Aspectos Da Obra de Clive Barker

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

Leticia Zamperetti Copetti

ASPECTOS DA OBRA DE CLIVE BARKER

Florianópolis/SC

2016
Letícia Zamperetti Copetti

ASPECTOS DA OBRA DE CLIVE BARKER

Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao


curso de Letras Português da Universidade
Federal de Santa Catarina para a obtenção do
título de Bacharel em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca

Florianópolis/SC

2016
RESUMO

Neste trabalho, analiso os contos “O livro de sangue”, “Restos humanos” e “O livro de


sangue (um post scriptum) na rua Jerusalém”, e também o romance Hellraiser, todos de
Clive Barker. O primeiro e o terceiro contos estão relacionados com representações do
exercício da escrita. O conto “Restos humanos” e o romance Hellraiser estão relacionados
com representações do medo na obra de Clive Barker. Hellraiser também é analisado como
representação do inconsciente puro. Neste trabalho também analiso o filme de vanguarda
Forbidden, de Clive Barker, enquanto representação de duplos a partir das rimas visuais. No
que concerne aos gêneros literários, e artísticos em geral, Clive Barker é um autor híbrido.

Palavras-chave: Clive Barker; Livros de sangue; Hellraiser


ABSTRACT

In this text, I analise the short stories “The book of blood”, “Human remais”, “On Jerusalem
street (a postscript)” and the novel The hellboud heart, all of them by Clive Barker. The first
and the third short stories are related to the representation of the art of writing. The second
one and the novel are related to representation of fear at the Clive Barker art work. The
hellbound heart is also related to the representation of the pure unconcious. Also, I analise the
avant-garde film Forbidden as related to the doppelganger. Concerning to the literary and
artistic genres, Clive Barker is a hybrid author.

Key-words: Clive Barker; The Books of Blood; The Hellbound Heart


Letícia Zamperetti Copetti

Aspectos da obra de Clive Barker

Este trabalho foi julgado adequado para obtenção do título de Bacharel em Letras e aprovado em sua
forma final pelo Departamento de Língua e Literatura Vernáculas.

Florianópolis, 01 de dezembro de 2016

.............................................
Prof(a). Dr(a) Ana Livia Agostinho
Coordenadora do curso

Banca examinadora:

...................................................
Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca
Orientador e presidente da banca

..................................................
Prof. Dr. Márcio Markendorf
Titular UFSC/DLLI

................................................
Prof(a). Dr(a). Salma Ferraz
Titular UFSC/DLLV

Prof. Dr. José Ernesto Vargas


Suplente UFSC/DLLV
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………………………1
1. LIVROS DE SANGUE: ALGUMAS QUESTÕES ........................................................................ 2
1.1. O LIVRO DE SANGUE; OU A TINTA DA ESCRITA ............................................................. 3
1.1.1 Resumo do conto O livro de sangue ....................................................................................... 3
1.2 SOBRE A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA D’O LIVRO DE SANGUE .............................. 6
1.2.1 O amor como linha de cisão capaz de abrir as fendas entre os mundos ................................. 6
1.3. O SANGUE COMO TINTA DA ESCRITA, O CORPO COMO FORMA DO TEXTO ........... 8
1.4. SOBRE O TEMPO NA NARRATIVA DE O LIVRO DE SANGUE ........................................ 9
1.5. REPRESENTAÇÕES DO MEDO NAS NARRATIVAS RESTOS HUMANOS E
HELLRAISER .................................................................................................................................. 11
1.5.1 Resumo de Restos humanos ................................................................................................. 11
1.6. SOBRE A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA RESTOS HUMANOS ................................... 14
1.7. O QUE NOS TORNA HUMANOS? ......................................................................................... 15
1.7.1 O corpo como a forma do desejo e das sensações ................................................................ 17
1.8. A ESCRITA RECOMEÇA ........................................................................................................ 20
2. SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO ID PURO EM HELLRAISER ......................................... 22
2.1 O CORAÇÃO NA FRONTEIRA DO INFERNO: ALGUMAS IDEIAS SOBRE O TÍTULO
ORIGINAL ....................................................................................................................................... 23
2.2 SE NÃO HÁ MALDADE, TÃO POUCO HÁ BONDADE: A PUREZA COMO
CARACTERÍSTICA DO ID. ............................................................................................................ 24
2.3 RESUMO DE HELLRAISER .................................................................................................... 25
2.4 SOBRE A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA HELLRAISER ............................................... 26
3. O FANTÁSTICO E O HORROR NA OBRA DE CLIVE BARKER ........................................ 28
3.1 O FANTÁSTICO COMO GÊNERO LITERÁRIO TRANSITIVO SEGUNDO TODOROV .. 29
3.2 A FUNÇÃO DE LEITOR NA VACILAÇÃO DO LEITOR EMPÍRICO .................................. 31
3.3. POESIA, ALEGORIA E LITERALIDADE NO GENERO FANTÁSTICO ............................ 32
3.4. O FANTÁSTICO NA OBRA DE CLIVE BARKER ................................................................ 33
3.5. DEFINIÇÃO DO HORROR SEGUNDO NOEL
CARROL............................................................................................................................................36
3.6 O HORROR NA OBRA DE CLIVE BARKER ......................................................................... 37
4. ASPECTOS DA OBRA CINEMATOGRÁFICA DE CLIVE BARKER .................................. 39
4.1. SOBRE O FILME FORBIDDEN ............................................................................................. 40
5. CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 42
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 43
1

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa contempla meu trabalho de conclusão de curso pela Universidade


Federal de Santa Catarina, no segundo semestre de 2016, no curso de Letras Português.

A escolha por Clive Barker se deu pelo meu interesse em analisar obras de algum
autor contemporâneo do gênero terror/horror/fantástico. Meu orientador, prof. Dr. Jair Tadeu
da Fonseca me indicou Clive Barker, em razão de suas narrativas apresentarem uma diferença
sobre a fórmula tão desgastada destes gêneros, da qual Noel Carrol já dizia, no seu Filosofia
do horror ou paradoxos do coração, que o leitor/espectador já praticamente sabe de antemão
todo desenvolvimento do enredo.

Clive Barker não só vai além do esperado para o gênero, como também brinda o leitor
com uma prosa poética que normalmente não é esperada para o gênero. É autor inglês, sua
estreia foi no cinema de vanguarda, seguido pelo romance Hellraiser, que o próprio autor
adaptou para o cinema e para uma linguagem mais voltada ao público que procura um enredo
formatado no sentido do choque e da imagética extrema. Barker também adaptou “O livro de
sangue” para o cinema e novamente a linguagem prioriza o choque do espectador.

O trabalho inteiro, no que concerne às obras literárias de Clive Barker, está sob o eixo
de quatro narrativas: “O livro de sangue”, “Restos humanos” e “O livro de sangue (um post
scriptum) na rua Jerusalém” e Hellraiser. Os três primeiros são contos e o último é um
romance. Os contos fazem parte dos seis volumes intitulados Livros de sangue, compostos
por contos que não estão enredados entre si senão entre o primeiro do primeiro volume e o
último do último volume. Quero dizer que os seis volumes contam histórias relacionadas ao
primeiro conto do primeiro volume e o desfecho se dá no último conto do último volume.
Escolhi analisar somente quatro narrativas, sob diferentes perspectivas, na intenção de não
alongar por demais este trabalho e deste modo também pude dar um maior aprofundamento
nas análises. No primeiro capítulo está a análise de “O livro de sangue”, “Restos humanos” e
“O livro de sangue (um post scriptum) na rua Jerusalém” no sentido poético daquilo que os
eventos da narrativa podem representar, dentro dos limites do meu recorte da narrativa.

No segundo capítulo, fiz análise de Hellraiser também naquilo que os eventos podem
representar, também nos limites do meu recorte da narrativa.

O terceiro capítulo é dedicado ao gênero literário de Clive Barker e às definições e


conceitos de Noel Carrol sobre o gênero horror e de Tzvetan Todorov sobre o gênero
2

fantástico e então discuto se as obras analisadas podem ser classificadas como horror ou
fantástico.

O quarto capítulo é dedicado ao filme de vanguarda Forbidden, em que analiso as


rimas visuais como representação de duplos que formam uma totalidade.

Como o título do trabalho sugere, meus recortes são fragmentados, pois analiso alguns
aspectos da obra de Clive Barker. Considerei que ao analisar mais de uma narrativa e ao dar
um recorte diferente para uma, eu poderia abarcar e ampliar um pouco mais a análise da obra,
o que não ocorreria caso optasse por um único recorte em uma única narrativa ou o mesmo
recorte em mais de uma narrativas. Entretanto, para evitar justamente a fragmentação do
trabalho, optei por analisar o primeiro e o último conto da série Livros de sangue, pois elas
possuem um encadeamento e no miolo, o romance Hellraiser também recebe atenção em
alguns parágrafos do primeiro capítulo em que pude fazer alguma relação entre Hellraiser e
“Restos humanos”, no que concerne às representações, no caso, as representações do medo na
obra de Clive Barker. Assim, as análises de Hellraiser, “Restos humanos” e Forbidden
também estão entrelaçadas na discussão que faço nos devidos capítulos, sobre a representação
da formação de um corpo a partir do movimento entre sentidos e do movimento entre
imagens.

Por último, finalizo esta introdução com a indicação do site oficial sobre Clive Barker,
em que é possível encontrar informações sobre obras e entrevistas. O site está no endereço
www.clivebarker.info

1. LIVROS DE SANGUE: ALGUMAS QUESTÕES

“Cada corpo é um livro de sangue; sempre que nos abrem, a impressão é vermelha”.
(BARKER, 1990)1.

Assim Clive Barker abre, na página de rosto, cada um dos seis volumes da série que
constituem os assim chamados Livros de sangue. Trata-se da reunião de contos organizados
em seis volumes. Cada conto e cada volume podem ser lidos de modo independente. Na
trama, realmente não importa a ordem da leitura, pois não há um enredo narrado do primeiro
ao último conto, embora, paradoxalmente, estejam entrelaçados, pela trama, do primeiro
1
BARKER, Clive. O livro de sangue. In: Os livros de sangue, volume 1. Civilização Brasileira. 1990.
As datas das citações ao longo deste capítulo são as datas das publicações em língua portuguesa pela editora que
é referenciada nas devidas citações.
3

conto do primeiro volume ao último conto do último volume, respectivamente intitulados “O


livro de sangue” e “O livro de sangue (um post-scriptum) na rua Jerusalém”.

A narrativa de “O livro de sangue” dá algumas pistas sobre o significado destes corpos


que são livros de sangue, pois o personagem McNeal, um investigador paranormal charlatão,
recebe como vingança dos espíritos a incumbência (ou tarefa, se o leitor preferir) de carregar
grafadas na própria carne as histórias pessoais dos espíritos que se sentiram ultrajados pela
sua charlatanice.

Os demais contos dos seis volumes são as narrativas pessoais dos espíritos, suas
histórias singulares que, se não tiveram quem as escutasse com empatia, tiveram então, como
memorial, um corpo. Se não mais existirem narradores Benjaminianos2, há pelo corpos para
transmitirem memórias de geração para geração.

Ao longo dos subcapítulos deste capítulo faço a análise de alguns dos contos e
desenvolvo algumas das ideias sugeridas pela afirmação: “Cada corpo é um livro de sangue;
sempre que nos abrem, a impressão é vermelha.” (BARKER, 1990).

Cada um dos contos analisados oferecem no escopo da narrativa, sempre através da


leitura, possíveis sentidos para corpo e sangue e são alguns destes sentidos que estão
apresentados neste capítulo. O objeto do capítulo não é a frase de abertura dos Livros de
sangue, o objeto são alguns dos contos que os compõem e o recorte analítico está apresentado
nos subcapítulos correspondentes a cada um dos contos escolhidos para análise.

1.1. O LIVRO DE SANGUE; OU A TINTA DA ESCRITA

1.1.1 Resumo do conto O livro de sangue

O personagem Simon McNeal é o promissor médium novato do Departamento de


Parapsicologia da Universidade de Essex.

McNeal sabia que não possuía nenhum poder paranormal, nem estava interessado
nisso, a intenção era lucrar com a crendice e portanto, visto deste modo, a vingança que os

2
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume I. Magia e técnica, arte e política. Editora Brasiliense. 3ª
edição, 1987.
Para Walter Benjamin, aqueles que retornaram da Segunda Guerra Mundial estavam mudos, pois não tinham o
que narrar, devido às atrocidades que presenciaram. Para Walter Benjamin, o narrador é aquele que conta
histórias como experiência de vida porque assim elas não se perdem ao serem recontadas, na medida em que
permanecem na memória. Assim, a experiência não é individual, a experiência se trata da memória que
permanece viva na narração. Toda a obra citada trata do assunto, em especial os capítulos “O Narrador” e
“Experiência e pobreza”.
4

espíritos lhe impuseram não lhe passaria pela cabeça pois não havia espíritos, nem na casa
número 65 em Tollington Place, nem em lugar algum. Isso até a investigação da referida casa.
Segundo o narrador, no endereço havia “apenas uma casa isolada, de falso estilo gregoriano
e fachada de tijolos, o número 65 não se destacava na paisagem.” (BARKER, 1990. p.18),

As atividades paranormais se mostravam constantes e já há três dias pelos menos eram


praticamente ininterruptas e o registro delas era feito por McNeal, nas paredes da casa.
Manifestações paranormais constantes, pois afinal, onde a casa estava construída era uma das
rotas de tráfego dos espíritos, segundo o narrador.

Tinham sido cometidos crimes no endereço e se foram motivados por influência do


tráfego ou então se alguns dos espíritos da casa estão relacionados com os crimes, o narrador
não mostra, apenas sugere, o que aliás é uma das características de Clive Barker: deixar que
em alguns momentos o leitor decida as relações dentro dos elementos da trama. O narrador
informa que “os mortos têm suas estradas” (BARKER, 1990. p.17) e também que “as
estradas que se cruzavam em Tollington Place não eram estradas comuns”[...] “aquela casa
abria-se para o caminho percorrido tão somente pelas vítimas e pelos causadores de
violência.” (BARKER, 1990. p. 25).

Outra personagem, Mary, cumpre um papel como se fosse a mentora, a guia do grupo,
ainda que não de modo explícito. Mary é uma senhora, conhecida e respeitada nos ambientes
de parapsicologia e esotéricos. Mary vê através das paredes, o mundo é sinestésico para ela,
suas referências estão nas cores, nos sons e nos cheiros que somente ela e alguns
pouquíssimos como ela, são capazes de perceber.

