Poemas XV

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FERNANDO PESSOA

PASSOS DA CRUZ
I
Esqueo-me das horas transviadas...
O Outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em dio nsia
Pe dias de ilhas vistas do convs
No meu cansao perdido entre os gelos,
E a cor do Outono um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonncia...
Esqueo-me das horas transviadas...
O Outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em dio nsia
Pe dias de ilhas vistas do convs
No meu cansao perdido entre os gelos,
E a cor do Outono um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonncia...

II
H um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efmera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...

Florir do dia a capitis de Luz...


Violinos do silncio enternecidos...
Tdio onde o s ter tdio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao p dos sculos perdidos
E cismo o seu perfil de inrcia e voo...

III
Adagas cujas jias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convs sem ningum cheio de malas...
O ntimo silncio das opalas
Conduz orientes at jias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de cio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo s pelo cessar das lanas
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovao, e erguem as crianas...
Mas no teclado as tuas mos pararam
E indefinidamente repousaram...

IV
tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mos!,
E, beijando-o, descesse pelos desvos
Do sonho, at que enfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra reis cristos
Ajoelhando, inimigos e irmos,
Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...
Caverna em estalactites o teu gesto...
No poder eu prend-lo, fazer mais
Que v-lo e que perd-lo!... E o sonho o resto...

Tnue, roando sedas pelas horas,


Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia adias para prece
O rito cujo ritmo s decoras...
Um mar longnquo e prximo humedece
Teus lbios onde, mais que em ti, descoras...
E, alada, leve, sobre a dor que choras,
Sem querer saber de ti a tarde desce...
Erra no anteluar a voz dos tanques...
Na quinta imensa gorgolejam guas,
Na treva vaga ao meu ter dor estanques...
Meu imprio das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso s algas mgoas
Que h para alm de sermos outonais...

VI
Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, no Boabdil,
Mas o seu mero ltimo olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial
Do que j na distncia de mim vi...
Eu prprio sou aquilo que perdi...
E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glria marginal
Os girassis do imprio que morri...

VII
Fosse eu apenas, no sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu doirado assomo...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de no pertencer
Meu intuito gloriola com ter
A rvore do meu uso o nico pomo...

Fosse eu uma metfora somente


Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e, num crepsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na ltima tarde de um imprio em chamas...

VIII
Ignorado ficasse o meu destino
Entre plios (e a ponte sempre vista),
E anel concluso a chispas de ametista
A frase falha do meu pstumo hino...
Florescesse em meu glabro desatino
O himeneu das escadas da conquista
Cuja preguia, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino...
Meus cios ricos assim fossem, vilas
Pelo campo romano, e a toga traa
No meu soslaio annimas (desgraa
A vida) curvas sob mos intranquilas...
E tudo sem Clepatra teria
Findado perto de onde raia o dia...

IX
Meu corao um prtico partido
Dando excessivamente sobre o mar
Vejo em minha alma as velas vs passar
E cada vela passa num sentido.
Um soslaio de sombras e rudo
Na transparente solido do ar
Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados cus o prtico ido...
E em palmares de Antilhas entrevistas
Atravs de, com mos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,
Imperfeito o sabor de compensando
O grande espao entre os trofus alados
Ao centro do triunfo em rudo e bando...

Aconteceu-me do alto do infinito


Esta vida. Atravs de nevoeiros,
Do meu prprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e atravs estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incgnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve plancies de cu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que meu.
Narrei-me a sombra e no me achei sentido
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...

XI
No sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mo colora algum em mim.
Pus a alma no nexo de perd-la
E o meu princpio floresceu em Fim.
Que importa o tdio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruncia da alma que se vela
Com os sonhados plios de cetim?
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma um arco tendo ao fundo o mar...
O tdio? A mgoa? A vida? O sonho? Deixa-se...
E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo comeado
Pestaneja no campo abandonado...
XII
Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeio.
Seguia-a, como um gesto de perdo,
O seu rebanho, a saudade minha...
Em longes terras hs-de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vo...
Seu vulto perde-se na escurido...
S sua sombra ante meus ps caminha...
Deus te d lrios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto

Sers, rainha no, mas s pastora


S sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

XIII
Emissrio de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instrues de alm,
E as bruscas frases que aos meus lbios vm
Soam-me a um outro e anmalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a misso que o meu ser tem,
E a glria do meu Rei d-me o desdm
Por este humano povo entre quem lido...
No sei se existe o Rei que me mandou.
Minha misso ser eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas h! Eu sinto-me altas tradies
De antes de tempo e espao e vida e ser...
J viram Deus as minhas sensaes...

XIV
Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vos olhares
Se admiraram), para alm dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tdio nasce
Parou... Apareceu j sem disfarce
De msica longnqua, asas nos ares,
O mistrio silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longnqua s existe
Para haver nela um silncio em descida
Para o mistrio, silncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde h a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

Ah, como o sono a verdade, e a nica


Hora suave a de adormecer!
Amor ideal, tens chagas sob a tnica.

Esperana, s a iluso a apodrecer.


Os deuses vo-se como forasteiros.
Como uma feira acaba a tradio.
Somos todos palhaos estrangeiros.
A nossa vida palco e confuso.
Ah, dormir tudo! Pr um sono roda
Do esforo intil e da sorte incerta!
Que a morte virtual da vida toda
Seja, sons, a janela que, entreaberta,
S um crepsculo do mundo deixe
Chegar sonolncia que se sente;
E a alma se desfaa como um peixe
Atado pelos dedos de um demente...
ALGA
Paira na noite calma
O silncio da brisa...
Acontece-me alma
Qualquer coisa imprecisa...
Uma porta entreaberta...
Um sorriso em descrena...
Uma nsia que no acerta
Com aquilo em que pensa.
Sonha, duvida, elevo-a
At quem me suponho
E a sua voz de nvoa
Roa pelo meu sonho...
As lentas nuvens fazem sono,
O cu azul faz bom dormir.
Bio, num ntimo abandono,
tona de me no sentir.
E suave, como um correr de gua,
O sentir que no sou algum.
No sou capaz de peso ou mgoa.
Minha alma aquilo que no tem.
Que bom, margem do ribeiro
Saber que ele que vai indo...
E s em sono eu vou primeiro,
E s em sonho eu vou seguindo.

Ela canta, pobre ceifeira,


Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e annima viuvez,
Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,


E h curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz h o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razes pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razo!
O que em mim sente st pensando.
Derrama no meu corao
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconscincia,
E a conscincia disso! cu!
campo! cano! A cincia
Pesa tanto e a vida to breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
DEPOIS DA FEIRA
Vo vagos pela estrada,
Cantando sem razo
A ltima esperana dada
ltima iluso.
No significam nada.
Mimos e bobos so.
Vo juntos e diversos
Sob um luar de ver,
Em que sonhos imersos
Nem sabero dizer,
E cantam aqueles versos
Que lembram sem querer.
Pajens de um morto mito,
To lricos!, to ss!,
No tm na voz um grito,
Mal tm a prpria voz;
E ignora-os o infinito
Que nos ignora a ns.

FERNANDO PESSOA/LAVRO DE CAMPOS


GAZETILHA
Dos Lloyd Georges da Babilnia
No reza a histria nada.
Dos Briands da Assria ou do Egipto,
Dos Trotskys de qualquer colnia
Grega ou romana j passada,

O nome morto, inda que escrito.


S um parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um gemetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que est l para trs no escuro
E nem a histria j historia.
grandes homens do Momento!
grandes glrias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanh dos loucos de hoje!

JULIO HERRERA Y REISSIG


AMOR SDICO
J no te amava, sem que meu desejo
fugisse sombra de teu amor distante.
J no te amava, e contudo o beijo
de uma repulsa nos uniu um instante...
Acre prazer tornou-me seu possesso,
crispou-me a face, mudou meu semblante.
J no te amava e turbei-me, no obstante,
qual uma virgem entre um bosque espesso.
E j perdida para sempre, ao ver-te
amanhecer sob o eterno luto,
mudo o amor, o corao inerte ,
atroz, esquivo, rigoroso, hirsuto...
Jamais vivi como naquela morte,
jamais te amei como num tal minuto!

JORGE DE LIMA
O GRANDE DESASTRE AREO DE ONTEM
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraado com a hlice. E o violinista
em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivrius. H mos e
pernas de danarinas arremessadas na exploso. Corpos irreconhecveis identificados pelo Grande
Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos
poetas mrtires. Vejo a nadadora belssima, no seu ltimo salto de banhista, mais rpida porque vem sem
vida. Vejo trs meninas caindo rpidas, enfunadas, como se danassem ainda. E vejo a louca abraada ao
ramalhete de rosas que ela pensou ser o pra-quedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas

riscando o cu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos
pobres mortos. Presumo que a moa adormecida na cabine ainda vem dormindo, to tranqila e cega!
amigos, o paraltico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do
vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E h poetas mopes que pensam que o arrebol.

ANUNCIAO E ENCONTRO DE MIRA-CELI


I.
O inesperado ser comeou a desenrolar as suas faixas em que estava escrita a histria da criao passada
e futura.
Retirou a imensa cabea de dentro da torre, sob o estrondo das muralhas desabadas com seu gesto.
A estreita porta abriu-se reverente para ele passar.
O ptio interior espraiou-se como um lago, e as colunas eternas que sustentavam as abbadas
substituram os seus braos e as suas pernas.
Entretanto, ele continuava incluso na eternidade. Nos blocos retangulares de suas rbitas estavam
encerradas inmeras geraes.
Era to velho que morava dentro da morte.
Era to jovem que inscrevera no seu peito de pedra o nome de vrias mulheres.
Dentro dos aquedutos que irrigavam os jardins suspensos em suas frentes haviam navegado muitos
povos experientes.
Acharam a sua carne to spera como a solido.
Tendo selecionado algumas presenas , pde expulsar vrias rainhas tombadas em seu prtico. Cara de
qualquer dinastia: o hlito quente do deserto ainda corria de seus lbios gretados.
O inesperado ser tinha taras humanas; mas a sua rota se dirigia s Trs Pessoas Eternas e Unas no
imenso Deus que o recobrira com esta aparncia.
Senhor, o meu corpo genrico; e porque me crucificam?
Falava e pensava a soas como um louco.
A abundncia de faces que se sucediam ininterruptamente em sua cabea criou a lenda de que ele era
mgico; mas seu rosto permanecia absolutamente infantil; o rosto dos outros homens que se movia com
premeditada desigualdade; muitos de seus companheiros se fantasiaram de anes para desapont-lo;
inmeros se metamorfosearam em deuses secundrios, em coisas estanques, em manequins, em pssaros
empalhados.
Pretenderam descobrir a sua tumba e no conseguiram: ele s vezes se declarava morto, porque a morte
era apenas uma continuao.
Contudo, desenterraram milhares de retratos de sua vida contnua com todos os defuntos que cruzaram a
sua rbita: ele se reviu e chorou diante dos documentos de sua consagrao.
Atravs dos desfiladeiros solitrios e largos, vagou com seus pensamentos frontais.
Vrias sepulturas de reis tinham sido efetivamente executadas.
Quanto se enterram prematuramente em companhia de demnios srdidos?
Quantas efgies de soberanos estavam desfiguradas pelo orgulho?
Quantos tronos se encontravam povoados de insetos?
Era preciso dar sombra gua: ele estendeu as mos.
A jusante do rio todos se dessedentaram.
Era preciso escavar a verdade: ele rompeu os dedos na rocha at encontr-la.
Era preciso descer terra: ele navegou pelo mar at os cais em que fuzilavam homens tidos por
estrangeiros.
Era preciso ir eternidade: ele j se encontrava nela.
Que nome mais antigo que o seu e o da musa sada de si?
O horror ao espao e fragmentao obrigou-o a encher a plancie de colunas com as insgnias de seus

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amigos e de operrios que com ele trabalhavam.


Olhai atentamente os espelhos, que os vereis l dentro.
E se vedes guerras, so sempre cenas blicas contra grifos vigilantes ou sonmbulos.
Entretanto, aparecem outros temas mais determinados: so as faces do Pai sob os mais vrios signos;
mas todas estas faces so uma, sob distribuio tripartite.
O inesperado ser luta pelos seus irmos acossados e ama a magnitude do perigo.
As suas flechas j atravessam os coraes superpostos de um peloto de demnios.
E se nessa luta ele se declara morto, que a morte lhe d maior panorama da vida.
Ego dormivi, et soporatus sum: et exsurrexi, quia Dominus suscepit me.
Ilumina oculos meus, ne uquam obdormiam in morte: nequando dicat inimicus meus: Prevalui adversus
eum.

III.
H necessidade de tua vinda, Mira-Celi:
Milhares de ventres virginais te esperam
atravs de sculos e sculos de insnia!
Basta de entremostrares:
Ns j te pressentimos demais
em certos momentos de mistrio
ou sob algumas aparncias obscuras.
H lbios entreabertos esperando:
Sos os meus irmos,
a quem anunciei que tu virias.
H palavras de fogo, semi-apagadas;
h janelas desertas, j fechadas;
h ausncias inexplicveis, gestos mortos;
h lagos estagnados sob grifos de luto.
Quando vieres, as rvores ocas daro flores,
e teu esplendor acender pela noite dormente
os olhos entreabertos dos semblantes amados.
IV.
Os grandes poemas ainda permanecem inditos,
e as grandes palavras dormem nas lnguas secas.
Foram ouvidas apenas alguma lamentaes;
mas precisamos de blasfmias que estremeam o Cristo,
e de delrios da mais incruenta febre
ou ento de gestos humildes que arranquem uma clemncia dEle.

AS PESSOAS DE MIRA-CELI
25.
O av tinha sido um ancio convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a av uma menina plida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Da a mo dobra a pgina do livro,
e a histria da tetraneta finda com uma estocada no ventre:

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h destinos travados, lenos quentes de lgrimas,


algum incesto, uma violao sobre um sof antigo.
Quando a mo dobra a pgina, h rastros de sangue no soalho.
Esta a mais nova das cinco.
Veja que os seios so como neve que ns nunca vimos
e ningum nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina este moo de luto.
Agora vire a pgina e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
atravs da luneta avoenga. Veja que sem o fotgrafo querer
as cortinas do a impresso de caras impressionantes
por detrs da gravura: um estudante de cavanhaque e outro de capa.
Repare bem o brao que ningum sabe de onde
circunda o busto da moa e a quer levar para um lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido escuta para perceber a respirao grossa,
os gritos, os juramentos... A saia negra parece um sino de luto,
e o decote a nau que a levou para sempre. E este fundo de gua
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as lgrimas do fotgrafo

39.
Em nome de Mira-Celi,
levantai-vos, soldados cados para sempre na luta, desde Abel at hoje.
No deveis quedar-vos entre os humos das mesopotmias,
tempo de despertardes,
de acordar-vos de vosso sono milenar nos outeiros sagrados!
Em nome de Mira-Celi, acordai, soldados cados nas guerras:
tempo de abandonardes estes imensos campos cobertos de cruzes
ou as valas annimas em que misturai vossos ossos;
tempo de afastar os eternos gelos em que haveis mergulhado lutando;
tempo de estraalhar brancas mortalhas de neve
em que aliviais as queimaduras da plvora;
os vossos cavalos cegos ou mutilados vm alta noite relinchar dentro das ventanias;
acalmai vossos corcis;
vinde com eles, que tempo de despertar.
Em nome de Mira-Celi, regressai, soldados desaparecidos nos xodos
ou refugiados na morte, aviltados pelas deseres, fuzilados como traidores ou espies;
tempo de levantar vossas frontes enegrecidas;
regressai, soldados covardes ou fugitivos
ou de peitos arrombados pelas metralhas
ou enforcados, ou martirizados ou arremessados de avies e de pra-quedas;
tempo de despertar do solo de vossas ptrias,
soldados que haveis tombados em milhares de guerras
que a memria do homem esqueceu,
ou das guerras que a histria no registrou,
ou que nunca forma encontrados no mar,
ou desapareceram na voragem dos bombardeios,
soldados desmemoriados, loucos ou conscientes que abenoaram ou amaldioaram a guerra,
soldados que vos suicidastes, tempo de desertar.
Em nome de Mira-Celi, vinde, soldados tombados em todas as guerras!

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tempo de desertar!
E com a fora dos milhes e milhes que representais,
arrasar na superfcie da terra ou no ar
ou no fogo ou na gua aquilo que preciso arrasar.

6.
Quando te aproximas do mundo, Mira-Celi,
sinto a sara de Deus arder, em crculo, sobre mim:
Ento mil demnios nmades fogem nos ltimos barcos.
E as planuras desertas se ondulam volutuosas.
Quando, porm, te afastas, os homens se combatem entre ranger de dentes;
a vida se torna um museu de pssaros empalhados
e de coraes estanques dentro de vitrinas poentas;
infelizes crianas que nasceram em bordis, escondem-se atrs dos mveis,
com medo dos homens bbados;
paira no ar um cheiro de mulher recm-poluda;
passam aviadores desmemoriados em cadeiras de rodas;
vem-se tanques transformados em gaiolas de pssaros;
e submarinas apodrecendo em salmora de suor;
organizam-se maratonas de hemipgicos;
nas praas pblicas exibem-se claunes paralticos;
caftens de borboletas fogem para os abrigos;
e as sirenes anunciam que os lobos fugiram das estepes para os coraes:
e mesmo aqueles que aprenderam as oraes da infncia
no ouvem mais o ressonar de Deus.

7.
O Imprio de Mira-Celi contm alguns milhares de reinos.
Ela com os dedos entrelaados abarca a esfera ao meio;
e de ponta a ponta os mares e as cordilheiras
prestam obedincia ao seu mundo,
que comea onde o dedo mnimo da deusa
toca a mais nfima de suas constelaes.
Nesse imenso anfiteatro
assenta o Imprio de Mira-Celi, centro de novas rbitas.
Da linha do horizonte nasce para ser ouvida a voz que, depois do dilvio,
recomenda a paz entre os homens.
O roteiro dos descobridores deixa de ser pelas ndias
ou e pelos cabos povoados de gentios ou de monstros.
Os poetas assinalados dominam as hostes dos rgulos e dos ditadores.
No existem espritos de colorao desigual,
nem geografias que possuam direitos sobre demais geografias.
O mais annimo ser recebe por inoculao misteriosa
uma tnica, repercutida dentro de cada esprito, como um acorde de harpa.
Mira-Celi mandou construir caravelas;
deu um mar a cada poeta;
mandou gravar em cada pala de blusa um cavalo marinho.
Estai alerta, que Mira-Celi aparece para combater

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tudo que intercepte os homens de contemplar seu rosto.

8.
Acontece muitas vezes que a velha terra fendida de sepulturas
a uma hora misteriosa e propcia
se transforma em um imenso rebanho de montes e de colinas;
e a rocha abrupta vista no horizonte entrega-se, doce, s nuvens;
e as guas livres que h milhares de anos viviam aprisionadas dentro de gelos eternos,
correm em forma de rio:
acontece, amiga, que nesta hora propcia
as rvores atraem numerosos pssaros,
e os coqueirais movem-se como tentculos,
e os penedos marinhos arrastam-se, vivos, sobre os bancos de areia;
acontece tambm que os parques parecem milhes de braos agitando-se em adeuses, porque
precisamente no ocaso que essa hora se d.,
Esta hora em que todos nos encontramos nas curvas das espirais,
e os desejos ficam intumescidos em abbadas;
ento os vastos anis nupciais, que circundam as coisas,
unem-se em unnimes estrelas armilares;
acontece, amiga, que nesta hora podeis ver Mira-Celi dentro de vosso olhar.

11.
Em tua constelao, vrias de tuas irms no existem mais,
(melhor fora que nunca houvessem nascido)
desertaram de teus outonos, Mira-Celi;
despenharam-se nos abismos celestes
procura de algum sol secundrio
ou compem as tenazes e a cauda do escorpio.
S tu permaneces dormindo,
intacta e incorrutvel sob o hlito de Deus:
s tu permaneces ainda mida,
e apenas estremeces para a glria dos homens.
S tu no foste transformada em serpente;
nem picaste rion
nem geraste os dez gmeos de fogo
que comandam as guerras.
Apenas os teus sonhos nos povoaram de poesia,
e o teu ressonar a nossa terrena msica.
Alta noite despertas, doce Musa sonmbula,
readormeces depois: explodem dios no mundo,
grandes flores carnvoras brotam de plo a plo,
rios de sangue descem das rbitas esvaziadas.
preciso que acordes, grande Musa esperada,
e desas aos nossos ares,
para que o homem volte a contemplar-te, mudo,
pelo cair das tardes.

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12.
Estai alerta: de sbito ela se tornar visvel.
Estai, portanto, desde o amanhecer do dia.
Mira-Celi que vem para viver conosco!
Navegantes julgaro estar vendo um navio fantasma,
enquanto as donzelas sonharo com seus gmeos futuros,
e os pastores com seu cordeiro desaparecido.
Mas apenas Mira-Celi que se torna visvel.
Se tendes mos azinhavradas, no a vereis jamais.
Se vossa mente possui alguma sinistra idia,
no a vereis jamais.
Se vosso dorso se inclinou a um tirano qualquer,
ficareis cegos de nascena.
Porque Mira-Celi nunca se mostrar,
enquanto divisar manchas em nossa terra.
Quando ouvirdes ento um rumor desusado, vindo do fim do mundo,
sabereis que os falsos deuses comearam a tremer.
Mira-Celi vem vindo sobre as guas, no ar.
Os lbios de Mira-Celi tocaro vossos lbios.
Ficareis em eclipse entre Mira-Celi e o mar!

