Reginaldo L Ferreira R Org Africa Margen

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ÁFRICA, MARGENS E OCEANOS

Universidade Estadual de Campinas

Reitor
Marcelo Knobel

Coordenadora Geral da Universidade


Teresa Dib Zambon Atvars

Conselho Editorial

Presidente
Márcia Abreu
Euclides de Mesquita Neto – Iara Lis Franco Schiavinatto
Márcio Barreto – Marcos Stefani – Maria Inês Petrucci Rosa
Osvaldo Novais de Oliveira Jr. – Renato Hyuda de Luna Pedrosa
Rodrigo Lanna Franco da Silveira – Vera Nisaka Solferini

Comissão Editorial da Coleção Várias Histórias


Lucilene Reginaldo (coordenadora)
Jefferson Cano – Márcio Barreto (representante do Conselho
da Editora) – Margarida de Souza Neves – Sueann Caulfield

Conselho Consultivo da Coleção Várias Histórias


Cláudio Henrique de Moraes Batalha
Maria Clementina Pereira Cunha – Robert Wayne Andrew Slenes
Sidney Chalhoub – Silvia Hunold Lara
Lucilene Reginaldo e Roquinaldo Ferreira
(org.)

ÁFRICA, MARGENS E OCEANOS


P E R S P E C T I VA S D E H I S T Ó R I A S O C I A L
ficha catalográfica elaborada pelo
sistema de bibliotecas da unicamp
diretoria de tratamento da informação
Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro – CRB-8a / 1724

Af83 África, margens e oceanos: perspectivas de história social / organização:


Lucilene Reginaldo e Roquinaldo Ferreira. – Campinas, SP : Editora da
Unicamp, 2021.

1. África Oriental – História social. 2. África Atlântica – História


social. 3. África – Historiografia. 4. Brasil – Racismo. I. Reginaldo,
Lucilene. II. Ferreira, Roquinaldo. III. Título.
cdd – 960
– 309.196
isbn 978-65-86253-66-5 – 305.800981

Copyright © by Lucilene Reginaldo e Roquinaldo Ferreira


Copyright © 2021 by Editora da Unicamp

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes).
Código de Financiamento 001.

Opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste livro são de responsabilidade


dos autores e não necessariamente refletem a visão da Editora da Unicamp.

Direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998.


É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização,
por escrito, dos detentores dos direitos.

Impresso no Brasil.
Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à

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Rua Sérgio Buarque de Holanda, 421 – 3º andar – Campus Unicamp
CEP 13083-859 – Campinas – SP – Brasil
Tel.: (19) 3521-7718 / 7728
www.editoraunicamp.com.br – [email protected]
COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS

A Coleção Várias Histórias divulga pesquisas recentes sobre a


diversidade da formação cultural brasileira. Ancoradas em sólidas
pesquisas empíricas e focalizando práticas, tradições e identidades de
diferentes grupos sociais, as obras publicadas exploram os temas da
cultura a partir da perspectiva da história social. O elenco resulta de
trabalhos individuais ou coletivos ligados aos projetos desenvolvidos no
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Unicamp (www.unicamp.br/cecult).

