Humanismo e Classicismo em Portugal

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DESCRIÇÃO

O Humanismo, o teatro de Gil Vicente, a lírica e a épica de Camões e suas contribuições para
a historiografia literária de Portugal.

PROPÓSITO
Compreender o contexto e as diferentes manifestações literárias do Humanismo e do
Classicismo em Portugal permite ampliar os estudos sobre arte, literatura e história cultural em
língua portuguesa.

PREPARAÇÃO
Tenha em mãos um dicionário de literatura para compreender o vocabulário específico da área.
Na internet você acessa gratuitamente o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, e o
Dicionário de Cultura Básica, de Salvatore D’Onofrio. No Portal Domínio Público na internet,
você pode ter acesso às principais obras estudadas neste conteúdo.

OBJETIVOS

MÓDULO 1

Identificar as características do Humanismo português e do teatro vicentino

MÓDULO 2

Reconhecer aspectos ecdóticos, estilísticos e temáticos da lírica camoniana

MÓDULO 3

Identificar os planos e a estrutura de Os Lusíadas

INTRODUÇÃO
O estudo da literatura de um povo é uma das formas de compreender os valores de sua
cultura, conhecer aspectos de sua identidade, revisitar sua formação histórica e perceber sua
contribuição no campo da arte. No caso da literatura portuguesa, esse estudo permite também
resgatarmos os laços históricos, culturais e literários entre nossa arte e a de Portugal. Ainda
mais quando apreciamos autores como Luís de Camões e Gil Vicente.

Por isso, vamos aprender acerca das vastas obras de Gil Vicente e de Luís de Camões, além
do contexto histórico-cultural que permeou o universo literário desses dois grandes autores
portugueses.

Vamos, então, nos aventurar na leitura e nos estudos da literatura portuguesa durante o
Humanismo e o Classicismo!

MÓDULO 1

 Identificar as características do Humanismo português e do teatro vicentino

O CONTEXTO DO HUMANISMO EM
PORTUGAL

A CULTURA RENASCENTISTA PORTUGUESA

De acordo com Francisco Falcon (1997), o Renascimento português corresponde


cronologicamente ao período que vai da segunda metade do século XV às décadas iniciais do
século XVI. É uma época de crise de valores de toda ordem, de rupturas e de continuidades, e
pode ser dividida em três núcleos básicos:

Escolástica

Humanismo

Racionalismo pragmático-experiencial

Não há fronteiras nítidas entre esses três núcleos, e o mais atuante qualitativa e
quantitativamente é o terceiro, por ser a Cultura dos Descobrimentos.

Comecemos pelo segundo núcleo, o Humanismo Renascentista, já que a Escolástica é uma


continuidade da cultura da Baixa Idade Média. Para nossa breve análise, vamos nos apoiar em
Falcon (1997).
ESCOLÁSTICA

Corresponde ao período final da filosofia medieval. Pode ser entendida como um método
para pensar e aprender que conciliava a fé cristã ao pensamento racional caracterizado
pela leitura e pelo estudo críticos de obras selecionadas.

O HUMANISMO RENASCENTISTA PORTUGUÊS

O Humanismo Renascentista existiu em Portugal separado da estrutura social e da realidade


da vida cotidiana, conseguindo adesões no seio da aristocracia política e dos intelectuais. A
perspectiva humanista portuguesa ocorreu em um estado de permanente tensão em face da
cultura medieval. Na maior parte das vezes, tentou-se fugir a esse dilema através da
superação dialética capaz de eliminar conservando. No início, a conservação prevaleceu sobre
a eliminação; só a partir de 1540 é que surgiram condições favoráveis à ruptura, mesmo assim,
os humanistas carregavam o estigma de uma suspeita conivência com os hereges.

A mentalidade humanística portuguesa, semelhante à do restante da Europa, interessava-se


em restaurar textos latinos conhecidos na Idade Média e revelar outros textos, inclusive gregos,
desconhecidos ou mal conhecidos pelos medievais.

Em Portugal, o Humanismo apresentou um restrito interesse pela Física, buscando quase


somente comentários da doutrina aristotélica; fora isso, nutriu um desdém pela prática,
cultuando o amor aos ensinamentos da erudição livresca.

O espírito renascentista português foi um fenômeno tardio, mas na primeira metade do século
XVI, 800 estudantes portugueses, que frequentaram universidades tais como as de Paris,
Louvain e Oxford, compuseram uma nata intelectual e desse grupo surgiu o Humanismo
Português. Cabe destacar Francisco de Melo, D. Miguel da Silva, D. Jerónimo Osório e os
Gouveias. A criação do Real Colégio das Artes, em Coimbra, em 1537, teve para esses novos
humanistas um papel de relevante importância.
Foto: Manuelvbotelho / Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0
 Colégio das Artes em Coimbra (2017).

CONTRARREFORMA E O FIM DO HUMANISMO


RENASCENTISTA

Portugal não conheceu diretamente a Reforma Protestante. A Inquisição e o primeiro Index


tiveram um alvo certo: os cristãos-novos (as práticas judaizantes). A Inquisição, a censura e a
Companhia de Jesus afastaram os portugueses das principais correntes do progresso científico
europeu, o que significou que o ensino escolástico se sobrepôs à cultura humanista do século
XVI. Os rumos negativos dessas mudanças tiveram seus tristes efeitos evidenciados no século
XVII.

INDEX

O Index ou Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) era a lista das obras
proibidas pela Igreja, como reação à Reforma Protestante e à invenção da prensa. O
Index teve sua primeira edição oficial em 1559, com 550 obras proibidas, sendo
atualizado à medida que novas publicações consideradas hereges surgiam.
DIANTE DA INTENÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS DE
ASSUMIR O CONTROLE DA EDUCAÇÃO EM TODOS
OS NÍVEIS, A RESISTÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE
COIMBRA SOMOU-SE À DOS AGOSTINIANOS E
DOMINICANOS. AS CORTES DE 1562 PROTESTARAM
CONTRA ESSA INFLUÊNCIA CRESCENTE DOS
JESUÍTAS, ESPECIALMENTE QUANTO À ENTREGA DO
COLÉGIO DAS ARTES À SUA DIREÇÃO. MAS FOI
INÚTIL, POIS O FANTASMA DA HERESIA PARECIA
JUSTIFICAR AS CONSTANTES PERSEGUIÇÕES
CONTRA OS PROFESSORES, BEM COMO A
ESTAGNAÇÃO DO ENSINO, COMPLETAMENTE
ENQUADRADO NA METODOLOGIA ESCOLÁSTICA [...].

(FALCON, 1997, p.35).

A CULTURA DOS DESCOBRIMENTOS

“A SABEDORIA DO MAR”, CAMPOS E REGIÕES


DO SABER
Imagem: Biblioteca Nacional de Paris / Wikimedia Commons / Domínio público
 Terra Brasilis, mapa por Pedro Reinel e Lopo Homem, Atlas Miller, 1519.

A “cultura dos descobrimentos”, um núcleo racionalista pragmático da Cultura Renascentista,


também nomeado de “Sabedoria do Mar”, divide-se em dois campos: um de linguagem e o
outro de pensamento.

Em linhas gerais temos, sobretudo, o “campo técnico-prático” com a ciência náutica e o


desenvolvimento de instrumentos de precisão; o “campo teórico-positivo”, com estudos sobre
Matemática, Astronomia, Geografia, Medicina, Zoologia, Botânica; e o “campo etnológico-
prático colonial” com os seus inúmeros quadros informativos sobre Antropologia e Geografia
colonial.

OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES

Nesse aspecto, cabe ressaltar os estudos socioculturais de Luis Felipe Barreto, ao argumentar
que os Descobrimentos portugueses compõem uma parte importante da expansão planetária
da Europa. Os antigos conheciam o mar. Os renascentistas, sobretudo os portugueses,
enfrentaram os oceanos. Os portugueses dos séculos XV e XVI transformaram “o obstáculo de
silêncio e medo que é o grande mar oceano em via de comunicação planetária” (BARRETO,
1989, p. 11-12), e converteram o impossível em possível.
OS PORTUGUESES DO RENASCIMENTO SÃO O
CORPO E O OLHAR DO PLANETA, O INSTRUMENTO E
O SISTEMA COMUNICATIVO QUE ABRE OS
HORIZONTES DA HUMANIDADE À HUMANIDADE
EUROPEIA (E VICE-VERSA). OS PORTUGUESES DO
SÉCULO XVI DESEMPENHAM, NA LÓGICA DA
HISTORICIDADE UNIVERSAL, A MISSÃO DE TROCA
DO MUNDO E MUNDO DA TROCA [...].

(BARRETO, 1989, p. 13).

Os Descobrimentos renascentistas mostram a vanguarda ibérica com a força inovadora e


pragmática do seu sistema de conhecimentos. Foram eles que permitiram à Europa uma
universal acumulação de bens materiais e espirituais.

 SAIBA MAIS

Podemos dizer que Gil Vicente e Camões não estavam separados dessa autêntica e profunda
revolução sociocultural. De certo modo, entram em circuito, com as suas ideias, os três
grandes núcleos da cultura do século XVI em Portugal.

HUMANISMO E O TEATRO DE GIL VICENTE

GIL VICENTE
Segundo Maria do Amparo Tavares Maleval (1992), os dados biográficos de Gil Vicente são
imprecisos.

De origem humilde, teria nascido por volta de 1465 em Guimarães e falecido à roda de 1536.
Autor de vasta e intensa obra teatral, foi ator, ensaiador, cenógrafo e organizador de festas
públicas e palacianas.

Foi identificado com um ourives homônimo, autor da Custódia de Belém, com um “mestre de
retórica” de D. Manuel, com um alfaiate e com um carpinteiro, mas nenhuma dessas
profissões, não relacionadas ao teatro, é provável que lhe tenha pertencido. Seu nome era
bastante vulgar à época.

Nasceu no reinado de Afonso V, viveu na geração de D. João III e testemunhou a epopeia lusa
dos descobrimentos e navegações. Seus autos abrilhantaram as cortes de D. Manuel, D.
Leonor e D. João III, e deles recebeu doações e prêmios.

Imagem: António Nunes Júnior – Arquivo Municipal de Lisboa / Wikimedia Commons / Domínio
Público
 Gil Vicente (c.1465 - c. 1536), dramaturgo e poeta português. Retrato no tecto do Salão
Nobre dos Paços do Concelho de Lisboa.

Sabemos que Gil Vicente trabalhou na preparação de uma edição completa de suas obras,
porém, em 1562, veio a lume a Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, efetivada por seus
filhos Luís e Paula Vicente. Há muitas falhas nesta “compilação”, omissões, emendas sem
justificativas, inclusive algumas peças que se perderam, mas foram mencionadas em índices
proibitivos da Inquisição.