14.
O fogo celeste queima-te o paladar;
a tua lngua descama-se em folhas secas;
tua pobre capa de viagem cobre-te o corao,
enquanto cinges tua fronte com a neblina da noite
para que no te esbofeteiem.
Em plena luz do dia tentam exterminar-te,
mesmo que no ostentes tua presena mgica:
pressente-te no ar, no fogo, na gua e na terra.
O teu prprio sangue te desconhece: j no podes pernoitar em casa;
clamas tua prole:
Por que me abandonastes, meus filhos?
E teus filhos e tua mulher e teu melhor amigo
e os filhos incubados, que no ventre de tua companheira respiram o hlito do limbo, te repudiam.
Na verdade, te tornaste to diferente, retirando as escamas de tua face,
que te transformastes nos primitivos peixes.
As cidades populosas esto desertas ante teus olhos,
e andas pelas ruas olhando as janelas como um insensato.
Agora os becos te circundam
e o prprio ar de Deus comprime teu hlito morto:
Por que no morri no ventre de minha me?
Senhor, apagai dos tempos decorridos o minuto em que vim luz,
o segundo em que imaginaste a essncia que eu sou;
retroagi vossa criao at a minha ausncia;
deixai-me descansar entre os abortos do mundo.

15

16.
Quatro enormes ventanias
seguem sempre alucinadas
enterrando noite e dia
comandantes e soldados.
Quatro enormes ventanias
roem o bronze das esttuas,
comem todos os vestgios
dos bares assinalados.
face da terra estril
fogem poeiras agoniadas:
restos dos grandes imprios
histria e nome apagados.
Agora baixam do cu
quatro arcanjos operrios:
afogam num charco abjeto
mil fabricantes de armas,
mil forjadores de guerra.
Depois nada? quase nada:
bichos soturnos boiando
sobre o mar estagnado,
um mar sem curvas de ondas.
E depois? depois vem tontos
Lucfugo e Astorot
matando os outros demnios
se entredevorando ferozes.
Mas nada disso consegue
deter a rota perene,
milnio sobre milnio
do ciclo de Mira-Celi.

19.
s vezes nos acabrunha a reminiscncia
de vrios crimes, como a recusa do estado de criaturas,
e de uma srie de profanaes cometidas depois da Queda.
Vezes inmeras, ensangentamos o jogo da Criao;
mas assistimos a, tambm vezes inmeras,
grandes poemas se levantarem da terra.
Nascem pelos secretos de nossos membros,
possumos reminiscncias de asas
e a noo instintiva da direo para o alto;
mas nos perdemos freqentemente como vagabundos cegos:
o nosso caminho no sempre uma subida constante

16

nem um avano seguido, mas recuo pela treva escura,


arrebatados pelos redemoinhos do sangue que nos irriga.
Somos reis, mas o menor verme no reconhece jamais
a nossa realeza nem a nossa origem divina.
Paredes tumulares cercam-nos em seis direes;
temos estampados na face signos de cativeiros;
entre a carne mortal e a imaginao criadora
impuseram-nos limites que ns no escolhemos.
Encerramos milhares de geraes num pedao de nervo
ou num fragmento qualquer de recordaes.
Por isso, neste meu canto em louvor de Mira-Celi,
se elevar pouca coisa em meu nome,
mas em nome de meu anjo e das geraes que sintetizamos
e que se reconhecem e se reconhecero pelos lbios.

23.
Duas de suas irms so inteiramente loucas,
outras trs ainda no nasceram neste parque do cu.
Na longnqua e misteriosa luz vejo apenas seus braos,
e nas noites serenas os olhos desta extraordinria estrela.
Uma das minhas solides repousam no lcteo mar de seu ventre;
mas os olhos dos pastores e dos nautas sempre se alimentam dela.
Bem sei que os Ptolomeus a quiseram prostituir;
preferiu entregar-se s serpentes sagradas
a ser uma constelao intil.
Ela queria a vida eterna, meu Deus!
Em determinados ocasos eis que se muda em navio,
em cabeleira ou em Oflia:
penso que me vai trair ou enlouquecer
ou que est representando neste vasto teatro.
Na verdade apenas uma constelao crist
formada nos primeiros dias,
coma aparncia de cisne, de chama ou de duna
em que se ostenta um de meus horizontes.
Ela aspira vida eterna, meu Deus!
Se a tiveres de transformar,
transforma-a em guia ou em prola de teu manto
ou em poeira para teus ps!
Se a queres extinguir, adormece-a primeiro,
para que o reflexo de seu cadver sempre ilumine a terra.
Se a queres mudar de posio,
aproxima-a de meus lbios.
Se a queres possuir, nada te posso negar.
Porm ela aspira vida eterna, meu Deus!
Sei que no compreendo tuas experincias;
mas, se a quiseres apagar,
podes muito bem apagar os meus olhos,
decepar minha cabea ou transformar-me, simplesmente num corvo.
Mas nunca no teu esquecimento, sempre na tua memria,
na tua viso, no teu pensamento!

17

AS PESSOAS DE MIRA-CELI
24.
Roselis uma que se livrou do exlio entre os mercenrios
e tem os clios embebidos do mais puro ungento.
No seu olhar h indcios de grandes poemas
e em seus quatorze anos ela uma promessa de carne e de luz.
Em sua permanncia entre srdidos escravocratas
conseguiu deixar intacto esse orvalho divino
que lhe cobriu os seios, quando era menina;
e h no seu olhar certo orgulho inocente,
como o orgulho da noite iluminada de estrelas.
Roselis liberta ofereceu-se para constituir-se em marco,
de uma laguna estelar,
porque ela meio ondina at o ventre ou pouco acima
O certo que vo renascer nos seus peitos de neve
dois gmeos, ou dois cisnes, ou dois diapases de bronze
que acordaro o mundo para encher-se de poetas.
Roselis, a salva dos escravocratas conseguiu ficar selada
entre os aoites e as lanas, entre os unicrnios e as lufadas.
O corpo de Roselis pode vingar-se como a bola de neve
que rolar sobre lobos famintos.
Mas prefere dissolver-se em neblina
e umedecer as plpebras os poetas tristes.

32.
Agora Lis descansa onde?
Em que manso descansa Lis?
Pensas que Lis morreu talvez.
Que algum tirano ou monstro a esconde
nalgum pas que no conheceis
ou que eu mesmo nunca vi.
Lis no se foi para nenhuma
gente maldita ou plaga obscura,
onde no haja poesia.
Livre de sombras e de brumas
Lis ressurgiu sempre mais pura,
como as estrelas alvadias.
Em tua vida que que esperas
se no te espera outra vida?
s como um sopro num deserto:
sobre o areal te dilaceras,
gritas, debalde, sem guarida:
ningum, ningum passar perto.
Lis te dar itinerrio,

18

vela e batel, porto e alegria.


Que queres mais, homem sem grei?
Em que pas, visionrio,
Descansa Lis pura e erradia?
Vinde conosco e sabereis.
Mas quem Lis? Musa ou atriz,
anjo ou viso? ou a Morte?
ou a vida inda uma vez?
Em que pas descansa Lis?
Vinde conosco e sabereis.

33.
Vim para dar-te notcias deste mundo, sombra amiga, e eis que meus companheiros se deitam e se
levantam ensangentados como o sol. J no acertam chamar-te com teu nome terrestre, pois seus lbios
esto mais lvidos que o sangue dos mortos.
Corre entre o ar e o homem uma cantiga urdida de sortilgios: em cada coisa vivente a destruio
comeou.
Vim para dar-te notcias, e eis que minha voz reboa com tais dimenses desconhecidas que me parece
um pssaro de espanto.
Murmuro tua elegia, nesta aba de deserto; mas o eco total do mundo me estremece.
Pende teu ouvido para que eu nele me infunda e te diga: Intercede para que renasam as memrias
abolidas dos itinerrios de ascenso.
No h maior castigo do que a dvida de possuir-me um corao mortal em holocausto sanha dos
irmos.
Nem pena mais funda que essa de nos sentirmos mais trevosos do que as razes.
Pende mais o ouvido: Estamos confundindo o medo com a humildade ou mesmo com o frio deste
inverno perene.
Quero chamar-te por teu nome terrestre e o esqueci.
As poderosas naes trituram o hlito entre os dentes.
Vozes vindas de rasgados confins comearam a imprecar desde ontem.
Quero chamar-te por teu nome terrestre, e o esqueci.

47.
Mira-Celi, tua presena vai-se desvanecer nos derradeiros limites de tua revelao:
teus lbios despediro a pomba mensageira dos descobrimentos;
teus dedos no mais invertero a ampulheta das renovaes.
Teus ps no se adiantaro aos cursos dos grandes rios.
Empalidecero tuas mos impberes sobre os lbios
que iro marcando os rastros das resignaes pstumas;
a teus ps te procuraro os sinos desterrados pela tua viso proftica.
Bem sei que tua presena circunda de vigilncias meu presumido orgulho.
Ah! que onda celeste ressonar junto minha sombra?
Quando isto se der, no poderei mover-me nem deixar-te.

19

Testemunhas eternas guardaro os sentidos de tuas realidades;


teus olhos, teu hlito bebero, porm, o pranto
que far nascer, crescer e multiplicar-se a flora rediviva.
Tua dor continuar mltipla
como o meu incio sobre os mares recm-nascidos.
Ento volvers encruzilhada propcia
onde os peixes do zodaco marcam a anunciao da gua que te viu nascer.
Todos os mortos podem caber na festa da nova criao.

LIVRO DE SONETOS

Perdidamente para a noite segues


dentro da quieta solido cativa,
e te diluis nas trevas fugitivas,
Oflia imersa em repentino cais.
J te encontras ubqua e intemporal,
sempre alheada como esttua cega,
sacerdotisa e musa em desvario,
circundada da luz de espelhos frios.
Ento teus olhos turvos dessa bruma
que vem das coisas vagas esfumadas
das distncias das asas inda implumes.
Na penumbra que iguala a noite ao dia,
tu s como um poema sempre comeado
de sortilgios e melancolia.

Tempo da infncia, cinza de borralho,


tempo esfumado sobre cinza e rio
e tumba e cal e coisas que eu no valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.
H tambm essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.
Era daltnico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, no se sabe
que muita coisa a um anjo se assemelha.
Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vs no os vedes, culpa no me cabe,
de andar vestido em tnica vermelha.

20

Dormes. Surgem de ti coisas pressagas.


bela adormecida, no tens sexo,
como as algas martimas que as vagas
jogam na praia em renovado amplexo.
O vendaval o mesmo em que te apagas
num torvelinho de mpeto convexo;
dormindo, rodopias, e te alagas
num turbilho de dilogos sem nexo.
Sonmbula parada, s a andarilha,
ilhada entre lenis. Virgem tens prole,
pois s ao mesmo tempo av, me, filha.
E que o sono multparo te viole,
anjo desnudo, salamandra de asas
ressuscitada de dormidas brasas.

Quando tu dormes, vm as alberglias


(aves noturnas de impalpveis penas),
pousar nas tuas mos atormentadas
um viveiro de larvas epicenas.
Descem contemplaes anjo-animlias
com seus clices, vinhos e patenas,
descem mscaras sempre renovadas
mudando-te em ator de novas cenas.
E papoulas enfeitam tua fronte,
sacerdote de ignorado rito
e de gozos com seres sem presena.
Poeta dormindo, subterrnea fonte,
quando gritas ningum ouve esse grito
que antecedeu teu grito de nascena.

Solilquio sem fim e rio revolto


mas em voz alta, e sempre os lbios duros
ruminando as palavras, e escutando
o que conscincia, lgica ou absurdo.
A memria em viglia alcana o solto
perpassar de episdios, uns futuros
e outros passados, vagos, ondulando
num implacvel estribilho surdo.
E tudo num refro atormentado:
memria, raciocnio, descalabro...
H tambm a janela da amplido;
e depois da janela esse esperado

21

postigo, esse ltimo porto que eu abro


para a fuga completa da razo.

O que h sob essa mscara um pranto seco,


pranto final, sem lgrimas, calado.
A pele ressecou-se em frito peco,
a fronte dolorida, o olhar parado.
No h sada mais para esse beco.
Tudo perdido, tudo consumado.
O que h sob essa mscara um pranto seco,
sem esponja de fel e ltimo brado.
As formigas subiram pela fronte
e desceram ligeiras pelos cravos
das patas ressequidas, pelas unhas...
Cadver seco em solitrio monte,
sem complacncias e sem desagravos,
sem madalenas e sem testemunhas.

Olhos, olhos de boi pendidos vertem


prantos por quem se foi. Ouvidos ouvem,
calam. Crepes enlutam as janelas.
Fundas ouas escutam seus gemidos.
Tudo um soluo, i, i, soluo, inerte,
ningum, ningum, ningum. Nem os ciprestes.
A morte surda. Amm nos teus ouvidos.
O cu mata, o sol mata, a mo tambm.
Quem que est jorrando sangue sem
espelho para ver-se em fronte rubra?
Um duro som de sombra prolongada
enche a negra mortalha congelada,
que com ela no h quem no se cubra.

Sei Teu grito profundo, e no me animo


a cortar a raiz que a ti me embasa.
Em mo mais primitiva no me arrimo
devo-Te tudo, origem, patas e asas.
Permite que eu revele histria e limo
sem desobedecer a Tua casa.
Nazareno dos lagos, lume primo,
atende pobre enguia de guas rasas.
Se desses versos outro lume alar-se
misturados com os Teus em joio e trigo,

22

sete vezes por sete me perdoa.


Desnudado, meu todo o disfarce
em revelar os tempos que persigo
na vazante mar com inversa proa.

Depois vi o sangue coagular-se em letras


espalhadas nos muros e nas pedras;
e o cu baixar-se para fecund-las
e fugir outra vez para esquec-las.
Depois vi o homem pressuroso em l-las,
transform-las em signos e arabescos
em palavras, em urros, em apelos,
estranhas oceanias e sonetos.
Em hlitos de bocas cavilosas,
entrecortando slabas amargas
engolidas no prato das desgraas,
e a gagueira ser tanta, tanto o fel
que a grande torre de marfim preciosa
era a torre danada de Babel.

A casa est em sombras imergida.


Na sala de visitas os retratos
pendem. Pendem as flores ressequidas.
A luz morreu. O ambiente timorato.
Na alcova em que viveu a bem-querida
se esvaem gestos, h signos abstratos
errando na penumbra; h outras vidas
pressentidas no fnebre aparato.
A aparncia das coisas coagulou-se
em desesperado hiato. No h passos,
nem mos, nem seu olhar, seu olhar doce,
nem nada; nem o som de sua fala
nem a lembrana vaga de seus traos
nem Tua voz, meu Deus, para acord-la.

Eis nesse mundo a jovem parricida


alimentada em vsceras do pai,
que em si incluindo o trgico da vida
e desprezando a dvida que abstrai
jaz tranqila mas inatingida
e para sempre e para sempre vai
sem repouso, sem paz (inexaurida

23

fonte que no se estanca e no se esvai),


dobrando esquinas pelas noites tristes,
sobrevivendo s pestes incorrupta,
por caminhos certeiros ou errneos;
alma humana, alma dura que ainda existes
nessa luta de morte, nessa luta
em que se batem anjos e demnios.

Vendo-te assim, em distanciada vida,


entrego-me aos orculos primeiro,
depois penetro a sombra derradeira
como uma nau em algas submergida.
E penso em ti, sonmbula e suicida
a face melanclica em nevoeiro,
os lbios respondidos, borralheira
transfigurada em bela adormecida.
H por tudo um clamor de estranha lava,
sai de ti um claro mas to soturno
que te pareces uma sombra escrava
envolvendo-me em ti, a ti persigo;
estou perdido no trigal noturno.
sombra irm, perdeste-te comigo.

Repe em ti a clmide cinzenta,


cobre os olhos com a nvoa da memria
sobre a roda perene, lenta, lenta:
Agita-a a mo, a mo propiciatria.
A mo tangendo a lenda dessa histria.
Que foi melhor? A rosa sonolenta?
O tule antigo, a tnica incorprea?,
Havia um rio aqui, de gua violenta,
e acol uma torre com andorinhas,
e o no terrvel dentro do missal,
as promessas de cera, o mau assombro.
E sempre a morte com dedais e linhas,
e a lgrima travosa com seu sal,
e a mo do av pousada no teu ombro.

Era a noite dos crios. Percorria


as ruas muita gente com lanternas.
Tocavam e danavam. Santa Iria

24

veio de Santarm contra as paternas


recomendaes. Perguntei-lhe se ia
ficar conosco. Sbito das ternas
faces santificadas a magia
divina transformou em sempiternas
rosas as almas vs, em coraes
algumas pedras, em jacintos as
sujas taas de absinto das tavernas.
E feitas todas as transformaes,
Santa Iria sorrindo se desfaz
nas luzes variegadas das lanternas.

Vamos meu duplo-mor s ndias e ao


pas do Preste-Joo desconhecido.
Partamos em ignorada rota blau
por mar de Pscoa sob cu renhido.
Olha-me a face: acaso essa bria nau
no tem velame e tempo, nem olvido?
Acaso essa aventura no tem vau
ou rduo Cabo No inadvertido?
J preparaste a treva e o pesadelo,
a mo sob a cabea, o leo profundo,
o rei de Calicut e o de Melinde?
Ah! a nau opaca em sombra e seu modelo
vo desvendar a ausncia desse mundo
em que a poesia a tnica no cinde.

No sei o que pelo universo havia.


Uma imensa medusa havia no ar,
medusa ou qualquer sbita magia,
coisa obscura difcil de contar.
Tudo em eclipse, tudo parecia
em pauta dupla, contraponto. Bach.
Um veleiro apontou preamar.
Ningum sabia se era noite ou dia,
nem o que se ia agora transformar:
Se o veleiro era um pssaro ou navio
ou se era pedestal ou se era altar.
E nisso as coisas vieram em rodopio
e face igual do mundo sublunar,
Mira-Celi desceu entre o horizonte e o mar.

25

Por esse ermo de tardes calcinadas


houve em maio uma casa desvivida.
Se andorinhas dormiam nas cumeadas
s esvoaavam na abbada da ermida.
Um santo ali vivia morta vida
orando pelas casas habitadas.
Sua casa, no entanto era vivida
na memria das coisas j passadas.
Somente bichos lnguidos basiliscos
participam do po que Deus lhes d
devorado por cobras e escorpies.
Pois ele irmo dos sete So Franciscos:
que o stimo ele prprio que ali est
sob o acicate das flagelaes.

O horizonte era estreito, e a posio


entre a nuvem fugaz e a pedra fria
no deixava que vssemos a mo
misteriosa e gigante que escrevia.
Ento se ouvia a voz: perecero...
Tempo no houve mais, uma agonia
invadiu os seres em tribulao:
e a nuvem se abateu na pedra; e havia,
havia apenas pelo espao estreito,
o sonido da mo que registrava
milnios e milnios e milnios.
O oceano apodreceu no prprio leito,
e uma lava comum, estranha lava
de loucura inundou bestas e gnios.
[O horizonte era estreito, e a posio/ entre a nuvem fugaz e a pedra fria/ no deixava que vssemos a
mo/ misteriosa e gigante que escrevia.// Ento se ouvia a voz: perecero.../ Tempo no houve mais,
uma agonia/ invadiu os seres em tribulao:/ e a nuvem se abateu na pedra; e havia,// havia apenas pelo
espao estreito,/ o sonido da mo que registrava/ milnios e milnios e milnios.// O oceano apodreceu no
prprio leito,/ e uma lava comum, estranha lava/ de loucura inundou bestas e gnios. ]

No h no mapa esta cidade, embora


em gua e nvoa esteja. Seus cavalos
galopam nos canais. Um doge mora
com seus pares imersos. Despert-los

26

eu te peo que no: a lnguida hora,


a hora augural do cntico dos galos:
neste momento a treva se descora,
acendem-se na sombra doces halos:
Santa Maria della Salute anda
sobre as guas por onde vogam santos.
Forma-se logo procisso enorme.
Soa na bruma leve sarabanda.
Silncio! diz Maria, com esses cantos,
que meu filho nas guas ainda dorme.

FUNDAO DA ILHA

III
E depois das infensas geografias
e do vento indo e vindo nos rosais
e das pedras dormidas e das ramas
e das aves nos ninhos intencionais
e dos sumos maduros e das chuvas
e das coisas contidas nessas coisas
refletidas nas faces dos espelhos
sete vezes por sete renegados,
reinventamos o mar com seus colombos,
e columbas revoando sobre as ondas,
e as ondas envolvendo o peixe, e o peixe
( misterioso ser assinalado),
com linguagem dos livros ignorada;
reinventamos o mar para essa ilha
que possui cabos-no a ser dobrados
e terras e brasis com boa aguada
para as naves que vo para o oriente.
E demos esse mar s travessias
e aos mapas-mndi sempre inacabados;
e criamos o convs e o marinheiro
e em torno ao marinheiro a lenda esquiva
que ele quer povoar com seus selvagens.
Empreendemos com a ajuda dos acasos

27

as travessias nunca projetadas,


sem roteiros, sem mapas e astrolbios
e sem carta a El-Rei contando a viagem.
Bastam velas velas e dados de jogar
e o salitre nas vigas e o agiolgio,
e a f ardendo em claro nas bandeiras.
O mais: a meia quilha entre os naufrgios
que to bastantes varram os pavores.
O mais: esse farol com o feixe largo
que to unido varre a embarcao.
Eis o mar: era morto e renasceu.
Eis o mar: era prdigo e o encontrei.
Sua voz? que voz convalescida!
Que lamrias to fortes nessas gveas!
Que coqueiros gemendo em suas palmas!
Que chegar de luares e de redes!
Contemos uma histria. Mas que histria?
A histria mal-dormida de uma viagem.

