Poemas XV
Poemas XV
Poemas XV
PASSOS DA CRUZ
I
Esqueo-me das horas transviadas...
O Outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em dio nsia
Pe dias de ilhas vistas do convs
No meu cansao perdido entre os gelos,
E a cor do Outono um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonncia...
Esqueo-me das horas transviadas...
O Outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em dio nsia
Pe dias de ilhas vistas do convs
No meu cansao perdido entre os gelos,
E a cor do Outono um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonncia...
II
H um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efmera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
III
Adagas cujas jias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convs sem ningum cheio de malas...
O ntimo silncio das opalas
Conduz orientes at jias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de cio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo s pelo cessar das lanas
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovao, e erguem as crianas...
Mas no teclado as tuas mos pararam
E indefinidamente repousaram...
IV
tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mos!,
E, beijando-o, descesse pelos desvos
Do sonho, at que enfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra reis cristos
Ajoelhando, inimigos e irmos,
Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...
Caverna em estalactites o teu gesto...
No poder eu prend-lo, fazer mais
Que v-lo e que perd-lo!... E o sonho o resto...
VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, no Boabdil,
Mas o seu mero ltimo olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial
Do que j na distncia de mim vi...
Eu prprio sou aquilo que perdi...
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glria marginal
Os girassis do imprio que morri...
VII
Fosse eu apenas, no sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu doirado assomo...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de no pertencer
Meu intuito gloriola com ter
A rvore do meu uso o nico pomo...
VIII
Ignorado ficasse o meu destino
Entre plios (e a ponte sempre vista),
E anel concluso a chispas de ametista
A frase falha do meu pstumo hino...
Florescesse em meu glabro desatino
O himeneu das escadas da conquista
Cuja preguia, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino...
Meus cios ricos assim fossem, vilas
Pelo campo romano, e a toga traa
No meu soslaio annimas (desgraa
A vida) curvas sob mos intranquilas...
E tudo sem Clepatra teria
Findado perto de onde raia o dia...
IX
Meu corao um prtico partido
Dando excessivamente sobre o mar
Vejo em minha alma as velas vs passar
E cada vela passa num sentido.
Um soslaio de sombras e rudo
Na transparente solido do ar
Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados cus o prtico ido...
E em palmares de Antilhas entrevistas
Atravs de, com mos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,
Imperfeito o sabor de compensando
O grande espao entre os trofus alados
Ao centro do triunfo em rudo e bando...
XI
No sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mo colora algum em mim.
Pus a alma no nexo de perd-la
E o meu princpio floresceu em Fim.
Que importa o tdio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruncia da alma que se vela
Com os sonhados plios de cetim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma um arco tendo ao fundo o mar...
O tdio? A mgoa? A vida? O sonho? Deixa-se...
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo comeado
Pestaneja no campo abandonado...
XII
Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeio.
Seguia-a, como um gesto de perdo,
O seu rebanho, a saudade minha...
Em longes terras hs-de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vo...
Seu vulto perde-se na escurido...
S sua sombra ante meus ps caminha...
Deus te d lrios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
XIII
Emissrio de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instrues de alm,
E as bruscas frases que aos meus lbios vm
Soam-me a um outro e anmalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a misso que o meu ser tem,
E a glria do meu Rei d-me o desdm
Por este humano povo entre quem lido...
No sei se existe o Rei que me mandou.
Minha misso ser eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas h! Eu sinto-me altas tradies
De antes de tempo e espao e vida e ser...
J viram Deus as minhas sensaes...
XIV
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vos olhares
Se admiraram), para alm dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tdio nasce
Parou... Apareceu j sem disfarce
De msica longnqua, asas nos ares,
O mistrio silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longnqua s existe
Para haver nela um silncio em descida
Para o mistrio, silncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde h a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
JORGE DE LIMA
O GRANDE DESASTRE AREO DE ONTEM
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraado com a hlice. E o violinista
em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivrius. H mos e
pernas de danarinas arremessadas na exploso. Corpos irreconhecveis identificados pelo Grande
Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos
poetas mrtires. Vejo a nadadora belssima, no seu ltimo salto de banhista, mais rpida porque vem sem
vida. Vejo trs meninas caindo rpidas, enfunadas, como se danassem ainda. E vejo a louca abraada ao
ramalhete de rosas que ela pensou ser o pra-quedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas
riscando o cu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos
pobres mortos. Presumo que a moa adormecida na cabine ainda vem dormindo, to tranqila e cega!
amigos, o paraltico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do
vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E h poetas mopes que pensam que o arrebol.
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III.
H necessidade de tua vinda, Mira-Celi:
Milhares de ventres virginais te esperam
atravs de sculos e sculos de insnia!
Basta de entremostrares:
Ns j te pressentimos demais
em certos momentos de mistrio
ou sob algumas aparncias obscuras.
H lbios entreabertos esperando:
Sos os meus irmos,
a quem anunciei que tu virias.
H palavras de fogo, semi-apagadas;
h janelas desertas, j fechadas;
h ausncias inexplicveis, gestos mortos;
h lagos estagnados sob grifos de luto.
Quando vieres, as rvores ocas daro flores,
e teu esplendor acender pela noite dormente
os olhos entreabertos dos semblantes amados.
IV.
Os grandes poemas ainda permanecem inditos,
e as grandes palavras dormem nas lnguas secas.
Foram ouvidas apenas alguma lamentaes;
mas precisamos de blasfmias que estremeam o Cristo,
e de delrios da mais incruenta febre
ou ento de gestos humildes que arranquem uma clemncia dEle.
AS PESSOAS DE MIRA-CELI
25.
O av tinha sido um ancio convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a av uma menina plida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Da a mo dobra a pgina do livro,
e a histria da tetraneta finda com uma estocada no ventre:
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39.
Em nome de Mira-Celi,
levantai-vos, soldados cados para sempre na luta, desde Abel at hoje.
No deveis quedar-vos entre os humos das mesopotmias,
tempo de despertardes,
de acordar-vos de vosso sono milenar nos outeiros sagrados!
Em nome de Mira-Celi, acordai, soldados cados nas guerras:
tempo de abandonardes estes imensos campos cobertos de cruzes
ou as valas annimas em que misturai vossos ossos;
tempo de afastar os eternos gelos em que haveis mergulhado lutando;
tempo de estraalhar brancas mortalhas de neve
em que aliviais as queimaduras da plvora;
os vossos cavalos cegos ou mutilados vm alta noite relinchar dentro das ventanias;
acalmai vossos corcis;
vinde com eles, que tempo de despertar.
Em nome de Mira-Celi, regressai, soldados desaparecidos nos xodos
ou refugiados na morte, aviltados pelas deseres, fuzilados como traidores ou espies;
tempo de levantar vossas frontes enegrecidas;
regressai, soldados covardes ou fugitivos
ou de peitos arrombados pelas metralhas
ou enforcados, ou martirizados ou arremessados de avies e de pra-quedas;
tempo de despertar do solo de vossas ptrias,
soldados que haveis tombados em milhares de guerras
que a memria do homem esqueceu,
ou das guerras que a histria no registrou,
ou que nunca forma encontrados no mar,
ou desapareceram na voragem dos bombardeios,
soldados desmemoriados, loucos ou conscientes que abenoaram ou amaldioaram a guerra,
soldados que vos suicidastes, tempo de desertar.
Em nome de Mira-Celi, vinde, soldados tombados em todas as guerras!
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tempo de desertar!
E com a fora dos milhes e milhes que representais,
arrasar na superfcie da terra ou no ar
ou no fogo ou na gua aquilo que preciso arrasar.
6.
Quando te aproximas do mundo, Mira-Celi,
sinto a sara de Deus arder, em crculo, sobre mim:
Ento mil demnios nmades fogem nos ltimos barcos.
E as planuras desertas se ondulam volutuosas.
Quando, porm, te afastas, os homens se combatem entre ranger de dentes;
a vida se torna um museu de pssaros empalhados
e de coraes estanques dentro de vitrinas poentas;
infelizes crianas que nasceram em bordis, escondem-se atrs dos mveis,
com medo dos homens bbados;
paira no ar um cheiro de mulher recm-poluda;
passam aviadores desmemoriados em cadeiras de rodas;
vem-se tanques transformados em gaiolas de pssaros;
e submarinas apodrecendo em salmora de suor;
organizam-se maratonas de hemipgicos;
nas praas pblicas exibem-se claunes paralticos;
caftens de borboletas fogem para os abrigos;
e as sirenes anunciam que os lobos fugiram das estepes para os coraes:
e mesmo aqueles que aprenderam as oraes da infncia
no ouvem mais o ressonar de Deus.
7.
O Imprio de Mira-Celi contm alguns milhares de reinos.
Ela com os dedos entrelaados abarca a esfera ao meio;
e de ponta a ponta os mares e as cordilheiras
prestam obedincia ao seu mundo,
que comea onde o dedo mnimo da deusa
toca a mais nfima de suas constelaes.
Nesse imenso anfiteatro
assenta o Imprio de Mira-Celi, centro de novas rbitas.
Da linha do horizonte nasce para ser ouvida a voz que, depois do dilvio,
recomenda a paz entre os homens.
O roteiro dos descobridores deixa de ser pelas ndias
ou e pelos cabos povoados de gentios ou de monstros.
Os poetas assinalados dominam as hostes dos rgulos e dos ditadores.
No existem espritos de colorao desigual,
nem geografias que possuam direitos sobre demais geografias.
O mais annimo ser recebe por inoculao misteriosa
uma tnica, repercutida dentro de cada esprito, como um acorde de harpa.
Mira-Celi mandou construir caravelas;
deu um mar a cada poeta;
mandou gravar em cada pala de blusa um cavalo marinho.
Estai alerta, que Mira-Celi aparece para combater
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8.
Acontece muitas vezes que a velha terra fendida de sepulturas
a uma hora misteriosa e propcia
se transforma em um imenso rebanho de montes e de colinas;
e a rocha abrupta vista no horizonte entrega-se, doce, s nuvens;
e as guas livres que h milhares de anos viviam aprisionadas dentro de gelos eternos,
correm em forma de rio:
acontece, amiga, que nesta hora propcia
as rvores atraem numerosos pssaros,
e os coqueirais movem-se como tentculos,
e os penedos marinhos arrastam-se, vivos, sobre os bancos de areia;
acontece tambm que os parques parecem milhes de braos agitando-se em adeuses, porque
precisamente no ocaso que essa hora se d.,
Esta hora em que todos nos encontramos nas curvas das espirais,
e os desejos ficam intumescidos em abbadas;
ento os vastos anis nupciais, que circundam as coisas,
unem-se em unnimes estrelas armilares;
acontece, amiga, que nesta hora podeis ver Mira-Celi dentro de vosso olhar.
11.
Em tua constelao, vrias de tuas irms no existem mais,
(melhor fora que nunca houvessem nascido)
desertaram de teus outonos, Mira-Celi;
despenharam-se nos abismos celestes
procura de algum sol secundrio
ou compem as tenazes e a cauda do escorpio.
S tu permaneces dormindo,
intacta e incorrutvel sob o hlito de Deus:
s tu permaneces ainda mida,
e apenas estremeces para a glria dos homens.
S tu no foste transformada em serpente;
nem picaste rion
nem geraste os dez gmeos de fogo
que comandam as guerras.
Apenas os teus sonhos nos povoaram de poesia,
e o teu ressonar a nossa terrena msica.
Alta noite despertas, doce Musa sonmbula,
readormeces depois: explodem dios no mundo,
grandes flores carnvoras brotam de plo a plo,
rios de sangue descem das rbitas esvaziadas.
preciso que acordes, grande Musa esperada,
e desas aos nossos ares,
para que o homem volte a contemplar-te, mudo,
pelo cair das tardes.
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12.
Estai alerta: de sbito ela se tornar visvel.
Estai, portanto, desde o amanhecer do dia.
Mira-Celi que vem para viver conosco!
Navegantes julgaro estar vendo um navio fantasma,
enquanto as donzelas sonharo com seus gmeos futuros,
e os pastores com seu cordeiro desaparecido.
Mas apenas Mira-Celi que se torna visvel.
Se tendes mos azinhavradas, no a vereis jamais.
Se vossa mente possui alguma sinistra idia,
no a vereis jamais.
Se vosso dorso se inclinou a um tirano qualquer,
ficareis cegos de nascena.
Porque Mira-Celi nunca se mostrar,
enquanto divisar manchas em nossa terra.
Quando ouvirdes ento um rumor desusado, vindo do fim do mundo,
sabereis que os falsos deuses comearam a tremer.
Mira-Celi vem vindo sobre as guas, no ar.
Os lbios de Mira-Celi tocaro vossos lbios.
Ficareis em eclipse entre Mira-Celi e o mar!
14.
O fogo celeste queima-te o paladar;
a tua lngua descama-se em folhas secas;
tua pobre capa de viagem cobre-te o corao,
enquanto cinges tua fronte com a neblina da noite
para que no te esbofeteiem.
Em plena luz do dia tentam exterminar-te,
mesmo que no ostentes tua presena mgica:
pressente-te no ar, no fogo, na gua e na terra.
O teu prprio sangue te desconhece: j no podes pernoitar em casa;
clamas tua prole:
Por que me abandonastes, meus filhos?
E teus filhos e tua mulher e teu melhor amigo
e os filhos incubados, que no ventre de tua companheira respiram o hlito do limbo, te repudiam.
Na verdade, te tornaste to diferente, retirando as escamas de tua face,
que te transformastes nos primitivos peixes.
As cidades populosas esto desertas ante teus olhos,
e andas pelas ruas olhando as janelas como um insensato.
Agora os becos te circundam
e o prprio ar de Deus comprime teu hlito morto:
Por que no morri no ventre de minha me?
Senhor, apagai dos tempos decorridos o minuto em que vim luz,
o segundo em que imaginaste a essncia que eu sou;
retroagi vossa criao at a minha ausncia;
deixai-me descansar entre os abortos do mundo.
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16.
Quatro enormes ventanias
seguem sempre alucinadas
enterrando noite e dia
comandantes e soldados.
Quatro enormes ventanias
roem o bronze das esttuas,
comem todos os vestgios
dos bares assinalados.
face da terra estril
fogem poeiras agoniadas:
restos dos grandes imprios
histria e nome apagados.
Agora baixam do cu
quatro arcanjos operrios:
afogam num charco abjeto
mil fabricantes de armas,
mil forjadores de guerra.
Depois nada? quase nada:
bichos soturnos boiando
sobre o mar estagnado,
um mar sem curvas de ondas.
E depois? depois vem tontos
Lucfugo e Astorot
matando os outros demnios
se entredevorando ferozes.
Mas nada disso consegue
deter a rota perene,
milnio sobre milnio
do ciclo de Mira-Celi.
19.
s vezes nos acabrunha a reminiscncia
de vrios crimes, como a recusa do estado de criaturas,
e de uma srie de profanaes cometidas depois da Queda.
Vezes inmeras, ensangentamos o jogo da Criao;
mas assistimos a, tambm vezes inmeras,
grandes poemas se levantarem da terra.
Nascem pelos secretos de nossos membros,
possumos reminiscncias de asas
e a noo instintiva da direo para o alto;
mas nos perdemos freqentemente como vagabundos cegos:
o nosso caminho no sempre uma subida constante
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23.
Duas de suas irms so inteiramente loucas,
outras trs ainda no nasceram neste parque do cu.
Na longnqua e misteriosa luz vejo apenas seus braos,
e nas noites serenas os olhos desta extraordinria estrela.
Uma das minhas solides repousam no lcteo mar de seu ventre;
mas os olhos dos pastores e dos nautas sempre se alimentam dela.
Bem sei que os Ptolomeus a quiseram prostituir;
preferiu entregar-se s serpentes sagradas
a ser uma constelao intil.
Ela queria a vida eterna, meu Deus!
Em determinados ocasos eis que se muda em navio,
em cabeleira ou em Oflia:
penso que me vai trair ou enlouquecer
ou que est representando neste vasto teatro.
Na verdade apenas uma constelao crist
formada nos primeiros dias,
coma aparncia de cisne, de chama ou de duna
em que se ostenta um de meus horizontes.
Ela aspira vida eterna, meu Deus!
Se a tiveres de transformar,
transforma-a em guia ou em prola de teu manto
ou em poeira para teus ps!
Se a queres extinguir, adormece-a primeiro,
para que o reflexo de seu cadver sempre ilumine a terra.
Se a queres mudar de posio,
aproxima-a de meus lbios.
Se a queres possuir, nada te posso negar.
Porm ela aspira vida eterna, meu Deus!
Sei que no compreendo tuas experincias;
mas, se a quiseres apagar,
podes muito bem apagar os meus olhos,
decepar minha cabea ou transformar-me, simplesmente num corvo.
Mas nunca no teu esquecimento, sempre na tua memria,
na tua viso, no teu pensamento!
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AS PESSOAS DE MIRA-CELI
24.
Roselis uma que se livrou do exlio entre os mercenrios
e tem os clios embebidos do mais puro ungento.
No seu olhar h indcios de grandes poemas
e em seus quatorze anos ela uma promessa de carne e de luz.
Em sua permanncia entre srdidos escravocratas
conseguiu deixar intacto esse orvalho divino
que lhe cobriu os seios, quando era menina;
e h no seu olhar certo orgulho inocente,
como o orgulho da noite iluminada de estrelas.
Roselis liberta ofereceu-se para constituir-se em marco,
de uma laguna estelar,
porque ela meio ondina at o ventre ou pouco acima
O certo que vo renascer nos seus peitos de neve
dois gmeos, ou dois cisnes, ou dois diapases de bronze
que acordaro o mundo para encher-se de poetas.
Roselis, a salva dos escravocratas conseguiu ficar selada
entre os aoites e as lanas, entre os unicrnios e as lufadas.
O corpo de Roselis pode vingar-se como a bola de neve
que rolar sobre lobos famintos.
Mas prefere dissolver-se em neblina
e umedecer as plpebras os poetas tristes.
32.
Agora Lis descansa onde?
Em que manso descansa Lis?
Pensas que Lis morreu talvez.
Que algum tirano ou monstro a esconde
nalgum pas que no conheceis
ou que eu mesmo nunca vi.
Lis no se foi para nenhuma
gente maldita ou plaga obscura,
onde no haja poesia.
Livre de sombras e de brumas
Lis ressurgiu sempre mais pura,
como as estrelas alvadias.
Em tua vida que que esperas
se no te espera outra vida?
s como um sopro num deserto:
sobre o areal te dilaceras,
gritas, debalde, sem guarida:
ningum, ningum passar perto.
Lis te dar itinerrio,
18
33.
Vim para dar-te notcias deste mundo, sombra amiga, e eis que meus companheiros se deitam e se
levantam ensangentados como o sol. J no acertam chamar-te com teu nome terrestre, pois seus lbios
esto mais lvidos que o sangue dos mortos.
Corre entre o ar e o homem uma cantiga urdida de sortilgios: em cada coisa vivente a destruio
comeou.
Vim para dar-te notcias, e eis que minha voz reboa com tais dimenses desconhecidas que me parece
um pssaro de espanto.
Murmuro tua elegia, nesta aba de deserto; mas o eco total do mundo me estremece.
Pende teu ouvido para que eu nele me infunda e te diga: Intercede para que renasam as memrias
abolidas dos itinerrios de ascenso.
No h maior castigo do que a dvida de possuir-me um corao mortal em holocausto sanha dos
irmos.
Nem pena mais funda que essa de nos sentirmos mais trevosos do que as razes.
Pende mais o ouvido: Estamos confundindo o medo com a humildade ou mesmo com o frio deste
inverno perene.
Quero chamar-te por teu nome terrestre e o esqueci.
As poderosas naes trituram o hlito entre os dentes.
Vozes vindas de rasgados confins comearam a imprecar desde ontem.
Quero chamar-te por teu nome terrestre, e o esqueci.
47.
Mira-Celi, tua presena vai-se desvanecer nos derradeiros limites de tua revelao:
teus lbios despediro a pomba mensageira dos descobrimentos;
teus dedos no mais invertero a ampulheta das renovaes.
Teus ps no se adiantaro aos cursos dos grandes rios.
Empalidecero tuas mos impberes sobre os lbios
que iro marcando os rastros das resignaes pstumas;
a teus ps te procuraro os sinos desterrados pela tua viso proftica.
Bem sei que tua presena circunda de vigilncias meu presumido orgulho.
Ah! que onda celeste ressonar junto minha sombra?
Quando isto se der, no poderei mover-me nem deixar-te.
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LIVRO DE SONETOS
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22
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FUNDAO DA ILHA
III
E depois das infensas geografias
e do vento indo e vindo nos rosais
e das pedras dormidas e das ramas
e das aves nos ninhos intencionais
e dos sumos maduros e das chuvas
e das coisas contidas nessas coisas
refletidas nas faces dos espelhos
sete vezes por sete renegados,
reinventamos o mar com seus colombos,
e columbas revoando sobre as ondas,
e as ondas envolvendo o peixe, e o peixe
( misterioso ser assinalado),
com linguagem dos livros ignorada;
reinventamos o mar para essa ilha
que possui cabos-no a ser dobrados
e terras e brasis com boa aguada
para as naves que vo para o oriente.
E demos esse mar s travessias
e aos mapas-mndi sempre inacabados;
e criamos o convs e o marinheiro
e em torno ao marinheiro a lenda esquiva
que ele quer povoar com seus selvagens.
Empreendemos com a ajuda dos acasos
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V
Os viventes de lnguas estendidas
vinham depois com moscas e escorpies;
e geraes de pulgas e de ratos
surgiam no final de cada amor.
Trouxeram-lhe uma cana e um manto sujo,
e o horrendo grito e a esponja de vinagre,
lanas rasteiras, cravos e martelos.
Nesse espelho mirou-se: era vernica.
Chorou de si. O sangue despoliu-o:
era um caixilho ausente sem artrias;
cuspiu-se sobre os olhos que assistiram,
gritou-se sem ouvir-se se existia.
Os infernos reais, para ele ver-se,
to invisveis, to justos, ecoaram;
mirou-se, remirou-se: eternidade;
contemplou-se afinal: era um ser cego.
J renasciam vozes nesses ares,
vozes de treva que eram de socorro,
vozes de nos que vinham sobre os lbios
injuri-los, negar-lhes as palavras.
Foi hoje a migrao, hoje as trombetas,
hoje os despenhos, hoje as gargalhadas,
as gargalhadas, as gargalhadas!
28
VI
Nem as boninas e as outras flores nem
a mais humilde relva, e os ventos,
nada participava da quietude
absoluta, absoluta, eternamente
absoluta daquela pedra de
tumba, compacta, lisa, desprezada.
Nem ningum se lembra da criatura
e de seus sofrimentos e de sua
atormentada vida ali deixada.
Nem tristeza talvez nem alegria,
no mais perpassam sobre a sua face
parada, indiferente mesmo morte
que ele encerrou em treva, e esquecimento,
e o prprio esquecimento abandonou.
VII
Quando cessou o simum, ali surgiu o mar morto,
morto por exploso, sim, morto e em estupor fundo,
o bafo um ar de tumba, o cu sem luz, soturno, oco,
oco pela exploso que o consumiu, varreu-o para
sempre, de qualquer som, pois esse cu jejuno
e to-somente zona obscura como um borro dbio,
como um borro insano, incorporado medula
do mar morto, sim, morto e para sempre morto, morto.
gua funda, gua s inconstil nu s sal fora
ele; e agora estupor cevando o cu de tumba e ermo,
estancado e sem cor, so ambos defuntos amplos,
jungidos num horizonte exangue, iguala um fio cinza
como a cinza do oceano ou a cinza igual desses peixes,
goras uns pobres nus sem escamas e sem sangue,
j no conseguem mais alongar-se em cardumes,
esquecem-se do oceano e da vida que era o oceano
agora morto, sim como um ser contemporneo,
sem pureza xavante, irmo desse cu inane,
igual a um mar sem onda, um bronco e escuro oceano
dormindo em si, hediondo e morto como um eflvio
espontneo que vai recomear um outro mundo
consignado ao inferno, e to morto como o inferno
vivo, mas estanca a vida em si; sem vida
para danar a vida, e como um cao sem nus
que emana como um cano esse mar ltimo, e expira
esse cu consumido em urnio e em abismo
semelhante a esse mar, s noite e s negao,
sonegao da luz de deus, nem cinza, nem mesmo
antevendo o suicdio da vida pior que a morte.
29
IX
Morus utpico, querido amigo,
aps Maro acendeu luz amorosa;
e para continuar esse estro antigo,
a glosa nasce, surge a vossa glosa.
Em urnio se queima o velho abrigo
sem picos vai nascer a nova rosa.
Despovoou-se a ilha, o campo vil mendigo:
quantas guerras na paz dificultosa!
Quantas desgraas no ouro e no suor,
lutos nas vidas, prantos na cano,
dios nos sangues, dores no redor!
H um martelo que bate num caixo
e outro que bate numa porta santa.
Morus e Maro! E h uma voz que canta!
XI
Um momento h na vida, de hora nula,
em que o poema v tudo, viu, ver;
e a si mesmo, na cera em que se anula,
sob o fogo dos cus, consumir-se-.
H nas fomes dos tempos, uma gula,
umas vicissitudes, fados, ah!
H tempos em que o canto se modula
sob o sibilo de cassandra m.
Vejo morrer, cus, em dura lei,
meus membros, minhas vsceras, meus ossos
sob as rosas de lava que inventei.
Antes que os lbios, amanh, poema,
hirtos se calem, vossos, sero vossos,
esses cnticos de renunciao.
VIII
Vela rota no final da travessia
refletida na ltima comporta
estacando-se nesse alegre dia.
Imensa solido, cerrada porta.
E agora? Agora vs o que no via:
tua imobilidade recomposta
no primitivo barro em que jazias,
30
IX
Conta-me ainda, Musa, enquanto vindo
o calmo sopro ao lquido elemento.
No longe desse plago o tormentoso Indo.
E direita, ao nascente a conjura do vento.
Tempestades fatais esto hoje destruindo
os rosais, sem paixo. sculo famulento!
Que conjuras se vo contra os lrios urdindo?
Quem vem ao meu unindo o passo suave e lento?
Eis a clava da f com que ele se armava
solapando em redor catapultas sombrias
e as sombrias paixes de qualquer alma escrava.
Mas sempre vivero as promessas estranhas
e as palavras do cu que inda ontem lhe ouvias
silencioso atravs dessas mesmas montanhas.
I
preciso falar-se das criaturas,
verdadeiras criaturas animadas,
das vivncias totais, arbtrio e tudo,
alma, corpo funesto e essa imortal
perpetuidade alm, Deus nas alturas,
nomes de terra e nomes eternados,
anjos demnios sonhos acordados
e as profecias, frias, posses, tudo
que um poema pode ter: esse clamor,
essa indefinio, esses apelos
sonho de rei Nabucodonosor,
que depois de refeito e decifrado
a condio do bicho: carne, plos,
e sangue breve do homem desgraado.
31
XXXVII
Vinde vs das cidades para o campo
onde existe a aventura da malria.
Foi em agosto, o lago respirando
que ouvi no sangue a mais formosa ria.
E vi mais um ginete galopando
num ocaso de sangue iluminado;
era o tempo mais ouro das queimadas,
e as gergicas se enchiam de piratas.
Deram-nos tudo: frmitos e prata
e certo af de lrios encarnados.
Que madura estao provisionada!
Que lagunas noturnas sobre as frontes!
Que mos frias errando no ar parado!
Que sibilos de medos e de fontes!
XVII
E esse rebanho de bezerros, cedo
recomea constante sua estrada.
As horas moribundas j curvadas
deslizam nos ossurios. Tenho medo.
vida to confusa e to lidada,
sombra to compacta e to rochedo,
de mim que chora que que resta? Nada
e nada e nada mais do que antecedo.
Antecedo-me, esbarro-me em mim mesmo.
Filiei-me eternidade sem querer,
e agora vago como se vaga a esmo.
Verto-me em ilha, vejo-me nascer,
retiro dessa ilharga verdadeira
a minha perdio por companheira.
casas relativas, deformadas
pelos ares e gostos insalubres
ou bons. E mesmo piores. Silenciadas,
alegres, agitadas ou estpidas.
Vejo-vos em fantasmas umas vezes
e outras vos ostentais reincidentes,
que doces prostitutas pareceis
vistas assim dos becos com essas lentes.
D-se que uma mulher em negro sobre-
32
XI
Quem te fez assim soturno
quieto reino mineral,
escondido cho noturno?
Que bico ri o teu mal?
Quem antes dos sete dias
te argamassou em seu gral?
Quem te apontou para onde irias?
Quem te confiou morte e guerras?
Quem te deu ouro e agonias?
Quem em teu seio de terra
infundiu a destruio?
Quem com lavas em ti berra?
Quem te fez do cu o cho
quieto reino mineral?
Quem te ps to taciturno?
33
XXXI
Esquecidos dos donos, ns os bastos,
ns os complexos, ns os pioneiros,
ns os devastadores e assassinos,
vamos agora fabricar o ndio
com a tristeza da mata e a fuga da
maloca, com a alegria de caar.
Vamos dar-lhe pacincias de amansar
os bichos, de juntar as belas penas
razes, frutos; vamos abalar
com o cho da maloca, batucando.
Essa terra danada, D. Manuel,
de ponta aponta toda de arvoredos.
toda de arvoredos e de ar bom,
como o ar bom de Entre-Douro-e-Minho, e as guas
so muitas, infinitas, tudo dando,
Dando peixe, lavando a carne nua,
lambendo os ps da selva embaraosa,
a feio ser parda, bons narizes.
Boas vergonhas nuas, boas caras
e bons Jeans de Lery contando as coisas.
Ausentamos recalques e pudores
e colares de dentes e de contas
para atrair as musas e as mes-dgua,
e adornos para os sexos merecidos.
Nenhuma idia exata possumos
sobre origens de carnes e de sangues,
mas de mortes somente, mesmos desejos , ns indgenas,
vs indgenas, ns madeiras mesmas,
decadentes, corrodas, no pacficas.
O nosso co domstico aprendeu
a latir. Ns tambm sabemos coisas,
tatuamos ndios para que os maus gnios
de ns no se apoderem. Canibales,
canibais, urupiaras, ces e peixes,
homens fluviais, ns ndios, curiques.
Goiazis, matuins, encantada ndia,
sempre ndia ocidental, oriental ndia,
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VIII
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CANTO DA DESAPARIO
I
Aqui o fim do mundo, aqui o fim do mundo
em que at aves vm cantar para encerr-lo.
Em cada poo dorme um cadver, no fundo,
e nos vastos areais ossadas de cavalo.
Entre as aves do cu: igual carnificina:
se dormires cansado, face do deserto,
quando acordares hs de te assustar. Por certo,
corvos te espreitaro sobre cada colina.
E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que debaixo dos cus, a mais triste cano),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.
E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tang-las-s de ti , de ti mesmo, em que esto
esses corvos fatais, e esses corvos no vo.
X
Impermanncia em ti desse cristal perptuo
crescendo aqui, ardendo ali, parando estrito.
Forma de tuas mos, transcendncia e matria,
alta e dura tenso, fossilizado grito.
Forma das coisas, forma emudecida em vestes
cobrindo magos olha a forma em que me agito
e em que Deus me deixou, frente a frente daquelas
seqncias naturais: calor aps atrito.
O aspecto o desse sol visto sob a ondas
astro cozido em sal mais pequeno que a brasa
que assa o pequeno po que com fome tu rondas.
E rondado-o entrevs a forma de tua fome
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CANTO II
SUBSOLO E SUPERSOLO
XV
Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia
E a comida que acaso desejares,
e algum poema que ilumine os ares
menos que a luz mals dessa candeia.
Aqui ters o peixe desses mares
e o mais gostoso mel de toda a aldeia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia?
Como te chamas vida da outra vida,
espelho noutro espelho transmudado.
lume na minha luz anoitecida?
Sers o dia noite do outro lado
de meu ser que nas trevas se apagou?
Ou sers qualquer lume que no sou?
XXXVIII
A soberba Veneza est no meio
das guas que to baixa comeou!
