Poemas de Gil Guimarães

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Peregrinação interior

Venha

Faça um ninho

No oco do meu ser.

Eu te mostro o caminho,

Eu te empresto a escada.

Sobe nestes versinhos,

Que são os degraus

Que dão acesso ao sótão da minha alma.

Leia-os e faça em mim morada

Ou, quiçá, uma simples visita inesperada!

E se não me achar em casa,

Espere um pouquinho na porta,

É que eu fui ali à casa do vizinho.

Às vezes me canso de ser sozinho

E ando por aí a vagar

À procura de um ninho.
Desencontro

Sou deserto.

Eis a única coisa de que estou certo.

E neste deserto que sou, perco-me,

Passo fome, sede, medo e sono.

Sou só.

Não sou sequer um andarilho perdido,

Um eremita buscando pistas

Onde o vento apagou os vestígios,

Não sou sequer este eremita

Na esperança de um oásis,

Peregrinando sobre o solo árido

E sem pegadas.

Não sou sequer este eremita

Em busca de saída,

Sou o próprio deserto:

Exposto

Às intempéries da vida.
Coração partido
(O paradoxo final)

ESTES, garanto,

SÃO os

MEUS últimos

GRANDES versos

FEITOS sobre

A tristeza:

MANEIRA de

PESSOA viver

FELIZ...
As Sombras

O sol nunca bateu na janela do seu quarto,

Por isso – certamente – é que ele sempre

Escreveu das sombras.

As sombras assombram os que

Sobram no sol...

As sombras assombram os que

Sombras não são...

Os que, por fim, sobram nas sombras

Não se assombram com trevas,

Pois de dentro da noite turva

Não podem ver

Que as sombras em que estão imersos

São apenas sombras (em versos)

Do que de fato assombra! (no universo)


Lânguido olhar

Crianças brincam alegremente à sombra dos juazeiros

O vento decola seus frágeis cabelos

A música toca ao longe e chega em lacunas de ondas fragmentadas.

E ele observa tudo em volta, melancolicamente.

A manhã lhe parece docemente triste,

Contudo, a manhã não é triste nem alegre,

Triste mesmo é o seu lânguido olhar.


A laranja

Ele espreme

Sua casca grossa

E ao invés

De um doce poema

Sai um suco amargo

Com gosto azedo no tema

Que trava a garganta

Do leitor não afeito à acidez da vida.


Estrambote do amor

Nas horas mortas da taciturna noite,

Do além, fantasmas ver-me vieram.

Delírios e febre sei que não eram

Pois do sono saí com violento açoite!

Gritos! Silêncio... Terror e mistério.

Medo e espasmos senti naquela hora

Fúnebre, macabra, em que do cemitério

Um sentimento claudicante foi embora

E quis no meu peito achar morada.

Eu, debalde, roguei-lhe que desse o fora,

Mas ele atrevido fez ali sua parada.

Assustado e trêmulo, com temor perguntei:

“Quem é o fantasma que me causa pavor?”

Uma voz ébria e nefasta respondeu-me:

“Sou eu, o amor, não me temas senhor!”


A profecia

Chegará o dia em que as palavras cessarão

A despeito do nosso vocabulário vastíssimo,

E não obstante nossa grande eloquência,

Só o silêncio aterrador terá voz.

Nesse dia, todos os alicerces

Que sempre sustentaram nossa altivez

Serão retirados de debaixo dos nossos pés.

Todos os nossos conceitos serão empalidecidos

Ao se revelarem inúteis.

Todo o nosso conhecimento será reduzido a nada

Porque a luz brilhará tão forte e tão perto

De nossos olhos,

A ponto de manifestar a todos nossa cegueira irremediável,

A ponto de consumir em seu imensurável fulgor

Toda a nossa insana estupidez!


A poesia

Grande labirinto intrinsecamente perigoso

No qual se perde para se encontrar o poeta,

E neste sofrimento, desesperadamente maravilhoso,

O fio milagroso que o guia e liberta

E lhe leva ante a face de si mesmo

É sobre si e tudo a fome de sentido eterna

Que o faz livrar-se do solitário ermo

De sua própria e estranha caverna.

Neste múltiplo e complexo universo,

Tímidas, secretas, cortantes, agudas

E ferozes palavras formam o verso

Que em conjunto forma o poema

Que logo informa o contexto

Que forma o poeta e o seu texto.


Sujeito oculto

Talvez sejamos todos

Sinônimos

De heterônimos

Imperfeitos,

Ou quiçá,

Antônimos perfeitos

De nós mesmos!

Indeterminados sujeitos,

Sem núcleo,

Sem jeito, sem ação...

Sujeito inexistente na oração

Ou talvez,

Sujeito oculto

Do nosso próprio coração.


Existencialismo
A Joelma Guimarães.

O homem: “um ser para a morte”.

Consciente que é de sua sina;

De que sua vida começa e logo termina

Resta-lhe, pois, dar sentido à sua sorte.

A busca de sentido constitui o sentido

Da existência humana. A passagem

Do homem neste mundo dá-lhe a vantagem

Sobre os outros animais, de ser ele convencido

De sua (in)capacidade de encontrar sentido

E assim, consciente de sua brevidade e finitude

O homem busca na arte, na política, na virtude,

O sentido, que eu também tenho perseguido.