Sabemos que Gil Vicente publicou em vida as suas peças em folhas volantes, e dessas obras
ainda temos impressões dos autos de Barca do Inferno, Inês Pereira, Dom Duardos, Físicos,
Lusitânia, Clérigo da Beira, de Amadis de Gaula e do Pranto de Maria Parda; contudo, há autos
que desapareceram.

Antônio José Saraiva (1970) e I. S. Révah (1973) nos dão uma classificação aproximativa e
genérica dos Autos – e uma cronologia, expurgando as falhas presentes na Copilaçam. Veja a
seguir:

CRONOLOGIA DA COPILAÇAM DE TODALAS OBRAS


DE GIL VICENTE
1º) 1502 – Monólogo do vaqueiro ou Auto da visitação

2º) 1504 – Milagre de São Martinho

3º) 1506 – Sermão de Abrantes ou Sermão perante a rainha D. Leonor

4º) 1509 – Farsa da Índia

5º) 1509 – Écloga ou Pastoril Castelhano

6º) 1510 – Écloga dos Reis Magos

7º) 1510 – Moralidade da Fé

8º) 1512 – Farsa do Velho da horta

9º) Cerca de 1513 – Moralidade dos Quatro tempos

10º) 1513 – Moralidade da Sibila Cassandra

11º) 1514 – (reapresentada em 1521) – Fantasia alegórica da Exortação da guerra

12º) 1515 – Farsa Quem tem farelos

13º) 1515 – (reapresentada em 1534) – Mistérios da Virgem ou Auto da Mofina Mendes

14º) 1517 – Primeira moralidade das Barcas ou Barca do inferno

15º) 1518 – Moralidade da Alma

16º) 1518 – Segunda moralidade das Barcas ou Barca do purgatório

17º) 1519 – Terceira moralidade das Barcas ou Barca da glória


18º) 1519 ou 1520 – Moralidade de Deus padre, justiça e misericórdia

19º) 1520 – Fantasia alegórica da Fama

20º) 1520 ou 1521 – Moralidade da Obra da geração humana

21º) 1521 – Fantasia alegórica das Cortes de Júpiter

22º) 1521 – Comédia de Rubena

23º) 1521 – Jogos das Ciganas

24º) 1522 – Pranto de Maria Parda

25º) 1522 – Comédia de D. Duardos

26º) 1523 – Farsa de Inês Pereira

27º) 1523 – Écloga ou Pastoril Português

28º) 1523 – Comédia de Amadis de Gaula

29º) 1524 – Comédia do Viúvo

30º) 1524 – Fantasia alegórica da Frágua de amor

31º) 1524 – Farsa dos Físicos

32º) 1525 ou 1526 – Farsa do Juiz da Beira

33º) 1526 – Fantasia alegórica do Templo de Apolo

34º) 1526 – Moralidade da Feira

35º) 1527 – Fantasia alegórica da Nau de amores

36º) 1527 – Fantasia alegórica sobre a Divisa da cidade de Coimbra

37º) 1527 – Farsa dos almocreves

38º) 1527 – Écloga ou Pastoril da serra da Estrela

39º) 1527 – Mistério Breve sumário da história de Deus; seguido pelo Diálogo sobre a
Ressureição de Cristo

40º) Cerca de 1527 – Jogos das Fadas

41º) 1527 ou 1528 – Farsa da Festa

42º) 1529 – Fantasia alegórica do Inverno e do Verão

43º) 1529 ou 1530 – Farsa do Clérigo da Beira


44º) 1532 – (reapresentada nos anos seguintes) – Fantasia alegórica da Lusitânia

45º) 1533 – Farsa da Romanagem de agravados

46º) 1534 – Mistério da Cananeia

47º) 1536 – Fantasia alegórica da Floresta de enganos

Quanto à classificação das obras vicentinas, algumas propostas sistemáticas vêm sendo
testadas.

Proposta de Teófilo Braga (1843-1924)

O escritor e político português propôs a seguinte esquematização: teatro hierático, teatro


aristocrático e teatro popular.

Proposta de Antônio José Saraiva e Oscar Lopes (2005)

Restringiram a três grupos as obras de Gil Vicente: as farsas (episódicas), os autos de enredo
(desde os cavaleirescos aos cômicos) e os autos de atualidade (satíricos e alegórico-críticos).

A TRANSIÇÃO PARA O HUMANISMO: O TEATRO


DE CORTES DE JUAN DEL ENCINA E LUCAS
FERNANDES
Imagem: Garcia de Resende / Wikimedia Commons / Domínio público
 Obras de Garcia de Resende, na qual se inclui a Miscelânea onde se defende para Gil
Vicente a paternidade do teatro português.

Vejamos agora a influência do teatro de Juan del Encina (1468-1529) e Lucas Fernández
(1474-1541) na obra de Gil Vicente.

A Miscelânea de Garcia de Resende (1470-1536) evidencia o contraste entre Gil Vicente e o


teatro pastoril do poeta espanhol Juan del Encina. Del Encina e Lucas Fernández eram rivais e
de ascendência castelhana-leonesa. Nunca os estudiosos duvidaram do vínculo, em termos de
influência, de Gil Vicente a esses dois autores. As semelhanças foram anotadas com
frequência desde aspectos técnico-compositivos, até caracterizações relacionadas com
aspectos linguísticos pelas formas dialetais que lhe serviam de suporte (BERNARDES, 1996).

MISCELÂNEA

Obra dedicada a D. João III, escrita provavelmente entre 1530 e 1533, retrata em versos
importantes acontecimentos e personagens da Europa e de Portugal no período que
corresponde à metade do século XV e primeiras décadas do século XVI.
Partindo do pressuposto de que a influência de autores de expressão castelhana na obra
vicentina é um dado consensual, cabe investigar a extensão dessa influência.

Vamos aqui destacar três aspectos de confluências entre os autores leoneses e a obra de Gil
Vicente.

LEONESES

Reino de Leão, nativo de León na Espanha.

Imagem: Shutterstock.com

PRIMEIRO ASPECTO

É a associação entre o cômico e o sério: “o pastor é portador de um discurso sério que, ora não
se coaduna com o cômico da situação que envolve, ora emerge dele, através de um complexo
jogo de ligações contrastivas” (BERNARDES, 1996, p. 110).
Imagem: Shutterstock.com

SEGUNDO ASPECTO

No teatro salmantino, o pastor é correlativo de dois temas: o Natal e o Amor. Mas Gil Vicente
vai expandir esses âmbitos, “conferindo à figura do pastor todas as virtualidades de uma
personagem aberta, oscilando entre os estatutos da metonímia e da metáfora [...]”
(BERNARDES, 1996, p.111).

SALMANTINO

Referente à Salamanca na Espanha.


Imagem: Shutterstock.com

TERCEIRO ASPECTO

É o recurso a uma gama variada de processos técnico-musicais. Infelizmente, as partituras das


obras vicentinas se perderam, o que de fato não ocorreu com as partituras dos dois autores
leoneses.

GIL VICENTE, UM HUMANISTA?

De acordo com Celso Lafer (1978), Gil Vicente viveu em uma época de transição entre a Idade
Média e o Renascimento. Porém, comportou-se como um autêntico espécie-medieval. Gil
Vicente cita e utiliza a cultura greco-romana clássica de forma pobre e desconexa: marca
modesta de um latinista, mas não de um humanista. Gil Vicente foi alheio às preocupações de
seu tempo e da expansão marítima, só interessaram a ele os efeitos perniciosos, a
desagregação da família, por exemplo. No Auto da Índia, uma das fortes contradições
vicentinas é de ter percebido a espoliação dos camponeses, atacado e combatido tal fato, sem,
no entanto, abandonar os valores do mundo feudal.
O MUNDO SAGRADO E O MUNDO DOS HOMENS

Quanto à posição crítica de Gil Vicente, Lafer (1978) a divide em dois aspectos: “mundo
sagrado” e “mundo dos homens”.

Imagem: Shutterstock.com

“MUNDO SAGRADO”

Gil Vicente compartilha do pensamento medieval pós-manuelino em Portugal. Sabemos que D.


João III, ao contrário de D. Manuel, era um fanático religioso. Por isso, sendo este um dos
mecenas de Vicente, não estranhamos, por exemplo, que a figura do judeu não encontre
espaço: o judeu é carregado de pecado, mau, diabólico e sem dignidade para chegar-se a
Deus. A concepção que Gil Vicente apresenta em relação ao sagrado é platônica e implica dois
mundos: um eterno e imutável, e outro perecível e finito. Essa Weltanschauung (Visão de
mundo) ele herdou provavelmente do escritor, filósofo e religioso espanhol Raimundo Lúlio
(1232-1316).
Imagem: Shutterstock.com

“MUNDO DOS HOMENS”

Gil Vicente apresenta duas posições. A primeira é a da análise social vigente nas suas farsas:
Inês Pereira, Juiz da Beira, Auto da Lusitânia. A segunda é encontrada nos dois textos em que
expressa claramente suas ideias: O Sermão de 1506 e a Carta a D. João III (LAFER, 1978,
p.30).

OS PERSONAGENS OU TIPOS EM GIL VICENTE

Na visão de Antônio José Saraiva (1942), os tipos vicentinos estão abaixo da alegoria e acima
do caráter individual. Exemplos:

A Morte aparece sob a forma de esqueleto, vestida de negro, com voz tumular.

O Inverno coberto de agasalhos, o Verão tremendo de febres.

A Serra de Sintra, vestida de Serrana.

A evolução está na Farsa do Juiz da Beira. Exemplos:

A Preguiça é representada por um Preguiçoso dormindo no palco.

O folgazão ou brincalhão é representado pelo Bailarino.


No Auto de Mofina Mendes, a alegoria já está no próprio nome, que significa entre outras
coisas infortúnio. Outro tipo de alegoria é o Frei Paço da Romagem de Agravados (alegoria de
Paço e caricatura de Frei).

Mas há figuras típicas fortemente idealizadas, como é o caso da personagem Inês, em a Farsa
de Inês Pereira. Inês é do latim Agnes: pura, santa. O que já é em si uma ironia em relação à
personagem.

ESTES VÁRIOS TIPOS SALTAM PARA O PALCO, COMO


PERSONAGENS À PROCURA DE UM AUTOR,
BUSCANDO QUALQUER OCASIÃO EM QUE POSSAM
MANIFESTAR-SE. UM TIPO, COMO JÁ FOI DITO, NÃO É
SUSCEPTÍVEL DE CRIAR UM CONJUNTO DRAMÁTICO.
O DRAMA É O PROBLEMA, EM QUE O INDIVÍDUO SE
DEBATE: O TIPO É O HÁBITO, A COISA FEITA, A
CONDENSAÇÃO: É DO INDIVÍDUO A PARTE JÁ
PETRIFICADA, EXTERIORIZADA. UM TEATRO DE
TIPOS EXIGE, POIS, OU UMA SÍNTESE DE QUE
AQUELES SEJAM ELEMENTOS, OU UM QUADRO, UM
ARRANJO EXTERNO, OU AINDA UMA NARRATIVA.