Em algum dia da terceira semana de investigação, McNeal está no andar de cima,


bastante à vontade com mais uma de suas fraudes, escrevendo as mensagens que ele mesmo
sabe que criou e que atribui aos espíritos, em nome da fama do nome McNeal. Estava tão à
vontade que não percebeu a chegada dos espíritos, não dos espíritos que ele inventava, mas
daqueles espíritos que, segundo o narrador, “com uma eloquência além das palavras, os olhos
contavam as agonias, os corpos fantasmas mostravam ainda os ferimentos que lhes havia
tirado a vida.” (BARKER, 1990. p. 25).

Com eloquência semelhante, Mary percebe a aproximação, porém como naquela casa
o tráfego e a estrada eram singulares, os primeiros espíritos que passavam, fendiam ainda
mais a já frágil fronteira entre o cognoscível e o que quer que possa habitar além dos seus
limites. Mary, que está no andar térreo, enxerga McNeal através das paredes e também através
5

da casa inteira, que neste momento é como se fosse transparente para ela. Mary o enxerga
cercado de luz, com o pênis ereto enquanto tem o corpo penetrado pelos espíritos, que o
arrancam do próprio corpo. Mary o vê no limiar da estrada dos mortos, McNeal vê também a
si mesmo, ou melhor, vê o próprio corpo sendo preenchido, centímetro a centímetro,
milímetro a milímetro, por histórias entremeadas, às vezes narradas por uma única voz, às
vezes por várias e recontadas, mais e mais vezes, cada uma por uma voz diferente que
compõe mais um fio da trama, que abre espaço para mais e mais histórias.

Mary descobre que ama McNeal, o deseja, apesar da fraude e o deseja


verdadeiramente, não como seu Intermediário, como diz o narrador, ela o deseja dentro de si e
isto é tudo que pode dizer deste amor, mas é tarde para defender McNeal da investida dos
espíritos.

Aquela fresta que ela havia aberto; sem saber, ela aos poucos, lentamente,
conseguira abrir. Seu desejo pelo garoto tinha feito aquilo; seu pensamento
constante, sua frustração, seu desejo e o desgosto com esse desejo haviam
aumentado a fresta. Entre todos os poderes que podiam tornar visível o
sistema, o do amor e da sua companheira, a paixão, e da companheira de
ambos, a perda, eram mais potentes. Ali estava ela, uma encarnação dos três.
Amando, desejando e sentindo agudamente a impossibilidade das duas
coisas. Envolta numa agonia de sensações que havia negado a si mesma,
acreditando que amava o garoto apenas como seu Intermediário.
Não era verdade! Não era verdade! Ela o desejava, ela o queria agora,
profundamente dentro do seu corpo. Mas agora era tarde demais. O tráfego
não podia ser impedido por mais tempo; aquela torrente exigia, sim, exigia
acesso ao pequeno trapaceiro. (BARKER, 1990. p.24).

Nas páginas seguintes prossegue a narrativa das investidas dos espíritos, a narrativa da
batalha pessoal de Mary para salvar seu amado. A casa, a esta altura praticamente adquirira
vida, animada pelos espíritos. A casa viva, que havia se transformado em uma cacofonia
insana por causa das milhares de vozes dissonantes que soavam ao mesmo tempo, se aquieta.

McNeal, então, torna-se “o garoto”, alcunha dada pelos espíritos que agora assomam
ao seu corpo, como uma legião bíblica. Mary o recebe inerte nos braços, ele está
completamente escarlate, e ao que parecia totalmente esfolado. Em uma vista mais acurada,
percebe que o escarlate é resultado das linhas que se cruzam e voltam a se cruzarem no seu
corpo; e sangram enquanto narram as memórias únicas e singulares dos espíritos. Memórias
daqueles que podem não ter sido lembrados nem seus momentos foram honrados na vida, por
alguém. Se não foram lembrados nem receberam honrarias na vida, receberam muito menos
6

na morte. Até então não eram lembrados, pois não havia quem contasse suas histórias, mas
agora o garoto é um Livro de Sangue, “com eloquência além das palavras” (BARKER,1990.
p. 25).

1.2 SOBRE A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA D’O LIVRO DE SANGUE

1.2.1 O amor como linha de cisão capaz de abrir as fendas entre os mundos

A poesia na narrativa é uma das marcas literárias de Clive Barker e, portanto, a poesia
que o leitor encontra em “O livro de sangue” não é privilégio deste conto, mas é uma das
características do narrador. Ao longo deste capítulo eu mostro exemplos desta narrativa
poética de Barker, enquanto cito excertos da obra para demonstrar minhas análises.

No primeiro parágrafo, o narrador conta que “os mortos têm suas estradas”
(BARKER 1990. p.17) e que “seu ritmo monótono e pulsante pode ser ouvido nos lugares
devastados do mundo, através de fendas produzidas por atos de crueldade, violência e
depravação.” (BARKER, 1990. p.17).

Com relação àquilo que é capaz de abrir uma fenda entre o mundo dos mortos e dos
vivos, ou seja os atos de violência, Barker inicia a narrativa com uma fórmula comum: a de
que casas mal-assombradas assim o são por causa de alguma violência, crime ou depravação
cometidos entre suas paredes. A lista das obras literárias e cinematográfica com este enredo é
vasta e por isso cito somente duas, a título de exemplo, das quais não faço análise literária/
fílmica, pois exigiria um trabalho à parte. Limito-me a comentários sobre essas obras e os
restrinjo ao essencial para que seja possível relacioná-las com a obra de Clive Barker.
Entretanto, elas certamente mereceriam um trabalho à parte e uma discussão sobre as
possíveis relações com a obra de Clive Barker se esta análise literária/fílmica não fosse um
desvio do objeto do meu trabalho de conclusão de curso, que trata de aspectos da obra desse
autor. São elas: O iluminado3, de Stephen King, e Horror em Amityville4, de Jay Anson.

3
KING, Stephen. O iluminado. Editora Objetiva, 2005.
Obra adaptada para o cinema pelo diretor Stanley Kubrick em 1980. Embora o espaço da narrativa seja um hotel,
o Hotel Overlook, este é assombrado pelos espíritos de antigos hóspedes, alguns cometeram suicídio no seu
quarto e permanecem frequentando o ambiente. Alguns outros espíritos preferiram assombrar o elevador
fazendo-o funcionar como se tivesse volição própria, neste espaço o clima era de festa, assim como no bar do
hotel em que as festas continuavam sempre e sempre. Os crimes perpetrados por eles vão desde violência
doméstica a crimes do colarinho branco e, além destes, haviam alguns outros que passavam vários dos artigos do
código penal. O Iluminado narra também o terror subjetivo, terror influenciado pelo ambiente isolado (um hotel
vazio em razão das férias de inverno, durante uma nevasca).
7

Na obra “O livro de sangue”, no entanto, entre as coisas que são capazes de abrir as
fendas entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, uma delas é o amor; e amor, na
narrativa de Barker, não está desvinculado de erotismo. Até mesmo o amor divino é erótico,
como no romance O desfiladeiro do medo5, em que o personagem Todd Picket, depois de
morto, passa a ter uma ereção constante6 enquanto é visitado por uma esfera de luz que pousa
sobre a casa onde Todd morreu, e os personagens consideram que a esfera em questão seja um
anjo7, na falta de uma definição melhor; e posteriormente a narrativa sugere que a esfera

4
ANSON, Jay. Horror em Amityville. Editor: Victor Civita, 1983.
Embora o autor, um jornalista, relate na introdução que se trata uma reportagem sobre um estudo de caso de
investigação paranormal, o leitor certamente pode ler como ficção. Horror em Amityville teve adaptação para o
cinema em 1979, filme dirigido por Stuard Rosemberg. A reportagem/obra literária e o filme narram sobre uma
casa que se torna má, ou pelo menos os espíritos ali aprisionados (ou então espíritos habitantes da casa) fazem
parecer com que a maldade emane dela.
Nos primeiros minutos do filme, a narrativa mostra um jovem assistindo à televisão enquanto o aparelho
televisor começa a apresentar estática acompanhada de imagens desconexas. A narrativa sugere que as imagens
e/ou a estática lhe ordenaram que assassinasse a família, que dormia naquelemomento, poisé exatamente isso que
ele faz, mata a família. No prosseguimento do filme, o espectador vê uma família comum com seus problemas
comuns de casal com filhos de diferentes casamentos e que quer uma casa ampla e confortável para a nova
família. Em poucos minutos, a casa, ou os espíritos (fica a cargo do espectador), começam a assombrar a família
e o até então marido e padrasto carinhoso aos poucos se torna violento e só não assassina a família ao final do
filme porque a esposa consegue, depois de muitos episódios de violência, retirá-lo da casa. Ela havia descoberto
que no período colonial norte americano, aquela casa havia sido utilizada por um padre para torturar índios.
Horror em Amityville se torna uma franquia e nela a residência é habitada por novas famílias e a mudança
sempre acaba mal, o enredo variando desde uma possessão demoníaca a um relógio cuco que pertenceu a um
mágico e que, supostamente por isso, traz más vibrações para a casa. Certamente que o enredo fomenta
discussão sobre se a violência é meramente humana ou se há algo sobre-humano no ambiente que induz à
violência.

5
BARKER, Clive. O desfiladeiro do medo. Rio de Janeiro, Bertrant do Brasil, 2002
O título original é Coldhheart Canyon, que poderia ser traduzido como Canyon do coração gelado (ou de pedra).
Em um diálogo entre os personagens Tammy e Todd (que já estava morto) sobre a luz que viam na casa, Tammy
pensa sobre o quanto “a situação diferia muito da imagem convencional de caça fantasmas. O fantasma nu e com
medo e ela lhe oferecendo uma calça para vestir” (BARKER, 2002. p. 643)
6
“-Ela veio me buscar-disse Todd, num murmúrio- Você sabe disso.
-Como é que você pode ter certeza?
-Porque posso sentir isso. No peito. E nos colhões. Na primeira vez em que a coisa veio aqui, chegou a entrar
mesmo na casa e eu acordei com esta dor terrível nos colhões. E ele -apontou para a entreperna-estava tão duro
que doía. Fiquei apavorado. Gritei para que fosse embora, e ela foi. Acho que devo tê-la assustado.”
(BARKER.2002. p. 643)
7
“Vamos todos entender bem essa coisa –disse – Aquela coisa no lado de fora é, definitivamente, um anjo. Ou,
em outras palavras, empresário de algum poder divino.” (BARKER.2002. p. 353).
Na narrativa, a tal esfera luminosa também apresenta características que relembram aos personagens uma
projeção cinematográfica, pois por vezes, aparece como se fosse um holograma que possui a qualidade de
representar algo pessoal para o personagem que está diante da luz. Outra característica que faz com que os
personagens considerem que a esfera luminosa tenha qualidades de uma projeção cinematográfica, é que ela é
capaz de repetir infinitamente uma mesma cena que é mostrada no holograma.
8

luminosa seja o próprio Todd, em alguma (possível, no ambiente da narrativa) manifestação


sobre-humana8.

Ainda com relação ao amor, em “O livro de sangue” não são os poderes paranormais
de Mary que socorrem McNeal e nem mesmo ocorre a intervenção de alguma força ou poder
além do humano capaz de fechar a cisão entre os mundos. O que fecha a cisão e silencia a
cacofonia dos mortos é o amor.

Lá estava ele, na sua frente. Não mais do que dois ou três metros de ar
apodrecido os separavam. Seus olhos novamente se encontraram, e um olhar
eloquente, comum aos dois mundos, o dos vivos e o dos mortos, passou
entre eles. Havia compaixão, naquele olhar, e amor. As ficções
desapareceram, as mentiras viraram pó. Em lugar dos sorrisos enganadores
do rapaz havia agora uma verdadeira doçura – refletida no rosto dela.
(BARKER,1990. p. 30-31)
E os mortos, temerosos desse olhar, viraram suas cabeças para o lado. Seus
rostos ficaram rígidos, como se a pele tivesse sido esticada sobre os ossos,
sua carne escureceu, tornando-se violácea, suas vozes soaram tristonhas,
antecipando a derrota. Mary estendeu a mão para tocá-lo, não precisando
mais lutar contra as hordas dos mortos; eles afastaram-se da presa, como
moscas mortas, caindo do vidro da janela. (BARKER, 1990. p. 31)
“Os mortos não tinham voz agora, nem boca. Perdiam-se ao longo da estrada, sua
crueldade exorcizada.” (BARKER, 1990. p. 31)

O amor também como pathós, do grego, afeto. As ficções desapareceram, ou seja, só


restou a poesia e poesia aqui eu coloco (uma definição minha) como o que é suscitado pelo
texto literário.

1.3. O SANGUE COMO TINTA DA ESCRITA, O CORPO COMO FORMA DO TEXTO

O texto é tinta e neste sentido o sangue com que os livros de sangue no corpo de
McNeal são/estão escritos, são a representação da tinta da escrita. Eles (os livros de sangue)
sangram sem parar, assim como a escrita literária também sangra (na tinta) sem parar e se
algum sentido é possível, é através do pathós que afeta o leitor singularmente. A literatura é
sempre através do leitor. O texto por si só nada significa, é uma cacofonia de palavras e os
mortos (os discursos dos textos que foram os textos literários, mais estes mesmos discursos
que constituem o leitor, são uma cacofonia de palavras, de sentidos e de afetos. O texto que

8
“A luz descia nesse momento da árvore[...]”. “Havia ali uma forma humana, nem homem nem mulher, em pé
dentro da luz e, por momento, ao se colocar atrás de Todd, ela pensou que era Todd –ou alguma outra face dele,
uma face terna, eterna, que nenhuma câmera jamais captaria nem palavras jamais descreveriam.”
(BARKER.2002.p. 672).
9

nada significa (sem o leitor) serve como representação deste corpo que é um livro de sangue.
Sempre que é aberto; ou seja, sempre que é lido e afetuoso (no sentido de causar afeto), ele é
vermelho. Vermelho, pois a tinta retoma seu fluxo incessante da escrita, sangra e sangra, ou
seja, escreve e reescreve textos sobrepostos e interconectados, na relação do leitor com a
literatura.