Mais baixa que a cidade o mundo alheio
dos anjos que em seu bojo se abrigou,
e que informa na aterra o turvo seio
do arcanjo renegado que ainda sou.
Brao mago de gente revelada
no menos nos engenhos que em mais nada.
Que h nesse mundo possa crer
que flussem esses seres do esplendor,
e que fossem a Luz do Eterno Ser?
E seu claro desgnio mais louvado,
e seu modo de agir e de ceder?
Quem diria que esse povo to confiado
se tornasse em corruta sutileza,
em canais vomitados, veneza?
cidade de rios absintados
onde as estrelas verdes pereceram,
e as argolas dos Doges renegadas
em bssolas sem nvel se inventaram.
veneza das ilhas reinventadas
e que ilhas reinventadas corromperam,
cavalgar esses mares, que empresa?
Que pureza mais alta, que realeza!
Duvidais, senso meu, dessas traies,
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CANTO X
MISSO E PROMISSO
X
No a vaga palavra, corrutela
v, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, ale, sobre a ramada;
mas, a que a prpria flor arrebatada
pela fria dos ventos: mas aquela
cujo plen procura a chama iriada
flor de fogo a queimar-se como vela:
mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas cu, mas sempre extremos. Esta sim,
esta a flor das flores mais ardida,
esta veio do incio para o eterno,
para a rvore da vida que h em mim.
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XIX
Estavas linda Ins posta em repouso
mas aparentemente bela Ins;
pois de teus olhos lindos j no ouso
fitar o torvelinho que no vs,
o suceder dos rostos cobioso
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CANTO IX
PERMANNCIA DE INS
Estavas, linda Ins, nunca em sossego
e por isto voltaste neste poema,
louca, virgem Ins, engano cego,
multpara Ins, sutil e extrema,
ilha e mareta funda, raso pego,
Ins desconstruda, mas eurema,
chamada Ins de muitos nomes, antes,
depois, como de agora, hojes distantes.
Porm, penumbra vaga ou talvez acha
celeste consumindo-se, tambm
a prpria conceio parindo baixa
a real prole; de sbito ningum
nessas longnquas rbitas que enfaixa
com seus cabelos, ela-a-mais-de-cem,
a mais de mil, Ins amorfa e aresta,
Ins a s, mas logo a sempre festa.
Ins que fulge quando o dia brilha
ou se acinzenta quando o ocaso avana,
rainha negra, me e branca filha,
entre arcanjos do cu etrea dana,
e nos dias dos mundos andarilha,
andar incandescente que no cansa,
poema aparentemente muitos poemas,
mas infncia perene, tema em temas.
Ela fechada virgem, via-a em rio;
eu era os meus sete anos, vendo-a vejo
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52
53
XVII
Porque a nvoa da tarde era sumida
desejei no meu peito um verso puro,
rosa que fosse como suave ida,
apelo que chamasse a quem procuro.
Eis nos ares a rosa que convida
a de ptala fugaz e talo obscuro.
H qualquer coisa nela em breve vida
mas essa a vida breve que eu conjuro.
Esse enlevo fortuito um doce choque,
transluz perdidos olhos com que a via
o desejo de t-la em doce amor.
Aproxima-te deixa que te toque
e que te acaricie, esposa fria,
rosa da morte, rosa do que for.
XXVII
Contemplar o jardim alm do odor
e a mulher silenciosa entre semblantes,
e refaz-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraioe.
Porque eu quero, em memria refaz-los:
flor longnqua, mulher no pertencida,
substncia inexistente, mvel vida,
intercesso de nadas e cabelos.
54
V
Dos pores vem um cheiro maresia
mesclado a odor de ratos e de charque.
Verde nusea essa nau que pressagia
males a quem embarque ou desembarque.
Silenciosa sem que ningum a marque
percorre ancoradouros erradia;
e avisado o comrcio que aambarque
a carga apenas escurea o dia.
Ela parece morta nos cais sujos
que lhe povoam os cascos de gusanos
e a emporcalham com o limo de seus ralos.
E ningum sabe se essas velas, cujos
marinheiros corvejam os oceanos,
vieram trazer escravos ou lev-los.
55
X
Vs no viveis sozinhos,
os outros vos invadem,
felizes convivncias,
agregaes incmodas,
enfim ambientalismos,
e tudo subsistncias
e mais comunidades;
e tantas ventanias,
acotovelamentos,
desgastes de antemo,
acrscimos depois,
depois substituies,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hbitos, os vcios,
as moas embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vs mapas e diagramas
com vrias delinqncias,
e insanidades vrias,
dosando o vosso espao,
pesando o vosso po
de tempos racionados;
e no tereis vivido
e no tereis amado,
porm sereis morrido.
XXVI
Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os seres e os fiis enganos
amara os sonhos eu restarem frios.
Porm se no surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
h de haver pelo menos por ali
os pssaros que ns idealizamos.
Feliz de quem com cnticos se esconde
e julga t-los em seus prprios bicos,
e ao bico alheio em cnticos responde.
E vendo em torno as mais terrveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
56
XXV
A barba to preta que era azul,
as amantes to nulas que eram nulas.
Amarra onze e mais uma, numa s
morta, em alma, sem cadver, sem
tumba, e que amara morta, morta, morta.
VIII
Candelabro ou veleiro me persigo,
bruxuleio-me, caio-me, levanto-me;
no cavalo de fogo me conspiro
como anti-Parsifal, como anti-santo.
Em minhas mos plantaram joio e trigo.
Um misto minha voz de triste cantocho, mais as salmodias, mais os gritos
de um duplo de Ariel e Lautramont.
Quem que me levou a essa nativa
solitria Taiti em que tatuagens
celestes em Abel, vis em Caim
desenham-me de sol a carne viva?
Quem que magnetiza essas paisagens
desse mundo inicial que mora em mim?
XXII
Ai! Que sou eu enfim: senhor e presa
desta nova e imitada tirania;
refulge dentre as sombras da agonia
a aurola solar que observo acesa.
mais triste que vs, natureza,
esse facho de luz que espalha o dia;
modelo sou de mim... mas tristeza!
a mim prprio ofereo-me em porfia.
De crime a ndoa que o clamor no lava,
Sumatra negra, negra catadura
sobre a viso horrvel assomava.
criador transformando a criatura
que semimorta luz mais deformava,
estou sozinho nesta selva escura.
57
DOR DO MUNDO
Apenas eu te aceito, no te quero
nem te amo, dor do mundo. H honraria
que nos abate como um punho fero
mas aceitamos com sobranaria.
A um vate grego certo rei severo
vazou-lhe os olhos para no fugir.
dor do mundo, eu vivo como Homero,
aceito a provao que me surgir.
Homero, a tua histria sinto-a; e urdo
o teu destino, o meu e o de teu rei.
Mas s teus olhos nossos passos guiam,
e inda tens vozes para um mundo surdo,
e luz para os outros cegos, luz que herdei
com a aceitao dos olhos que no viam.
58
A
Seja bala, relgio,
ou a lmina colrica,
contudo uma ausncia
o que esse homem leva.
Mas o que no est
nele est como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isto que no est
nele como um relgio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem cios.
59
B
Das mais surpreendentes
a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metfora,
pode ser cultivada.
E mais surpreendente
ainda sua cultura:
medra no do que come
porm do que jejua.
Podes abandon-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrars
com a boca vazia.
Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.
E como faca que ,
fervorosa e enrgica
sem ajuda dispara
sua mquina perversa:
60
A lmina despida,
que cresce ao se gastar
que quanto menos dorme
quanto menos sono h,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e vive a se parir
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relgio ou bala,
ou seja a faca mesmo.)
C
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes j
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se embotam mais no msculo.
Mais cuidado porm
quando for um relgio
com o seu corao
aceso e espasmdico.
preciso cuidado
por que no se acompasse
o pulso do relgio
com o pulso do sangue,
e seu cobre to ntido
no confunda a passada
com o sangue que bate
j sem morder mais nada.
Ento se for a faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o ao.
Tambm seu corte s vezes
tende a tornar-se rouco
e h casos em que ferros
degeneram em couro.
61
D
Pois essa faca s vezes
por si mesma se apaga.
a isso que se chama
mar-baixa da faca.
Talvez que no se apague
e somente adormea.
Se a imagem relgio
a sua abelha cessa.
Mas que durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor
bem semelhante neutra
substncia, quase feltro,
que a das almas que no
tm facas-esqueleto.
E a espada dessa lmina,
sua chama antes acesa,
e o relgio nervoso
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo
de lmina que cega:
faz-se faca, relgio
ou bala de madeira,
bala de couro ou pano,
ou relgio de breu,
faz-se faca sem vrtebras,
faca de argila ou mel.
(Porm quando a mar
j nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)
62
Foroso conservar
a faca bem oculta,
pois na umidade pouco
seu relmpago dura
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidncias).
Foroso esse cuidado
mesmo se no faca
a brasa que te habita
e sim, relgio ou bala.
No suportam tambm
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer cmaras severas.
Mas se deve sac-los
para melhor sofr-los,
que seja em algum pramo
ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar
que pssaros habitem.
Deve ser um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja noite,
que esta tem as mos frteis.
Aos cidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,
febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento,
e faz de sede a terra.
F
Quer seja aquela bala
ou qualquer outra imagem,
seja mesmo um relgio
a ferida que guarde,
ou ainda uma faca
que s tivesse lmina,
de todas as imagens
a mais voraz e grfica,
63
G
Essa bala que um homem
leva s vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.
O que um relgio implica,
por indcil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.
E se faca a metfora
do que leva no msculo,
facas dentro de um homem
do-lhe maior impulso.
O fio de uma faca
mordendo o corpo humano
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,
64
H
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
so teis o relgio,
a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
tm no almoxarifado
s palavras extintas:
umas que se asfixiam
por debaixo do p,
outras despercebidas
em meio a grandes ns;
palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detm
a ateno que l mal.
Pois somente essa faca
dar a tal operrio
olhos mais frescos para
o seu vocabulrio
e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinar a obter
de um material doente
65
I
Essa lmina adversa,
como o relgio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,
sabe acordar tambm
os objetos em torno
e at os prprios lquidos
podem adquirir ossos.
E todo o que era vago,
toda frouxa matria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presena de vespa.
Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera
despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.
Pois entre tantas coisas
que tambm j no dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lmina
e seu jato to frio,
passa, lcido e insone,
66
A PALO SECO
1.1 Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
67
68
69
70
2
Subida ao dorso da dana
(vai carregada ou a carrega?)
impossvel se dizer
se a cavaleira ou a gua.
Ela tem na sua dana
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.
71
3
Quando est taconeando,
a cabea, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.
H nessa ateno curvada
muito de telegrafista,
atento para no perder
a mensagem transmitida.
Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafista
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam
que a mensagem de quem
l do outro lado da linha
ela responde to sria
nos passa despercebida.
72
4
Ela no pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.
Ela a trata com a dura
e muscular energia
do campons que cavando
sabe que aterra amacia.
Do campons de quem tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.
Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,
esta se quer uma rvore
firma na terra, nativa,
que no quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.
rvore que estima a terra
de que se sabe famlia
e por isso trata a terra
com tanta dureza ntima.
73
5
Sua dana sempre acaba
igual que quando comea,
tal esses livros de iguais
coberta e contracoberta:
com a mesma posio
como que talhada em pedra:
um momento est esttua,
desafiante, espera.
Mas, se essas duas esttuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.
A primeira das esttuas
que ela , quando comea,
parece desafiar
alguma presena interna
que no fundo dela prpria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem que a modela.
Enquanto a esttua final,
por igual que ela parea,
que ela , quando um estilo
j se imps ntima presa,
parece mais desafio
a quem est na assistncia,
como para indagar quem
a mesma faanha tenta.
O livro de sua dana
capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas esttuas acesas.
74
6
Na sua dana se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.
Parece que sua dana
ao ser danada, medida
que avana e vai despojando
da folhagem que a vestia.
No s da vegetao
de que ela dana vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil chita),
mas tambm dessa outra flora
a que seus braos do vida,
densa floresta de gestos
a que do vida e agonia.
Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continue nela a vesti-la,
parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.
Ou ento que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque, terminada a dana
embora a roupa persista,
a imagem que a memria
conservar em sua vista
a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.
75
duzentas, se oferecia
a alguma manh de praia
mais manh porque marinha,
a alguma manh de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhs so mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que so velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois no o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manh
estivesse envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mnima,
e que por mnima, pouco
de tua luz prpria tira,
e at mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
s de teu banho vestida,
que quando tu ests mais clara,
pois a gua nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a gua clara no te acende:
libera a luz que j tinhas.
76
CEMITRIO PERNAMBUCANO
(Custdia)
mais prtico enterrar-se
em covas feitas no cho:
ao sol daqui, mais que covas,
so fornos de cremao.
Ao sol daqui as covas logo
se transformam nas caieiras
onde enterrar certas coisas
para, queimando-as, faz-las:
assim, o tijolo ainda cru,
as pedras que do a cal
ou a capoeira raqutica
que d o carvo vegetal.
S que nas covas caieiras
nenhuma coisa apurada:
tudo se perde na terra,
em forma de alma, ou de nada.
77
CEMITRIO ALAGOANO
(Trapiche da Barra)
Sobre uma duna de praia
o curral de um cemitrio,
que o mar todo o dia, todos,
sopra com vento antissptico.
Que o mar depois desinfeta
com gua de mar, sanativa,
e depois, com areia seca,
ele enxuga e cauteriza.
O mar, que s preza a pedra,
que faz de coral suas rvores,
luta por curar os ossos
da doena de possuir carne,
e para curar-lhes da pouca
que de viver ainda lhes resta,
lavadeira de hospital,
o mar esfrega e reesfrega.
A PALAVRA SEDA
A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E, como as coisas, palavras
impossveis de poemas:
exemplo, a palavra ouro,
e at este poema, seda.
certo que tua pessoa
no faz dormir, mas desperta;
nem sedante, palavra
derivada da de seda.
E certo que a superfcie
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfcie
luxuosa, falsa, acadmica,
de uma superfcie quando
se diz que ela como seda.
78
79
RILKE
TORSO ARCAICO DE APOLO
No sabemos como era a cabea, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porm
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
s que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se no fosse assim, a curva rara
do peito no deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
No fosse assim, seria essa esttua uma mera
pedra, um desfigurado mrmore, e nem j
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites no transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto no h
que no te mire. Fora mudares de vida.
[traduo de Manuel Bandeira]
OS TZARES
III . Ivan, o Terrvel
Os seus servos fomentam uma infinda
matilha de murmuraes selvagens
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BUDA
Como se ele escutasse: eras distantes
De sbito cessamos de escut-lo.
E ele uma estrela. E estrelas gigantes,
que no vemos, circundam o seu halo.
Ah, ele tudo. Quem esperaria
que ele nos visse? Para que, afinal?
A seus ps, ele ainda ficaria
absurdo e absorto como um animal.
Pois que, a seus ps, o que nos dilacera
j circulou por ele h milhes de anos.
Ele, que esquece o que experimentamos
e experimenta o que no nos espera.
HLDERLIN
METADE DA VIDA
Peras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.
cisnes graciosos,
Bbedos de beijos,
Enfiando a cabea
Na gua santa e sbria!
Ai de mim, aonde, se
inverno agora, achar as
Flores? E aonde
O calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; fria nortada
Rangem os cata-ventos.
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e procuram os gitanos
para ver se as encontram.
A Virgem vem vestida
com um traje de alacaidessa
de papel de chocolate
com colares de amndoas.
So Jos move os braos
sob uma capa de seda.
Atrs vai Pedro Domeck
com trs sultes da Prsia.
A meia-lua sonhava
um xtase de cegonha.
Estandartes e faris
invadem as aotias.
Pelos espelhos soluam
bailarinas sem quadris.
gua e sombra, sombra e gua
por Jerez de la Frontera.
*
Oh! Cidade dos gitanos!
Nas esquinas as bandeiras.
Apaga as tuas verdes luzes
porque vem a benemrita.
Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e no se recorda de ti?
Deixai-a longe do mar
sem pente para suas riscas.
*
Avanam de dois no fundo
para a cidade da festa.
Um rumor de sempre-vivas
invade as cartucheiras.
Avanam de dois no fundo.
Duplo noturno de tela.
O cu parece a eles
uma vitrina de esporas.
*
A cidade, livre do medo,
multiplicava as suas portas.
Quarenta guardas-civis
entram nelas para o saque.
Os relgios pararam,
e o conhaque das garrafas
se disfarou de novembro
para no infundir suspeitas.
Um vo de gritos longos
se levantou nos cata-ventos.
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VOLTA DE PASSEIO
Assassinado pelo cu,
entre as formas que vo para a serpente
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1910
(Intermdio)
Aqueles olhos meus de mil novecentos e dez
no viram enterrar os mortos,
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o corao que treme arrincoado como um cavalinho de mar.
Aqueles olhos meus de mil novecentos e dez
viram a branca parede onde urinavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensvel que iluminava pelos cantos
os pedaos de limo seco sob o negro duro das garrafas.
Aqueles olhos meus no pescoo da gua,
no seio traspassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor, com gemidos e frescas mos,
em um jardim onde os gatos comiam as rs.
Desvo onde o p velho congrega esttuas e musgos,
caixas que guardam silncio de caranguejos devorados
no lugar onde o sonho tropeava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.
No me perguntai nada. Vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
H uma dor de ocos pelo ar sem gente
e em meus olhos criaturas vestidas, sem nudez!
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88
II.
O SANGUE DERRAMADO
No quero v-lo!
Dize lua que venha,
que no quero ver o sangue
de Ignacio sobre a areia.
No quero v-lo!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praa cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.
No quero v-lo!
Que se me queima a recordao.
Avisai aos jasmins
com sua brancura pequena!
No quero v-lo!
A vaca do velho mundo
passava a lngua triste
sobre um focinho de sangues
derramados sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois sculos
fartos de pisar a terra.
No.
No quero v-lo!
Pelos degraus sobe Ignacio
com toda sua morte s costas.
Buscava o amanhecer,
e o amanhecer no era.
Busca o seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Buscava o seu formoso corpo
e encontrou seu sangue aberto.
No me digais que o veja!
No quero sentir o jorro
cada vez com menos fora;
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
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III.
CORPO PRESENTE
A pedra uma fronte onde os sonhos gemem
sem gua curva nem ciprestes gelados.
A pedra uma espdua para levar ao tempo
com rvores de lgrimas e cintas e planetas.
Eu vi chuvas cinzentas correrem rumo s ondas
levantando seus ternos braos esburacados,
para no ser caadas pela pedra estendida
que desfaz seus membros sem se empapar de sangue.
Porque a pedra escolhe sementes e nuvens,
ossadas de calhandras e lobos de penumbra;
mas no produz sons, nem cristais, nem fogo,
seno praas e praas e outras praas sem muros.
J est sobre a pedra Ignacio, o bem-nascido.
J se acabou; o que acontece? Contemplai a sua figura:
a morte o cobriu de plidos enxofres
e ps-lhe uma cabea de escuro minotauro.
J se acabou. A chuva penetra-lhe pela boca.
O ar como louco escapa de seu peito afundado,
e o Amor, empapado de lgrimas de neve,
se aquece no topo dos currais.
Que dizem? Um silncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara onde rouxinis havia
e vmo-la encher-se de buracos sem fundo.
Quem enruga o sudrio? No verdade o que diz!
Aqui ningum mais canta, nem chora l no lado,
nem aplica as esporas, nem espanta a serpente:
aqui no quero nada mais que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possvel descanso.
Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens cuja ossada ressoa, e cantam
com uma boca cheia de sol e pedernais.
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IV.
ALMA AUSENTE
O touro no te conhece, nem a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
O menino no te conhece, nem a tarde,
porque morreste para sempre.
O lombo da pedra no te conhece,
nem o cho negro em que te destroas.
Nem te conhece a tua recordao muda,
porque morreste para sempre.
O outono vir com caracis,
uva de nvoa e montes agrupados,
mas ningum querer mirar teus olhos,
porque morreste para sempre.
Porque morreste para sempre,
como todos os mortos da Terra,
como todos os mortos que se olvidam,
em um monto de cachorros apagados.
Ningum te conhece. No. Porm eu te canto.
Eu canto sem tardana teu perfil e tua graa.
A madureza insigne do teu conhecimento,
A tua apetncia de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve a tua valente alegria.
92
1. A COLHIDA E A MORTE
Davam as cinco da tarde.
Davam as cinco em ponto dessa tarde.
Um moo trouxe uma toalha branca
davam cinco da tarde.
Uma seira de cal j preparada
davam cinco da tarde.
Tudo o mais era a morte e s a morte
davam cinco da tarde.
O vento fez voar os algodes
davam cinco da tarde.
E o xido semeou cristal e nquel
davam cinco da tarde.
J lutavam a pomba e o leopardo
davam cinco da tarde.
E a coxa com uma haste desolada
davam cinco da tarde.
Comearam os dobres do bordo
davam cinco da tarde.
As campanas de arsnico e o fumo
davam cinco da tarde.
Pelas esquinas grupos de silncio
davam cinco da tarde.
E o touro s de corao ao alto!
davam cinco da tarde.
2. O sangue derramado
Que no quero v-la!
Dizei lua que venha,
que no quero ver do sangue
de Ignacio a mancha na arena.
Que no quero v-la!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praa cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.
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o dourava na cabea
em que o seu riso era um nardo
de sal e de inteligncia.
Que mor toureiro na praa!
Que serrano mor na serra!
Que brando com as espigas!
Nas esporas que dureza!
E que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as ltimas
bandarilhas d de treva!
Porm j dorme sem fim.
J os musgos e a erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.
E o seu sangue j l vem cantando:
cantando pelos plainos e lameiras,
resvalando pelos hirtos cornos frios,
vacilando sem alma pela nvoa,
tropeando nos cascos aos milhares
como uma lngua triste, escura, espessa,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir l das estrelas.
Oh branco muro de Espanha!
Oh negro muro de pena!
Oh sangria atroz de Ignacio!
Oh rouxinol dessas veias!
No.
Que no quero v-la.
Que no h clice que a contenha,
que no h andorinhas para beb-la,
no h geada de uma luz que esfrie,
no h canto nem dilvio de aucenas,
no h cristal que a cubra j de prata.
No.
Eu no quero v-la!
3. Corpo presente
A pedra uma fronte por onde os sonhos gemem
sem terem gua curva nem ciprestes gelados.
A pedra uma espalda para levar o tempo
com rvores de lgrimas e tiras e planetas.
Vi chuvas pardas correrem para as ondas
erguendo os ternos braos feito crivo,
para no serem caadas pela pedra alongada
que desta seus membros sem se empapar de sangue.
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4. Alma ausente
No te conhecem touro nem figueira,
nem cavalos nem formigas do teu lar.
No te conhece a tarde ou o menino,
porque tu ests morto para sempre.
No te conhece a pedra no seu dorso,
nem o negro cetim onde te perdes.
No te conhece o teu recordar mudo
porque tu ests morto para sempre.
O outono vir com os seus bzios,
uva de nvoa e montes agrupados,
mas ningum querer fitar teus olhos
porque tu ests morto para sempre.
Porque tu ests morto para sempre,
como todos os mortos que h na Terra,
como todos os mortos que se esquecem
num monturo de ces que se apagaram.
Ningum que te conhea. No. Mas eu te canto.
Eu canto para j teu perfil e tua graa.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Tua apetncia de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.
Tardar muito tempo em nascer, se que nasce,
um andaluz to claro, to rico de aventura.
Eu canto sua elegncia com palavras que gemem
e recordo uma brisa triste pelas oliveiras.
97
*
Vai-se o dia devagar,
a tarde pendurada a um ombro,
caindo lentamente
sobre o mar e os arroios.
As azeitonas aguardam
a noite de Capricrnio,
e uma curta brisa, eqestre,
salta os montes de chumbo.
Antonio Torres Heredia,
filho e neto de Cambrios,
vem sem vara de vime
entre os cinco tricrnios.
Antonio, quem s tu?
Se te chamasses Cambrio,
terias feito uma fonte
de sangue com cinco jorros.
Tampouco s filho de algum,
nem legtimo Cambrio.
Acabaram-se os gitanos
que iam ss pelo monte!
Esto as velhas facas
tiritando sob o p.
s nove da noite
levam-no ao calabouo,
enquanto os guardas-civis
bebem limonada todos.
E s nove da noite
encerram-no no calabouo,
enquanto o cu reluz
como a garupa de um potro.
98
vernicas de aleli,
vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.
*
Antonio Torres Heredia,
Cambrio de dura crina,
moreno de verde lua,
voz de cravo varonil:
Quem te tirou a vida
perto do Guadalquivir?
Meus quatro primos Herdias
filhos de Benameji.
O que em outros no invejavam,
era invejado em mim.
Sapatos cor de passa,
medalhes de marfim,
e esta ctis mesclada
com azeitona e jasmim.
Ai, Antoninho, o Cambrio,
digno de uma Imperatriz!
Lembra-te da Virgem
porque vais morrer.
Ai, Federico Garca,
chama a Guarda Civil!
J meu talhe se quebrou
como haste de milho.
Trs golpes sangrentos teve
e morreu de perfil.
Viva moeda que nunca
tornar a repetir-se.
um anjo garboso pem-lhe
a cabea num coxim.
Outros de rubor cansado
acenderam um candil.
E quando os quatro primos
chagam a Benameji,
vozes de morte cessaram
perto do Guadalquivir.
99
A AURORA
A aurora de Nova York tem
quatro colunas de lodo
e um furaco de negras pombas
que chapinham nas guas apodrecidas.
A aurora de Nova York geme
pelas imensas escadas
buscando entre as arestas
nardos de angstia desenhada.
A aurora chega e ningum a recebe em sua boca
porque ali no h amanh nem esperana possvel.
s vezes as moedas em enxames furiosos
perfuram e devoram meninos abandonados.
Os primeiros que saem compreendem com seus ossos
que no haver parasos nem amores desfolhados;
sabem que vo ao atoleiro de nmeros e leis,
aos jogos sem arte, aos suores sem fruto.
A luz sepultada por correntes e rudos
em impudico desafio de cincia sem razes.
Pelos bairros h gentes que vacilam insones
como recm-sadas de um naufrgio de sangue.
[traduo de Fbio Aristimunho Vargas]
A AURORA
A aurora de Nova York
tem quatro colunas de lodo
e um furaco de negras pombas
que chapinham em guas podres.
100
GAZEL DA FUGA
Perdi-me muitas vezes pelo mar
com o ouvido cheio de flores recm-cortadas,
com a lngua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes me perdi pelo mar,
como me perco no corao de alguns meninos.
No h noite em que, ao dar um beijo,
no sinta o sorriso das pessoas sem rosto,
nem h ningum que, ao tocar um recm-nascido,
olvide as imveis caveiras de cavalo.
Porque as rosas buscam em frente
uma dura paisagem de osso
e as mos do homem no tm mais sentido
que imitar as razes sob a terra.
Como me perco no corao de alguns meninos,
perdi-me muitas vezes pelo mar.
Ignorante da gua vou buscando
uma morte de luz que me consuma.
101
102
KOSTANTINOS KAVFIS
103
YEATS
RUMO A BIZNCIO [traduo: Jos Agostinho Baptista]
I
Este pas no para velhos. Jovens
Abraados, pssaros que nas rvores cantam
essas geraes moribundas
Cascatas de salmes, mares de cavalas,
Peixe, carne, ave, celebrando ao longo do Vero
Tudo quanto se engendra, nasce e morre.
Prisioneiros de to sensual msica todos abandonam
Os monumentos de intemporal saber.
II
104
III
Oh, sbios que estais no sagrado fogo de Deus
Qual dourado mosaico sobre um muro,
Vinde desse fogo sagrado, roda que gira,
E sede os mestres do meu canto, da minha alma.
Devorai este meu corao; doente de desejo
E atado a um animal agonizante
Ele no sabe o que ; juntai-me
Ao artifcio da eternidade.
IV
Da natureza liberto jamais de natural coisa
Retomarei minha forma, meu corpo,
Mas formas outras como as que o ourives grego
Em ouro forja e esmalta em ouro
Para que o sonolento Imperador no adormea;
Ou em dourado ramo pousado, cantarei
Para damas e senhores de Bizncio
Cantarei o que passou, o que passa, ou o que vir
II.
Um homem velho apenas uma ninharia,
105
III.
sbios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser .
Rompei meu corao, que a febre faz doente
e, acorrentado a um msero animal morrente,
j no sabe o que ; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.
IV.
Livre da natureza no hei de assumir
conformao de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do cio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizncio e s damas,
pousado em ramo de ouro, como um pssaro, o que passou e passar e sempre passa.
I.
Velhos no tm pas.
Os jovens to enlaados e as aves em trinado
levas que ho-de ir , audes do salmo,
mares de cavalas em cardume, e alado em peixe,
carne ou pssaro, no vero, tudo o que nasce e morre,
aps gerado, desleixa em sensual msica infrene
testemunhos do esprito perene.
II.
Um homem velho coisa no prestante,
um casaco de trapos em bengala,
a menos que a alma bata as mos e cante,
cante alto os mortais trapos a tap-la,
sem escola de canto e prescrutante
106
II.
Um velho apenas coisa irrelevante,
Trapos sobre um basto ele na essncia,
A menos que a alma aplauda e alegre cante
Acima dos farrapos da existncia;
Nem se aprende a cantar seno perante
Os monumentos da magnificncia.
Sulquei por isso o mar e cheio de nsia
Vim cidade santa de Bizncio.
III.
107
IV.
Fora da natureza nunca mais
Forma da natureza irei tomar,
Mas forma que um ourives grego faz
Com ouro fino e fino cinzelar
E a sonolento imperador apraz;
Ou num galho dourado hei de cantar
Para a nobreza de Bizncio ouvir
Do que passou, ou passa, ou h de vir.
BIZNCIO
Toda a imagem do dia, poluda, se desfaz;
Dormem bbedos os soldados imperiais;
E a ressonncia da noite foge, em um canto
Depois dos sinos, sonmbula;
Uma cpula estrelada ou de luar semeia
Desprezo a tudo o que os homens so,
banal complicao
E fria e lama das humanas veias.
Diante de mim uma imagem, homem ou sombra,
Mais sombra que homem, mais imagem que sombra,
Flutua; e o fio de Hades, que veste mmias
Talvez deslinde o sinuoso rumo;
E uma boca sem flego e ressequida
Chama bocas tambm inanes;
Eu sado o super-humano
E chamo-o vida-em-morte e morte-em-vida.
Milagre, pssaro, rara manufatura,
Mais milagre que pssaro ou manufatura
Num ramo de ouro sob estrelas assentado
Canta como os galos de Hades
E amargurado pela lua, escarnecendo clama
Em glria de imutvel metal
Contra o pssaro ou ptala banal
Contra as complicaes de sangue e lama.
meia-noite, na estrada do imperador
108
CECLIA MEIRELES
LIVRO: VIAGEM (1939)
XTASE
Deixa-te estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvao.
Deixa-te estar na exalao do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braos abertos,
e por cima do cu esto pregados meus olhos, guardando-te.
Deixa-te balanar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslizam os planetas, na abundncia do tempo que cai.
Ns somos um tnue plen dos mundos...
Deixa-te estar neste embalo de gua geando crculos.
Nem preciso dormir, para a imaginao desmanchar-se em figuras ambguas.
Nem preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.
Nem preciso querer mais, que vem de ns um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos...
VINHO
A taa foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.
Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci ,
e em meu pensamento senti
109
PERGUNTA
Se amanh perder o meu corpo,
ser possvel que ainda venha,
e que ao p de ti me detenha
como um levssimo sopro?
E essa minha humilde presena
te despertar como um grito?
E pensars no plido, hirto
fantasma que ainda em ti pensa?
Ou teu sono ser to doce
que o meu arrependido espetro,
sofrendo por chegar to perto,
volte no vento que o trouxe?
Teu rosto um jardim, na sombra.
Teu sonho, flor sob a lua.
Por aquela qur foi tua,
que orvalho em teus olhos tomba?