(SARAIVA, 1942, p.70).

A UNIDADE DRAMÁTICA VICENTINA

Segundo Saraiva (1942), Gil Vicente não consegue encontrar uma unidade dramática. No seu
teatro, há tipos, mas faltam os caracteres; há casos, mas não há problemas ou dramas.
O teatro romanesco (Baseado nos romances de cavalaria) vicentino se distingue do
dramático. Vejamos essas diferenças conforme Saraiva (1942):

O dramático

Põe à prova um indivíduo ou certo caráter em uma determinada situação.


O romanesco

Narra sucessivos acontecimentos, ao longo dos quais o caráter ou o tipo são observados e
descritos, mas sem implicar a situação.

O dramático

Supõe obrigatoriamente o indivíduo e o caráter, postos à prova pela situação.


O romanesco

Não supõe necessariamente o indivíduo e o caráter, no entanto, pode se satisfazer com o


tipo.

No teatro de Gil Vicente essa distinção se revela extremante verdadeira, já que em seu teatro
romanesco não encontramos nem a situação, nem o caráter.

 SAIBA MAIS

Nas peças de Gil Vicente, nem os personagens principais são os mesmos no decorrer das
várias cenas. Porém, mesmo quando há coerência e permanência dos personagens principais,
é o processo narrativo que prolonga a ação ao longo dos episódios. Este é o caso de a Farsa
de Inês Pereira, em que há sucessivas fases, indo do namoro ao segundo casamento de Inês.
Os processos narrativos nas obras vicentinas abarcam espaços grandes de tempo e
acontecimentos que se engendram uns aos outros.
OS SIMBOLISMOS

O simbolismo na Idade Média era uma construção fechada e íntegra. O valor simbólico de cada
coisa resultava de que fazia parte de uma construção. A unidade estava no todo. Na
concepção simbólica partilhada pelo escritor florentino Dante Alighieri (1265-1321), por
exemplo, o universo visível é um reflexo da harmonia dos céus, como se fossem duas escalas
de notas musicais, uma das quais é uma aproximação limitada da outra (SARAIVA, 1942).

Para realizar no palco o universo simbólico, a técnica simbolista recorre à alegoria. O símbolo é
um sinal, a alegoria é uma representação, uma plastificação do símbolo.

Gil Vicente teve em mãos os recursos do teatro alegórico que herdou dos momos: a pompa
retórica e as alegorias decorativas.

MOMOS

Tipo de representação teatral em que prevalecia a mímica e personagens mascarados e


pomposos.

 EXEMPLO

As peças de Vicente estão repletas de alegorias:

A Fama aparece tendo predileção por Portugal.

O deus Mercúrio, deus do comércio, dá a mão à Lusitânia.

A Frágua do Amor é um auto em que se manifesta o crescimento dessas tendências à alegoria


e ao simbolismo. Temos um castelo simbólico com cinco torres, cinco virtudes da princesa D.
Catarina. Também temos a intervenção de cupido para o casamento de D. Catarina com D.
Manuel. De dentro do castelo saem os quatro gozos do amor, que são quatro pares de
galantes serranas (Figuras alegóricas de musas.) . No momento culminante, os quatro pares
se encarregam, com marteladas, do trabalho de refundição. A frágua é a fornalha do ferreiro.
Mas chegam outros personagens à fornalha do Amor: a Justiça, por exemplo, na personagem
de uma velha com algibeiras (Sacos ou bolsos.) inchadas de galinhas e sacos de ouro.

O que vem fazer a Justiça na fornalha do Amor? Nesse momento, o aspecto poético congela e
vira um pretexto para a sátira.

Os simbolismos são muito abstratos e, às vezes, diversamente complexos. As chaves


simbólicas do mundo medieval só são utilizáveis mediante uma iniciação técnica. Porém, o que
você já estudou até aqui deve servir de desafio e encorajamento para se aventurar na leitura
das obras do teatro de Gil Vicente.

O TEATRO DE GIL VICENTE


A seguir, apresentaremos o teatro de Gil Vicente a partir de sua relação com o humanismo
renascentista e comentaremos alguns aspectos formais e temáticos de seus autos.
VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. SEGUNDO O HISTORIADOR FRANCISCO FALCON, EXISTEM ALGUNS


NÚCLEOS BÁSICOS DA CULTURA RENASCENTISTA PORTUGUESA.
OBSERVE A ENUMERAÇÃO A SEGUIR E DEPOIS ASSINALE A
ALTERNATIVA QUE TRAZ CORRETAMENTE A NUMERAÇÃO
CORRESPONDENTE A ESSES NÚCLEOS BÁSICOS.

I. A SABEDORIA DO MAR.
II. O CAMPO GÓTICO-ETNOLÓGICO.
III. A CULTURA HUMANISTA.
IV. A ESCOLÁSTICA.
V. A REFORMA PROTESTANTE.

A) I, II e IV.

B) I, II e V.

C) I, III e IV.

D) I, III e V.

E) I e V.
2. A MAIORIA DOS PERSONAGENS VICENTINOS TEM UM VALOR
REPRESENTATIVO E UMA DIMENSÃO COLETIVA. ESSAS
CARACTERÍSTICAS TRADUZEM-SE EM UMA DRAMATURGIA A PARTIR
DE TIPOS. TENDO ISSO EM VISTA, ANALISE AS PROPOSIÇÕES A
SEGUIR:

I. DE ACORDO COM ANTÔNIO JOSÉ SARAIVA, OS TIPOS VICENTINOS


ESTÃO ABAIXO DA ALEGORIA E ACIMA DO CARÁTER INDIVIDUAL.
II. EMBORA OS PERSONAGENS SEJAM TIPIFICADOS EM FRÁGUA DO
AMOR, NÃO HÁ NESSA PEÇA NENHUM TIPO DE SIMBOLISMO OU
ALEGORIA.
III. NA PERSPECTIVA DE ANTÔNIO JOSÉ SARAIVA, UM TEATRO DE
TIPOS EXIGE UMA NARRATIVA; POIS UMA PEÇA COM APENAS TIPOS
NÃO CONSTITUI UM CONJUNTO DRAMÁTICO.
IV. A DIFERENÇA ENTRE O DRAMÁTICO E O ROMANESCO É QUE O
DRAMÁTICO NÃO NECESSITA DE INDIVÍDUOS, BASTA QUE EXISTAM
TIPOS NUMA DETERMINADA SITUAÇÃO.
V. HÁ NAS PEÇAS DE GIL VICENTE UMA CONSTANTE COERÊNCIA E
PERMANÊNCIA DE PERSONAGENS OU TIPOS NO DECORRER DAS
CENAS.
VI. O TIPO É UMA CARACTERÍSTICA DO TEATRO MEDIEVAL, ÉPOCA EM
QUE O INDIVIDUAL E O PARTICULAR ERAM DELIBERADAMENTE
IGNORADOS.

ESTÁ CORRETO APENAS O QUE SE AFIRMA EM

A) II, V e VI.

B) I, IV e V.

C) III, IV e V.

D) II, III e IV.

E) I, III e VI.

GABARITO
1. Segundo o historiador Francisco Falcon, existem alguns núcleos básicos da cultura
renascentista portuguesa. Observe a enumeração a seguir e depois assinale a
alternativa que traz corretamente a numeração correspondente a esses núcleos básicos.

I. A sabedoria do mar.
II. O campo gótico-etnológico.
III. A cultura humanista.
IV. A Escolástica.
V. A Reforma Protestante.

A alternativa "C " está correta.

A sabedoria de mar se constitui como um saber técnico e um conhecimento adquirido pela


experiência das grandes navegações. A Escolástica era a continuidade de um saber que
pertencia à baixa Idade Média. E o Humanismo se constituía no saber propriamente
renascentista.

2. A maioria dos personagens vicentinos tem um valor representativo e uma dimensão


coletiva. Essas características traduzem-se em uma dramaturgia a partir de tipos. Tendo
isso em vista, analise as proposições a seguir:

I. De acordo com Antônio José Saraiva, os tipos vicentinos estão abaixo da alegoria e
acima do caráter individual.
II. Embora os personagens sejam tipificados em Frágua do Amor, não há nessa peça
nenhum tipo de simbolismo ou alegoria.
III. Na perspectiva de Antônio José Saraiva, um teatro de tipos exige uma narrativa; pois
uma peça com apenas tipos não constitui um conjunto dramático.
IV. A diferença entre o dramático e o romanesco é que o dramático não necessita de
indivíduos, basta que existam tipos numa determinada situação.
V. Há nas peças de Gil Vicente uma constante coerência e permanência de personagens
ou tipos no decorrer das cenas.
VI. O tipo é uma característica do teatro medieval, época em que o individual e o
particular eram deliberadamente ignorados.

Está correto apenas o que se afirma em

A alternativa "E " está correta.


O teatro de Gil Vicente é alegórico, baseado em tipos e predominantemente narrativo; por isso,
não pode ser considerado um drama.

MÓDULO 2

 Reconhecer aspectos ecdóticos, estilísticos e temáticos da lírica camoniana

CLASSICISMO EM PORTUGAL E A VIDA DE


CAMÕES
Tanto a lírica quanto a épica camoniana se situam no período literário identificado com o
Classicismo em Portugal.

O Classicismo surge como movimento artístico durante o período do Renascimento, no século


XVI, por isso mesmo também recebe a denominação de Seiscentismo.

Em Portugal, Camões é certamente o principal nome e tendência literária desse período.

Assim, vamos agora ao estudo do poeta maior do Renascimento ibérico.

LUÍS VAZ DE CAMÕES

Pouco se sabe da vida de Luís Vaz de Camões. Sua data de nascimento: 1524 ou 1525?
Local? Talvez em Lisboa, Alenquer, Coimbra ou Santarém. Acredita-se que tenha vindo de uma
família aristocrática da Galiza e que teve acesso à vida palaciana na juventude, onde
conseguiu algum benefício para a sua formação intelectual. Leu Homero, Horácio, Virgílio,
Ovídio, Petrarca, Boscán, Garcilaso e muitos outros.

Com o seu talento e sua cultura, dizem que provocou paixões em damas da Corte, entre elas a
filha de D. Manuel e D. Catarina de Ataíde. Provavelmente esses amores proibidos o levaram
ao exílio.

Foi soldado raso em Ceuta (1549). Perdeu um olho e regressou a Lisboa. Em 1522, na
procissão de Corpus Christi feriu um servidor do Paço e foi preso. Foi liberto com a condição
de engajar no serviço militar ultramarino.

