Artigos Novos Nazismo Revista Superinteressante
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Em nome dessa idéia, um país inteiro se armou e destruiu a Europa. De onde ela veio? O
que havia nela que fascinava as pessoas? E qual é a chance de que aconteça de novo?
Por Eduardo Szklarz
Julius era um sujeito querido. Sua namorada o amava, seus amigos o consideravam boa-
praça, seus colegas de trabalho admiravam sua competência. Aos 29 anos, ele já
comandava uma equipe de 550 pessoas. Tinha uma voz boa e, no seu tempo livre,
gostava de ir a festas, cantar e dançar.
Como é que Julius conciliava a vida pacata em família com a rotina de assassinatos? E
não foi só ele. Milhares de cidadãos participaram da matança - os ferroviários que
levavam judeus à morte, as donas de casa que delatavam fugitivos, os médicos que
faziam experimentos com prisioneiros, os funcionários das diversas indústrias públicas e
privadas que compunham a máquina de matar de Hitler. Sem falar nos milhões que
assistiram a tudo sem protestar, até com um sentimento de aprovação. Como uma coisa
dessas pôde acontecer em pleno século 20, no coração do Ocidente democrático e
"civilizado"?
A explicação está numa idéia: o nazismo. Julius, como quase toda a Alemanha,
acreditava sincera e profundamente nela. Há 60 anos, quando Hitler se suicidou, o
nazismo foi dado também como morto. Por décadas, o mundo olhou para ele como se
não passasse de um surto de loucura - um desvairio coletivo sem sentido ou explicação.
Mas, agora, vários pesquisadores têm tido coragem de procurar alguma lógica nele,
inclusive para evitar que se repita. E algumas conclusões estão surgindo.
Segundo elas, o nazismo não é uma idéia louca vinda do nada e sumida para sempre. Ele
é conseqüência de 5 outras idéias - todas aparentemente inofensivas sozinhas, todas
vivas até hoje. Esta reportagem procurará entender cada uma delas - para chegar perto
de compreender o nazismo.
Isso pode soar absurdo hoje, mas era um fato aceito pela ciência da época. "O
Holocausto não ocorreu no vácuo. Ele seguiu décadas de crescente aceitação científica à
desigualdade entre os homens", diz o alemão Henry Friedlander, historiador e autor de
The Origins of Nazi Genocide ("As Origens do Genocídio Nazista", sem versão brasileira).
Friedlander se refere a um conceito nascido no século 19 nas melhores universidades: a
eugenia.
A eugenia surgiu sob o impacto da publicação, em 1859, de um livro que mudaria para
sempre o pensamento ocidental: A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Darwin
mostrou que as espécies não são imutáveis, mas evoluem gradualmente a partir de um
antepassado comum à medida que os indivíduos mais aptos vivem mais e deixam mais
descendentes. Pela primeira vez, o destino do mundo estava nas mãos da natureza, e
não nas de Deus.
Darwin restringiu sua teoria ao mundo natural, mas outros pensadores a adaptaram - de
um jeito meio torto - às sociedades humanas. O mais destacado entre eles foi o
matemático inglês Francis Galton, primo de Darwin. Em 1865, ele postulou que a
hereditariedade transmitia características mentais - o que faz sentido. Mas algumas
idéias de Galton eram bem mais esquisitas. Por exemplo, ele dizia que, se os membros
das melhores famílias se casassem com parceiros escolhidos, poderiam gerar uma raça
de homens mais capazes. A partir das palavras gregas para "bem" e "nascer", Galton
criou o termo "eugenia" para batizar essa nova teoria.
Ou seja, também nesse aspecto, o nazismo não foi novidade, como deixa claro o livro
Christian Antisemitism, A History of Hate ("Anti-Semitismo Cristão, Uma História de
Ódio", sem versão no Brasil), de William Nicholls, estudioso da religião da Universidade
de British Columbia, Canadá. Nicholls mostra que muitas medidas anti-semitas da lei
canônica medieval são reencontradas quase palavra por palavra na jurisdição nazista dos
anos 30. Tanto a obrigação do uso de uma insígnia nas roupas quanto as proibições aos
cristãos de vender bens, casar ou fazer sexo com judeus já existiam em leis da Igreja do
século 13. Mas o século 19 trouxe uma novidade. Antes, os judeus tinham uma saída, a
conversão. Agora, com a eugenia, o anti-semitismo deixou o caráter religioso e
incorporou um novo conceito: a raça. A natureza dos judeus agora era imutável e nem se
converter os salvaria.