“E depois de algum tempo, quando as palavras no corpo dele fossem feridas fechadas
e cicatrizes, ela o leria. Traçaria, com amor e paciência infinitos, as histórias contadas pelos
mortos no corpo dele” (BARKER, 1990, p. 32)

Se cada corpo é um livro de sangue, então, cada livro de sangue é também um corpo;
no caso; o livro, o romance, o poema, são como o corpo da poesia e da narrativa poética.
Depois de cicatrizadas as escarificações, ou seja, depois que o sentido do texto é descoberto
singularmente pelo leitor e os conceitos definidos, as escarras cicatrizam, o livro fecha e a
literatura assume um corpo e, no entanto, “cada corpo é um livro de sangue, sempre que nos
abrem, a impressão é vermelha” (BARKER, 1990).

1.4. SOBRE O TEMPO NA NARRATIVA DE O LIVRO DE SANGUE

Em “O Livro de Sangue”, a narrativa é paradoxalmente linear e não-linear pois o


tempo, a partir do momento em que McNeal é atacado pelos espíritos, alterna entre Mary estar
vendo-o através de clarividência e vendo-o fisicamente. Em um momento, o narrador
descreve Mary se aproximar dele; no momento seguinte, ela ainda está no andar térreo da
casa. Os ambientes (o andar térreo e o quarto no terceiro andar onde McNeal é atacado)
também se fundem quando os olhos de ambos se encontram e McNeal lhe pede desculpas.
Momentos antes o narrador informara que McNeal havia acabado de abrir sua própria fresta
entre os mundos, embora com um talento ínfimo comparado ao de Mary e então seus olhares
se cruzam e eis o momento do pedido de desculpas:

De repente ele girou a cabeça num gesto convulsivo, e seus olhos


encontraram os dela, além da porta. Naquele momento extremo ele
conseguiu despertar um talento real, uma arte que era ainda uma fração da
que Mary possuía, mas o suficiente para entrar em contato com ela. Seus
olhos se encontraram. Num mar de escuridão azul, cercado por todos os
lados por uma civilização que nenhum deles conhecia nem compreendia,
seus corações vivos se encontraram e se uniram.
– Desculpe – disse ele quase em silêncio. Infinitamente tocante. –Desculpe.
Desculpe. –Olhou para o outro lado, seu olhar arrancado dela.
(BARKER.1990. p. 29).
10

Então o narrador diz que “Mary tinha certeza de que devia estar quase no topo da
escada” (BARKER. 1990. p. 29) e, no entanto, em parágrafos anteriores, Mary abria caminho
entre a multidão de espíritos e podia inclusive ver McNeal com detalhes suficientes para
perceber que “A cueca estava na altura dos tornozelos, parecia uma cena de estupro”
(BARKER.1990. p. 29)

Dito de outro modo, o leitor é levado a entender que Mary está próxima fisicamente de
McNeal, entretanto eles ainda estão distantes, a proximidade é somente sensorial e
provavelmente a única proximidade autêntica, pois como disse o narrador, seus olhares e
corações se conectam. Porém, como pode esta aproximação ser sensorial se eles estão
fisicamente distantes? Com a fusão dos ambientes em que a visão da casa real, física, é
alternada com a visão da casa enquanto ponto de intersecção de estradas dos mortos.

“Estendeu a mão para a maçaneta, mas a porta se abriu antes que a tocasse. O
corredor no lado de fora do quarto tinha desaparecido completamente. No seu lugar estava a
estrada, estendendo-se até o horizonte.” (BARKER. 1990. p. 27)

[...]podia ver, fracamente, o contorno da porta e as tábuas e vigas do quarto


onde estava Simon. [...] Mary o viu no quarto vazio, com o sol entrando pela
janela[...] Então sua concentração enfraqueceu, e ela viu o mundo invisível
tornado visível, com Simon dependurado no ar, enquanto os mortos
escreviam em seu corpo por todos os lados[...] (BARKER.1990. p. 30)

Nesta fusão do tempo da narrativa, mesclada com a fusão dos ambientes, que se
entrelaçam, ou seja, fusão do quarto do ataque e o andar térreo onde Mary vê o ataque pela
primeira vez, o tempo da narrativa se confunde com a aproximação de Mary, que, para o
leitor, está próxima de McNeal e, no entanto a proximidade é somente sensorial pois ela ainda
não terminou de subir as escadas e ainda luta contra a multidão dos mortos.

Dito de outro modo, a narrativa é construída através do fluxo de conexões de tempos e


ambientes e assim é como se própria narrativa fosse um livro de sangue e inclusive fosse uma
das histórias escritas pelos espíritos na carne de McNeal. A narrativa é construída como se
diversas narrativas estivessem costuradas umas sobre as outras, como se o narrador fosse um
fiador moderno que traça a trama do destino dos personagens, trançando, costurando e
separando as narrações e assim constrói a trama. Trama como tecido e como construção
11

narrativa. Tecido como representação das histórias que se cruzam, às vezes literalmente, no
corpo de McNeal. A literatura, a memória e a memória como literatura são a pele de McNeal.

“Toda história tem seu tormento tradicional. Este devia ser usado para registrar seus
testamentos. Ele seria a página, o livro, o veículo das suas autobiografias. Um livro de
sangue. Escrito com sangue” (BARKER 1990. p. 27).

1.5. REPRESENTAÇÕES DO MEDO NAS NARRATIVAS RESTOS HUMANOS9 E


HELLRAISER10

Este sub capítulo é dedicado à discussão sobre como o medo está representado na obra
de Clive Barker e os objetos escolhidos são o conto “Restos humanos” e o romance
Hellraiser. A respeito de Hellraiser, um capítulo está dedicado a ele, em que discuto a
representação do inconsciente na obra de Clive Barker.

Aqui, além do conto “Restos humanos”, utilizo também excertos de Hellraiser com o
objetivo de pontuar a discussão a respeito de o medo ser intrínseco ao ser humano no sentido
de que a experiência do próprio nascimento é uma experiência do desconhecido e que o medo
estaria ligado a ela. Discuto também que o medo está atrelado à experiência de tornar-se um
indivíduo. Antes de prosseguir, quero pontuar que o resumo e a análise literária de Hellraiser
estão no capítulo dedicado a ele.

1.5.1 Resumo de Restos Humanos

Assim como a maioria dos contos de Os livros de sangue, “Restos humanos” é um


conto longo, composto por 54 páginas. Nas primeiras páginas, o leitor é apresentado a Gavin,
um prostituto. Gavin tem pouco ou nenhum apreço por arte, por questões espirituais ou
morais e provavelmente tem pouca empatia pelos clientes. O narrador deixa tudo isso
explícito ao descrevê-lo, inclusive o estilo literário do narrador nesta descrição explicita a
pobreza textual de Gavin. Sua rotina se resume a ficar pelo menos meia hora em frente ao
espelho examinando se não apareceram espinhas no rosto, verifica também se o peso não
variou mais do que um quilo (o máximo que Gavin se permitia variar de peso). Os cuidados
com a doenças venéreas eram minuciosos, cuidado este que não era motivado por alguma

9
BARKER, Clive. Restos humanos. In: Os livros de sangue, volume 3. Civilização Brasileira. 1992
10
BARKER, Clive. Hellraiser: renascido do inferno. Rio de Janeriro: Darkside Books, 2015
12

preocupação consigo mesmo ou com o cliente. Caso fosse contaminado, ficaria muito tempo
fora das ruas, e sem dinheiro, daí sua preocupação.

E, para Gavin, a profissão nada tinha de desagradável. Mais ou menos uma


noite, em cada quatro, ele desfrutava um pouco de prazer físico. Os piores
casos eram como uma abatedouro sexual, com peles quentes e olhos sem
vida. Mas, depois de tantos anos, já estava acostumado.
Tudo era lucro. O trabalho lhe permitia comprar sapatos caros. (BARKER,
1992. p. 191)

A narrativa prossegue com a descrição dos insucessos de Gavin naquela noite, 29 de


setembro, em uma Londres gelada de início de outono. Naquela noite, Gavin não encontrava
sucesso com artimanhas usuais para a conquista dos clientes. O hotel, onde tradicionalmente
fazia ponto, demitira o recepcionista por conduta indecorosa e o atual recepcionista estava
irredutível às suas seduções. "Aquela não era sua noite"(BARKER, 1992. p. 194).

Gavin se sentia infeliz, não somente por não ter podido fazer ponto no tradicional
local, sua tristeza era mais profunda, uma tristeza na alma, e antes que o leitor possa pensar
que possa ser por algo mais profundo, o motivo da tristeza é que ele já está com 24 anos e
ainda não havia conseguido ascender a gigolô, ou encontrado uma viúva rica. "Gavin não era
o que havia sonhado que seria, o que havia prometido ao próprio eu"(BARKER. 1992. p.
197).

Uma onda de infelicidade subiu das profundezas de sua alma. Estava com
vinte e quatro anos e cinco meses. Levava aquela vida, intermitentemente,
desde os dezessete anos, prometendo a si mesmo que iria encontrar uma
viúva rica (a aposentadoria do gigolô), ou uma profissão decente.
(BARKER. 1992. p. 196).

Naquela noite, "ele queria, não, precisava estar com alguém. Nem que fosse só para
ver a própria beleza refletida em outros olhos"(BARKER.1992. p. 196)

Assim, Gavin sai para um outro ponto de prostituição, em frente a um cinema e a sorte
muda. Encontra um homem mais velho, com características que Gavin interpreta como um
misto de nervosismo e inexperiência nos jogos noturno de sedução e depois de poucas
palavras estão no apartamento do homem, Ken Reynolds.
13

A extrema economia do ambiente, com pouquíssimos móveis e inúmeras peças do que


lhe parecia ser obras de arte aos pedaços, somado ao nervosismo de Ken, que não se acalmou
depois de adentrar na privacidade da própria casa, incomoda Gavin. Descobre que Ken é
colecionador de obras de arte, trabalha com escavações e mais tarde o leitor descobre que isto
é verdade, porém ele rouba parte dos objetos que encontra nas escavações.

A narrativa prossegue com o estranhamento de Gavin diante da hesitação de Ken aos


jogos de sedução, porém, para não perder a noite, nem o dinheiro, não desiste. Escuta um
barulho, ao que parece, uma batida forte na parede, em algum cômodo distante. Nos
parágrafos seguintes Ken tenta convencer Gavin, sem sucesso, de que os barulhos se tratam
de sons no apartamento do vizinho, o que só faz aumentar o estranhamento que Gavin sente
em relação a Ken, que a certa altura se retira da sala e avisa que já retorna. Em razão da
demora do retorno de Ken, Gavin desconfia que ele pode ter sido atacado por alguém. Nos
parágrafos seguintes prosseguem as investigações sobre os sons e sobre a demora de Ken, que
é encontrado ferido, o que reforça a hipótese de um ataque. Gavin, na tentativa de encontrar a
origem dos sons chega até a banheira e lhe chama a atenção a água turva e o que parece ser
uma figura encolhida, enrodilhada sobre si mesma. Ao observar com mais atenção e depois de
passar a mão sobre a superfície da água da banheira, Gavin descobre que dentro dela há uma
estátua com forma humana incompleta, traços como se fossem meros borrões. Logo associa
os sons a alguma reação química.

Passou a mão na superfície para tirar a espuma suja, seu reflexo se partiu e
pôde ver a coisa na banheira. Era uma estátua, uma figura humana
adormecida, mas com a cabeça torcida, olhando para os sedimentos escuros
da superfície. Os olhos pintados estavam abertos, duas bolas no rosto mal
esculpido; a boca era uma fenda; as orelhas, alças ridículas na cabeça calva.
Estava nua, sua anatomia mal caprichada como o rosto, o trabalho de um
aprendiz de escultor. Em alguns lugares, a tinta, solta talvez pelo mergulho
demorado, erguia-se em tiras do torso da estátua, revelando a madeira
escura. (BARKER, 1992. p 210-211).

Aos poucos, e sem o consentimento e o conhecimento de Gavin, ele e a estátua passam


a interagir, a estátua adquire forma e desejos humanos. Gavin descobre também que o
objetivo de Ken não era sexo e sim sacrificá-lo para que a estatua absorvesse sua essência
vital; porém, ao que sugere a narrativa, Gavin ganha a simpatia da estátua, que o escolhe e
para além de absorver sua essência vital, passa a compartilhar da mesma essência de Gavin.
14

1.6. SOBRE A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA RESTOS HUMANOS

Antes de iniciar a análise literária de “Restos humanos”, quero trazer para a discussão
uma declaração feita por Lovecraft a respeito do medo e quão antigo e inexorável ele é para o
ser humano. A partir dela então estabeleço alguma relações entre as narrativas “Restos
humanos” e Hellraiser.

O ensaio Horror supernatural in literature11, de Lovecraft, é iniciado com a seguinte


declaração: “the oldest and strongest emotion of mankind is fear, and the oldest and strongest
kind of fear is the fear of the unknow”12.

E se o desconhecido estiver mais próximo e for mais familiar do que se supõe? E se


esta antiguidade do medo estiver em estreita relação com a antiguidade do homem, seja tanto
do histórico cultural quanto do desenvolvimento humano único e singular de cada indivíduo?

Aspectos da obra de Clive Barker, discutidos neste subcapítulo e no capítulo dedicado


a Hellraiser, sugerem algumas hipóteses. No romance Hellraiser, o personagem Frank, ao
selar o acordo com os cenobitas, aceitando que lhe ensinem sobre o prazer, leva um choque
com o que descobre na primeira experiência com o prazer sem limites. Não que ele estivesse
de todo despreparado para a experiência, pois já sabia que se tratava de muito mais do que o
ato sexual propriamente dito. Frank então se percebe extremamente sensível ao ar à sua
volta, a poeira lhe dói nas narinas ao respirar; os olhos percebem com extraordinária agudez
os desníveis do reboco nas paredes; a luz da lâmpada lhe fere os olhos; seus ouvidos
percebem com extrema nitidez e acuidade os sons ao redor, o que faz do ambiente uma
sinfonia cacofônica.

A experiência de Frank sugere, no discurso narrativo, as sensações de um bebê logo


após a saída do útero. Todo um novo mundo é apresentado abruptamente ao bebê, e se ao ser
humano é possível alguma aproximação do que seria a experiência em um outro mundo,
poderia ser a experiência de seu próprio nascimento. A hipótese é que este medo é tão
marcante e tão definitivo, como diz Lovecraft, pois é inerente à primeira experiência de
humanidade. O que nos torna humanos são as sensações, a necessidade de um Outro num
espelho, necessidade de um tu para se conhecer o eu. Humano é corpo vivo, daí que cada

11
LOVECRAFT, Howard Phillips. Supernatural horror in literature. Edição Kindle.
Em língua portuguesa o título é: Horror Sobrenatural na Literatura
12
A mais antiga e mais forte emoção da humanidade é o medo e o mais antigo e mais forte medo é o medo do
desconhecido. (Tradução livre de minha autoria).
15

corpo é um livro de sangue, sempre que nos abrem, a impressão é vermelha (BARKER,
1990).