VOLUMES PUBLICADOS

1 – Elciene Azevedo. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial


cidade de São Paulo.
2 – Joseli Maria Nunes Mendonça. Entre a mão e os anéis. A Lei dos Sexagenários
e os caminhos da abolição no Brasil.
3 – Fernando Antonio Mencarelli. Cena aberta. A absolvição de um bilontra e o
teatro de revista de Arthur Azevedo.
4 – Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. Algazarra nas ruas. Comemorações da
Independência na Bahia (1889‑1923).
5 – Sueann Caulfield. Em defesa da honra. Moralidade, modernidade e nação no Rio
de Janeiro (1918‑1940).
6 – Jaime Rodrigues. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico
de africanos para o Brasil (1800‑1850).
7 – Carlos Eugênio Líbano Soares. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes
no Rio de Janeiro (1808‑1850).
8 – Eduardo Spiller Pena. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a
Lei de 1871.
9 – João Paulo Coelho de Souza Rodrigues. A dança das cadeiras. Literatura e
política na Academia Brasileira de Letras (1896‑1913).
10 – Alexandre Lazzari. Coisas para o povo não fazer. Carnaval em Porto Alegre
(1870‑1915).
11 – Magda Ricci. Assombrações de um padre regente. Diogo Antônio Feijó (1784‑
‑1843).
12 – Gabriela dos Reis Sampaio. Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas
no Rio de Janeiro imperial.
13 – Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios
de história social da cultura.
14 – Silvia Cristina Martins de Souza. As noites do Ginásio. Teatro e tensões
culturais na Corte (1832‑1868).
15 – Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques, Gabriela dos Reis
Sampaio e Carlos Roberto Galvão Sobrinho (orgs.). Artes e ofícios de curar
no Brasil. Capítulos de história social.
16 – Liane Maria Bertucci. Influenza, a medicina enferma. Ciência e práticas de
cura na época da gripe espanhola em São Paulo.
17 – Paulo Pinheiro Machado. Lideranças do Contestado. A for mação e a atuação
das chefias caboclas (1912‑1916).
18 – Claudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes
(orgs.). Culturas de classe. Identidade e diversidade na formação do operariado.
19 – Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco. Identidades sociais e massificação
da cultura no teatro de revista dos anos 1920.
20 – Edilene Toledo. Travessias revolucionárias. Ideias e militantes sindicalistas em
São Paulo e na Itália (1890‑1945).
21 – Sidney Chalhoub, Margarida de Souza Neves e Leonardo Affonso de
Miranda Pereira (orgs.). História em cousas miúdas. Capítulos de história social da
crônica no Brasil.
22 – Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e
justiças no Brasil. Ensaios de história social.
23 – Walter Fraga Filho. Encruzilhadas da liberdade. Histórias de escravos e libertos
na Bahia (1870‑1910).
24 – Joseli Maria Nunes Mendonça. Evaristo de Moraes, tribuno da República.
25 – Valéria Lima. J.‑B. Debret, historiador e pintor. A viagem pitoresca e histórica
ao Brasil (1816‑1839).
26 – Larissa Viana. O idioma da mestiçagem. As irmandades de pardos na América
Portuguesa.
27 – Fabiane Popinigis. Proletários de casaca. Trabalhadores do comércio carioca
(1850‑1911).
28 – Eneida Maria Mercadante Sela. Modos de ser, modos de ver. Viajantes europeus
e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808‑1850).
29 – Marcelo Balaban. Poeta do lápis. Sátira e política na trajetória de Angelo
Agostini no Brasil Imperial (1864‑1888).
30 – Vitor Wagner Neto de Oliveira. Nas águas do Prata. Os trabalhadores da
rota fluvial entre Buenos Aires e Corumbá (1910‑1930).
31 – Elciene Azevedo, Jefferson Cano, Maria Clementina Pereira Cunha,
Sidney Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade. Cotidiano e cultura no Rio de
Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX.
32 – Elciene Azevedo. O direito dos escravos. Lutas jurídicas e abolicionismos na
província de São Paulo.
33 – Daniela Magalhães da Silveira. Fábrica de contos. Ciência e literatura em
Machado de Assis.
34 – Ricardo Figueiredo Pirola. Senzala insurgente. Malungos, parentes e rebeldes
nas fazendas de Campinas (1832).
35 – Luigi Biondi. Classe e nação.Trabalhadores e socialistas italianos em São Paulo,
1890‑1920.
36 – Marcelo Mac Cord. Artífices da cidadania. Mutualismo, educação e trabalho
no Recife oitocentista.
37 – Joana Medrado. Terra de vaqueiros. Relações de trabalho e cultura política
no sertão da Bahia, 1880‑1990.
38 – Thiago Moratelli. Operários de empreitada. Os trabalhadores da construção
da estrada de ferro Noroeste do Brasil (São Paulo e Mato Grosso, 1905‑1914).
39 – Ângela de Castro Gomes, Fernando Teixeira da Silva (orgs.). A Justiça
do Trabalho e sua história. Os direitos dos trabalhadores no Brasil.
40 – Marcelo Mac Cord, Claudio H. M. Batalha (orgs.). Organizar e proteger.
Trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX).
41 – Iacy Maia Mata. Conspirações da raça de cor. Escravidão, liberdade e tensões
raciais em Santiago de Cuba (1864‑1881).
42 – Robério S. Souza. Trabalhadores dos trilhos. Imigrantes e nacionais livres,
libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858‑1863).
43 – Ana Flávia Cernic Ramos. As máscaras de Lélio. Política e humor nas
crônicas de Machado de Assis (1883‑1886).
44 – Larissa Rosa Corrêa. Disseram que voltei americanizado. Relações sindicais
Brasil‑Estados Unidos na ditadura militar.
45 – Jacimara Souza Santana. Médicas‑sacerdotisas: Religiosidades ancestrais e
contestação ao sul de Moçambique (c. 1927‑1988).
46 – Ana Flávia Magalhães Pinto. Escritos de liberdade: Literatos negros, racismo
e cidadania no Brasil oitocentista.
SUMÁRIO