Acredita-se que escreveu Os Lusíadas em Macau, naufragou na foz do rio Mekong, onde
perdeu a sua companheira Dinamene. Acusado de prevaricação, foi preso em Goa e solto
depois. A seguir, foi preso por dívidas em Moçambique. Levou, durante anos, uma vida
miserável até que Diogo do Couto o levou de volta a Portugal. Em 1572, publicou Os Lusíadas
e recebeu como recompensa uma pensão anual de 15 mil réis.

Imagem: Desenne / Wikimedia Commons / Domínio Público


 Camões na gruta de Macau, em gravura de Desenne, 1817.

Viveu na miséria, morreu pobre e abandonado a 10 de junho de 1580. Em linhas gerais, é isso
que nos informa Massaud Moisés (1970) sobre Camões.

O QUE SE SABE E NÃO SE SABE DA VIDA DE


CAMÕES
José Hermano Saraiva, em Vida ignorada de Camões: uma história que o tempo censurou
(1994), diz que poucos são os documentos autênticos sobre a vida de Camões. Teríamos
apenas: o perdão do rei pela cutilada na cabeça de um empregado do Paço em dia de Corpo
de Deus de 1552; o privilégio da tença (Pensão ) de 15 mil réis durante três anos; e quatro
documentos que são prorrogações do prazo da tença. Esses são os fatos documentados e nos
quais poderíamos crer. Todo o resto sobre a vida do poeta vem de fonte não límpida ou de
tradições baseadas nos relatos dos primeiros biógrafos que teceram a seu gosto numerosas
referências. Em síntese, o que se sabe ao certo é quase nada, o que se conjectura é quase
tudo.

Tudo nos leva a crer que os “primeiros biógrafos sabiam mais do que disseram, mas lá teriam
suas razões para não falar” (SARAIVA, 1994, p.17).

Foto: Carlos Luis MC da Cruz / Wikimedia Commons / Domínio público


 Monumento ao poeta na Praça de Luís de Camões, no Bairro Alto, em Lisboa.

 SAIBA MAIS

Quem publicou pela primeira vez uma vida de Camões foi o historiador e escritor português
Pedro de Mariz (1550-1615), em uma espécie de prefácio que antecede a primeira edição de
Os Lusíadas. Aliás, a história dessa primeira edição é bem esquisita. Pedro de Mariz conta que
havia um admirador de Camões chamado Manuel Correia, que passou muitos anos da vida a
fazer comentários sobre Os Lusíadas, mas morreu sem o publicar. Pedro de Mariz teria
comprado o livro em um leilão e o imprimiu; e o livro tinha um prefácio também do Manuel
Correia (SARAIVA, 1994, p. 17).

Pedro de Mariz escreve “ter pertencido Camões à nobreza de melhor sangue que Portugal
produziu” (SARAIVA, 1994, p. 17). O editor do livro diz outra coisa, afirma que os heróis da
obra são heroicos, mas “o autor humilde” (SARAIVA, 1994, p. 18). Essa edição já se deu 30
anos após a morte do poeta. Nessa época, da geração que conhecera Camões antes de
embarcar para as Índias, poucos havia vivos. E as controvérsias sobre o autor já começavam
aí.

Aliás, nada é mais controvertido do que a lírica camoniana.

PROBLEMAS ECDÓTICOS NA LÍRICA E NA


ÉPICA DE CAMÕES
Um esclarecimento inicial: Ecdótica é uma ciência que busca através de regras de
hermenêutica e exegese restituir a forma mais próxima do que seria a redação inicial de um
texto para estabelecer a sua edição definitiva; portanto, um trabalho de crítica documental.

No Brasil, o filólogo e professor Leodegário de Azevedo Filho (1927-2011) foi um dos principais
estudiosos da crítica documental da lírica de Camões.

Segundo Azevedo Filho (1973), Rodrigues Lapa nos disse em 1945, no livro Luís de Camões –
Líricas, que a obra de Camões passou por certo processo de deturpação, ainda que com a
intenção de melhorá-la ou mesmo corrigi-la. Essa deturpação da obra camoniana teria se dado
por não se respeitar uma ideia simples: empreender um esforço para compreender a língua do
poeta ou a língua de seu próprio tempo, além de entender as regras de sua versificação e seus
processos de estilo. Isso porque esses são aspectos que diferem do nosso tempo, de como se
apresentam na produção literária dos nossos dias. O equívoco, então, foi aplicar o princípio de
que Camões só poderia ser grande caso correspondesse ao gosto particular de cada época ou
tempo. Assim, os textos foram alterados, palavras foram substituídas, a ordem foi invertida –
tudo isso para agradar as pessoas de determinada época.
Imagem: GualdimG / Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0
 Camões salvando Os Lusíadas, Francisco José Resende, 1867.

Desse modo, há um problema sério em relação à crítica textual camoniana, não estando até
hoje concluído definitivamente o trabalho de apuração da lírica de Camões.
Consequentemente, há várias edições e variações do texto camoniano, resultando em
miscelâneas e fragmentos de sua lírica.

 SAIBA MAIS

Situação histórica do manuscrito de Os Lusíadas

O manuscrito de Os Lusíadas perdeu-se inteiramente. Existem duas edições de 1572, dessas


duas acredita-se que a edição princeps (primeira edição) seja exatamente aquela que
apresenta, na portada, um pelicano com a cabeça virada para a esquerda do leitor, e a outra
edição apresenta o mesmo pelicano com a cabeça virada para a direita do leitor (AZEVEDO
FILHO, 1995).

A PROPÓSITO DO CÂNONE LÍRICO


Foto: Shutterstock.com

A questão do cânone sempre foi de alguma forma debatida em razão da quantidade de textos
atribuídos a Camões. Os únicos documentos de que realmente dispomos são os “livros de
mão” da época. Suas obras líricas ficaram dispersas e fragmentadas, pois os textos autógrafos
se perderam (AZEVEDO FILHO, 1995).

Após edições sem rigor ecdótico e inserção de textos inautênticos na lírica de Camões, ao
longo do tempo, em 1932, houve louvável esforço para estabelecer um corpus mais uniforme e
coerente do vasto e heterogêneo universo lírico camoniano. Esse esforço foi realizado por José
Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, com o apoio dos estudos de Carolina Michaëlis de
Vasconcelos e Wilhelm Storck.

Outros trabalhos de grande valor foram feitos, mas cabe ressaltar o fato de o filólogo português
Álvaro Júlio da Costa Pimpão (1902-1984) e o crítico literário Hernâni Cidade (1887-1975)
terem dado passos bem definitivos para o início do trabalho de revisão crítica, sistemática e
necessária à análise dos manuscritos da época e dos textos impressos durante quatro séculos.

Já o filólogo Emmanuel Pereira Filho partiu da evidência de que todas as tentativas de fixar um
cânone máximo da lírica de Camões foram infrutíferas. Sendo assim, Pereira Filho partiu para
o conceito de cânone mínimo como uma base segura; para o novo cânone, fixou o critério de
tríplice testemunho quinhentista incontroverso. Em outras palavras, um texto atribuído a
Camões teria que ser comprovadamente do século XVI com três testemunhos quinhentistas.
Com isso, chegou com segurança a 65 textos em vários gêneros líricos (AZEVEDO FILHO,
1995).
Foto: Shutterstock.com

Apesar de tudo isso, no movediço terreno da lírica de Camões, os estudos dos manuscritos
ainda prosseguem, atualmente.

A FIGURA FEMININA PETRARQUISTA EM


CAMÕES
Quando falamos de um petrarquismo em Camões, é preciso entender que os critérios para
“originalidade” no século XVI eram diferentes do que entendemos hoje em dia por
originalidade. Rita Marnoto (1996) argumenta que o labor renascentista tinha como pedra de
toque a imitação; qualquer obra de arte devia ser modelada por outras de reconhecido mérito.
A originalidade não era entendida como invenção espontânea, mas como capacidade de fazer
próprios os modelos instituídos e reorganizar novas sínteses. E, nesse sentido, o petrarquismo
assumiu no século XVI, na poesia quinhentista, um papel essencial, como código para
modelação das linhas de força da poesia de temática amorosa.
Foto: Shutterstock.com

PETRARQUISMO

Referente ao poeta e humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374), considerado o


pai do soneto em função da qualidade de suas composições e por ter influenciado vários
poetas. O soneto regular, que também é chamado de petrarquiano, contém uma estrutura
estrófica de dois quartetos (ou quadras) e dois tercetos. O petrarquismo, inspirado na
temática amorosa, no estilo e no vocabulário de Petrarca, foi um movimento literário
italiano que se estendeu do século XV ao XVII.

O petrarquismo de Camões tem sua fonte, assim como para boa parte dos poetas
quinhentistas, na obra de Pietro Bembo (1470-1547), ou na chamada hipercodificação
bembesca como uma depuração estilística.

HIPERCODIFICAÇÃO BEMBESCA
Corresponde ao ato de Pietro Bembo selecionar na poesia de Petrarca os elementos
considerados mais perfeitos, resultando em um texto literário a ser produzido altamente
refinado.

 SAIBA MAIS

Podemos dizer que a “imitação” no Renascimento situava o poeta, tendo como antecedentes
de mérito reconhecido: Homero, Virgílio, Petrônio, Ovídio, Ariosto, Tasso, Petrarca, Sannazaro,
Pietro Bembo e Garcilaso. Esses eram os principais.

Vejamos os versos de Ondados fios d’ouro reluzente, em que Camões imita o modelo
bembesco de modo muito elegante.

Primeiro, repare nestes dois versos de um poema de Pietro Bembo:

“Crin d’oro crespo e d’ambra tersa e pura


ch’a l’aura su la neve ondeggi e vole”
(BEMBO, Pietro. Prose dela volgar lingua: Gli asolani.
Rima. Ed. Carlo Dionisotti. Milano: TEA, 1989.)

 SAIBA MAIS

Tradução livre dos versos:

Cabelo de ouro nítido e âmbar claro e puro

que a aura na neve ondula e voa

Agora, compare com estes dois versos de um poema de Camões:

“Ondados fios d’ouro reluzente,


que, agora da mão bela recolhidos”
(CAMÕES, Luís. Sonetos. [recurso eletrônico].
Jandira: Principis, 2020)

Segundo Rita Marnoto (1996), os atributos femininos referidos por Bembo são os mesmos. A
sequência é a mesma: cabelos, mão, faces, olhos, riso, dentes e lábios e os motivos de louvor
com ligeiras alterações da effictio.

Imagem: Autor desconhecido / Wikimedia Commons / Domínio público


 Casa de Francesco Petrarca, Laura e o poeta.

Effictio era um preceito medieval segundo o qual a enumeração dos atributos físicos seguia
uma ordem descendente: cabelos, olhos, faces, boca, mão. A matriz é a representação literária
da Laura de Petrarca. A figura feminina petrarquista é ela uma essência ao mesmo tempo
material e angelical, despojada de toda e qualquer conflitualidade. Ou seja, a poesia de
Petrarca reúne os dois elementos sem colocá-los em conflito ou sem reproduzir o conflito tão
comum.

