. Krushevan publica a 1ª versão dos Protocolos dos Sábios de Sião
num jornal. O texto, de autor anônimo, fala de uma suposta reunião de judeus que
tramam o domínio do planeta.

1918
Os Protocolos são usados para justificar o assassinato de judeus na guerra civil russa.

1925
Em Mein Kampf ("Minha Luta"), Hitler cita os Protocolos para argumentar que a ameaça
judaica deve ser eliminada.
1933
A Alemanha nazista adota os Protocolos em escolas.

A "ciência" nazista

Carl Clauberg
Desenvolveu um método de esterilização forçada em massa ao introduzir um composto
irritante no aparelho reprodutor feminino. Após algumas semanas, a inflamação
bloqueava as trompas.

Horst Shumann
Expunha o ovário de prisioneiras aos raios X. Como a alta radiação chegava a queimá-
las, Shumman admitiu que a castração cirúrgica era mais eficaz.

Johann Paul Kremer


Observava as pessoas morrerem de fome. Ele as acompanhava definhar até chegarem ao
último ponto de exaustão, conhecido como estado Musselman. Em seguida, aplicava-lhes
uma injeção de fenol e fazia necrópsia antes que o corpo esfriasse.

Joseph Mengele
Fazia experimentos com gêmeos e anões. Separava órgãos e cabeças de crianças ciganas
e os mandava, preservados em jarros, para instituições como a Academia Médica de
Gratz, na Áustria.

Friedrich Entress, Helmuth Vetter e Eduard Wirths


Observavam a tolerância e a eficácia de substâncias químicas em prisioneiros para a
fabricação de remédios por empresas farmacêuticas alemãs.

August Hirt
Mediu os ossos de 115 prisioneiros de Auschwitz (79 judeus, 30 judias, 2 poloneses e 4
asiáticos), mandou-os para as câmaras de gás e depois colocou os corpos em sua coleção
de esqueletos. A intenção era usá-la em estudos antropológicos para demonstrar a
superioridade da raça nórdica.

PARA SABER MAIS

The Origins of Nazi Genocide: From Euthanasia to Final Solution, Henry Friendlander,
Chapel Hill, EUA, 1995

A Guerra contra os Fracos, Edwin Black, A Girafa, 2003

Os Carrascos Voluntários de Hitler, Daniel Jonah Goldhagen, Companhia das Letras, 1996

A Conspiração Mundial dos Judeus: Mito ou Realidade?, Norman Cohn, Ibrasa, 1967

Hitler y el Universo Hitleriano, Marlis Steinert, Ediciones B, Argentina, 2004

Minha Luta - Mein Kampf, Adolf Hitler, Centauro, 2005

Arquitetura da Destruição (em VHS), Peter Cohen, Coleção Cult, 1999

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