PREFÁCIO: ÁFRICA E OS “RIOS” ATLÂNTICO E ÍNDICO ......................................11


Robert W. Slenes
INTRODUÇÃO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA AFRICANA
ÀS MARGENS DO ATLÂNTICO E DO ÍNDICO ............................................... 15
Lucilene Reginaldo e Roquinaldo Ferreira

PARTE I – HISTÓRIAS CONECTADAS, TROCAS E CONTATOS


1. A ÁFRICA E O OCEANO ÍNDICO ..............................................................47
Edward A. Alpers
2. OS CIRCUITOS DE MARFIM NA ÍNDIA E SUAS CONEXÕES
TRANSCONTINENTAIS NAS REDES AFRO ‑ASIÁTICAS .................................. 73
Jorge Lúzio
3. “EM TODAS AS OUTRAS PARTES ONDE HÁ CAFRES VINDOS
DO CONTINENTE DE MOÇAMBIQUE”: SABERES, TROCAS CULTURAIS
E COMUNIDADES AFRICANAS NO ÍNDICO .................................................95
Eugénia Rodrigues
4. CONECTANDO SERTÕES E OCEANOS: TRÂNSITOS
INTRACONTINENTAIS, VULNERABILIDADE SOCIAL E
CENTROS DE PODER NA ÁFRICA CENTRAL (SEGUNDA METADE
DO SÉCULO XIX, COM ESPECIAL REFERÊNCIA A KATANGA) ......................... 141
Cristina Wissenbach

PARTE II – TRÂNSITOS E DESLOCAMENTOS


5. O ISLÃ NA ÁFRICA ATLÂNTICA: TRANSFORMAÇÕES NO SIGNIFICADO
DE COMPORTAMENTOS RELIGIOSOS (SÉCULOS XVI ‑XVII) ........................... 181
Thiago Henrique Mota
6. ROTAS, DIREÇÕES E ETNICIDADE NO TRÁFICO DE ESCRAVOS
ENTRE O BRASIL E A COSTA DA MINA NO LONGO SÉCULO XVIII ..................217
Carlos da Silva Jr.
7. INTERMEDIÁRIOS AFRICANOS NAS EXPEDIÇÕES BRITÂNICAS
AO NÍGER NA PRIMEIRA METADE DO XIX ............................................... 251
Alexsander Gebara
8. A “NAÇÃO KETU” DO CANDOMBLÉ EM CONTEXTO HISTÓRICO:
SUBGRUPOS IORUBÁS NA BAHIA OITOCENTISTA ..................................... 281
Lisa Earl Castillo

PARTE III – PROTAGONISMO AFRICANO


9. O LAPTOT E A SIGNARE : GÊNERO, ESCRAVIDÃO
E LIBERDADE (SENEGAL, SÉCULO XIX) .................................................. 329
Juliana Barreto Farias
10. O “MÉTODO DOS ANTEPASSADOS”: NOTAS SOBRE A HISTÓRIA
DOS SOBADOS DO REINO DE ANGOLA (SÉCULOS XVII E XVIII) ...................369
Crislayne Alfagali
11. AS MULHERES E O ACESSO À PROPRIEDADE EM BENGUELA NO SÉCULO XIX ....399
Mariana P. Candido
12. NGODO E MARRABENTA: DISPUTAS, APROPRIAÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES
MUSICAIS NO SUL DE MOÇAMBIQUE (1940‑1975) .......................................423
Matheus Serva Pereira

PARTE IV – A HISTÓRIA DA ÁFRICA NO BRASIL:


HORIZONTES DA PESQUISA E DO ENSINO
13. PALMARES E A HISTÓRIA DA ÁFRICA NO BRASIL ....................................465
Silvia Hunold Lara
14. DE MEMÓRIAS E LUTAS COTIDIANAS: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO ENSINO DE
HISTÓRIA DA ÁFRICA NO BRASIL .........................................................487
Raquel G. A. Gomes
15. PÓS ‑AFRIKAS COMO EXPERIMENTO: FORMAÇÃO DE PROFESSORES E
PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO EM ESTUDOS AFRICANOS ................... 507
Fernanda Thomaz
16. UMA HISTÓRIA ÚNICA SOBRE O CONTINENTE AFRICANO: O TRÁFICO
TRANSATLÂNTICO NOS LIVROS DIDÁTICOS ............................................ 539
Ynaê Lopes dos Santos