110
com saudade.
Minhas mos por guas perdidas
foram pura inutilidade.
IDLIO
Como eu preciso de campo,
de folhas, brisas, vertentes,
encosto-me a ti, que s rvore,
de onde vo caindo flores
sobre os meus olhos dormentes.
Encosto-me a ti, que s margem
de uma areia de silncios
que acompanha pelo tempo
verdes rios transparentes:
tua sombra, nos meus braos,
tua frescura, nos meus dentes.
Nasce a lua nos meus olhos,
passa pela minha vida...
- e, tudo que era, resvala
para calmos ocidentes.
Caminhos de ar vo levando
pura e nua essa que andava
com as roupas mais diferentes.
Olham pssaros, das nuvens,
entre a luz dos mundos firmes
e das estrelas cadentes.
E o orvalho da sua msica
vai recobrindo o meu rosto
com um tremor que eu conhecia
nos meus olhos j levados,
idos, perdidos, ausentes...
(Leve mscara de prolas
na minha face no sentes?)
INTERLDIO
As palavras esto muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
No me digas que h futuro
nem passado.
Deixa o presente claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. No fales.
No me expliques o presente,
pois tudo demasiado.
Em guas de eternamente.
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.
111
PASSAM ANJOS
Passam anjos com espadas de silncio
por entre ns,
devastando o jardim suspenso
que podia ter sido a minha voz.
Passam anjos por cima de muralhas
sem dimenso.
Mas por que das estrelas no falas
triste plancie do meu corao?
Passam anjos desenrolando tempo,
tempo sem fim.
Tempo de seres tu para sempre
e no seres mais nada para mim.
anjos de duras espadas frias,
Que fizestes das alegrias
to raras de desabrochar?
anjos de frias espadas duras,
Que sal, que sombra e que lonjuras,
Sem terra, sem noite e sem mar!
ORCULO
Quieta coruja do bosque negro,
onde o azul-ndigo e o verde-gaio?
Nos teus rios? No monte grego?
Ou na fencia praia?
Agora, tarde. Mas ontem, cedo.
Sonho: Citera. Rumo: Tesslia.
rvore exausta. Cansado remo.
Clssica luz de maio.
Ah! Fuga antiga! Nas guas crespas,
oscilam juntos Polbio e Laio.
Sempre serpentes bebendo estrelas.
E um vento que desmaia.
Dana Eufrosina por cinzas tnues.
E a transparente sombra de Tlia
move na areia seus vos desenhos.
- S nas nuvens Aglaia!
112
NOTURNO
Brumoso navio
o que me carrega
por um mar abstrato.
Que insigne alvedrio
prende idia cega
teu vago retrato?
A distante viagem
adormece a espuma
breve da palavra:
- mquina de aragem
que precorre a bruma
e o deserto lavra.
Ceras de mistrio
selam cada poro
da vida entregada.
Em teu mar, no imprio
de exlio onde moro,
tudo igual a nada.
Capito que conte
quem s, porque existes,
deve ter havido.
Eu? bebo o horizonte...
Estrelas mais tristes.
Corao perdido.
Sonolentas velas
hoje dobraremos:
- e a nossa cabea.
Talvez dentro delas
ou nos duros remos
teu nome aparea.
SUGESTO
Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.
Flor que se cumpre,
sem pergunta.
Onda que se esfora,
por exerccio desinteressado.
Lua que envolve igualmente
os noivos abraados
e os soldados j frios.
Tambm como este ar da noite:
sussurrante de silncios,
cheio de nascimentos e ptalas.
Igual pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
113
ROMANTISMO
Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,
para pensar um belo pensamento
e pous-lo no vento!
Quem tivesse um amor longe, certo e impossvel para se ver chorando, e gostar de chorar,
e adormecer de lgrimas e de luar!
Quem tivesse um amor, em entre o mar e as estrelas,
partisse por nuvens, dormente e acordado,
levitando apenas, pelo amor levado...
Quem tivesse um amor, sem dvida nem mcula,
sem antes nem depois: verdade e alegoria...
Ah! Quem tivesse... (Mas, quem teve? Quem teria?)
XADREZ
Leva-me o tempo para a frente,
certo de sua direo.
Pousado passo indiferente!
(Peo.)
114
CAVALGADA
Escuta o galope certeiro dos dias
saltando as roxas barreiras da aurora.
J passaram azuis e brancos:
cinzentos, negros, dourados passaram.
Ns, entretidos pela terra,
no levantamos quase nunca os olhos.
E eles iam de estrela a estrela,
asas, crinas e asas agitando.
Todos belos, e alguns sinistros,
com centelhas de sangue pelos cascos.
Se algum lhes suplicasse: Parem!
no parariam que invisvel ltego
ao flanco imps-lhe ritmo certo.
Se por acaso algum dissesse: Voem!
Mais depressa e para mais longe!
veria o que , no cu, a voz humana...
Escuta o galope sem pausa
da cavalgada que vai para oeste.
No suspires pelo que existe
nesses caminhos do sol e da lua.
Semeia, colhe, perde, canta,
que a cavalgada leva seu destino.
115
PSSARO AZUL
Tua estirpe habitara alcndoras divinas.
Com ps de prata e anil desceste antigos tempos.
E em minhas mos pousaste, e o silncio explicou-se
por tua voz, que era de nunca e era de sempre.
Nomes de estrelas vinham sobre as tuas asas,
e era o teu corpo uma ampulheta pressurosa.
Entre as nuvens procuro o ltimo azul que foste...
Mas, de tanto saber, nada mais se deplora.
Como te penso, e to longe procuro
Tua msica alm das nuvens, no te esqueas
que posso estar um dia, em lgrima extraviada,
plen do cu brilhando entre os altos plentas.
Mas no voltes aqui, pois pesado e triste
o humano clima, para o teu destino areo.
Eu mal te posso amara, com o sonho do meu corpo
condenado a este cho e sem gosto terrestre.
FUTURO
preciso que exista, enfim, uma hora clara,
depois que os corpos se resignam sob as pedras
como mscaras metidas no cho.
Por entre as razes, talvez se vaeja, de olhos fechhados,
como nunca se pde ver, em pleno mundo,
cegos que andamos de iluminao.
Perguntareis: Mas era aquilo o teu silncio?
Perguntareis: Mas era assim teu corao?
Ah, seremos apenas imagens inteis, deitadas no baro,
do mesmo modo solitrias, silenciosas,
com cabea encostada sua prpria recordao.
116
GUERRA
Tanto o sangue
que os rios desistem de seus ritmo,
e o oceano delira
e rejeitas as espumas vermelhas.
Tanto o sangue
que at a lua se levanta horrvel,
e erra nos lugares serenos,
sonmbul a de aurolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.
Tanta a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaos do corpo esto ali como tbuas sem uso.
Oh, os dedos com alianas perdidos na lama...
Os olhos que j no pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O corao dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...
Tanta a morte que s as almas formariam colunas,
117
CAMPO
Vem ver o dia crescer entre o cho e o cu,
o aroma dos verdes campos ir sendo orvalhado na alta lua.
Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente,
aprendendo alma futura nas harmonias distribudas.
O mesmo sol das terras antigas lavra nas pedras estrelas claras.
Nem as nuvens se movem. Nem os rios se queixam.
Esto deitados, mirando-se, dos seus opostos lugares,
e amando-se em silncio, como esposos separados.
Neste descanso imenso, quem te dir que viveste em tumulto,
e houve suspiro em teu lbio, ou vaga lgrima em teus dedos?
Morreram as ruas desertas e os seus vidos habitantes
ficaram soterrados pelas paixes que os consumiam.
A brisa que passa vem pura, isenta, sem lembranas.
Tece carcia e msica nos finos fios do arrozal.
Em tua mo quieta, pousaro borboletas silenciosas.
Em teus cabelos flutuaro coroas trmulas de sombra e sol.
To longe, to mortos, jazem os desesperos humanos!
E os coraes perversos no merecem o convvio sereno das plantas.
Mas teus ps andaro aqui entre flores azuis,
e o seu perfume te envolver, como um largo cu.
O crepsculo cobre a memria, o rosto, as rvores,
inclinar teu corpo, docemente, em sua alfombra.
Acima do lodo dos pntanos, vers desabrochar o vo branco das garas.
E, acima do teu sono, o vo sereno das estrelas.
118
PRIPLO
Minha a deserta solido, clara e severa,
onde respiro amanheceres seculares.
Meus navegantes, meus remotos pescadores...
leo, sal, redes, altivez de densas brumas...
lho das barcas que sem plpebra buscaram
entre sereias e medusas sua Estrela.
Graves cabeas modeladas por vento amplo,
rijos destinos, obedientes a onda e cu.
Adivinhar das flutuaes: arrojo exato.
(Rpida, a espuma lava as lgrimas da praia...)
Deus-Mar! Por ti vemos O Eterno e a Variedade:
a ti pedimos o que deste e o que negaste.
Se um dia foste em nosso lbio prata mvel,
branco alimento um dia fomos, em teu lbio,
triste despojo, corpo vo, dbil tributo...
Porque s assim, para te amarmo e possuirmos,
e em ti deixarmos nossa vida, mudamente,
dada ao que for vontade e lei no teu mistrio.
Deus-Mar, tranqilo, e inquieto, e preso e livre, antigo
e sempre novo indiferente e suscetvel!
Em cada praia deste mundo te celebram
os que te amaram por naufrgios e vitrias,
e religiosos se renderam, convencidos,
lio tcita dos smbolos martimos.
119
120
II.
Do teu nome no sabia,
mas buscava tua face.
E, se algum dia,
se de ti me aproximasse.
Leonoreta, finroseta,
Leonoreta!
exclamaria.
Meus olhos, ricos de amor,
sofriam de indiferena.
de que estrela,
ou que mundo, ou que planeta,
Leonoreta,
nascida a branca flor
em que, antes de a amar, se pensa,
mesmo sem precisar v-la...?
Das varandas da alta lua,
recordo o estremecimento:
era a tua
voz que me trazia o vento.
Finroseta!
Esta que apenas flutua,
mais leve que borboleta;
que, longe, nada insinua...
esta a voz de Leonoreta!
121
122
III.
Leonoreta,
finroseta,
longe vai teu vulto amado.
Porm resiste ao meu lado
o espao que ocuparias.
Leonoreta,
finroseta,
como poderei ser triste,
se a tua sombra resiste
e tu no resistirias?
Leonoreta,
finroseta,
no mais penso por onde andas...
Guardo por altas varandas
tua fala em meus ouvidos.
Leonoreta,
finroseta,
como os puros amadores,
eu vivo a bordar de flores
a sombra dos teus vestidos.
Leonoreta,
finroseta,
feliz da barca e da vela,
do vento que leva a bela
mo sobre saudosos mares...
Leonoreta,
123
finroseta,
no me vs, mas eu te vejo.
No te quero nem desejo:
morrerei, se suspirares.
IV.
Morrerei, se suspirares,
Pois, se s o meu grande bem,
se eu te vejo sobre os mares,
Leonoreta,
se mais ningum
para mim valia tem,
finroseta,
sofrendo por te afastares,
bela sobre toda flor
(que todos os meus pesares
so por saudades do amor),
Leonoreta,
se tambm
por mim visse que sofrias,
quando tudo to alm...
Leonoreta,
no te meta
en gran coita a minha dor...
No venhas por onde eu for,
que eu nunca fui por onde ias!
No venhas, que s o meu bem,
ai!
outras so as companhias,
porm.
Leonoreta,
finroseta:
olha os sonhos singulares
que existem porque no vm...
V.
Pela celeste ampulheta,
flui-me a vida em cinza breve,
sem que eu saiba aonde me leve,
Leonoreta,
O enlevo que foi to raro,
o sonho que era to certo,
o amor que, apesar de claro,
nem foi visto, de encoberto.
Desconheo a quem remeta
a experincia a que me entrego:
124
VI.
Leonoreta,
finroseta,
deixo meus olhos fechados
sobre os acontecimentos.
No te meta
em gran coita o meu amor:
podem, por todos os lados,
duros, tenebrosos ventos
quebrar muitas tentativas.
Mas, para que eterna vivas,
que preciso?
Que pensem meus pensamentos.
E entre polos inviolados,
entre equvocos momentos,
vem e volta a vida humana,
que se engana e desengana
em redor do Paraso.
Branca sobre toda flor,
a Vernica levanto,
num transparente estandarte:
125
VII.
Pela celeste ampulheta,
cai a cinza dos meus dias.
Cai a cinza do meu corpo,
da minha alma, Leonoreta,
e o tempo um lmpido sopro
que liberta de alegrias
e de queixas...
Leonoreta,
finroseta,
alta estrela, a minha sorte!
Pela celeste ampulheta,
vai-se a luz da primavera...
A ventura que se aprende
nos adeuses, Leonoreta,
vale o que neles se perde...
Tudo quanto sou te espera,
e me deixas...
Leonoreta,
no te meta
en gran coita a minha dor.
Puro sonho, a minha morte,
pura morte, o meu amor.
SEIS
E a noite passava sobre palcios e torres.
Mas tudo era idntico plancie,
pois a noite voa muito longe,
e as altitudes ficam esmaecidas.
Sim, a noite podia ser um barco imenso,
com um vago sentimento de tristeza
encrespando-lhe nos flancos silenciosa espuma exgua
e bordando-lhe a passagem de suspiros.
Porque tudo no era igual,
126
SETE
Tudo jaz, diludo e cintilante, numa profunda nvoa.
Nada, porm, se perde ou esquece, embora to finamente
disperso nessa grandeza.
Gastam-se as imagens e os smbolos; mas a essncia resiste.
Realejos e sinos vibram, com as hlices, os cnticos e os gritos,
e tudo som, naqueles silenciosos corredores,
e a doce luz habita mil esconderijos,
tal como foi em seus inmeros momentos,
em olhos, flor, seda, chaga e pedra preciosa.
E em difanas balanas pairam diamante e plen,
bibliotecas e arsenais.
Tudo se encontra nesta bruma:
o burburinho histrico, a vtima e o carrasco;
a melodia da sereia nrdica, proa do barco da conquista;
plumas e arcabuzes,
127
OITO
Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as rvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?
Que vale o pensamento humano,
esforado e vencido,
na turbulncia das horas?
Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?
Que valem as plpebras da tmida esperana,
orvalhadas de trmulo sal?
O sangue e a lgrima so pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.
E o homem to inutilmente pensante e pensado
s tem a tristeza para distingui-lo.
Porque havia nas midas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistrio humano:
128
129
PARTICIPAO
De longe, podia-se avistar o zimbrio e os minaretes
130
MSICA
Ia to longe aquela msica, Bhai!
E o luar brilhava. Mas, por mais que o luar brilhasse,
no se sabia quem tocava e em que lugar.
Pelos degraus daquela msica, Bhai,
podia-se ir alm do mundo, alm das formas,
e do arabesco das estrelas pelo cu.
Quem tocaria pela solido, Bhai,
na clara noite toda azul como o deus Krishna
alheio a tudo, reclinado contra o mar!
Ia to longe a tnue msica, Bhai!
E era no entanto uma pequena melodia
tmida, triste, em dois ou trs lmpidos sons.
To frgil sopro em flauta rstica, Bhai!
como o da vida em nossos lbios provisrios...
131
GOLCONDA
Meu peito mesmo Golconda:
pssaros esto colhendo
esmeraldas e diamantes
e h caadores de ronda.
Tumbas de reis e rainhas
vo-se afundando em silncio
no invencvel p do tempo
dono das saudades minhas.
Cada diamante guardado
para ladres inquietos
que partilham as centelhas
do ntegro sol cobiado.
Ai, que meu peito Golconda,
com razes de esmeralda,
com cataratas de luzes
e os assaltantes de ronda.
Cristalino parapeito
da morte! Sombras do mundo,
mos do roubo, falsos olhos,
passai. Golconda o meu peito.
TAJ-MAHAL
Somos todos fantasmas
evaporados entre gua e frondes,
com o luar e o zumbido so silncio,
a msica dos insetos,
gaze tensa na solido.
De vez em quando, borbulha dgua:
prola desabrochada,
sbito jasmim de cristal aos nossos ps.
Fantasmas de magnlias, as cpulas brancas,
orvalhadas de estrelas, na friagem noturna.
132
133
Se me atravessas a espada,
natural que fique
na carne amargurada
um mudo sangue triste.
No falaremos mais nada,
pois, de tudo que disse,
resta a alma equivocada
com seu puro convite.
Uma celeste chamada
por algum que no vive
apagar a culpada
mo com seu duro crime.
Eu, para sempre calada,
acharei muito simples
que a alma eterna dobrada
seja e (a teus olhos) finde.
(Que a doce loucura amada
do firmamento incline
amor e morte, em cada
noite, nesta plancie!)
134
135
22
Sobre um passo de luz outro passo de sombra.
Era belo no vir; ter chegado era belo.
E ainda belo sentir a formao da ausncia.
Nada foi projetado e tudo acontecido.
Movo-me em solido, presente sendo e alheia,
Com portas por abrir e a memria acordada.
A acordada memria! esta planta crescente
com mil imagens pela seiva resvalantes,
na noite vegetal que a mesma noite humana.
Vejo-me longe e perto, em meus ntidos moldes,
em tantas viagens, tantos rumos prisioneira,
a construir o instante em que direi teu nome!
Que labirintos bebem meu rosto?
136
12
Falo de ti como se um morto apaixonado
falasse ainda em seu amor, sobre a fronteira
onde as coroas desta vida se desmontam.
Sem nada ver, sigo por mapas de esperana?
vento sem braos, vou sonhando encontros certos,
gua cada, penso-me em cristal segura.
Ah, meus caminhos, ah, meu rosto audaz e grave!
O claro sol, as altas sombras, a onda inquieta
e o vasto olhar das grandes noites acordadas!
E abre-se o mundo por mil portas simultneas.
Quem aparece? E outras mil portas sobre o mundo
se fecham. Tudo se revela to perene
que eu que sou translcida morta.
17
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que no se recusa a esse final convite,
em mquinas de adeus, sem tentao de volta.
Todo horizonte um vasto sopro de incerteza.
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
j de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada maior que a vivente,
dizei-me: no quereis ou no sabeis ser sonho?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento, em meus clios guardadas
vo as medidas que separam os abraos.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
Agora s livre, se ainda recordas.
137
13
Como trabalha o tempo elaborando o quartzo,
tecendo na gua e no ar anmonas, cometas,
um pensamento gira e inferno e cu modela.
Brandamente suporta em delicados moldes
enigmas onde a noite e o dia pousam como
borboletas sem voz, doce engano de cinza.
Levemente sustenta a grcil estrutura
da verdade que o anima. E a cada instante sofre
de saber-se to tnue e to perto da runa.
( Vernica acesa em secreta paisagem,
to esperada e amada em tristeza e ventura,
malgrado o peso dos enganos e saudades,
e do exerccio das despedidas!)
138
O CAVALO MORTO
Vi a nvoa da madrugada
deslizar seus gestos de prata,
mover densidades de opala
naquele prtico de sono.
Na fronteira havia um cavalo morto.
Gros de cristal rolavam pelo
Seu flanco ntido; e algum vento
torcia-lhe as crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,
e movia a cauda ao cavalo morto.
As estrelas ainda viviam
e ainda no eram nascidas
ah! as flores daquele dia ...
mas era um canteiro o seu corpo:
um jardim de lrios, o cavalo morto.
Muitos viajantes contemplaram
139
PROFUNDIDADE
Que o alado capitel e a serena cornija em nuvens se desenrolem,
e a alta janela desate os seus braos e em cus tnues perca seu gesto,
que a esttua com seu nome se veja partida em grandes escombros neutros,
que as escadas no tenham mais finalidade e os olhos no as entendam,
ah, tudo isso um vago desastre de andaime e poeira...
Mas o alicerce enterrado persiste, embora os homens sintam somente
um musgo mais denso que enreda os passos da loucura e atrasa a morte.
140
2
Que fantasmas lero, nas incolores
ptalas, as mensagens no aceitas
em ntidos momentos anteriores?
Que fantasmas vero a vossa airosa
figura erguendo as claras mos desfeitas,
noutro imprio, a uma luz mais gloriosa?
cinrea Princesa, muito densa
no mundo humano a trama das neblinas. . .
A floresta do absurdo negra, imensa,
e as sibilas se escondem, repentinas.
Crepitam os junquilhos e as boninas
a um vento secular de indiferena.
Mas, entre vs paredes vespertinas,
o ramo existe, sem que a morte o vena.
141
PRESENA EM POMPIA
Esta conta no pagars:
ficar sob uma cinza que no sabes.
Sob a cinza que ainda no sabes
ficar teu filho por nascer
e tambm os meninos que j sabiam desenhar nos muros.
Ficaro os figos que ontem puseste na cesta.
Ficaro as pinturas da tua sala
e as plantas do teu jardim, de esttuas felizes,
sob a cinza que no sabes.
Os gladiadores anunciados no lutaro
e amanh no vers, prximo s termas,
a mulher que desejavas.
Tu ficars com a chave da tua porta na mo;
tu, com o rosto da amada no peito;
amo e servo se uniro, no mesmo grito;
os ces se debatero com mordaas de lava;
a mo no poder encontrar a parede;
os olhos no podero ver a rua.
As cinzas que no sabes voaro sobre Apolo e sis.
uma noite ardente, a que se prepara,
enquanto a luz contorna a coluna e o jato d'gua:
a luz do sol que afaga pela ltima vez as roseiras verdes.
FAISO PRATEADO
Quem trouxe o faiso prateado
para a sombra d meus ramos?
No meu, no se demora,
e esto meus olhos chorando.
Tem longas plumas de adeuses,
tem asas tnues de cinza.
Tem uma voz de lonjura
dilatada na pupila.
Ah, o faiso prateado!
Com seus modos de safira,
em finos corais pousado,
vai fugindo e vai cortando,
meu corao, como um barco.
No te quero! No te quero!
S pergunto quem te trouxe.
Tristezas de nunca e de sempre
no se comparam s de hoje.
Ah, o faiso prateado!
Bem que canto No te quero,
como algum que nada sofre.
142
143
AS VALSAS
Como se desfazem as valsas
por longos pianos areos
que a noite envolve em suas chuvas!
Que ternura nas nossas plpebras,
pelo exlio suave dos gestos
e dos perfis de antigas msicas!
Os marfins opacos recordam,
com uma graa desiludida,
a aura da morta formosura.
Gente de sonho, sem memria,
entrelaada, conduzida
por sales de esperanas e dvida.
144
CAMILO PESSANHA
CAMINHOS
II.
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de qu, nem eu o sei.
Bom dia, companheiro te saudei,
Que a jornada maior indo sozinho.
longe, muito longe, h muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
no monte escabroso, solitrio.
Corta os ps como a rocha dum calvrio,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III.
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordes da caminhada,
Vai j rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
To virgem no o temos na jornada...
Enchamos as cabaas: pela estrada,
Daqui inda este nctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar s todo o caminho,
Eu posso resistir grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
145
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147
I
Tenho sonhos cruis: nalma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor quem em vo procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o corao dum vu escuro!...
Porque a dor, esta falta dharmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o cu dagora,
Sem ela o corao quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque s madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de qu, nem eu o sei.
Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada maior indo sozinho.
longe, muito longe, h muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
no monte escabroso, solitrio.
Corta os ps como a rocha dum calvrio,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordes da caminhada,
Vai j rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
To virgem no o temos na jornada...
148
OLVIDO
Desce por fim sobre o meu corao
O olvido. Irrevocvel. Absoluto.
Envolve-o grave como vu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixo.
A fronte j sem rugas, distendidas
As feies, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas no logradas ou perdidas.
O barro que em quimera modelaste
quebrou-se-te nas mos. Via uma flor...
Pes-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...
Ias andar, sempre fugia o cho,
At que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietao...
MADALENA
... e lhe regou de lgrimas os ps, e os enxugava com os cabelos da sua cabea.
Evangelho de S. Lucas.
149
VIOLA CHINESA
Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda,
Sem que amadornado eu antenda
A lenga-lenga fastidiosa.
Sem que o me corao se prenda,
Enquanto nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.
Mas que cicatriz melindrosa
H nele que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitao dolorosa?
Ao longo da viola, morosa...
150
VNUS
I.
flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razo se perde!
Ptrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balano alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.
O seu esboo, na marinha turva...
De p flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os ps atrs, como voando...
E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co'a salsugem.
II.
Singra o navio. Sob a gua clara
V-se o fundo do mar, de areia fina...
Impecvel figura peregrina,
A distncia sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparncia luminosa
Repousam, fundos, sob a gua plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrgios, perdies, destroos!
flgida viso, linda mentira!
Rseas unhinhas que a mar partira...
Dentinhos que o vaivm desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
PAISAGENS DE INVERNO
I.
meu corao torna para trs,
Donde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! o sol! Volvei, noites de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
151
II.
Passou o outono j, j torna o frio...
outono de seu riso magoado.
lgido inverno! Oblquo o sol, gelado...
O sol, e as guas lmpidas do rio.
guas claras do rio! guas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vo cuidado?
Aonde vais, meu corao vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das guas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mos translcidas e frias...
SAN GABRIEL
I.
Intil! Calmaria. J colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que to altas nos topes tremularam,
Gaivotas que a voar desfaleceram.
Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram)
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que to longe nos trouxeram?
San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abenoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a plancie azul.
Vem-nos levar conquista final
Da luz, do Bem, doce claro irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!
II.
152
153
NO CLAUSTRO DE CELAS
Eis quanto resta do idlio acabado,
primavera que durou um momento...
Como vo longe as manhs do convento!
Do alegre conventinho abandonado...
Tudo acabou... Anmonas, hidrngeas,
Silindras, flores to nossas amigas!
No claustro agora viam as ortigas,
Rojam-se cobras pelas velhas ljeas.
Sobre a inscrio do teu nome delido!
Que os meus olhos mal podem soletrar,
Cansados... E o aroma fenecido
Que se evola do teu nome vulgar!
Enobreceu-o a quietao do olvido,
doce, ingnua, inscrio tumular.
154
CASTELO DE BIDOS
Quando se erguero as seteiras,
Outra vez, do castelo em runa,
E haver gritos e bandeiras
Na fria aragem matutina?
Se ouvir tocar a rebate
Sobre a plancie abandonada?
E sairemos ao combate
De cota e elmo e a longa espada?
Quando iremos, tristes e srios,
Nas prolixas e vs contendas,
Soltando juras, improprios,
Pelas divisas e legendas?
E voltaremos, os antigos
E purssimos lidadores,
(Quantos trabalhos e perigos!)
155
ROTEIRO DA VIDA
I.
Enfim, levantou ferro.
Com os lenos adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras ms do meu desterro,
Ondas do azul oceano, submergi-o.
Que eu, desde a partida,
No sei onde vou.
Roteiro da vida,
Quem que o traou?
Nalguma rocha ignota
Se vai despedaar, com violento fragor...
Mareante, deixa as cartas da derrota.
Maquinista, d mais fora no vapor.
Nem sei de onde venho,
Que azar me fadou!?...
Das mgoas que tenho,
Os ais por que os dou...
Ou siga, maldito,
Com a bandeira amarela...
.......................................
Pomares, chals, mercados, cidades...
A olhar da amurada,
Que triste que estou!
Miragens do nada,
Dizei-me quem sou...
II.
Nesgas agudas do areal
E gaivotas que voais em redor do navio,
Tornais o meu crebro mole,
Esmeralda viva do Canal
E desertos inundados de sol!
Meu pobre crebro inconseqente e doentio!
156
III.
Cristalizaes salinas,
Mirrai na areia o plasma vivaz.
No se desenvolvam as ptomanas...
Que adocicado! Que obsesso de cheiro!
Putrescina: Flor de lils.
Cadaverina: Branca flor do espinheiro!
S o meu crnio, fique,
Rolando, insepulto, no areal,
Ao abandono e ao acaso do simum...
Que o sol e o sal o purifique.
157
VIDA
Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliceas.
Foi bem fecunda, a estao pluviosa!
Que vigor no campo das liliceas!
Calquem. Recalquem, no o afogam.
Deixem. No calquem. Que tudo invadam.
No as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? No as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
a queimada... Que lumaru!
Podem calc-lo, deitar-lhe terra,
Que no apagam o lumaru.
Deixem! No calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta alm.
E se arde tudo? Isso que tem?
BRANCO E VERMELHO
A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
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III.
SOBRE O TERRAO
Os antigos mortos, invisivelmente
Vm ainda ao seu terrao antigo
J sopra da nona lua o vento lamentoso.
De os trs rios devem estar a chegar os gansos de arribao.
Cobrem nuvens a vastido dos dois Kuangs
Declina, plido, o sol, sobre Pang-Lai
Desterrado da ptria e sem noticias dela,
Para essas bandas volvo de contnuo os olhos.
IV.
EM U-CHANG
Em Hsian-Hsiang j quase outono,
Embora no caia ainda a folha nos jardins do Tung Ting.
noite, e da minha mansarda oio chover,
Sozinho, na cidade de U-Chang.
E lembram-me a amoreira e a catalpa da casa paterna,
Ao sentir perto as guas do Kiang e do Han
V entender algum a grulhada dos gansos,
O festivo alvoroo com que emigram!
V.
EVOCAES DO PASSADO
Eis-me o forasteiro de Ing Mas baldada romagem!
Emudeceram de Ing os afamados cnticos.
alto o pavilho para onde as beldades se retiraram.
A msica da Torrente a que ora modulam
Os tmulos das princesas para que lado ficam?
Sobre Hsian-Hsiang pairam nuvens negras.
Deste abandono, s eu penetro bem a essncia,
Do Kiang borda, desgarrado e triste.
VI.
FANTASIA DA PRIMAVERA
Cai o sol, no imenso horizonte, em flor, do Kiang.
Pra o viandante a olhar. A chuva, que do arvoredo ainda goteja, vai-lhe repassando a tnica
Oh! Se dos mil chores, volta das runas do palcio real de Chu,
As flores soltas me fizessem cortejo, despedida, no regresso ptria!
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VII.
SOLEDADE
Deleita-me a solido desta choupana
Mas di-me ao recordar vozes amigas.
Sim, geme o verdelho, mas em pas de exlio.
Conturba-me a cor da relva o corao, que remoa.
Desce o sol, em um poente de cirros amarelos.
Passam nuvens sobre o mar, que mais ferrete.
Segunda lua E, na algaravia dos grasnidos,
Oio os gansos darem o alarme pra o regresso.
VIII.
QUEIXUME DAS ESPOSAS DO HSIANG
Ilhus do Norte do Hsiang, onde as orqudeas se ceifam!
Plainos do Sul do Lai, onde se talham as essncias de preo!
As guas, puras, tm cromatismos de gata;
Subtil, a brisa vibraes de jada.
Sobe a nvoa, entre as sombras do Tsang-u.
Baixa o sol entre as brumas do Ting-tang...
As penas dos bambus, quem que as sabe?
Mas bem se lhes vem os sinais das lgrimas.
CAMES
[Super Flumina...]
Sbolos rios que vo
por Babilnia, machei,
Onde sentado chorei
as lembranas de Sio
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilnia ao mal presente,
Sio ao tempo passado.
Ali, lembranas contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram to presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em gua,
deste sonho imaginado,
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J no fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
No movereis a espessura,
nem podereis j trazer
atrs vs a fonte pura,
pois no pudestes mover
desconcertos da ventura.
Ficareis oferecida
Fama, que sempre vela,
frauta de mim to querida;
porque, mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
j sente por pouquidade
aqueles gostos passados.
Um gosto que hoje se alcana,
amanh j o no vejo;
assi nos traz a mudana
de esperana em esperana,
e de desejo em desejo.
Mas em vida to escassa
que esperana ser forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa,
est receitando a morte!
Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade,
no cuide a gente futura
que ser obra da idade
o que fora da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quo ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixe o canto,
a causa dele deixasse.
Mas, em tristezas e enojos,
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
tend presente los ojos
por quien muero tan contento.
rgos e frauta deixava,
despojo meu to querido,
no salgueiro que ali estava
que para trofu ficava
de quem me tinha vencido.