V
Os viventes de lnguas estendidas
vinham depois com moscas e escorpies;
e geraes de pulgas e de ratos
surgiam no final de cada amor.
Trouxeram-lhe uma cana e um manto sujo,
e o horrendo grito e a esponja de vinagre,
lanas rasteiras, cravos e martelos.
Nesse espelho mirou-se: era vernica.
Chorou de si. O sangue despoliu-o:
era um caixilho ausente sem artrias;
cuspiu-se sobre os olhos que assistiram,
gritou-se sem ouvir-se se existia.
Os infernos reais, para ele ver-se,
to invisveis, to justos, ecoaram;
mirou-se, remirou-se: eternidade;
contemplou-se afinal: era um ser cego.
J renasciam vozes nesses ares,
vozes de treva que eram de socorro,
vozes de nos que vinham sobre os lbios
injuri-los, negar-lhes as palavras.
Foi hoje a migrao, hoje as trombetas,
hoje os despenhos, hoje as gargalhadas,
as gargalhadas, as gargalhadas!

28

VI
Nem as boninas e as outras flores nem
a mais humilde relva, e os ventos,
nada participava da quietude
absoluta, absoluta, eternamente
absoluta daquela pedra de
tumba, compacta, lisa, desprezada.
Nem ningum se lembra da criatura
e de seus sofrimentos e de sua
atormentada vida ali deixada.
Nem tristeza talvez nem alegria,
no mais perpassam sobre a sua face
parada, indiferente mesmo morte
que ele encerrou em treva, e esquecimento,
e o prprio esquecimento abandonou.

VII
Quando cessou o simum, ali surgiu o mar morto,
morto por exploso, sim, morto e em estupor fundo,
o bafo um ar de tumba, o cu sem luz, soturno, oco,
oco pela exploso que o consumiu, varreu-o para
sempre, de qualquer som, pois esse cu jejuno
e to-somente zona obscura como um borro dbio,
como um borro insano, incorporado medula
do mar morto, sim, morto e para sempre morto, morto.
gua funda, gua s inconstil nu s sal fora
ele; e agora estupor cevando o cu de tumba e ermo,
estancado e sem cor, so ambos defuntos amplos,
jungidos num horizonte exangue, iguala um fio cinza
como a cinza do oceano ou a cinza igual desses peixes,
goras uns pobres nus sem escamas e sem sangue,
j no conseguem mais alongar-se em cardumes,
esquecem-se do oceano e da vida que era o oceano
agora morto, sim como um ser contemporneo,
sem pureza xavante, irmo desse cu inane,
igual a um mar sem onda, um bronco e escuro oceano
dormindo em si, hediondo e morto como um eflvio
espontneo que vai recomear um outro mundo
consignado ao inferno, e to morto como o inferno
vivo, mas estanca a vida em si; sem vida
para danar a vida, e como um cao sem nus
que emana como um cano esse mar ltimo, e expira
esse cu consumido em urnio e em abismo
semelhante a esse mar, s noite e s negao,
sonegao da luz de deus, nem cinza, nem mesmo
antevendo o suicdio da vida pior que a morte.

29

IX
Morus utpico, querido amigo,
aps Maro acendeu luz amorosa;
e para continuar esse estro antigo,
a glosa nasce, surge a vossa glosa.
Em urnio se queima o velho abrigo
sem picos vai nascer a nova rosa.
Despovoou-se a ilha, o campo vil mendigo:
quantas guerras na paz dificultosa!
Quantas desgraas no ouro e no suor,
lutos nas vidas, prantos na cano,
dios nos sangues, dores no redor!
H um martelo que bate num caixo
e outro que bate numa porta santa.
Morus e Maro! E h uma voz que canta!

XI
Um momento h na vida, de hora nula,
em que o poema v tudo, viu, ver;
e a si mesmo, na cera em que se anula,
sob o fogo dos cus, consumir-se-.
H nas fomes dos tempos, uma gula,
umas vicissitudes, fados, ah!
H tempos em que o canto se modula
sob o sibilo de cassandra m.
Vejo morrer, cus, em dura lei,
meus membros, minhas vsceras, meus ossos
sob as rosas de lava que inventei.
Antes que os lbios, amanh, poema,
hirtos se calem, vossos, sero vossos,
esses cnticos de renunciao.

VIII
Vela rota no final da travessia
refletida na ltima comporta
estacando-se nesse alegre dia.
Imensa solido, cerrada porta.
E agora? Agora vs o que no via:
tua imobilidade recomposta
no primitivo barro em que jazias,

30

com esse manto de treva em tuas costas.


E essa mosca vagando em tua testa!
E essa corrupo em tua entranha!
De to murchos teus lbios rir parecem.
Outras coisas curiosas acontecem:
teu cadver metido nesse estranho
traje a rigor de bailes e de festas.

IX
Conta-me ainda, Musa, enquanto vindo
o calmo sopro ao lquido elemento.
No longe desse plago o tormentoso Indo.
E direita, ao nascente a conjura do vento.
Tempestades fatais esto hoje destruindo
os rosais, sem paixo. sculo famulento!
Que conjuras se vo contra os lrios urdindo?
Quem vem ao meu unindo o passo suave e lento?
Eis a clava da f com que ele se armava
solapando em redor catapultas sombrias
e as sombrias paixes de qualquer alma escrava.
Mas sempre vivero as promessas estranhas
e as palavras do cu que inda ontem lhe ouvias
silencioso atravs dessas mesmas montanhas.

I
preciso falar-se das criaturas,
verdadeiras criaturas animadas,
das vivncias totais, arbtrio e tudo,
alma, corpo funesto e essa imortal
perpetuidade alm, Deus nas alturas,
nomes de terra e nomes eternados,
anjos demnios sonhos acordados
e as profecias, frias, posses, tudo
que um poema pode ter: esse clamor,
essa indefinio, esses apelos
sonho de rei Nabucodonosor,
que depois de refeito e decifrado
a condio do bicho: carne, plos,
e sangue breve do homem desgraado.

31

XXXVII
Vinde vs das cidades para o campo
onde existe a aventura da malria.
Foi em agosto, o lago respirando
que ouvi no sangue a mais formosa ria.
E vi mais um ginete galopando
num ocaso de sangue iluminado;
era o tempo mais ouro das queimadas,
e as gergicas se enchiam de piratas.
Deram-nos tudo: frmitos e prata
e certo af de lrios encarnados.
Que madura estao provisionada!
Que lagunas noturnas sobre as frontes!
Que mos frias errando no ar parado!
Que sibilos de medos e de fontes!

XVII
E esse rebanho de bezerros, cedo
recomea constante sua estrada.
As horas moribundas j curvadas
deslizam nos ossurios. Tenho medo.
vida to confusa e to lidada,
sombra to compacta e to rochedo,
de mim que chora que que resta? Nada
e nada e nada mais do que antecedo.
Antecedo-me, esbarro-me em mim mesmo.
Filiei-me eternidade sem querer,
e agora vago como se vaga a esmo.
Verto-me em ilha, vejo-me nascer,
retiro dessa ilharga verdadeira
a minha perdio por companheira.
casas relativas, deformadas
pelos ares e gostos insalubres
ou bons. E mesmo piores. Silenciadas,
alegres, agitadas ou estpidas.
Vejo-vos em fantasmas umas vezes
e outras vos ostentais reincidentes,
que doces prostitutas pareceis
vistas assim dos becos com essas lentes.
D-se que uma mulher em negro sobre-

32

vem e apunhala os prdios alvadios


eretos ao luar, luar salobre
como vaga de mar lambendo rios.
Assombram-se os quartis. Mas as meninas
ainda debruadas nas janelas
esperam pelas noites assassinas
em que uns gangsters venham indelveis.
E no entanto, afinal, sob esse sol
de outubro, as casas ficam dissolvidas:
nem manso de fantasmas e nem molde
das moradas casuais que h nessa ante-ilha.
Todavia, vejamos, h meninos
nascidos, e h uns tantos moribundos
a olhar as mos e os dedos superfinos
das prprias mos, no muito, mas imundas.
E agora penetramos: Camarinhas,
halls, salas e outras peas sem suores,
algumas sujidades, tuas, minhas,
e vasos para mijos to conformes.
Encolhem-se de pejo, ficam rubras,
atrs dos reposteiros, doces lares
com cheiros de comidas e ossos-bucos
e alguns mirrados numes tutelares.

XI
Quem te fez assim soturno
quieto reino mineral,
escondido cho noturno?
Que bico ri o teu mal?
Quem antes dos sete dias
te argamassou em seu gral?
Quem te apontou para onde irias?
Quem te confiou morte e guerras?
Quem te deu ouro e agonias?
Quem em teu seio de terra
infundiu a destruio?
Quem com lavas em ti berra?
Quem te fez do cu o cho
quieto reino mineral?
Quem te ps to taciturno?

33

Que gnio fez por seu turno


antes do mundo nascer:
a criao do metal,
a danao do poder?

XXXI
Esquecidos dos donos, ns os bastos,
ns os complexos, ns os pioneiros,
ns os devastadores e assassinos,
vamos agora fabricar o ndio
com a tristeza da mata e a fuga da
maloca, com a alegria de caar.
Vamos dar-lhe pacincias de amansar
os bichos, de juntar as belas penas
razes, frutos; vamos abalar
com o cho da maloca, batucando.
Essa terra danada, D. Manuel,
de ponta aponta toda de arvoredos.
toda de arvoredos e de ar bom,
como o ar bom de Entre-Douro-e-Minho, e as guas
so muitas, infinitas, tudo dando,
Dando peixe, lavando a carne nua,
lambendo os ps da selva embaraosa,
a feio ser parda, bons narizes.
Boas vergonhas nuas, boas caras
e bons Jeans de Lery contando as coisas.
Ausentamos recalques e pudores
e colares de dentes e de contas
para atrair as musas e as mes-dgua,
e adornos para os sexos merecidos.
Nenhuma idia exata possumos
sobre origens de carnes e de sangues,
mas de mortes somente, mesmos desejos , ns indgenas,
vs indgenas, ns madeiras mesmas,
decadentes, corrodas, no pacficas.
O nosso co domstico aprendeu
a latir. Ns tambm sabemos coisas,
tatuamos ndios para que os maus gnios
de ns no se apoderem. Canibales,
canibais, urupiaras, ces e peixes,
homens fluviais, ns ndios, curiques.
Goiazis, matuins, encantada ndia,
sempre ndia ocidental, oriental ndia,

34

povoada de cardumes mitolgicos,


minhas proas cortando os tenebrosos
mares, de duendes lusos e outras nuvens,
promontrios, gigantes e grandezas.
E eu menino pequeno, todo penas,
com essas flechas sem leis e esses colares
prefaciando viagens, aventuras,
narradores de petas europias,
eu sem ouros, com apenas maracs,
bondades naturais, recm-nascidas.
Eu ndio diferente, mau selvagem,
bom selvagem nascido para o humanismo,
lei da natureza me despindo
com pilotos e epstolas, cabrais,
navegaes e viagens e ramsios,
santas-cruzes, vespcios, paus-brasis.
E eu palavreando com esses papagaios
completamente apcrifo no mundo,
cosmogonia nua, spero clima
sem moeda e comrcio, muito bem
liberdade social, perfeitamente
com tacapes ferindo mas sem guerras.
Sobretudo eu escravo do homem branco,
cunhas, inocncias e pobrezas,
curiosidades sobre meus amores,
vises de missionrios, flor de peles,
narrativas de nau e manuscritos,
madeiras de Colombos e de Espanhas.
Vivo estranho em Lisboas babeladas
entre chins e japes pelas ruelas,
os domnios distantes me afogando,
cotovelado pelo Rei das quinas,
resgatado com fardos e tonis,
descobertos de trajes e de galas.
Ou ento em bororo me chamando.
Que venha o peixe ocogue! E o peixe veio
e outros peixes gerados com iguexi.
Quero dois paus para acender meu fogo,
a morada das almas me chamou,
bororo forte, linguagem de bororo.
Dentro dos jenipapos o ser grvido
subiu na rvore, fruto, irm menor
para flechar morada de assovios,
as guas se alargaram, a anta veio,
ento chegou a terra e se embebeu,
formou um vale, o vale se fendeu.

35

Conheo plantas para grudar memrias,


boas embiras amarrando os cantos,
resinas, cascas para funerais,
para caadas, cantos de pescar,
filas de antas, taquarais, canastras,
rudos tristes, largados, desabados.
O fogo na penugem da montanha,
o fogo sobre o rio, sobre a mata,
nos limites da mata, roda as onas,
urro em fogo das onas, onas indo
com a montanha de fogo, mata em fogo,
antas indo com o fogo, e o fogo indo.
Cortar caminho, vendo com os dois ps,
tirar ouro para os outros pagar dzimos,
zona de ipecacuanha, de mezinhas,
no se liga matar os emboabas,
quero posse de bispos e caciques,
abolir o limite meridiano.
Tomar salsaparrilhas para o sangue.
Predomnios de matas e de rios,
solos salinos, pastos suculentos,
eclesisticos ambulantes, contas,
e a viagem para o norte, sol e sol,
a fronteira no tem parido lgua.
Comer ns no comemos nenhum bispo,
o branco mente muito, o corrompido,
embaraa essa vida, o branco assim.
Comer ns no comemos nenhum branco,
nem fumamos mentiras, fumo nosso,
fumo de paz ou guerra, mas valente.
Vistosos os adornos do homem branco
Pras bodas do Delfim com a Infanta Espanha,
eu peas pra pinturas e anarquias,
pra trovadores, angos, gafaris,
eu mico de Nassau, topinambou,
Sor-beb de insurreio, o nu.
Cravado de premissas e de olhares,
de holofotes e cines, eis teu ndio,
grudado de tucanos e de araras,
operrio sem lei e sem Rousseau,
includo em dicionrio filosfico,
metfora, gravura, pera, smbolo.
Utopia de santo e de sem-Deus,
teu ndio, teu av, teu deserdado
Ado, perfeito Ado sem teus pudores

36

Falsos, conscincias, dvidas, receios,


Emlio bronco, pai de que Rousseau?
De que Montaigne? De que outra convivncia?
ndio que te contm como moldura
guardando personagens obrigadas,
umas em redes, outras em gavetas,
em redomas de prata, umas vestidas,
outras despidas, umas tantas mortas,
retratos desbotados, faces idas.
Caveiras em museus; Pedro Segundo
vendo estantes, fantstico barbaas!
E ao lado as prateleiras com uma fauna
de peixes empalhados, irmos gmeos
de teu anfbio ndio mergulhado,
dissolvido nos rios e nas febres.
E sua muda fala com o das guas
que o rei jamais entende, fala seca
conservada nos alcois ou moqum
de sombra nas malocas devastadas
pelos filhos do rei. Catalogados
uns fiapos, umas tangas, uns chocalhos.
Cobre-lhe o asfalto a marca de seus passos
to bbados que ignora se morreu,
sono de ndio cansado destes sculos,
dessa malcia branca, desses pios.
Teve lies de infncia recordada;
Como tu dois, Timbira, nesses cantos!
No obstante o transporto a outros misteres,
transformado em pretrito de lngua
geral, fossilizada, moqueada, urna
de traas roendo mortos no chorados,
hoje encontrados secos, igaabas
como empolas do tempo latejando.
Mas como foi esse ndio? Todos sabem.
Ele mora no vosso olhar j verde,
na vossa lourido, no vosso passo,
na vossa descendncia, partos simples
como fumar, falar essas conversas,
ou dizer que no mente se mentindo.
Ou no riso cavado, na denncia,
na carncia, na flecha inda enfeitada,
no papeiro de loua, na moqueca,
no caju, no cabelo enxundiado,
dessas coisas ancis ficou um pouco
de tudo, esses anzis pescando taras.
Ficou um tanto de dentro disfarado

37

em abelhas servis e aves bonecas


e cobras papa-ovos para os ratos.
Ficou o abrao aberto para vs,
ficou o medo de coisas caiporadas,
de estrelas corredeiras, de cometas.
E esse grande Gonalves, vosso neto
desapartado aos cinco, da me parda,
pra rouxinis, choupais, capas, mondegos;
e a colina coimbr e as travessias,
e o po do exlio sem sabis timbiras,
e Ana Amlia, meu Deus, to impossvel.
Vossa vagabundagem pelo mundo,
vossas mazelas, vossa volta ptria,
para morrer na praia, sob um mastro,
sob uma quinta, sexta-feira ou sbado
em veleiro de proa carcomida,
sem vos curiosearem nem sequer.
Sorte vossa, chifrados, como di,
no silncio parado, paranado,
sem nunca vos sarar, ndio-mirim,
lambuzado de idias estrangeiras,
passeado de formigas jaquitgua,
estelas da manh sem vos clarear.
Nem matinado, sempre entardecido,
nossos pipios j no chamam ventos;
vossos enfaros, vossos borrachudos
alargando silncio maresiado,
abicado no escuro desses tempos,
sem pau-brasil, sem ouros, sem espadas.
Capital da Repblica habitais
com chinelos, penses, nomes de tudo,
carapans, estdios, urupemas,
pensamentos, idias, feriados,
batalhas de confetes, constituintes,
leis de trabalho, vaga-lumes, fordes.
Pois vaga-lumes, sim, relumeando
vossos caminhos, cmaras, senados,
com vossa proteo paragrafeada,
habitaes e luz de quem cedestes
este cerrado bosque de brasis
com doces firmamentos e cruzeiros.
Vamos nos consolar nos coletivos,
sentar juntos, beber nossos orvalhos,
olhar mansas coxilhas, nos coar,
gozar praias amenas, filas, bondes,
nomearmo-nos chefes-de-sees,

38

conseguir sinecuras, nossos ndios.


Vossos ndios ocultos, ranchos deles,
tecendo teias sobre vossos olhos,
e no pino do dia o caloro,
a tristeza do sol dormindo esperta,
tudo largado a com os nossos ndios,
com o pino do meidia, com as sezes.
Quem vos mandou inventar ndios... Morus,
ilhas escritas, Morus, utopias,
Morus, revolues, Morus, Morus?
Os ndios se esconderam no homem branco,
nos seus assombros, ele se invadindo
de ocasionados ndios, de outros ndios.
E ns nessas salmouras ou pilando
ou comendo mixiras, tracajs,
temporizando fogos brandos, lenhas,
pires precipitados, mandiopubas;
e nossos columins sobressaltados
pelos juruparis de importao.
E em ns os nossos ndios federando
sabedoria ntimas, vontades,
caprichos devastados, confisses,
contidas sob os plos enroupados,
madornas de urucus, noites suadas,
coceiras de frieiras e desejos.
Padres-mestres vigiando redes fundas,
jiraus, estremecendo, castidades
moles, as cunhats de sono leve,
os pecados voando pelo escuro,
mariposas paradas esperando,
por mariposas ou por lagartixas.
enfieira rs-a-rs de som pobrinho,
ns ilhus engasgados com of-clids,
esquecemos mandingas, pajelanas,
com esse canto planando para danas
para Tup e morenas se entregar.
Catimb. Catimb, na noite imensa.
H piranhas aos cachos, hoje areas,
tingindo os arrebis, de sangue humano;
bem melhor babar ternuras que
violncias, escutar qualquer cantiga,
que aturar esses bichos, onas pardas,
onas pintada, onas disfaradas.
Assuntamos os cismas aninhados,
aprendendo, imitando os guaus chefes,

39

para deles zombar (os famanados!),


que as saudades arrulhem. Ns de novo,
queremos secund-las, nos flecharmos,
nos clarinarmos com cauim, dormindo.
Moremos esse doce papiri,
sem maliciando aes, sem cancerando,
Sem desejar as terras dos vizinhos,
banhando-nos nas chuvas de janeiro,
sem desgastes no juzo memoriado,
sem preparos de flechas e de chumbos.
Graas da vida, a marca de horas boas,
caminho alumiado, marco de adventos,
carismas e outros dons mais compreendidos,
dilvios de branduras, indolncias,
preguias planizadas, gozos, quietos,
quereis a mo na mo, quereis sofias?
Conhecemos jesutas, se os conhecemos!
com eles andamos pelos megas,
pelos jequitinhonhas, gros-mogis;
a corcova do padre ia na frente,
a batina em velame, ps descalos,
cantocho ponteirando esses mundes.
Criamos cascos, galopando, firmes.
Dromedrios de cristo com esses montes jesutas
nas costas calvarinas, navegamos
entre jaguatiricas, suuaranas,
enrolados de cobras como cordas,
cascavis chocalhando guizos fnebres.
Recalcando saudades caducadas
pelo arrocho da vida mal-querida,
calcanhares mordidos de savas,
existimos fugindo de boinas.
Mas, esquecemos muitas dores, muitas.
Faz de conta, timbiras, que esquecemos.
Tradio de indianada, tudo isso.
Timbira ausente entrando pelas testas
como um remorso bom, saudade leve,
pranto constante, sempre nos poemas.
Podeis frechar-nos ndios atuais,
e mesmo detestar-nos, devorar-nos.
J no estais, timbiras, j no sois.
preciso andar sertes para encontrar-vos,
verter ntimos sangues, correr matos,
branas, umbuzais para encontrar-vos.
J no sois belos como nos Caminhas,
e sois enfermos e no sois to nus.