SOBRE OS AUTORES .................................................................................553


PREFÁCIO

ÁFRIC A E OS “RIOS” ATL ÂNTICO E ÍNDICO

Robert W. Slenes1

O livro África, margens e oceanos demonstra a excelência e a


diversidade da pesquisa sobre o passado africano realizada hoje por
acadêmicos brasileiros. Até o início deste século, os professores e
pós ‑graduandos no Brasil que se interessavam pela história da África
eram principalmente estudiosos do tráfico transatlântico de escravos
e do trabalho forçado nas Américas – questões importantíssimas, mas
certamente não as únicas que deviam receber grande atenção no país
com a segunda maior população negra do mundo. Hoje, no entanto,
o quadro é muito diferente.
Desde a década de 1990 o sistema federal e estadual de educação
superior (níveis graduação e pós ‑graduação) expandiu ‑se muito e
tornou‑se mais inclusivo. Além disso, a própria academia brasileira
(como, antes dela, a internacional) chegou a perceber a impressionante
interdisciplinaridade e a inovação metodológica existentes nas
pesquisas em ciências humanas sobre África – pesquisas realizadas
tanto por africanos quanto por gente de outros continentes.2 Também,
acompanhando a nova historiografia internacional, ela deu‑se conta de
que a África e os africanos estavam no centro do vendaval – o sistema
escravista, depois colonial, criado pela Europa – que deu origem ao
mundo moderno e contemporâneo desigual, tão subdesenvolvido
quanto desenvolvido.3 Enfim, hoje nenhuma universidade que se preza
pode deixar os estudos africanistas em segundo plano.
Como resultado, a história da África tem recebido um crescente
destaque nos currículos universitários brasileiros. Existe agora, em
consequência, um grande contingente de pesquisadores qualificados
nessa área, entre eles muitos afrodescendentes, que dialogam com a
bibliografia internacional sobre os mais diversificados temas. Ao mesmo
12 prefácio

tempo, no entanto, fortaleceu‑se a historiografia sobre o escravismo


e aprofundou ‑se o mergulho dos especialistas, nessa questão, na
historiografia africanista. Por isso, o Brasil, país que recebeu quase a
metade dos africanos desterrados para as Américas, está capacitado para
oferecer ao mundo uma visão especialmente ampla da história social
da África – uma que não se limita às fronteiras geográficas daquele
continente, mas que inclui também suas interações com outros povos
no mundo e suas populações diaspóricas.
África, margens e oceanos demonstra as vantagens dessa abordagem.
Os oceanos, no último milênio e especialmente a partir do século XV,
têm se revelado “rios” (na expressão de Alberto da Costa e Silva), ou
seja, facilitadores do contato entre grupos humanos nas suas margens.4
No ensaio introdutório, os coordenadores do livro dão uma aula
magna a respeito da historiografia sobre esses encontros de gente
diversa (africanos de várias procedências e “forasteiros”) nas costas
do continente tocadas pelo Atlântico e pelo Índico, como também
nas outras margens daqueles “rios”. Os capítulos do livro continuam a
discussão, com histórias sobre tais encontros, trocas e consequências
em diversos lugares da África, do Brasil e das “Índias”. Fiéis à proposta
da “micro ‑história” de que só a partir de estudos “ao rés do chão” é
que se pode escrever uma “macro ‑história” consequente, os autores
almejam contribuir para uma “história global” – mas não aquela que
geralmente se pratica, enfatizando a ação de impérios, governos e donos
de capital, mas uma que busque iluminar também, ou especialmente, o
protagonismo da gente comum.
Na verdade, esse enfoque está na origem da história social como
campo de estudo. Um tema caro para essa abordagem é o da “economia
moral” – isto é, daquilo que um determinado grupo subalterno (por
exemplo, de camponeses ou trabalhadores pré ‑industriais) chega a
definir, num dado período, como seus “direitos consuetudinários” e,
portanto, o tratamento justo devido a eles por seus vizinhos mais ricos
e empregadores. E. P. Thompson dedicou a primeira das três partes de
seu livro A formação da classe operária inglesa ao estudo da economia moral
elaborada por gente miúda nas áreas rurais da Inglaterra nos séculos
XVII e XVIII, para poder entender como eles enfrentaram os desafios
de sua progressiva proletarização durante a Revolução Industrial
áfrica, margens e oceanos 13