Mas lembranas da afeio
que ali cativo me tinha,
me perguntaram ento:
que era da msica minha
queu cantava em Sio?
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Terra bem-aventurada,
se, por algum movimento,
d'alma me fores mudada,
minha pena seja dada
a perptuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra, ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.
E se eu cantar quiser,
em Babilnia sujeito,
Hierusalm, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A minha lngua se apegue
s fauces, pois te perdi,
se, enquanto viver assi,
houver tempo em que te negue
ou que me esquea de ti.
Mas tu, terra de Glria,
se eu nunca vi tua essncia,
como me lembras na ausncia?
No me lembras na memria,
seno na reminiscncia.
Que a alma tbua rasa,
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina,
que voa da prpria casa
e sobe ptria divina.
No , logo, a sadade
das terras onde nasceu
a carne, mas do Cu,
daquela santa cidade,
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que c me pde alterar,
no quem se h-de buscar:
raio de fermosura,
que s se deve de amar.
Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que c sujeita,
no do sol, mas da candeia,
sombra daquela Ideia
quem Deus est mais perfeita.
E os que c me cativaram
so poderosos afeitos
que os coraes tm sujeitos;
sofistas que me ensinaram
maus caminhos por direitos.
Destes, o mando tirano
me obriga, com desatino,
a cantar ao som do dano
cantares damor profano
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TAKUBOKO ISHIKAWA
Nas mos um punhado de areia.
Lgrimas a escorrer pelas faces.
Como te esquecer?
Fumaa que se desfaz no cu azul
fumaa que se desfaz melancolicamente
meu espelho.
Runas do Castelo de Kozukata
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ao pestanejar.
Fugindo pela janela da sala de aula,
ia solitrio,
me deitar na runa daquele castelo.
O trem. Nem sei por que o tomei.
Desci. Mas no h
para onde ir.
O trem em movimento.
H quanto tempo!
Viagem imaginria terra natal.
Extremo do pas. Trem ao costado.
E eu traando a melancolia da cidade
clareada pela neve.
No h retorno primavera
dos 14 anos que me chama
com lgrimas nos olhos
Triste o corao infantil que no chora:
nem repreendendo, nem batendo
(tambm fui assim).
Parado, no corredor, meu desalento,
quando fora empurrei a porta
que sem resistncia se abriu.
Um cais de noite
e a vontade de escrever uma carta to longa
que te faa sentir saudade de mim.
H dias que penso
ser minha linguagem,
talvez, a do vento.
Durmo, repreendendo o corao
que sonha
com um amanh melhor.
Um refgio at o amanhecer.
lembrana de casa
o corao gela.
Mostrar um milagre qualquer
e desaparecer
enquanto estiverem surpresos
Pobre de quem se contenta
escrevendo um romance ridculo.
Vento de incio de outono.
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Fumaas no cu azul,
o inverno sobre os olhos.
Uma doena, a nostalgia.
Daquela viagem daquele navio
foi um dos passageiros
que no conseguiu morrer
Viajarei, por exemplo, de terno novo:
este ano, tambm
pensei com ansiedade demais.
Razes os pensamentos
que acolho, falta de dinheiro.
sopram os ventos do outono.
Pelo peso do alcochoado,
Suspeitei que o destino se deitou
sobre mim, ao despertar meia-noite.
Cidade de Hakodate, bairro Aoyagui,
poema de amor, de amigo,
tristeza, flor de lio.
Muita gente em algum lugar,
jogos de sorte ou de azar:
tambm quero tentar.
Um trabalho, com prazer.
Ao seu trmino,
pretendo morrer.
Certo dia doena de lado na ausncia da mulher e filho,
imitei o mugido de um boi.
Esta manh
pensei em no mais mentir
e agora fraquejo outra vez
Fecho os olhos, mas o corao
um pulsar cotidiano.
Reabro os olhos tristeza.
Hoje, a caminho do emprego,
de repente, mudei de idia, outra vez,
e fiquei vagando pelo cais.
No meio do caminho,
nenhum bonde para o meu destino:
a chuva, a mar no olhar.
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Peguei o espelho
e esgotei todas as caretas
quando cansei de chorar
Todos no mesmo rumo,
E de lado, meu corao
s observa.
De repente a mo que tirava a luva
parou. Sim. A memria
roando o corao.
triste a criana que no se levanta,
mesmo estando acordada.
No a censure, me.
Minha cabea parece um barranco
em que a terra, dia a dia,
desmorona, tristemente.
As sobrancelhas de minha mulher carregando
a criana nas costas. A nevasca invadindo
a estao. Despedida.
Pedras na memria
e nas mos o momento
de adeus minha terra
Um bocejo falso, o sono fingido:
artimanha para encobrir
meu pensamento.
Tristemente sozinho
entre a desarmonia insolvel
me irritei hoje novamente
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Jornal velho!
Ainda que duas ou trs linhas,
eis o elogio minha poesia.
Com pena de mim e sempre repreendendo
o tmido corao, vou pedir emprstimo.
por que sou assim?
Ao congresso, hoje,
palavres e uma lgrima
de alegria.
No sei porque
mas de qualquer forma parece
que muitas pessoas habitam meu pensamento
Despertou, afinal, o corao!
Uma lgrima pelo artigo de um velho
que fugiu de casa.
A maioria dos lavradores j no bebe
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O cdigo Ipsilon
em vrias pginas do velho dirio.
Onde Ipsilon andar?
A recusa da vida!
Ao ouvir o mdico,
o corao emudeceu.
Puxei a conversa em vo
e abracei a lgrima
do paciente vizinho
A morte recomendei
e ela me mostrou
a cicatriz na garganta
Cochichando tristezas
ela esperava
minha embriagus mortal
Naquele brao, a marca do meu beijo,
inalcanvel
pedra branca preciosa.
Inseto chegado ao fogo
freqentava aquela casa
iluminada
Mesmo no travesseiro de seus joelhos
meu corao repousava
sobre minha pessoa
Na velha agenda cor de vinho
a hora e o local
daquele encontro
Coisa simples
esquecida
semente de saudade
Sbitos o telefone e o silncio
no escritrio noite
deserto
Na trilha ao sop da colina
com declive esverdeado de trigo
um pentinho vermelho
Noite a pino
passeio solitrio pela cidade
como um medroso patrulheiro
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Minha cabea
coroada pelo orvalho
o tempo nulo ao vagar pela cidade
A cidade no mais profundo silncio
e a pele ecoando o som pesado
dos meus sapatos
Branco, branco.
Os gelos brilham. A tarambola canta
Luas de inverno e o mar de Kushiro.
O sake, naquele fim de mundo,
como se tragasse as razes da tristeza.
H um fim para essa dor?
A noite em fim de caminho
e o calor da mo dela
ao meu lado em meio a neve
Atirou o brinquedo
e sentou-se, o filhinho, quieto ao meu lado.
O que povoa sua mente?
Meus olhos num ponto da esteira
e a mulher atrs do segredo
do meu pensamento
Hoje, quase pedi outra vez:
me deixe sozinho
em uma penso.
Espiando ao redor,
tento falar com o tronco
jogado pelo mar ao p da duna
A areia fugindo vazia
entre o vo dos dedos:
inanimada tristeza
Da mais de cem vezes escritos na areia
voltei-me cansado
desisti de morrer
Um infeliz encurralado
todas as noites
eu no coletivo lotado
Um tiro ecoou no fundo do bosque
tristeza calando fundo
e o prazer na morte do som
Por ruas sem nome
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o dono da estalagem
Ainda em meus olhos a flor vermelha
estampada em todo avental
o amor dos seis anos
Minha nostalgia brilha
piedosa no corao
infindvel ouro puro
Da janela do trem ao norte distante
o cume da montanha minha terra
preparo a reverncia
Oh cheiro de milho verde assado
na rua silenciosa e larga
em noite de outono
O nome Koyakko ela me disse
sua relha e a volpia do lobo
como esquecer
O mar de Tsugaru
e os olhos meigos da marinha
pelo balano do navio
LUAR
O luar enche a terra de miragens
E as coisdas tm hoje uma alma virgem,
O vneto acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que o perfeito acorde da minha alma.
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II
Pudesse eu no ter laos nem limites
vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder a seus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.
185
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.
JARDIM PERDIDO
Jardim em flor, jardim de impossesso,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solido,
A verdura das rvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava,
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.
A luz trazia em si a agitao
De parasos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidade e suspenso.
Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazia em ti sempre suspenso
Outro jardim possvel e perdido.
JARDIM
Algum diz:
Aqui antigamente houve roseriras Ento as horas afastam-se estrangeiras,
Como se o tempo fosse feito de demoras.
FUNDO DO MAR
No fundo do mar h brancos pavores,
Onde as plantas so animais
E os animais so flores.
Mundo silencioso que no atinge
A agitao das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloia o cavalo marinho.
Um polvo avana
No desalinho
Dos seus mil braos,
Uma flor dana,
Sem rudo vibram os espaos.
Sobre a areia o tempo poisa
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III
A HORA DA PARTIDA
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o cho e as portas batem, quando
A noite cada n em si deslaa.
A hora da partida soa quando
As rvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me estranha e longqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
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SINAL DE TI
I
No darei Teu nome minha sede
De possuir os cus azuis sem fim,
Nem vertigem spbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.
No darei o Teu nome limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem s imagens de oiro que imagino
Nem a nenhuma coisa que sonhei.
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ESTA A HORA...
esta a hora perfeita em que se cala
O confuso murmurar das gentes
E dentro de ns finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.
esta a hora em que as rosas so as rosas
Que floriram nos jardins persas
Onde Saadi e Hafiz as viram e amaram.
estaa hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiam e chamaram
esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas unicamente,
esta a hora em que o tempo abolido
E nem sequer conheo a minha face.
AS ROSAS
Quando noite desfolho e trinco as rosas
como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doura amarga dos poentes,
E a exaltao de todas as esperas.
DIA DE HOJE
dia de hoje, dia de horas claras
Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas
Em que h por vezes sbitas demoras
Plenas como as pausas dum verso.
dia de hoje, dia de horas leves
Bailando na doura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.
190
II
por ti eu se nefeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera.
por ti que a noite chama e espera.
s tu quem anuncia o poente nas estradas.
E o vento torcendo as rvores desfohadas
Canta e grita que tu vais chegar.
ENDYMION
Por ti lutavam deuses deumanos.
E eu vi-te numa praia abandonado
luz, e pelos ventos destroado,
E os teus membros rolaram nos oceanos.
DIONYSOS
Entre as rvores escuras e cladas
O cu vermelho arde,
E nascido da secreta cor da tarde
Dionysos passa na poeira das estradas.
A abundncia dos frutos de Setembro
Habita a sua face e cada membro
Tem essa perfeio vermelha e plena,
Essa glria ardente e serena
Que distinguia os deuses dos mortais.
ALEXANDRE DA MACEDNIA
A prefeio, a eternidade, a plenitude
Escorriam da sagrada juventude
Dos teus membros.
A luz bailava em roda dos teus passos
E a ardennte palidez da tua divindade
Ergueu-se na pureza dos espaos.
Estreitamente os teus dedos
Para l das vagas nsias, incertezas e segredos
Prendiam os dedos da sorte.
E o destino que em ns caos e luto,
Era em ti verdade e harmonia
Caminho puro e absoluto.
191
III
NAVEGAO
Distncia da distncia derivada
Apario do mundo: a terra escorre
Pelos olhos que a vem revelada.
E atrs um outro longe imenso morre.
PAINIS DO INFANTE
Prncipes do silncio taciturnos
Por quem chamava nos longnquos cus nocturnos
A verdade das estrelas nunca vistas.
A vossa face a face dos elementos,
Solitria como o mar e como os montes
Vinda do fundo de tudo como as fontes
Dura e pura como os ventos.
GRUTA DE CAMES
Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta
Cujo silncio ainda escuta
Os teus gestos e os teus passos.
A, diante do mar como tu transbordaste
De confisso e segredo,
Choraste a face pura
Das bancas amadas
Mortas to cedo.
KASSANDRA
Homens, barcos, batalhas e poentes,
No sei quem, no sei onde delirava.
E o futuro vermelho transbordava
Atravs das pupilas transparentes.
dia de oiro sobre as coisas quentes,
Os rostos tinham almas que mudavam,
E as avez estrangeiras trespassavam
As minhas mos abertas e presentes.
Houve instantes de fora e de verdade Era o cantar de um deus que me embalava
Enchendo o cu de sol e de saudade.
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PARTIDA
I
Como uma flor incerta entre os teus dedos
H harmonia de um bailar sem fim,
E tens o silnci indizvel de um jardim
Invadido de luar e de segredos.
II
Nas tuas mos trazias o meu mundo.
Para mim dos teus gestos escorriam
Estrelas infinitas, mar sem fundo
E nos teus olhos os mitos principiam.
Em ti eu conheci jardins distantes
E disseste-me a vida dos rochedos
E juntos penetramos nos segredos
Das vozes dos silncios dos instantes.
III
Os teus olhos so lagos e so fontes,
E em todo o teu ser existe
O sonho grave, ntido e trsite
De uma paisagem de pinhais e montes.
Na tua voz as palavras so nocturnas
E todas as coisas graves, grandes, taiturnas
A ti so semelhantes.
193
A morte dana
E em seu redor tudo recua
Sem fora e sem esperana.
Tudo que era certo se dissolve;
O mar e a praia tudo se resolve
Na mesma solido eterna e nua.
IV
LUA
Entre a terra e os atros, flor intensa,
Nascida do silncio, a lua cheia
D vertigem ao marr e azula a areia,
E a terra segue-a em xtase suspensa.
DANA DE JUNHO
Em silncio nas coisas embaladas
Vo danando ao sabor dos seus segredos.
Nos seus vesstidos brancos e bordados
Raios de lua poisam como dedos,
E em seu redor baloiam arvoredos
Escuros entre os cus artomentados.
UM DIA
Um dia, mortos, gastos, voltaremos
A viver lives como os animais
E mesmo to cansados floriremos
Irmo vivos do mar e dos pinhais.
O vento levar os mil cansaos
Dos gestos agitados, irreais,
E h-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.
S ento poderemos caminhar
Atravs do mistrio que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar,
E em ns germinar a sua fala.
194
RECONHECI-TE
I
Reconheci-te logo destruda
Sem te poder olhar por que tu eras
O prprio corao da minha vida
E eu esperei-te em todas as esperas.
II
Conheci-te e vivi-te em cada deus
E do teu peso em mim que eu fui triste
Sempre. Tu depois s me destruste
Com os teus passos mais reais que os meus.
MEDEIA
(adaptado de Ovdio)
Trs vezes roda, trs vezes inunda
Na gua da fonte os seus cabelos leves,
Trs vezes grita, trs vezes se curva
E diz: Noite fiel aos meus segredos,
Lua e atros que aps o dia claro
Iuminais a sombra silenciosa,
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos,
Deuses do bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa fora, pois
Ajudada por vs posso fazer
Que os rios entre as margens espantadas
Voltem correndo at s suas fontes.
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou ench-los de espuma e fundas ondas,
Posso chamar a mim os ventos, posso
Larg-los cavalgando nos espaos.
As palavras que digo e cada gesto
Que em redor do seu som no ar disponho
195
V
GESTO
Em tudo Te vi amanhecer
Mas nenhuma presena Te cumpriu,
S me ficou o gesto que subiu
s mais longqnuas fontes do meu ser.
HORIZONTE VAZIO
Horizonte vazio em que nada resta
Dessa fabulosa festa
Que um dia teiluminou.
As tuas linhas outrora foram fundas e vastas,
Mas hoje esto vazias e gastas
E foi o meu desejo que as gastou.
Era do pinhal verde que descia
A noite bailando em silenciosos passos,
E naquele pedao de mar ao longe ardia
O chamamento infinito dos espaos.
Nos areais cantava a claridade,
E cada pinheiro continha
No irreprimvel subir da sua linha
A explicao de toda heroicidade.
Horizonte vazio, esqueleto do meu sonho,
rvore morta sem fruto,
Em teu redor deponho
A solido, o o caos e o luto.
QUANDO
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuar o jardim, o cu e o mar,
E como hoje igualmente ho-de bailar
As quatro estaes minha porta.
196
OS MORTOS DE HECATE
Ao nosso lado os mortos em surdina
Bebem a exalao da nossa vida.
So a sombra seguindo os nossos gestos,
Sinto-os passar quando leves vm
Alta noite buscar o nossos restos.
Passam nos quartos onde nos deixamos,
Envolvem-se nos gestos que traamos,
Repetem as palavras que dissemos,
E debruados sobre o nosso sono
Bebem como um leite o nosso sonho.
Intangveis, sem peso e sem contorno
Ressurgem no sabor vivo do sangue.
Sorriem s imagens que vivemos
E choram por ns quando nas as vemos,
Porque j sabem para aonde vamos.
VI
EURYDICE
197
RIO
Rio, mltipla forma fugidia
De gestos infinitos e perdidos
E no seu prprio ritmo diludos
Contnua apario brilhante e fria.
Nos teus lmpidos olhos de vidente
As paisagens reflectem-se mais fundas
Imveis entre os gestos da corrente.
E o pas em redor verde silvestre
Alargou-se e abriu-se modulado
No silncio brilhante que lhe deste.
NEVOEIRO
Quem poder saber que estranha bruma
Brotou caladamente em minha volta
Pra que eu perdesseas horas uma a uma
Sem um gesto, sem gritos, sem revolta.
Quem poder saber que estranhos laos
E que sabor de morte lento e amargo
Sugaram todo o sangue dos meus braos O sangue que era sede do mar largo.
Quem poder saber em que respostas
Se quebrou o subir do meu pedido
Para que eu bebesse imagens decompostas
luz de um pr de sol enlouquecido.
198
I
As minhas mos mantm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se no quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu corao sustenta o ritmo das coisas.
II
Terror de te amar num stio to frgil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeio
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
III
199
SIBILAS
Sibilas no interior dos antros hirtos
Totalmente sem amor e cegas,
Alimentando o vazio como um fogo
Enquanto a sombra dissolve a noite e o dia
Na mesma luz de horror desencarnada.
Trazer para fora o monstruoso orvalho
Das noites interiores, o suor
Das foras amarradas a si mesmas
Quando as palavras batem contra os muros
Em grandes voos cegos de aves presas
E agudamente o horror de ter as asas
Soa como um relgio no vazio.
SONETO MANEIRA DE CAMES
Esperana e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E j no sei se quero ou se no quero
To longe de razes meu tormento.
Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peo desespero
Ainda que mo ds pois o que eu quero
Ningum o d seno por um momento.
Mas como s belo, amor, de no durares,
De ser to breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Amor perfeito dado a um ser humano:
Tambm morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.
A FONTE
Ouve a fonte translcida da quinta
Cercada de varandas onde a ausncia
De algum eterna mora e se debrua.
SEGUNDA PARTE
I
ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI
Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ngulos mortais da sombra com luz.
200
OS PASSROS
Ouve que estranhos pssaros da noite
Tenho defronte da janela:
Pssaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo.
Falam-se de noite, trazem
Dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruis.
Cravam no luar as suas garras
E a respirao do terror desce
Das suas asas pesadas.
201
III
A raiz da paisagemn foi cortada.
Tudo flutua ausente e dividido,
Tudo flutua sem nome e sem rudo.
202
I.
A memria longnqua de uma ptria
Eterna mas perdida e no sabemos
Se passado ou futuro onde a perdemos.
II.
EURYDICE
Este o trao que trao em redor do teu corpo amado e perdido
Para que cercada sejas minha
Este o canto do amor em que te falo
Para que escutando sejas minha
Este o poema engano do teu rosto
No qual eu busco a abolio da morte
III.
As paredes so brancas e suam de terror
A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo como eu fechado e interior
No sei por onde o vento possa entrar
Toda esta verdura um segredo
Um murmrio em voz baixa para os mortos
A lamentao hmida da terra
Numa sombra sem dias e sem noites
IV.
Na minha vida h sempre um silncio morto
Uma parte de mim que no se pode
Nem desligar nem partir nem regressar
Aondes as coisas eram uma intimamente
Como no seio morno de uma noite
V.
INVERNO
Parece que eternamnete sobre a terra
Chover desolao e frio
A mesma neve de horror desencarnada
A mesma solido dentro das casas
VI.
Por que ser que no h ningum no mundo
S encontrei distncia e mar
Sempre sem corpo os nomes aos soar
E todos a contarem o futuro
Como se fosse o nico presente
203
204
205
206
CANTE JONDO
Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.
AS TRS PARCAS
A trs Parcas que tecem os errados
Caminhos onde a rir atraioamos
O puro tempo onde jamais chegamos
As trs Parcas conhecem os maus fados.
Por ns elas esperam nos trocados
Caminhos onde cegos nos trocamos
Por algum que no somos nem amamos
Mas que presos nos leva e dominados.
E nunca mais o doce vento areo
Nos levar ao mundo desejado
E nunca mais o rosto do mistrio
Ser o nosso rosto conquistado
Nem nos daro os deuses o imprio
Que nossa espera tinham inventado.
II
207
LIBERDADE
Aqui nesta praia onde
No h nenhum vestgio de impureza,
Aqui onde h somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espao e lcida unidade
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a prpria liberdade.
NUFRAGO
Agora mosto oscilas
Ao sabor das correntes
Com medusas em vez de pupilas.
Agora reinas entre imagens puras
Em pases transparentes e de vidro,
Sem corao e sem memria
Em todas as presenas diludo.
Agora liberto moras
Na pausa branca dos poemas.
Sem nome e sem destino
Nalimpidez da gua.
208
Este o tempo
Da selva mais obscura
At o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Esse o tempo em que os homens renunciam.
III
PORQUE
Porque os outros e mascaram mas tu no
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que no tem perdo.
Porque os outros tm medo mas tu no.
Porque os outros so os tmulos caiados
Onde germina calada a podrido.
Porque os outros se calam mas tu no.
209
ELECTRA
Os muros da casa dos Manon escorrem sangue
E as rvores do jardim escorrem lgrimas.
O lago busca em vo o reflexo antigo duma infncia
Que se tornou homens, mulheres, dios e armas.
Numa janela aparecem duas mos torcidas
E nos corredores ressoam as palavras
De traio, da nusea, da mentira
E o tempo vestido de verde senta-se nas salas.
O rosto de Electra absurdo.
Ningum o pediu nem pertence ao jogo.
As suas mos vingadoras destoam na conversa
Assustam a penumbra e ofendem o pecado.
SEMI-RIMBAUD
Seu rosto uma caverna
Onde frios ventos cantam
Passa rasgando o luar
E desesperando a noite
Pelas ruas oblquas da cidade
Em madrugadas duvidosas
Constri o mal com gestos cautelosos
E sonha a inverso total das coisas
Contri o mal com gestos rigorosos
Lcido de vcio e de noitada
ntegro como um poema
Completo lgico sem falha
A aurora desenha o seu rosto com os dedos
As suas rbitas iguais s das caveiras
Seu rosto voluntrio e inventado
Magro de solido verde de intensa
Vontade de negar e no ceder
210
LUAR
Toma-me noite em teus jardins suspensos
Em teus ptios de luar e de silncio
Em teus adros de vento e de vazio.
Noite
Bagdad debruada no teu rio
Pas dos brilhos e do esquecimento
Com teu rumor de cedros e teu lento
Crculo azul do tempo.
I. AS COISAS
Algarve
1
A luz mais que pura
Sobre a terra seca
2
Eu quero o canto o ar a anmona a medusa
O recorte das pedras sobre o mar
3
Um homem que sobe um monte desenhado
A tarde transparente das aranhas
4
A luz mais que pura
Quebra a sua lana
AS CIGARRAS
Com o fogo do cu a calma cai
No muro branco as sombras so direitas
A luz persegue cada coisa at
211
212
213
A VAGA
Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada
Seu prprio cavalo
Como cavaleiro
Fora e chicoteia
Porm mulher
Deitada na areia
Ou bailarina
Quem sem ps passeia
RESSURGIREMOS
Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
So o nome das coisas
E onde so claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
So o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convm tornar claro o corao do homem
E erguer a negra exactido da cruz
Na luz branca de Creta.
II. A ESTRELA
EIS-ME
Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mgicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silncio
Ante o silncio e o esplendor da tua face
Mas tu s de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mo em toca
O meu corao desce as escadas do tempo em que no moras
E o teu encontro
So plancies e plancies de silncio
214
Escura a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto est para alm do tempo opaco
E eu no habito os jardins do teu silncio
Porque tu s de todos os ausentes o ausente
DESPEDIDA
Na estao na tarde o fumo
O rumor o vaivm as faces
Annimas
Criam no interior do amor um outro cais
As lgrimas
O fogo da minha alma as queima antes que brotem
MEIO DA VIDA
Porque as manhs so rpidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra
A casa compe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canes se multiplicam
Nua e aguda
A doura da vida
FELICIDADE
Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estreala da noite to lmpida e serena
Pelo ncar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presena incerta
Tua presena fantstica e liberta
TRADUZIDO DE KLEIST
Dizem que no outro mundo o sol mais brilhante
E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vem essas maravilhas
So olhos apodrecidos.
215
INSCRIO
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que no vivi junto ao mar
FERNANDO PESSOA
Teu canto justo que desdenha as sombras
Limpo de vida vivo de pessoa
Teu corajoso ousar no ser ningum
Tua navegao com bssola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo.
Criaram teu poema arquitectura
E s semelhante a um deus de quatro rostos
E s semelhante a um deus de muitos nomes
Caritide de ausncias isento de destinos
Invocando a presena j perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas no colhidas
216
INSTANTE
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silncio
O HOSPITAL E A PRAIA
E eu caminhei no hospital
Onde o banco desolado e sujo
Onde o branco a cor que fica quando no h cor
E onde a luz cinza
E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distncia
Enrolei-os em redor do meu pescoo
Caminhei na praia quase livre como um deus
No perguntei por ti pedra meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era avento e a pedra
E isso inteiramente me bastava
E nos espaos da manh marinha
Quase livre como um deus eu caminhava
Porm no hospital eu vi o rosto
Que no pinheiral nem rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a for absurda e desmedida
III. AS GRADES
A PURA FACE
Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei
217
PTRIA
Por um pas de pedra e vento duro
Por um pas de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silncio e de pacincia
Que a misria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exatido
Dum longo relatrio irrecusvel
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das to amadas
Palavras sempre ditas com paixo
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
Pedra
rio
vento
Pranto
dia
canto
Espao
raiz
e gua
minha ptria e meu centro
casa
alento
218
EXLIO
Quando a ptria que temos no a temos
Perdida por silncio e por renncia
At a voz do mar se torna exlio
E a luz que nos rodeia como grades
DATA
( maneira dEustache Deschamps)
O SUPER-HOMEM
Onde est ele o super-homem? Onde?
Encontrei-o na rua ia sozinho
No via a dor nem a pedra nem o vento
Sua loucura e sua irrealidade
Lhe serviam de espelho e de alimento
BABILNIA
Com ptios interiores e com palmeiras
Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com esttuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro
Com corredores e silncios e penumbras
219
O VELHO ABUTRE
O velho abutre sbio e alisa as suas penas
A podrido lhe agrada e seus discursos
Tm o dom de tornar as almas mais pequenas
BARCOS
Um por um para o mar passam os barcos
Passam em frente de promontrios e de terraos
Cortando as guas lisas como um cho
E todos os deuses so de novo nomeados
Para alm das runas de seus templos
I. INGRINA
220
II. PROCELRIA
VELRIO RICO
O morto est sinistro e amortalhado
Rodeado de herdeiros inquietos como sombras
Que atormentam o ar com seus pecados
ESCUTO
Escuto mas no sei
Se o que oio silncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das plancies do vazio
Ou a conscincia atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
olhado e amado e conhecido
E por isso ponho em cada gesto
Solenidade e risco
VELA
Em redor da luz
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada
Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada
221
Em redor da chama
Que a menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda
Enquanto a noite antiga
Imensa e exterior
Tece seus prodgios
E ordena seus milnios
De espao e de silncio
De treva e de esplendor
ESPERA
Deito-me tarde
Espero por uma espcie de silncio
Que nunca chega cedo
Espero a ateno a concentrao da hora tardia
Ardente e nua
ento que os espelhos acendem seu segundo brilho
ento que se v o desenho do vazio
ento que se v subitamente
A nossa prpria mo poisada sobre a mesa
ento que se v o passar do silncio
Navegao antiqussma e solene
IV. DUAL
DE UM AMOR MORTO
De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano
De um amor morto no fica
Nenhuma memria
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora
Pois um amor morto no deixa
Em ns seu retrato
De infinita memria
222
apenas um facto
Que a eternidade ignora
DUAL
Altas mars no tumulto me ressoam
E paredes de silncio me reflectem
OS ESPELHOS
Os espelhos ascendem o seu brilho todo o dia
Nunca so baos
E mesmo sob a plpebra da treva
Sua lisa pupila cintila e fita
Como a pupila do gato
Eles nos reflectem. Nunca nos decoram
Porm s na penumbra da hora tardia
Quando a imobilidade se instaura no centro do silncio
Que tona dos espelhos aflora
A luz que os habita e nos apaga:
Luz arrancada
Ao interior de um fogo vtreo
V. MEDITERRNEO
NO GOLFO DE CORINTO
No Golfo de Corinto
A respirao dos deuses visvel:
um arco um halo uma nuvem
Em redor das montanhas e das ilhas
223
SUNION
Na nudez da luz (cujo exterior o interior)
Na nudez do vento (que a si prprio se rodeia)
Na nudez marinha (duplicada pelo sal)
Uma a uma so ditas as colunas de Sunion
ELECTRA
O rumor do estio atormenta a solido de Electra
O sol espetou a sua lana nas plancies sem gua
Ela solta os seus cabelos como um pranto
E o seu grito ecoa nos ptios sucessivos
Onde em colunas verticais o calor treme
O seu grito atravessa o canto das cigarras
E perturba no cu o silncio de bronze
Das guias que devagar cruzam seu voo
O seu grito persegue a matilha da frias
Que em vo tentam adormecer no fundo dos sepulcros
Ou nos cantos esquecidos do palcio
Porque o grito de Electra a insnia das coisas
A lamentao interior arrancada dos sonhos dos remorsos e dos crimes
E a invocao exposta
Na claridade frontal do exterior
No duro sol dos ptios
Para que a justia dos deuses seja convocada
TOLON
Um mar horizontal corta os espelhos
E um sol de sal cintila sobre a mesa
Habitamos o ar livre rente ao dia
Rente ao fruto rente ao vinho rente s guas
E sob o peso leve da folhagem
224
ANTINOOS
Sob o peso nocturno dos teus cabelos
Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra no ouvida
Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelao dos deuses que no sei
Porm passaste atravs de mim
Como passamos atravs da sombra
225
DESCOBRIMENTO
Um oceano de msculos verdes
Um dolo de muitos braos como um polvo
Caos incorruptvel que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam suas crinas nos alsios
O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recm-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados
226
II. DELPHICA
I (FRISO ARCAICO)
Eu vos sado, filhas dos corcis de ps de tempestade.
Simnides de Keos
Pata dos corcis da tempestade
To concisa to duras e to finas
Puro rigor de espigas arquitrave
Medida amor e fria se combinam
II
Esse que humano foi como um deus grego
Que harmonia dos cormos manifesta
No s em sua mo e sua testa
Mas em seu pensamento e seu apego
quele amor inteiro e nunca cego
Que emergia da praia e da floresta
Na secreta nostalgia de uma festa
Trespassada de espanto e de segredo
Agora jaz sem fonte e sem projecto
Quebrou-se o tremplo actual antigo e puro
De que ele foi medida e arquitecto
Python venceu Apolo num fronto obscuro
Quebrada foi desde seu eixo recto
A construo possvel do futuro
III (ANTINOOS)
Noite diurna
At mais funda limpidez do instinto
Sob os teus cabelos em anel sombria vinha
Corpo terrestre e solene como o azul mais aceso da montanha
O quase imvel fogo dos teus beios
Pesa como fruto pleno no rumor de brisa da rvore
Porta aberta para toda a natureza
atravs de ti que os meus rios caminham como veias
Novilho de testa curta no secreto silncio dos bosques
Sobre os teus ombros poisa terrvel o meio-dia
227
228
229
Fingidamente imveis,
E sombra de folhagens e palavras
Os deuses transparecem
Como para beber o sangue oculto
Que nos tornou atentos.
