A Virada Pragmática Nas Ciências Cognitivas
A Virada Pragmática Nas Ciências Cognitivas
A Virada Pragmática Nas Ciências Cognitivas
Resumo: A “virada pragmática” nas ciências cognitivas apresenta como um dos temas
principais a ideia de que a cognição está a serviço da ação, e por isso voltou-se ao
pragmatismo em busca de novas perspectivas sobre a natureza da mente, a cognição e
a percepção. O objetivo deste artigo é apresentar a concepção da mente na filosofia de
Peirce e demonstrar que a teoria enativa, a mais radical representante do
antirrepresentacionismo, tem mais afinidades com suas ideias do que se pode supor em
uma análise apressada, além de colocar em evidência as contribuições da concepção
peirciana às ciências cognitivas, em especial à teoria enativa.
Introdução
1 Este artigo está baseado na revisão e adequação do item três, do capítulo terceiro da tese de doutoramento da autora
referenciado na bibliografia.
2 Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Membro dos grupos de pesquisa TransObjetO e Sociotramas, ambos
ligados a PUC-SP. E-mail: [email protected].
da ação, com especial ênfase às contribuições que a teoria enativa, iluminada pela
concepção da mente e por alguns conceitos seminais da filosofia de Peirce, traz às
discussões no campo das ciências cognitivas.
As tradicionais abordagens centradas na representação do mundo exterior na
mente vêm sendo questionadas no âmbito das ciências cognitivas há algum tempo. Em
função disso, mais recentemente, cientistas cognitivos como Richard Menary, Shaun
Gallagher, Andreas K. Engel, Karl Friston, Danica Kragic, entre outros, têm voltado a
atenção ao pragmatismo americano clássico, em busca de novas perspectivas que
apresentem alternativas às abordagens vigentes.
Embora haja diferenças consideráveis entre os pragmatismos de Peirce, James,
3
Dewey e Mead , o que os une parece ser, em linhas gerais, o princípio de que a mente
tem de ser explicada não só em sua dimensão física, mas também em termos de ação;
e, nesse sentido, a virada pragmática pode ser de fundamental importância para o
momento vivido pelas ciências cognitivas. Sobre isso, Menary (2016, p. 221) afirma:
3 Ver DE WAAL, Cornelius. Sobre Pragmatismo. São Paulo: Ed. Loyola, 2007.
4 A codificação preditiva afirma que o cérebro gera continuamente modelos do mundo com base no contexto e informações
da memória, a fim de prever as entradas sensoriais.
5 Todas as traduções são de minha autoria para os fins específicos deste artigo.
6 Seminário proferido durante a Spindel Conference 2014. Disponível online em: https://www.youtube.com/watch?
v=AM21Scc2P7Q&feature=youtu.be Variations on Embodied Cognition. Memphis, TN, USA, 2014.
219), “o tema principal da ciência cognitiva pragmática é que a cognição é para a ação”.
Pode-se inferir, portanto, que o termo “pragmática” surge no panorama das ciências
cognitivas com a finalidade de reforçar a ideia de que a cognição está “a serviço” da
ação. Menary completa dizendo que a virada pragmática “fornece um modelo para
compreender a cognição que é distintamente diferente do tradicional, o qual considera a
cognição como sendo estruturada por cálculos sobre abundantes conteúdos
representacionais” (ibid.).
Entretanto, é importante comentar que, embora o método pragmático possa
contribuir de modo importante para as discussões já em curso nas ciências cognitivas, a
observação de Schiller (cf. DE WAAL, 2007, p. 14), de que há diferenças consideráveis
entre os pragmáticos, precisa ser levada em séria consideração, pois sugere que há
diversidade na concepção do método, assim como diferenças, e até mesmo
contradições teóricas. Por exemplo, Peirce criticou veementemente a concepção de
pragmatismo de William James, a ponto de ter renomeado seu pragmatismo como
“pragmaticismo”, com o objetivo explícito de se diferenciar da concepção jamesiana -
que, no caso da virada pragmática nas ciências cognitivas, tem-se mostrado a versão
mais difundida. A pergunta que fica, portanto, é: a partir de que pragmatismo está se
falando?
A proposta aqui é colocarmos em evidência as contribuições da concepção da
mente de Peirce às ciências cognitivas, em especial à teoria enativa. No entanto, um
problema emerge desse encontro: os enativistas questionam abertamente o papel da
representação mental na cognição, e, dentre todas as abordagens em curso no campo
da cognição corporificada, talvez sejam eles os mais radicais em relação a isso; e a
teoria semiótica, parte fundamental da metodêutica peirciana, é, sem dúvida alguma,
uma teoria da representação.
simplesmente uma coleção aleatória de atividades distintas, elas devem ser vistas como
partes de um sistema”. Peirce era um anticartesiano (SANTAELLA, 2004) e propôs uma
mudança radical de paradigma nos métodos de pesquisa, insistiu na ubiquidade da
mente na natureza, postulou sobre a continuidade dinâmica da mente no mundo e
defendeu a ideia de que os signos não são expressões, conteúdos ou produtos da
mente, mas, ao contrário disso, a realidade da mente é o desenvolvimento dos signos
(SANTAELLA, 2004, p. 6). A atividade mental começa com os signos. E a realidade dos
signos é se multiplicarem em outros signos num processo de semiose ad infinitum.