(c. 1780 a 1830).5 Seguindo seu exemplo, os historiadores do trabalho


forçado no Novo Mundo têm se esforçado em apreciar as culturas e
economias morais trazidas pelos escravizados da África e mobilizadas
por eles para lidar com o cativeiro.
Ora, esse “ir ao passado da África” trouxe ganhos importantes
para entender a história do Brasil. Mas será que o africanista teria o
mesmo proveito fazendo a “viagem” inversa? Vários pesquisadores já
mostraram que sim. Acontece que documentos escritos que dizem
respeito a pessoas e eventos na África vão escasseando, à medida que o
historiador retrocede no tempo, mas documentos retratando africanos
na Europa e em suas colônias – processos da Inquisição, processos‑
‑crimes locais, relatos de viajantes e testemunhas oculares – existem
e podem preencher muitas lacunas.6 Sabe ‑se, por exemplo, que os
“cultos de aflição ‑fruição” (cultos almejando a cura de males sofridos
por um indivíduo ou uma coletividade, presumivelmente pela ação de
espíritos zangados ou por pessoas malignas que mobilizavam espíritos
para suas próprias finalidades) têm uma longa história na África
bantu, mas antes do século XX os registros documentais a respeito
deles nas terras africanas são pouco detalhados.7 Hoje, no entanto,
há vários estudos que utilizam as fontes mencionadas para retratar
minuciosamente cultos desse tipo entre centro ‑africanos no Brasil e
em Portugal nos séculos XVII ao XIX. 8 Descobriu‑se, por exemplo,
que os grandes cultos comunitários de aflição ‑fruição que surgiam na
África bantu para reforçar laços sociais existentes ou criar novos laços e
assim combater calamidades sociais – epidemias, guerras, escravização
em massa – apareceram também em áreas de plantation no Sudeste
do Brasil durante o Oitocentos: ou seja, em contextos caracterizados
por grande presença de africanos centrais submetidos a trabalho
estafante e maus ‑tratos e enfrentando pouca chance de alforriar‑se.
Não surpreende que os dois cultos desse tipo documentados antes de
1888 alimentavam planos de rebelião contra os “senhores ‑feiticeiros”
que mantinham seus membros na escravidão.9
Enfim, se o vendaval da modernidade espalhou a “África” (e,
portanto, as fontes sobre ela) para as outras margens do Atlântico e do
Índico, os historiadores com foco nesse continente também têm que
atravessar esses “rios”.
14 prefácio

Notas
1 Professor colaborador aposentado, Departamento de História, Unicamp;
professor visitante sênior, Programa de Pós-Graduação em História, UFBA.
2 Robert W. Slenes. “A importância da África para as ciências humanas”. História
Social, 19. Campinas, 2010, pp. 19-32.
Ver também: Steven Feierman. “African Histories and the Dissolution of
World History”. In: Robert H. Bates; V. Y. Mudimbe & Jean F. O’Barr (org.).
Africa and the Disciplines: the Contributions of Research in Africa to the Social Sciences
and Humanities. Chicago, University of Chicago Press, 1993.
3 Joseph E. Inikori. Africans and the Industrial Revolution in England: A Study
in International Trade and Economic Development. Cambridge, Cambridge
University Press, 2000. Ver também estudo clássico de Walter Rodney. How
Europe Underdeveloped Africa. London/Dar-es-Salaam, Bogle-L’Ouverture
Publications/Tanzanian Publishing House, 1972.
4 Alberto da Costa e Silva. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na
África. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003.
5 E. P. Thompson. A formação da classe operária inglesa. 3 vols. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1987 [2. ed. inglesa, 1968]. Ver também: James C. Scott. The Moral
Economy of the Peasant: Rebellion and Subsistence in Southeast Asia. New Haven,
Yale University Press, 1976.
6 Por exemplo, James Sweet. Domingos Álvares, African Healing, and the
Intelectual History of the Atlantic World. Chapel Hill, The University of North
Carolina Press, 2011. Idem. “Research Note: New Perspectives on Kongo in
Revolutionary Haiti”. The Americas, 74:1, jan. 2017, pp. 83-97.
7 John M. Janzen. Ngoma: Discourses of Healing in Central and Southern Africa
Berkeley, University of California Press, 1992; RijkVan Dijkf; Ria Reis &
Maria Spierenburg (org.). The Quest for Fruition through Ngoma: the Political
Aspects of Healing in Southern Africa. Oxford, James Curry, 2000. Este último
livro prefere “culto de fruição”, não a designação mais comum, “culto de
aflição”. Junto aqui os dois termos, pois, se o culto nasce da “aflição”, ele tem
como objetivo recuperar a “fruição” em vida.
8 Alexandre Almeida Marcussi. Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão
atlântica nos calundus de Luzia Pinta, séculos XVII e XVIII. Tese de doutorado em
História. São Paulo, USP, 2015; Gabriela dos Reis Sampaio. Juca Rosa: um pai
de santo na corte imperial. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2009; Robert
W. Slenes. “L’arbre nsanda replanté: cultes d’affliction kongo et identité des
esclaves de plantation dans le Brésil du Sud-Est (1810-1888)”. Cahiers du Brésil
Contemporain, vols. 67-68. Paris, Ehess, 2007, pp. 217-313.
9 Robert W. Slenes. “L’arbre nsanda…”, op. cit.
INTRODUÇÃO

HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA AFRICANA


À S MARGENS DO ATL ÂNTICO E DO ÍNDICO

Lucilene Reginaldo e Roquinaldo Ferreira

Esta coletânea nasceu de um interesse compartilhado. Não foram poucas


as ocasiões nas quais trocamos informações e impressões entusiasmadas
sobre a originalidade e o crescimento das pesquisas sobre a história
da África realizadas no Brasil desde o início dos anos 2000. O convite
para organizar esta coletânea pareceu‑nos uma oportunidade para
compartilhar, aprofundar, ampliar (ou mesmo corrigir) nosso balanço
informal da produção africanista brasileira. O conjunto dos trabalhos
que vem à luz neste livro trata da experiência histórica do continente
africano às margens ou em conexão com os oceanos Atlântico e Índico,
especialmente entre os séculos XVII e XX. Os autores e autoras tam‑
bém compartilham do interesse pelas trocas, contatos e conexões que
inserem o continente africano num circuito global, levando em conta
o ponto de vista e o protagonismo dos africanos nesses processos.
Entendemos que essa produção precisa ser considerada numa perspectiva
ampla em termos acadêmicos e políticos. Isso significa reconhecer que
o crescimento e a consolidação dos estudos africanos no Brasil estão
ancorados em referenciais intelectuais próprios e em constante diálogo
com a produção internacional. Além disso, é inegável que a produção
africanista brasileira é marcada por condicionantes que extrapolam os
muros da academia.
No Brasil, o estabelecimento de condições institucionais para o
desenvolvimento dos estudos africanos esteve diretamente vinculado ao
ativismo dos movimentos sociais negros que desde o final dos anos 1980
buscaram interferir na formulação de políticas públicas voltadas para
a educação, tanto no âmbito federal quanto nos estados e municípios.1
Entre os êxitos mais expressivos da militância antirracista, estão a
16 i n t rodução

aprovação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1996;


a promulgação da lei n. 10.639, em 2003; a definição das Diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico‑raciais e para o
ensino de história e cultura afro‑brasileira e africana, em 2004.2 Embora
as mudanças legislativas tenham afetado diretamente os níveis de ensino
fundamental e médio, o impacto foi mais amplo e profundo, atingindo em
cheio o ensino superior ao impor mudanças significativas nos currículos
de graduação, particularmente dos cursos de História. Por força da lei
n. 10.639, universidades públicas e privadas de todo o país, que antes
tinham a História da África em seus currículos como disciplina optativa –
quiçá ausente – foram obrigadas a acatar o conteúdo agora obrigatório. De
forma inesperada, a lei teve como efeito catalisar a institucionalização dos
estudos africanos mediante a contratação de professores em universidades
federais e estaduais. Algumas delas passaram a ter departamentos de
História com dois ou até mais especialistas em África (uma raridade em
muitas universidades estrangeiras), que não apenas produzem pesquisa de
ponta como também atuam como mentores de mestrandos e doutorandos.3
Outrossim, o crescimento recente do campo de estudos africanos
no Brasil merece ser situado numa perspectiva global e comparativa. A
comparação mais óbvia é com o profundamente racializado processo de
institucionalização dos estudos africanos nos Estados Unidos, que se
deu a reboque do ostracismo de pioneiros intelectuais afro‑americanos
cujas agendas de pesquisa transnacionais e trajetórias acadêmicas foram
vitimadas pelo racismo estrutural. É possível considerar que esse fenômeno
também teve papel importante no alheamento da academia brasileira em
relação à África. Afinal, como explicar que o país americano que recebeu
o maior número de escravizados nas Américas tenha demorado tanto
tempo – e com a necessidade de uma lei – para reconhecer nas Áfricas um
legítimo objeto de investigação histórica? Enfim, assim como nos Estados
Unidos, respeitando todas as particularidades, a consolidação recente dos
estudos africanos e de uma historiografia da África no Brasil tem vínculos
profundos com pautas históricas da luta contra o racismo.
Do ponto de vista acadêmico, é possível reconhecer alguns
referenciais importantes na base da produção brasileira sobre a África.
Entre eles, os centros de pesquisa criados a partir dos anos 1950. Em
comum, esses centros compartilharam do estímulo oferecido pelo
áfrica, margens e oceanos 17