A célebre composição de Bembo, que citamos, é pautada pelo retrato de Laura, ela não inspira
no amante qualquer inquietude.

A ideia da amada vista como angelical e de elevação espiritual, na Itália do século XIII, recebeu
o nome de dolce stil nuovo, que surgiu na Toscana com um grupo de poetas florentinos, entre
eles: Guido Cavalcanti e Dante Alighieri.

DOLCE STIL NUOVO


O “doce estilo novo” foi um movimento poético italiano, entre o século XIII e XIV, na
Toscana, que superou a escola trovadoresca com uma nova concepção de amor, de
mulher amada, e de estado de espírito do amado, além de aspectos formais, como o
refinamento da forma.

TENSÕES NA LÍRICA DE CAMÕES: DO


NEOPLATONISMO AO DESCONCERTO DO
MUNDO
Nas perspectivas de António José Saraiva e Oscar Lopes (2005), de um modo quase definitivo,
tudo o que se manifestou na literatura quinhentista encontrou eco na lírica ou na épica de
Camões.

Camões fez a síntese entre a tradição peninsular representada pelo Cancioneiro Geral e o
seiscentista: ponte entre o estilo clássico renascentista, o gótico dos quatrocentos e o Barroco
dos seiscentos, aproveitando todos os materiais da escola petrarquista italiana, espanhola e
portuguesa. Nesse sentido, Saraiva e Lopes destacam duas grandes linhas na poesia
camoniana: o amor e o desconcerto do mundo.

O AMOR

De acordo com Saraiva e Lopes (2005), Camões interessava-se pelo neoplatonismo. Os


primeiros teólogos cristãos foram neoplatonizantes e o Humanismo que ressuscitou a
Antiguidade também teve no platonismo alguns de seus fundamentos. A concepção de amor
trovadoresco era atravessada pelo platonismo. Essa visão é retomada no “doce estilo novo”,
em que a mulher, como ser angélico, sublima e apura a alma do poeta. Beatriz conduz Dante
pelas alturas do paraíso e Laura serve, depois de morta, de inspiração lírica amorosa a
Petrarca.
Foto: Shutterstock.com

Camões herdou essa concepção Dante-Petrarquista de amor e de mulher. A mulher amada,


pela luz sobrenatural, perde as suas feições carnais e tem o seu revestimento corpóreo
recoberto por um ideal pleno de gravidade, serenidade e altura.

No retrato da amada, Camões acompanha os padrões de Beatriz e Laura:

BEATRIZ

Beatriz, provável referência à Beatrice Portinari (1266-1290), musa de Dante e sua paixão
platônica quando ainda muito novo.

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,


Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,


Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

(CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 116)

 SAIBA MAIS

Esse soneto de Camões estaria relacionado com a figura de Dinamene, que ele teria perdido
no naufrágio do Rio Mekong. Dizem que ele teria salvado no naufrágio Os Lusíadas, mas não
conseguiu socorrer a namorada. Existe outra lenda em torno desse soneto. O poeta
supostamente teria escrito à D. Joana Noronha de Andrade, uma dama nobre. Por não poder
usar o nome da verdadeira musa inspiradora, o dedicou à “Dinamene”, designação de uma
ninfa do mar.

Este soneto é uma imitatio (Mimese ou imitação) de um clássico de Petrarca.

A alma minha gentil que agora parte


Tão cedo deste mundo à outra vida,
Terá certo no céu grata acolhida,
Indo habitar sua mais beata parte.

Ficando entre o terceiro lume e Marte,


Será a vista do sol escurecida,
Virá depois, muita alma ao céu subida,
Vê-la – portento de natural e arte.

E se pousasse entre Mercúrio e Luz,


Brilhara mais do que eles nossa bela,
Como só se espalhara a fama sua.

A Marte certo não chegara ela.


Mas se mais alto o seu vulto flutua,
Vencera Jove e qualquer outra estrela.
(PETRARCA. O cancioneiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 38)

Em ambos os sonetos vemos a idealização neoplatônica da mulher. Camões faz essa


idealização coincidir com um apelo.

Vemos no poema dirigido à amada recém-desaparecida que a primeira quadra se refere à


eufemística partida precoce do objeto desejado. E com os respectivos dêiticos “lá” e “cá” faz
contrastar o Céu e a Terra, atravessando ambos pela ideia de eternidade. Na segunda quadra,
formula mais que um desejo, elabora um pedido, um apelo à recordação do amor. Os tercetos
formulam o novo e definitivo pedido. Seguindo a poética de Dante, suplica poder gozar ao lado
do objeto perdido a graça da beatitude divina.

Também seria possível reconhecer o neoplatonismo em Camões na concepção de amor que


intensifica o dualismo platônico, tal qual no soneto iniciado pelo verso Amor é fogo que arde
sem se ver, com suas oposições entre matéria e espírito, sensível e inteligível, finitude e
infinito, mundano e divino etc.

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

(CAMÕES, Luís de. Lírica: redondilhas e sonetos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo:
Publifolha, 1997. p. 99)

O DESCONCERTO DO MUNDO
Nas visões de Saraiva e Lopes (2005), Camões apresenta uma tendência maneirista ao
pensar a incomensurabilidade ou o desajuste entre as exigências íntimas da vida pessoal e os
meios que lhe são dados satisfazer ou realizar a própria vida.

Essa é uma temática que retorna constantemente tanto na lírica quanto na épica camoniana.
Nosso bardo lusitano a nomeou muito bem em suas oitavas Ao desconcerto do mundo:

MANEIRISTA

Referente ao Maneirismo, movimento artístico que na literatura corresponde ao período


entre o Renascimento e o Barroco, por volta da segunda metade do século XVI. Alguns
autores consideram o Maneirismo um movimento autônomo, não apenas uma transição
entre o Renascimento e o Barroco.

Os bons vi sempre passar


No Mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.

(CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 116)

Esse poema apresenta o desconcerto como produto de um destino confuso e irracional:


desajustes entre valores e realidade, entre necessidade e satisfação. O problema central para
Camões não são injustiças, que ele denuncia, mas a não correspondência entre valores,
razões e o processo objeto.

Cabe dizer que a temática do desconcerto está no âmago do próprio existir do poeta. Assim, o
poeta reage cônscio da sua experiência e da sua relação com o destino que lhe é opaco, onde,
às vezes, só os maus e medíocres “nadam num mar de contentamentos”.
Como exemplo dessa cosmovisão do desconcerto, vejamos ainda o conhecido soneto O dia
em que eu nasci, morra e pereça:

O dia em que eu nasci, morra e pereça,


Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,


Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,


As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,


Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

(CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 131)

O soneto tematiza a desilusão e o desajuste diante do mundo, levando à atitude de amaldiçoar


o próprio dia do nascimento.

De acordo com Saraiva e Lopes (2005), esse soneto oscila entre uma inspiração platônica em
que a felicidade surge como uma reminiscência de um mundo idealizado e o resgate do
absurdo do mundo.
A LÍRICA DE CAMÕES
No vídeo, apresentaremos o contexto da lírica camoniana e comentaremos alguns sonetos a
partir de aspectos como a figura feminina petrarquista, o amor neoplatônico e o tema do
desconcerto do mundo.

VERIFICANDO O APRENDIZADO
1. O AMOR E O DESCONCERTO DO MUNDO SÃO DUAS IMPORTANTES
LINHAS QUE ORIENTAM A LÍRICA CAMONIANA. EM QUAL DAS
ALTERNATIVAS A SEGUIR TEMOS VERSOS QUE MAIS SE APROXIMAM
DO TEMA DO DESCONCERTO DO MUNDO?

A) Os maus vi sempre nadar / Em mar de contentamentos.

B) Não te esqueças daquele amor ardente / Que já nos olhos meus tão puro viste.

C) Ondados fios d’ouro reluzente, / que, agora da mão bela recolhidos.

D) Roga a Deus, que teus anos encurtou, / Que tão cedo de cá me leve a ver-te.

E) Amor é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói, e não se sente.

2. O CONCEITO DE CÂNONE SEMPRE FOI PROCURADO EM FUNÇÃO DA


TOTALIDADE DOS TEXTOS DE DETERMINADOS AUTORES. NO CASO
ESPECÍFICO DE CAMÕES PODEMOS AFIRMAR QUE

A) os cancioneiros de Camões, em suas edições quinhentistas, possuem expressa indicação


de autoria.

B) em nenhuma das suas edições o corpus lírico de Camões foi abusivamente dilatado.

C) não há valor ou relevância, do ponto de vista ecdótico, nas edições de José Maria
Rodrigues e Afonso Lopes Vieira da obra camoniana.

D) os cancioneiros manuscritos da lírica camoniana, em geral miscelânicos e fragmentados,


nem sempre apresentam indicação de autoria.

E) para sorte dos estudiosos, Camões deixou sua obra lírica preparada para o prelo, antes de
morrer.

GABARITO

1. O amor e o desconcerto do mundo são duas importantes linhas que orientam a lírica
camoniana. Em qual das alternativas a seguir temos versos que mais se aproximam do
tema do desconcerto do mundo?

A alternativa "A " está correta.


O desconcerto do mundo seria uma manifestação da tendência maneirista na lírica de Camões,
expressa na tensão ou contradição entre as condições pessoais para se viver e as reais
condições que o mundo ou a realidade apresentam para se realizar a vida. Nos versos “Os
maus vi sempre nadar / Em mar de contentamentos”, temos a constatação da injustiça, da
própria contradição manifestada no contentamento dos maus e no tormento dos bons, levando
ao reconhecimento de que o mundo anda desconcertado ou desajustado.

2. O conceito de cânone sempre foi procurado em função da totalidade dos textos de


determinados autores. No caso específico de Camões podemos afirmar que

A alternativa "D " está correta.

Segundo Leodegário de Azevedo Filho, a definição de um cânone mínimo da lírica camoniana


é fundamental como crítica autoral. A ausência de textos que tivessem sido autografados pelo
autor dificulta a possibilidade de se chegar ao todo da obra do poeta, por isso, a busca de um
cânone mínimo com referências seguras.

MÓDULO 3

 Identificar os planos e a estrutura de Os Lusíadas

OS LUSÍADAS E ALGUNS DE SEUS


PLANOS
Inicialmente, vamos abordar Os Lusíadas a partir de dois planos: o plano da história e o plano
do maravilhoso.

Depois, examinaremos a estrutura da obra e seus aspectos formais.


O PLANO DA HISTÓRIA

Imagem: Giro720 /Wikimedia Commons / Domínio público


 Capa de Os Lusíadas, na edição de 1572.

