A Arte de Culpar Os Outros

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Revista Veja: A arte de culpar os outros

Diogo Schelp - Revista Veja - 14/05/2012

A tentativa de encontrar um bode expiatrio para tudo uma prtica que acompanha a
humanidade h milhares de anos e os estudiosos dizem que podemos nos livrar dela

Nada paralisou mais a inteligncia do que a busca por bodes expiatrios, escreveu o historiador
britnico Theodore Zeldin no livro Uma Histria ntima da Humanidade, de 1994. Paralisou, e
continua a paralisar. A tentativa de jogar a culpa por uma situao indesejada de desastres
naturais a guerras, de crises econmicas a epidemias nas costas de um nico indivduo ou
grupo quase sempre inocente uma prtica to disseminada que alguns estudiosos a consideram
essencial para entender a vida em sociedade. Se observarmos nossa volta, encontraremos
muitos exemplos. Quando um adulto interrompe a briga de duas crianas, uma aponta o dedo
inquisidor para a outra: Foi ela quem comeou!. De maneira semelhante, a campanha para as
eleies presidenciais na Frana, encerradas com a vitria do socialista Franois Hollande, foi
pautada em parte pelas retricas anti-imigrao e anti-Unio Europeia, como se um fator qualquer
vindo de fora fosse o bastante para explicar um problema to complexo como o alto desemprego
no pas. Nos Estados Unidos, o culpado da vez o 1 % mais rico da populao, que paga
proporcionalmente menos impostos do que a classe mdia. Na Amrica Latina, a tradio
populista no existiria sem a inveno de inimigos imaginrios internos (as oligarquias, os bancos,
a imprensa) e externos (o FMI, os Estados Unidos). A ditadura cubana sustenta-se h mais de
quatro dcadas sobre a fantasia de que a misria de sua populao se deve ao embargo
americano ilha, e no ao fracasso de seu sistema comunista. E o venezuelano Hugo Chvez
chegou a levantar a bizarra hiptese de que os Estados Unidos haviam provocado cncer nele e
em outros quatro presidentes da regio diagnosticados com a doena em anos recentes, entre os
quais Dilma Rousseff e Lula. Como possvel que explicaes irracionais como essas
convenam tanta gente, apesar da falta de evidncias?

No livro Scapegoat A History of Blaming Other People (Bode Expiatrio Uma Histria da
Prtica de Culpar Outras Pessoas), publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra, o autor, Charlie
Campbell, defende a tese de que cada ser humano tende a se considerar melhor do que
realmente , e por isso tem dificuldade de admitir os prprios erros. Ado culpou Eva, Eva culpou
a serpente, e assim continuamos assiduamente desde ento, escreveu Campbell. Junte-se a isso
a necessidade intrinsecamente humana de tentar encontrar um sentido, uma ordem no caos do
mundo, e tm-se os elementos exatos para aceitarmos a primeira e a mais simples explicao
que aparecer para os males a nos afligir. Desde muito cedo, provavelmente com o surgimento das
primeiras crenas religiosas, a humanidade desenvolveu rituais para transferir a culpa para
pessoas, animais ou objetos como uma forma de purificao e recomeo. A expresso bode
expiatrio refere-se a uma passagem do Velho Testamento que descreve o sacrifcio de dois
ruminantes no Dia da Expiao hebraico. O primeiro bode era sacrificado imediatamente em
tributo a Deus, para pagar pelos pecados da comunidade. O segundo era enxotado da aldeia,
carregando consigo, simbolicamente, a culpa de todos os moradores. Os gregos antigos tinham o
pharmakos, geralmente um escravo ou um marginal, que era banido para purificar o grupo e
assim afastar o que consideravam punies dos deuses pragas, secas e outros desastres.
Alguns pensadores gregos questionaram a tendncia de atribuir tudo aos habitantes do Olimpo. O
dramaturgo Eurpides (480-406 a.C.) chegou a ponderar que em suas ltimas obras as pessoas
precisam se confrontar com o mal que emana delas prprias, no lugar de sempre responsabilizar
os imortais.