contexto das lutas independentistas e da formação dos Estados nacionais


africanos e também, notadamente na primeira metade da década de 1960,
pela política externa brasileira em relação à África.4 O Centro de Estudos
Afro‑Orientais da Universidade Federal da Bahia foi fundado em 1959
com o objetivo de promover atividades de pesquisa e extensão sobre a
história africana no Brasil.5 É certo que o Ceao também foi tributário de
uma sólida tradição de estudos sobre as culturas africanas na Bahia, que
se somaram às possibilidades abertas pelo novo contexto. Nesse centro
reuniram‑se jovens pesquisadores brasileiros, que foram incentivados a
realizar pesquisas de campo em diferentes países africanos.6 O Centro de
Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, criado em 1969, também
se destacou nos intercâmbios promovidos com várias universidades
africanas e na formação de pesquisadores em diferentes áreas das ciências
sociais.7 O Centro de Estudos Afro‑Asiáticos (Ceaa) foi criado em 1973
por Cândido Mendes, um dos principais mentores da política externa
brasileira em relação à África no governo de Jânio Quadros.8 O Ceaa
consolidou sua atuação no cenário acadêmico brasileiro por meio de sua
revista e do investimento na formação de jovens pesquisadores dedicados
especialmente ao estudo das ex‑colônias portuguesas.9
Uma vertente da historiografia da escravidão no Brasil, que a partir
da década de 1980 chamou a atenção para a importância do background
africano, contribuiu de maneira singular para a consolidação da história
da África no país. Em um artigo publicado em 1987, no qual visita o
debate sobre a escravidão na África, João Reis aponta que o conhecimento
dos referenciais africanos nas sociedades escravistas nas Américas
exige uma aproximação rigorosa com a historiografia africanista.10 O
livro Na senzala uma flor: esperanças na formação da família escrava, Brasil,
Sudeste, século XIX (1999), de Robert Slenes, no qual o autor argumenta
sobre a centralidade das heranças culturais centro‑africanas no Sudeste
brasileiro, e a edição revista e ampliada de A rebelião escrava no Brasil
(2003), de João José Reis, apresentam enfoques distintos e, ao mesmo
tempo, exemplares desse movimento de aproximação dos historiadores
da escravidão com a África.11 A importância formativa dessas referências
para a nova geração de africanistas brasileiros pode ser reconhecida
nas escolhas por certos temas e em abordagens e metodologias que
circunscrevem a produção africanista brasileira mais recente.
18 i n t rodução

Há ainda uma terceira e mais extensa referência que marca e


orienta a produção africanista brasileira. Os estudos sobre o tráfico de
escravos africanos e sua relação com a formação da sociedade colonial
brasileira, até a década de 1960, estavam circunscritos a perspectivas
historiográficas que privilegiavam as relações com a Europa, no âmbito
político, social e econômico. A tese de Pierre Verger (Fluxo e refluxo do
tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos) foi um
marco da mudança de direção e enfoque dos estudos das relações do Brasil
com o Atlântico, rompendo com uma tradição que emanava sobretudo
de estudos de Caio Prado Júnior e Fernando Novais, que submetiam as
relações entre Brasil e África à agência unilateral do “sistema colonial”.12
Na obra de Verger, tais relações ganham contornos dinâmicos que não
se restringiam puramente ao campo econômico e moldavam toda uma
série de relações culturais, religiosas e sociais através do Atlântico.
Essa perspectiva ganha estofo maior, no âmbito das relações Angola e
Brasil, com a obra de Luiz Felipe de Alencastro, que situa o processo de
colonização do Brasil na esfera do Atlântico Sul. As trocas envolviam não
só produtos e escravizados, mas articulavam‑se numa teia de relações
com natureza administrativa e comercial.13 Na visão de Alencastro, não
há como entender a formação do Brasil sem levar em conta a devastação
que o tráfico de escravizados causou na África Central.
Mas é preciso alargar o cenário intelectual no qual se insere a
produção brasileira. O diálogo entre a produção africanista brasileira e
a produção internacional, enfatizando confluências e distinções, é um
dos eixos centrais da coletânea África, margens e oceanos. O objetivo é
situar o continente africano nos circuitos globais de comércio, fluxos
migratórios e difusão de conhecimento e de práticas religiosas. Ao situar
a África não apenas no contexto das relações com o Atlântico, que, como
apresentamos acima, desde longa data tem sido objeto de estudos clássicos
na historiografia brasileira, mas também na vertente do oceano Índico,
pretende‑se contribuir com a ampliação do horizonte historiográfico da
produção africanista brasileira.
Esse enquadramento beneficia‑se da profusão de estudos sobre o
oceano Índico que tem caracterizado a historiografia internacional nos
últimos 15 anos. Segundo Ned Bertz, um ponto de viragem teria sido
a publicação do importante livro de Sugata Bose, A Hundred Horizons:
áfrica, margens e oceanos 19