Silvério Benedito (1997) nos diz que, no período quinhentista, a concepção de história que
vigorava em Portugal era a do gramático e historiador João de Barros (1496-1570), seguidor do
historiador romano Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.): a história seria uma verdade selecionada
cujos bons aspectos conferissem dignidade aos seus personagens.

A história deveria ter uma finalidade moralizante e ser escrita seguindo as regras da Retórica,
com ordem, proporção e bom estilo. É esta visão de história dominante em Os Lusíadas,
porém acrescentada de um tom épico e monumental.

 SAIBA MAIS

O conceito de “guerra justa”

Na Antiguidade Clássica, os historiadores romanos deram à guerra um papel de grande


destaque; eles tornaram lendários os confrontos entre romanos e os bárbaros. Esse tom
encomiástico (elogioso, enaltecedor) encontramos nos escritos de Tito Lívio e no poema
Eneida de Virgílio (BENEDITO, 1997).

O tom supranacionalista e de exaltação da guerra atravessa a Itália e o reencontramos na


nobreza medieval quinhentista ibérica. Trata-se do conceito de “guerra justa”, que exalta o ideal
guerreiro e celebra os feitos de um povo. No caso específico de Portugal, em Os Lusíadas,
surge na linha da guerra das cruzadas da Cristandade contra os infiéis.

Vejamos alguns exemplos do que acabamos de expor, apoiados ainda em Benedito (1997).

Imagem: Shutterstock.com

O nascimento de Portugal

Portugal tem como passado a Lusitânia. Os lusitanos foram os seus “primeiros” habitantes.
Nessa terra, Camões exalta o pastor Viriato, usando uma falsa etimologia que faz derivar de vir
(homem, varão, viril). Viriato é o lendário guerreiro do povo luso que lutou contra a alta Roma.

Imagem: Shutterstock.com

Ourique, a batalha fundadora

Os Lusíadas fazem alusão à batalha de Ourique, ocorrida em 1139, considerada o fundamento


da independência de Portugal. Ao narrar tal batalha, o poeta realiza os seguintes
procedimentos:

Descreve a desproporção entre o exército mouro e as forças portuguesas.

Faz alusão ao Milagre: Cristo apareceu a Afonso Henriques e o aclamou rei legítimo.

Narra a vitória dos portugueses, que gerou a simbologia do brasão de Portugal com os
cinco escudetes, em sinal dos cinco reis mouros vencidos.

Vejamos alguns fragmentos (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 70):


Imagem: Shutterstock.com

“Defronte do inimigo Sarraceno, posto que em força e gente tão pequeno”

Imagem: Shutterstock.com

“Cinco reis mouros são os inimigos, dos quais o maior Ismar se chama”
Imagem: Shutterstock.com

“[...], gritando o céu tocavam, dizendo em alta voz: - Real, real, por Afonso, alto Rei de
Portugal!”

Imagem: Shutterstock.com

A batalha de Aljubarrota

Com a crise dinástica e revolucionária de 1383-1385, Portugal consolidou a sua independência


em uma batalha frente aos castelhanos. Camões apresenta esse acontecimento em um grande
quadro com diversas fases.

Vejamos os seguintes excertos:

– Como?! Da gente ilustre portuguesa


Há de haver quem refuse o pátrio Marte?!
[...]

Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte


De português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?!

Atai as mãos o vosso vão receio,


Que eu só resistirei ao jugo alheio.

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 75)


Imagem: Shutterstock.com

A batalha de São Mamede

D. Teresa, mãe do futuro primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, teria casado em
segunda vez com o fidalgo galego Conde Fernão Peres de Trava, deserdando o filho. Camões
compara essa mãe ignominiosa à Medeia da mitologia grega, mas não exalta a revolta do filho.
É um fato histórico D. Afonso ter combatido e vencido a própria mãe na batalha de S. Mamede.

Com ele posta em campo já se via,


E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.

Mas de Deus foi vingada em tempo breve


Tanta veneração aos pais se deve!

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 80)

Imagem: Shutterstock.com

O episódio de Inês de Castro

Após cantar a bravura de D. Afonso IV na vitória de Salado, Camões se volta para a carga
sociotrágica da morte de Inês de Castro.

Inês de Castro era filha de um fidalgo galego. D. Pedro apaixona-se e mais tarde declara ter
casado com ela. Por interesses políticos, D. Afonso IV permite a execução de Inês de Castro,
que mais tarde seria vingada por D. Pedro. Conta a lenda que D. Pedro teria coroado Inês
depois de morta, “fato” que inspirou poetas, dramaturgos, artistas plásticos e músicos.

Vamos conferir alguns trechos e elementos do episódio de Inês de Castro:

Descrição de Inês em estado de felicidade e apaixonada, estado em que o épico e o lírico se


confundem:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego.

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 84)

Imagem: Desconhecido - Câmara Municipal de Sintra / Wikimedia Commons / Domínio público


 Representação de Inês de Castro, século XIX, Quinta da Regaleira, Sintra, Portugal.

Imagem: Russian museum / Wikimedia Commons / Domínio público


 O assassínio de Inês de Castro, de Karl Brjullow, 1834.

A covardia dos carrascos que executaram Inês:

Tais contra Inês os brutos matadores


No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez Rainha;
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 87)

A alusão à “fonte dos amores”, na Quinta das Lágrimas, na margem esquerda do rio
Mondego.

As filhas do Mondego a morte escura


Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 89)


Imagem: Carlos Luis M C da Cruz / Wikimedia Commons / Domínio público
 Portal e janela neogóticos na "Fonte dos Amores".

O PLANO DO MARAVILHOSO

Segundo Silvério Benedito (1997), em Os Lusíadas, o plano do “maravilhoso” é apenas a


utilização dos deuses greco-latinos. Vejamos alguns aspectos do plano do maravilhoso,
apoiados em Aguiar e Silva (1994).

Imagem: Shutterstock.com

A mitologia greco-latina
A mitologia impôs-se no Renascimento, inclusive na arte protegida pela ação dos mecenas, por
exemplo, pelos papas da Igreja Católica Júlio (1503 a 1513) e Leão X (1513 a 1521). A
mitologia havia se tornado expressão privilegiada de valores ideais, sensuais e agradáveis à
vida sensível.

A mitologia é utilizada em Os Lusíadas muitas vezes como ornamentação e, em vários casos,


com intenção irônica.

São inúmeras as alusões ao universo dos mitos greco-latinos, porém vamos abordar a riqueza
das visões polissêmicas do episódio da “Ilha dos amores”.

Imagem: Shutterstock.com

A ilha dos amores

De acordo com Aguiar e Silva (1994), o episódio da “ilha dos amores”, com as suas 220
estâncias (estrofes), constitui 20% de Os Lusíadas. Para muitos, esse episódio foi o “fruto
proibido”, os adolescentes liam clandestinamente, os moralistas gostariam de retirá-lo em uma
edição ad usum delphini.

AD USUM DELPHINI

Edições de clássicos latinos, destinados à educação do delfim (filho do rei francês Luís
XIV), em que se omitiam trechos julgados impróprios.

A posição dos escoliastas (comentadores)


Os escoliastas, desde muito cedo, tentaram, através de dados do texto (astronomia, flora,
fauna etc.) identificar a “ilha dos amores”. Várias foram as hipóteses:

MANUEL CORREIA

Ilha de Santa Helena

FARIA DE SOUZA

llha de Angediva

GOMES MONTEIRO

Ilha de Zanzibar

FREIRE DE CARVALHO

Ilha de Ceilão

CUNHA GONÇALVES

Ilha de Bombaim

TEÓFILO BRAGA

Arquipélago dos Açores


SOUZA GOMES

Ilha do Arquipélago do Cabo Verde

Houve, porém, comentadores que preferiram considerá-la uma ilha fantástica, um produto de
fecunda imaginação.

Foram muitas e graves as falhas metodológicas que proliferaram nos estudos sobre tal
episódio. Mas, de certo modo, há correspondências entre o episódio da “ilha dos amores” e
alguns episódios que podemos retirar da tradição clássica:

Imagem: Shutterstock.com

Ecos da descrição dos Jardins de Alcínoo, que figura no Canto VII da Odisseia.

Uma imitação do Somnium Scipionis (O Sonho de Cipião) de Cícero e do Canto VI da


Eneida.

O episódio da Argonáutica de Apolônio de Rodes.

Trechos das Metamorfoses de Ovídio.

A descrição de Vênus que Petrarca deixou nos Triumphus cupidinis (Triunfo do


Amor) .

Há muitas outras possibilidades de influências que poderiam ser buscadas na Antiguidade


Clássica.

O início do episódio

O episódio “ilha dos amores” começa na estância 25 do Canto IX, em que o amor aparece
concebido como força ou princípio que corrige os desvios, erros e vícios da lei que impera no
mundo: os homens idolatram coisas que deveriam ser somente instrumentos ou meios. Sendo
assim, o amor deve reconduzir os homens até a Unidade Divina:
Já sobre os Idálios montes pende,
Onde o filho frecheiro estava então
Ajuntando outros muitos, que pretende
Fazer uma famosa expedição
Contra o mundo rebelde, por que emende
Erros grandes, que há dias nele estão,
Amando coisas que nos foram dadas,
Não para ser amadas, mas usadas.

(CAMÕES, L. V. de. Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão,
1978. p. 373.)

Imagem: GalleriX / Wikimedia Commons / Domínio público


 Cupido à espreita, William-Adolphe Bouguereau, 1890.

Nessa estância, o filho de Vênus, Cupido, baixa sobre os montes da Idália e organiza uma
expedição com outros flecheiros para punirem os homens que amavam coisas que serviam
apenas para serem usadas.

Ao Amor (Cupido) cumpre assegurar a lei e a harmonia inscrita por Deus nos seres e nas
coisas, desempenhando a função de princípio unificador do universo. Esse é um tema
neoplatônico de primeira ordem.

O significado alegórico da ilha


A “ilha dos amores” trata do encontro de navegantes e ninfas em uma orgia desbragada. E
Tétis, pela beleza e nobreza entre as ninfas, recebe o próprio Vasco da Gama e ambos gozam
os seus amores.

Silvério Benedito (1997) nos diz que essa concretização da experiência amorosa glorifica, pela
memória da história, “a fama grande e o nome alto e subido”. Aqui, os modelos eram os deuses
que se destacavam por suas façanhas. Cabe aos humanos alcançarem a glória e a fama,
fugindo da indolência que torna as almas escravas.

Assim, “as Ninfas... Tétis, e a ilha... os deleites” representam os prêmios que os navegantes
receberão pelos altos feitos realizados; nitidamente uma imortalização pela glória (BENEDITO,
1997, p. 108).

Imagem: Museu Militar de Lisboa / Wikimedia Commons / Domínio público


 Ilha dos amores, José Malhoa, 1908.