III
Ausentes so os deuses mas presidem.
Ns habitamos nessa
Transparncia ambgua.
Seu pensamento emerge quando tudo
De sbito se torna
Solenemente exacto.
O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa ateno ao mundo
o culto que pedem.
IV
Falamos junto luz. L fora a noite
Imvel brilha sobre o mar parado.
sombra das palavras o teu rosto
em mim se inscreve como se durasse.
V
Faz da tua vida em frente luz
Um lcido terrao exacto e branco
Docemente cortado
Pelo rio das noites.
Alheio o passo em perdida estrada
Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexvel assiste
tua prpria ausncia.
VI
Irmo do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
Pra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impes
Leis que no so as minhas.
Teus ps batem a dana
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidia cintilas
Longas mos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira
230
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.
VII
Eros, Neera, sacudiu os seus
Cabelos sobre a testa larga e baixa
Eros-Neera-Antinoos
Irrompe no terrao.
Palmeiras nas runas de Palmira.
Eros poisou seu rosto no teu ombro,
Eros soltou as feras
Do halali, Neera.
IV. DUAL
MANH DE OUTONO NUM PALCIO DE SINTRA
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palcio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado
Ele no quis ouvir o alade dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mo rejeitou o sussurro das guas
Mas o pequeno palcio ntido sem nenhum fantasma
Sua sombra clara como a sombra de um palmar
No seu ptio canta um alvoroo de incio
Em suas guas brilha a juventude do tempo
A FONTE
Com voz nascente a fonte nos convida
A renascermos incessantemente
Na luz do antigo sol nu e recente
E no sussuro da noite primitiva
V. ARQUIPLAGO
Eis aqui o pas da imanncia sem mcula
O reino que te rene
Sob o rumor de folhagem que h nos deuses
O EFEBO
Claro e esguiamente medido como a amphora
Como a amphora
231
VI. EM MEMRIA
CAMES E A TENA
232
I. 1972-73
CCLADES
(evocando Fernando Pessoa)
A claridade frontal do lugar impe-me a tua presena
O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse
Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti prprio
Vivo de ti prprio
Em Lisboa cenrio da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O freqentador irnico delicado e corts dos cafs da Baixa
O visionrio discreto dos cafs virados para o Tejo
(Onde ainda no mrmore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mos
O imperceptvel dedilhar das tuas mos)
Esquartejado pelas frias do no-vivido
margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactido desenhaste os mapas
Das mltiplas navegaes da tua ausncia
Aquilo que no foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com prumos sondas astrolbios bssolas
Procedeste ao levantamento do desterro
233
234
CHE GUEVARA
Contra ti se ergueu a prudncia dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indeciso dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revoluo com desforra
De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas
Porm
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece
GRCIA 72
De novo os persas recuaro para os confins do seu imprio
Afundados em distncia confundidos com o vento
De novo o dia ser liso sobre a orla do mar
Nada encobrir a pura manh da imanncia
O PALCIO
Era um dos palcios do Minotauro
O da minha infncia para mim o primeiro
235
PARFRASE
Antes ser na terra escravo de um escravo
Do que ser no outro mundo rei de todas as sombras
Homero, Odisseia
II. 1974-75
REVOLUO
Como casa limpa
Como cho varrido
Como porta aberta
Como puro incio
Como tempo novo
Sem mancha nem vcio
236
III
SER POSSVEL
Ser possvel que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada sejam seno seu rosto ido
Sem regresso nem resposta s perdido?
A FORMA JUSTA
Sei que seria possvel construir um mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaos e das fontes
O cu e o mar e a terra esto prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos se ningum a atraioasse proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a prpria forma justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possvel construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel perfeio do universo
237
POEMA
Cantaremos o desencontro:
O limiar e o linear perdidos
Cantaremos o desencontro:
A vida errada num pai errado
Novos ratos mostram a avidez antiga
LISBOA
Digo: Lisboa
Quando atravesso vinda do sul o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extenso nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas
Vejo-a a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carncia
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de no-ser
Com seus meandros de espanto insnia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e mscara
Enquanto o largo mar Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construda ao longo da sua prpria ausncia
Digo o nome da cidade
Digo para ver
AS ILHAS
III
luz do aparecer a madrugada
Iluminava o cncavo de ausentes
Velas a demandar essas paragens
Aqui desceram as ncoras escuras
238
V
Ali vimos a veemncia do visvel
O aparecer total exposto inteito
E aquilo que nem sequer ousramos sonhar
Era o verdadeiro
VI
NAVAGAVAM SEM O MAPA QUE FAZIAM
Navegavam sem o mapa que faziam
(Atrs deixando conluios e conversas
Intrigas surdas de bordis e paos)
Os homens sbios tinham concludo
Que s podia haver o j sabido:
Para a frente era s o inavegvel
Sob o clamor de um sol inabitvel
Indecifrada escrita de outros astros
No silncio das zonas nebulosas
Trmula a bssola tacteava espaos
Depois surgiram as costas luminosas
Silncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visvel frente a frente
VII
Difcil saber de frente a tua morte
E no te esperar nunca mais nos espelhos da bruma
DERIVA
IV
Ele porm dobrou o cabo e no achou a ndia
E o mar o devorou com o instinto de destino que h no mar
239
VII
Outros diro senhor as singraduras
Eu vos direi a praia onde Luzia
A primitiva manh da criao
Eu vos direi a nudez recm-criada
A esquiva doura e a leve rapidez
De homens ainda cor de barro que julgaram
Sermos seus antigos deuses tutelares
Que regressavam
VIII
Vi as guas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rpidas aves furtivos animais
Vi prodgios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que j nenhum de ns entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanas
Oiro tambm flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi prolas e conchas e corais
Desertos fontes trmulas campinas
Vi o rosto de Eurydice nas neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
S do Preste Joo no vi sinais
As ordens que levava no cumpri
E assim contando tudo quanto vi
No sei se tudo errei ou descobri
X
Sombrios deuses
Senhores do medo antigo
O sopro como esttuas suspendendo
Na movedia luz das lamparinas
XI
Olhos abertos do navegador
Mudam aqui a luz a sombra a cor
E tambm faces e gestos se modulam
240
XIII
Cano rente ao nada
No silncio quieto
Da noite parada
Como quem buscasse
Seu rosto e o errasse
I. POEMAS REENCONTRADOS
FRAGMENTO DE OS FRACOS
............................................................
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam o erro dos outros
Administram os erros dos outros
So hbeis e sbios
Tm uma longa experincia do poder
E quando no podem usar a prpria fora
Usam a fraqueza dos outros
E ganham
Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisvel
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um toiro na arena
............................................................
241
242
NO TE ESQUEAS NUNCA
No te esqueas nunca de Thasos nem de Egina
O pinhal a coluna a veemncia divina
O templo o teatro o rolar de uma pinha
O ar cheirava a mel e a pedra a resina
Na esttua morava tua nudez marinha
Sob o sol azul e a veemncia divina
No te esqueas nunca de Treblinka e Hiroshima
O horror o terror a suprema ignomnia
II
PERSONA
Mitolgico personagem parece
Um falco do Egipto
Sob seu lgico discurso permanece
Intacto o no dito
Mas algo de falco nele se inscreve
Hierglifo indecifrvel
E o deus que ele foi ou nele esteve
Desarticula o seu olhar instvel
III
OS NAVEGADORES
O mltiplo nos inebria
O espanto nos guia
243
DESCOBRIMENTO
Saudavam com alvoroo as coisas
Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manh
IV
GUITARRA
Na voz de oiro e de sombra da guitarra
Algo de mim a si prprio renuncia
244
OS BIOMBOS NAMABAM
Os biombos Nambam contam
A histria alegre das navegaes
Pasmo de povos de repente
Frente a frente
Alvoroo de quem v
O to longe to ao p
Laca e leque
Kimono camlia
Perfeio esmero
E o sabor do tempero
Cerimnias mesuras
Nipnicas finuras
Malcia perante
Narigudas figuras
Inchados cales
Enquanto no alto
Das mastreaes
Fazem pinos do saltos
Os geis acrobatas
Das navegaes
Danam de alegria
Porque o mundo encontrado
muito mais belo
Do que o imaginado
ESTTUA DE BUDA
Os belos traos o inchado beio a narina fina
O torneado corpo e sua
Beleza to carnal de magnlia e fruto
Em to longqua latitue representam
O prncipe da perfeio da renncia
Antes do museu
Em sua frente
Oscilvam sombras e luzes enquanto deslizava
245
ELSINORE
No palcio dos tridas como em Elsinore
Tudo era cavernoso as paredes
Eram grossas o espao excessivo e sonoro
Roucas as vozes da maldio antiga
Porm em Micenas o sangue era exposto
E corria vermelho como num grande talho
Sujando apenas as mos dos assassinos
E a gua da banheira
L fora o rio a luz
Continuavam limpos e transparentes
O crime era um corpo estranho circunscrito
No pertencia natureza das coisas
Em Elsinore ao contrrio o mal era um veneno
Subtil
Invadia o ar e a luz penetrava
Os ouvidos as narinas o prprio pensamento
O amor era impossvel e ningum podia
Libertar-se:
O inferno vomitava sua pestilncia invadia
As veias e os rios:
No entanto o mal no se via: era apenas
Um leve sabor a podre que fazia parte
Da natureza das coisas
2 ANDAMENTO
ORPHEU
Orpheu
seu canto alto e grave
O canto de oiro o xtase da lira
Orpheu
A palidez sagrada de seu rosto
Que de clares e sombras se ilumina
Ante seus ps se deitam mansas feras
246
EURYDICE EM ROMA
Por entre clamor e vozes oio atenta
A voz da flauta na penumbra fina
E ao longe sob a copa dos pinheiros
Com leves ps que nem as ervas dobram
Intensa absorta sem se virar pra trs E j separada Eurydice caminha
3 ANDAMENTO
ELEGIA
Aprende
A no esperar por ti pois no te encontrars
No instante de dizer sim ao destino
Incerta paraste emudecida
E os oceanos depois devagar te rodearam
A isso chamaste Orpheu Eurydice Incessante intensa a lira vibrava ao lado
Do desfilar real dos teus dias
Nunca se distingue bem o vivido do no vivido
O encontro do fracasso Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta
Quando se ergue o canto
Por isso a memria sequiosa quer vir tona
Em procura da parte que no deste
No rouco instante da noite mais calada
Ou no secreto jardim beira-rio
Em Junho
FERNANDO PESSOA
Com o sobretudo abotoado at o queixo
Embiocado afastado
No lugar mais escuro do caf escrevia
O mltiplo poema o canto inumervel
Arrancado ao desejo paixo memria
s lucidssimas frias da renncia
247
O INFANTE
Aos homens ordenou que navegassem
Sempre mais longe para ver o que havia
E sempre para o sul e que indagassem
O mar a terra o vento a calmaria
O povos e os astros
E no desconhecido cada dia entrassem
NO MEU PAS
As pequenas cidades intensas
Onde o tempo no dissolvido mas dura
E cada instante ressoa nas paredes da esquina
E o rosto de Laura aflora na janela desencontrada
E apaixonado de testa obstinada como a de um toiro
Em vo a procura onde ela nunca est
aqui que ao passarmos a nossa garganta se aperta
Enquanto um homem alto e magro
Baixando a direito o chapu largo e escuro
De cima a baixo se descobre
Ao transpor o limiar sagrado da casa
LIVRO: DISPERSOS
MAR
De novo o som o ressoar o mar
De novo o embalo do tumulto mais antigo
E a inteireza do instante primitivo
De novo o canto o murmurar o mar
Que se repete intacto e sacral
De novo o limpo e nu clamor primordial
NAVEGADORES
Esses que desenharam os mapas da surpresa
Contornando o cabos e dando nome s ilhas
E por entre brilhos espelhos e distncias
Por entre areas brumas irisadas
Em extticas manhs solenes e paradas
No breve instante eterno surpreederam
248
LIVRO: INDITOS
Enigmticos, desertos e suspensos
Os espaos vermlhos do poente
Pases de completa maravilha,
Cobrem o campo morto dos destroos
Um por um morremos olhos fitos
No caminho dos deuses.
1
A respirao dos deuses um silncio nu
E uma nudez mais aguda poisada sobre as coisas
2
Aqui minha alma se suspende
Como tocando a substncia pressentida
3
Eis o centro do mundo sem umbigo
A exacta proporo de presena e vazio
249
SO FRANCISCO DE ASSIS
CNTICO DAS CRIATURAS / CNTICO DO IRMO SOL
Altssimo, onipotente, bom Senhor,
teus so o louvor, a glria, a honra e toda a bno.
Somente a ti, altssimo, convm,
e ningum mais digno de te nomear.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas tuas criaturas,
especialmente o nobre irmo sol,
que faz o dia e com ele nos ilumina.
belo e radiante num grande esplendor:
carrega a tua face.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irm lua e as estrelas,
que no cu formaste, claras e preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmo vento,
pelo ar nublado e sereno e todo o clima
donde tiram sustento as tuas criaturas.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irm gua,
que muito til e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmo fogo,
com que a noite se alumia,
pois ele belo e alegre e vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irm me terra,
que nos sustenta e governa
e que produz diversos frutos com flores furta-cores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu
amor
e suportam doenas e aflies.
Felizes daqueles que as sustentam em paz,
pois por ti, Altssimo, sero coroados.
Louvado sejas, meu senhor, por nossa irm a morte
corporal,
da qual ningum que vive pode escapar.
Ai daqueles que morrem me pecados mortais,
felizes os que ela achar em tua santssima vontade,
pois a morte segunda no lhes far mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
e agradecei e servi-o com toda humildade.
WISAWA SZYMBORSKA
A MULHER DE LOT
Dizem que olhei para trs de curiosa.
Mas quem sabe eu tambm tinha outras razes.
250
LBUM
Ningum na famlia nunca morreu de amor.
O que passou, passou, mas nada que alimente um mito.
Romeus tsicos? Julietas diftricas?
Alguns at atingiram uma idade senil.
Nenhuma vtima de falta de reposta
a uma carta manchada de lgrimas!
Ao fim e ao cabo sempre aparecia algum vizinho
de pincen carregando um buqu.
Nunca ningum sufocou num armrio estiloso
porque o marido da amante voltou de repente!
Nenhuma mantilha, babado ou fita
nunca impediu ningum de aparecer na foto.
E nunca na alma o Bosch infernal!
E nunca com uma pistola pelo quintal!
(Faleceram de bala na cabea, mas por outros motivos
251
e em macas de campanhas.)
Mesmo essa de coque exttico
e olheiras fundas como depois de uma folia
se foi em meio a uma grande hemorragia
mas no para ti, danarino, e no com pena.
Talvez algum muito antes do daguerretipo
mas desses no lbum, nenhum, que eu tenha sabido.
As tristezas se desfaziam em risos, corriam os dias
e eles consolados sumiam-se de gripe.
252
253
DRUMMOND
QUINTANAS BAR
Num bar fechado h muitos, muitos anos, e cujas portas de ao bruscamente se descerram, encontro,
que eu nunca vira, o poeta Mario Quintana.
To simples reconhec-lo, toda identificao v. O poeta levanta seu corpo. Levanto o meu. Em
algum lugar coxilha? montanha? vai rorejando a manh.
Na total desincorporao das coisas antigas, perdura um elemento mgico: estrela-do-mar ou
Aldebar?, tamanquinhos, menina correndo com o arco. E corre com ps de l.
254
Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cmplices, ele com seu talism. Assim me
fascinavam outrora as feitiarias da preta, na cozinha de picum.
Na conspirao da madrugada, erra solitrio dissolve-se o bar o poeta Quintana. Seu olhar
devassa o nevoeiro, cada vez mais densa a bruma de antanho.
Uma teia se tecendo, e sem trabalho de aranha. Falo de amigos que envelheceram ou que sumiram na
semente de avel.
Agora voamos sobre tetos, garupa da bruxa estranha. Para iludirmos a fome, que no temos, pintamos
um rom.
E j os homens sem provncia, despeta-la-se a flor alde. O poeta aponta-me casas: a de Rimbaud, a de
Blake, e a gruta camoniana.
As amadas do poeta, l embaixo, na curva do rio, ordenam-se em lenta pavana, e uma a uma, gotas
cidas, desaparecem no poema. h tantos anos, ser ontem, foi amanh? Signos criptogrficos ficam
gravados no cu eterno ou na mesa de um bar abolido, enquanto, debruado sobre o mrmore,
silenciosamente viaja o poeta Mrio Quintana.
VIVER
Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era s a batida
numa porta fechada?
E ningum respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?
Isso, ou menos que isso,
uma noo de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?
O projeto de escuta
procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?
Como viver o mundo
em termos de esperana?
E que palavra essa
que a vida no alcana?
O FIM NO COMEO
A palavra cortada
na primeira slaba.
A consoante esvanecida
sem que a lngua atingisse o alvolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo havia, havia um campo?
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.
A vida no chega a ser breve.
255
POEMA PATTICO
Que barulho esse na escada?
o amor que est acabando,
o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
Que barulho esse na escada?
Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
a lua imvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
Que barulho esse na escada?
a torneira pingando gua,
o lamento imperceptvel
de algum que perdeu no jogo
enquanto a banda de msica
vai baixando, baixando de tom.
Que barulho esse na escada?
a virgem com um trombone,
a criana com um tambor,
o bispo com uma campainha
e algum abafando o rumor
que salta de meu corao.
BOLERO DE RAVEL
A alma cativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia.
Infinita, infinitamente...
As mos no tocam jamais o areo objeto,
esquiva ondulao evanescente.
Os olhos, magnetizados, escutam
e no crculo ardente nossa vida para sempre est presa,
est presa...
Os tambores abafam a morte do Imperador.
256
ANOITECER
a hora em que o sino toca,
mas aqui no h sinos;
h somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trgicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
a hora em que o pssaro volta,
mas de h muito no h pssaros;
s multides compactas
escorrendo exaustas
como espesso leo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.
a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo no pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz morte mergulho
no poo mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.
Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silncio.
Haver disso no mundo?
antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
CONSOLO NA PRAIA
Vamos, no chores
A infncia est perdida.
A mocidade est perdida.
Mas a vida no se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o corao continua.
Perdeste o melhor amigo.
No tentaste qualquer viagem.
No possuis casa, navio, terra.
Mas tens um co.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustia no se resolve.
sombra do mundo errado
257
ONTEM
At hoje perplexo
ante o que murchou
e no eram ptalas.
De como este banco
no reteve forma,
cor ou lembrana.
Nem esta rvore
balana o galho
que balanava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis est gravado
no no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
RETRATO DE FAMLIA
Este retrato de famlia
est um tanto empoeirado.
J no se v no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mos dos tios no se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A av ficou lisa, amarela,
sem memrias da monarquia.
Os meninos, como esto mudados.
O rosto de Pedro tranqilo,
usou os melhores sonhos.
E Joo no mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantstico.
As flores so placas cinzentas.
E a areia, sob ps extintos,
um oceano de nvoa.
258
259
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261
REMISSO
Tua memria, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vo se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.
Mas, pesares de qu? perguntaria,
se esse travo de angstia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,
e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forou ao exlio das palavras,
seno contentamento de escrever,
enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo do teu ser?
O CHAMADO
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
j no criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.
Ao v-lo curvo e desgarrado
na catica noite urbana,
o que senti, no alegria,
era, talvez, carncia humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperana que no digo)
para onde vai a que angra serena,
a que Pasrgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espao
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparncias sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuio,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ningum
pressentisse, em torno, o Chamado.
RELGIO DO ROSRIO
262
263
LAVRA
DESTRUIO
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto no se vem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que so? Dois inimigos.
Amantes so meninos estragados
pelo mimo de amar: e no percebem
quanto se pulverizam no enlaar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada. Ningum. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrana de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
OS EXCNTRICOS
1
Chega a uma fazenda, apeia do cavalinho, de casa! Pede que lhe sirvam leito assado, e retira-se,
qualquer que seja a resposta.
2
Diz: Vou para o Japo e tranca-se no quarto, s brindo para que lhe levem alimento e bacia de banho, e
retirem os excretos. No fim de seis meses, regressa de viagem.
3
264
Cola duas asas de fabricao domstica nas costas e projeta-se do sobrado, na certez-esperana de vo.
Todas as costelas partidas.
4
Apaixona-se pela moa, que se casa com outro. Persegue o casal em todas as cidades para onde este se
mude. O marido, desesperado, atira nele, pela janela. No outro lado da rua, d outra janela, d uma
gargalhada e desaparece: a bala acerta no boneco que o protege sempre.
5
Data suas cartas de certo lugar: Meio do mundo, encontro das tropas, idas e vindas. Ao terminar, sada:
Dodarododo e assina: Dr. Manuel Buzina, que no mata, mas amofina.
LEO-MARINHO
Suspendei um momento vossos jogos
na fmbria azul do mar, peitos morenos.
Pescadores, voltai. Silncio, coros
de rua, no vaivm, que um movimento
diverso, uma outra forma se insinua
por entre as rochas lisas, e um mugido
se faz ouvir, soturno e diurno, em pura
exalao opressa de carinho.
o louco leo-marinho, que pervaga,
em busca, sem saber, como da terra
(quando a vida nos di, de to exata)
nos lanamos a um mar que no existe.
A doura do monstro, oclusa, espera...
Um leo-marinho brinca em ns, e triste.
DELIGAMENTO
minhalma, d o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar!
Sem pesar de ter existido e no ter saboreado o inexistvel.
Quem sabe um dia o alcanars, alma conclusa?
minha alma, irm deserta, consola-te de me teres habitado,
se no fui eu que te habitei, hspede maligno,
com irritao, com desamor, com desejo de ferir-te:
que farei sem ti, agora que te despedes
e no prometes lembrar este copo destitudo?
minha, de ningum, alma liberta,
a parceria terminou, estamos quites!
SONO LIMPO
265
266
267
268
No 14, mora o voluntrio degolado de todas as guerras em perspectiva, disposto a matar e a morrer em
cinco continentes.
No 15, o ltimo leitor de Dante, o ltimo de Cervantes, o ltimo de Musil, o ltimo do Dirio Oficial
dizem adeus palavra impressa.
No 16, agricultores protestam contra a fuso de sementes que faz nascerem cereais invertidos e o milho
produzir crianas.
No 17, preparam-se oraes de sapincia, tratados internacionais, bulas de antibiticos.
No se sabe o que aconteceu ao 18, suprimido da Torre.
No 19, profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analgico.
No 20, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap FBI Usaid Cafesp Alalc Eximbank trocam de letras, viram Xfp,
Jjs, IxxU e que sei mais.
No 22, banqueiros incineram duplicatas vencidas, e das cinzas nascem novas duplicatas.
No 23, celebra-se o rito do boi manso, que de to manso ganhou biografia e aurola.
No 24, vide 13.
No 25, que fazes tu, morcego do 3? que fazes tu, miss adormecida na passarela?
No 26, nossas sombras despregadas dos corpos passeiam devagar, cumprimentando-se.
O 27 uma clnica de nervosos dirigida por general-mdico reformado, e em que aos sbados todos se
curam para adoecer de novo na segunda-feira.
Do 28 saem boatos de revoluo e cruzam com outros de contra-revoluo.
Imprprio a qualquer uso que no seja o prazer, o 29 foi declarado inabitvel.
Excesso de lotao no 30: moradores s podem usar um olho, uma perna, meias palavras.
No 31, a Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se com cinzas de ovelhas
sacrificadas.
No 32, a Guerra dos 100 Anos continua objeto de anlise acuradssima.
No 33, um homem pede pra ser crucificado e no lhe prestam ateno.
No 34, um ladro sem ter o que roubar rouba o seu prprio relgio.
No 35, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia da Torre e das queixas.
Um mosquito , no 36, nico sobrevivente do que foi outrora residncia movimentada com jantares
peras paves.
No 37, a cano.
Filorela amarlina
lousileno i flanura
meleglrio omoldana
plunigirio olanin.
No 38, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na mmica de oraes.
No 39, a celebrao ecumnica dos anjos da luz e dos anjos da treva, sob a presidncia de um meirinho
surdo.
No 40, s h uma porta uma porta uma porta.
Que se abre para o 41, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos por fiscais do Imposto de
Conscincia.
No 42, goteiras formam um lago onde biam ninfias, e ninfetas executam bailados quentes.
No 43, no 44, no... (continua indefinidamente).
269
O DESPERTAR
Entra a luz e ascendo torpemente
Desde os sonhos ao sonho partilhado
E as coisas readquirem seu esperado
E devido lugar e no presente
Converge o assustador e vasto o vago
Ontem: as seculares migraes
Dos pssaro e dos homens, as legies
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Volta tambm a cotidiana histria:
Meu rosto e voz, e meu temor e sorte.
Ah! Se aquele outro despertar, a morte,
Deparasse-me um tempo sem memria
Do nome meu e do que eu tenho sido!
Ah! Se nessa manh houvesse olvido!
270
O INSTANTE
Onde as eras, o sonho derradeiro
De espadas com que os trtaros sonharam,
Onde as fortes paredes que arrombaram,
E a rvore de Ado, e o outro Madeiro?
O presente est s. S a memria
Erige o tempo. Sucesso e engano
So a rotina do relgio. O ano
Menos vo no do que a v histria.
H um abismo entre o albor e o sol que desce
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto, ao se mirar nos desgastados
Cristais da noite, no se reconhece.
O hoje fugaz tnue e eterno;
Nem outro Cu esperes, nem Inferno.
O PERDIDO
Onde estar minha vida, a que tudo
Pde se e no foi, a venturosa
Ou a de triste horror, essa outra coisa
Que pde ser a espada ou o escudo
E que no foi? Onde estar o perdido
Antepassado persa ou noruegus,
Onde o acaso de no me enceguecer,
Onde a ncora e o mar, onde o olvido
De ser quem sou? Onde estar a pura
Noite que ao rude lavrador confia
O iletrado e laborioso dia,
Conforme pede a literatura?
Penso tambm naquela companheira
Que me queria, e quem sabe ainda queira.
FALA UM BUSTO DE JANO
Ningum abra nem feche qualquer porta
Sem honrar a memria do Bifronte,
Que as preside. Abarco o horizonte
De incertos mares e de terra certa.
Minhas duas faces divisam o que passou
E o porvir. Posso v-los similares
Aos ferros, s discrdias e aos males
Que Algum pde apagar mas no apagou
Nem apagar. As duas mos me faltam
E sou de pedra imvel. No poderia
Precisar se contemplo uma porfia
Ou de ontens que se afastam.
Vejo minha runa: a coluna truncada
E as faces, que no vo se ver por nada.
O ADVENTO
Sou o que fui na aurora, entre a tribo.
Deitado em meu canto da caverna,
Lutava por afundar nas obscuras
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273
ROBERT BROWNING
A MINHA LTIMA DUQUESA
(Ferrara)
Aquela a minha ltima Duquesa pintada na parede,
parece mesmo que est viva. Agora considero
aquela pea um encanto; as mos de Fra Pandolfo
trabalharam um dia diligentes e ali est ela.
No quer sentar-se a contempl-la? Eu disse
Fra Pandolfo de propsito, pois nunca
estranhos como o senhor fitaram aquele semblante
com a profundidade e a paixo de seu olhar sincero
que no se voltassem para mim (pois ningum corre
a cortina que abri para o senhor ver, a no ser eu)
parecendo perguntar-me, se a tanto ousassem.
como que um olhar assim ali se oculta; por isso no
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276
ANA AKHMTOVA
RQUIEM
1935-1940
No, no foi sob outro firmamento,
Nem sob a proteo de asas estranhas:
Estive ento entre o meu povo,
L onde o meu povo, infelizmente, estava.
INTRODUO
Aconteceu quando a sorrir
Eram s os mortos: contentes pela paz.
E, intil sobra, pendia
Em volta de suas celas, Leningrado.
E, quando loucas de dor,
J marchavam as legies dos condenados,
E os silvos do trem cantavam
Um breve canto de adeus.
As estrelas da morte sobrestavam
Rssia inocente, se crespando
Sob as botas de sangue
E a sola dos negros cambures.
1.
Levaram-te ao amanhecer.
Atrs de ti, como no enterro, eu ia,
No quarto escuro, choravam os meninos.
Acabava-se a vela sobre o altar,
Nos lbios teus, do cone, o frio.
O suor mortal na testa... No d para esquecer!
Como as mulheres dos francos-atiradores,
Uivarei pelas torres do Kremlin.
3.
No, no sou eu, algum mais que sofre.
Eu no teria podido. Panos negros de l cubram
O que se passou, e levem os lampies...
Noite
5.
H dezessete meses eu grito,
277
GARCILASO DE LA VEGA
Quando paro a pensar no meu estado
e a ver os passos a que fui trazido,
acho, vendo por onde andei perdido,
que a maior mal podia haver chegado;
mas quando esqueo do caminho andado,
nem sei como a este mal fui atrado;
sei que me acabo, e mais terei sentido
ver acabar comigo o meu cuidado.
Acabarei, pois me entreguei sem arte
a quem ir perder-me e acabar-me
se ela quiser, e saber quer-lo;
pois, como o meu querer pode matar-me.
o dela, que nem de minha parte,
podendo, que far se no faz-lo?
FERNANDO PESSOA
PASSOS DA CRUZ
I.
Esqueo-me das horas transviadas...
O Outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqestrando a lucidez
278
II.
H um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efmera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capitis de Luz...
Violinos do silncio enternecidos...
Tdio onde o s ter tdio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao p dos sculos perdidos
E cismo o seu perfil de inrcia e vo...
III.
Adagas cujas jias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convs sem ningum cheio de malas...
O ntimo silncio das opalas
Conduz orientes at jias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de cio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo s pelo cessar das lanas
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovao, e erguem as crianas...
Mas no teclado as tuas mos pararam
E indefinidamente repousaram...
IV.
tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mos!,
E, beijando-o, descesse plos desvos
Do sonho, at que enfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra reis cristos
279
FLORBELA ESPANCA
LOUCURA
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! No sei onde era dantes
Meu solar, meus palcios, meus mirantes!
No sei de nada, Deus, No sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixes e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
No tenho nada, deus, no tenho nada!...
Pesadelos de insnia, brios de anseio!
Loucura a esboar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
pavoroso mal de ser sozinha!
pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
NIHIL NOVUM
Na penumbra do prtico encantado
De Bruges, noutras eras, j vivi;
Vi os templos do Egito com Loti;
Lancei flores, na ndia, ao rio sagrado.
No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bsforo errei, pensando em ti!
O silncio dos claustros conheci
Pelos poentes de ncar e brocado...
Mordi as rosas brancas de Ispa
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca brbara e deserta,
280
HERMANN HESSE
LAMENTO
A ns no foi doado um ser.
Somos apenas correnteza,
Flumos de bom grado pelas formas:
Pelo dia e a noite, a gruta e a catedral.
Por elas penetramos, incitados
Pela sede de ser.
Assim ns vamos sem repouso,
Enchendo as formas uma a uma,
sem que nenhuma delas seja para ns
A ptria, a ventura ou a dor.
Estamos sempre a caminhar,
Somos sempre visitantes,
No ouvimos o apelo do campo nem do arado,
Para ns no cresce o po.
Os desgnios de deus sobre ns no sabemos,
Ele brinca conosco, barro em sua mo,
O barro que mudo e tem plasticidade,
Quem no sabe nem rir nem chorar:
Barro amassado, porm jamis queimado.
Ah! Quem me dera transformar-me em dura pedra!
Permanecer enfim!
que ns aspiramos pela eternidade,
Mas nossa aspirao apenas,
eternamente um medroso tremor,
E no vir jamais a ser repouso em nossa via.