40

Viveis presos, timbiras, nessas selvas


selvagens, das memrias recalcadas,
reclusos em varizes de libidos.
Ns choramos, timbiras, ns covardes,
ns nos comendo pra nos conhecer,
sofrendo os nossos dentes em ns mesmos.
Moqum ruim, de carnes embricadas,
corrompido de terra e morticnios,
de aguardentes, varolas, vcios brancos,
ns nascidos libertos, ns cativos,
nossos cedido, cedidas nossas ocas,
dissolvidos nos sangues de outras gentes.
Sim, guardamos memrias que se adensam,
lhes damos importncias afetadas
pra que elas nos assombrem com fantasmas,
com boinas tiradas dos oito anos,
dos casimiros nossos traduzidos
em primaveras quentes e soluos.
Que sopranistas falas nesses ndios!
Eles que jantam? Pratos? Pesadumes?
No momento que corre, deficincias,
comidas enfeitadas que acalentam
escorbutos de fomes escondidas,
todavia saudades e suspiros.
Perdemos nosso rastro pelos barros
encruzilhados, cheios de almas frias
abandonadas nessas solides,
riscados de cometas; cu nos cobrem
com as mortalhas rasgadas por corujas.
Enfim, nos figuramos nessas nuvens.
Temos sido Gargntuas bem imensos;
hoje no somos nem comemos muito.
Apenas uns gorjalas quase baixos,
levados das palmeiras para as serras
quase colinas, para os medos quase
sombras, para as memrias quase extintas.
Agora finalmente somos listas,
registros e folclores, todo-o-mundo,
papagaios em crculos concntricos
ou crculos de Dantes orientais,
fbulas criamos asas, somos poemas ,
outra vez papagaios, papagaios.

VIII

41

Previram a borrasca os dois cavalos.


Combatem constelados na amplido.
Das ventas subvertidas saem lavas,
contedem rebelados como irmos.
Enlaam-se os pescoos, e h troves;
procriam-se em estrela e h alvoradas.
Depois investem cascos contra cascos
soturnos como baques subterrneos.
Mas os rinchos, oh! os rinchos, so sangrentos,
desnudos como gldios estivais.
Renhidas potestades se desvendam,
repetem-se as arenas olvidadas.
Sibilam em seus odres sons de baques,
miram-se em fria rdegas essncias,
inda com as crinas rubras salivadas
pelas constelaes e onipotncias.
Condenao! Desfraldam-se os estrpitos,
tingindo de vermelho os horizontes;
h salitres no mar que os desalteram
nessa noite do sculo medonho.
O responsvel? Quem o responsvel?
Ainda h pouco tudo era bonana.
As mulheres teciam, trabalhavam
os homens nas charruas; as crianas
sorriam entre flor e flor nos prados.
Quem foi que armazenou o dardo e a plvora,
e a lana afiou, e a dor e o mineral?
Hoje pela manh as aves se calaram
e o ar ficou soturno e houve outros sinais,
pois alguns entreviram dias de ira
e diante das vises se suicidaram.
Agora, em meio s vis tribulaes,
horrvel Duende rubro, vede ali:
no corpo tantos pinos tem, com tantos
olhos e clios, tantas uranosas
lnguas, membros de grifos, sis de inferno,
manhas de bruxo! Ei-lo que gira e ruge
e adeja baixo na terrena sombra.
Nem os limites declina: hirto e metlico.
Tartreo. Em ssea vaga ou sumo esquife,
sentado espia a humanidade; e o vento
em que cavalga seu inciso nncio.
Gro-Maro, encarcera, algema, enfreia
os tristes ventos sobre tuas gergicas.
Em torno aos claustros refugiados fremem

42

sob horscopos negros. Mas agora,


sentado duende arvora o cetro e as iras;
e as retempera e afia. Eis se prepara:
varridos mar e terra e o cu em crepe,
l se vai pelos ares. Vai, e em cinza
e nevoeiro os contrrios se disfaram.
XVI
Agora tudo findo em guerra, em corvo,
em despojos molhados e vislumbres,
ataduras sangradas, algodes,
h na ptina cinza esses chavelhos,
esse sapato aqui, e esse lcool sujo,
e os rinchos dos cavalos flagelados,
as pedras querem suar, pedras e o mais;
esse rudo de copos sai das bocas
carcomidas chamando vinhos rotos
das derradeiras mesas inda postas;
vm trabalhos ermados, barbas longas,
sombras de grandes botas despovoadas.
Aqui foi um lugar de calmas horas,
ali era a distncia. Em cima o pssaro.
Na planta essa raiz, e agora a ausncia,
agora esse tecido alinhavado
por entre unhas de dedos invisveis.
Apagaram-se as coisas tintas com
o sopro das palavras: geografias,
pacincias, velhos trigos, decises.
Aqui era um sinal, ali um nmero,
em cima esse fagote e o anzol das plantas
fisgando o gro j grvido de sumos.
Agora esses molares ruminando
amargores sumidos, sais de medos;
agora a linha preta, a fronte baixa,
a luz escurecida, as mariposas.
Enquanto nas bilhas houve goles
e houve dedos de sorte e aos golpeando,
levou-se forja o potro renovado,
ps-se aamo nos dios, raiva cega,
fogo com achas, bilros sobre as rendas,
meses pluviais, convites cochichados.
H muito suco amargo nesses bolbos,
muita crepe terreal nessas lapelas,
muitos bis sobre as dores ostentadas.
Recarga memorar a criao,
a descida do verso, a insgnia rubra,
ris por sobre a ilha, ptina alva,
parques, garanas, toldas, ps, enxadas,
as palavras libertas e potveis,

43

os cavalos supinos, comas negras,


os acordes profundos nos meus dias,
as aguadas nas naus, e a longa paz.
H dias essa ilha me envolvia,
e agora me circunda esse compasso
giratrio, apontando as calmarias,
as chuvas sem rudo, mas noturnas,
e a lamria das mmicas paradas.
aceito essa cicuta sem veneno
e esse galo de penas imortais.

CANTO DA DESAPARIO

I
Aqui o fim do mundo, aqui o fim do mundo
em que at aves vm cantar para encerr-lo.
Em cada poo dorme um cadver, no fundo,
e nos vastos areais ossadas de cavalo.
Entre as aves do cu: igual carnificina:
se dormires cansado, face do deserto,
quando acordares hs de te assustar. Por certo,
corvos te espreitaro sobre cada colina.
E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que debaixo dos cus, a mais triste cano),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.
E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tang-las-s de ti , de ti mesmo, em que esto
esses corvos fatais, e esses corvos no vo.

X
Impermanncia em ti desse cristal perptuo
crescendo aqui, ardendo ali, parando estrito.
Forma de tuas mos, transcendncia e matria,
alta e dura tenso, fossilizado grito.
Forma das coisas, forma emudecida em vestes
cobrindo magos olha a forma em que me agito
e em que Deus me deixou, frente a frente daquelas
seqncias naturais: calor aps atrito.
O aspecto o desse sol visto sob a ondas
astro cozido em sal mais pequeno que a brasa
que assa o pequeno po que com fome tu rondas.
E rondado-o entrevs a forma de tua fome

44

permanente e contida em meio escura vasa


em que irs dissolver os ossos e o teu nome.

CANTO II
SUBSOLO E SUPERSOLO
XV
Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia
E a comida que acaso desejares,
e algum poema que ilumine os ares
menos que a luz mals dessa candeia.
Aqui ters o peixe desses mares
e o mais gostoso mel de toda a aldeia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia?
Como te chamas vida da outra vida,
espelho noutro espelho transmudado.
lume na minha luz anoitecida?
Sers o dia noite do outro lado
de meu ser que nas trevas se apagou?
Ou sers qualquer lume que no sou?
XXXVIII
A soberba Veneza est no meio
das guas que to baixa comeou!
Mais baixa que a cidade o mundo alheio
dos anjos que em seu bojo se abrigou,
e que informa na aterra o turvo seio
do arcanjo renegado que ainda sou.
Brao mago de gente revelada
no menos nos engenhos que em mais nada.
Que h nesse mundo possa crer
que flussem esses seres do esplendor,
e que fossem a Luz do Eterno Ser?
E seu claro desgnio mais louvado,
e seu modo de agir e de ceder?
Quem diria que esse povo to confiado
se tornasse em corruta sutileza,
em canais vomitados, veneza?
cidade de rios absintados
onde as estrelas verdes pereceram,
e as argolas dos Doges renegadas
em bssolas sem nvel se inventaram.
veneza das ilhas reinventadas
e que ilhas reinventadas corromperam,
cavalgar esses mares, que empresa?
Que pureza mais alta, que realeza!
Duvidais, senso meu, dessas traies,

45

desses vrios engenhos e venenos


de quem usa armadilhas e alapes,
e parecendo grandes so pequenos,
e parecendo bravos so poltres,
viris querendo ser, so epicenos?
So todos eles aracndea teia,
matam com o prprio fio que os enleia.
Eles sabem ardis e vrias artes
como partidas belas e outros jogos
para atrair a si inocentes partes;
urdem frases sutis, engolem fogos,
desfraldam presumidos estandartes,
fingem-se dceis, falam meigos rogos,
disfaram suas armas com arminhos,
preferem os cristos para seus ninhos.
Vs, vo os reis da Lcifa e Malvilha
batidos, to sem brilho a espada de ao;
to cansada a carcaa de osso em quilha;
so rus de quem, seno do humano brao
ou de quem for que sombra os dente rilha?
Vencer com jogos tais e tal bravura,
de Deus chamar podemos, de loucura.
Toda veneza tem o seu restelo
gemendo em bzio como trompa humana;
so seus cabelos ressonante velo,
a barba lmpida, elia barbatana;
o senso esfria a glria como gelo;
meneia a testa, os bravos desengana:
Dura inquietao dalma e dessa vida,
colnia dos imprios mal-nascida.
Por que tanta oceania, tanta etipia
por fogo e ferro sempre conquistadas?
Por que tanta aflio por tanta cpia,
salvadores de terras fatigadas?
Cornualhas desse mundo, cornucpia
de promessas jamais realizadas?
por que esse messianismo vos lisonje
pretendeis encarnar o que est longe.
Eis aqui essa restela ave canora,
em penas de cassandra renascida,
coleira circundada cor de amora;
ave fadada no inadvertida,
adiante dos sucessos rememora
a sombra projetada pela vida.
ave de clares assinalados
de vos dentro do tempo recuados.
No me extasio adiante das viagens
mas de quem fez o mares me extasio,
de quem dotou as plantas, de plumagens
e de plumas dotou esse navio
que navega entre smbolos e imagens
restelado no plago vazio.
eis Ciro de Cambises rei da Prsia,

46

das perseidas, Perseu de alta solrcia.


Eis Perseu com sua ama e rocim pago
e galgo corredor e Sancho e lana
e pendncia em vo, de vo estrago,
de vlida inveno e boa andana,
de Amadises fiis o mundo vago
que tudo o que nos resta por herana.
Adiante o brilho, o escudo aqum; o som
antes da voz, Quixote antes do Dom.
Essa crnica fiel de Cide Hamete
Benengeli escrivo-mor de La Mancha
em tormentos e smbolos compete
com a aventura real que se desmancha
e se refaz em poema e se repete
em luz e sombra, em claridade e mancha;
que tudo assim a fbula vulgar
que funde no homem, cu, terras e mar.
No sei se teus espectros, lusa gama,
esto em teus arco-ris ou nos fogos
com que a noite dos cus arde e se inflama.
No sei se esto nos meus, se nos teus jogos
que tudo erra e se esvai na mesma chama;
a comandos celestes e infernais,
as almas se transformam, e o cu baixo
agita-se ao claro do eterno facho.
Restelo continua o gmeo astral,
sempre sol duplo gravitando em poemas;
aprouve-lhe essa rbita casual
como em lemria foi vrios sistemas.
Se tudo flui em eixo diagonal,
nada lhe impede de aclarar teoremas
e predizer agruras camonianas
muito alm dessas cartas taprobanas.
Contudo, grande Ovdio, o calendrio
necessita de grandes ablues.
Mataram Csar ontem sangue dirio
nesses maros de guerra e de aflies;
os jogos deste ms tumulturio
so os roteiros das condenaes.
Penduraram cabeas inocentes,
enodoaram de sangue os teus poentes.
Instalados os reinos e os imprios,
eu prprio matei Um, Herodes tantos;
Caim, matou o irmo, h cemitrios
nas camadas de cho dos trreos mantos;
chove sangue nos plagos areos;
Ciro dizima assrios, Csar santos.
Os poemas se tingem de vermelho;
uma face sangrenta cada espelho.
Mais baixa que veneza o empreo desce,
estrelas caem, desmembra-se o montante,
a armila ardente achata-se e decresce;
h certa estrela plana no sextante;

47

o orgulho dos canais desintumesce.


Em ti, Veneza prxima e distante,
nessa to represada dissonncia,
vem morrer toda glria e toda nsia.
Tentamos sepultar-te nessa praia
abaixo desse nvel cavernoso,
ambgua susiana, infanta e aia,
pbis e quilha, ventre belicoso,
mas to aliena musa, irm to gaia
que um puro incesto canta marulhoso;
cpulas gemem sob as guas quietas,
veneza dos dogmas e poetas!

CANTO X
MISSO E PROMISSO
X
No a vaga palavra, corrutela
v, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, ale, sobre a ramada;
mas, a que a prpria flor arrebatada
pela fria dos ventos: mas aquela
cujo plen procura a chama iriada
flor de fogo a queimar-se como vela:
mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas cu, mas sempre extremos. Esta sim,
esta a flor das flores mais ardida,
esta veio do incio para o eterno,
para a rvore da vida que h em mim.

Essa pavana para uma defunta


infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos
de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeada sempre sem descanso,
sem consolo, atravs dos desenganos,

48

dos reveses e obstculos da vida,


das ventanias que se insurgem contra
a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.
Essa pavana para uma defunta/ infanta, bem-amada, ungida e santa,/ e que foi encerrada num profundo/
sepulcro recoberto pelos ramos//de salgueiros silvestres para nunca/ ser retirada desse leito estranho/ em
que repousa ouvindo essa pavana/ recomeada sempre sem descanso,//sem consolo, atravs dos
desenganos,/ dos reveses e obstculos da vida,/ das ventanias que se insurgem contra// a chama
inapagada, a eterna chama/ que anima esta defunta infanta ungida/ e bem-amada e para sempre santa.

Essa infanta boreal era a defunta


em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de leos renovados.
Hoje rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair so dela;
dela a viso dos homens subterrneos,
consolo como chuva desejada.
Tendo-a a insnia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanh surgiro campos mais mortos.
antpodas, plos, somos trgua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.

Pelo silncio que a envolveu, por essa


aparente distncia inatingida,
pela disposio de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:
pela imobilidade que comea
a afast-la talvez da humana vida
provocando-nos o hbito de v-la
entre estrelas do espao e da loucura;
pelos pequenos astros e satlites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,
vs que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que a vida oculta dessa eterna infanta.

XIX
Estavas linda Ins posta em repouso
mas aparentemente bela Ins;
pois de teus olhos lindos j no ouso
fitar o torvelinho que no vs,
o suceder dos rostos cobioso

49

passando sem descanso sob a tez;


que eram tudo memrias fugidias,
mscaras sotopostas que no vias.
Tu, s tu, puro amor e glria crua,
no sabes o que face traduzias.
Estavas, linda Ins, aos olhos nua,
transparente no leito em que jazias.
Que a mente costumeira no conclua,
nem conclua da sombra que fazias,
pois, Ins em repouso movimento,
nada em Ins inanimado e lento.
As fontes dulorosas desta ilha
promanam da rainha viva-morta;
o punhal que a feriu doce tlia
de que fez a atra brisa santa porta,
e em cujos ramos suave se enrodilha,
e segredos de amor ao cu transporta.
No h na vida amor que em vo termine,
nem vo esquecimento que o destine.
No podendo em sossego Ins estar,
foi preciso mud-la, nesta lida,
to inconstante lida mar e mar.
Descansa a doce Ins na sombra ardida.
Vem alta noite um rei peninsular
am-la em sua ltima guarida;
pois que matar de amor bem que se mata
para se amar depois a morta abstrata.
Semelhante amor qual esse Rei houve
dona Ins no achado. Em vo!
preciso louv-lo, e que se louve
o amor que alm da morte durao.
dorida paixo, acalma-te e ouve:
fui busc-la alta noite em seu caixo.
Roubou-a negra paz minha viuvez.
Pajens, vive de novo a sempre Ins.
E para que no finde a eterna lida
e tudo para sempre se renove
nessa constante musa foragida;
entre Andrmedas e rions alas move.
A sua trajetria to renhida,
que a multido celcola comove.
Vai ser constelao de um mundo novo,
esperana maior de eterno povo.
paz, fim, mundo inominado
descansa doce nvoa mensageira.
Teu rosto primognito gelado,
que plen misterioso te empoeira?
Calendrio de lumes comeado,
dormida potestade, luz primeira,
eras ontem rainha, hoje s ritual.
Que destino de gente supra real!
Estavas linda Ins posta em sossego
para sempre no mundo sideral;

50

baila tudo em redor ao teu ofego,


tudo no atlas celeste era teu graal!
Tudo deixaste, amor, engano cego,
que viver neste mundo acidental
e morrer pelo amor inda certeza
de jamais parecer musa ou princesa.
Estavas, linda Ins, repercutida
nesse mar, nessa esttua, nesse poema,
e to justa e to plena e coincidida,
que eras a alma da vida curta; e extrema
quando se esvai na terra a curta vida.
Tu te refluis na vaga desse tema,
eterna vaga, vaga em movimento,
agitada e tranqila como o vento.
Ins da terra. Ins do cu. Ins.
Pronunciada dos anjos. Lume e rota.
Apenas obteno, logo viuvez.
Depois noviciaria. Antes remota.
Agora sombra. Iluminada tez.
Ontem forma palpvel. Hoje ignota.
Mas sempre linda Ins, paz, desapego,
porta da vida para os sem-sossego.

CANTO IX
PERMANNCIA DE INS
Estavas, linda Ins, nunca em sossego
e por isto voltaste neste poema,
louca, virgem Ins, engano cego,
multpara Ins, sutil e extrema,
ilha e mareta funda, raso pego,
Ins desconstruda, mas eurema,
chamada Ins de muitos nomes, antes,
depois, como de agora, hojes distantes.
Porm, penumbra vaga ou talvez acha
celeste consumindo-se, tambm
a prpria conceio parindo baixa
a real prole; de sbito ningum
nessas longnquas rbitas que enfaixa
com seus cabelos, ela-a-mais-de-cem,
a mais de mil, Ins amorfa e aresta,
Ins a s, mas logo a sempre festa.
Ins que fulge quando o dia brilha
ou se acinzenta quando o ocaso avana,
rainha negra, me e branca filha,
entre arcanjos do cu etrea dana,
e nos dias dos mundos andarilha,
andar incandescente que no cansa,
poema aparentemente muitos poemas,
mas infncia perene, tema em temas.
Ela fechada virgem, via-a em rio;
eu era os meus sete anos, vendo-a vejo

51

a prpria poesia que surgiu


intemporal, poesia que antevejo,
poesia que me v, ver, me viu,
mar sempre passando em que velejo
eu prprio outra marujo e outro oceano
em redor do marujo transmontano.
Meu pai teu lia, pgina de insnia!
e eu o escutava, como se findasses.
Findasses? Se tu eras a espontnea,
a musa aparecida de cem faces,
e alm de mim e alm da Lusitnia,
como se alm da pgina acenasses
aos quer postos em teus desassossegos,
cegam seus olhos por teus olhos cegos.
Ins atravs, Ins mirante,
em ns mortes sofridas para versos,
para que nesta vida o mundo cante
e o cego e o surdo e os homens controversos
apreendam todos teu geral instante,
teus pequenos e grandes universos,
teu aparecimento em Mira-Celi,
para que tua face se revele.
Perfeitamente posta nas entranhas,
planos, colunas, ramos, perspectivas,
Ins erecta, lindes sempre estranhas,
as auroras de sol tremulam vivas,
os cabelos de nuvem, rubras anhs
de ls esvoaadas, mas cativas,
como cativa a criao das cores,
apenas liberdade para as flores.
Ins, porm, jamais, jamais fundada
quer indicar talvez, uma inquietude,
inquietude de Ins apoderada,
subida Ins, efmera altitude,
descida em seus abismos, augurada,
para que nela o clima sempre mude.
Ins refaz-se simultaneamente,
obumbra os horizontes, cobre o poente.
Nenhum tribuno em ti nem duros rostos,
mas gentios trazidos, livros santos,
e seus antepassados, puros mostos,
de espritos ornados de ureos cantos;
nem as sombras dos mantos so desgostos,
mas to talares, to voejados mantos.
Nem Hspero, nem Jpiter, nem Cronos
podem resplandecer com mores tronos.
Amou revelao, purificou-se,
nenhum amor descrido conseguiu
ensombra-lhe de angstia o olhar doce.
Ins resplandecente, sempre estio,
conheceu-se em seus smbolos. Amou-se,
pois fora a restituda. Coexistiu.
Chispa inventiva, Ins florida arena
marasmos espezinha. Altiva cena.