O IDEAL QUINHENTISTA

No Canto VI, Estância 29, é apresentado o ideal português de virtu (Virtudes e habilidades.)
humana no quinhentismo: os barões, em espírito de cruzada, revisitados no tempo de Camões
pelo movimento da Contrarreforma. Naquele momento, a cristandade (católica) tinha sua
cabeça ameaçada pelos sarracenos e pelas facções protestantes e reformistas.
OS SEGREDOS DO MUNDO AINDA IGNOTO

Tétis não só entra em conúbio (Casamento, união íntima.) amoroso com o Gama, mas
também “declara que a finalidade da sua presença naquela ilha era revelar à Nação
portuguesa os segredos do mundo ainda ignoto” (AGUIAR E SILVA, 1994, p. 141). Isso ocorre
no Canto IX, 86:

Que, depois de lhe ter dito quem era,


Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influição do imóvel fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia.

(CAMÕES, L. V. de. Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão,
1978. p. 393)

Tétis se apresenta, enquanto mãe do Oceano. Estava ali por influxo do Fado [Destino] para
ensinar a Vasco da Gama os segredos da esfera do mundo, da terra e do mar.

A MÁQUINA DO MUNDO

Esse é um dos momentos mais importantes de Os Lusíadas. Tétis apresenta ao Gama o


sistema geocêntrico ptolomaico e profeticamente as grandes conquistas que serão oriundas
da expansão marítima portuguesa. É evidente que o profetizar só é possível porque o tempo
histórico de Camões é posterior ao de Vasco da Gama.

SISTEMA GEOCÊNTRICO PTOLOMAICO


Sistema geocêntrico conforme o sábio grego Ptolomeu (90 d.C. – 168. d.C.). Somente na
segunda metade do século XVIII, o sistema heliocêntrico é cientificamente aceito.

O NOVO MAPA GEOGRÁFICO DA TERRA

Tétis, no Canto X, apresentará ao Gama a imensidão das conquistas que serão realizadas
pelos portugueses.

É um grande canto épico em que futuras realizações portuguesas são indicadas, com
referências a costumes e produtos estranhos, além de aspectos religiosos.

A ESTRUTURA EXTERNA DE OS LUSÍADAS


Vejamos, agora, alguns aspectos formais e estilísticos da obra, apoiados ainda em Benedito
(1997).

A epopeia de Os Lusíadas é estruturada em dez cantos constituído por estrofes em número


variável. As estrofes são oitavas, com o esquema de rima ababcc. Predominantemente, os
versos são decassílabos (acentuação tônica na 6a e 10a sílabas) e, às vezes, temos o verso
sáfico (acentuação na 4a, na 8a e 10a sílabas).

PERSONAGENS PRINCIPAIS DE OS LUSÍADAS


Imagem: Shutterstock.com

DA VIAGEM

Os portugueses (os Lusíadas), Velho do Restelo, Vasco da Gama, Paulo da Gama, Fernão
Veloso, Monçaide, Catual e Samorim.

Imagem: Shutterstock.com

DA HISTÓRIA
D. Afonso Henriques, D. Nuno Alvares, Inês de Castro, os portugueses (os Lusíadas).

Imagem: Shutterstock.com

DA MITOLOGIA

Júpiter, Vênus, Baco, Marte, Netuno, Adamastor, Tétis, Ninfas, Cupido.

Imagem: Shutterstock.com

DOS EXCURSOS (DIGRESSÕES)


Personagens, grupos louvados ou criticados.

NARRADORES – NARRATÁRIOS DE OS
LUSÍADAS

O narrador-poeta (supostamente Camões), Vasco da Gama, Paulo da Gama, Adamastor,


Júpiter, Ninfa (canto), Tétis e outros.

OS EXCURSOS DO POETA

O excurso, na literatura, é o momento em que o narrador (ou personagem narrador) se desvia


do tema principal. Talvez possamos ler um outro Os Lusíadas a partir dos excursos, nos quais
a perspectiva encomiástica, de exaltação, de louvor aos feitos heroicos cede lugar a um
narrador maneirista engajado em uma ácida crítica aos valores políticos e sociais de sua
época.

Gostaríamos aqui de fazer referência ao trabalho de José Madeira (2000), publicado no livro
Camões contra a expansão e o Império, que lê Os Lusíadas a partir das contradições, das
ironias e do humor fino do bardo lusitano destruidor dos “bons propósitos”, condenando,
inclusive, as guerras com objetivos de conquistas.

A complexidade de Os Lusíadas não está apenas no fato de possuir um caráter enciclopédico,


distribuído em dez cantos com, em média, cem estâncias (estrofes) em cada canto. Os
Lusíadas apresentam características tardo-góticas (Último período ou última fase do estilo
gótico.) somadas a valores clássicos renascentistas e, em alguns aspectos, antecipa, pela
visão crítica, o Maneirismo e o Barroco.

Os primeiros excursos estão no Canto I: a Proposição, a Invocação e a Dedicatória.

Vejamos, então, os excursos do Canto I e outros excursos importantes.


Imagem: Shutterstock.com

Proposição (Canto I)

Na proposição, o poeta expõe a matéria de que vai tratar o poema. O título Os Lusíadas
significa os lusos ou os portugueses. Camões não canta um herói individual como fizeram os
poetas da Antiguidade, aponta-nos um herói coletivo – o povo português. Uma personagem
coletiva, todos os portugueses que se notabilizaram pelas ações de valor.

Imagem: Shutterstock.com

A invocação (Canto I)

Na mitologia clássica, as ninfas eram deusas filhas de Zeus e viviam nos campos e bosques.
Por serem divindades secundárias, eram muito populares, as pessoas lhes dirigiam súplicas.
No caso de Camões, o pedido de inspiração se dirige a uma ninfa do Tejo – “Tágides”. O poeta
pede a ela um “som alto e sublimado”, “um estilo grandíloquo e corrente”. A criação dessa ninfa
“Tágides” transfere a mítica Grécia para Portugal.
Imagem: Shutterstock.com

Dedicatória (Canto I)

Dedica ao rei D. Sebastião, dirigindo-lhe em tom epicamente encomiástico:

“Vós, poderoso Rei, cujo alto Império [...] o deixa derradeiro”

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 118)

Declara que era evidente a importância do rei português em função do grande império que
governava. E pede com humildade que lance um olhar protetor para a obra épica que ele não
escreveu por interesses mesquinhos.

Camões destaca que não irá cantar as façanhas fingidas e mentirosas das epopeias
estrangeiras, mas oferecerá fatos verdadeiros.

Imagem: Shutterstock.com

O homem, um “bicho da terra tão pequeno” (Canto I)

Trata-se de um momento do Canto I em que o poeta reflete sobre a fragilidade e contingência


da vida humana na sua pequenez. Note que o poeta se faz valer de frases e vocábulos curtos
para expressar a ideia de um ser pequeno.
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 119)

Imagem: Shutterstock.com

Como se pode cantar o “louvor e a justa glória” dos heróis portugueses? (Canto V)

Essa pergunta remete a uma questão no Renascimento. Os humanistas, em Flandres e na


Itália, buscavam mecenas para o seu estatuto de doadores de glória. Os palácios, as sedes
hierárquicas da Igreja, as cortes das monarquias contratavam para os seus serviços arquitetos,
pintores, músicos e literatos. O artista se imortalizava pela sua arte; os mecenas retribuíam
com diversas e generosas formas de doações.

Em Portugal, alguns artistas ofereciam os seus préstimos e possuíam mecenas. Sabemos que
Camões nunca encontrou, em vida, quem o julgasse digno de ser um poeta sustentado por
mecenatismo. E Camões se queixa de não haver, entre os homens de poder em Portugal,
apreciadores de poesias. Inclusive chega a acusar Vasco da Gama e seus descendentes de
nunca terem apreciado a poesia épica. Mas não desiste de oferecer os seus dotes para ser um
possível poeta oficial do rei D. Sebastião.

Pera servir-vos, braço às armas feito,


Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 123)


Imagem: Shutterstock.com

A onipotência do dinheiro e os seus adoradores (Canto VIII)

Neste momento do poema, Camões critica a ganância e a atitude interesseira do Catual, que
troca Vasco da Gama por uma quantia em dinheiro. A cena serve de motivo para uma crítica à
onipotência do dinheiro.

Quanto no rico, assim como no pobre,


Pode o vil interesse e sede inimiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

(CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 125)

Imagem: Shutterstock.com

O poeta assume o papel de conselheiro (Canto X)

O poeta aconselha D. Sebastião a ser mais humano e aliviar os vassalos de “rigorosas leis”.
Aconselha a cada um ocupar sua função específica, não exercendo funções que não lhe
competem. Aconselha a fazer com que os “Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses” não olhem para
Portugal como um país inferior.
OS DEZ CANTOS DE OS LUSÍADAS E SEUS
ARGUMENTOS

O argumento de uma obra literária é um tipo de sumário do conteúdo. Vamos apresentar o


argumento de um modo prático, por meio da síntese das ações:

Imagem: Centro de renovação de arte / Wikimedia Commons / Domínio público.

 O Nascimento de Vênus, Bouguereau, 1879.

CANTO I

O poema inicia com a voz do poeta, o principal narrador de Os Lusíadas. Além dele, aparecem
outros narradores. Neste Canto, temos a proposição do poema, a invocação às ninfas do Tejo
e a dedicatória a D. Sebastião.
Segundo o modelo épico, o poema começa in media res, ou seja, em plena ação. A armada de
Vasco da Gama está a caminho de Moçambique. Com a história já iniciada, ocorre o Concílio
dos Deuses. O deus Baco se opõe à chegada de Gama ao Oriente. Baco se considera o
senhor do Oriente e não quer que o ilustre navegador diminua sua glória. Vênus, a deusa do
amor, Marte, o deus da guerra, e Mercúrio, o mensageiro, se posicionam a favor dos
portugueses. Baco incita o rei da ilha de Moçambique contra os navegantes. Vasco da Gama
segue viagem até Mombaça (Quênia).

CANTO II

Baco continua influenciando os mouros contra os portugueses. Mas estes têm Vênus
intercedendo a seu favor. A armada chega a Melinde, cujo rei pede ao Gama que lhe conte a
história do seu país.

Imagem: Uffizi / Wikimedia Commons / Domínio público

 Baco, Caravagigio, 1598.


Imagem: Museu Militar de Lisboa / Wikimedia Commons / Domínio público

 Tragédia de Inês de Castro, Columbano Bordalo Pinheiro, de 1901 a 1904.

CANTO III

Narração da história de Portugal ao rei de Melinde, indo do primeiro rei à batalha de Salado e
ao episódio de Inês de Castro.