O sentido que em nada disto tenho visto

Senão em amar, seguir e imitar a Cristo.


V

Nordestino:

Um destemido andarilho, numa estrada longa e oblíqua.

Partindo da esperança

Tendo o desconhecido por destino final.

Uma andança movida pela fé e pela vontade de viver.

São tantas veredas nesse imenso sertão,

Tão inóspitos os recônditos dessa caatinga,

De maneira que sobreviver a essa jornada

É tarefa difícil em demasia,

Só quem faz angu de dor e alegria,

Farofa seca da própria cinza

É forte o suficiente

Para enfrentar a caatinga!


VI

Ah sol escaldante do Sertão

Penetra-me n’alma

(que não rima com calma)

E acalma o meu coração

Dividido pelas rachaduras

Deste chão, árido, imenso.

Ah, céu do sertão

lava minh’alma

(que não rima com calma)

Sacia minha sede desconhecida,

Sede inexplicável de vida,

Pois nem as muitas águas do São Francisco

Poderiam saciá-la.

Ah, como resseca o riacho da alma

Essa sede de sentido, eterna...


IX

Mais do que a morte

É forte

Essa gente nordestina.

Essa gente entranhada na vida

Feito pedra na chapada diamantina

É um tipo de brava orquídea

Que floresce no tronco da umburana.

Nessa natural antítese

Erguem-se as colunas do jirau

Que dão sustentação à sua teia existencial.

Numa ponta a estaca da fé,

Na outra extremidade, a dor como pilastra

Amarrada à viga da esperança.

Assim, essa tesoura entrelaça

A dor e a beleza

Na mesma construção.

E é só por causa disso

Que essa gente peregrina

Suporta a procissão:

Porque, no interior do peito

Em vez de coração,

Possui o solo seco

Do resistente sertão.
XIV

As veredas ignotas dessa vida se intercruzam

Nas longas unhas da caatinga,

Na transparência desse mundo cinza

Revela-se a surpreendente beleza de uma flor silvestre.

Nas rachaduras que se bifurcam e se ramificam,


feito os caminhos que descem como raio na palma da minha mão,

Enxerga-se o perigo e a complexidade de caminhar

Sobre o solo imprevisível do sertão.

A solidão é companheira inevitável do transeunte desse chão.

Perder-se é iminente,

Os encontros, inerentes a quem percorre

Essas trilhas imbricadas de incertezas.

É melhor, contudo, aventurar-se na dura jornada,

Às vezes quase insuportável,

Conquanto impregnada de estonteante beleza,

Do que amuar na ribanceira do futuro

Ou refugar nas contingentes veredas...


Amor subliminar

Como a aurora que sutilmente penetra a superfície de uma manhã

Ou como o crepúsculo que se funde às densas sombras de uma noite

Sem que nos demos conta,

Assim como o voo estático de um beija-flor

Que não beija a flor –

E nem por isso deixa essa cena

De ter momentaneamente

A beleza das coisas eternas –

Assim foi o nosso amor:

De um lado, uma flor implorando um beijo

Do outro, um beija-flor voando parado.


II

Nosso amor foi uma história construída

Por não-ditos

E intensões subliminares.

Foi uma carta escrita e jamais enviada,

Sentidos forjados nas entrelinhas,

Saudades de tudo que não foi nem seria vivido,

Idiossincrasias de almas convergentes

E caminhos incompatíveis.

Nosso amor foi uma noite que jamais terminou,

Uma manhã que nunca desabrocharia.

Uma narrativa feita de olhares e silêncios,

De alguns poucos gestos e muitos calafrios

De sonhos acordados, de impossibilidades...

Nunca um beijo, jamais um toque,

Afora isso, toda paixão e desejo

Que caibam em dois corações.


À Procura

Encontra-se

No final desta procura

Os braços acre-doces

Da amargura.

Neste poema da inquietação etérea

O sentido é o fim pretendido da matéria

E nesta sede fulcral de transcendência,

Nesta visceral sintaxe da existência

O verbo viver

Há de sempre rimar

Com a inóspita e permanente tarefa de buscar...

O verbo querer será

Sinônimo de continuar

E este, objeto direto

De amar:

Por sua vez,

Oração principal

Na gramática existencial

Deste ser vivente,

Cuja desventura

Consiste, pura e simplesmente,

Em viver à procura

Das coisas e das gentes.


Uma casinha qualquer
A Jesser Oliveira.

Sobre a aridez desse insano solo

E sob a liquidez desse extremo céu

Ergo-me como uma canção escrita no silêncio...

O meu interior sombrio

É cheio de vazios e de sonhos invisíveis.

Nutro ilusões calculadas,

Hoje, abrigo escombros de esperanças despedaçadas.

Sou pouco habitada. Em que pese a contenção de gestos e falas,

Aqui dentro, o sertão expande-se com voracidade

Muito mais longo e mais fundo

Do que os ares translúcidos de fora.

Sou uma casinha qualquer

A ouvir o soluçar do vento no chão,

A ecoar a música da solidão.

Sobre o meu telhado ouço passos...

É a incerteza do mundo a caminhar

Por entre cacos, na tentativa de se equilibrar...


VII

Há quem pense

(E eu quem o diga)

Que a imensidão do universo

Cabe num buraco de formiga.

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