1.7. O QUE NOS TORNA HUMANOS?

Gavin, personagem do conto “Restos humanos”, tem sua essência vital absorvida por
uma estátua da Roma antiga, que acaba se tornando ele mesmo, pois compartilham da mesma
vida. Aos poucos Gavin se torna cada vez menos humano, pois deixa de sentir o que quer que
seja, nem mesmo permanecem seus instintos básicos ou então as necessidades fisiológicas.
Ele aos poucos se torna a estátua e ela, no processo de tornar-se Gavin, fica encantada por
estar conseguindo arrotar. Leva uma surra por estar sempre se metendo em confusão e já na
casa de Gavin, este lhe pergunta se sente dor:

-Sente dor?

-Não- disse a coisa tristemente, como se desejasse sentir. –Não sinto nada. Todos os
sinais de vida são artificiais. Mas estou aprendendo. –Sorriu. –Aprendi a bocejar e a arrotar.
(BARKER, 1992. p. 237)

Antes disso:

-Por que ainda não está morto?

-Porque ainda não estou vivo- disse a coisa. (BARKER,1992. p. 237).

Em outro diálogo, a estátua diz que torna sempre a morrer e renascer pois nunca
conheceu ninguém como ele.

-Sou o que sou. Não conheço nenhum outro igual a mim, mas por que devo
ser único? Talvez existam outros, muitos outros, só que não os encontrei
ainda. Assim, eu vivo e morro e vivo outra vez, e não aprendo nada -falou
com amargura -a meu respeito. Você compreende? Você sabe o que é porque
vê outros iguais. Se estivesse sozinho na terra, como ia saber o que era? Só o
que o espelho pode mostrar. O resto seria mito e conjectura. (BARKER,
1992. P. 239).

A estátua, que a esta altura já sabia bocejar e arrotar, humana afinal, está diante de
algum Outro como ela mesma. Ela não tinha nome, era uma coisa sem nome, e já pode
nomear a si mesma. Logo nos primeiros encontros destes personagens, a estátua havia dito
que já via pelos olhos de Gavin, seus julgamentos já eram os de Gavin e isso até o ponto em
16

que seria impossível discernir um do outro. Ali, o rosto ainda era um esboço borrado, os
olhos, um risco tosco com tinta à mostra que mais parecia uma maquiagem mal feita e
desfeita após a balada noturna. Agora, os olhos eram perfeitos, idênticos aos de Gavin. Fala
que nas outras vidas, quando ainda morria para renascer infinitamente e sem nunca conhecer
um igual, se desfazia dos rostos que estava usando e encontrava outro. Desta vez, a última, foi
desafiado por Gavin, que resistiu, lutou contra o roubo da essência vital, e a estátua perdeu a
disputa, porém passa a ter um nome, embora não seja dito explicitamente na narrativa. Ao
final do conto, estão os dois diante da lápide do pai de Gavin, que mais nada sente, nem
emoção, nem mesmo a dor de dente que tanto incomodava. A estátua diz que sempre que
esteve ali teve vontade de chorar e diz que é tudo tão real, diz que esteve ali ao longo de
muitos anos. Eles não precisam mais de significantes para se comunicar, a estátua já sabe,
sente e pensa como Gavin e responde sem necessidade da pergunta, que, não, não vinha para
lamentar as pessoas que matara, vinha para visitar papai. Chorava com a dor da perda e
perguntou:

-Por que tudo é tão doloroso?-perguntou ela, depois fez uma pausa.-Por que é a dor
da perda que me faz humano?(BARKER, 1992. p. 243)

O narrador não responde, mas a narrativa sugere que aquilo que nos faz humanos é
justamente o que cultura ocidental contemporânea entende como fragilidade. Gavin fica
completamente anestesiado após completar a transformação. A demanda cada vez maior de
ajuste da vida humana para as necessidades do lucro, da produção, da indústria da beleza,
indústria do bem-estar, o ajuste cada vez maior aos padrões fazem de Gavin uma metáfora do
ser humano contemporâneo. Ele deixou de sentir, Gavin não sente mais dor, não tem mais
sequer necessidade de dormir. O sono e o descanso se tornaram não apenas supérfluos
atualmente como também são praticamente uma infantilidade querer obedecer às necessidades
do corpo. O corpo cansado reage com dores e a indústria farmacêutica se encarrega de tornar
o sujeito imune aos clamores da própria natureza.

A narrativa de “Restos Humanos” oferece pelo menos dois vieses: Gavin é uma
metáfora do ser humano que teve a própria natureza usurpada e usurpada por si mesmo, pois
não percebe que seus atos são constituídos de discurso, que a imposição de uma vida insana,
como se fosse uma máquina (ou uma estátua), também é discurso.

Certamente a criatura estava representando, mas, então, por que tanto


sofrimento em seus olhos e por que o rosto se enfeava, contraindo-se com o
choro? (BARKER, 1992. p. 243).
17

Representação é magia e técnica13 e aí está o outro viés narrativo. Nele, Gavin-estátua


se torna inseparável daquele que já fora humano, de modo que é indistinguível. Quem é
Gavin? É aquele que perde a sensibilidade (e humanidade, segundo o narrado)? É aquela vida
que antes fora estátua e que agora chora a morte do pai (de Gavin) e se orgulha de arrotar,
bocejar e chorar? Neste caso, é todos eles. Gavin descobriu a si mesmo tão radicalmente que
se percebe constituído de linguagem i.e de discurso. Aquele Gavin insensível é a técnica,
aquele que representa com tanto sofrimento é a magia e ambos são inseparáveis. É impossível
aniquilar a linguagem, o narrador e o leitor são constituídos de linguagem e assim o leitor é o
mediador da narrativa. Separar os dois Gavins seria como uma tentativa de anular a
representação. Representar com sofrimento é um sofrimento representativo, assim o
sofrimento se torna uma representação. Mas ele é real? É menos real, é um fingimento por ser
uma representação? Gavin também, como o poeta português Fernando Pessoa, finge ser dor a
dor que deveras sente. Fingir é representar, neste sentido, e, assim, é técnica.

A narrativa de Clive Barker seria então uma representação de experiências e sensações


que nos constituem como humanos e assim nos tiram da anestesia da vida cotidiana. O que
nos faz humanos seria a experiência real, a priori sem técnica, somente magia. Porém até para
dizer isso, até para sentir isso é preciso uma representação, pois se não tem um nome nem ao
menos um signo, a coisa não existe. Para nomear a coisa, a chamamos de medo.

Talvez este gênero literário seja chamado horror14 porque narra experiência sem
anestesia, e como são livros de sangue, narram o corpo fora de qualquer convenção.

1.7.1 O corpo como a forma do desejo e das sensações

A construção da narrativa “Restos humanos” sugere a formação de um corpo. Inicia de


modo bastante econômico, com descrições lacônicas do personagem Gavin. As investidas de
alguma alma (no sentido de pathós) que venha a encarnar neste corpo (Gavin na sua imutável
rotina de prostituto aspirante a gigolô) são dadas aos poucos na narrativa, na medida em que o
personagem Ken é inserido no ambiente de Gavin.

13
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume I. Magia e técnica, arte e política. Editora Brasiliense. 3ª
edição, 1987.
Para Walter Benjamin, a obra de arte possui uma aura, no sentido de ser única e é o que ele chama de magia.
Esta magia se opõe a técnica, que é a obra de arte reproduzida, seja na atualidade, seja séculos atrás. A aura não
é estritamente o fato de uma obra ser literalmente única senão pelo efeito que causa naquele que a aprecia.
Quando uma história, quando uma memória é narrada através de uma obra de arte, tem-se a magia e a aura.
14
A discussão sobre gênero literário está no capítulo 3 “O fantástico e o horror na obra de Clive Barker”
18

“A indiferença é sua marca registrada” (BARKER, 1992. p. 190), diz o narrador


sobre Gavin logo nos primeiros parágrafos. Indiferença que é alterada ainda nos primeiros
contatos com Ken, cujo olhar é sentido de forma que chega a ser doloroso.

“Os olhos do homem estavam pregados em Gavin, com um encantamento tão intenso
que parecia quase doloroso.” (BARKER, 1992. p. 198).

O significante usado pelo narrador é /encantamento/, o que já sugere uma quebra da


rotina, se /encantamento/ for entendido no sentido de rituais ancestrais. O prosseguimento da
leitura do conto permite esta interpretação, pois o leitor mais tarde descobre que a intenção de
Ken era sacrificar Gavin para que a estátua adquirisse vida própria. A estátua, entretanto,
escolhe Gavin e o motivo disto é o leitor quem dá.

“Gavin olha para a banheira. Alguma coisa naquela estátua fascinava-o. Talvez e
nudez, e aquela segunda nudez, que estava acontecendo debaixo d’agua, o máximo do strip-
tease, a retirada da pele. (BARKER, 1992. p. 211)

A estátua causa fascínio enquanto identificação, como encarnação de uma alma em um


corpo inerte, ao passo que Gavin e a estátua estão, neste tempo da narrativa, indiscerníveis, o
elo já foi estabelecido. A perda da pele como a perda da máscara, a perda da persona (do
latim, por onde soa) do teatro grego e latino. Perdidas as máscaras, Gavin e a estátua são puro
afeto, puro pathós. Assim, Gavin não mais é indiferente, ele foi afetado pela estátua.

“Por que está todo encolhido? Está morrendo?” (BARKER, 1992. p. 211), pergunta
Gavin para Ken, referindo-se à estátua na banheira. Não se trata efetivamente de uma morte
senão de um nascimento. Morte de Gavin e nascimento da estátua. Morte da indiferença e
nascimento do afeto. A banheira é como um útero e um útero é vermelho por dentro. “Sempre
que nos abrem, a impressão é vermelha”. Nesta narrativa, Gavin escreve a própria história no
corpo, na tinta da estátua.

Quando Gavin vai embora do apartamento de Ken, os sons das batidas recomeçam,
soam como “a fúria de um coração desperto.” (BARKER, 1992. p. 213).Eles, Gavin e a
estátua, nasceram, o elo enfim foi estabelecido, estão atados.

Nos parágrafos seguintes, Gavin percebe que perdeu o magnetismo pessoal, não
consegue mais tudo o que quer apenas com a presença do seu sorriso. Percebe também que
está sendo seguido, a sensação sobre o perseguidor é que se trata de alguém por demais
sorrateiro, alguém muito hábil para se esconder nas sombras e se mover com elas, outras
19

pessoas também notam algo estranho. Uma vizinha perguntou certa vez sobre quem era
aquele homem que esperava por horas na escada.

Outra vez, numa rua movimentada, Gavin abrigou-se na entrada de uma loja
vazia, para acender o cigarro, e viu o reflexo do homem, distorcido pela
vitrine suja. O fósforo queimou seu dedo, Gavin abaixou os olhos, e, quando
os ergueu, o homem que o vigiava fora tragado pelo mar faminto da
multidão. Era uma sensação horrível, e não ficou só nisso. (BARKER, 1992.
p. 214-215).

Embora o elo já tenha sido estabelecido e a estátua já estivesse viva, o corpo ainda não
estava completamente formado, pois ainda era insubstancial, o corpo ainda era pouco mais do
que uma presença diáfana, ainda que assustadora.

A proteção também tinha seu revés. A estátua precisava ainda de sangue para
completar o elo, porém não poderia ser o de Gavin, o seu escolhido. Enquanto ainda
precisasse de sangue agiria como um justiceiro para Gavin, mesmo que ele repudiasse a ideia
e os atos. Logicamente, os desafetos nutridos na vida noturna tinham também seus protetores,
que obviamente vinham vingar-se. Num destes momentos, Gavin não teve mais dúvida sobre
quem ou o que o estava seguindo e protegendo.

Num instante, identificou aqueles traços toscos: os olhos assustados e sem


vida, a boca como um corte no rosto, as orelhas como alças de xícaras. Era a
estátua de Reynolds. A coisa sorriu, mostrando dentes muito pequenos para
o rosto. Dentes de leite, ainda não trocados. Mas, mesmo no escuro, Gavin
notou uma melhora na aparência da estátua. A testa parecia maior, o rosto
mais proporcional. Era ainda um boneco pintado, mas um boneco com
aspirações. (BARKER, 1992. p. 222).

Durante este primeiro contato, em que ocorrem os primeiros diálogos entre Gavin e a
estátua, seguem-se mais revelações sobre a estátua embora sua natureza permaneça incógnita
durante toda a narrativa, ao que resta ao leitor decidir a respeito da natureza da estátua e do
elo entre ela e Gavin.

- Sou uma coisa sem nome -disse-. –Sou um ferimento no flanco do mundo.
Mas sou também o estranho perfeito, pelo qual você sempre orou quando era
criança, o estranho que chegaria para buscá-lo, chama-lo de belo, erguer seu
corpo nu da rua e leva-lo, através da janela, para o céu. Não sou? Não sou? -
Por que eu sou você[sic]- disse a coisa, respondendo à pergunta não
enunciada- aperfeiçoado. (BARKER, 1992. p. 224)
20

A simbiose entre Gavin e a estátua ainda aumenta, ela adquire cada vez mais características
humanas15 e orgulha-se disso. O corpo está formado, a dialética e alteridade entre Gavin e ela
se desenvolve até o final do conto quando finalmente a estátua se torna efetivamente Gavin e
ele sente cada vez menos vontade de viver, cada vez mais se sente à vontade, inerte, no quarto
de dormir. O ciclo se fecha nos últimos parágrafos quando a estátua chora no túmulo do pai
de Gavin e se refere ao defunto como seu próprio pai e Gavin caminha entre os carros sem se
importar com nada mais.

O para-lama de um carro raspou sua perna, outro quase colidiu com


ele. Aquela ansiedade para chegar ao lugar do qual logo estariam
ansiosos para partir era ridícula. Deixe que praguejem, que o odeiem,
que vejam seu rosto sem formas e sigam para casa, assombrados. Se
as circunstâncias fossem favoráveis, talvez um deles entrasse em
pânico e, em vez de desviar, o atropelasse. Qualquer coisa estava bem.
Daquele momento em diante, ele pertencia ao acaso, do qual seria o
Porta-Estandarte para sempre. (BARKER, 1992. p 244)

1.8. A ESCRITA RECOMEÇA

O último conto do sexto volume de Livros de sangue16 é um posfácio do primeiro


conto do primeiro volume, “O livro de sangue”.