Mas, nos anos 30, o clima era outro: a Alemanha estava deprimida. Perdera a 1ª Guerra
e naufragava na desordem, na crise econômica e na desunião. Como Bismarck, Hitler
fomentou o nacionalismo. "A utopia hitleriana se baseava em 3 erres: reich (império),
raum (espaço) e rasse (raça)", diz a alemã Marlis Steinert, historiadora do Instituto de
Altos Estudos Internacionais de Genebra. Segundo ela, o sonho do reich remontava à
lembrança mística de Frederico Barbarossa, senhor do Sacro Império Romano-
Germânico, o 1° Reich, que começou por volta de 800 e durou 1000 anos.
A trilogia dos erres se encaixou na velha ideologia volkisch ("do povo"), arraigada na
Alemanha antes da chegada do nazismo. Segundo ela, um povo só floresce se todas suas
partes estão saudáveis. É aí que entra a interpretação nazista do socialismo. Afinal, você
já deve ter se perguntado por que o partido de Hitler (o Nacional-Socialista) tinha
socialismo no nome, se era absolutamente anti-comunista. "Para Hitler, o socialismo era
a ciência da prosperidade coletiva e nada tinha a ver com marxismo", afirma Marlis. O
"socialismo" dos nazistas tinha esse nome porque supostamente colocava o coletivo
(social) acima do indivíduo.
E qual era a principal ameaça a esse ideal nacionalista de um corpo saudável? Os judeus,
por não terem um lar nacional. Aos olhos nazistas, eles formavam uma nação
internacional e eram portanto mais perigosos que qualquer país estrangeiro, por corroer
a Alemanha de dentro, como uma infecção. Em seus discursos, Hitler os acusava de
desnacionalizar o Estado e alterar a pureza do sangue ariano para destruir o povo. Ele os
chamava ora de comunistas, ora de capitalistas, mas sempre materialistas, em oposição
ao idealismo germânico. "Para o pensamento hitlerista, ser socialista é também ser anti-
semita porque o socialismo se opõe ao materialismo e protege a nação", diz Marlis.
Mais uma vez, gente como Julius tinha uma justificativa para matar. Na sua cabeça, era
em nome da nação, do coletivo. E, para alguns, fica mais fácil tolerar a injustiça contra
indivíduos quando se acredita que o objetivo final é o bem comum.
Quando os nazistas perceberam que tiros não seriam suficientes para eliminar os 11
milhões de judeus da Europa, recorreram a outra solução moderna, as câmaras de gás,
inspiradas nas mais avançadas tecnologias de dedetização. Auschwitz era uma fábrica de
matar - tinha capacidade para queimar 4 756 corpos por dia em 5 crematórios. Uma
grande "inovação", se comparada aos métodos usados pelos turcos contra os armênios
em 1915: fuzilamento, golpes de clavas e baionetas.
O führer parecia decidido a encarnar Rienzi na vida real. Seria ele o artista-príncipe que
anunciaria a nova civilização clássica, inspirada na Grécia e em Roma. Tanto que o
ditador era também diretor, cenógrafo e protagonista dos comícios nazistas. Ele mesmo
desenhou as bandeiras, os estandartes, os uniformes e a temível insígnia da suástica.
Quando a guerra começou, ele mandou artistas ao front para pintar as glórias do exército
e ordenou a confecção de esculturas gigantescas inspiradas no ideal grego de beleza.
Uma dessas esculturas era dele próprio e seria colocada no centro de Berlim, planejada
para ser a cidade mais grandiosa do mundo, capital da futura civilização. Hitler tinha uma
idéia peculiar sobre arte. Assim como os arianos eram a raça pura, os clássicos eram a
arte pura. E a arte moderna seria a equivalente dos judeus (e das ervilhas enrugadas):
degenerada. As fileiras nazistas estavam cheias de artistas, mas a classe profissional
mais numerosa no partido era a dos médicos. Tanto uns como outros tinham um sonho
em comum: uma sociedade mais "harmônica" e, conseqüentemente, mais "saudável".
Na vida real, Hitler só encenou o 1º ato de sua ópera. Projetou sua megalômana Berlim e
desenhou os esboços de prédios monumentais para várias cidades alemãs. A morte de
todos os judeus faria parte desse projeto estético de um mundo mais harmonioso.