A escolha do bode expiatrio costuma obedecer a, pelo menos, um de trs requisitos. Primeiro,
deve ser algum capaz de substituir sozinho muitas vtimas potenciais. Foi o que ocorreu com
Andrs Escobar, zagueiro da seleo colombiana de futebol cujo gol contra na partida com os
Estados Unidos eliminou seu time da Copa do Mundo de 1994. Quando voltou Colmbia,
Escobar foi assassinado a tiros, supostamente por apostadores que haviam perdido dinheiro com
a derrota. Por maior que tenha sido o erro do jogador, bvio que num time com onze integrantes
no se

pode atribuir a apenas um deles toda a culpa por um resultado ruim. O segundo quesito a ser
preenchido por um candidato a bode expiatrio ser um alvo facilmente identificvel. O ditador
alemo Adolf Hitler, um dos mais cruis inventores de bodes expiatrios de todos os tempos,
achava que um verdadeiro lder nacional era aquele que, em vez de dividir a ateno de seu
povo, tratava de canaliz-la contra um grande inimigo. Aps sculos de antissemitismo na Europa,
no foi difcil para os nazistas transformar os judeus que na Idade Mdia chegaram a ser
culpados at pelo alastramento da peste negra em suas vtimas preferenciais, atribuindo a eles
a responsabilidade por uma srie de malfeitorias, entre as quais a de serem os causadores e
beneficirios da crise econmica que assolava a Alemanha. A expiao coletiva imposta pelos
nazistas resultou na morte de 6 milhes de judeus.

O terceiro critrio para encontrar um bom culpado suspeitar de qualquer pessoa que tente
defender a inocncia de um bode expiatrio. Na caa s bruxas da Idade Mdia, que resultou no
julgamento e na execuo de dezenas de milhares de mulheres, funcionava assim. Os mtodos
para identificar uma "noiva do demnio eram absurdos. Um deles consistia em jogar a acusada
num rio com as mos e os ps atados; se ela boiasse, era culpada, se afundasse, era inocente,
mas a j estaria morta. Nessas condies, poucos testemunhavam em favor das supostas
bruxas, com medo de serem enviados juntos para a fogueira. Essa regra tambm atvica dos
estados totalitrios, que, por princpio, no podem assumir as prprias falhas sob o risco de
perderem a legitimidade, e por isso precisam de algum para expiar suas culpas. Do sovitico
Josef Stalin a Hugo Chvez, tiranos e tiranetes usaram e usam a mxima de que quem nega uma
conspirao pane dela. A injustia sofrida no fim do sculo XIX pelo oficial do Exrcito francs
Alfred Dreyfus preenche os trs requisitos acima. Dreyfus, oriundo de uma rica famlia judia, foi
condenado por espionagem, submetido a um humilhante rito de desonra militar e enviado para
uma solitria em uma colnia penal no Caribe. Anos depois, por iniciativa de colegas e de
intelectuais como mile Zola, provou-se que Dreyfus era inocente, mas nem por isso ele foi
libertado. Seus apoiadores foram perseguidos, e Zola refugiou-se na Inglaterra. Dreyfus acabou
anistiado, mas sua inocncia nunca foi admitida oficialmente. "Ao longo da histria, apenas em
circunstncias excepcionais os governantes foram capazes de admitir sua culpabilidade, escreve
Campbell no livro Scapegoat. Nesse sentido, um exemplo de retido moral foi demonstrado pelo
general americano Dwight Eisenhower, que dias antes da invaso da Normandia, momento
decisivo da II Guerra Mundial, em 1944, deixou preparado um discurso em que assumia toda a
responsabilidade se a operao fracassasse. Ele no precisou us-lo e, em 1952, foi eleito
presidente dos Estados Unidos.

O estudo mais profundo sobre a funo do bode expiatrio na sociedade do francs Rene"
Girard, cujo livro mais conhecido A Violncia e o Sagrado. Girard autor da teoria do desejo
mimtico, segundo a qual ningum almeja algo porque precisa, mas porque aquilo tambm
desejado por outra pessoa. A vida em sociedade consiste na multiplicao dessa equao, e a
dificuldade de conciliar os desejos de todos cria tenses e violncia. Para que a ordem social no
imploda em atos de vingana, existem os rituais de sacrifcio, em que os impulsos destrutivos so
canalizados para um bode expiatrio. No mundo moderno, os sacrifcios com derramamento de
sangue deram lugar a rituais mais sutis de expiao, auxiliados por tecnologias como a internet.
"O fenmeno mimtico pode se propagar com muito mais rapidez e intensidade em multides
abstratas do que em multides concentradas em um mesmo espao fsico. Eis uma maneira
muito eficiente e rpida de destruir a reputao de uma pessoa, diz o francs Jean-Pierre Dupuy,
professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e diretor de pesquisas do instituto
Imitatio, fundado por Peter Thiel um dos dez maiores acionistas do Facebook. Thiel, vejam s, foi
aluno de Girard. Mas a internet s um instrumento para os novos rituais de sacrifcio, e a
humanidade no est presa a esse mecanismo arcaico. Segundo Ren Girard, no momento em
que o ser humano se conscientiza de que o bode expiatrio nada mais que uma vtima inocente,
seu sacrifcio deixa de fazer sentido. No precisamos de bodes expiatrios.
Postado por Ariston Venncio s 00:41

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