TRANSIGIR
Os intransigentes e simplrios
No suportam, claro, nossas dvidas.
O mundo superfcie, explicam simplesmente,
e um disparate a lenda dos abismos.
Pois se houvesse realmente outras dimenses,
Alm das duas boas, velhas conhecidas,
Poderia algum morar com segurana?
Poderia algum viver despreocupado?
281
LETRAS
Ns s vezes tomamos da pena e escrevemos
Sinais sobre uma folha branca de papel:
Dizem isto ou aquilo, e todos o conhecem,
um brinquedo que tem as suas regras.
Mas se viesse um selvagem
Ou habitante da lua,
E seus olhos curiosos, vidos de conhecer,
Cassem nessa folha de papel,
Nesse campo sulcado de runas,
Receberia uma imagem
fixa e estranha do mundo.
O A e o B seriam para ele
Homem e animal,
Olhos, lnguas, membros a mover-se,
Ora ponderados, ora impetuosos;
Leria como na neve as pegadas do corvo,
Havia de correr, de repousar,
282
283
De rugas miudinhas.
Assim tambm um elevado sentimento
Pode em nossos sentidos, num instante,
Em esgares transformar-se em dissabor,
Como se h muito possusse dentro de si
O saber de que tudo apodrece,
Tudo tem de murchar e de morrer.
E sobre esse nojento vale de cadveres
Se estira dorido, e no entanto incorrupto,
O esprito saudoso de fanais ardentes,
Combate a morte e torna-se imortal.
284
UM SONHO
Num convento das montanhas, como visitante
Entrei, na hora em que todos
Tinham ido rezar, em uma biblioteca.
Aos reflexos da luz crepuscular da tarde,
Com suave brilho cintilavam
Na parede pergaminhos das lombadas,
Com inscries maravilhosas,
De livros aos milhares.
Cheio de avidez e encantamento,
Tomei de um livro e li:
ltimo passo para se encontrar
a quadratura do crculo.
Este livro, pensei, levo comigo!
Num outro livro, um in-quarto de couro dourado,
Em letras minsculas se lia:
De como Ado comeu tambm da outra rvore...
Da outra rvore? De qual: da vida?
Nesse caso, imortal seria Ado?
No era em vo, eu percebi, que eu me encontrava ali.
Vendo um in-flio que em sua lombada,
Nas bordas e nos cantos, cintilava
Nas cores matizadas do arco-ris.
Seu ttulo, uma iluminura, dizia assim:
Do sentido anlogo das cores e dos sons.
Uma prova da correlao
Das cores e da sua difrao,
Com as tonalidades musicais.
Prometendo maravilhas, o coro de matizes
Fulgurava! E comecei a pressentir,
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286
287
SERVIR
No comeo reinavam virtuosos prncipes,
Consagrando campo, cereais e arado,
E o direito era seu de ofertar sacrifcios
E indicar a medida, na estirpe dos mortais
Sedentos do domnio justo do Invisvel,
Que mantm o sol e a luz em equilbrio,
E cujos vultos de radincia eterna,
No conhecem a dor nem o mundo mortal.
H muito a fila sagrada dos filhos de Deus
Esvaiu-se, e a humanidade ficou s,
No oscilar do prazer e da dor, longe do ser,
Um devir eterno, sem medida e sagrao.
Jamais, porm, morreu o vero sentido da vida,
E a ns coube a misso de conservar, na decadncia,
Pelo jogo dos smbolos, pela imagem e o canto,
A exortao do sagrado respeito.
Talvez a escurido desaparea um dia,
Talvez um dia os tempos se transformem,
E o sol nos regar de novo como um Deus,
De nossas mos aceitando oferendas.
BOLHAS DE SABO
Um ancio, nos anos da velhice,
Destilou de estudo e de reflexes,
A obra da sua ancianidade.
E em suas crespas gavinhas,
A folguejar ele estirou
Muita sabedoria cheia de doura.
Com fervor tempestuoso, um estudante
Aplicado, em bibliotecas e arquivos
Pesquisou, ardente de ambio;
Cria uma obra nos seus jovens anos,
De profundidade genial.
Sentado, um menino sopra num canio,
Enche de ar as matizadas bolhas de sabo,
E uma a uma elas vo estourando
Com a roupa e os louvores de um Salmo;
E a criana entrega toda a alma ao sopro.
E todos trs, o velho, o menino e o estudante,
Vo criando, da espuma da maia universal,
Sonhos sedutores, que em si no tm valor,
Porm, onde a sorrir, a luz eterna
Reconhece a si prpria,
288
E jubilante inflama-se.
DEGRAUS
289
O JOGO DE AVELRIOS
Msica do cosmo, msica dos mestres,
Estamos prontos a ouvir com respeito,
A conjurar para uma casta festa
Venerandos espritos de abenoados tempos.
Deixamo-nos elevar pelo mistrio
Daquelas magas frmulas,
Em cujo encanto e imensido ilimitada,
Tempestuosa, a vida,
Fluiu em claros smbolos.
Como constelaes eles vibram, cristalinos,
Nossa vida foi posta a seu servio,
E ningum pode de seus crculos tombar,
A no ser para o centro sagrado.
VIRGLIO
290
BUCLICAS
IV BUCLICA
Musas da Siclia, erga-se um pouco o nosso tom:
nem todos prezam o arvoredo e os baixos tamarizes;
cantamos selvas; selvas sejam, pois, dignas de um cnsul.
A ltima idade j chegou da predio de Cumas:
a grande ordem dos sculos, de novo ei-la que nasce.
Tambm j volta a Virgem, volta o reino de Saturno;
j uma nova prognie desce dos mais altos cus.
Casta Lucina, ampara, que j reina o teu Apolo,
o menino que est nascendo: a gerao de ferro
com ele findar, ao mundo vindo a raa de ouro.
sendo tu cnsul surgir a glria dessa idade,
Plio; sob o teu poder comearo os grandes meses.
Se o nosso crime deixou traos, nada valem eles,
que de um terror perptuo livrar-se-o todas as terras.
Ter a vida dos deuses o menino, que os ver
no meio dos heris, e ser visto em meio a eles,
regendo com as virtudes de seu pai um mundo em paz.
291
DELMIRA AGUSTINI
O INEFVEL
Traduo de Henriqueta Lisboa
Morro de estranho mal. No, no me mata a vida
a morte no me mata e nem me mata o amor.
Morro de um pensamento mudo como ferida.
No sentiste jamais aquela estranha dor
de um pensamento imenso enraizado vida
devorando alma e carne e no alcana a dar flor?
Nunca levastes dentro uma estrela dormida
por inteiro a abrasar-vos sem nenhum fulgor?
Cmulo dos martrios! Levar eternamente
desgarradora e seca a trgica semente
como um dente feroz que as entranhas corroeu.
Mas arranc-la em flor que amanhecera um dia
milagrosa e ideal ah! maior no seria
do que ter entre as mos a cabea de Deus.
ROSALA DE CASTRO
A JUSTIA PELA MO
292
JOAN SALVAT-PAPASSEIT
NADA MESQUINHO
Nada mesquinho
nem hora alguma spera,
nem de sombra o destino da noite.
E a geada to clara
que enche o sol de fascnio
do banho indo ao deleite:
tal que cada coisa pronta o leito as reflita.
Nada mesquinho,
e tudo rico tal vinho e a face corada.
E toda onda do mar sempre riu,
Primavera de inverno Primavera de stio.
E tudo Primavera:
e toda folha verde eternamente.
Nada mesquinho,
porque os dias no passam;
e no chega a morte nem por ser demandada.
E se hs demandado ela te finge uma cova
293
NADA MESQUINHO
Nada mesquinho
nem hora nenhuma intratvel,
nem escura a aventura da noite.
E o orvalho claro
que o sol sai e fica pasmo
e tem vontade de tomar banho:
que se espelha a cama de toda coisa feita.
Nada mesquinho
e tudo rico como o vinho e a face corada.
E a onda do mar sempre ri,
Primavera de inverno Primavera de vero.
E tudo Primavera:
e toda folha verde eternamente.
Nada mesquinho,
porque os dias no passam;
e a morte no chega nem sequer se foi chamada.
E sei foi chamada disfara uma cova para vocs
porque para nascer de novo vocs precisam morrer
E nunca somos um pranto
mas um sorriso fino
que se dispersa feito gomos de laranja.
Nada mesquinho
porque a cano canta em cada nadinha.
Hoje, amanh e ontem
se desfolhar uma rosa
e a virgem mais nova ter leite no peito.
[traduo de Ronald Polito & Josep Domnech Pensat]
ANNA AKHMTOVA
RQUIEM
1935-1940
No, no foi sob outro firmamento,
Nem sob a proteo de asas estranhas:
294
295
A enorme estrela.
MANUEL BANDEIRA
CANO DAS DUAS NDIAS
Entre estas ndias de leste
E as ndias ocidentais
Meu Deus que distncia enorme
Quantos Oceanos Pacficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medias
Pbis a no poder mais
Altos como a estrela-dalva
Longnquos como Oceanias
Brancas, sobrenaturais
Oh inacessveis praias!...
BOI MORTO
Como em turvas guas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroos do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
rvores da paisagem calma,
Convosco altas, to marginais!
Fica a alma, a atnita alma,
Atnita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto,
Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ningum sabe. Agora boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
CNTICO DOS CNTICOS
Quem me busca a esta hora tardia?
Algum que treme de desejo.
Sou teu vale, zfiro, e aguardo
Teu hlito... A noite to fria!
Meu hlito no, meu bafejo,
296
II
En el lomo de la danza
(va cargada o carga ella?)
es imposible decir
si es amazona o yegua.
La energa retenida
297
298
trevas e da luz.
Quando o mundo est em paz, quando todas as coisas esto em calma, obedecendo em
suas transformaes ao superior, ento a msica pode atingir a perfeio. Quando os desejos
e paixes no se encaminham por falsas vias, ento a msica pode aperfeioar-se. A msica
perfeita tem suas causas. Ela se originou do equilbrio. O equilbrio se originou do direito, o
direito se originou do sentido csmico. Por isso s se pode falar sobre msica com um home
que tenha reconhecido o sentido csmico.
A msica se baseia na harmonia entre o cu e a terra, na concordncia do sombrio e do
luminoso.
As naes decadentes e os homens maduros para o declnio tambm no se privam da
msica, mas sua msica no jovial. Por isso, quanto mais ruidosa a msica, tanto mais
melanclicos se tornam os homens, tanto mais decadente o pas, tanto maior a queda do
prncipe. Desse modo a essncia da msica tambm se perde.
O que todos os sagrados prncipes apreciavam na msica era sua jovialidade. Os tiranos
Chieh e Chou Hsin executavam msica ruidosa. Consideravam belas as sonoridades fortes, e
interessante a ao da quantidade macia. Aspiravam a sonoridades novas e raras, a sons
nunca ouvidos por nenhum ouvido; procuravam superar-se um ao outro e excederam todas e
medidas e metas.
A causa da descoberta do estado Chiu foi ter descoberto a msica mgica. bastante
ruidosa essa msica, mas na verdade afastou-se da essncia da msica. Pelo fato de se ter
afastado da prpria essncia da msica que essa msica no jovial. Se a msica no
jovial, o povo murmura, e a vida deperece. Tudo isso surge por se desconhecer a essncia da
msica e ter em vista apenas sonoridades ruidosas.
Por isso a msica de uma poca harmoniosa calma e jovial, e o governo equilibrado. A
msica de uma poca inquieta excitada e colrica, e seu governo mau. A msica de uma
nao em decadncia sentimental e triste e seu governo corre perigo.
Atribudo a Li Bu We, extrado do livro Primavera e outono.
Murasaki. La Historia De Genyi20
Los editores del orientalista Arthur Waley han publicado en un solo volumen servicial su ya
famosa traduccin de la Historia de Gengi de Murasaki, antes apenas accesible (o
inaccesible) en seis onerosos volmenes. Esa versin puede calificarse de clsica: est
redactada con casi milagrosa naturalidad y le interesa menos el exotismo -horrenda palabra!
- que las pasiones humanas de la novela. Ese inters es justo; la obra de Murasaki es muy
precisamente lo que se llama una novela psicolgica. Hace mil aos la compuso una dama de
honor de la segunda emperatriz del Japn; en Europa sera inconcebible antes del siglo
diecinueve. Lo anterior no quiere decir que la vasta novela de Murasaki sea ms intensa o
ms memorable o mejor que la obra de Fielding o de Cervantes; quiere decir que es ms
compleja y que la civilizacin que denota es ms delicada. Dicho sea con otras palabras: no
afirmo que Murasaki Shikibu tuviera el talento de Cervantes, afirmo que la escuchaba un
pblico ms sutil. En el Quijote, Cervantes se limita a distinguir el da de la noche; Murasaki
(El puente de los sueos, captulo diez) nota en una ventana las estrellas borrosas detrs
de la nieve que cae. En el prrafo anterior, menciona un largo puente hmedo en la neblina,
que parece mucho ms lejos. Tal vez el primer rasgo es inverosmil; los dos son
extraamente eficaces.
299
He alegado dos rasgos de orden visual; quiero destacar uno psicolgico. Una mujer, detrs
de una cortina, ve entrar a un hombre. Escribe Murasaki: Instintivamente, aunque ella
saba muy bien que l no poda verla, se alis el pelo con la mano.
Es evidente que en dos o tres fragmentos lineales no cabe la medida de una novela de
cincuenta y cuatro captulos. Me atrevo a recomendarla a quienes me leen. La traduccin
inglesa que ha motivado esta breve nota insuficiente se titula The Tale of Genji y ha sido
1699 Madrid
O ENFEITIADO
Embora no tenha sido anunciada pelo heraldo trombeteiro, pelas ruas de Madrid
voa a notcia. Os inquisidores descobriram o culpado do feitio do rei Carlos. A
feiticeira Isabel ser queimada viva na praa Maior.
Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o monarca bebia sua
poo de p de vbora, infalvel para dar foras, mas em vo: o pnis seguia
abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam saindo babas e
hlito imundo e nem uma palavra que valesse a pena.
O malefcio no vinha de certa xcara de chocolate com p de testculos de
enforcado, como tinham dito as bruxas de Cangas, nem do prprio talism que o
rei usava pendurado no pescoo, como acreditou o exorcista frei Mauro. Houve
quem dissesse que o monarca tinha sido enfeitiado pela prpria me, com tabaco
da Amrica ou pastilhas de benjuy; e inclusive se rumoreou que o mordomo-mor, o
duque de Castellflorit, tinha servido mesa real um presunto misturado com unhas
de mulher moura ou judia queimada pela Inquisio.
Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o redemoinho de agulhas,
grampos, caroos de cereja e louros cabelos de Sua Majestade, que a feiticeira
Isabel tinha escondido pertinho da alcova real.
Balana o nariz, balana o lbio, balana o queixo; mas agora que o rei foi
desembruxado, parece que os olhos dele se acenderam um pouquinho. Um ano
ergue o crio, para que o Rei contemple seu retrato, que h anos pintou Carreo.
Enquanto isso, fora do palcio faltam po e carne, peixe e vinho, como se Madrid
fosse uma cidade sitiada.
1699 Madrid . O ENFEITIADO - Embora no tenha sido anunciada pelo heraldo
trombeteiro, pelas ruas de Madrid voa a notcia. Os inquisidores descobriram o
culpado do feitio do rei Carlos. A feiticeira Isabel ser queimada viva na praa
Maior.Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o monarca bebia sua
poo de p de vbora, infalvel para dar foras, mas em vo: o pnis seguia
300
abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam saindo babas e
hlito imundo e nem uma palavra que valesse a pena. O malefcio no vinha de
certa xcara de chocolate com p de testculos de enforcado, como tinham dito as
bruxas de Cangas, nem do prprio talism que o rei usava pendurado no pescoo,
como acreditou o exorcista frei Mauro. Houve quem dissesse que o monarca tinha
sido enfeitiado pela prpria me, com tabaco da Amrica ou pastilhas de benjuy;
e inclusive se rumoreou que o mordomo-mor, o duque de Castellflorit, tinha servido
mesa real um presunto misturado com unhas de mulher moura ou judia
queimada pela Inquisio. Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o
redemoinho de agulhas, grampos, caroos de cereja e louros cabelos de Sua
Majestade, que a feiticeira Isabel tinha escondido pertinho da alcova real. Balana
o nariz, balana o lbio, balana o queixo; mas agora que o rei foi desembruxado,
parece que os olhos dele se acenderam um pouquinho. Um ano ergue o crio,
para que o Rei contemple seu retrato, que h anos pintou Carreo. Enquanto isso,
fora do palcio faltam po e carne, peixe e vinho, como se Madrid fosse uma
cidade sitiada.
1566 Madrid
O FANTICO DA DIGNIDADE HUMANA
Frei Bartolom de Las Casas est passando por cima do rei e do Conselho das
ndias. Ser castigada a sua desobedincia? Aos noventa e dois anos, pouco lhe
importa. Meio sculo lutou ele. No esto em sua faanha as chaves de sua
tragdia? Muitas batalhas deixaram que ele ganhasse; faz tempo que sabe disso,
porque o resultado da guerra estava decidido por antecipao.
Os dedos j no lhe do confiana. Dita a carta. Sem autorizao de ningum, se
dirige diretamente Santa S. Pede ao papa Pio V que mande cessar as guerras
contra os ndios e que ponha fim ao saqueio que usa a cruz como libi. Enquanto
dita se indigna, sobe-lhe o sangue cabea e se rompe a voz que lhe sobra, rouca
e pouca.
Subitamente, cai ao cho.
1566 Madrid
Mesmo perdendo, vale a pena.
Os lbios se movem, dizem palavras sem som.
301
Me perdoars, Deus?
Frei Bartolom pede clemncia no Juzo Final, por ter acreditado que os escravos
negros e mouros aliviariam a sorte dos ndios.
Jaz estendido, mida a testa, plido, e no cessam de mover-se os seus lbios.
Um trovo explode, lento, ao longe. Frei Bartolom, o nascedor, o fazedor, fecha os
olhos. Embora tenha sido sempre duro de ouvido, escuta a chuva sobre o telhado
do convento de Atocha. A chuva molha a sua cara. Sorri.
Um dos sacerdotes que o acompanham murmura alguma coisa sobre a estranha
luz que acendeu-lhe o rosto. Atravs da chuva, livre de dvida e tormento, frei
Bartolom est viajando, pela ltima vez, para os verdes mundos onde conheceu a
alegria.
Obrigado dizem seus lbios, em silncio, enquanto l as oraes luz de
vaga-lumes, salpicado pela chuva que golpeia o teto de folhas de palmeiras.
Obrigado diz, enquanto celebra missa em choupanas sem paredes e batiza
Lima, 1670. "Tenha d de ns", Tinham-lhe dito, sem palavras, os ndios das minas
de Potos. E no ano passado o conde de Lemos, vice-rei do Peru, escreveu ao rei
da Espanha: No h nao no mundo to fatigada. Eu descarrego minha
conscincia com informar a Vossa Majestade com esta clareza: no prata o que
se leva Espanha, e sim sangue e suor de ndios. O vice-rei viu o monte que
come homens. Das comunidades trazem ndios atados a cordas com argolas de
ferro, e quantos mais o monte come, mais cresce sua fome. As aldeias ficam
vazias de homens. Depois do relatrio ao rei, o conde de Lemos proibiu as
jornadas de semana inteira nas covas asfixiantes. Golpes de tambor, prego de
negro: daqui para a frente, disps o vice-rei, trabalharo os ndios da sada at o
pr-do-sol, porque no so escravos para pernoitar nas galerias. Ningum
acreditou. E agora recebe, em seu austero palcio de Lima, uma resposta do
303
Madrid, 1700
Penumbra de Outono
Nunca pde vestir-se sozinho, nem ler correntemente, nem ficar em p por conta
prpria. Aos quarenta anos, um velhinho sem herdeiros, que agoniza rodeado de
confessores, exorcistas, cortesos e embaixadores que disputam o trono.
Os mdicos, vencidos, tiraram de cima dele as pombas recm-mortas e as
entranhas de cordeiro. As sanguessugas j no cobrem seu corpo. No lhe do de
beber aguardente nem a gua-da-vida trazida de Mlaga, porque s resta esperar
a convulso que o arrancar deste mundo. A luz das tochas, um Cristo
ensangentado assiste, da cabeceira da cama, cerimnia final. O cardeal salpica
gua benta com o aspersrio. A alcova fede a cera, incenso, sujeira. O vento
golpeia os prticos do palcio, mal amarrados com barbantes.
O levaro morgue de El Escoriai, onde o espera, h anos, a urna de mrmore
que leva seu nome. Essa era a sua viagem preferida, mas h tempos que no
visita a prpria tumba nem mostra o nariz nas ruas. Est Madrid cheia de buracos
e lixo e vagabundos armados; e os soldados, que mal e mal vivem da sopa boba
dos conventos, no se preocupam em defender o rei. Nas ltimas vezes em que se
atreveu a sair, as lavadeiras do rio Manzanares e os rapazes da rua perseguiram a
carruagem e cobriram ele de insultos e pedradas.
Carlos II, com os vermelhos olhos arregalados, treme e delira. Ele um pedacinho
de carne amarela que foge entre os lenis, enquanto foge tambm o sculo e
acaba, assim, a dinastia que fez a conquista da Amrica.
Barcelona, 1533
As guerras santas
Da Amrica chegam os heraldos da boa-nova. O imperador fecha os olhos e
assiste o avano das velas e sente o cheiro do breu e do sal. Respira o imperador
como o mar, mar cheia, mar vazia; e sopra para apressar os navios inchados de
tesouros.
A Providncia acaba de dar-lhe de presente um novo reino, onde o ouro e a prata
abundam como o ferro em Vizcaya. O assombroso tesouro est a caminho. Com
ele poder tranqilizar os banqueiros que o enforcam e poder finalmente pagar os
seus soldados, lanceiros suos, mercenrios alemes, infantes espanhis, que
no vem uma moeda nem em sonhos. O resgate de Atahualpa financiar as
304
guerras santas contra a meia-lua do Isl, que chegou s portas de Viena, e contra
os hereges que seguem Lutero na Alemanha. O imperador armar uma grande
frota para varrer do Mediterrneo o sulto Solimo e o velho pirata Barba Roxa.
O espelho devolve ao imperador a imagem do deus da guerra: a armadura
adamascada, com rendas cinzeladas ao bordo da gola e da couraa, o casco de
plumas, o rosto iluminado pelo sol da glria: as sobrancelhas ao ataque sobre os
olhos melanclicos, o barbudo queixo lanado para a frente. O imperador sonha
com Argel e escuta o chamado de Constantinopla. Tunes, cada em mos infiis,
tambm espera pelo general de Jesus Cristo.
Roma, 1537
O PAPA DIZ QUE SO COMO NS.
O papa Paulo III estampa seu nome no selo de chumbo, que mostra as efgies de
So Pedro e So Paulo, e o amarra em um pergaminho. Uma nova bula sai do
Vaticano. Se chama Sublimis Deus e descobre que os ndios so seres humanos,
dotados de alma e razo.
Jamestown, 1644
Opechancanough
Antes que um soldado ingls o fulmine pelas costas, o chefe Opechancanough se
pergunta: "Onde est o guardio invisvel de minhas viagens? Quem roubou-me a
minha sombra?".
Aos cem anos, foi derrotado. Tinha ido ao campo de batalha em uma liteira.
Faz mais de oitenta anos que o almirante Pedro Menndez de Avils levou-o a
Cadiz. Apresentou-o na corte de Felipe II: Eis aqui um belo prncipe ndio da
Florida. Puseram-lhe calas, gibo e gola. Em um convento dominicano de Sevilha
ensinaram-lhe a lngua e a religio dos castelhanos. Depois, no Mxico, o vice-rei
deu-lhe seu nome de presente e Opechancanough passou a chamar-se Luis de
Velasco. Ao mesmo tempo regressou terra de seus pais, como intrprete e guia
dos jesutas. Sua gente achou que ele voltava da morte. Predicou o cristianismo e
depois despiu-se e degolou os jesutas e tornou a chamar-se como antes.
Desde aquele tempo, matou muito e viu muito. Viu as chamas devorando aldeias e
campos de cultivo e viu seus irmos vendidos a quem pagava mais, nesta regio
que os ingleses batizaram de Virgnia em memria a uma rainha virgem de
esprito. Viu a varola engolindo homens e o tabaco, faminto, devorando terras. Viu
como eram apagados do mapa dezessete das vinte e oito comunidades que
305
O SOL E A LUA
O primeiro sol, o sol de gua, a inundao levou. Todos os que moravam no
mundo se converteram em peixes.
O segundo sol, os tigres devoraram.
O terceiro, uma chuva de fogo, que incendiou as gentes, arrasou.
O quarto, o sol de vento, a tempestade apagou. As pessoas se transformaram em
macacos e se espalharam pelos montes.
Pensativos, os deuses se reuniram em Teotihuacn.
Quem se ocupar de trazer o amanhecer?
O senhor dos caracis, famoso por sua fora e por sua formosura, deu um passo
adiante.
Eu serei o sol disse.
Quem mais? Silncio.
Todos olhavam para o Pequeno Deus Purulento, o mais feio e desgraado dos
deuses, e disseram:
Tu.
O Senhor dos Caracis e o Pequeno Deus Purulento se retiraram para os montes
que agora so as pirmides do sol e da lua. Ali em jejum, meditaram.
Depois os deuses juntaram lenha, armaram uma fogueira enorme e os chamaram.
O Pequeno Deus Purulento tomou impulso e se atirou nas chamas. Em seguida
emergiu, incandescente, no cu.
O Senhor dos Caracis olhou a fogueira com o cenho franzido. Avanou,
retrocedeu, parou. Deu um par de voltas. Como no se decidia, tiveram de
empurr-lo. Com muita demora subiu ao cu. Os deuses, furiosos, o esmurraram.
Bateram em sua cara com um coelho, uma e outra vez, at que mataram seu
brilho. Assim, o arrogante Senhor dos Caracis se transformou na lua. As manchas
da lua so as cicatrizes daquele castigo.
Mas o sol resplandecente no se movia. O gavio de pedra voou at o Pequeno
Deus Purulento:
Por que no andas?
E respondeu o desprezado, o fedorento, o corcunda, o manco:
Porque quero o sangue e o reino.
Este quinto sol, o sol do movimento, iluminou os toltecas e ilumina os astecas. Tem
garras e se alimenta de coraes humanos.
306
Madrid, 1620
307
la gloria...
No eres t quin manda? murmura Felipe.
... otros premios reciba quien osara bailar la zarabanda! Doscientos azotes y a
remar a galeras!
T, digo susurra el rey, y cierra los ojos.
T y un espumoso globito, saliva que siempre le sobra en la boca, asoma entre
los labios.
El duque insina una protesta y en seguida calla y retrocede en puntas de pie.
Felipe se va hundiendo en el sopor, pesadas las pestaas, y suea con uma mujer
gorda y desnuda que devora barajas.
No dia 26 de fevereiro de 1659, Felipe IV nomeou Velzquez cavaleiro da Ordem de
Santiago. Nos meses subseqentes o Conselho das Ordens investigou cada canto
da sua linhagem e da sua histria pessoal, entrevistando 148 testemunhas em
Sevilha, Madri e na fronteira portuguesa, perto do lugar onde a famlia tinha
origem.
O veredito, divulgado em 26 de fevereiro de 1659, deve ter sido uma surpresa:
rejeitara a nomeao porque no ficara provado o status nobre da av paterna nem
dos avs maternos do artista. Hoje parece no haver dvida de que a evidncia
genealgica estabeleceu, na verdade, que os dois ramos da famlia de Velzquez
pertenciam baixa nobreza. Por inferncia, o verdadeiro motivo da rejeio era sua
profisso. Os pintores s tinham qualificao para a Ordem de Santiago se no
aceitassem pagamento por suas obras. Vrios colegas de Velzquez Zurbarn,
Cano, Carreo e Nardi, entre eles prestaram depoimento nesse sentido, mas
todos sabiam que eles estavam mentindo.
Velzquez s pode ter ficado chocado com a deciso. A tentativa de aumentar seu
prestgio resultara numa humilhao pblica. No dia 3 de abril, o Conselho notificou
o rei de que era necessria uma dispensa papal para desculpar a nobreza no
comprovada, o que podia ser obtido rapidamente. Entretanto, a coisa no acabou
a: em 3 de agosto o soberano foi informado de mais um pecado genealgico.
Exigiu-se nova dispensa papal, e quando esta chegou, o Conselho foi obrigado a
admitir Velzquez na Ordem de Santiago (28 de novembro de 1659). A cavalaria
assim obtida era uma vitria de Pirro. Sem o apoio decidido do rei, a pretenso do
artista certamente seria rejeitada pelos nobres, que se recusavam a reconhecer a
pintura como uma atividade digna de um cavaleiro. Para Velzquez, isso reforou
sua deciso de dedicar o tempo ao servio pessoal do monarca. Para os pintores de
Madri no houve motivo de comemorao, pois o episdio revelava que eles
estavam muito longe de merecer aceitao social. Era evidente que a admisso de
Velzquez na Ordem de Santiago no estabelecia um precedente, era apenas a
exceo que confirmava a regra.
Recife, 1602
LA PRIMERA EXPEDICIN CONTRA PALMARES
Em los ingenios, que extrujan e exprimen caas y hombres, se mide El trabaja d
cada esclavo como se mide el peso de ls caas
O URUTAU
308
Sou filha da desgraa, disse Nheambi, a filha do chefe, quando seu pai proibiu
proibiu seus amores com um homem de uma comunidades inimiga.
Disse isso e fugiu.
Pouco tempo depois a encontraram, nos montes do Igauu. Encontraram uma
esttua. Nheambi olhava sem ver; estava muda a sua boca e adormecido o seu
corao.
O chefe mandou chama o que decifra os mistrios e cura as doenas. Toda a
comunidade acudiu para presenciar a ressurreio.
O sbio pediu conselho erva-mate e ao vinho de mandioca. Aproximou-se de
Nheambi e mentiu-lhe junto a o ouvido:
- O homem que ama acaba de morrer.
O grito de Nheambi converteu a todos os ndios em salgueiros-chores. Ela voou,
feita pssaro.
Os gritos do urutau, que em plena noite estremecem as montanhas, podem ser
escutados a mais de uma lgua. difcil ver o urutau. Ca-lo, impossvel. No h
quem alcance o pssaro fantasma.
La Imperial, 1599
AS FLECHAS CHAMEJANTES
A rebelio estala na costa do Pacfico e os troves acodem as cordilheiras dos
Andes.
Martn Garca ez de Loyola, sobrinho de Santo Igncio, tinha vindo do Peru com
fama de caador incansvel e certeiro matador. L tinha capturado Tpac Amar, o
ltimo dos Incas. O mandaram como governador ao Chile para que amansasse os
araucanos. Aqui matou ndios, roubou ovelhas e queimou sementeiras sem deixar
um gro. Agora os araucanos passeiam sua cabea na ponta de uma lana.
Os ndios chamam para a luta soprando ossos de cristo como se fossem
trombetas. Mscaras de guerra, couraas de couro: a cavalaria araucana arrasa o
sul. Sete povoados se desmoronam, um depois do outro, sob a chuva de flechas de
fogo. A presa se faz caador. Os araucanos sitiam La Imperial. Para deix-la sem
gua, desviam o curso do rio.
Meio reino do Chile, todo o sul do Bo Bo, volta a ser araucano.
Os ndios dizem, apontando a lana: Este meu amo. Este no me manda tirar
ouro para ele, nem que traga ervas ou lenhas, nem que guarde seu gado, nem que
plante e colha para ele. Com este amo quero andar.
Granada, 1499
QUEM SO ESPANHIS?
As mesquitas continuam abertas em Granada, sete anos depois da rendio deste
ltimo reduto dos mouros na Espanha. lento o avanar da cruz depois da vitria
da espada. O arcebispo Cisneros decide que Cristo no pode esperar.