Felizmente, não deu tempo de terminar nem as obras nem o extermínio. Em 1941 ele
percebeu que não venceria. Quanto mais perto da derrota, mais intensificava o genocídio
- convencido de que o esforço valeria a pena se pudesse deixar para a posteridade um
mundo sem judeus. Apesar da necessidade de logística na guerra, os trens davam
prioridade ao transporte de prisioneiros para os campos. "Para Hitler a perda da guerra
não significava o fim do nazismo, pois a queda do 3º Reich influenciaria as futuras
gerações", diz Cohen. "O país se reergueria das ruínas. Da derrota total, brotaria uma
nova semente."
Edwin Black diz que a eugenia também está viva e continua definindo o valor do
indivíduo com base no seu valor genético. A diferença é que os eugenistas de hoje não se
guiam por bandeiras e sim por dinheiro. De posse de banco de dados com identidades de
DNA, agências de emprego e companhias de seguro estão negando serviço a pessoas
que têm doenças degenerativas. "Assistimos à aparição de uma subclasse discriminada
por sua linhagem ancestral", afirma. "O Parlamento inglês chamou esse fenômeno de
gueto genético."
O nazismo pode até ter morrido. Mas os seus 5 pilares, as 5 idéias que deram origem a
ele, sobreviveram à guerra e aos 60 anos depois dela. O carimbo de "aprovado pela
ciência" continua sendo distribuído a esmo, e dando aval a projetos imorais. O racismo e
a noção de que os homens são desiguais continuam a ser forças que movem multidões, e
o nacionalismo exacerbado anda quase sempre ao lado deles. A "busca do progresso" e a
modernidade continuam sendo argumentos invencíveis, que quase sempre dispensam a
ética em nome da eficácia (ou, cada vez mais, do lucro). E as utopias continuam
convencendo o homem a desprezar o indivíduo em nome do "moderno", do "belo" ou do
"sonho". Pelo menos já sabemos no que essa mistura pode dar. É melhor não esquecer.
De Darwin a Hitler
O mito da conspiração
325
O Concílio de Nicéia acusa os judeus de terem matado Jesus.
1348
A Inquisição acusa judeus de envenenar poços.
1797
O francês Augustine Barruel diz que a Ordem dos Templários é uma sociedade secreta
maçônico-judaica para abolir as monarquias e o papado.
1869
O historiador francês Gougenot des Mousseaux diz que o mundo está nas garras dos
judeus cabalistas, adoradores de Satanás.
1886
O sérvio Osman-Bey menciona uma tal "aliança israelita universal" e propõe o extermínio
dos judeus.
1890
O jornal jesuíta La Civilità Cattolica descreve o povo judeu como um polvo gigante
apertando o mundo.
1903
O editor russo P. A. Krushevan publica a 1ª versão dos Protocolos dos Sábios de Sião
num jornal. O texto, de autor anônimo, fala de uma suposta reunião de judeus que
tramam o domínio do planeta.
1918
Os Protocolos são usados para justificar o assassinato de judeus na guerra civil russa.
1925
Em Mein Kampf ("Minha Luta"), Hitler cita os Protocolos para argumentar que a ameaça
judaica deve ser eliminada.
1933
A Alemanha nazista adota os Protocolos em escolas.
A "ciência" nazista
Carl Clauberg
Desenvolveu um método de esterilização forçada em massa ao introduzir um composto
irritante no aparelho reprodutor feminino. Após algumas semanas, a inflamação
bloqueava as trompas.
Horst Shumann
Expunha o ovário de prisioneiras aos raios X. Como a alta radiação chegava a queimá-
las, Shumman admitiu que a castração cirúrgica era mais eficaz.
Joseph Mengele
Fazia experimentos com gêmeos e anões. Separava órgãos e cabeças de crianças ciganas
e os mandava, preservados em jarros, para instituições como a Academia Médica de
Gratz, na Áustria.
August Hirt
Mediu os ossos de 115 prisioneiros de Auschwitz (79 judeus, 30 judias, 2 poloneses e 4
asiáticos), mandou-os para as câmaras de gás e depois colocou os corpos em sua coleção
de esqueletos. A intenção era usá-la em estudos antropológicos para demonstrar a
superioridade da raça nórdica.
The Origins of Nazi Genocide: From Euthanasia to Final Solution, Henry Friendlander,
Chapel Hill, EUA, 1995
Os Carrascos Voluntários de Hitler, Daniel Jonah Goldhagen, Companhia das Letras, 1996
A Conspiração Mundial dos Judeus: Mito ou Realidade?, Norman Cohn, Ibrasa, 1967