No primeiro parágrafo, o leitor é apresentado sem delongas à Wyburd, enquanto ele


olha para um livro que lhe retribui o olhar. Não se trata, ao menos em parte, de um conto
maravilhoso17 em que livros sejam capaz de retribuir a olhares. O livro em questão é aquele
que fora McNeal, agora transformado em um livro de sangue. No diálogo entre Wyburd e o
livro, o leitor descobre que Wyburd é um colecionador de peles. McNeal não existe mais,
refere-se a si mesmo (ou os espíritos que escreveram no seu corpo) como “o garoto”.

- Porque você fala de si mesmo na terceira pessoa? – dirigiu-se a McNeal,


quando voltou com o copo. – Como se não estivesse aqui...?
-O garoto?- Perguntou McNeal – Ele não está aqui. Há muito tempo não está
aqui.
Sentou-se e bebeu. Wyburd começou a sentir-se pouco à vontade. O garoto
estava apenas louco, ou brincando de algum jogo idiota? (BARKER, 1996.
p. 226)
15
As citações e argumentações a respeito da humanidade da estátua e da simbiose cada vez maior com Gavin,
estão no item 3.3.1 deste subcapítulo, “O que nos torna humanos”.
16
BARKER, Clive. O livro de sangue (um post-scriptum) na rua Jerusalém. In: Livros de sangue, volume
VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996
17
A discussão sobre o “maravilhoso” está no capítulo 3 “O fantástico e o horror na obra de Clive Barker”
21

Se o leitor tinha alguma dúvida sobre se Wyburd conversava com um livro


literalmente; ao menos “literalmente” no sentido de livro como objeto; ele descobre que se
trata pelo menos de uma metáfora, afinal o garoto está com a pele escrita da cabeça aos pés.
Em um outro sentido, Wyburd conversa literalmente com um livro. Uma leitura é uma
conversa “literal”, ou seja, uma conversa com a literatura, sendo que a própria conversa é
literatura.

O que, senão literatura, emerge da experiência da leitura? Um texto lido remete a


outros textos lidos, assim a escrita é um livro de sangue e sangue é a tinta da escrita. O
personagens da ficção são de “papel” e, no entanto, o leitor empírico lhe atribui vida18.

“O garoto estava apenas louco, ou brincando de algum jogo idiota?” (BARKER,


1996. p. 226).

Um livro como objeto existe enquanto realidade objetiva, mas e a realidade dos
personagens? Ao atribuir realidade, mesmo que no papel, aos personagens da ficção, o leitor
empírico faz a si mesmo, de algum modo, a mesma pergunta de Wyburd. Talvez se pergunte
do que se tratam estas palavras (a narrativa), pois afinal são ficção, elas são “de papel” mas
afetam o leitor e criam uma realidade, que é a realidade ficcional.

Wyburd finalmente faz o que veio fazer, retirar a pele do garoto para colecionar, a
arranca do garoto ainda vivo, afinal no exercício da leitura e da escrita, as palavras ainda estão
vivas, enquanto não tomam a forma do texto, são como os livros de sangue que sangram e
sangram.

Wyburd leva a pasta com a pele do garoto para o quarto do apartamento alugado,
acorda no meio da noite com um cheiro forte, sente umidade nos pés, a pele dentro da pasta
sangra e sangra. A literatura o afetou.

As histórias seguem, dissera o garoto. Sangram e sangram. E agora ele


precisa ouvi-las em sua cabeça. Dezenas de vozes, cada uma contando uma
história trágica. A enchente levou-o para o teto. Pelejava para manter o
queixo acima da maré espumante, mas em minutos mal havia um centímetro
de ar no alto da sala. E quando até mesmo essa margem ficou estreita,
acrescentou sua própria voz à cacofonia, implorando para que o pesadelo
parasse. Mas as outras vozes o afogaram com suas histórias, e quando ele
beijou o teto seu fôlego acabou. (BARKER, 1996. p 230)

18
Tzevetan Todorov, em Introdução à literatura fantástica, fala sobre a esta “realidade” do personagens ficcional.
O assunto está melhor discutido no capítulo3 “O fantástico e o horror na obra de Clive Barker”
22

2. SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO ID19 PURO EM HELLRAISER20

Psicanálise e literatura tornam-se áreas afins desde que Sigmund Freud realizou alguns
de seus estudos de caso baseando-se em obras literárias. James Hillman chega a argumentar
que Freud criou um novo gênero literário, o do estudo de caso21. Algumas das teorias de
Freud sobre psicopatologia tiveram como pressuposto teórico a literatura. Isto já bastaria para
dar início a uma longa e complexa discussão, a crítica pode muito bem questionar a validade
de uma teoria sobre transtornos mentais baseada em literatura, o que levanta também a
discussão sobre se haveria alguma relação entre literatura e “vida real” e este seria somente
um dos pontos que requereriam pesada atenção.

Dito de outro modo, literatura e psicanálise são assuntos afins e quando o foco é
análise literária em diálogo com a psicanálise, pode-se evitar que esta última sirva como
explicação da obra ou do comportamento dos personagens. O estudo de caso na literatura tem
seu valor para ambas as áreas e, no caso da literatura, é somente mais um dos muitos
discursos que é possível criar sobre a obra e/ou através da obra, entretanto este não é o
objetivo deste trabalho. Aqui, neste trabalho, o romance Hellraiser-Renascido do Inferno é
analisado como um discurso narrativo que descreve o id puro.

Entretanto, aqui, estas questões não são discutidas, nem questões similares
relacionadas ao estudo de caso sendo que o motivo não é outro senão evitar a aplicação da
técnica da psicanálise na literatura. Minha escolha pelo id como objeto na narrativa de Clive
Barker procura inverter o olhar comumente dado quando se aproxima literatura e psicanálise.
O estudo de caso propriamente dito, tão caro à psicanálise e não menos importante para a
compreensão das psicopatologias, culminaria aqui em uma explicação da obra literária, além
do que fecharia a obra na direção de que os personagens sofreriam algum transtorno mental,
como se esta fosse a única via possível de interpretação. Certamente é possível esta
interpretação e o que se quer evitar é que se torne a única explicação. Neste mesmo sentido,
paradoxalmente, a inversão do olhar (o narrador que descreve o id literariamente) permite esta
19
Genitivo do pronome latino Es (do latim, este, esse, isto, isso). Nos textos originais de Freud ele utilizava a
forma nominativa Es para nomear o inconsciente. O motivo pelo qual o significante /id/ passou a ser usado pelos
tradutores de Freud para nomear inconsciente não é discutido neste trabalho porque seria um desvio do meu
objeto.
20
BARKER, Clive. Hellraiser: renascido do inferno. Rio de Janeiro: DarkSide Books. 2015
21
HILLMAN, James. Ficções que curam. Campinas, SP: Verus, 2010
Uma das características deste gênero, segundo Hillman, é a possibilidade de mudança de um personagem para
outro sem alterar o enredo. O enredo consiste na explicação das situações psíquicas e no mundo externo do
paciente, que seriam a explicação freudiana para o caso. Assim, o estudo de um caso, pelo leitor/estudante de
Freud, serviria como molde apriorístico dos demais casos com características que se assemelham.
23

interpretação (a da psicopatologia) a partir da perspectiva de um narrador que dá ao leitor


(através da narrativa) a experiência do contato com o inconsciente sem intermediação. No
lugar de toda uma terminologia técnica, proponho uma discussão sobre a obra enquanto
discurso narrativo que possibilita a experiência do id puro. Seria como se Sigmund Freud, ao
invés de descrever o id, o narrasse. Para finalizar, Freud é Freud, Clive Barker é Clive Barker
e vamos ao que interessa: a trama literária.

2.1 O CORAÇÃO NA FRONTEIRA DO INFERNO: ALGUMAS IDEIAS SOBRE O


TÍTULO ORIGINAL

O título original de Hellraiser é The Hellbound Heart e algumas ideias surgem a


partir de uma tradução poética. Uma das ideias é representação de fronteira.

Uma fronteira é algo que paradoxalmente une e separa. Fronteira pode ser pensado
também como toque, no caso, é pelo toque que dois corpos entram em contato, é pelo toque
que dois corpos trocam sensações sem se fundirem um no outro e para o caso de a fusão
ocorrer, não haveria mais fronteiras.

O título original sugere uma fronteira. O significante /bound/ em uma tradução


poética do inglês, pode ser entendido como fronteira, borda, limite. Bound é também é o
particípio passado de bind, que significa unir, atar, ligar. A linha da cisão é a própria cisão.
Dito de outro modo, se há uma fronteira há uma cisão no sentido de divisão e, no entanto, é
tarefa bastante difícil delimitar qual é o ponto exato da fronteira sem que sejam levados em
conta os dois elementos que estão cingidos (ou o mesmo elemento que foi cingido em duas ou
mais partes). Meu ponto é que bound indica uma fronteira que é ao mesmo tempo um elo com
o que quer que esteja cingido pela fronteira.

Ainda em uma tradução poética, e em uma análise sintática poética, o sintagma the
hellbound heart, hell (do inglês, inferno) e bound formam uma única palavra. Assim,
hellboundsugere em língua portuguesa algo como “atado ao inferno”. Heart significa coração,
portanto, the hellbound heart pode ser traduzido poeticamente como O Coração Atado ao
Inferno. O determinante /o/ indica que não se trata de qualquer coração, portanto é um
coração específico. Se é um coração específico, possui peculiaridades que o atam ao inferno,
sugere que aquilo que anima este coração o coloca na fronteira com o inferno.

Alguém pode argumentar que quando algo se encontra ligado a alguma outra coisa,
dissolvem-se as fronteiras. Na poesia, possivelmente sim e possivelmente não, ainda mais
24

quando o que se encontra (ou o que marca a fronteira propriamente dita) é o coração, ou o
inferno. O coração tem a sístole e a diástole, ou seja, o perpetuo movimento autônomo, há
“algo” que o mantém pulsante, levando o sangue, que é a vida, para todas as partes do corpo.
Corpo este que por sua vez é uma consequência do movimento, ou seja, uma forma é
coagulada enquanto culminação da expressão deste “algo”.

Inferno, do latim inferus, mundo inferior. Na cultura clássica, todas as almas


retornavam do inferus para reencarnar e ele era também destino de todos após a morte. Inferus
também é substantivo para nomear algo bem mais simples: a parte de baixo, inferior. Assim,
inferus é o andar de baixo, é o chão que se pisa. Não que os romanos clássicos chamassem o
chão de inferus mas este é inferus em relação a alguém. Claro que nestes casos a grafia muda
em razão da sintaxe latina, mas estes são pormenores sem relevância aqui para este trabalho.
O fundamental é a ideia de inferus também como em baixo, parte de baixo, a baixo.

Assim, inferus serve também como metáfora para o que está subjacente, aquilo que
escapa aos sentidos, o que está por trás e por baixo do cognoscível.

“O coração na fronteira para o inferno”, na poesia, enquanto sentido poético de um


texto literário, sugere o movimento da escrita para o som das palavras e para o ritmo da
narrativa, sugere o movimento da imagem virtual criada pelo texto literário para os sons do
poema. Este coração fronteiriço sugere o inapreensível que só pode ser apreensível no
momento da narração e mesmo assim (e por isso mesmo, por estar na fronteira), o sentido
desliza.

Como descrever o inconsciente senão através destes sentidos deslizantes? O


movimento(coração) do mundo inferior(interior) pulsante como imagens e sons é tudo que é
possível acessar do sentido poético, se é que existe algum sentido, ele está nestas fronteiras.

2.2 SE NÃO HÁ MALDADE, TÃO POUCO HÁ BONDADE: A PUREZA COMO


CARACTERÍSTICA DO ID.

Uma das definições para o inconsciente, tanto para Freud como para Carl Gustav Jung,
é a respeito da qualidade do inconsciente. Descrevem que ele tem como característica a
pureza. Esta pureza está totalmente deslocada da acepção ocidental moderna. O inconsciente,
para Freud e para Jung, é puro porque não possui parâmetros nem referências. Nele, o bem e o
mal estão misturados de tal forma que perdem suas definições. A consciência é o que separa o
bem e o mal.
25

Em se tratando deste assunto, se algum autor conseguiu, através do discurso narrativo,


descrever o inconsciente puro, foi Clive Barker.

2.3 RESUMO DE HELLRAISER

Na primeira página o narrador apresenta o personagem Frank, às voltas para decifrar o


enigma da abertura de uma caixa, que é um cubo com desenhos que sugerem um sol. Esta
caixa é conhecida como configuração de Lemarchand e o objetivo de abri-la é convocar os
cenobitas, que são conhecidos por ensinarem sobre o prazer sem limites. O modo como Frank
conseguiu a caixa e sobre qual é a sua natureza, o narrador não dá muitos detalhes, diz
somente que Frank a conseguiu por meio de um amigo e que aquele que decifrasse seus
enigmas conheceria o prazer sem limites.

Motivado por isso, Frank não desiste, por mais que o enigma possa parecer
indecifrável. Enquanto persiste, percebe o som de sinos e logo observa que estes não
poderiam estar sendo escutados por ele ali naquele quarto, pois não havia igrejas próximas e
então descobre que os sinos acompanham a caixa no seu movimento de abertura. Dela, saem
seres dos quais Frank já previa quem eram, porém não poderia prever a real natureza deles.
São os Cenobitas, hierofantes da Ordem de Gash (do inglês, cisão), cujo nome é bastante
apropriado para o trabalho deles, trabalho este que Frank descobre tarde demais. Os cenobitas
estão no número de quatro, cada qual varia na aparência de acordo com suas particularidades,
porém três deles apresentam peculiaridades comuns entre si: são indistinguíveis no sexo (não
têm órgãos sexuais e são de aparência andrógina), apresentam lacerações no corpo e as roupas
são costuradas na carne. Somente do quarto cenobita, entre eles, Frank conseguiu distinguir o
sexo, é uma mulher e usa um capuz. Ao longo da narrativa, Frank aprende, por experiência
própria e contra a vontade, sobre o propósito das lacerações. O prazer sem limites está
relacionado à hiperexcitação dos nervos como também está relacionado à dor que, pela
cartilha dos Cenobitas, quando estimulada ao extremo, causa prazer.