The Indian Ocean in the Age of Global Empire (2006), assim como o estudo
de Thomas Metcalf sobre as ligações entre a Índia e o mundo do
oceano Índico.14 Até então, na visão de Bertz, a historiografia sobre o
oceano Índico ocuparia um lugar periférico se comparada à muito mais
volumosa bibliografia sobre o mar Mediterrâneo e os oceanos Pacífico
e, sobretudo, o Atlântico – apesar da importância do Índico como o
mais antigo espaço para a formação de redes de comércio, migrações
forçadas e peregrinações religiosas.
De fato, a volumosa bibliografia sobre o Atlântico atesta a
importância desse espaço geográfico para a história e, por conseguinte,
para a historiografia que trata da época moderna. Nesse conjunto, o
Atlântico ocupa lugar privilegiado na chamada história dos impérios,
que, marcada pelo ranço das histórias nacionais, privilegiou o estudo do
domínio colonial europeu (português, espanhol, britânico, holandês,
etc.) sobre os demais continentes.15 Embora os grandes impérios
ultramarinos incluíssem territórios banhados pelo Índico, a importância
das colônias americanas e do comércio de escravos na costa ocidental
africana, entre os séculos XVII e XIX, elucida as razões do posterior
foco historiográfico nos circuitos atlânticos. Nesse sentido, é exemplar
a trajetória daquele que é considerado um dos mais importantes
historiadores dos impérios ultramarinos modernos.16 Até o final dos
anos 1940, Charles Boxer dedicou‑se ao estudo da Ásia, mas a partir dos
anos 1950 voltou sua atenção para o Atlântico Sul.17 O deslocamento
de interesses foi geográfico e também cronológico. O autor, cujas
obras mais conhecidas tratam do império português, também publicou
estudos seminais sobre o império marítimo holandês.18 Nos dois casos, a
primazia das Américas e da África na conformação econômica e política
dos impérios, a partir do século XVII, esclarece o deslocamento
geográfico e cronológico dos estudos de Boxer.
Ainda que as diferenças de abordagens, temas e metodologias
sejam muitas, há algumas semelhanças entre a história dos impérios e
seus principais críticos reunidos sob o guarda‑chuva da world history. Se
para os primeiros o Atlântico foi o principal eixo dos impérios coloniais,
para os últimos o oceano foi, ao mesmo tempo, uma criação do mundo
capitalista e condição histórica para a realização de uma economia
mundo. Esse conceito (economia mundo), diretamente relacionado
20 i n t rodução

às propostas metodológicas de Braudel e Wallerstein, é um recurso


analítico no interior do qual o Atlântico é concebido “como uma sub‑
‑região particular da economia‑mundo europeia”.19 Outra semelhança
entre as duas perspectivas historiográficas é uma visão que privilegia o
protagonismo europeu, seja do ponto de vista das políticas dos impérios
coloniais e/ou dos Estados nacionais, seja do ponto de vista da acumulação
capitalista. Desse modo, o foco na colonização, na governança, nas elites
e autoridades governamentais ou, ainda, no comércio, no tráfico de
escravos, na produção e na circulação de mercadorias não deixava espaço
para uma diversidade maior de protagonistas e dinâmicas locais. Tanto
a história dos impérios, quanto a world history, desde as produções mais
antigas, até as novas versões repaginadas, ecoaram e informaram frentes
historiográficas importantes no Brasil até os dias atuais.20
Em consonância com esse cenário historiográfico, é preciso frisar
que a literatura sobre o Índico também tinha como lastro uma produção
mais antiga que derivou de estudos de autores como de Kirti Chaudhuri
e Michael Pearson, entre muitos outros.21 Tais estudos também foram
profundamente influenciados pelo trabalho de Fernand Braudel, assim
como por interpretações inspiradas na chamada world history, enfocando
nas estruturas de comércio e no movimento de mercadorias no Índico,
que formariam o cerne do que Markus Vink chama de talassologia.22 Para
Rila Mukherjee, no entanto, tal historiografia, cobrindo não só o império
português mas também outros impérios europeus, peca pela preocupação
prioritária com a agência europeia em detrimento de atores locais.23 Deixa
de fora redes de comércio, migração e circulação de práticas religiosas
que eram, como ressalta Engseng Ho, majoritariamente controladas não
por europeus, mas por mercadores guzarates, hadramis e outros.24
Tampouco dá a devida atenção ao fato de que, como assinala
Chaudhuri, o oceano Índico serviu de arena de trocas comerciais e
migrações muito antes da chegada dos europeus no século XV. 25
Desde o século VII, como demonstrado por trabalhos de André Wink,
Angela Schottenhammer e John Chaffee, o Índico já era palco de trocas
comerciais entre regiões tão distantes quanto o golfo Pérsico, a Índia
e a China.26 Autores como Tom Hoogervorst e Nicole Boivin chegam
até a usar a palavra “colonização” ao se referirem aos contatos entre o
sudeste da Ásia e a ilha de Madagascar, no Índico.27 Por volta do século

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