52

Reclina-se sem medo e sem alarde,


fbula sem par, comdia infusa,
manh remurmurada pela tarde;
a atitude to justa nessa musa
que a forma aguda nos aspectos arde,
Ins primordiada, era conclusa,
os seus frutos sonoros querem que ela
seja inscrio, apenas fria estela.
Trouxeram-na os anlogos algozes
diante da ambigidade das essncias,
em que as asas divisas e as ferozes
asas (que eram da Luz magnificncias),
confundem doces vozes e atras vozes;
e eis que as piedosas, ntimas inscincias:
levai-me Ctia fria, ou Lbia ardente,
onde em lgrimas viva eternamente.
No podendo em sossego Ins estar,
seus algozes mudaram-na na lida,
na continuada lida mar e mar.
e eis que a sombra colaa e a luz ardida
so nos espaos elo circular,
asas obsidionais asa da vida,
morta de amor, amado que se mata
para se amar depois em morta abstrata.
paz, tudo, mundo inominado!
(Pessoa a doce nvoa mensageira.)
O rosto primognito gelado,
de plen mistrios se empoeira,
eterno calendrio procurado,
Ins recomeada, ala ritual,
terra da vida, af ascensional.
Existes, linda Ins, repercutida
nessa plaga de sonho, nesse poema,
e to lua dormida e coincidida
entra luares, de sbito diadema,
que a trajetria muda mais renhida,
e tu refluis na vaga desse tema,
constante vaga, vaga em movimento,
prdiga e vinda como o prprio vento.
Ins da terra. Ins do cu. Ins.
Preferida dos anjos. rdua rota,
conbio consumado, anteviuvez.
Ma aps amplido sempre remota,
branca existncia, face da sem tez.
Ontem forma palpvel. Hoje ignota.
Eterna linda Ins, paz, desapego,
porta recriada para os sem-sossego.

53

Em chegando o inverno ela se inclua


nos cabelos de espumas verdejantes
das axilas; do pbis se cobriu
purinha entre barqueiros incessantes,
amortalhada Ins, Maria em rio,
passou ficando enquanto o que era dantes:
outra vez nua e lisa. transparente,
carne, suor de sangue, como a gente.
Queimada viva, logo ressurrecta,
subversiva, refeita das fogueiras,
adelgaada como incio e meta;
as palavras e estrofes sobranceiras
narram seu gestos por um seu poeta
ultrapassando as musas derradeiras
da sempre linda Ins, paz, desapego,
porta da vida para os sem-sossego.

XVII
Porque a nvoa da tarde era sumida
desejei no meu peito um verso puro,
rosa que fosse como suave ida,
apelo que chamasse a quem procuro.
Eis nos ares a rosa que convida
a de ptala fugaz e talo obscuro.
H qualquer coisa nela em breve vida
mas essa a vida breve que eu conjuro.
Esse enlevo fortuito um doce choque,
transluz perdidos olhos com que a via
o desejo de t-la em doce amor.
Aproxima-te deixa que te toque
e que te acaricie, esposa fria,
rosa da morte, rosa do que for.

XXVII
Contemplar o jardim alm do odor
e a mulher silenciosa entre semblantes,
e refaz-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraioe.
Porque eu quero, em memria refaz-los:
flor longnqua, mulher no pertencida,
substncia inexistente, mvel vida,
intercesso de nadas e cabelos.

54

E meus olhos ausentes me espiando


entre as coisas caducas e fugaces
a minha intercesso em outras faces.
Orfeu, para conhecer teu espetculo,
em que queres senhor, que eu me transforme,
ou me forme de novo, em que outro orculo?

V
Dos pores vem um cheiro maresia
mesclado a odor de ratos e de charque.
Verde nusea essa nau que pressagia
males a quem embarque ou desembarque.
Silenciosa sem que ningum a marque
percorre ancoradouros erradia;
e avisado o comrcio que aambarque
a carga apenas escurea o dia.
Ela parece morta nos cais sujos
que lhe povoam os cascos de gusanos
e a emporcalham com o limo de seus ralos.
E ningum sabe se essas velas, cujos
marinheiros corvejam os oceanos,
vieram trazer escravos ou lev-los.

Agora os girassis entardecidos,


e esse lrio e essa rosa to exangue
e essa mancha de smbolos sombrios
quase como um desmaio ou leve sangue.
Sobre os bosques caiu a tarde cinza
e a estrela temporria se augurou;
pendem das hastes clices novios,
e a cansada corola se esboroou.
E os clios baixam gotejando chuvas
sobre os vidros das horas enterradas
com os momentos dos crimes e das virtudes.
Algum arroio corre com essas lgrimas,
mas to ligeiro pela escarpa aguda
que os olhos de quem v nunca vem nada.

55

X
Vs no viveis sozinhos,
os outros vos invadem,
felizes convivncias,
agregaes incmodas,
enfim ambientalismos,
e tudo subsistncias
e mais comunidades;
e tantas ventanias,
acotovelamentos,
desgastes de antemo,
acrscimos depois,
depois substituies,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hbitos, os vcios,
as moas embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vs mapas e diagramas
com vrias delinqncias,
e insanidades vrias,
dosando o vosso espao,
pesando o vosso po
de tempos racionados;
e no tereis vivido
e no tereis amado,
porm sereis morrido.

XXVI
Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os seres e os fiis enganos
amara os sonhos eu restarem frios.
Porm se no surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
h de haver pelo menos por ali
os pssaros que ns idealizamos.
Feliz de quem com cnticos se esconde
e julga t-los em seus prprios bicos,
e ao bico alheio em cnticos responde.
E vendo em torno as mais terrveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas

56

e contentar-se com as secretas penas.

XXV
A barba to preta que era azul,
as amantes to nulas que eram nulas.
Amarra onze e mais uma, numa s
morta, em alma, sem cadver, sem
tumba, e que amara morta, morta, morta.

VIII
Candelabro ou veleiro me persigo,
bruxuleio-me, caio-me, levanto-me;
no cavalo de fogo me conspiro
como anti-Parsifal, como anti-santo.
Em minhas mos plantaram joio e trigo.
Um misto minha voz de triste cantocho, mais as salmodias, mais os gritos
de um duplo de Ariel e Lautramont.
Quem que me levou a essa nativa
solitria Taiti em que tatuagens
celestes em Abel, vis em Caim
desenham-me de sol a carne viva?
Quem que magnetiza essas paisagens
desse mundo inicial que mora em mim?

XXII
Ai! Que sou eu enfim: senhor e presa
desta nova e imitada tirania;
refulge dentre as sombras da agonia
a aurola solar que observo acesa.
mais triste que vs, natureza,
esse facho de luz que espalha o dia;
modelo sou de mim... mas tristeza!
a mim prprio ofereo-me em porfia.
De crime a ndoa que o clamor no lava,
Sumatra negra, negra catadura
sobre a viso horrvel assomava.
criador transformando a criatura
que semimorta luz mais deformava,
estou sozinho nesta selva escura.

57

Se essa estrela de absinto desabar


terei pena das guas sempre-vivas
porque um torpor vir do cu ao mar
amortecer o pndulo das vidas.
Sob o livro da morte coisas idas
j so as coisas deste mundo. No ar
as vozes claras, tristes e exauridas.
H sombras ocultando a luz solar.
Galopes surdos, cascos como goma.
Viscosos seres, dedos de medusas
contando silenciosos coisas nulas.
Verdoengo e mole um ser estranho soma:
Crnios como algas, vsceras confusas,
massas embranquiadas de medulas.

DOR DO MUNDO
Apenas eu te aceito, no te quero
nem te amo, dor do mundo. H honraria
que nos abate como um punho fero
mas aceitamos com sobranaria.
A um vate grego certo rei severo
vazou-lhe os olhos para no fugir.
dor do mundo, eu vivo como Homero,
aceito a provao que me surgir.
Homero, a tua histria sinto-a; e urdo
o teu destino, o meu e o de teu rei.
Mas s teus olhos nossos passos guiam,
e inda tens vozes para um mundo surdo,
e luz para os outros cegos, luz que herdei
com a aceitao dos olhos que no viam.

JOO CABRAL DE MELO NETO


UMA FACA S LMINA (OU: SERVENTIA DAS IDIAS FIXAS)
Assim como uma bala
enterrada num corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

58

assim como uma bala


do chumbo mais pesado
no msculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possusse
um corao ativo
igual ao de um relgio
submerso em algum corpo,
ao de um relgio vivo
e tambm revoltoso,
relgio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lmina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca ntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o prprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que o ferisse
contra seus prprios ossos.

A
Seja bala, relgio,
ou a lmina colrica,
contudo uma ausncia
o que esse homem leva.
Mas o que no est
nele est como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isto que no est
nele como um relgio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem cios.

59

Isso que no est


nele est como a ciosa
presena de uma faca,
de qualquer faca nova.
Por isso que o melhor
dos smbolos usados
a lmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausncia to vida
como a imagem da faca
que s tivesse lmina,
nenhum melhor indica
aquela ausncia sfrega
que a imagem de uma faca
reduzida sua boca,
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B
Das mais surpreendentes
a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metfora,
pode ser cultivada.
E mais surpreendente
ainda sua cultura:
medra no do que come
porm do que jejua.
Podes abandon-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrars
com a boca vazia.
Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.
E como faca que ,
fervorosa e enrgica
sem ajuda dispara
sua mquina perversa:

60

A lmina despida,
que cresce ao se gastar
que quanto menos dorme
quanto menos sono h,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e vive a se parir
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relgio ou bala,
ou seja a faca mesmo.)

C
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes j
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se embotam mais no msculo.
Mais cuidado porm
quando for um relgio
com o seu corao
aceso e espasmdico.
preciso cuidado
por que no se acompasse
o pulso do relgio
com o pulso do sangue,
e seu cobre to ntido
no confunda a passada
com o sangue que bate
j sem morder mais nada.
Ento se for a faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o ao.
Tambm seu corte s vezes
tende a tornar-se rouco
e h casos em que ferros
degeneram em couro.

61

O importante que a faca


o seu ardor no perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D
Pois essa faca s vezes
por si mesma se apaga.
a isso que se chama
mar-baixa da faca.
Talvez que no se apague
e somente adormea.
Se a imagem relgio
a sua abelha cessa.
Mas que durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor
bem semelhante neutra
substncia, quase feltro,
que a das almas que no
tm facas-esqueleto.
E a espada dessa lmina,
sua chama antes acesa,
e o relgio nervoso
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo
de lmina que cega:
faz-se faca, relgio
ou bala de madeira,
bala de couro ou pano,
ou relgio de breu,
faz-se faca sem vrtebras,
faca de argila ou mel.
(Porm quando a mar
j nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

62

Foroso conservar
a faca bem oculta,
pois na umidade pouco
seu relmpago dura
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidncias).
Foroso esse cuidado
mesmo se no faca
a brasa que te habita
e sim, relgio ou bala.
No suportam tambm
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer cmaras severas.
Mas se deve sac-los
para melhor sofr-los,
que seja em algum pramo
ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar
que pssaros habitem.
Deve ser um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja noite,
que esta tem as mos frteis.
Aos cidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,
febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento,
e faz de sede a terra.

F
Quer seja aquela bala
ou qualquer outra imagem,
seja mesmo um relgio
a ferida que guarde,
ou ainda uma faca
que s tivesse lmina,
de todas as imagens
a mais voraz e grfica,

63

ningum do prprio corpo


poder retir-la,
no importa se bala
nem se relgio ou faca,
nem importa qual seja
a raa dessa lmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.
E se no a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arranc-la
nenhuma mo vizinha.
No pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritmticas pinas.
Nem ainda a polcia
com seus cirurgies
e at nem mesmo o tempo
com os seus algodes.
E nem a mo de quem
sem o saber plantou
bala, relgio ou faca,
imagens de furor.

G
Essa bala que um homem
leva s vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.
O que um relgio implica,
por indcil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.
E se faca a metfora
do que leva no msculo,
facas dentro de um homem
do-lhe maior impulso.
O fio de uma faca
mordendo o corpo humano
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

64

pois lhe mantendo vivas


toda as molas da alma
d-lhes mpeto de lmina
e cio de arama branca,
alm de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolvel no sono
e em tudo quanto vago,
como naquela histria
por algum referida
de um homem que se fez
memria to ativa
que pde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mo,
feminina, apertada.

H
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
so teis o relgio,
a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
tm no almoxarifado
s palavras extintas:
umas que se asfixiam
por debaixo do p,
outras despercebidas
em meio a grandes ns;
palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detm
a ateno que l mal.
Pois somente essa faca
dar a tal operrio
olhos mais frescos para
o seu vocabulrio
e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinar a obter
de um material doente

65

o que em todas as facas


a melhor qualidade:
a agudeza feroz,
certa eletricidade,
mais a violncia limpa,
que elas tm, to exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I
Essa lmina adversa,
como o relgio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,
sabe acordar tambm
os objetos em torno
e at os prprios lquidos
podem adquirir ossos.
E todo o que era vago,
toda frouxa matria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presena de vespa.
Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera
despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.
Pois entre tantas coisas
que tambm j no dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lmina
e seu jato to frio,
passa, lcido e insone,

66

vai fio contra fios.

De volta dessa faca,


amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca
de porte to secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais
me detive, a da lmina,
porque de todas elas
certamente a mais vida;
pois de volta da faca
se sobe outra imagem,
quela de um relgio
picando sob a carne,
e dela quela outra,
primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porm forte a dentada
e da lembrana
que vestiu tais imagens
e muito mais intensa
do que pde a linguagem,
e afinal presena
da realidade, prima,
que gerou a lembrana
e ainda a gera, ainda,
por fim realidade,
prima, e to violenta
que ao tentar apreend-la
toda imagem rebenta.

A PALO SECO
1.1 Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:

67

ao cante que se canta


sob o silncio a pino.
1.2 O cante a palo seco
o cante mais s:
cantar num deserto
devassado de sol;
o mesmo que cantar
num deserto sem sombra,
em que a voz s dispe
do que ela mesma ponha.
1.3 O cante a palo seco
um cante desarmado:
s a lmina da voz
sem a arma do brao;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silncio
com sua chama nua.
1.4 O cante a palo seco
no um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que quando a sombra foge
e no medra a magia.
2.1 O silncio um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da gua;
a pele do silncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2 Ou o silncio pesado,
e um lquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco um cante
submarino ao silncio.

68

2.3 Ou o silncio levssimo,


lquido sutil
que se coa nas frestas
que no cante sentiu;
o silncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4 Ou o silncio uma tela
que difcil se rasga
e que quando se rasga
no demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em emendar:
tela que fosse de gua
ou como tela de ar.
3.1 A palo seco o cante
de todos mais lacnico,
mesmo quando parea
estirar-se um quilmetro:
enfrentar o silncio
assim despido e pouco
tem de forosamente
deixar mais curto o flego.
3.2 A palo seco o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silncio;
cantar contra a queda,
um cante para cima,
em que se h de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3 A palo seco o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contrapelo,
por ser a contravento;
cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silncio
tem a fibra de dente.
3.4 A palo seco o cante
que mostra mais soberba;
e que no se oferece:

69

que se torna ou se deixa;


cante que no se enfeita,
que tanto se lhe d;
cante que no canta,
cante que a est.
4.1 A palo seco canta
o pssaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seca canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pssaro
d o seu assovio.
4.2 A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra,
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pssaro araponga
que inventa o prprio ferro.
4.3 A palo seco existem
situaes e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegncia dos pregos,
a cidade de Crdoba,
o arame dos insetos.
4.4 Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos que se retirar
higiene ou conselho:
no o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
por ser mais contundente.

ESTUDOS PARA UMA BAILADORA ANDALUZA

70

Dir-se-ia, quando aparece


danando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.
Todos os gestos do fogo
que ento possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua lngua;
gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, s nervos,
carne toda em carne viva.
Ento, o carter do fogo
nela tambm se advinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,
gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a prpria cinza.
Porm a imagem do fogo
num ponto desmentida:
que o fogo no capaz
como ela , nas siguiriyas,
de arrancar-se de si mesmo,
numa primeira fasca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a, fibra a fibra,
que somente ela capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.

2
Subida ao dorso da dana
(vai carregada ou a carrega?)
impossvel se dizer
se a cavaleira ou a gua.
Ela tem na sua dana
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.

71

Isto : tanto a tenso


de quem vai montado em sela,
de quem monta um animal
e s a custo o debela,
como a tenso do animal
dominado sob a rdea,
que recente ser mandado
e obedecendo protesta.
Ento, como declarar
se ela gua ou cavaleira:
h uma tal conformidade
entre o que animal e ela,
entre a parte que domina
e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que cavalgado nela,
que o melhor ser dizer
de ambas, cavaleira e gua,
que so d uma mesma coisa
e que um s nervo as inerva,
e que impossvel traar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela a gua e a cavaleira.

3
Quando est taconeando,
a cabea, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.
H nessa ateno curvada
muito de telegrafista,
atento para no perder
a mensagem transmitida.
Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafista
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam
que a mensagem de quem
l do outro lado da linha
ela responde to sria
nos passa despercebida.

72

Mas depois j no h dvida:


mesmo telegrafia:
mesmo que no se perceba
a mensagem recebida,
se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se a linguagem do dilogo
em cdigo ou ostensiva,
j no cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dico
to morse e to desflorida,
linear, numa s corda,
em ponto e trao, concisa,
a dico em preto-e-branco
de sua perna polida.

4
Ela no pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.
Ela a trata com a dura
e muscular energia
do campons que cavando
sabe que aterra amacia.
Do campons de quem tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.
Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,
esta se quer uma rvore
firma na terra, nativa,
que no quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.
rvore que estima a terra
de que se sabe famlia
e por isso trata a terra
com tanta dureza ntima.

73

Mais: que ao saber da terra


no s na terra se afinca
pelos troncos dessas pernas
fortes, terrenas, macias,
mas se orgulha de ser terra
e dela se reafirma,
batendo-a enquanto dana,
para vencer quem duvida.

5
Sua dana sempre acaba
igual que quando comea,
tal esses livros de iguais
coberta e contracoberta:
com a mesma posio
como que talhada em pedra:
um momento est esttua,
desafiante, espera.
Mas, se essas duas esttuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.
A primeira das esttuas
que ela , quando comea,
parece desafiar
alguma presena interna
que no fundo dela prpria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem que a modela.
Enquanto a esttua final,
por igual que ela parea,
que ela , quando um estilo
j se imps ntima presa,
parece mais desafio
a quem est na assistncia,
como para indagar quem
a mesma faanha tenta.
O livro de sua dana
capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas esttuas acesas.

74

6
Na sua dana se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.
Parece que sua dana
ao ser danada, medida
que avana e vai despojando
da folhagem que a vestia.
No s da vegetao
de que ela dana vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil chita),
mas tambm dessa outra flora
a que seus braos do vida,
densa floresta de gestos
a que do vida e agonia.
Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continue nela a vesti-la,
parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.
Ou ento que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque, terminada a dana
embora a roupa persista,
a imagem que a memria
conservar em sua vista
a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.

PAISAGEM PELO TELEFONE


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,

75

duzentas, se oferecia
a alguma manh de praia
mais manh porque marinha,
a alguma manh de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhs so mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que so velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois no o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manh
estivesse envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mnima,
e que por mnima, pouco
de tua luz prpria tira,
e at mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
s de teu banho vestida,
que quando tu ests mais clara,
pois a gua nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a gua clara no te acende:
libera a luz que j tinhas.

76

CEMITRIO PERNAMBUCANO
(Custdia)
mais prtico enterrar-se
em covas feitas no cho:
ao sol daqui, mais que covas,
so fornos de cremao.
Ao sol daqui as covas logo
se transformam nas caieiras
onde enterrar certas coisas
para, queimando-as, faz-las:
assim, o tijolo ainda cru,
as pedras que do a cal
ou a capoeira raqutica
que d o carvo vegetal.
S que nas covas caieiras
nenhuma coisa apurada:
tudo se perde na terra,
em forma de alma, ou de nada.

CONGRESSO NO POLGONO DAS SECAS


(ritmo senador; sotaque sulista)
Cemitrios gerais
onde no s esto os mortos.
Eles so muito mais completos
do que todos os outros.
Que no so s depsito
da vida que recm, morta.
Mas cemitrios que produzem
e nem mortos importam.
Eles mesmos transformam
a matria-prima que tm.
Trabalham-na em todas as fases,
do campo aos armazns.
So eles mesmos que produzem
os defuntos que jazem.

77

CEMITRIO ALAGOANO
(Trapiche da Barra)
Sobre uma duna de praia
o curral de um cemitrio,
que o mar todo o dia, todos,
sopra com vento antissptico.
Que o mar depois desinfeta
com gua de mar, sanativa,
e depois, com areia seca,
ele enxuga e cauteriza.
O mar, que s preza a pedra,
que faz de coral suas rvores,
luta por curar os ossos
da doena de possuir carne,
e para curar-lhes da pouca
que de viver ainda lhes resta,
lavadeira de hospital,
o mar esfrega e reesfrega.