Mouros chamam os espanhis cristos os espanhis de cultura islmica, que levam
aqui oito sculos. Milhares e milhares de espanhis de origem judia j forma
309
condenados ao desterro. Aos mouros tambm ser dado escolher entre o batismo e
o exlio; e para os falsos convertidos ardem as fogueiras da Inquisio. A unidade
da Espanha, deste Espanha que descobriu a Amrica, no ser a soma de suas
partes.
Por ordem do arcebispo Cisneros, marcham para a priso os sbios muulmanos de
Granada. Altas chamas devoram os livros islmicos, religio e poesia, filosofia e
cincia, exemplares nicos que guardavam a palavra de uma cultura que regou
estas terras e nelas floresceu.
Do alto, os lavrados palcios so testemunhas mudas do avassalamento, enquanto
as fontes no param de dar gua ao jardim.
Tenochtitln, 1506
O DEUS UNIVERSAL
Nos adoratrios ardem os fogos. Ressoam os tambores. Um atrs do outro os
prisioneiros sobem as arquibancadas at a pedra redonda do sacrifcio. O sacerdote
crava-lhes no peito o punhal de pedra, ergue o corao em uma das mos e
mostra-o ao sol que brota dos vulces azuis.
A que deus oferece o sangue? O sol o exige, para nascer cada dia e viajar de um
horizonte ao outro. Mas as ostentosas cerimnias da morte tambm servem a outro
deus, que no aparece nos cdices nem nas canes.
Se esse deus no reinasse sobre o muno, no haveria escravos nem amos, nem
vassalos nem colnias. Os mercadores astecas no poderiam arrancar dos povos
submetidos um diamante a troco de um feijo; nem trocar uma esmeralda por um
gro de milho, nem ouro por guloseimas, nem cacau por pedras. Os carregadores
no atravessariam a imensido do imprio em longas filas, levando nas costas
toneladas de tributos. O povo ousaria usar tnica de algodo e beberia chocolate e
teria a audcia de mostrar proibidas plumas de quetzal e pulsiras de ouro e
magnlias e orqudeas reservadas aos nobres. Cairiam, ento, as mscaras que
ocultam os rostos dos chefes guerreiros, o bico da guia, os dentes do tigre, os
penachos de plumas que ondulam e brilham no ar.
Esto manchadas de sangue as escadarias do templo maior e os crnios se
acumulam no cento da praa. No somente para que se mova o sol, no: tambm
para que esse deus secreto decida no lugar dos homens. Em homenagem ao
mesmo deus, do outro lado do mar os inquisidores fritam os hereges nas fogueiras
ou os retorcem nas cmaras de tormento. o Deus do Medo. O Deus do Medo, que
tem dentes de rato e asas de urubu.
Quebec, 1717
O HOMEM QUE NO ACREDITAVA NO INVERNO
De acordo com o que contou Rabelais e Voltaire repetiu, to frio o frio do Canad
que as palavras se congelam ao sair da boca e ficam suspensas no ar. No final de
abril, os primeiros sis partem os gelos obre os rios e a primavera explode no meio
de gemidos de ressurreio.
Ento, e s ento, possvel escutar as frases pronunciadas no inverno.
310
COMUNHO
Muito ter que ocultar a histria, dama de vus rosados, beijadora dos que vencem.
Bancar a distrada ou ficar doente de fingida amnsia; mentir que foram mansos
e resignados, talvez at felizes, os escravos negros do Brasil.
Mas os amos das plantaes obrigam os cozinheiros a provar na frente deles cada prato.
311
312
Cajamarca, 1532
PIZARRO
Mil homens vo varrendo o caminho do Inca at a vasta praa onde aguardam,
escondidos, os espanhis. A multido treme ao passar o Pai Amado, o Uno, o nico,
o dono do trabalho e das festas; calam os que cantam e se detm os que danam.
pouca luz, a ltima do dia, relampagueiam de ouro e prata as coroas e as roupas
de Atahualpa e seu cortejo de senhores do reino.
Onde esto os deuses trazidos pelos ventos? O Inca chega ao centro da praa e
ordena esperar. H uns dias, um espio se meteu no acampamento dos invasores,
puxou-lhes as barbas e voltou dizendo que no eram mais que um punhado de
ladres sados do mar. Esta blasfmia custou-lhe a vida. Onde esto os filhos de
Wiracocha que levam estrelas nos calcanhares e descarregam troves que
provocam o estupor, o estampido e a morte?
O sacerdote Vicente de Valverde emerge das sombras e sai ao encontro de
Atahualpa
Um dia, por felicidade, esse trabalho exaustivo cessaria de todo. Um dia, ele
tambm, ficaria livre do tormento de pensar. Viria o silncio, finalmente; o repouso
no silncio!... Lembrou-se daquele cais de Munique onde certa vez passeara, at
altas horas, uma fascinante tentao de suicdio... Uma frase, como uma
reminiscncia musical, cantou-lhe de repente na memria: Descansaremos... Era a
frase final de uma pea russa que vira representar em Genebra, guardava ainda no
ouvido a voz da artista, uma eslava de rosto de criana, com olhos cndidos e
febris, que repetia balanando a cabecinha: Descansaremos... Uma entonao
sonhadora, um som alongado como um acordeon, acompanhado de um olhar
fatigado, onde havia, na verdade, muito mais de resignao que de esperana: No
tiveste alegrias na vida... Pacincia, tio Vnia, pacincia... Descansaremos...
Descansaremos...
313
Paris, 1804
NAPOLEO
Os graves acordes do rgo convocam os sessenta reis que a Frana teve, e talvez
os anjos, enquanto o papa de Roma oferece a coroa de ouro a Napoleo Bonaparte.
Napoleo cinge a prpria testa com o louro dos csares. Depois desce, lento,
majestoso de arminho e prpura, e coloca o diadema que consagra Josefina
primeira imperatriz da histria da Frana. Em carruagem de ouro e cristal chegaram
ao trono dessa nao o pequeno estrangeiro, grande guerreiro, brotado das speras
montanhas da Crsega, e sua esposa Josefina, nascida na Martinica, antilhana que,
dizem, quando abraa, carboniza. Napoleone, o tenente de artilharia que odiava os
franceses, se transforma em Napoleo I.
O fundador da dinastia que hoje se inaugura ensaiou mil vezes essa cerimnia de
coroao. Cada personagem do cortejo, cada ator, vestiu-se como ele decidiu,
situou-se onde ele quis, moveu-se como ele mandou.
Ah, Jos, se nosso pai nos visse...
A voraz parentada, prncipes e princesas da nova nobreza da Frana, cumpriu seu
dever. verdade que Letcia, a me, negou-se a vir, a me que est no palcio
resmungando, mas Napoleo ordenar a David, artista oficial, que outorgue a
Letcia lugar proeminente no quadro que retratar esses faustos para a posteridade.
Os convidados no cabem na catedral de Notre-Dame. Entre eles, um jovem
venezuelano estica o pescoo para no perder nenhum detalhe. Aos vinte anos,
Simn Bolvar assiste, alucinado, ao nascimento da monarquia napolenica: No
sou mais que um brilhante do punho da espada de Bonaparte...
Nesses dias, num salo dourado de Paris, Bolvar conheceu Alexander Von
Humboldt. O sbio aventureiro, recm-chegado da Amrica, lhe disse:
Creio que seu pas est maduro para a independncia, mas no vejo o homem
que possa...
La vacuna
Matando ratas y mosquitos ha vencido a la peste bubnica y a la fiebre amarilla.
Ahora Oswaldo Cruz declara la guerra a la viruela. De a miles mueren, por viruela,
los brasileos. Cada vez mueren ms, mientras los mdicos desangran a los
moribundos y los curanderos espantan la peste con humo de bosta de vaca.
Oswaldo Cruz, responsable de la higiene pblica, implanta la vacuna obligatoria.
El senador Rui Barbosa, orador de pecho hinchado y docta labia, pronuncia
discursos que atacan a la vacuna con jurdicas armas floridas de adjetivos. Em
nombre de la libertad, Rui Barbosa defiende el derecho de cada individuo a
contaminarse si quiere. Torrenciales aplausos y ovaciones lo interrumpen de frase
en frase.
Los polticos se oponen a la vacuna. Y los mdicos. Y los periodistas: no hay diario
que no publique colricos editoriales y despiadadas caricaturas que tienen por
vctima a Oswaldo Cruz. l no puede asomarse a la calle sin sufrir insultos y
pedreas.
Contra la vacuna, cierra filas el pas entero. Por todas partes se escuchan mueras
a la vacuna. Contra la vacuna se alzan en armas los alumnos de la Escuela Militar,
que por poco tumban al presidente.
314
Ro de Janeiro, 1910
Ganga Zumba
Misa de accin de gracias en la iglesia matriz: el gobernador de Pernambuco, Aires
de Sousa de Castro, recoge los faldones de su casaca recamada y se hinca ante el
trono del Santsimo. A su lado, cubierto por una amplia capa de seda roja, se hinca
tambin Ganga Zumba, jefe supremo de la federacin de los Palmares.
Vuelo de campanas, alborozo de artillera y tambores: el gobernador otorga a
Ganga Zumba el ttulo de maese de campo, y en prueba de amistad adopta a dos
de sus hijos ms pequeos, que se llamarn Sousa de Castro. Al cabo de las
conversaciones de paz celebradas en Recife entre los delegados del rey de Portugal
y los representantes de Palmares, se celebra el acuerdo: los santuarios de Palmares
sern desalojados. Se declara libres a todos los indivduos all nacidos, y quienes
llevan la marca del hierro candente volvern a manos de sus
propietarios.
Pero yo no me rindodice Zumb, sobrino de Ganga Zumba.
Zumb se queda en Macacos, capital de Palmares, sordo a los sucesivos bandos que
le ofrecen perdn.
De los treinta mil palmarinos, slo cinco mil acompaan a Ganga Zumba. Para los
dems, es un traidor que merece muerte y olvido.
No creo en la palabra de mis enemigos dice Zumb. Mis enemigos no se creen
ni entre ellos.
Macacos, 1694
316
Honduras del paisaje, hondones del alma. Fuma en pipa Zumb, perdida la mirada
en las altas piedras rojas y en las grutas abiertas como heridas, y no ve que nace el
da con luz enemiga ni ve que huyen los pjaros, asustados, en bandadas.
No ve que llega el traidor. Ve que llega el compaero, Antonio Soares, y se levanta
y lo abraza. Antonio Soares le hunde varias veces el pual en la espalda.
Los soldados clavan la cabeza en la punta de una lanza y la llevan a Recife, para
que se pudra en la plaza y aprendan los esclavos que Zumb no era inmortal.
Ya no respira Palmares. Haba durado un siglo y haba resistido ms de cuarenta
invasiones este amplio espacio de libertad abierto en la Amrica colonial. El viento
se ha llevado las cenizas de los baluartes negros de Macacos y Subupira,
Dambrabanga y Obenga, Tabocas y Arotirene. Para los vencedores, el siglo de
Palmares se reduce al instante de las pualadas que acabaron con Zumb. Caer La
noche y nada quedar bajo las fras estrellas. Pero, qu sabe la vigilia comparado
con
lo
que
sabe
el
sueo?
Suean los vencidos con Zumb; y el sueo sabe que mientras en estas tierras un
hombre sea dueo de otro hombre, su fantasma andar. Cojeando andar, porque
Zumb era rengo por culpa de una bala; andar tiempo arriba y tiempo abajo y
cojeando pelear en estas selvas de palmeras y en todas las tierras del Brasil. Se
llamarn
Zumb
los
jefes
de
las
incesantes
rebeliones
negras.
Se tivesse a simples sabedoria antiga de que tudo destino e o destino com os deuses que cuidam da
vida humana, e que pensar assim, mesmo em momentos de dor e agonia, conforta e alivia o corao; de
que a fortuna dos homens ascende e cai no como resposta a seus atos e indagaes, e que as mudanas se
sucedem com absurda e gratuita fatalidade, pelo menos a nossos olhos, talvez no h outros; de que o
destino cego e s um cego pode ver na escurido, embora se possa, depois do acontecido, examinando
as causas e conseqncias, dizer que havia razes remotas e mesmo prximas, e que tudo aconteceu por
isso e por aquilo (um erro ou acidente perfeitamente evitvel, por exemplo), no desejo muito humano que
temos de tudo explicar e tudo prever.
, Tirsias, iluminado interiormente pela luz da tua escurido, nos ajude a desvendar e entender, porque
essa a nossa humana nsia indagadora; mesmo sabendo que impossvel ao homem alterar o intrincado
tecido. s vezes, Tirsias, cuidamos, e por isso a ti recorremos, no Hades ou quando ainda vivias, e ainda
318
agora, antecipadamente sabendo que no se pode evitar e mesmo assim desesperadamente querendo, com
a iluso de que as tuas falas, to carregadas de lutos, pressgios e significados, possam nos dizer e nos
orientar em nossas tarefas e atos, como os antigos, no to antigos como tu, mareavam segundo as
estrelas e o simples rumo do agulho. Te pedimos porque s e foste humano e no um ser divino, e
sabemos que ao Senhor dos orculos, no a ti a quem s dado ver, somente esta velhssima prece
podemos balbuciar: Nos livre, Senhor, das dores e cicatrizes, e se impossvel, nos d fora e coragem para
suportar.
[...]
Nenhum deles sabia, Tirsias, que o destino do futuro campo dos deuses, onde nada se pode fazer; e o
destino do passado o reino dos mortos, onde intil, impossvel habitar.
Se tivesse a simples sabedoria antiga de que tudo destino e o destino com os deuses que cuidam da
vida humana, e que pensar assim, mesmo em momentos de dor e agonia, conforta e alivia o corao; de
que a fortuna dos homens ascende e cai no como resposta a seus atos e indagaes, e que as mudanas se
sucedem com absurda e gratuita fatalidade, pelo menos a nossos olhos, talvez no h outros; de que o
destino cego e s um cego pode ver na escurido, embora se possa, depois do acontecido, examinando
as causas e conseqncias, dizer que havia razes remotas e mesmo prximas, e que tudo aconteceu por
isso e por aquilo (um erro ou acidente perfeitamente evitvel, por exemplo), no desejo muito humano que
temos de tudo explicar e tudo prever. , Tirsias, iluminado interiormente pela luz da tua escurido, nos
ajude a desvendar e entender, porque essa a nossa humana nsia indagadora; mesmo sabendo que
impossvel ao homem alterar o intrincado tecido. s vezes, Tirsias, cuidamos, e por isso a ti recorremos,
no Hades ou quando ainda vivias, e ainda agora, antecipadamente sabendo que no se pode evitar e
mesmo assim desesperadamente querendo, com a iluso de que as tuas falas, to carregadas de lutos,
pressgios e significados, possam nos dizer e nos orientar em nossas tarefas e atos, como os antigos, no
to antigos como tu, mareavam segundo as estrelas e o simples rumo do agulho. Te pedimos porque s e
foste humano e no um ser divino, e sabemos que ao Senhor dos orculos, no a ti a quem s dado ver,
somente esta velhssima prece podemos balbuciar: Nos livre, Senhor, das dores e cicatrizes, e se
impossvel, nos d fora e coragem para suportar. [...] Nenhum deles sabia, Tirsias, que o destino do
futuro campo dos deuses, onde nada se pode fazer; e o destino do passado o reino dos mortos, onde
intil, impossvel habitar.
Borges
Le horroriza todo lo que rene a la gente, como el ftbol o la poltica, y todo lo que
la multiplica, como el espejo o el acto del amor. No reconoce otra realidad que La
que existe en el pasado, en el pasado de sus antepasados, y en los libros escritos
por quienes supieron nombrarla. El resto es humo.
Con alta finura y filoso ingenio, Jorge Luis Borges cuenta la Historia universal de la
infamia. De la infamia nacional, la que lo rodea, ni se entera.
El Paso, 1915
AZUELA
No Texas, no desterro, um mdico do exrcito de Pancho Villa conta a
revoluo mexicana como uma fria intil. Segundo o romance Os de
baixo, de Mariano Azuela, esta uma histria de cegos bbados, que
atiram sem saber por que nem contra quem e do porradas animalescas
buscando coisas para roubar ou fmeas para fornicar, num pas que fede a
plvora e a fritura de botequim.
1.
Da primavera, o amanhecer
Caminhais libertos.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por nvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto sem fim,
Sem ningum que o conte,
Caminhais em mim.
Durante quatro meses e meio, em 1918, estive preso por fazer propaganda
pacifista. [...] Meus companheiros de priso me pareceram bastante
interessantes, e de maneira alguma moralmente inferiores ao resto das
pessoas, ainda que estivessem, em conjunto, ligeiramente abaixo do nvel
de inteligncia, como demonstrava o fato de haverem sido presos.
En qu rumbo
Se ha perdido mi paloma.
Cmo pudo
Deslizarse de mi mano
Si la sangre de mi pulso
Al partir no lo ha notado.
Ay, cario...
Yo tengo un pecado nuevo
Que quiero estrenar contigo,
Beber el llanto de tus ojos
Si han sufrido.
En qu grieta de otros labios
Bebers agita mansa,
En qu labios
Son los mos olvidados.
Ay, cario...
Yo tengo un pecado nuevo
Que quiero estrenar contigo,
Beber el llanto de tus ojos
Beber el llanto de tus ojos
Y estar contigo.
324
UM PROBLEMA
Imaginemos que em Toledo encontrado um papel com um texto arbico e
que palegrafos o declaram um de punho e letra daquele Cide Hamete
Benengeli de quem Cervantes derivou o Dom Quixote. No texto lemos que o
heri (que, como se sabe, percorria os caminhos da Espanha, armado de
espada e lana, e desafiava qualquer um por qualquer motivo) descobre, no
final de um de seus muitos combates, que deu morte a um homem. Neste
ponto cessa o
fragmento; o problema adivinhar, ou conjecturar, como reage Dom
Quixote.
325
*Em seus ltimos anos, Maiakvski foi acometido por uma grave forma de
neurose obsessiva. Lavava continuamente as mos, e saa de casa com um
sabonete no bolso. A verso oficial e controversa sustenta que tenha se
suicidado com um tiro de pistola, em 1930.
[Sobre a relao entre os movimentos de massa e os sentimentos
328
330
Tem em mente que isso so as fontes de todos os seres: Eu; eu que sou o provir e
a dissoluo do universo. Nada est acima de mim, Dhanamjaya, tudo est urdido
em mim, como os fios de um tecido. Eu sou o gosto nas guas, Kaunteya, eu sou o
brilho na Lua e no Sol; a Palavra das Supremas Escrituras, que todo o som no
espao e a virilidade nos homens, como tambm o perfume auspicioso na terra,
o esplendor na luz, a vida em todos os seres e o caminho para os ascetas. Saibame, Partha, como a semente eterna de tudo, a verdade para quem pode v-la, o
diamante entre todos os fulgores. E nos fortes eu sou a fora desprovida de matria
ou paixo, embora quando o caminho, a lei permite, eu seja tambm a matria e a
paixo. As coisas que derivam da Luz, da Violncia e das Trevas, saiba que
procedem de mim, que no estou nelas: elas que existem em mim, porque eu
sou a Realidade. Em todo este Universo, confundindo por essas foras, os seres no
me reconhecem, porque eu estou muito acima de tudo isto, eu sou o Imutvel. A
Iluso que me oculta instransponvel por quem no me procura, Eu, o supremo e
o ltimo, o oculto imanifesto. No me vem os malignos, os insensatos, os abjetos,
os que se perdem na Iluso e a quem a Iluso transforma em fantasmas, em
espectros. As pessoas benvolas que a mim se devotam, Arjuna, so os que
superam a Iluso pela dor, o que a superam pelo conhecimento, e os que a
subjugam pelo desejo de poder. Todos estes so honorveis em seus caminhos,
mas o que procura o conhecimento pela unidade do esprito com o Absoluto
depois de muitos renascimentos, este o que acima de todos excelente, o que
me alcana.
331
As datas ausentes
Lentamente o veneno o sangue invade.
Porm fracasso e esforo no fatigam.
A agrura fica, a agrura fica e mata.
A vida, sem sistema ou viso clara,
s finais conseqncias tem de ir;
Lentamente o veneno o sangue invade.
Sangraram velho co, porm de fato
332
GUILHERME DE ALMEIDA
Vamos, portanto, como dois estranhos,
deixando para trs o nosso ninho!
Desmancha ao vento, os caracis castanhos
do teu cabelo, e vai devagarinho!
Devagarinho como vou... So ganhos
os momentos perdidos no caminho.
Foi to curta a iluso, foram tamanhos
os desenganos que provei sozinho!
E to pequeno o mundo em que vivemos,
que impossvel que no nos encontremos,
que no nos encontremos nunca mais!
H uma vaga esperana refletida
nos adeuses que trocam, pela vida,
333
Ser olhada, ela logo aprenderia, no era a nica indignidade trazida pela
fama. Quando A
ma no escuro ganhou o Prmio Carmen Dolores Barbosa de melhor livro
publicado no ano
anterior, Clarice viajou a So Paulo para receb-lo. Compareceu cerimnia
em 19 de
setembro de 1962, com sua amiga Maria Bonomi, a jovem artista que
vestira as roupas de
Clarice na Casa Branca. A cerimnia foi presidida por ningum menos que
Jnio Quadros.
Jnio, o presidente que proibiu o biquni, no era o tipo da figura que
combinasse muito
com Copacabana. Depois de proferir um interminvel discurso na
encantadora casa da sra.
Barbosa, Sua Excelncia convidou Clarice a um quarto privado, onde se ps
a apalp-la com
tanto ardor que, na luta para afast-lo, ela rasgou o vestido. Ofegante,
Clarice saiu correndo
do quarto e disse a Maria Bonomi que precisavam ir embora imediatamente,
jogando o xale da
335
mulheres, quase que se limitava sua irm. bvio que em seus sonhos um
guerreiro, no um professor; todos os homens que admira so militares. Sua
opinio das mulheres, como a de todos os homens, uma objetivao de sua
prpria emoo com respeito a elas, que claramente um sentimento de temor.
"No esqueas teu chicote" - mas em cada dez mulheres, nove teriam arrebatado
o chicote, e ele o sabia, de modo que se conservava afastado delas, curando sua
vaidade ferida com observaes nada amveis.
"Se me atravessas a espada,/ natural que fique / na carne amargurada / um
mudo sangue triste. // No falaremos mais nada, / pois, de tudo que disse,/ resta a
alma equivocada/ com seu puro convite.// Uma celeste chamada/ por algum que
no vive/ apagar a culpada/ mo com seu duro crime.// Eu, para sempre calada,/
acharei muito simples/ que a alma eterna dobrada / seja - e (a teus olhos) finde.//
(Que a doce loucura amada/ do firmamento incline/ amor e morte, em cada/ noite,
nesta plancie!)"
338
e desse fogo que projetava uma luz deslumbrante, saam relmpagos. Os seres
ziguezagueavam como o raio.
Ora, enquanto contemplava esses seres vivos, divisei uma roda sobre a terra ao lado de cada
um dos quatro. O aspecto e a estrutura dessas rodas eram os de uma gema de Trsis. Todas
as quatro se assemelhavam, e pareciam construdas uma dentro da outra. Podiam deslocar-se
em quatro direes, sem retornar em seus movimentos. Seus aros eram de uma altura
assombrosa, guarnecidos de olhos em toda a circunferncia. Quando os seres vivos se
deslocavam ou se erguiam da terra, locomoviam-se as rodas e se elevavam com eles.
EDUARDO GALEANO
Memria do Fogo, Vol. III. O Sculo do Vento
Anenecuilco, 1911
ZAPATA
Nasceu cavaleiro, arrieiro e domador. Cavalga deslizando, navegando a
cavalo as plancies, cuidadoso para no importunar o profundo sono da
terra. Emiliano Zapata homem de silncios. Ele diz calando.
Os camponeses de Anenecuilco, sua aldeia, casinhas de pau-a-pique e teto
de palha, salpicadas na colina, fizeram de Zapata o chefe e entregaram a
ele os papis dos tempos dos vice-reis, para que ele saiba guard-los e
defend-los. Esse punhado de documentos prova que essa comunidade,
aqui enraizada desde sempre, no intrusa em sua terra.
A comunidade de Anenecuilco est estrangulada, como todas as demais
comunidades da regio mexicana de Morelos. Cada vez existem menos ilhas
de milho no oceano de acar. Da aldeia de Tequesquitengo, condenada a
morrer porque seus ndios livres se negavam a transformar-se em pees de
quadrilha, nada sobra alm da cruz da torre da igreja. As imensas
plantaes avanam engolindo terras, guas e bosques. No deixam espao
nem para enterrar os mortos:
Se querem plantar, plantem em vasos.
Matadores e rbulas se ocupam dos despojos, enquanto os devoradores de
comunidades escutam concertos em seus jardins e criam cavalos de plo e
ces de exposio.
Zapata, caudilho dos avassalados do lugar, enterra os ttulos debaixo do
soalho da igreja de Anenecuilco e se lana luta. Sua trope de ndios, bem
plantada, bem montada, mal armada, cresce ao andar.
Anenecuilco, 1911. ZAPATA - Nasceu cavaleiro, arrieiro e domador. Cavalga
deslizando, navegando a cavalo as plancies, cuidadoso para no importunar
o profundo sono da terra. Emiliano Zapata homem de silncios. Ele diz
calando. Os camponeses de Anenecuilco, sua aldeia, casinhas de pau-apique e teto de palha, salpicadas na colina, fizeram de Zapata o chefe e
entregaram a ele os papis dos tempos dos vice-reis, para que ele saiba
339
A GUERRA DO CHACO
340
Bolvia e Paraguai esto em guerra. Os dois povos mais pobres da Amrica do Sul,
os que no tm mar, os mais vencidos e despojados, se aniquilam mutuamante por
um pedao de mapa. Escondidas entre as dobras de ambas as bandeiras, a
Standard Oil Company e a Royal Dutch Shell disputam o possvel petrleo do
Chaco.
Metidos na guerra, paraguaios e bolivianos esto obrigados a se odiar em nome de
uma terra que no amam, que ningum ama: o Chaco um deserto cinzento,
habitado por espinhos e serpentes, sem um pssaro cantor nem uma pegada de
gente. Tudo tem sede neste mundo de espanto. As mariposas se apinham,
desesperadas, sobre as poucas gotas de gua. Os bolivianos vm da geladeira ao
forno: foram arrancados dos picos dos Andes e arrojados nestes matagais
calcinados. Aqui morrem de bala, mas morrem mais de sede.
Nuvens de moscas e mosquitos perseguem os soldados, que agacham a cabea e
avanam trotando atravs do emaranhado, em marchas foradas, contra as linhas
inimigas. De um lado e do outro, o povo descalo boi de piranha que paga os
erros dos oficiais. Os escravos do patro feudal e do nobre rural morrem de
uniforme ao servio da imperial avareza.
Fala um dos soldados bolivianos que marcha rumo morte. No diz nada sobre a
glria, nada sobre a ptria. Diz, resfolegando:
Maldita a hora em que nasci homem.
341
batizada por seus fundadores, passa a chamar-se Ciudad Trujillo. Tambm o porto
se chama agora Trujillo, e Trujillo se chamam muitos povoados, praas, mercados e
avenidas. De Ciudad Trujillo, o generalssimo Rafael Lenidas Trujillo faz chegar ao
generalssimo Francisco Franco sua mais fervorosa adeso.
Trujillo, incansvel aoite de comunistas e hereges, nasceu, como Anastasio
Somoza, da ocupao militar norte-americana. Sua natural modstia no o impede
de aceitar que seu nome figure nas placas de todos os automveis e sua efgie em
todos os selos de correio. No se ops a que se outorgue a seu filho Ramfis, de trs
anos de idade, a patente de coronel, por tratar-se de um ato de estrita justia. Seu
sentido de responsabilidade o obriga a designar pessoalmente ministros e porteiros,
bispos e rainhas de beleza. Para estimular o esprito de empresa, Trujillo outorga a
Trujillo o monoplio do sal, do tabaco, do azeite, do cimento, da farinha e dos
fsforos.
Em defesa da sade pblica, Trujillo fecha os estabelecimentos comerciais que no
vendem carne dos matadores Trujillo ou leite de suas fazendas; e por razes de
segurana pblica torna obrigatrias as aplices que Trujillo vende. Apertando com
mo firme o timo do progresso, Trujillo exonera de impostos as empresas de
Trujillo e proporciona irrigao e caminhos s suas terras e clientes s suas
fbricas. Por ordem de Trujillo, dono da fbrica de sapatos, vai preso quem ousar
pisar descalo as ruas de qualquer aldeia ou cidade.
Tem voz de assovio, o todo-poderoso, mas no discute nunca. No jantar ergue a
taa e brinda com o governador ou o deputado que depois do caf ir parar no
cemitrio. Quando uma terra lhe interessa, no a compra: ocupa-a. Quando uma
mulher lhe agrada, no a seduz: aponta-a.
342
343
Acapulco, 1923
A FUNO DAS FORAS DA ORDEM NO PROCESSO DEMOCRTICO
Quando terminou o filme do Tom Mix, houve discurso. Em p, na frente da tela do
nico cinema de Acapulco, Juan Escudero surpreendeu o pblico com um discurso
contra os mercadores sanguessugas. Quando os fardados se atiraram em cima dele,
j tinha nascido o Partido Operrio de Acapulco, batizado por ovao.
Em pouco tempo, o Partido operrio cresceu, ganhou as eleies e fincou sua
bandeira rubro-negra no palcio municipal. Juan Escudero, alta figura, de costeletas,
bigodes engomados, o novo prefeito, o prefeito socialista: num abrir e fechar de
344
Acapulco, 1923
Escudero
Ressuscita e continua ganhando eleies. Em cadeira de rodas, mutilado, quase
mudo, faz sua campanha triunfal de deputado ditando discursos a um garoto que
decifra seus murmrios e os repete a viva voz nos palanques.
Os donos de Acapulco decidem pagar trinta mil pesos patrulha militar, para que
desta vez dispare como se deve. Nos livros maiores de contabilidade das empresas
se registra a sada dos fundos, mas no o destino. E finalmente Juan Escudero cai
fuziladssimo, morto por morte total, para que ningum duvide.
Acapulco, 1923. ESCUDERO Ressuscita e continua ganhando eleies. Em cadeira
de rodas, mutilado, quase mudo, faz sua campanha triunfal de deputado ditando
discursos a um garoto que decifra seus murmrios e os repete a viva voz nos
palanques. Os donos de Acapulco decidem pagar trinta mil pesos patrulha militar,
para que desta vez dispare como se deve. Nos livros maiores de contabilidade das
empresas se registra a sada dos fundos, mas no o destino. E finalmente Juan
Escudero cai fuziladssimo, morto por morte total, para que ningum duvide.
Campos de Durango, 1923
PANCHO VILLA L AS MIL E UMA NOITES,
345
soletrando em voz alta e luz de candeeiro, porque esse o livro que lhe d
melhores sonhos; e depois acorda cedinho para pastorear gado com seus velhos
companheiros de luta.
Villa continua sendo o homem mais popular nos campos do norte do Mxico,
embora os do governo no gostem dele nem um pouquinho. Hoje faz trs anos que
Villa transformou em cooperativa a fazenda de Canutillo, que j tem hospital e
escola, e um mundo de gente veio celebrar.
Villa est escutando suas canes favoritas quando dom Fernando, peregrino de
Granada, conta que John Reed morreu em Moscou.
Pancho Villa manda parar a festa. At as moscas detm o seu vo.
Quer dizer que Juanito morreu? Meu irmo Juanito?
Justo ele mesmo.
Villa fica acreditando e no acreditando.
Eu o vi se desculpa dom Fernando. Est enterrado com os heris da
revoluo l deles.
O pessoal nem respira. Ningum incomoda o silncio. Dom Fernando murmura:
Foi de tifo, no de tiro.
E Villa balana a cabea:
Quer dizer que Juanito morreu.
E repete:
Quer dizer que Juanito morreu.
E se cala. E olhando longe, diz:
Eu nunca tinha ouvido a palavra socialismo. Ele me explicou.
Em seguida, se ergue, e abrindo os braos, desafia os mudos violeiros:
E a msica? O que aconteceu com a msica? Manda ver.