CANTO IV

Vasco da Gama narra ao rei de Melinde da história da segunda dinastia até o início da viagem
de Vasco da Gama. Portanto, a ascensão do Mestre de Avis ao trono; os sonhos proféticos de
Dom Manuel sobre a conquista das Índias. É neste capítulo que encontramos o célebre
episódio do Velho do Restelo.
Imagem: Biblioteca do Congresso / Wikimedia Commons / Domínio público

 Vasco da Gama em pé na proa de barco a remo, Ernesto Casanova, por volta de 1880.


Imagem: João carvalho / Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0

 Adamastor, Júlio Vaz Júnior, por volta de 1927.

CANTO V

Continua a narração de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Temos o episódio do fogo de


Santelmo e o famoso episódio do gigante Adamastor. É neste canto que Camões lamenta que
os grandes navegantes não gostem de poesia.

CANTO VI

A armada parte de Melinde com um piloto que os guiará à Índia. Baco pede ajuda a Netuno
para que desencadeie uma tempestade. Vênus intervém com a ajuda das ninfas. A frota chega
a Calicute. Há outro excurso do poeta sobre os caminhos da honra e a ociosidade dos nobres.
Imagem: Biblioteca do Congresso / Wikimedia Commons / Domínio público

 Ilustração da nau de Vasco da Gama com os deuses nas nuvens, Ernesto Casanova, por
volta de 1880.


Imagem: João do Cró - Arquivo Nacional Torre do Tombo / Wikimedia Commons / Domínio
público

 Armas de Manuel I de Portugal, Livro do Armeiro-Mor, 1509.

CANTO VII

Observações sobre a política de D. Manuel. Desembarque em Calicute, entrevista com o


Samorim (rei de Calicute) e a visita do Catual (regedor) que pede a Paulo da Gama que
explique a simbologia da bandeira de Portugal. Camões queixa-se da sua vida miserável.

CANTO VIII

Paulo da Gama explica as figuras do brasão de Portugal. Baco insufla os sacerdotes


muçulmanos. Vasco da Gama é preso e resgatado a troco de mercadorias. Excurso de
Camões sobre o poder e o dinheiro.
Imagem: RickMorais / Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0

 Brasão de Armas da Casa Real de Aviz.


Imagem: Autor desconhecido / Wikimedia Commons / Domínio público

 Tétis preside o banquete para os portugueses na Ilha dos Amores, ilustração de Os


Lusíadas, edição 1880.

CANTO XIX

Os catuais procuram retardar a armada portuguesa, mas a frota parte de volta. Vênus
recompensa os feitos heroicos dos portugueses com uma ilha afrodisíaca. Os portugueses
possuem as ninfas e Vasco da Gama, Tétis, a paixão do gigante Adamastor.

CANTO X

O banquete no palácio de Tétis. Tétis apresenta a Vasco da Gama a “Máquina do Mundo”


(descrição do universo e da Terra de acordo com o sistema de Ptolomeu). Tétis mostra ao
Gama quais seriam as futuras conquistas de Portugal. Camões exorta D. Sebastião, rei de
Portugal, a ser um rei valoroso e conquistar o Marrocos.
Imagem: Loon, J. van (Johannes), ca. 1611-1686./ Wikimedia Commons / Domínio público

 Representação artística do modelo geocêntrico, de Ptolomeu (1660).


OS LUSÍADAS
No vídeo a seguir, apresentaremos os planos mitológico e histórico d’Os Lusíadas, destacando
alguns episódios, além de comentarmos aspectos formais e estilísticos da obra.

VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. LEIA A SEGUINTE ESTROFE DO EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO:

AS FILHAS DO MONDEGO A MORTE ESCURA


LONGO TEMPO CHORANDO MEMORARAM,
E, POR MEMÓRIA ETERNA, EM FONTE PURA
AS LÁGRIMAS CHORADAS TRANSFORMARAM;
O NOME LHE PUSERAM, QUE INDA DURA,
DOS AMORES DE INÊS QUE ALI PASSARAM.
VEDE QUE FRESCA FONTE REGA AS FLORES,
QUE LÁGRIMAS SÃO A ÁGUA, E O NOME AMORES

(CAMÕES APUD BENEDITO, P. 89)

ESSES VERSOS FINAIS DO EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO


CORRESPONDEM
A) à narração da morte de Inês como um acontecimento inevitável e, por isso mesmo, não
lamentado.

B) à descrição da fonte de amores, como espaço idílico e de realização dos amores


idealizados.

C) à descrição da felicidade e da paixão, misturando em um mesmo estado de espírito


aspectos épicos e líricos.

D) ao acontecimento histórico da coroação de Inês de Castro ainda em vida, pouco antes de


sua morte.

E) à alusão à fonte dos amores, espaço ligado ao lamento e sentimento trágico e de tristeza
diante da morte de Inês.

2. DE ACORDO COM A TRADIÇÃO CLÁSSICA, OS LUSÍADAS


APRESENTAM UMA AÇÃO QUE É HISTÓRICA E OUTRA QUE É
MITOLÓGICA. ASSINALE A ALTERNATIVA QUE CORRELACIONA ESSES
DOIS PLANOS DA ÉPICA CAMONIANA.

A) O plano mitológico abrange a divindade judaico-cristã, enquanto o plano histórico retoma a


fundação da nação portuguesa.

B) O plano mitológico relaciona-se com o otimismo do período do Renascimento e deuses


generosos ou vingativos, enquanto o plano histórico conta os feitos do povo lusitano.

C) O plano mitológico relaciona-se com a transposição dos deuses gregos para o cenário
ibérico, enquanto o plano histórico apresenta guerreiros do mundo clássico greco-latino.

D) O plano mitológico incorpora narrativas bíblicas, enquanto o plano histórico apresenta os


heróis do povo português como guerreiros.

E) O plano mitológico abrange lendas e narrativas dos povos conquistados pelos portugueses,
enquanto o plano histórico narra a viagem de Vasco da Gama.

GABARITO

1. Leia a seguinte estrofe do episódio de Inês de Castro:

As filhas do Mondego a morte escura


Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores

(CAMÕES apud BENEDITO, p. 89)

Esses versos finais do episódio de Inês de Castro correspondem

A alternativa "E " está correta.

Os versos finais do episódio de Inês de Castro apresentam o lamento do eu lírico diante da


morte trágica de Inês, tendo a margem esquerda do rio Mondego como espaço de memória e
pranto pela perda de Inês. Esse espaço é identificado com a fonte dos amores, localizada na
atual Quinta das Lágrimas, em Coimbra.

2. De acordo com a tradição Clássica, Os Lusíadas apresentam uma ação que é histórica
e outra que é mitológica. Assinale a alternativa que correlaciona esses dois planos da
épica camoniana.

A alternativa "B " está correta.

A perspectiva mitológica se conjuga com o otimismo renascentista e com as referências a


divindades antigas do mundo grego, por exemplo. O plano da histórico abrange os grandes
feitos lusitanos, apresentando a história de Vasco da Gama dentro de um todo mais amplo (que
é a história de Portugal) e que será contada ao rei de Melinde.

CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudamos dois grandes autores da literatura portuguesa, começando por Gil Vicente, autor de
aparente vocação catequética, mas que nos apresentou de uma forma muito singular
elementos que configurariam uma gramática geral do teatro europeu.

Na sequência, analisamos o caráter lírico e épico da poesia de Camões.

Procuramos situar aspectos da sofisticada lírica camoniana, frente ao dolce stil novo, e o
mundo multifacetado que nos abre Os Lusíadas, obra épica que apresenta um plano mitológico
e outro histórico, consensualmente considerada o mais importante poema português,
independentemente de qualquer circunstância estética ou histórica.

AVALIAÇÃO DO TEMA:

REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Camões: labirintos e fascínios. Lisboa: Cotovia, 1994.

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Uma versão Brasileira da Literatura Portuguesa.


Coimbra: Almedina, 1973.

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Camões, o Desconcerto do Mundo e a Estética da


Utopia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
BARRETO, Luís Filipe. Os descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural.
Lisboa: Gradiva, 1989.

BEMBO, Pietro. Prose dela volgar lingua: Gli asolani. Rima. Ed. Carlo Dionisotti. Milano: TEA,
1989.

BENEDITO, Silvério. Para uma leitura de Os Lusíadas de Luís de Camões. Lisboa: Editorial
Presença, 1997.

BERNARDES, José Augusto Cardoso. Sátira e Lirismo: modelos de síntese no teatro de Gil
Vicente. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1996.

CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976.

CAMÕES, Luís de. Lírica: redondilhas e sonetos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo:
Publifolha, 1997.

CAMÕES, L. V. de. Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão,
1978.

CAMÕES, Luís. Sonetos. [recurso eletrônico]. Jandira: Principis, 2020

FALCON, Francisco. A cultura renascentista portuguesa. In: Semear, revista da Cátedra Padre
Antônio Vieira de Estudos Portugueses, Rio de Janeiro, PUC, v. 1, 1997. Consultado na
internet em: 15 jun. 2021.

LAFER, Celso. Gil Vicente de Camões: dois estudos sobre a cultura portuguesa do século
XVI. São Paulo: Ática, 1978.

MADEIRA, José. Camões: contra a Expansão do Império. Lisboa: Fenda, 2000.

MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Humanismo (1418-1527): Gil Vicente. In: MONGELLI,
Lênia Márcia de Medeiros; MALEVAL, Maria do Amparo Tavares; VIEIRA, Yara Frateschi.
(org.). A Literatura Portuguesa em Perspectiva, v. 1. São Paulo: Atlas, 1992.

MARNOTO, Rita. A figura feminina petrarquista, entre imitação e transformação. In:


BORGES, M. J. et al. Lírica Camoniana: estudos diversos. Lisboa: Cosmos, 1996.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1970.

PETRARCA. O cancioneiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

RÉVAH, Israël Salvator. Recherches sur les oeuvres de Gil Vicente. Lisboa: Institut Français
du Portugal, 1970.
SARAIVA, António José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. Sintra: Europa-América,
1942.

SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17. ed. Lisboa:
Porto Editora, 2005.

SARAIVA, José Hermano. Vida ignorada de Camões: uma história que o tempo censurou.
Sintra: Europa-América, 1994.

EXPLORE+

Leia a obra Os Lusíadas em versão digital gratuitamente na Internet acessando o portal


Domínio Público ou o site Os Lusíadas.

Leia os poemas de Camões no portal Domínio Público ou no site Escritas.

Confira as obras teatrais de Gil Vicente disponibilizadas no portal Domínio Público.

Confira a estética renascentista apreciando as obras dos pintores renascentistas Nicolas


Poussin, Sandro Botticelli e Michelangelo.

Assista ao vídeo Literatura Fundamental 33 - Os Lusíadas - Alcir Pécora, disponível no


canal da UNIVESP, no Youtube.

NOTA: AUTOR DESCONHECIDO


Está reservado ao autor o direito de se manifestar.

CONTEUDISTA
Mário Bruno

 CURRÍCULO LATTES

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