A PALAVRA SEDA
A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E, como as coisas, palavras
impossveis de poemas:
exemplo, a palavra ouro,
e at este poema, seda.
certo que tua pessoa
no faz dormir, mas desperta;
nem sedante, palavra
derivada da de seda.
E certo que a superfcie
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfcie
luxuosa, falsa, acadmica,
de uma superfcie quando
se diz que ela como seda.

78

Mas em ti, em algum ponto,


talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas
h algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substncia felina
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

RIO E/OU POO


Quando tu, na vertical,
te ergues, de p em ti mesma,
possvel descrever-te
com a gua da correnteza;
tens a alegria infantil,
popular, passarinheira
de um riacho horizontal
(e embora de p estejas).
Mas quando na horizontal,
em certas horas, te deixas,
que quando, por fora, mais
as guas correntes lembras,
mas quando tua extenso,
como se rio, te entregas,
quando te deitas em rio
que se deita sobre a terra,
S uma gua vertical,
gua parada em si mesma,
gua vertical de poo,
gua toda em profundeza,
gua em si mesma, parada,
e que ao para mais se adensa,
gua densa de gua, como
de alma tua alma est densa.

79

RILKE
TORSO ARCAICO DE APOLO
No sabemos como era a cabea, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porm
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
s que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se no fosse assim, a curva rara
do peito no deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
No fosse assim, seria essa esttua uma mera
pedra, um desfigurado mrmore, e nem j
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites no transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto no h
que no te mire. Fora mudares de vida.
[traduo de Manuel Bandeira]
OS TZARES
III . Ivan, o Terrvel
Os seus servos fomentam uma infinda
matilha de murmuraes selvagens

80

e tudo ele, sempre ele ainda.


Os favoritos fogem dele, e os pajens.
As esposas fuxicam entre alfaias,
conspirando. E ele as ouve desde o interno
dos aposentos, com as suas aias,
que olham de esguelha e falam em veneno.
As paredes so ocas, e os telhados
abrigam assassinos, agachados,
que, com astcia, fingem-se de monge.
E ele no tem nada mais alm de um longe
lampejo, aqui e ali; s o degrau
suave de escadas subindo em espiral;
s o ao de sua bengala.
Nada alm da escassa veste penitencial (atravs da qual o frio das lajes
se aferra a ele como se com garras).
nada a que ouse chamar,
nada alm do temor dessas personagens,
nada alm do dirio temor de tudo
que o caa por trs das faces caadas,
caa-o no escuro sem inquiridor
das mos talvez j culpadas.
s vezes ele agarra algum no corredor
em tempo, ainda, pelas dobras do seu manto,
e o atira para um canto;
mas janela ele j se esqueceu:
quem a presa? Quem, o predador?
Quem ele e quem sou eu?

Branco, primeiro. De um branco


De inocncia, cego, branco,
Branco de ignorncia, branco,
Pronto verdeja o veneno.
Abre janelas o corpo.
O branco torna-se negro.

Guerra de noite e dias!


O vento assassina a brisa,
A brisa ao vento..
.................................Na brisa
Vem reconquistando o branco.
Branco verdadeiro, branco
J de eternidade, branco.

81

BUDA
Como se ele escutasse: eras distantes
De sbito cessamos de escut-lo.
E ele uma estrela. E estrelas gigantes,
que no vemos, circundam o seu halo.
Ah, ele tudo. Quem esperaria
que ele nos visse? Para que, afinal?
A seus ps, ele ainda ficaria
absurdo e absorto como um animal.
Pois que, a seus ps, o que nos dilacera
j circulou por ele h milhes de anos.
Ele, que esquece o que experimentamos
e experimenta o que no nos espera.

BUDA - Como se ele escutasse: eras distantes/ De sbito cessamos de


escut-lo./ E ele uma estrela. E estrelas gigantes,/ que no vemos,
circundam o seu halo.// Ah, ele tudo. Quem esperaria/ que ele nos visse?
Para que, afinal?/ A seus ps, ele ainda ficaria/ absurdo e absorto como um
animal.// Pois que, a seus ps, o que nos dilacera/ j circulou por ele h
milhes de anos./ Ele, que esquece o que experimentamos/ e experimenta o
que no nos espera.

HLDERLIN
METADE DA VIDA
Peras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.
cisnes graciosos,
Bbedos de beijos,
Enfiando a cabea
Na gua santa e sbria!
Ai de mim, aonde, se
inverno agora, achar as
Flores? E aonde
O calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; fria nortada
Rangem os cata-ventos.

82

[traduo de Manuel Bandeira]

83

FEDERICO GARCA LORCA


ROMANCE DA GUARDA CIVIL ESPANHOLA
Os cavalos negros so.
As ferraduras so negras.
Nas capaz reluzem
manchas de tinta e cera.
Tm, por isso no choram,
de chumbo as caveiras.
Com a alma de charo
vm pela estrada.
Corcovados e noturnos,
por onde animam, ordenam
silncios de goma escura
e medos de fina areia.
Passam, se querem passar,
e ocultam na cabea
uma vaga astronomia
de pistolas inconcretas.
*
Oh! Cidade dos gitanos!
Nas esquinas bandeiras.
A lua e a calabaa
com as ginjas em conserva.
Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e no se recorda de ti?
Cidade de dor e almscar,
com as torres de canela.
*
Quando caa a noite,
noite, que noite noiteira,
os gitanos com suas frguas
forjavam sis e flechas.
Um cavalo malferido
chamava todas as portas.
Galos de vidro cantavam
por Jerez de La Frontera.
O vento dobra desnudo
a esquina de surpresa,
na noite prata noite,
noite, que noite noiteira.
*
A Virgem e So Jos
perderam suas castanholas,

84

e procuram os gitanos
para ver se as encontram.
A Virgem vem vestida
com um traje de alacaidessa
de papel de chocolate
com colares de amndoas.
So Jos move os braos
sob uma capa de seda.
Atrs vai Pedro Domeck
com trs sultes da Prsia.
A meia-lua sonhava
um xtase de cegonha.
Estandartes e faris
invadem as aotias.
Pelos espelhos soluam
bailarinas sem quadris.
gua e sombra, sombra e gua
por Jerez de la Frontera.
*
Oh! Cidade dos gitanos!
Nas esquinas as bandeiras.
Apaga as tuas verdes luzes
porque vem a benemrita.
Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e no se recorda de ti?
Deixai-a longe do mar
sem pente para suas riscas.
*
Avanam de dois no fundo
para a cidade da festa.
Um rumor de sempre-vivas
invade as cartucheiras.
Avanam de dois no fundo.
Duplo noturno de tela.
O cu parece a eles
uma vitrina de esporas.
*
A cidade, livre do medo,
multiplicava as suas portas.
Quarenta guardas-civis
entram nelas para o saque.
Os relgios pararam,
e o conhaque das garrafas
se disfarou de novembro
para no infundir suspeitas.
Um vo de gritos longos
se levantou nos cata-ventos.

85

Os sabres cortam as brisas


que os cascos atropelam.
Pelas ruas de penumbra
fogem as gitanas velhas
com os cavalos dormidos
e os vasos de moedas.
Pelas ruas empinadas
sobem as capas sinistras,
deixando para trs fugazes
redemoinhos de tesouras.
No portal de Belm
os gitanos se congregam.
So Jos, cheio de feridas,
amortalha uma donzela.
Teimosos fuzis agudos
a noite toda soam.
A Virgem cura os meninos,
com salivinha de estrela.
Mas a Guarda Civil
avana semeando fogueiras,
onde jovem e desnuda
a imaginao se queima.
Rosa, a dos Cambrios,
geme sentada porta
com seus dois peitos cortados
postos numa bandeja.
E outras moas corriam
perseguidas por suas tranas,
num ar onde estalam
rosas de plvora negra.
Quando todos os telhados
eram sulcos na terra,
a aurora mexeu seus ombros
em longo perfil de pedra.
*
Oh! Cidade dos gitanos!
A Guarda Civil se afasta
por um tnel de silncio
enquanto as chamas de cercam.
Oh! Cidade dos gitanos!
Quem te viu e no se recorda de ti?
Que te busquem em minha frente.
Jogo de lua e de areia.

VOLTA DE PASSEIO
Assassinado pelo cu,
entre as formas que vo para a serpente

86

e as foras que buscam o cristal,


deixarei crescer meus cabelos.
Com a rvore de tocos que no canta
e o menino com o branco rosto de ovo.
Com os animaizinhos de cabea rota
e a gua esfarrapada dos ps secos.
Com tudo o que tem cansao surdo-mudo
e mariposa afogada no tinteiro.
Tropeando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo cu!

1910
(Intermdio)
Aqueles olhos meus de mil novecentos e dez
no viram enterrar os mortos,
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o corao que treme arrincoado como um cavalinho de mar.
Aqueles olhos meus de mil novecentos e dez
viram a branca parede onde urinavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensvel que iluminava pelos cantos
os pedaos de limo seco sob o negro duro das garrafas.
Aqueles olhos meus no pescoo da gua,
no seio traspassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor, com gemidos e frescas mos,
em um jardim onde os gatos comiam as rs.
Desvo onde o p velho congrega esttuas e musgos,
caixas que guardam silncio de caranguejos devorados
no lugar onde o sonho tropeava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.
No me perguntai nada. Vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
H uma dor de ocos pelo ar sem gente
e em meus olhos criaturas vestidas, sem nudez!

PRANTO POR IGNACIO SNCHEZ MEJAS [traduo de William Agel de Mello]


I.
A CAPTURA E A MORTE

87

s cinco horas da tarde.


Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o branco lenol
s cinco horas da tarde.
Uma esporta de cal j prevenida
s cinco horas da tarde.
O mais era morte e somente morte
s cinco horas da tarde.
O vento levou os algodes
s cinco horas da tarde.
E xido semeou cristal e nquel
s cinco horas da tarde.
J lutam a pomba e o leopardo
s cinco horas da tarde.
E uma coxa para um chifre destroada
s cinco horas da tarde.
Comearam os sons do bordo
s cinco horas da tarde.
Os sinos de arsnico e fumaa
s cinco horas da tarde.
Nas esquinas grupos de silncio
s cinco horas da tarde.
E o touro com todo o corao para a frente!
s cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
s cinco horas da tarde,
quando a praa se cobriu de iodo
s cinco horas da tarde,
a morte botou ovos na ferida
s cinco horas da tarde.
s cinco horas da tarde.
s cinco em ponto da tarde.
Um atade com rodas a cama
s cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido
s cinco horas da tarde.
Por sua frente j mugia o touro
s cinco horas da tarde.
O quarto se irisava de agonia
s cinco horas da tarde.
De longe j se aproxima a gangrena
s cinco horas da tarde.
Trompa de lrio pelas verdes virilhas
s cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sis
s cinco horas da tarde,
e as pessoas quebravam as janelas
s cinco horas da tarde.
s cinco horas da tarde.
Ai que terrveis cinco horas da tarde!

88

Eram cinco horas em todos os relgios!


Eram cinco horas da tarde em sombra!

II.

O SANGUE DERRAMADO
No quero v-lo!
Dize lua que venha,
que no quero ver o sangue
de Ignacio sobre a areia.
No quero v-lo!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praa cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.
No quero v-lo!
Que se me queima a recordao.
Avisai aos jasmins
com sua brancura pequena!
No quero v-lo!
A vaca do velho mundo
passava a lngua triste
sobre um focinho de sangues
derramados sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois sculos
fartos de pisar a terra.
No.
No quero v-lo!
Pelos degraus sobe Ignacio
com toda sua morte s costas.
Buscava o amanhecer,
e o amanhecer no era.
Busca o seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Buscava o seu formoso corpo
e encontrou seu sangue aberto.
No me digais que o veja!
No quero sentir o jorro
cada vez com menos fora;
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte

89

sobre a pelcia e o couro


de multido sedenta.
Quem grita que eu aparea?
No me digais que o veja!
No se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
mas as mes terrveis
levantaram a cabea.
E atravs das manadas,
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de plida nvoa.
No houve prncipe em Sevilha
que comparar-se-lhe possa,
nem espada como a sua espada
nem corao to deveras.
Como um rio de lees
sua maravilhosa fora,
e como um torso de mrmore
sua marcada prudncia.
Um ar de Roma andaluza
lhe dourava a cabea
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligncia.
Que grande toureiro na praa!
Que grande serrano na serra!
Quo brando com as espigas!
Quo duro com as esporas!
Quo terno com o rocio!
Quo deslumbrante na feira!
Quo tremendo com as ltimas
bandarilhas tenebrosas!
Porm j dorme sem fim.
J os musgos e j a erva
abrem com dedos seguros
a flor de sua caveira.
E o sangue j vem cantando:
cantando por marisinas e pradarias,
resvalando por chifres enregelados,
vacilando sem alma pela nvoa,
tropeando com cascos aos milhares
como uma longa, escura, triste lngua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir das estrelas.
Oh! branco muro de Espanha!
Oh! negro touro de pena!
Oh! sangue duro de Ignacio!
Oh! rouxinol de suas veias!
No.
No quero v-lo!
No h clice que o contenha,

90

no h andorinhas que o bebam,


no escarcha de luz que o esfrie,
no h canto nem dilvio de aucenas,
no h cristal que o cubra de prata.
No.
Eu no quero v-lo!!

III.

CORPO PRESENTE
A pedra uma fronte onde os sonhos gemem
sem gua curva nem ciprestes gelados.
A pedra uma espdua para levar ao tempo
com rvores de lgrimas e cintas e planetas.
Eu vi chuvas cinzentas correrem rumo s ondas
levantando seus ternos braos esburacados,
para no ser caadas pela pedra estendida
que desfaz seus membros sem se empapar de sangue.
Porque a pedra escolhe sementes e nuvens,
ossadas de calhandras e lobos de penumbra;
mas no produz sons, nem cristais, nem fogo,
seno praas e praas e outras praas sem muros.
J est sobre a pedra Ignacio, o bem-nascido.
J se acabou; o que acontece? Contemplai a sua figura:
a morte o cobriu de plidos enxofres
e ps-lhe uma cabea de escuro minotauro.
J se acabou. A chuva penetra-lhe pela boca.
O ar como louco escapa de seu peito afundado,
e o Amor, empapado de lgrimas de neve,
se aquece no topo dos currais.
Que dizem? Um silncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara onde rouxinis havia
e vmo-la encher-se de buracos sem fundo.
Quem enruga o sudrio? No verdade o que diz!
Aqui ningum mais canta, nem chora l no lado,
nem aplica as esporas, nem espanta a serpente:
aqui no quero nada mais que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possvel descanso.
Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens cuja ossada ressoa, e cantam
com uma boca cheia de sol e pedernais.

91

Aqui eu quero v-los. Diante da pedra.


Diante deste corpo com as rdeas arrebentadas.
Eu quero que me mostrem onde est a sada
para este capito atado pela morte.
Eu quero que me mostrem um pranto com um rio
que tenha doces nvoas e praias profundas,
para levar o corpo de Ignacio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.
Que se perca na praa redonda da lua
que finge ao ser menina dolente rs imvel;
que se perca na noite sem canto dos peixes
e na maleza branca do fumo congelado.
No quero que lhe tapem o rosto com lenos
para que se acostume com a morte que leva.
Vai-te, Ignacio: No ouas o candente bramido.
Dorme, voa, repousa: O mar tambm morre!

IV.
ALMA AUSENTE
O touro no te conhece, nem a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
O menino no te conhece, nem a tarde,
porque morreste para sempre.
O lombo da pedra no te conhece,
nem o cho negro em que te destroas.
Nem te conhece a tua recordao muda,
porque morreste para sempre.
O outono vir com caracis,
uva de nvoa e montes agrupados,
mas ningum querer mirar teus olhos,
porque morreste para sempre.
Porque morreste para sempre,
como todos os mortos da Terra,
como todos os mortos que se olvidam,
em um monto de cachorros apagados.
Ningum te conhece. No. Porm eu te canto.
Eu canto sem tardana teu perfil e tua graa.
A madureza insigne do teu conhecimento,
A tua apetncia de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve a tua valente alegria.

92

Tardar muito tempo em nascer, se que nasce,


um andaluz to claro, to rico de aventura.
Canto-lhe a elegncia com palavras que gemem
e recordo uma triste brisa nos olivais.

PRANTO POR IGNACIO SANCHZ MEJAS [traduo de Vasco Graa Moura]

1. A COLHIDA E A MORTE
Davam as cinco da tarde.
Davam as cinco em ponto dessa tarde.
Um moo trouxe uma toalha branca
davam cinco da tarde.
Uma seira de cal j preparada
davam cinco da tarde.
Tudo o mais era a morte e s a morte
davam cinco da tarde.
O vento fez voar os algodes
davam cinco da tarde.
E o xido semeou cristal e nquel
davam cinco da tarde.
J lutavam a pomba e o leopardo
davam cinco da tarde.
E a coxa com uma haste desolada
davam cinco da tarde.
Comearam os dobres do bordo
davam cinco da tarde.
As campanas de arsnico e o fumo
davam cinco da tarde.
Pelas esquinas grupos de silncio
davam cinco da tarde.
E o touro s de corao ao alto!
davam cinco da tarde.

2. O sangue derramado
Que no quero v-la!
Dizei lua que venha,
que no quero ver do sangue
de Ignacio a mancha na arena.
Que no quero v-la!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praa cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

93

Que no quero v-la!


Que a lembrana se me queima.
Ide avisar aos jasmins
em sua alvura pequena!
Que no quero v-la!
A vaca do velho mundo
passa a lngua da tristeza
sobre um focinho de sangues
derramado pela arena,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois sculos
fartos de pisar a terra.
No.
Que no quero v-la!
Por degraus sobe Ignacio,
toda a morte s costas leva.
Buscava o amanhecer
e o amanhecer no era.
Busca o seu formoso corpo
e encontra a sangria aberta.
Ah, no me digais que a veja!
No quero sentir o jorro
em que a fora desalenta;
esse jorro que ilumina
os palanques e rebenta
no veludinho e no couro
de uma multido sedenta.
Quem me grita a mi que assome?
Ah, no me digais que a veja!
No se fecharam seus olhos
quando viu os cornos cerca,
mas ento as mes terrveis
levantaram a cabea.
E atravs das ganadarias
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de uma plida nvoa.
No houve prncipe em Sevilha
a poder pedir-lhe meas,
nem espada qual sua espada,
nem corao to deveras.
Como um rio de lees
a sua fora soberba,
e como um torso de mrmore
a desenhada prudncia.
Um ar de Roma andaluza

94

o dourava na cabea
em que o seu riso era um nardo
de sal e de inteligncia.
Que mor toureiro na praa!
Que serrano mor na serra!
Que brando com as espigas!
Nas esporas que dureza!
E que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as ltimas
bandarilhas d de treva!
Porm j dorme sem fim.
J os musgos e a erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.
E o seu sangue j l vem cantando:
cantando pelos plainos e lameiras,
resvalando pelos hirtos cornos frios,
vacilando sem alma pela nvoa,
tropeando nos cascos aos milhares
como uma lngua triste, escura, espessa,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir l das estrelas.
Oh branco muro de Espanha!
Oh negro muro de pena!
Oh sangria atroz de Ignacio!
Oh rouxinol dessas veias!
No.
Que no quero v-la.
Que no h clice que a contenha,
que no h andorinhas para beb-la,
no h geada de uma luz que esfrie,
no h canto nem dilvio de aucenas,
no h cristal que a cubra j de prata.
No.
Eu no quero v-la!

3. Corpo presente
A pedra uma fronte por onde os sonhos gemem
sem terem gua curva nem ciprestes gelados.
A pedra uma espalda para levar o tempo
com rvores de lgrimas e tiras e planetas.
Vi chuvas pardas correrem para as ondas
erguendo os ternos braos feito crivo,
para no serem caadas pela pedra alongada
que desta seus membros sem se empapar de sangue.

95

Porque a pedra recolhe sementes, nevoeiros,


os ossos das calhandras e lobos de penumbra;
mas ela no d sons, nem d cristais, nem fogo,
s praas e mais praas e outras praas sem muros.
Sobre a pedra j est Ignacio o bem nascido.
J se acabou: que foi? Olhai sua figura:
veio a morte cobri-lo de plidos enxofres
e ps-lhe uma cabea de obscuro Minotauro.
J se acabou. A chuva penetra em sua boca.
O ar enlouquecido esvaziou-lhe o peito,
e o Amor, empapado com lgrimas de neve,
vai se aquecer no cimo das ganadarias.
Que dizem? Um silncio com fedor repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara que teve rouxinis
e que vemos encher-se de buracos sem fundo.
Quem enruga o sudrio? No verdade o que diz!
Nem canta aqui ningum, nem chora no recinto,
nem espeta as esporas, nem espanta a serpente:
aqui no quero mais do que os olhos redondos
para ver esse corpo sem possvel descanso.
Eu quero ver aqui os homens de vos dura.
Os que domam cavalos e dominam os rios:
os homens a quem soa o esqueleto e cantam
com um boca cheia de sol e pedernais.
Aqui eu quero v-los. Diante desta pedra.
Diante deste corpo com as rdeas quebradas.
Eu quero que me mostrem onde est a sada
para este capito atado pela morte.
Eu quero que me ensinem um pranto como um rio
que tenha doces nvoas e as margens mais profundas,
para levar o corpo de Ignacio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.
Que se perca na praa redonda l da lua
que finge de menina dolente rs imvel;
que se perca na noite sem msica dos peixes
e no branco daninho do fumo congelado.
No quero que lhe tapem a cara com um leno
para que se acostume morte que assim leva.
Vai-te, Ignacio: No sintas esse quente bramido.
Dorme, voa, repousa: que tambm morre o mar.