Dito isso, é importante frisar, portanto, que a teoria dos signos de Peirce é
também, e acima de tudo, uma teoria da representação e isso pode levar à suspeita de
uma incompatibilidade com a abordagem enativa nas ciências cognitivas.
Defendo (Fanaya, 2014, p. 94), no entanto, que a ideia de representação de
Peirce, baseada em suas categorias, na teoria geral dos signos e em sua tese da
continuidade (sinequismo) está mais alinhada com o que defende a abordagem enativa
do que se pode supor em uma análise apressada. Menary, em trabalho mais recente
(2016, p. 222), parece corroborar com essa ideia:
A teoria dos signos de Peirce oferece mais do que uma teoria da representação
baseada em relações diádicas, funcionais ou de causação mecânica, pois sua natureza
é essencialmente triádica. Um signo não representa simplesmente um objeto, mas
representa um objeto para um interpretante; o interpretante é o efeito que o signo causa
7
em uma mente, ou seja, ele é a própria ação do signo . Além disso, Peirce não se
7 Um interpretante não deve ser confundido com o ato de interpretação, pois este caso é apenas uma das espécies de
interpretante a qual é realizada voluntariamente por um intérprete humano e, assim, apenas um aspecto possível da semiose.
refere à mente como exclusivamente humana, pois ele não compactuava com a ideia de
que a mente só existe dentro de crânios humanos. Para ele, a mente, o pensamento, ou
a ação inteligente, se estende e está situada no mundo que se apresenta. Nas palavras
de Colapietro (2012):
8 O segundo ponto das questões apresentadas por Thompson foi omitido aqui em função de a autora entender que não é
possível traçar quaisquer paralelos entre as ideias de Peirce e questões relacionadas às relativamente recentes descobertas
científicas sobre a anatomia e o funcionamento do sistema nervoso.
diferente da teoria da representação presente na semiótica de Peirce, que, por sua vez,
9
está umbilicalmente ligada ao seu pragmaticismo . Aliás, nada pode ser mais distante.
Considerações finais
9 Peirce cunhou o termo “pragmaticismo” a fim de se diferenciar de outras concepções de pragmatismo, especialmente as
de James e Schiller, que, em sua visão, fizeram dela um princípio especulativo, muito distante de sua concepção estritamente lógica.
portanto, não se apresenta como um epifenômeno; que a mente não começa com um
cogito, mas que a realidade da mente é a produção de signos; que a semiose é
processo dinâmico e contínuo de representação e interpretação; que nem a origem e
nem os interpretantes resultantes do processo de semiose são necessariamente
mentais; que a mente não é uma máquina representacional cuja única função é
representar o mundo exterior numa relação dualista estímulo-resposta; que um signo
não representa simplesmente um objeto, mas representa um objeto para um
interpretante, estabelecendo, assim, uma relação triádica e nunca diádica.
Por fim, em relação ao papel do corpo em ação na cognição, do ponto de vista
de Peirce, há de se terminar com suas próprias palavras: “Assim como dizemos que o
corpo está em movimento e não que o movimento está no corpo, devemos dizer que
estamos no pensamento e não que o pensamento está em nós” (CP 5.289).
Referências
CLARK, Andy. Embodiment and the Philosophy of Mind. In A. O’Hear (ed). Current
Issues in Philosophy of Mind: Royal Institute of Philosophy Supplement 43, Cambridge
University Press: 1998, p. 35 – 52.
COLAPIETRO, Vincent. Being Out of Our Minds: Embodied Agents and Eccentric
Bodies. Manuscrito da palestra proferida na "Conference: Mind in Motion and the Body
of the Sign – Peirce’s Semiotical Pragmatism", Humboldt Universität, Institut für Kunst-
und Bildgeschichte, Berlim, março 2012.
FANAYA, Patrícia F.; JUNGK, Isabel V. G. A mediação por Peirce: uma rica
contribuição filosófica aos estudos da cognição corporificada. In: Encontro
Internacional de Pragmatismo, 16o., 2015, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Resumos. Org. Centro de Estudos de Pragmatismo. – São Paulo: Centro
de Estudos de Pragmatismo, 2015, p. 106-8.