Apesar de a narrativa conter 160 páginas, este resumo pode ser bastante econômico,
pois grande parte da narrativa se desenvolve com as aventuras e desventuras de Frank para se
libertar dos cenobitas. Ele foi desmembrado e aprisionado na caixa. Pouco tempo depois, o
irmão de Frank vai morar com a esposa, Julia, na mesma casa em que foi realizada a
convocação dos cenobitas. Julia e Frank tiveram um romance, dias antes do casamento dela e
é este elo, formado por erotismo e amor, que possibilita que Frank escape, embora esteja em
26

um estado de absurda fragmentação física, somente um coração e alguns fiapos de nervos que
se erguem do assoalho, é o que Julia consegue ver.

Ele necessita de sangue para continuar a reconstrução do corpo e aos poucos o casal
(Frank e Julia) entram em uma espiral de assassinatos para prover o sangue necessário a
Frank.

A narrativa se encerra quando uma amiga de Frank, que sempre foi apaixonada por
ele, é quase vitimada pelo casal e na luta para sobreviver, encontra a caixa e mesmo sem saber
do que se trata, a abre. Por vingança, barganha com os cenobitas, ela faz com que Frank
confesse que fugiu e em troca não é aprisionada. A narrativa sugere que eles cumpriram o
acordo, pois a moça é descrita como uma espécie de guardiã da caixa, após o desfecho da
história.

2.4 SOBRE A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA HELLRAISER

No conto, Frank abre uma caixa que sugere uma mandala, esta caixa é um cubo, que
tem em cada uma das suas seis faces, desenhos cruciformes e circulares. Estes desenhos
sugerem um sol cuja luz alterna entre o claro e o escuro, entre escuridão absoluta e luz
cegante, em que um extremo leva ao outro de modo que são indissociáveis. A luz cegante
gera escuridão absoluta que por sua vez conduz o personagem espectador da luz e o leitor a
completá-la. Completá-la com o quê? Com o que estiver à disposição, no inconsciente. A luz
do ambiente assim se alterna quando a caixa é aberta, de modo que quando está no fulgor
máximo, quase estoura as lâmpadas e se não estoura é devido alguma propriedade fantástica
desta luz. Um sino acompanha as luzes em ritmo análogo como uma sinfonia de som e luz.

A lâmpada nua no centro do quarto esmaeceu e brilhou, brilhou e esmaeceu


novamente. Ela adotara o ritmo do sino, fulgurando em seu máximo a cada
vez. Nos intervalos entre a luz e as trevas, o quarto se tornava pleno; era
como se o mundo que ele ocupara durante vinte e nove anos tivesse deixado
de existir. Então, o sino soava de novo e a lâmpada tão forte que parecia que
jamais esmoreceria[...] (BARKER, 2015. p. 16).

Da caixa saem os Cenobitas, hierofantes da Ordem de Gash, cujo objetivo é ensinar o


prazer, mas não o prazer como a humanidade entendia. Não havia prazer no ar, pelo menos
não como a humanidade entendia (BARKER, 2015. p. 26), diz o narrador. Prazer era objetivo
de Frank, porém o prazer humano e por isso evocara os hierofantes. Seu primeiro
27

desapontamento foi a aparência deles, que o narrador descreve como assexuados pois não
havia como defini-los. Deles, uma fluorescência emanava embora não fosse o suficiente para
iluminar o cômodo.

Então, a luz.
Ela veio deles: do quarteto de Cenobitas que, agora, a parede selada ao
fundo, ocupava o fundo. Uma fosforescência espasmódica, como o brilho de
peixes das profundezas: azul, frio, sem encanto. (BARKER, 2015. p. 17)
A luz era deles, vinha deles, mas a luz não existia, pelo menos no sentido latino de ex
ire, ir para fora. Eles eram pura treva, a luz não existia. Suas roupas era costuradas no corpo.
Se for possível dizer o que eles são, dir-se-ia que, na medida do possível, são o id puro.

Com relação à descrição da roupas dos cenobitas, e se Freud e Jung foram felizes ao
dizer que a roupa é uma máscara social, os hierofantes da Ordem do prazer não precisariam de
roupas pois não precisam de máscaras, afinal são representações do prazer puro e sem limites.
Mais do que isso, neles não há diferenciação entre a máscara e a essência, pois se a libido é
tudo, as máscaras são também formas de prazer. Para o id tudo é prazer, até mesmo a dor que
advém da hipersensibilidade nervosa que Frank também experimenta.

Por que, então, ele estava tão aflito de observá-los? Seriam as cicatrizes que cobriam
cada polegada dos corpos deles, a carne cosmeticamente perfurada, cortada e infibulada,
sendo a seguir coberta de cinzas? (BARKER, 2015. p. 17).

A descrição do segundo cenobita não é muito diferente:

Frank teve dificuldade em adivinhar o gênero do falante com alguma


segurança. Suas roupas, algumas das quais estavam costuradas à pele,
escondiam as partes privadas e não havia nada na voz ou nas feições
intencionalmente desfiguradas que oferecesse a menor pista. (BARKER,
2015. p. 18).

Quanto ao terceiro cenobita, “cada centímetro da cabeça era tatuado com intrincado
padrão e, em cada intersecção de eixos verticais e horizontais, havia um alfinete cravejado,
enterrado até o osso. Sua língua era decorada de forma parecida”. (BARKER, 2015. p. 18).

No Capítulo I deste trabalho eu discuti um pouco mais sobre o romance Hellraiser, dei
enfoque para as representações do medo na obra de Clive Barker e utilizei Hellraiser como
corpus.
28

Meu recorte foi o medo como uma experiência do desconhecido que é possível ao ser
humano e, portanto, é inerente à experiência de tornar-se um indivíduo. Sobre a construção da
narrativa enquanto representação deste medo, Frank experimenta extrema sensibilidade aos
estímulos externos.

Perfumes que ele mal notara até então, de súbito, fizeram-se imensamente
fortes. O persistente cheiro de flores furtadas; o cheiro da pintura do teto e da
seiva na madeira sob seus pés - tudo inundou sua cabeça.[...]. [...]Era como
se ele pudesse, repentinamente, sentir a colisão dos grãos de poeira contra
sua pele. Cada exalação irritava seus lábios; cada piscadela, os seus olhos.”
(BARKER, 2015. p. 22)

“A infância ainda persistia na sua língua (leite e frustração) [...]” (BARKER, 2015.
p. 24). Assim, a sua fala ali naquele momento é a fala de uma criança ainda na tenra idade,
uma fala que ainda não conhece o contrato social, é uma fala de puro desejo, era a “visão em
todos os lugares” (BARKER, 2015. p. 23).

3. O FANTÁSTICO E O HORROR NA OBRA DE CLIVE BARKER

Neste capítulo, desenvolvo as discussões a respeito das definições do gênero literário


fantástico, segundo Todorov e a respeito do gênero literário horror, segundo Noel Carrol. O
recorte destas discussões são excertos da obra de Clive Barker a partir das quais analiso se as
definições de Todorov e de Carrol são pertinentes a Clive Barker e se as obras citadas podem
ser classificadas como do fantástico e/ou como de horror. Os excertos citados são das obras
que já estão analisadas nos capítulos II e III. A escolha destas obras se deu por dois motivos,
um deles é em razão de que, para discutir o gênero de uma obra literária, é preciso em
primeiro lugar analisá-la. Outro motivo é por uma questão de economia, para que este
capítulo não fique muito longo.

Na obra Introdução à literatura fantástica22, Todorov discute também sobre os


aspectos linguísticos do texto fantástico, discute sobre a sintaxe do texto fantástico e também
a semiótica do fantástico. Não abordo as discussões sobre os aspectos sintáticos, semânticos e
nem semióticos que caracterizam o texto fantástico, pois, se o fizesse, isso demandaria um
trabalho à parte.

22
TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. Premia Editora de Livros, S.A. Digital Source.
1981
29

No meu trabalho, os recortes da obra Introdução à literatura fantástica, de Todorov,


são suas definições do fantástico como vacilação entre uma explicação racional ou
sobrenatural para os eventos da narrativa; o leitor empírico como uma função de leitor e
inseparável da função de narrador; e, por último, a discussão de Todorov sobre a atribuição de
realidade que o leitor dá para os personagens da ficção. Esta atribuição de realidade é
necessária para que um texto seja considerado fantástico, pois o leitor empírico não deve
conceber a narrativa no seu sentido alegórico e sim no seu sentido literal. Assim, atribui
realidade textual aos eventos. Se o texto fosse concebido no sentido alegórico, nenhum dos
eventos da narrativa poderia ser considerado sobrenatural, o que cessaria a vacilação entre o
racional e o sobrenatural.

No meu trabalho, conforme já foi dito, discuto também a definição do gênero horror
proposta por Noel Carrol. Na obra A filosofia do horror ou paradoxos do coração23, o autor
apresenta o que ele chama de filosofia do horror e propõe identificar o que leva um leitor a
sentir prazer em algo que o assusta. Discute também sobre os enredos de horror, distingue
horror de suspense, fala sobre a identificação do leitor com os personagens para sustentar sua
tese sobre os porquês do prazer da leitura do gênero horror.
Porém, o meu recorte é a definição do gênero horror para Carrol e então discuto se ela
é ou não pertinente aos excertos da obra de Clive Barker que tenho analisado ao longo de todo
este meu trabalho.

3.1 O FANTÁSTICO COMO GÊNERO LITERÁRIO TRANSITIVO SEGUNDO


TODOROV

Todorov define o fantástico como gênero transitivo situado entre os gêneros


maravilhoso e estranho puro. Assim, o fantástico não existe por si mesmo senão na vacilação
entre o maravilhoso e o estranho puro. Dito de outra maneira, a vacilação do personagem e/ou
do leitor empírico entre a explicação racional ou sobrenatural para os eventos é o que define
um texto como fantástico.

23
CARROL, Noel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas/SP: Papirus, 1999
30

Vimos que o fantástico não dura mais que o tempo de uma vacilação:
vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que
percebem provém ou não da “realidade”, tal como existe para a opinião
corrente. Ao finalizar a história, o leitor, se o personagem não o tiver feito,
toma, entretanto, uma decisão: opta por uma ou outra solução, saindo assim
do fantástico. Se decidir que as leis da realidade ficam intactas e permitem
explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro
gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas
leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos
no gênero maravilhoso. (TODOROV, 1981. p. 26).

Dentro deste corpus que é a vacilação, Todorov ainda classifica outros gêneros que
advêm do movimento da vacilação, como, por exemplo, os gêneros fantástico-estranho e
fantástico-maravilhoso.

Passemos agora para o outro lado desta linha divisória que chamamos o
fantástico. Encontramo-nos no campo do fantástico-maravilhoso, ou dito de
outra maneira, dentro da classe de relatos que se apresentam como
fantásticos e que terminam com a aceitação do sobrenatural. Estes relatos
são os que mais se aproximam do fantástico puro, pois este, pelo fato mesmo
de ficar inexplicado, não racionalizado, sugere-nos, em efeito, a existência
do sobrenatural. O limite entre ambos será, pois, incerto, entretanto, a
presença ou ausência de certos detalhes permitirá sempre tomar uma decisão.
(TODOROV, 1981. p. 29).

No gênero estranho puro, o ambiente da narrativa é o mundo cotidiano da realidade


objetiva e, no entanto, neste mesmo mundo ocorrem eventos os quais o personagem considera
que sejam sobrenaturais mas que terminam por receber uma explicação racional
Entretanto, quando nem todos os eventos encontram explicação lógica ou quando
apesar de toda racionalização termina-se por aceitar, ao menos para alguns dos eventos, a
existência do sobrenatural, tem-se o gênero fantástico-maravilhoso.
O gênero estranho “não é um gênero bem delimitado” (TODOROV, 1981. p.26) e este
também, assim como o fantástico, só existe senão em relação com o fantástico.

Nas obras pertencentes a este gênero, relatam-se acontecimentos que podem


explicar-se perfeitamente pelas leis da razão, mas que são, de um ou outra
maneira, incríveis, extraordinários[...] e que, por esta razão, provocam no
personagem e o leitor[sic] uma reação semelhante ao que os textos
fantásticos nos voltou[sic] familiar. Vemos porque a definição é ampla e
imprecisa[...] diferente do fantástico, o estranho não é um gênero bem
delimitado[...]; dito com mais exatidão, só está limitado pelo lado do
fantástico, por outro lado, dissolve-se no campo geral da literatura.
(TODOROV, 1981. p. 26).
31

Anteriormente, Todorov definiu o fantástico como gênero transitivo entre o estranho e


o maravilhoso e na página 26 de Introdução à literatura fantástica, parece sugerir que
também o estranho seja um gênero transitivo. A obra sugere também que, para Todorov, os
gêneros literários discutidos nela não são passiveis de classificação bem delimitada. O
problema parece ser que os gêneros fantástico, estranho e maravilhoso só existem em relação
um com o outro e que neste relacionamento, coexistem outros gêneros que só podem sugerir
algo a partir da relação de exclusão de um gênero com o outro. Quero dizer que se para um
texto ser fantástico, é preciso que exista a vacilação entre o sobrenatural e o racional e que a
escolha entre um ou outro é o que caracteriza o maravilhoso (na hipótese da escolha pelo
sobrenatural) ou o estranho (na hipótese da escolha pelo racional), deste modo, maravilhoso e
estranho se excluem. Todorov problematiza que no gênero estranho, por exemplo, pode ser
que nem todos os eventos recebam uma explicação racional, ou então que apesar da
explicação racional ainda persista a dúvida. Novamente há exclusão entre se este estranho é
um estranho puro ou é um estranho-maravilhoso, pois possui nuances do sobrenatural.
A conclusão do problema parece ser que Todorov amplia as teorias de Saussure sobre
diacronia e sincronia do signo linguístico e as relaciona com os gêneros literários fantástico,
maravilho e estranho.
Entretanto eu não desenvolvo esta hipótese para não me alongar por demais no meu
trabalho.
Retomando as classificações de Todorov para os gêneros, o maravilhoso é o gênero em
que os eventos não podem ser considerados sobrenaturais, pois são naturais no ambiente na
narrativa. É uma questão semântica. Se o personagem não encontra nada que esteja além do
que já é natural no seu ambiente, os eventos com que ele se depara não podem ser
considerados como eventos que estejam além do natural(sobrenatural). As mesmas relações
de exclusão ditas sobre o gênero estranho se relacionam com o gênero maravilhoso.