96

4. Alma ausente
No te conhecem touro nem figueira,
nem cavalos nem formigas do teu lar.
No te conhece a tarde ou o menino,
porque tu ests morto para sempre.
No te conhece a pedra no seu dorso,
nem o negro cetim onde te perdes.
No te conhece o teu recordar mudo
porque tu ests morto para sempre.
O outono vir com os seus bzios,
uva de nvoa e montes agrupados,
mas ningum querer fitar teus olhos
porque tu ests morto para sempre.
Porque tu ests morto para sempre,
como todos os mortos que h na Terra,
como todos os mortos que se esquecem
num monturo de ces que se apagaram.
Ningum que te conhea. No. Mas eu te canto.
Eu canto para j teu perfil e tua graa.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Tua apetncia de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.
Tardar muito tempo em nascer, se que nasce,
um andaluz to claro, to rico de aventura.
Eu canto sua elegncia com palavras que gemem
e recordo uma brisa triste pelas oliveiras.

PRISO DE ANTONINHO, O CAMBRIO, NO CAMINHO DE SEVILHA


Antonio Torres Heredia,
filho e neto de Cambrios,
com uma vara de vime,
vai a Sevilha ver os touros.
Moreno de vede lua
anda devagar e garboso.
Seus empavonados bucles
brilham-lhe entre os olhos.
Na metade do caminho
cortou limes redondos,
e os foi atirando ngua
at que a tornou de ouro.
E na metade do caminho,
sob os ramos de um olmo,
guarda-civil caminheiro
levou-o grudado a si.

97

*
Vai-se o dia devagar,
a tarde pendurada a um ombro,
caindo lentamente
sobre o mar e os arroios.
As azeitonas aguardam
a noite de Capricrnio,
e uma curta brisa, eqestre,
salta os montes de chumbo.
Antonio Torres Heredia,
filho e neto de Cambrios,
vem sem vara de vime
entre os cinco tricrnios.
Antonio, quem s tu?
Se te chamasses Cambrio,
terias feito uma fonte
de sangue com cinco jorros.
Tampouco s filho de algum,
nem legtimo Cambrio.
Acabaram-se os gitanos
que iam ss pelo monte!
Esto as velhas facas
tiritando sob o p.
s nove da noite
levam-no ao calabouo,
enquanto os guardas-civis
bebem limonada todos.
E s nove da noite
encerram-no no calabouo,
enquanto o cu reluz
como a garupa de um potro.

MORTE DE ANTONINHO, O CAMBRIO


Vozes da morte soaram
perto do Guadalquivir.
Vozes antigas que procuram
voz de cravo varonil.
Cravou-lhes sobre as botas
mordidas de javali.
Na luta dava saltos
ensaboados de delfim.
Banhou com sangue inimigo
sua gravata carmesim,
mas eram quatro punhais
e teve que sucumbir.
Quando as estrelas cravam
rojes na gua gris,
quando os novilhos sonham

98

vernicas de aleli,
vozes de morte soaram
perto do Guadalquivir.
*
Antonio Torres Heredia,
Cambrio de dura crina,
moreno de verde lua,
voz de cravo varonil:
Quem te tirou a vida
perto do Guadalquivir?
Meus quatro primos Herdias
filhos de Benameji.
O que em outros no invejavam,
era invejado em mim.
Sapatos cor de passa,
medalhes de marfim,
e esta ctis mesclada
com azeitona e jasmim.
Ai, Antoninho, o Cambrio,
digno de uma Imperatriz!
Lembra-te da Virgem
porque vais morrer.
Ai, Federico Garca,
chama a Guarda Civil!
J meu talhe se quebrou
como haste de milho.
Trs golpes sangrentos teve
e morreu de perfil.
Viva moeda que nunca
tornar a repetir-se.
um anjo garboso pem-lhe
a cabea num coxim.
Outros de rubor cansado
acenderam um candil.
E quando os quatro primos
chagam a Benameji,
vozes de morte cessaram
perto do Guadalquivir.

GAZEL DO AMOR DESESPERADO


A noite no quer vir
para que tu no venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
inda que um sol de lacrais me coma a fronte.
Mas tu virs

99

com a lngua queimada pela chuva de sal.


O dia no quer vir
para que tu no venhas,
nem eu possa ir.
Mas eu irei,
entregando aos sapos meu mordido cravo.
Mas tu virs
pelas turvas cloacas da escurido.
Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.

A AURORA
A aurora de Nova York tem
quatro colunas de lodo
e um furaco de negras pombas
que chapinham nas guas apodrecidas.
A aurora de Nova York geme
pelas imensas escadas
buscando entre as arestas
nardos de angstia desenhada.
A aurora chega e ningum a recebe em sua boca
porque ali no h amanh nem esperana possvel.
s vezes as moedas em enxames furiosos
perfuram e devoram meninos abandonados.
Os primeiros que saem compreendem com seus ossos
que no haver parasos nem amores desfolhados;
sabem que vo ao atoleiro de nmeros e leis,
aos jogos sem arte, aos suores sem fruto.
A luz sepultada por correntes e rudos
em impudico desafio de cincia sem razes.
Pelos bairros h gentes que vacilam insones
como recm-sadas de um naufrgio de sangue.
[traduo de Fbio Aristimunho Vargas]

A AURORA
A aurora de Nova York
tem quatro colunas de lodo
e um furaco de negras pombas
que chapinham em guas podres.

100

A aurora de Nova York


geme pelas imensas escadas,
buscando entre arestas
nardos de angstia desenhada.
A aurora chega e ningum a recebe na boca
porque ali no h manh nem esperana possvel.
s vezes as moedas em enxames furiosos
tradeiam e devoram meninos abandonados.
Os primeiros que saem compreendem com seus ossos
que no haver paraso nem amores desfolhados;
sabem que vo ao lodaal de+ nmeros e leis,
aos brinquedos sem arte, aos suores sem fruto.
A luz sepultada por correntes e rudos
em impudico reto de cincia sem razes.
Pelos bairros h gentes que vacilam insones
como recm-sadas de um naufrgio de sangue.
[traduo de William Agel de Mello]

GAZEL DA FUGA
Perdi-me muitas vezes pelo mar
com o ouvido cheio de flores recm-cortadas,
com a lngua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes me perdi pelo mar,
como me perco no corao de alguns meninos.
No h noite em que, ao dar um beijo,
no sinta o sorriso das pessoas sem rosto,
nem h ningum que, ao tocar um recm-nascido,
olvide as imveis caveiras de cavalo.
Porque as rosas buscam em frente
uma dura paisagem de osso
e as mos do homem no tm mais sentido
que imitar as razes sob a terra.
Como me perco no corao de alguns meninos,
perdi-me muitas vezes pelo mar.
Ignorante da gua vou buscando
uma morte de luz que me consuma.

SEIS POEMAS GALEGOS


MADRIGAL CIDADE DE SANTIAGO
Chove em Santiago

101

meu doce amor.


Camlia branca do ar
brilha entenebrecida ao sol.
Chove em Santiago
na noite escura.
ervas de prata e de sono
cobrem a vadia lua.
Olha a chuva pela rua,
lamento de pedra e cristal.
Olha no vento esvado
sombra e cinza do teu mar.
Sombra e cinza do teu mar
Santiago, longe do sol;
gua da manh antiga
treme no meu corao.

ROMARIA DE NOSSA SENHORA DA BARCA


Ai, folia, folia, folia
da Virgem pequena
e a sua barca!
A virgem era pequena
e a sua coroa de prata.
Amarelos os quatro bois
que no seu carro a levavam.
Pompas de vidro traziam
a chuva pela montanha.
Mortas e mortos de nvoa
pelas congostas chegavam.
Virgem, deixa o teu rostinho
nos doces olhos das vacas
e leva sobre o teu manto
as flores da amortalhada!
Pela testa de Galcia
j vem suspirando a aurora.
A Virgem olha para o mar
da porta da sua casa.
Ai folia, folia, folia
da Virgem pequena
e a sua barca!

CANTIGA DO MENINO DA TENDA

102

Buenos Aires tem uma gaita


por sobre o rio da Prata,
que o vento do norte toca
com sua gris boca molhada.
Triste Ramn de Sismundi!
alm, na rua Esmeralda,
vassoura que te vassoura
p de estantes e caixas.
Ao longo das ruas infindas
os galegos passeavam
sonhando um vale impossvel
na verde riba do pampa.
Triste Ramn de Sismundi!
Ouviu a muinheira dgua
enquanto sete bois da lua
pasciam na sua lembrana.
Foi-se para beira do rio,
beira do Rio da Prata.
Salgueiros e cavalos mudos
quebram o vidro das guas.
No achou o gemido
melanclico da gaita,
no viu o imenso gaiteiro
com a boca florida de asas;
triste Ramn de Sismundi,
beira do Rio da Prata,
viu na tarde amortecida
vermelho muro de lama.

KOSTANTINOS KAVFIS

ESPERA DOS BRBAROS


O que esperamos na gora reunidos?
que os brbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores no legislam mais?
que os brbaros chegam hoje.
Que leis ho de fazer os senadores?
Os brbaros que chegam as faro.
Por que o imperador se ergueu to cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, porta magna da cidade?
que os brbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar

103

o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe


um pergaminho no qual esto escritos
muitos nomes e ttulos.
Por que hoje os dois cnsules e os pretores
usam togas de prpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastes to preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
que os brbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que no vm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
que os brbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqncias.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que to rpido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque j noite, os brbaros no vm
e gente recm-chegada das fronteiras
diz que no h mais brbaros.
Sem brbaros o que ser de ns?
Ah! eles eram uma soluo.

YEATS
RUMO A BIZNCIO [traduo: Jos Agostinho Baptista]

I
Este pas no para velhos. Jovens
Abraados, pssaros que nas rvores cantam
essas geraes moribundas
Cascatas de salmes, mares de cavalas,
Peixe, carne, ave, celebrando ao longo do Vero
Tudo quanto se engendra, nasce e morre.
Prisioneiros de to sensual msica todos abandonam
Os monumentos de intemporal saber.

II

104

Um velho coisa sem valor,


Um andrajo apoiado num bordo, a no ser que
A alma aplauda e cante, e cante mais alto
Cada farrapo da sua mortal veste.
Nem h escola de canto somente o estudo
Dos monumentos de seu prprio esplendor;
Por isso cruzei os mares e cheguei
sagrada cidade de Bizncio.

III
Oh, sbios que estais no sagrado fogo de Deus
Qual dourado mosaico sobre um muro,
Vinde desse fogo sagrado, roda que gira,
E sede os mestres do meu canto, da minha alma.
Devorai este meu corao; doente de desejo
E atado a um animal agonizante
Ele no sabe o que ; juntai-me
Ao artifcio da eternidade.

IV
Da natureza liberto jamais de natural coisa
Retomarei minha forma, meu corpo,
Mas formas outras como as que o ourives grego
Em ouro forja e esmalta em ouro
Para que o sonolento Imperador no adormea;
Ou em dourado ramo pousado, cantarei
Para damas e senhores de Bizncio
Cantarei o que passou, o que passa, ou o que vir

VIAJANDO PARA BIZNCIO [Traduo: Augusto de Campos]


I.
Aquela no terra para velhos. Gente
jovem, de braos dados, pssaros nas ramas
geraes de mortais cantando alegremente,
salmo no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, smen ou semente.
Ao som da msica sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.

II.
Um homem velho apenas uma ninharia,

105

trapos numa bengala espera do final,


a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hbito mortal;
nem h escola de canto, ali, que no estude
monumentos de sua prpria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distncia,
em busca da cidade santa de Bizncio.

III.
sbios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser .
Rompei meu corao, que a febre faz doente
e, acorrentado a um msero animal morrente,
j no sabe o que ; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.

IV.
Livre da natureza no hei de assumir
conformao de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do cio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizncio e s damas,
pousado em ramo de ouro, como um pssaro, o que passou e passar e sempre passa.

VELEJANDO PARA BIZNCIO [traduo: Vasco Graa Moura]

I.
Velhos no tm pas.
Os jovens to enlaados e as aves em trinado
levas que ho-de ir , audes do salmo,
mares de cavalas em cardume, e alado em peixe,
carne ou pssaro, no vero, tudo o que nasce e morre,
aps gerado, desleixa em sensual msica infrene
testemunhos do esprito perene.
II.
Um homem velho coisa no prestante,
um casaco de trapos em bengala,
a menos que a alma bata as mos e cante,
cante alto os mortais trapos a tap-la,
sem escola de canto e prescrutante

106

dos monumentos dessa excelsa gala;


asim cruzei os mares e assim
a Bizncio, cidade santa, vim.
III.
Sbios que estais no fogo divinal
como em mosaico de oiro na parede,
girai, do fogo santo, em espiral,
mestres do canto e da minha alma sede.
E consumi meu corao: em mal
de ansiar e preso a um bicho morte, vede,
no sabe o que ; levai-me de verdade
ao artifcio da eternidade.
IV.
Ido eu da natureza, no se ir
meu corpo em forma natural formar,
mas qual de ourives grego ela ser
de oiro batido e de oiro a esmaltar
que aptico imperador despertar,
ou posta em ramo de oiro h-de cantar,
nobres e damas de Bizncio a ouvir,
do que passou, ou passa, ou h-de vir.

VELEJANDO PARA BIZNCIO [traduo de Paulo Vizioli]


I.
Este no pas para ancio.
Jovens aos beijos, aves a cantar
(Mortal estirpe), saltos de salmo,
Cavalas que povoam todo o mar,
O peixe, o plo e a pluma no vero
S louvam o que nasce e vai passar.
Na msica sensual vem com desdouro
As obras do intelecto imorredouro.

II.
Um velho apenas coisa irrelevante,
Trapos sobre um basto ele na essncia,
A menos que a alma aplauda e alegre cante
Acima dos farrapos da existncia;
Nem se aprende a cantar seno perante
Os monumentos da magnificncia.
Sulquei por isso o mar e cheio de nsia
Vim cidade santa de Bizncio.
III.

107

Oh vs, sbios de Deus no fogo santo,


Como em ureos mosaicos de um mural,
Ensinai-me a cantar, deixando entanto
O fogo, perno em giro vertical.
Tomai meu corao: ansiando tanto,
E preso a perecvel animal,
No se conhece; e eu seja assimilado
pelo artifcio da eternidade.

IV.
Fora da natureza nunca mais
Forma da natureza irei tomar,
Mas forma que um ourives grego faz
Com ouro fino e fino cinzelar
E a sonolento imperador apraz;
Ou num galho dourado hei de cantar
Para a nobreza de Bizncio ouvir
Do que passou, ou passa, ou h de vir.

BIZNCIO
Toda a imagem do dia, poluda, se desfaz;
Dormem bbedos os soldados imperiais;
E a ressonncia da noite foge, em um canto
Depois dos sinos, sonmbula;
Uma cpula estrelada ou de luar semeia
Desprezo a tudo o que os homens so,
banal complicao
E fria e lama das humanas veias.
Diante de mim uma imagem, homem ou sombra,
Mais sombra que homem, mais imagem que sombra,
Flutua; e o fio de Hades, que veste mmias
Talvez deslinde o sinuoso rumo;
E uma boca sem flego e ressequida
Chama bocas tambm inanes;
Eu sado o super-humano
E chamo-o vida-em-morte e morte-em-vida.
Milagre, pssaro, rara manufatura,
Mais milagre que pssaro ou manufatura
Num ramo de ouro sob estrelas assentado
Canta como os galos de Hades
E amargurado pela lua, escarnecendo clama
Em glria de imutvel metal
Contra o pssaro ou ptala banal
Contra as complicaes de sangue e lama.
meia-noite, na estrada do imperador

108

Chamas que no herdam da lenha seu fulgor


E a tempestade poupa, chamas filhas das chamas,
Onde o esprito em sangue se proclama,
Das complicaes da fria despedidas
Morrem numa dana
Uma agonia de nsia,
Agonia de chama que no queima vestidos.
Montando o sangue e a lama do delfim,
Um esprito aps outro! As forjas do fim,
As forjas do imperador, inundao.
Os mrmores do salo
Quebram complicaes, frias amargas, nsias,
Aquelas imagens que ainda
Se renovam: cindido pelo delfim,
O mar atormentado em ressonncia.

CECLIA MEIRELES
LIVRO: VIAGEM (1939)

XTASE
Deixa-te estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvao.
Deixa-te estar na exalao do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braos abertos,
e por cima do cu esto pregados meus olhos, guardando-te.
Deixa-te balanar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslizam os planetas, na abundncia do tempo que cai.
Ns somos um tnue plen dos mundos...
Deixa-te estar neste embalo de gua geando crculos.
Nem preciso dormir, para a imaginao desmanchar-se em figuras ambguas.
Nem preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.
Nem preciso querer mais, que vem de ns um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos...

VINHO
A taa foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.
Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci ,
e em meu pensamento senti

109

o desgosto de ser criatura.


Eu sou de essncia etrea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste, minha procura.
A taa foi brilhante e rara:
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebi
se originou minha loucura.

LIVRO: VAGA MSICA (1942)

PERGUNTA
Se amanh perder o meu corpo,
ser possvel que ainda venha,
e que ao p de ti me detenha
como um levssimo sopro?
E essa minha humilde presena
te despertar como um grito?
E pensars no plido, hirto
fantasma que ainda em ti pensa?
Ou teu sono ser to doce
que o meu arrependido espetro,
sofrendo por chegar to perto,
volte no vento que o trouxe?
Teu rosto um jardim, na sombra.
Teu sonho, flor sob a lua.
Por aquela qur foi tua,
que orvalho em teus olhos tomba?

CANO NAS GUAS


Acostumei minhas mos
a brincarem na gua clara:
por que ficarei contente?
A onda passa docemente:
seus desenhos todos vos.
Nada pra.
Acostumei minhas mos
a brincarem na gua turva:
E por que ficarei triste?
Curva, e sombra, sombra e curva,
cor e movimento vos.
Nada existe.
Gastei meus olhos mirando vidas

110

com saudade.
Minhas mos por guas perdidas
foram pura inutilidade.

IDLIO
Como eu preciso de campo,
de folhas, brisas, vertentes,
encosto-me a ti, que s rvore,
de onde vo caindo flores
sobre os meus olhos dormentes.
Encosto-me a ti, que s margem
de uma areia de silncios
que acompanha pelo tempo
verdes rios transparentes:
tua sombra, nos meus braos,
tua frescura, nos meus dentes.
Nasce a lua nos meus olhos,
passa pela minha vida...
- e, tudo que era, resvala
para calmos ocidentes.
Caminhos de ar vo levando
pura e nua essa que andava
com as roupas mais diferentes.
Olham pssaros, das nuvens,
entre a luz dos mundos firmes
e das estrelas cadentes.
E o orvalho da sua msica
vai recobrindo o meu rosto
com um tremor que eu conhecia
nos meus olhos j levados,
idos, perdidos, ausentes...
(Leve mscara de prolas
na minha face no sentes?)
INTERLDIO
As palavras esto muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
No me digas que h futuro
nem passado.
Deixa o presente claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. No fales.
No me expliques o presente,
pois tudo demasiado.
Em guas de eternamente.
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

111

Fico a teu lado.

PASSAM ANJOS
Passam anjos com espadas de silncio
por entre ns,
devastando o jardim suspenso
que podia ter sido a minha voz.
Passam anjos por cima de muralhas
sem dimenso.
Mas por que das estrelas no falas
triste plancie do meu corao?
Passam anjos desenrolando tempo,
tempo sem fim.
Tempo de seres tu para sempre
e no seres mais nada para mim.
anjos de duras espadas frias,
Que fizestes das alegrias
to raras de desabrochar?
anjos de frias espadas duras,
Que sal, que sombra e que lonjuras,
Sem terra, sem noite e sem mar!

ORCULO
Quieta coruja do bosque negro,
onde o azul-ndigo e o verde-gaio?
Nos teus rios? No monte grego?
Ou na fencia praia?
Agora, tarde. Mas ontem, cedo.
Sonho: Citera. Rumo: Tesslia.
rvore exausta. Cansado remo.
Clssica luz de maio.
Ah! Fuga antiga! Nas guas crespas,
oscilam juntos Polbio e Laio.
Sempre serpentes bebendo estrelas.
E um vento que desmaia.
Dana Eufrosina por cinzas tnues.
E a transparente sombra de Tlia
move na areia seus vos desenhos.
- S nas nuvens Aglaia!

LIVRO: MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS (1945)

112

NOTURNO
Brumoso navio
o que me carrega
por um mar abstrato.
Que insigne alvedrio
prende idia cega
teu vago retrato?
A distante viagem
adormece a espuma
breve da palavra:
- mquina de aragem
que precorre a bruma
e o deserto lavra.
Ceras de mistrio
selam cada poro
da vida entregada.
Em teu mar, no imprio
de exlio onde moro,
tudo igual a nada.
Capito que conte
quem s, porque existes,
deve ter havido.
Eu? bebo o horizonte...
Estrelas mais tristes.
Corao perdido.
Sonolentas velas
hoje dobraremos:
- e a nossa cabea.
Talvez dentro delas
ou nos duros remos
teu nome aparea.