Campos de Durango, 1923. PANCHO VILLA L AS MIL E UMA NOITES, soletrando em voz alta e
luz de candeeiro, porque esse o livro que lhe d melhores sonhos; e depois acorda cedinho para
pastorear gado com seus velhos companheiros de luta. Villa continua sendo o homem mais popular nos
campos do norte do Mxico, embora os do governo no gostem dele nem um pouquinho. Hoje faz trs
anos que Villa transformou em cooperativa a fazenda de Canutillo, que j tem hospital e escola, e um
mundo de gente veio celebrar. Villa est escutando suas canes favoritas quando dom Fernando,
peregrino de Granada, conta que John Reed morreu em Moscou. Pancho Villa manda parar a festa. At as
moscas detm o seu vo. Quer dizer que Juanito morreu? Meu irmo Juanito? Justo ele mesmo.
Villa fica acreditando e no acreditando. Eu o vi se desculpa dom Fernando. Est enterrado com
os heris da revoluo l deles. O pessoal nem respira. Ningum incomoda o silncio. Dom Fernando
murmura: Foi de tifo, no de tiro. E Villa balana a cabea: Quer dizer que Juanito morreu. E
repete: Quer dizer que Juanito morreu. E se cala. E olhando longe, diz: Eu nunca tinha ouvido a
palavra socialismo. Ele me explicou. Em seguida, se ergue, e abrindo os braos, desafia os mudos
violeiros: E a msica? O que aconteceu com a msica? Manda ver.
349
350
Washington, 1939
NO ANO 9 DA ERA DE TRUJILLO
uma salva de vinte e um tiros de canho lhe d as boas-vindas na academia militar
de West Point. Trujillo se areja com um leque de marfim e cumprimenta abanando a
plumagem de avestruz do seu chapu.
Acompanha-o uma rechonchuda delegao de bispos, generais e cortess, um
mdico e um bruxo especialista em mau-olhado. Tambm o acompanha o
brigadeiro Ramfis Trujillo, de nove anos de idade, que arrasta uma espada mais
comprida que ele.
O general George Marshall oferece a Trujillo um banquete a bordo do Mayflower e o
presidente Roosevelt o recebe na Casa Branca. Legisladores, governadores e
jornalistas cobrem de louvores o estadista exemplar. Trujillo, que paga seus mortos
vista, tambm vista compra elogios, colocando os gastos no item Alpiste para
passarinhos do oramento do Poder Executivo da Repblica Dominicana.
Washington, 1939. NO ANO 9 DA ERA DE TRUJILLO uma salva de vinte e um tiros
de canho lhe d as boas-vindas na academia militar de West Point. Trujillo se areja
com um leque de marfim e cumprimenta abanando a plumagem de avestruz do seu
chapu. Acompanha-o uma rechonchuda delegao de bispos, generais e cortess,
um mdico e um bruxo especialista em mau-olhado. Tambm o acompanha o
brigadeiro Ramfis Trujillo, de nove anos de idade, que arrasta uma espada mais
comprida que ele. O general George Marshall oferece a Trujillo um banquete a
bordo do Mayflower e o presidente Roosevelt o recebe na Casa Branca.
Legisladores, governadores e jornalistas cobrem de louvores o estadista exemplar.
Trujillo, que paga seus mortos vista, tambm vista compra elogios, colocando
os gastos no item Alpiste para passarinhos do oramento do Poder Executivo da
Repblica Dominicana.
So Domingos, 1956
NO ANO 26 DA ERA DE TRUJILLO
sua imagem vendida nos mercados, entre os santinhos da Virgem Maria,
So Jorge e outros milagrosos:
Santos, santos baratos!
Nada do que dominicano alheio a Trujillo. Tudo pertence a ele: a primeira
noite das virgens e a ltima vontade dos moribundos, as pessoas e as
vacas, a frota de avies e a cadeia de prostbulos, os engenhos de acar e
os moinhos de trigo, a fbrica de cerveja e a fbrica engarrafadora de
poes da virilidade.
H vinte e seis anos, Trujillo exerce a vice-presidncia de Deus na Repblica
Dominicana. A cada quatro anos, a frmula que foi abenoada em
democrticas eleies: Deus e Trujillo, proclamada nos cartazes em todos os
muros e em todas as portas.
Em sua obra Meditaes Morais, que lhe valeu o ttulo de Primeira-Dama das
Letras Antilhanas, dona Maria de Trujillo comparou seu marido com El Cid e
351
So Domingos, 1961
O FALECIDSSIMO
deixa como herana um pas inteiro, alm de nove mil e seiscentas
gravatas, dois mil ternos, trezentos e cinqenta uniformes e seiscentos
pares de sapatos em seus armrios de So Domingos, e quinhentos e trinta
milhes de dlares, em suas contas particulares na Sua.
Rafael Lenidas Trujillo caiu numa emboscada, crivado em seu automvel.
Seu filho, Ramfis, voa de Paris para cuidar da herana, do enterro e da
vingana.
Ramfis Trujillo, colega e amigo de Porfrio Rubirosa, adquiriu certa
353
Anenecuilo, 1938
NICOLS, FILHO DE ZAPATA
Antes que ningum, antes mais que ningum, os camponeses de
Anenecuilco lutaram pela terra; e depois de muito sangue continua mais ou
menos na mesma a comunidade onde Emiliano Zapata nasceu e se rebelou.
No centro da luta dos camponeses h um punhado de papis, mordidos
pelas traas e pelos sculos. Esses documentos provam, com cunho do vicerei, que esta comunidade dona de sua comarca. Emiliano Zapata os havia
deixado nas mos de um de seus soldados, Pancho Franco:
Se perder isso, compadre, vai secar pendurado num galho.
Vrias vezes Pancho Franco salvou por um triz os papis e a vida. Vrias
vezes teve de buscar refgio nas montanhas, frente aos avanos dos
militares e dos politiqueiros.
O melhor amigo da comunidade o presidente Lzaro Crdenas, que veio a
Anenecuilco, escutou os camponeses e reconheceu e ampliou seus direitos.
O pior inimigo da comunidade o voraz deputado Nicols Zapata, o filho
maior de Emiliano, que apoderou-se das melhores terras e quer ficar
tambm com as piores.
Anenecuilo, 1938. NICOLS, FILHO DE ZAPATA - Antes que ningum, antes
mais que ningum, os camponeses de Anenecuilco lutaram pela terra; e
depois de muito sangue continua mais ou menos na mesma a comunidade
onde Emiliano Zapata nasceu e se rebelou. No centro da luta dos
camponeses h um punhado de papis, mordidos pelas traas e pelos
sculos. Esses documentos provam, com cunho do vice-rei, que esta
comunidade dona de sua comarca. Emiliano Zapata os havia deixado nas
mos de um de seus soldados, Pancho Franco: Se perder isso, compadre,
vai secar pendurado num galho. Vrias vezes Pancho Franco salvou por um
triz os papis e a vida. Vrias vezes teve de buscar refgio nas montanhas,
frente aos avanos dos militares e dos politiqueiros. O melhor amigo da
comunidade o presidente Lzaro Crdenas, que veio a Anenecuilco,
escutou os camponeses e reconheceu e ampliou seus direitos. O pior
inimigo da comunidade o voraz deputado Nicols Zapata, o filho maior de
Emiliano, que apoderou-se das melhores terras e quer ficar tambm com as
piores.
Boston, 1953
355
A UNITED FRUIT
Trono de bananas, uma banana empunhada guisa de cetro: Sam
Zemurray, senhor de terras e mares do reino da banana, no achava que
seus vassalos da Guatemala pudessem provocar-lhe dores de cabea:
Os ndios so demasiado ignorantes para o marxismo costumava dizer,
e era aplaudido pelos burocratas da corte em seu palcio real de Boston,
Massachusetts.
A Guatemala forma parte dos vastos domnios da United Fruit Company h
meio sculo, por obra e graa de sucessivos decretos de Manuel Estrada
Cabrera, que governou rodeado de adules e espies, lagos de baba,
bosques de orelhas, e de Jorge Ubico, que achava que era Napoleo mas
no era no. A United Fruit tem na Guatemala as terras que quiser, imensos
campos baldios, e dona da estrada de ferro, do telefone, do telgrafo, dos
portos, dos barcos e de muitos militares, polticos e jornalistas.
As infelicidades de Sam Zemurray comearam quando o presidente Juan
Jos Arvalo obrigou a empresa a respeitar o sindicato e o direito de greve.
Mas agora pior: o novo presidente, Jacobo Arbenz, pe em marcha a
reforma agrria, arranca da United Fruit as terra no cultivadas, comea a
reparti-las entre cem mil famlias e atua como se na Guatemala mandassem
os sem-terra, os sem-po, os sem.
Boston, 1953. A UNITED FRUIT - Trono de bananas, uma banana
empunhada guisa de cetro: Sam Zemurray, senhor de terras e mares do
reino da banana, no achava que seus vassalos da Guatemala pudessem
provocar-lhe dores de cabea: Os ndios so demasiado ignorantes para o
marxismo costumava dizer, e era aplaudido pelos burocratas da corte em
seu palcio real de Boston, Massachusetts. A Guatemala forma parte dos
vastos domnios da United Fruit Company h meio sculo, por obra e graa
de sucessivos decretos de Manuel Estrada Cabrera, que governou rodeado
de adules e espies, lagos de baba, bosques de orelhas, e de Jorge Ubico,
que achava que era Napoleo mas no era no. A United Fruit tem na
Guatemala as terras que quiser, imensos campos baldios, e dona da
estrada de ferro, do telefone, do telgrafo, dos portos, dos barcos e de
muitos militares, polticos e jornalistas. As infelicidades de Sam Zemurray
comearam quando o presidente Juan Jos Arvalo obrigou a empresa a
respeitar o sindicato e o direito de greve. Mas agora pior: o novo
presidente, Jacobo Arbenz, pe em marcha a reforma agrria, arranca da
United Fruit as terra no cultivadas, comea a reparti-las entre cem mil
famlias e atua como se na Guatemala mandassem os sem-terra, os sempo, os sem.
Cidade da Guatemala, 1953
ARBENZ
O presidente Truman botou a boca no mundo quando os trabalhadores
356
chovem flores. Gritam vivas religio as velhas come-santos, engolehstias, espalha-intrigas. Alagam-se de sangue as ruas empedradas, que os
ces e as chuvas nunca podero lavar at o fim. A carnificina culmina em
fogo. Acende-se uma grande fogueira e nela atiram o que sobra do velho
Alfaro. Depois pisam suas cinzas os assassinos e ladres pagos pelos filhos
dos senhores.
Eloy Alfaro tinha ousado desapropriar as terras da Igreja, dona de muito
Equador, e com suas rendas tinha criado escolas e hospitais. Amigo de
Deus, no do Papa, tinha implantado o divrcio e tinha liberado os ndios
presos por dvidas. Ningum era to odiado pela batina e to temido pelos
de casaca.
Cai a noite. Fede a carne queimada o ar de Quito. A banda militar toca
valsas e marchas no coreto da Praa Grande, como em todos os domingos.
Painala, 1523
A MALINCHE
De Corts teve um filho, e para Corts abriu as portas de um imprio. Foi
sua sombra e vigia, intrprete, conselheira, mensageira e amante, tudo isso
ao longo da conquista do Mxico; e continua cavalgando ao seu lado.
Passa por Painala vestida de espanhola, veludos, sedas, cetins, e no
princpio ningum reconhece a florida senhora que vem com os novos amos.
Do alto de um cavalo alazo, a Malinche passeia o seu olhar pelas margens
do rio, respira fundo o aroma adocicado do ar e busca, em vo, os rinces
da folhagem onde h mais de vinte anos descobriu a magia e o medo.
Passaram-se muitas chuvas e vendavais e penas e pesares desde que sua
me a vendeu como escrava e foi arrancada da terra mexicana para servir
aos senhores maias de Yucatn.
Quando a me descobre quem a que chegou de visita a Painala, se atira
aos seus ps e se banha em lgrimas suplicando perdo. A Malinche detm
a choradeira com um gesto, levanta sua me pelos ombros, abraa-a e
pendura em seu pescoo os colares que usa. Depois, monta o cavalo e
segue o seu caminho junto aos espanhis.
No necessita odiar sua me. Desde que os senhores de Yucatn a deram
de presente a Hernn Corts h quatro anos a Malinche teve tempo de
vingar-se. A dvida est paga: os mexicanos se inclinam e tremem quando a
vem chegar. Basta um olhar de seus olhos negros para que um prncipe
balance na forca. Sua sombra flutuar, alm da morte, sobre a grande
Tenochtitln, que ela tanto ajudou a derrotar e a humilhar. E seu fantasma
de cabelos soltos e tnica flutuante continuar metendo medo, para
sempre, saindo dos bosques e grutas de Chapultepec.
Granada, 1499
QUEM SO OS ESPANHIS?
As mesquistass continuam abertas em Granada, sete anos deepois da
rendio deste ltimo reduto dos mouros na Espanha. lento o avano da
cruz depois da vitria da espada. O arcebispo Cisneros decide que Cristo
no pode esperar.
Mouros chamam os espannhis cristos os espanhis de cultura islmica,
que levam aqui oito sculos. Milhares e milhares de espanhis de origem
judia j foram condenados ao desterro. Aos mouros tambm ser dado
359
ouro que buscavam... A pele amarela, os olhos amarelos.... E o ouro... (Deixa cair
o machado. Abre com dificuldade as mos, que so como garras. Mostra as
palmas.) Desvanecido... Ouro que virou sombra ou orvalho... (Olha com estupor.
Fica mudo por longos momentos. De repente, se levanta. De costas para o pblico,
ergue o punho seco e torto contra a enorme sombra de Felipe II, projetada, a barba
em ponta, no pano de fundo.) Poucos reis vo ao inferno, porque poucos sois!
(Caminha at o pano de fundo arrastando sua perna manca.) Ingrato! Eu perdi
meu corpo defendendo-te contra os rebeldes do Peru! Te entreguei uma perna e
um olho e estas mos que pouco me servem! Agora, o rebelde sou eu! Rebelde
at a morte, por tua ingratido! (Encara o pblico, desembainha a espada.) Eu,
Prncipe dos rebeldes! Lope de Aguirre o Peregrino, Ira de Deus, Caudilho dos
feridos! No te necessitamos, rei da Espanha! (Se acendem luzes coloridas sobre
vrios pontos do palco.) No deixaremos com vida ministro teu! (Se atira, com a
espada na mo, contra um facho de luz avermelhada.) Auditores, governadores,
presidentes, vice-reis! Guerra de morte contra os alcagetes cortesos! (O facho
de luz continua em seu lugar, indiferente espada que o corta.) Usurpadores!
Ladres! (A espada fere o ar.) Vs destrustes as ndias! (Avana contra o facho de
luz dourada.) Letrados, tabelies, caga-tintas! At quando haveremos de sofrer
vossos roubos nestas terras por ns ganhadas? (As cuteladas atravessam um
facho de luz branca.) Frades, bispos, arcebispos! Vs no quereis enterrar nenhum
ndio pobre! Por penitncia tens na cozinha uma dzia de moas! Traficantes!
Traficantes de sacramentos! Ladres! (E assim continua o intil torvelinho da
espada contra os fachos de luz imvel, que se multiplicam no palco. Aguirre vai
perdendo as foras e parece cada vez mais solitrio e pequenino).
senhorios quanto nestas partes tens, e olha, rei e senhor, que no podes
levar com ttulo de rei justo nenhum interesse destas partes onde no
aventurastes nada, sem que primeiro os que nisso trabalharam e suaram
sejam gratificados...
Ai, ai que pena to grande que Csar e Imperador teus pai conquistasse
com as foras de Espanha a soberba Germania e gastasse tanta moeda
levada destas ndias descobertas por ns, que no te apiedes de nossa
velhice e cansao sequer para matar-nos a fome um dia!...
La Florida, 1521
PONCE DE LEN
Estava velho, ou se sentia. O tempo no seria suficiente, nem agentaria
cansado corao. Juan Ponce de Len queria descobrir e conquistar o mundo
invicto que as ilhas da Flrida tinham anunciado para ele. Pela grandeza de
suas faanhas, queria deixar an a lembrana de Cristvo Colombo.
Aqui desembarcou, perseguindo o rio mgico que atravessa o jardim das
delcias. No lugar da fonte da juventude, encontrou esta flecha que lhe
atravessa o peito. Nunca se banhar nas guas que devolvem o brio dos
msculos e o brilho dos olhos sem apagar a experincia da alma sbia.
Os soldados o levam, nos braos, at o navio. O vencido capito murmura
queixas de recm-nascido, mas sua idade continua sendo muita e ainda
avana. Quem o carrega comprova, sem assombro, que aqui teve lugar uma
nova derrota na contnua luta do sempre contra o jamais.
Painala, 1523
A MALINCHE
De Corts teve um filho, e para Corts abriu as portas de um imprio. Foi
sua sombra e vigia, intrprete, conselheira, mensageira e amante, tudo isso
ao longo da conquista do Mxico; e continua cavalgando ao seu lado.
Passa por Painala vestida de espanhola, veludos, sedas, cetins, e no
princpio ningum reconhece a florida senhora que vem com os novos amos.
Do alto de um cavalo alazo, a Malinche passeia seu olhar pelas margens do
rio, respira fundo o aroma adocicado do ar e busca, em vo, os rinces da
folhagem onde h mais de vinte anos descobriu a magia e o medo.
Passaram-se muitas chuvas e venda vais e penas e pesares desde que sua
me vendeu-a como escrava e foi arrancada da terra mexicana para servir
aos senhores maias de Yucatn.
Quando a me descobre quem a que chegou de visita a Painala, se atira
aos seus ps e se banha em lgrimas suplicando perdo. A Malinche detm
a choradeira com um gesto, levanta sua me pelos ombros, abraa-a e
pendura em seu pescoo os colares que usa. Depois, monta o cavalo e
segue seu caminho junto aos espanhis.
No necessita odiar sua me. Desde que os senhores de Yucatn a deram
de presente a Hernn Corts, h quatro anos, a Malinche teve tempo de
vingar-se. A dvida est paga: os mexicanos se inclinam e tremem quando a
vem chegar. Basta um olhar de seus olhos negros para que um prncipe
balance na forca. Sua sombra flutuar, alm da morte, sobre a grande
Tenochtitln que ela tanto ajudou
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Maracay, 1935
GMEZ
O ditador da Venzuela, Juan Vicente Gmez, morre econtinua mandando.
Ficou no poder vinte e sete anos, sem que ningum o tirassse ou matasse, e
agora no h quem se atreva a chiar. Quando o atde do terrvrl velhinho
fica indiscutivelmente sepultado debaixo de montanhas de terra, finalmente
os presos derrubam as portas dos crceres e solta-se o povo em gritarias e
saqueios.
Gmez morre solteiro. Engendrou filhos de monto, amando como quem
mija, mas jamais passou a noite inteira nos braos de uma mulher. A luz da
alvorada encontrou-o sempre sozinho, em sua cama de ferro, sob a imagem
da Virgem Maria e junto de bas cheios de dinheiro.
No gastou nem uma moeda. Pagava tudo com petrleo. Distribuiu petrleo
aos borbotes, Standard Oil, Gulf, Texas, Shell, e com poos de
petrleo pagou as contas do mdico que lhe aplicava as sondas na bexiga,
os sonetos dos poetas que escreviam sua glria e as tarefas secretas dos
verdugos que cuidavam da ordem para ele.
Montevidu, 1970
RETRATO DE UM PROFESSOR DE TORTURADORES
Os guerrilheiros tupamaros liquidam Dan Anthony Mitrione, um dos
instrutores norte-americanos da polcia do Uruguai.
O falecido dava seus cursos para oficiais num poro prova de som. Para as
lies prticas utilizava mendigos e prostitutas caados na rua. Assim
mostrava a seus alunos o efeito dos diversos nveis de voltagem nas zonas
mais sensveis do corpo humano, e ensinava a eles como aplicar vomitivos e
outras substncias qumicas. Nos ltimos meses, trs homens e uma mulher
morreram durante estas aulas de Tcnica de Interrogatrio.
Mitrione detestava a desordem e a sujeira. E detestava a linguagem
incorreta:
- Bolas, no, delegado. Testculos.
Tambm detestava o gasto intil, o movimento no necessrio, o dano que
pode ser evitado:
- uma arte, mais que uma tcnica dizia: - a dor exata, no lugar exato, na
medida exata.
Buenos Aires, 1977
RETRATO DE UM ARTISTA DO DINHEIRO
O ministro da Economia da ditadura argentina, Jos Alfredo Martnez de Hoz,
um devoto da empresa privada. Nela pensa nos domingos, quando se
ajoelha na missa, e tambm nos dias de semana, quando d aulas na Escola
Militar. Mesmo assim, o ministro se livra da empresa privada que dirige.
Generosamente a cede ao Estado, que paga dez vezes o que ela vale.
O generais transformam o pas num quartel. O ministro o transforma num
cassino. Cai sobre a Argentina um dilvio de dlares e coisas. a hora dos
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lngua. Esta supera todas, sentencia, como as plumas do pavo real resplandecem
sobre as de qualquer ave.
Tu vive, todos nos vivemos, baseados no axioma de que a ideia de revolucao e incompativel
com a ideia de ordem. Todo nos estamos intoxicados por esse romantismo heroico,
sanguinario... Mas queres saber de uma coisa? Ha dias em que me interrogo sobre isso, em
que me pergunto o porque dessa adesao geral as ideias de violencia... Sera unicamente
porque a violencia nos e indispensavel para agir com eficacia? Nao... E tambem porque essas
teorias encontram eco nos nossos mais baixos instintos, nos mais antigos, os mais fundamente
arraigados no homem!... Olhemo-nos no espelho... Com que olhos ferozes, com que ricto de
selvagens, com que alegria cruel e barbara todos nos fingimos aceitar essa violencia como
uma necessidade. A verdade e que nos apegamos a ela por motivos muito menos
confessaveis, muito mais pessoais; porque todos nos temos, no fundo do coracao, uma
desforra a tirar, um odio a satisfazer... E, para saborear sem remorsos esse apetite de
vinganca, que ha de melhor do que poder justifica-lo pela submissao a uma lei fatal? [...] A
necessidade de destruir e ainda mais poderosa que a esperanca de construir... Para quantos
de nos, a revolucao, antes de ser uma obra de transformacao social, nao sera uma ocasiao
para saciar essa necessidade de vinganca, que encontrara uma embriagadora satisfacao no
tumulto, no motim, na guerra civil, no assalto brutal ao poder? Que delirio de represalia, no dia
em que pudermos, por uma vitoria sangrenta, impor por nossa vez a nossa tirania, a tirania de
nossa justica!... [...] Qual de nos podera pretender ter escapado completamente a esse
contagio capitoso da destruicao?
Potso, 1600
A OITAVA MARAVILHA DO MUNDO
Incessantes caravanas de lhamas e mulas levam ao porto de Arica a prata que, por todas as
suas bocas, sangra o morro de Potos. Ao cabo de longa navegao os lingotes se despejam
na Europa para financiar a guerra, a paz e o progresso.
Em troca chegam a Potos, de Sevilha ou de contrabando, vinhos da Espanha e chapus e
sedas da Frana, bordados, espelhos e tapearias de Flandres, espadas alems e papelaria
genovesa, meias de Npoles, cristais de Veneza, ceras de Chipre, diamantes do Ceilo,
marfins da ndia e perfumes da Arbia, Mlaca e Goa, tapetes da Prsia e porcelanas da
China, escravos negros de Cabo Verde e Angola e cavalos chilenos de muito brio.
Tudo carssimo nesta cidade, a mais cara do mundo. S so baratas a chicha e as folhas de
coca. Os ndios, arrancados fora das comunidades de todo o Peru, passam os domingos
nos currais, danando ao redor de tambores e bebendo chicha at rodar no cho. Ao
amanhecer da segunda-feira so arrastados morro adentro e mascando coca perseguem, a
golpes de picareta, as veias de prata, serpentes alviverdes que aparecem e fogem pelas tripas
deste ventre imenso, nenhuma luz, ar nenhum. Ali trabalham os ndios a semana inteira,
prisioneiros, respirando p que mata os pulmes e mascando a coca que engana a fome e
disfara a extenuao, sem saber quando anoitece nem quando amanhece, at que no fim do
sbado soa o toque de orao e sada. Avanam ento, abrindo caminho com velas acesas, e
emergem no domingo ao amanhecer, que so assim fundas as covas e e os infinitos tneis e
galerias.
Um padre, recm-chegado a Potos, os v aparecer nos subrbios da cidade, longa procisso
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Potos, 1616
RETRATOS DE UMA PROCISSO
Morro mgico o de Potos: nestes altos paramos inimigos, que s ofereciam solido e frio, fez
brotar a cidade mais povoada do mundo.
Altas cruzes de prata encabeam a procisso, que avana entre duas fileiras de estandartes e
dee espadas. Sobre as ruas de prata, ferraduras de prata; soam os cavalos luxuosos de veludo
e brides cobertos de prolas. Para confirmao dos que mandam e consolo dos que servem,
a prata desfila, fulgurante, pisa forte, sabedora de que no h espao da terra ou do cu que
no possa comprar.
Vestiu-se de festa a cidade: os balces brilham de brases e flmulas; de uma mar de
farfalhantes sedas, espumas de bordados e cataratas de prolas, as senhoras admiram a
cavalgada que avana com estrpito de trombetas, pfaros e atabaques. Uns quantos
cavaleiros levam vendas negras em um dos olhos e protuberncias e chagas na testa, que no
so marcas da guerra e sim da sfilis; mmas voando vo e vm, dos balces rua, da rua aos
balces, os beijos e os gracejos.
Abrem caminho, mascarados, o Interesse e a Cobia. Canta a Cobia, mscara de cobras,
enquanto o cavalo faz cabriolas:
Dizem que sou dos males a raiz
mas meu trofu
a ningum deixar feliz.
E responde o Interesse, calas negras, gibo negro bordado de ouro, mscara negra sob o
negro chapu cheio de plumas:
Seu eu venci o amor e o amor vence a morte, sou de todos o mais forte.
Encabea o bispo um lento e longo exrcito de padres e encapuzados nazarenos armados de
altos crios e candelabros de prata, at que o rudo da trombeta dos heraldos se impe sobre o
repicar dos sininhos anunciando a Virgem de Guadalupe, Luz dos que esperam, Espelho de
justia, Refgio de pecadores, Consolo dos aflitos, Palma verde, Vara florescida, Pedra
refulgente. Ela chega em ondas de ouro e madreprola, nos braos de cinqenta ndios;
afogada por muitas jias, assiste com olhos de assombro o bulcio dos querubins de asas de
prata e o espetacular movimento de seus adoradores. No branco corcel irrompe o Cavaleiro da
Ardente Espada, seguido por um batalho de pajens e lacaios de librs brancas. O Caavaleiro
atira longe o seu chapu e canta Virgem:
Em minha dama, embora morena, tal formosura se encerra que suspende cu e terra.
Lacaios e pajens e libr roxa correm atrs do Cavaleiro do Amor Divino,que vem trotando,
ginete romano, ao vento das longas casacas de seda arroxeada: frente Virgem cai de joelhos
e humilha a testa coroada de louro, mas quando incha o peito para cantar as rimas,explode
uma fuzilaria de fumaa de enxofre. Invadiu a rua o carro dos Demnios, e ningum presta a
menor ateno ao Cavaleiro do Amor Divino.
O prncipe Trtaro, adorador de Maom, abre suas asas de morcego, e a princesa Prosrpina,
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cabeleira e cauda de serpentes, lana do alto blasfmias e gargalhadas que a corte dos diabos
celebra. Em alguma parte soa de repente o nome de Jesus Cristo e o carro do Inferno
arrebenta-se em uma exploso descomunal. O prncipe Trtaro e a princesa Prosrpina
atravessam de um salto a fumaa e as chamas e rodam, prisioneiros, aos ps da Me de Deus.
Cobre-se a rua de anjinhos, aurolas e asas de prata cintilante, e alegra o ar o som de violes
e guitarras, ctaras e flautins.Os msicos, vestidos de donzelas, festejam a chegada da
Misericrdia,da Justia, da Paz e da Verdade, quatro airosas filhas de Potos erguidas sobre
poltronas de prata e veludo. Tm cabea e peito de ndio os cavalos que puxam a carruagem.
E chega ento, atropelando, a Serpente. Sobre mil pernas de ndios desliza o imenso rptil,
aberta a boca flamejante, metendo medo e fogo na romaria, e aos ps da Virgem desafia e
combate. Quando os soldados cortam-lhe a cabea a golpes de machado e espada, das
entranhas da serpente emerge, com seu orgulho feito pedaos, o Inca. Arrastando suas
assombrosas vestes, o filho do Sol cai de joelhos frente Divina Luz. Exibe a Virgem manto de
ouro, rubis e prolas grandes como gros-de-bico, e mais que nunca brilha, acima de seus
olhos atnitos, a cruz de ouro da coroa imperial.
Depois, a multido. Artesos d
Escribi mucho acerca de la cultura americana, de la que no tena muy buena opinin. Pronunci un
discurso en la Universidad de California, La tradicin corts en la filosofia americana, la esencia del
cual vena a ser que la Amrica acadmica era extraa al espritu del pas, que es, deca, vigoroso, pero
filisteo. A m me haba parecido, en mis vagabundeos por las universidades americanas, que stas
armonizaran ms con el espritu del pas si fueran edificadas en forma de rascacielos, que en su forma
actual de edificaciones seudogticas ordenadas alrededor de un campus. Esta era tambin la opinin
de Santayana. Me parece, sin embargo, que exista cierta diferencia entre su opinin y la ma. Santayana
gozaba sintindose distanciado y despreciativo, mientras que a m esa actitud, cuando me vea forzadoa
sentirla, me dola enormemente.
100003356399077 (Danilo)
ltimo: 100003971326044
Con anterioridad a la influencia de la cultura snscrita, o brahmnica, la cultuta tamil ya era de por s muy
rica y las influencias, o formas culturales, procedentes del norte se adaptaron e se modelaron segn las
costumbres indgenas tamiles. Em lo relativo a la relegin devocional dos factores importantes
potenciaron su desarollo en la cultura tamil: la poesia tamil, y la divindad tamil Murukan.
La coleccin ms antiga de literatura cankam incluye dos grupos fundamentales: las Ocho Antologas y
las Diez Canciones. Estas antologas de poesa tienen dos temas bsicos: el amor y la guerra. El gnero
potico amoroso se denomina akam (interior o interno), mientras que el blico o heroico se denomina
puam (exterior o externo). La poesia amorosa es especialmente significativa, ya que classifica las
emociones interiores amorosas (uri) em cinco grupos que corresponden con cinco tipos de paisaje exterior
e de representaciones simblicas. Estas correspondencias se identifican tambin com tipos de flor. Son: en
primer lugar, hacer el amor, que corresponde a un paisaje agreste con flores de montaa que se abren cada
doce aos, su smbolo son los campos de mijo y las cataratas; en segundo lugar, esperar al ser querido con
ansiedad, que corresponde a la playacuyo smbolo son tiburones y pescadores; en tercer lugar, la
separacin, que corresponde a un paisaje rido con una flor del desierto, y cuyo smbolo son los buitres,
los elefantes hambrientos y los ladrones; em cuarto lugar, esperar a la esposa con paciencia, que
corresponde a un paisaje pastoral con flores de jazmn y cuyo smbolo son los toros, un pastor de ganado,
o la estacin lluviosa; y, por ltimo, el enfado, real o imaginario, que corresponde a um paisaje agrcola y
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Ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas grutas. Mas
um "ela" achou por terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja todo
s e mngua de me. Levou-o para casa. Aconchegou-o. Alimentou-o e
dava-lhe murmrios e terminou descobrindo que ele gostava de carne crua.
Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas
demorou a ir em busca do prprio destino que seria o de reunir-se aos de
sua doida raa: que se afeioara, essa diablica ave, moa. At que em
um arranco - como se estivesse em luta consigo prprio - libertou-se com o
vo para a profundeza do mundo.
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