3.2 A FUNÇÃO DE LEITOR NA VACILAÇÃO DO LEITOR EMPÍRICO

Como dito anteriormente, a conceituação do fantástico para Todorov, em poucas


palavras, é a vacilação a respeito de se o acontecimento na narrativa é sobrenatural ou possui
alguma explicação racional. Esta vacilação pode ser do personagem, que oscila quanto a se
posicionar frente aos acontecimentos, ou seja, vacila entre a explicação racional e a aceitação
de que se trata de um evento sobrenatural ou pelo menos sem explicação lógica. Nesta
segunda opção (da falta de explicação lógica), o gênero literário é o maravilhoso para
32

Todorov. Entretanto, no maravilhoso, como será discutido mais adiante, não há vacilação. O
personagem da narrativa maravilhosa não vacila porque os eventos que causam a vacilação do
personagem são naturais no ambiente da narrativa, ou seja, não estão para além do natural
(sobrenatural).
O fantástico também é caracterizado textualmente através daquilo que Todorov define
como função do leitor, ou seja, Todorov conceitua o leitor empírico como se este fizesse parte
da narrativa fantástica. Dito de outro modo, é para o leitor empírico que o narrador se dirige,
ao mostrar, no texto, elementos narrativos que são desconhecidos dos personagens e estes
mesmo elementos causam a vacilação do leitor empírico. Esta relação textual entre narração e
leitor empírico não é exclusivo do fantástico e caracteriza o que Todorov conceitua como
função do leitor.

O fantástico implica pois uma integração do leitor com o mundo dos


personagens; define-se pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos
acontecimentos relatados. Terá que advertir imediatamente que, com isso,
temos presente não tal ou qual leitor particular, real, a não ser uma “função”
de leitor implícita ao texto (assim como também está implícita a função do
narrador).
A percepção deste leitor implícito se inscreve no texto com a mesma
precisão com que o estão os movimentos do personagem. (TODOROV, 1981
p. 19)

3.3. POESIA, ALEGORIA E LITERALIDADE NO GENERO FANTÁSTICO

Inicio este item do ponto onde finalizei o primeiro capítulo deste trabalho. Lá, nos
últimos parágrafos, falei sobre a atribuição de realidade dada pelo leitor, para os personagens
da ficção. Aí está outro aspecto da literatura fantástica para Todorov. Para ele, os
acontecimentos da narrativa fantástica precisam ser entendidos no sentido literal para que a
obra possa ser classificada como fantástica.

Vemos agora que a leitura poética constitui um obstáculo para o fantástico.


Se, ao ler um texto, rechaça-se toda representação e se considera cada frase
como uma pura combinação semântica, o fantástico não poderá aparecer:
exigir[sic], como se recordará, uma reação frente aos acontecimentos tal qual
como se produzem no mundo evocado. (TODOROV, 1981. p. 33)

No conto “Restos Humanos”, se o leitor considera que a estátua não é realmente uma
estátua e sim a representação de alguma coisa, tem-se o sentido alegórico e poético do texto.
33

O leitor precisa considerar que estátua realmente criou vida; e para que ocorra a vacilação;
duvidar da sanidade de Gavin ou então o narrador deixar a dúvida de se tratava de algum
truque. Mesmo no caso do truque, é algo literal, a estátua estava viva, pelo menos enquanto o
pêndulo da vacilação estava para o sobrenatural.
Na outra hipótese, o personagem está louco, o que também não deixa margem para o
alegórico.
Um outro exemplo é se o leitor entender que em Hellraiser, Frank abre uma moderna
caixa de Pandora e dali liberta todos seus terrores pessoais sobre si mesmo e, como
consequência, sobre quem o cerca.
Neste caso, ter ia-se o sentido alegórico. Obviamente que as narrativas podem ser
interpretadas desta forma e nisto está um ponto fundamental para Todorov.
Ao dizer que não cabe o sentido alegórico para que a narrativa seja classificada como
fantástica, Todorov sugere que o fantástico também depende da atitude do leitor e neste caso
parece que se trata do leitor real e não do que está implícito na narrativa. Na hipótese de se
tratar do leitor real, este leitor se torna o referente e assim a literatura não se referiria somente
a si mesma (se referiria também a algo fora dela- o leitor real) e, deste modo, seria literal.

A literatura não é representativa, no sentido em que podem sê-lo certas frases


do discurso cotidiano, pois não se refere (no sentido preciso do termo) a
nada exterior a ela. Os acontecimentos relatados por um texto literário são
“acontecimentos” literários, assim como os personagens são interiores ao
texto. Mas negar de fato à literatura todo caráter representativo é confundir a
referência com o referente, a aptidão para denotar os objetos com os objetos
mesmos. Mais ainda, o caráter representativo rege uma parte da literatura,
que resulta cômodo designar com o termo ficção, em tanto que a poesia não
possui esta aptidão para evocar e representar[...]. Esta oposição, como a
maior parte das que se encontram em literatura não é da ordem de tudo ou
nada, mas sim mais o bem degrau[sic]. A poesia contém, ela também,
elementos representativos; a ficção, por sua parte, tem propriedades que
tornam o texto opaco, não transitivo. Mas não por isso a oposição deixa de
existir. (TODOROV, 1981. p. 33).

3.4. O FANTÁSTICO NA OBRA DE CLIVE BARKER

No conto “O livro de sangue,” de Clive Barker, a função leitor, logo na primeira linha,
define o conto como maravilhoso, pois o narrador inicia com “os mortos tem suas estradas”
(BARKER, 1990, p. 17). Não contente, o narrador dá detalhes sobre estas estradas, informa
34

que tem inclusive cruzamentos e placas indicadoras. Dito isso pelo narrador, é esperado que
os personagens possam vacilar quanto à crença em um mundo dos mortos. Até aí o leitor
ainda não sabe que os personagens são investigadores do paranormal. Nenhum deles vacila.
Um deles, Fuller, fica tão espantado diante do tráfego da estrada, na casa do ambiente da
narrativa, que seu coração estoura. McNeal, outro membro do grupo, é um charlatão e não
tem tempo para vacilar quando percebe que ao menos naquela vez, não haverá fraudes. Mary,
ao tentar socorrê-lo da fúria dos espíritos, também não esperava um tráfego tão intenso. Mary
e Fuller não vacilaram e nem McNeal, em última instância, pois bem teve tempo para isso,
antes que os espíritos escrevessem suas histórias na pele dele. Dito de outro modo, no
ambiente da narrativa, o mundo dos espíritos, o mundo dos mortos é tão real quanto a
realidade objetiva e cotidiana. Porém, o leitor logo descobre que o grupo de investigadores
são do Departamento de Parapsicologia da Universidade de Essex. Assim, quem vacila é o
leitor, ou seja, o que Todorov chama de função de leitor, que é inseparável da função de
narrador.
No caso da informação dada ao leitor de que os integrantes do grupo são membros do
departamento de parapsicologia de uma universidade, isso remete o leitor ao mundo cotidiano
da realidade objetiva, afinal, o grupo pesquisa para uma universidade e, portanto, é esperado
que busque respostas racionais para os eventos paranormais. Porém, em nenhum momento da
narrativa eles vacilam entre o racional e o paranormal. Mary, inclusive, é descrita como
alguém que tem poderes paranormais.

Este conto pode então ser classificado então como fantástico-maravilhoso em um


movimento inverso daquele que seria esperado em uma narrativa deste gênero. Enquanto no
conto fantástico-maravilhoso, nem todos os eventos conseguem ser explicados pela
racionalização e assim o leitor empírico ou o personagem terminam por aceitar a existência do
sobrenatural. Em “O livro de sangue”, a informação, dada pelo narrador, de que os
personagens investigadores do paranormal são membros do departamento de parapsicologia
de uma universidade, sugere que o sobrenatural pode ter sua existência comprovada, o que vai
além do sobrenatural explicado. No caso, existem no ambiente na narrativa, outros planos de
existência para além deste nosso da realidade cotidiana e que estes mundos não estão em
oposição pois a ciência é capaz, ou os cientistas a julgam capaz (no ambiente da narrativa), de
comprovar a existência de um mundo habitado por espíritos.

No prólogo deste conto quem vacila é o personagem Wyburd, ao considerar que o


35

garoto possa estar louco ao se referir a si mesmo como um livro de sangue dos espíritos.
Porém, ao levar a pele do garoto para o hotel, no que a valise que a contém começa a sangrar,
ele não mais duvida da veracidade da história de McNel.

No romance Hellraiser, além da aceitação do sobrenatural por parte do personagem


Frank (que afinal abre a caixa sem duvidar que dela sairão seres capazes de ensinar sobre o
prazer puro), a narrativa pode ser classificada como estranho puro em razão da sugestão de
que os eventos se tratam de alguma psicopatologia de Frank. O marido de Julia, irmão de
Frank duvida da sanidade dela depois que a moça passa a frequentar o quarto em que ocorrem
os encontros com Frank. O marido nada sabe do que ocorre no quarto, além do fato que Julia
passa a frequentá-lo de forma obsessiva. A dúvida sobre a sanidade mental de Julia por parte
do marido é afirmada pelo narrador. A moça, entretanto, passa a considerar que finalmente
encontrara a sanidade.

No conto “Restos humanos”, Gavin duvida da própria sanidade ao constatar que a


estátua o havia defendido dos agressores, porém, como bem diz o narrador, ele deixaria para
fazer isso depois pois não havia naquele momento, como duvidar de que estava de fato diante
da estátua. Mais ainda, por mais que se considerasse louco, não duvidava de que a estátua
estivesse aos poucos; e cada vez mais; adquirindo suas feições físicas e atitudes morais.
O personagem Ken também não demonstrou dúvida sobre a eficácia do ritual para
vivificar a estátua. Mais uma vez, quase como em “O livro de sangue”, realidade cotidiana e
sobrenatural se sobrepõem.
Aqui, não se trata de a ciência ser capaz de comprovar a vida da estátua. Ken
trabalhava em escavações, era um cientista na sua área, porém a capacidade que certas
estatuas possuíam para ganhar vida não lhe soava estranho. Apesar de o ambiente da narrativa
ser a realidade cotidiana, Ken admitia a existência de realidades paralelas e inclusive as
vivenciava, pelo menos no episódio com a estátua.
Para finalizar a classificação do gênero literário destas obras de Clive Barker, minha
análise é que elas pouco tem do fantástico naquilo que Todorov classifica como fantástico.
Analiso que possuem caraterísticas do estranho, porém sem a explicação racional para os
eventos e também características do maravilhoso em que, simultaneamente, existe a realidade
cotidiana. Não cabe a classificação de fantástico para Todorov porque os personagens muito
pouco vacilam entre o sobrenatural e o racional e tampouco a estrutura da narrativa transita
entre os gêneros estranho puro e maravilhoso.
36

3.5 DEFINIÇÃO DO HORROR SEGUNDO NOEL CARROL

Em Filosofia do horror, logo nos primeiros parágrafos do capítulo dedicado à


definição do gênero horror, Carrol distingue aquilo que ele chama de horror artístico, do
horror no seu significado mais comum. Horror no sentido genérico, para ele, advém do verbo
latino horrere, significante este com significado bastante amplo. Horrere designa desde “ficar
com os pelos/cabelos em pé” a horrorizar-se no sentido comum que o verbo tem em língua
portuguesa contemporânea. Possui também um sentido alegórico que é estar estupefato,
abismado, ficar sem palavras. Possivelmente, na literatura latina clássica, o verbo horrere
estivesse relacionado com a mitologia no que os deuses e monstros fossem capazes de causar
estupefação e o medo provavelmente fosse muito mais um medo reverencial relacionado ao
desconhecido.
Carrol parte da raiz latina do significante /horror/ para definir o horror artístico, que é
o sentimento ou sensação de horror do leitor ou dos personagens com relação ao personagem
monstro.
Porém, o horror, neste sentido, para Carrol, também é diferente daquele horror que
pode advir dos mitos. Embora o sentimento de assombro como estupefação possa servir ao
horror de Odisseu diante do enorme tamanho de Polifermo, nos mitos o horror não está
relacionado à atitude dos personagens.

“O que parece servir de demarcação entre histórias de horror e meras histórias com
monstros, tais como os mitos, é a atitude dos personagens da história em relação aos
monstros com que se deparam.”
(CARROL, Noel. 1999. p 31).

O que diferencia o horror dos mitos do horror artístico de Carrol, certamente merece
melhor detalhamento, porém uma discussão sobre isso se desviaria do objeto do meu trabalho.

[...] Além disso, embora só tenhamos falado das emoções dos personagens
das histórias de horror, esta hipótese serve para abordar as respostas
emocionais que as obras de horror tencionam provocar no público, pois o
horror se revela um desses gêneros em que as respostas emocionais do
público, idealmente, correm paralelas às emoções dos personagens. De fato,
nas obras de horror, as respostas dos personagens muitas vezes parecem
sugerir as respostas emocionais do público. (CARROL, 1999. p. 32).
37

Monstruosidade para Carrol não é algo inerente à natureza do personagem, dito de


outro modo, o monstro não é um monstro por causa de alguma maldade intrínseca ou por
qualquer comportamento e/ou característica desviante da norma. A monstruosidade está
sempre em relação a alguém: um outro personagem ou o leitor.

O monstro também pode ser ameaçador psicológica, moral ou socialmente.


Pode destruir a identidade das pessoas (O Exorcista, de Willian Blatty, ou o
Horla, de Maupassant), pode procurar destruir a ordem moral (O Bebê de
Rosemary e outros de Ira Levin) ou propor uma sociedade alternativa (I’ma
Legend, de Richard Matheson). Os monstros também podem desencadear
certos medos infantis persistentes, como o de ser comido ou desmembrado,
ou medos sexuais, referentes à violação e incesto. (CARROL, Noel 1999. p.
64).

Portanto, embora para Carrol as tramas das narrativas de horror tenham uma forma
quase fixa, de modo que o leitor/espectador já antecipa muito do que vai acontecer (é isso que
lhe chama a atenção para este gênero literário), é a relação dos personagens entre si que define
a monstruosidade. No caso dos mitos, por exemplo, aqueles personagens que podem ser
considerados monstros, como a Medusa, o Minotauro, os Titãs, não são de fato monstros, pois
são a norma em si, e não o desvio da norma, como ocorre nas narrativas modernas de horror.
Ainda que a Medusa possa transformar em pedra quem a olhe, na trama dos mitos, o
personagem humano é quem se meteu no lugar errado por ter desafiado os deuses. Dito de
outra forma (bastante resumida), os mitos visam ensinar sobre a medida correta para cada
criatura e ai daquele que desobedecer. Porém, como já foi dito antes, os mitos são muito mais
do que as breves definições dadas aqui e para não me desviar do objeto do trabalho, não me
estendo mais no assunto dos mitos. Discuto, no item seguinte, se as definições de Carrol se
aplicam à obra de Clive Barker.

3.6 O HORROR NA OBRA DE CLIVE BARKER

Das narrativas analisadas neste trabalho, a única que pode ser classificada como
horror, no termos de Carrol, é Hellraiser e isso somente na relação do personagem Frank em
relação aos cenobitas. No processo da invocação, antes de eles saírem da caixa, a experiência
não é de monstruosidade, embora todo o contexto na invocação seja um desvio da norma da
civilização ocidental patriarcal. Frank prepara o ambiente da invocação com excrementos,
como um presente necessário aos cenobitas. Outro desvio é que eles são sacerdotes de uma
Ordem que ensina sobre o prazer sem limites.
38

A monstruosidade começa como o choque de Frank diante da aparência deles:


escoriações por todo corpo, pregos na cabeça. O maior choque e a maior monstruosidade é
descoberta de que o objetivo das vestimentas e dos apetrechos é para causar dor, e dor com
intenção de causar prazer, o eu descarta a hipótese de que a dor é uma punição da busca do
prazer. É mais do que isso, prazer e dor são inseparáveis, pela cartilha dos cenobitas.
A monstruosidade não está nos cenobitas em si e sim na relação deles com Frank.
Antes do choque, o horror poderia estar na relação do leitor com os personagens, embora
quebre a relação que Carrol estabelece, de que o horror sentido pelos personagens parece
sugerir o horror experimentado pelos personagens.
Quanto à relação dos personagens de Hellraiser com os cenobitas, Kirsty, a moça que
foi apaixonada por Frank e que se vinga da tentativa de assassinato ao ajudar os cenobitas a
recapturarem Frank, não estabelece uma relação de monstruosidade com eles. Kirsty inclusive
se comporta de modo calmo até demais (característica durante toda a narrativa, o que a torna
quase insuportável para os demais personagens). Nem a promessa irrevogável de ter a alma
aprisionada a tira do sério. No final da narrativa, ao se tornar guardiã da caixa, o cenobita que
a entrega possui aparência distinta dos demais, ou então é somente ela (em razão do
comportamento e/ou características pessoais) quem tem a experiência de ver algum deles sem
as escoriações e sem os pregos.

No conto “Restos humanos”, também não há monstruosidade na relação entre os


personagens, a não ser durante os primeiros contatos de Gavin com a estátua, até que aos
poucos Gavin conhece a própria humanidade nas ações da estátua. A monstruosidade pode
estar na relação dos personagens com o leitor, que podem considerar monstruosas as atitudes
da estátua, que mata para se manter viva, ainda que sofra moralmente com estes atos.

Assim, ao menos nos excertos analisados, a obra de Clive Barker possui traços de
horror segundo Noel Carrol assim como possui traços do fantástico segundo Todorov. A
análise literária sempre depende do ponto de vista do leitor e assim não escapa de ser parcial.
A dificuldade em classificar a obra de Clive Barker em um gênero certamente não é algo
exclusivo da obra dele. A literatura enquanto gênero discursivo, precisa existir também no
sentido poético e alegórico, do contrário, não seria o gênero literário. Se são inevitáveis os
sentidos poéticos e alegóricos, mais árdua se torna a tarefa de classificar um gênero literário.
A experiência com literatura remete o leitor a outros textos e discursos e quanto mais amplo o
leque discursivo do leitor e da narração, mais difícil se torna a classificação de uma obra em
39

um gênero, pois classificar um gênero literário i.e discursivo implica em delimitar um


discurso. Como a literatura exige uma ampla gama de sentidos e significados na relação com
o leitor, classificar implica em, já de antemão, discriminar quais sentidos são permitidos.
Eis um paradoxo, pois os gêneros literários são classificados de acordo com
características comuns a certo estilo de narrativa e assim esta classificação é entender a língua
no uso e na vida, pois na literatura está a língua no uso e na vida. O único porém é que as
classificações não devem rígidas pois assim o movimento seria da teoria para a obra, o que
tiraria da experiência literária uma das coisas que ela tem de fundamental, a singularidade dos
sentidos na relação obra-leitor.

4. ASPECTOS DA OBRA CINEMATOGRÁFICA DE CLIVE BARKER

Neste trabalho, que é dedicado a aspectos da obra de Clive Barker, não poderia deixar
de abordar pelo menos uma das suas obras cinematográficas. Diretor e roteirista, fez longas de
ficção que atingiram um grande público, mas também cinema de vanguarda.

Meu recorte da obra cinematográfica de Clive Barker é o filme de vanguarda


Forbbiden. O excerto pesquisado é o que está disponível no youtube, entretanto aí não é
possível encontrá-lo na versão completa. Por isso minha análise se limita aos excertos
disponíveis.

Em Fordidden, meu recorte é a sugestão de que as imagens, que se alternam em luz e


sombra, formam um duplo.

Neste trabalho discuto sugestões do que as sequências de imagens podem significar.


O enredo de um filme de vanguarda não “conta uma história” com suas sequências de
imagens rimadas e Clive Barker radicaliza a noção de não “contar uma história”. O filme
apresenta sequências de imagens desconexas em que o espectador é quem estabelece as
relações entre uma imagem e outra, em uma radicalização do conceito literário sobre o sentido
individual de uma obra literária/cinematográfica. Inclusive muitas das imagens em si não
possuem um sentido arbitrário, enquanto língua, estão antes do contrato social, como o ser
hibrido que aparece em uma das sequência imagéticas de Forbbiden.

O espectador vê algo que sugere um javali, mas um olhar mais acurado mostra um
homem enquanto que, na dificuldade para fixar a imagem, o espectador vê algo que é um
40

hibrido entre javali e homem. Trata-se de um ser, de uma criatura? O conarradordeste filme (e
eles exigem um conarrador que os complete) é o inconsciente do espectador e assim, se dá,
através dos movimentos das luzes e das sombras, a experiência com o inconsciente. As
imagens destes filmes são como símbolos prementes de significado, que aguardam para serem
narrados pelo espectador. E é uma das possíveis narrações que apresento neste capítulo.

4.1. SOBRE O FILME FORBIDDEN24

A tradução do título é Proibido, porém toda a fotografia do filme sugere, além de algo
proibido, algo que foi também esquecido. O Esquecido, se for pensado não como tradução
para o título original, mas como um adjetivo para o filme, sugere algumas ideias. Uma delas é
com relação ao determinante /o/, que indica, que especifica algo, porém este “algo” está
esquecido. Também não se sabe se este esquecimento é um estado; e portanto pode mudar; ou
se é um esquecimento permanente, como se as figuras do filme fluíssem pelo rio Letes e o
filme em si fosse o próprio rio. Mesmo para a hipótese de o filme como o rio Letes, o
esquecimento não pode ser permanente, pois se o fosse, as imagens não poderiam ser vistas, a
não ser que se estivesse do outro lado do rio, ou melhor, dentro do rio.

O excerto inteiro está em negativo, o que já sugere um olhar de dentro, como se o


espectador estivesse dentro do filme e olhasse para fora da película e assim visse a si mesmo
em negativo. Sugere, portanto, um duplo. Quando o personagem observa as figuras na parede,
as sombras (que são luz pelo efeito do negativo) seguem o corpo de uma forma como se fosse
mesmo um duplo, como se um Outro estivesse ali, emergindo do quadro, e lhe tocasse nas
mãos e lhe acompanhasse o corpo sincronicamente. A luz não parece ser uma sombra do
ambiente, parece ser a luz que emerge das sombras do personagem.

Logo nos primeiros minutos do filme, o espectador vê algo que sugere uma massa
dobrada sobre si mesma e ao fundo, cálculos e explicações matemáticos. Uma luz, que se
manifesta como sombra, emerge da massa e então o espectador vê uma mão humana toda
feita de luz desenhar símbolos desconhecidos em uma superfície. Aos poucos, os símbolos se
transformam em um quadro e na rima; na medida em que o quadro se forma, se vê uma figura
humana, também feita de luz.

24
BARKER, Clive. Forbidden. https://www.youtube.com/watch?v=dZh4VnmIjww Acesso em 02/11/2016 às
10:58
41

Quando, poucos minutos depois, o espectador vê o personagem que olha para o


quadro, e na medida em que sua sombra (que não parece ser a sombra natural do ambiente) é
mostrada como luz, sugere um duplo de si mesmo. Sugere também que aquele que olha para o
quadro, nasceu daquela massa dobrada sobre si mesma, mostrada nos primeiros segundos do
filme. Em razão do efeito do negativo, a luz que emerge, no momento em que emerge, se
manifesta como uma sombra. Ao exercitar a comunicação consigo mesmo (na escrita dos
símbolos desconhecidos), a manifestação passa a gerar um corpo, como se a própria escrita (a
escrita de si mesmo), pelo movimento da mão, gerasse um corpo a partir deste mesmo
movimento. Um movimento implica em pelo menos dois polos alternantes e assim, mão e
escrita são os polos e no encontro dos duplos, o movimento se coagula. A escrita aos poucos
toma uma forma, a forma de um quadro (a coagulação do movimento), que rima com a
natureza fora do ambiente em que o personagem se encontra.

Mais uma vez no filme, duplos se alternam em movimento e no encontro, se


coagulam. A imagem do quadro passa a alternar com a paisagem de flores fora de onde está o
quadro e, neste movimento alternativo, as figuras se confundem a ponto de se tornarem
indistinguíveis para o espectador. Porém, desta vez há um terceiro polo, formado por pregos
em uma superfície e através do movimento giratório da câmera (um quarto polo), luz e
sombra se alternam ao redor do prego. Como o registro é o do negativo (a lente, um quinto
polo, porém um polo fixo), o que é visto como luz, se trata de sombra e vice-versa, assim o
quaternário se completa no frame dos pregos e na alternância do quadro e da paisagem com as
flores (que se tornam um terceiro, o quadro é um, a paisagem é dois e a fusão das imagens é
três), mais a câmera, são quatro. A lente é o quinto e imóvel polo, assim forma-se o
pentagrama enquanto símbolo do homem, porém este homem é duplo. A duplicidade deste
homem surge na próxima cena, quando um personagem, que parece um homem ou javali,
aparece em uma outra paisagem, indistinguível por causa da luz (que é sombra). Poucos
minutos depois este homem-javali aparece em um ambiente em que se sugere uma casa e ele
se senta em uma cadeira. Aos poucos começa a despir-se, o que sugere a aparência de javali é
uma roupa e o que aparece por baixo da roupa é pura luz. Aí se encerra o excerto.

A narrativa toda sugere que o que é foi esquecido é tudo isso que foi narrado, ou seja,
a origem de si mesmo (dupla e resultante do movimento dos opostos), se o homem-javali for
entendido como representação do ser humano.
42

5. CONCLUSÃO

A partir das análises das narrativas de Clive Barker e em conjunto com a análise de
sua obra como gênero literário, é possível dizer que Clive Barker é um autor híbrido. A
dificuldade em classificar sua obra literária não advém somente do fato de que classificar é
formatar a obra e que, neste caso, o movimento da análise acaba indo da teoria para a obra. A
dificuldade em classificar a obra literária de Clive Barker é inerente à própria obra, quero
dizer que suas características estão fora dos padrões para o que é esperado pelo leitor. Alguém
que nunca tenha ouvido falar em Clive Barker e que vá ler Hellraiser esperando um enredo
tradicional de demônios interdimensionais que punem aquele que procura o prazer, pode se
decepcionar, caso não se abra para uma leitura poética. Se este leitor hipotético espera um dos
dois finais mais tradicionais, que é uma vitória do “bem” ou um retorno das forças do “mal”
quando o leitor já as julgava vencida, pode também se decepcionar, caso não se abra também
para uma leitura poética.

Nas narrativas de Clive Barker pouco se encontra sobre a vacilação característica do


gênero fantástico tal como conceituado por Todorov. Muito pouco também encontra o
sobrenatural explicado, o mesmo pode ser dito sobre o maravilhoso, em que os padrões de
normalidade da realidade cotidiana não existem. As narrativas de Barker possuem traços
destes gêneros e mais do que isso, é a prosa poética o que mais se sobressai nas narrativas.
São narrativas que convidam o leitor a viajar por mundos e situações em que a alteridade é
levada aos limites. Com relação às definições de horror segundo Noel Carrol, as narrativas de
Barker possuem somente traços de horror, pois são eventuais os momentos em que os
personagens sentem horror em relação a um monstro.

Com relação ao filme Forbidden, os conteúdos e os ambientes das narrativas já estão


presentes na sua imagética, quem assiste ao filme tem a sensação de estar vendo alguns dos
livros de Barker serem narrados através de imagens e isso é com relação ao estilo narrativo de
ambos.

Assim, os aspectos da obra de Clive Barker, em poucas palavras, são a força poética
das narrativas através da prosa ou das imagens pontuadas por hibridismo enquanto “gênero”
literário, pelo menos se em comparação com as definições de Noel Carrol e Todorov.
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REFERÊNCIAS

ANSON, Jay. Horror em Amityville. Editor: Victor Civita, 1983.


BARKER, Clive. Forbidden. https://www.youtube.com/watch?v=dZh4VnmIjww
Acesso em 02/11/2016 às 10:58
BARKER, Clive. Hellraiser: renascido do inferno. Rio de Janeriro: Darkside Books, 2015.
160 p.
--------------------O desfiladeiro do medo. Rio de Janeiro, Bertrant do Brasil, 2002. 700 p.
-------------------O livro de Sangue. In: Os livros de sangue, volume 1. Civilização
Brasileira. 1990. 233 p.
------------------O livro de sangue (um post-scriptum) na rua Jerusalém. In: Livros de
sangue, volume VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 231 p.
-------------------Restos humanos. In: Livros de sangue, volume 3. Civilização Brasileira.
1992 244 p.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume I. magia e técnica, arte e política. Editora
Brasiliense. 3ª edição, 1987. 253 p.
CARROL, Noel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas/SP: Papirus,
1999. 319 p.
FREUD, Sigmund. O eu e o id, “autobiografia” e outros textos(1923-1925). São Paulo.
Companhia das Letras. 2011. 370 p.
HILLMAN, James. Ficções que curam. Campinas, SP: Verus, 2010. 212 p.
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. 262 p.
KING, Stephen.O iluminado. Editora Objetiva.2005. 264 p.
LOVECRAFT, Howard Phillips. Supernatural horror in literature. Edição Kindle.
TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. Premia Editora de Livros, S.A.
Digital Source. 1981. 96 p.

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