SUGESTO
Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.
Flor que se cumpre,
sem pergunta.
Onda que se esfora,
por exerccio desinteressado.
Lua que envolve igualmente
os noivos abraados
e os soldados j frios.
Tambm como este ar da noite:
sussurrante de silncios,
cheio de nascimentos e ptalas.
Igual pedra detida,
sustentando seu demorado destino.

113

E nuvem, leve e bela,


vivendo de nunca chegar a ser.
cigarra, queimando-se em msica,
ao camelo que mastiga sua longa solido,
ao pssaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocncia para a morte.
Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.
No como o resto dos homens.
MUSEU
Espadas frias, ntidas espadas,
duras viseiras j sem perspectiva,
cetro sem mos, coroa j no viva
de cabeas em sangue naufragadas;
anis de demorada narrativa,
leques sem falas, trompas sem caadas,
pndulos de horas no mais escutadas,
espelhos de memria fugitiva;
ouro e prata, turquesas e granadas,
que da presena passageira e esquiva
das heranas dos poetas, malogradas:
a estrela, o passarinho, a sensitiva,
a gua que nunca volta, as bem-amadas,
a saudade de Deus, vaga e inativa...?

ROMANTISMO
Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,
para pensar um belo pensamento
e pous-lo no vento!
Quem tivesse um amor longe, certo e impossvel para se ver chorando, e gostar de chorar,
e adormecer de lgrimas e de luar!
Quem tivesse um amor, em entre o mar e as estrelas,
partisse por nuvens, dormente e acordado,
levitando apenas, pelo amor levado...
Quem tivesse um amor, sem dvida nem mcula,
sem antes nem depois: verdade e alegoria...
Ah! Quem tivesse... (Mas, quem teve? Quem teria?)
XADREZ
Leva-me o tempo para a frente,
certo de sua direo.
Pousado passo indiferente!
(Peo.)

114

Que mpeto me vem, de repente,


e se esfora por contrari-lo?
nervosa crina, asa ardente!
(Cavalo.)
Talvez meu poder aumente,
e o tempo invicto alcance e toque...
Como porm mudar-lhe a ao?
(Roque.)
Leva-me o tempo para a frente,
dizendo passo a passo: s minha!
E acrescentando, por peidade:
Rainha!
E apenas digo, debilmente,
como quem sonha e se persuade:
Tua, apenas tua, serei...
Rei!

CAVALGADA
Escuta o galope certeiro dos dias
saltando as roxas barreiras da aurora.
J passaram azuis e brancos:
cinzentos, negros, dourados passaram.
Ns, entretidos pela terra,
no levantamos quase nunca os olhos.
E eles iam de estrela a estrela,
asas, crinas e asas agitando.
Todos belos, e alguns sinistros,
com centelhas de sangue pelos cascos.
Se algum lhes suplicasse: Parem!
no parariam que invisvel ltego
ao flanco imps-lhe ritmo certo.
Se por acaso algum dissesse: Voem!
Mais depressa e para mais longe!
veria o que , no cu, a voz humana...
Escuta o galope sem pausa
da cavalgada que vai para oeste.
No suspires pelo que existe
nesses caminhos do sol e da lua.
Semeia, colhe, perde, canta,
que a cavalgada leva seu destino.

115

Ferraduras gneas viro


procurar onde ests, na hora que tua.
Entre essas patas de ao e nuvem,
esto presos teus campos e teus mares.
Irs ao cu num selim de ouro,
sem saberes quem ps teu p no estribo.
Rodars entre a poeira e Srius,
com esses ginetes sem voz e sem sono,
at vir o mais poderoso
que esmague a rosa guardada em teu peito.
Depois, continuaro saltando, mas to longe
que no perturbaro tuas plpebras soterradas.

PSSARO AZUL
Tua estirpe habitara alcndoras divinas.
Com ps de prata e anil desceste antigos tempos.
E em minhas mos pousaste, e o silncio explicou-se
por tua voz, que era de nunca e era de sempre.
Nomes de estrelas vinham sobre as tuas asas,
e era o teu corpo uma ampulheta pressurosa.
Entre as nuvens procuro o ltimo azul que foste...
Mas, de tanto saber, nada mais se deplora.
Como te penso, e to longe procuro
Tua msica alm das nuvens, no te esqueas
que posso estar um dia, em lgrima extraviada,
plen do cu brilhando entre os altos plentas.
Mas no voltes aqui, pois pesado e triste
o humano clima, para o teu destino areo.
Eu mal te posso amara, com o sonho do meu corpo
condenado a este cho e sem gosto terrestre.
FUTURO
preciso que exista, enfim, uma hora clara,
depois que os corpos se resignam sob as pedras
como mscaras metidas no cho.
Por entre as razes, talvez se vaeja, de olhos fechhados,
como nunca se pde ver, em pleno mundo,
cegos que andamos de iluminao.
Perguntareis: Mas era aquilo o teu silncio?
Perguntareis: Mas era assim teu corao?
Ah, seremos apenas imagens inteis, deitadas no baro,
do mesmo modo solitrias, silenciosas,
com cabea encostada sua prpria recordao.

116

LAMENTO DO OFICIAL POR SEU CAVALO MORTO


Ns merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra feita pelas nossas mos,
pela nossa cabea embrulhada em sculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instvel, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicao.
Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os clculos do gesto,
embora sabendo que somos irmos.
Temos at os tomos por cmplices, e que pecados
de cincia, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delrio sem Deus, nossa imaginao!
E aqui morreste! Oh, tua morte a minha que, enganada,
recebes. No te queixas. No pensas. No sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo corao.
Animal encantado melhor que ns todos!
que tinhas tu com este mundo dos homens?
Aprendias a vida, plcida e pura, e entrelaada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
Rei das plancies verdes, com rios trmulos de relinchos...
Como vieste a morrer por um que mata seus irmos?

GUERRA
Tanto o sangue
que os rios desistem de seus ritmo,
e o oceano delira
e rejeitas as espumas vermelhas.
Tanto o sangue
que at a lua se levanta horrvel,
e erra nos lugares serenos,
sonmbul a de aurolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.
Tanta a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaos do corpo esto ali como tbuas sem uso.
Oh, os dedos com alianas perdidos na lama...
Os olhos que j no pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O corao dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...
Tanta a morte que s as almas formariam colunas,

117

as almas desprendidas... e alcanariam as estrelas..


E as mquinas de entranhas abertas,
e os cadveres ainda amarrados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas mculas,
e este mar desvairado de incndios e nufragos,
e a lua alaucinada de seu testemunho,
e ns e vs, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias
- tudo um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

CAMPO
Vem ver o dia crescer entre o cho e o cu,
o aroma dos verdes campos ir sendo orvalhado na alta lua.
Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente,
aprendendo alma futura nas harmonias distribudas.
O mesmo sol das terras antigas lavra nas pedras estrelas claras.
Nem as nuvens se movem. Nem os rios se queixam.
Esto deitados, mirando-se, dos seus opostos lugares,
e amando-se em silncio, como esposos separados.
Neste descanso imenso, quem te dir que viveste em tumulto,
e houve suspiro em teu lbio, ou vaga lgrima em teus dedos?
Morreram as ruas desertas e os seus vidos habitantes
ficaram soterrados pelas paixes que os consumiam.
A brisa que passa vem pura, isenta, sem lembranas.
Tece carcia e msica nos finos fios do arrozal.
Em tua mo quieta, pousaro borboletas silenciosas.
Em teus cabelos flutuaro coroas trmulas de sombra e sol.
To longe, to mortos, jazem os desesperos humanos!
E os coraes perversos no merecem o convvio sereno das plantas.
Mas teus ps andaro aqui entre flores azuis,
e o seu perfume te envolver, como um largo cu.
O crepsculo cobre a memria, o rosto, as rvores,
inclinar teu corpo, docemente, em sua alfombra.
Acima do lodo dos pntanos, vers desabrochar o vo branco das garas.
E, acima do teu sono, o vo sereno das estrelas.

118

PRIPLO
Minha a deserta solido, clara e severa,
onde respiro amanheceres seculares.
Meus navegantes, meus remotos pescadores...
leo, sal, redes, altivez de densas brumas...
lho das barcas que sem plpebra buscaram
entre sereias e medusas sua Estrela.
Graves cabeas modeladas por vento amplo,
rijos destinos, obedientes a onda e cu.
Adivinhar das flutuaes: arrojo exato.
(Rpida, a espuma lava as lgrimas da praia...)
Deus-Mar! Por ti vemos O Eterno e a Variedade:
a ti pedimos o que deste e o que negaste.
Se um dia foste em nosso lbio prata mvel,
branco alimento um dia fomos, em teu lbio,
triste despojo, corpo vo, dbil tributo...
Porque s assim, para te amarmo e possuirmos,
e em ti deixarmos nossa vida, mudamente,
dada ao que for vontade e lei no teu mistrio.
Deus-Mar, tranqilo, e inquieto, e preso e livre, antigo
e sempre novo indiferente e suscetvel!
Em cada praia deste mundo te celebram
os que te amaram por naufrgios e vitrias,
e religiosos se renderam, convencidos,
lio tcita dos smbolos martimos.

LIVRO: RETRATO NATURAL (1949)


POSTAL
Por cima de que jardim
duas pombinhas esto,
dizendo uma para a outra:
Amar, sim; querer-te, no?
Por cima de que navios
duas gaivotas iro
gritando a ventos opostos:
Sofrer, sim; queixar-me, no?

119

Em que lugar, em que mrmores,


que aves tranqilas viro
dizer noite vazia:
Morrer, sim; esquecer, no?
E aquela rosa de cinza
que foi nosso corao,
como estar longe, e livre
de toda e qualquer cano!

LIVRO: AMOR EM LEONORETA (1952)


AMOR EM LEONORETA
Leonoreta, finroseta,
bela sobre toda fror,
finroseta, non me meta
em tal coita vosso amor!
(do Amadis de Gaula)
I.
Pela noite nemorosa,
s por alma te procuro,
ai, Leonoreta!
Leva a seta um rumo claro,
desfechada no ar escuro...
O licorne beija a rosa,
canta a fnix do alto muro:
mas tal meu desamparo,
Leonoreta, finroseta,
que a chamar no me aventuro.
Rondo em sonho a tua porta,
por silncios esvada.
Ai, Leonoreta,
apesar de sofrer tanto,
sejas viva, sejas morta,
apesar de sofrer tanto,
puro amor minha vida.
Com trs sculos de pranto,
fez-se de sal a espineta
que me acompanhava o canto.
Leonoreta, finroseta,
branca sobre toda flor, ..
ai, Leonoreta,
nos bosques atrs do mundo,

120

por mais que eu no to prometa,


encontrars meu amor
desgraado mas jucundo,
sem desgosto e sem favor.
Leonoreta, no te meta
en gran coita a minha dor!
O licorne beija a rosa,
canta a fnix do alto muro...
Ai, Leonoreta,
salamandras e quimeras
vm saber o que eu procuro.
Pela noite nemorosa,
tornam-se os picos das eras
vales rasos de violetas...
No me digas que me esperas!
No me acenes com o futuro...
Eu sou das sortes severas,
Leonoreta, finroseta.
Ai, Leonoreta,
e s do sonho inseguro.

II.
Do teu nome no sabia,
mas buscava tua face.
E, se algum dia,
se de ti me aproximasse.
Leonoreta, finroseta,
Leonoreta!
exclamaria.
Meus olhos, ricos de amor,
sofriam de indiferena.
de que estrela,
ou que mundo, ou que planeta,
Leonoreta,
nascida a branca flor
em que, antes de a amar, se pensa,
mesmo sem precisar v-la...?
Das varandas da alta lua,
recordo o estremecimento:
era a tua
voz que me trazia o vento.
Finroseta!
Esta que apenas flutua,
mais leve que borboleta;
que, longe, nada insinua...
esta a voz de Leonoreta!

121

Podia morrer de pena.


E comecei a cantar-te.
Amor arte.
Mas a vida to pequena,
bela sobre toda flor!
to pequena para amar-te...
E em toda parte
causa espanto o meu amor.
Se como te ouvi me ouviras,
mais feliz no me fizeras.
sei que tanto
meu amor que, noutras eras,
Leonoreta,
vivers por esse encanto.
Mas to de outras esferas,
finroseta,
que no se ama, por enquanto...
Nem de ti desejo nada
seno saber que exististe.
A adorada
ausncia no me pe triste.
Nem te meta
en gran coita, Leonoreta,
se te vi mas no me viste:
que foste a mais derrotada...
Pois, se vi que no me queres,
tu no viste como te amo...
Leonoreta,
s terei do que me deres,
que, por mim, nada reclamo.
Meu amor flor sem ramo,
finroseta!
Por alheia no me feres:
sei teu nome e no te chamo.
Leonoreta,
finroseta,
no mais penso por onde andas...
Guardo por altas varandas
tua fala em meus ouvidos.
Leonoreta, que doura,
andar por onde estiveste!
A mais pura
imagem do amor celeste,
Leonoreta,
minha humana aventura.
Sem fogo que o lrio creste,
sem que o sangue comprometa

122

o sonho, pela criatura...


Ai, Leonoreta, quem eras,
Leonoreta, finroseta,
entre esfinges e quimeras,
branca sobre toda flor?
Teu semblante choraria
de alegria,
se te visses debuxada
pelo meu poder de amor.
Tu, que me no deste nada!
Que nem viste quem te via!
Leonoreta,
no te meta
em gran coita a minha dor:
se te amava, no sofria...

III.
Leonoreta,
finroseta,
longe vai teu vulto amado.
Porm resiste ao meu lado
o espao que ocuparias.
Leonoreta,
finroseta,
como poderei ser triste,
se a tua sombra resiste
e tu no resistirias?
Leonoreta,
finroseta,
no mais penso por onde andas...
Guardo por altas varandas
tua fala em meus ouvidos.
Leonoreta,
finroseta,
como os puros amadores,
eu vivo a bordar de flores
a sombra dos teus vestidos.
Leonoreta,
finroseta,
feliz da barca e da vela,
do vento que leva a bela
mo sobre saudosos mares...

Leonoreta,

123

finroseta,
no me vs, mas eu te vejo.
No te quero nem desejo:
morrerei, se suspirares.

IV.
Morrerei, se suspirares,
Pois, se s o meu grande bem,
se eu te vejo sobre os mares,
Leonoreta,
se mais ningum
para mim valia tem,
finroseta,
sofrendo por te afastares,
bela sobre toda flor
(que todos os meus pesares
so por saudades do amor),
Leonoreta,
se tambm
por mim visse que sofrias,
quando tudo to alm...
Leonoreta,
no te meta
en gran coita a minha dor...
No venhas por onde eu for,
que eu nunca fui por onde ias!
No venhas, que s o meu bem,
ai!
outras so as companhias,
porm.
Leonoreta,
finroseta:
olha os sonhos singulares
que existem porque no vm...
V.
Pela celeste ampulheta,
flui-me a vida em cinza breve,
sem que eu saiba aonde me leve,
Leonoreta,
O enlevo que foi to raro,
o sonho que era to certo,
o amor que, apesar de claro,
nem foi visto, de encoberto.
Desconheo a quem remeta
a experincia a que me entrego:

124

todos querem amor cego,


Leonoreta,
e o meu clarividente.
Amor cego, fiel, cativo,
todos querem. E eu, somente,
sei do isento e sem motivo...
Grave amor que no submeta
asas prprias nem alheias,
amor de lmpidas veias,
Leonoreta,
onde o tempo eternidade,
e alegrias e tristezas
so igual felicidade,
indelevelmente acesas.
Que meteoro, que cometa
conhece campo florente
em que prospere a semente
Leonoreta,
deste amor que te proponho?
Amor que apenas contemplo,
em que sou meu prprio sonho,
flor de meu silncio e exemplo?

VI.
Leonoreta,
finroseta,
deixo meus olhos fechados
sobre os acontecimentos.
No te meta
em gran coita o meu amor:
podem, por todos os lados,
duros, tenebrosos ventos
quebrar muitas tentativas.
Mas, para que eterna vivas,
que preciso?
Que pensem meus pensamentos.
E entre polos inviolados,
entre equvocos momentos,
vem e volta a vida humana,
que se engana e desengana
em redor do Paraso.
Branca sobre toda flor,
a Vernica levanto,
num transparente estandarte:

125

Celebro por toda parte


a alegria de adorar-te
com o meu pranto.

VII.
Pela celeste ampulheta,
cai a cinza dos meus dias.
Cai a cinza do meu corpo,
da minha alma, Leonoreta,
e o tempo um lmpido sopro
que liberta de alegrias
e de queixas...
Leonoreta,
finroseta,
alta estrela, a minha sorte!
Pela celeste ampulheta,
vai-se a luz da primavera...
A ventura que se aprende
nos adeuses, Leonoreta,
vale o que neles se perde...
Tudo quanto sou te espera,
e me deixas...
Leonoreta,
no te meta
en gran coita a minha dor.
Puro sonho, a minha morte,
pura morte, o meu amor.

LIVRO: DOZE NOTURNOS DA HOLANDA (1952)

SEIS
E a noite passava sobre palcios e torres.
Mas tudo era idntico plancie,
pois a noite voa muito longe,
e as altitudes ficam esmaecidas.
Sim, a noite podia ser um barco imenso,
com um vago sentimento de tristeza
encrespando-lhe nos flancos silenciosa espuma exgua
e bordando-lhe a passagem de suspiros.
Porque tudo no era igual,

126

ah! Como se sentia que tudo jamais seria igual,


apesar da distncia, da altura, do silncio...
porm tudo era equivalente,
equivalente e provisrio:
espada, msica, cifra, lgrima, pssaro nas dunas.
E ao mesmo tempo era belo,
e a uniforme, aparente fraternidade
inclinava tudo num unnime sono.
E as idias desmanchavam-se em galerias obscuras,
porque a noite passava cada vez mais longe,
e tudo quanto ao sol toma relevo
na noite mundo submerso, nevoento e generalizado.
Eu me sentia proa da noite,
envolta naquele sopro melanclico,
eflvio da humana reflexo.
E desejava mergulhar, descer por aquela torrente de sombra,
sentir os sonhos, ardentemente,
em cada casa, em cada quarto
entre os cabelos esparsos nos largos travesseiros.
Mas o sonho uma propriedade inefvel:
e nem se poderia sentir a sua exalao,
como nas flores, ao menos, essa notcia, que o perfume,
ou seu movimento,
como, s vezes, na pequena palavra que se confessa,
na pequena lgrima que, s vezes, cai.
Os sonhos no pertencem nem s cabeas adormecidas:
porque a noite os absorve, leva, anula,
ou continua, transfere, confunde,
longe, alta, poderosa, inumana.

SETE
Tudo jaz, diludo e cintilante, numa profunda nvoa.
Nada, porm, se perde ou esquece, embora to finamente
disperso nessa grandeza.
Gastam-se as imagens e os smbolos; mas a essncia resiste.
Realejos e sinos vibram, com as hlices, os cnticos e os gritos,
e tudo som, naqueles silenciosos corredores,
e a doce luz habita mil esconderijos,
tal como foi em seus inmeros momentos,
em olhos, flor, seda, chaga e pedra preciosa.
E em difanas balanas pairam diamante e plen,
bibliotecas e arsenais.
Tudo se encontra nesta bruma:
o burburinho histrico, a vtima e o carrasco;
a melodia da sereia nrdica, proa do barco da conquista;
plumas e arcabuzes,

127

o passo do fantasma por areas escadas,


praga e suspiro, acontecimento e remorso...
Tudo paira na estrutura da noite,
em seus arquivos superpostos.
To longe vai o rastro exguo das gaivotas
como o odor das praias e o rumor grandioso das mquinas.
Rarefeita anatomia da paisagem,
onde cada elemento se faz translcido,
frgil e rijo como a asa dos insetos e a flexo do pensamento.
Finssimas pontes transpem a noite:
desenhos agudos prendendo as disjunes.
E quem segura a noite, assim carregada desses escombros
que luz do sol parecem grandiosos bens indispensveis?
Homem, objeto, fato, sonho,
tudo o mesmo, em substncia de areia,
tudo so paredes de areia, como neste solo inventado:
mar vencido, fauna extenuada, flora dispersa,
tudo se corresponde:
zune o caramujo na onda com o mesmo som do lbio de amor
e da voz de agonia.
Os abraos, as nuvens, o outono pelo parque
tm o mesmo gesto, grave, precrio, fluido.
Ah, e os louros cabelos cariciosos, e a luminosa plpebra,
e as razes pertinazes, e os ossos foscos,
e a minha deslumbrada viglia e a memria do universo
tudo est ali, mais a luz confusa que envolve a lua,
mais o claro do plo e as hbridas guas,
e tudo se desfolha sobre lugares invisveis
num outro reino que apenas a noite alcana.

OITO
Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as rvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?
Que vale o pensamento humano,
esforado e vencido,
na turbulncia das horas?
Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?
Que valem as plpebras da tmida esperana,
orvalhadas de trmulo sal?
O sangue e a lgrima so pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.
E o homem to inutilmente pensante e pensado
s tem a tristeza para distingui-lo.
Porque havia nas midas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistrio humano:

128

grandes como prticos, suaves como veludo,


mas sem lembranas histricas,
sem compromissos de viver.
Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e lmpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noes de gua e de primavera nas tranqilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.
Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabea,
e comeavam a puxar as imensas rodas do dia.
Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!

LIVRO: O AERONAUTA (1952)


LIVRO: ROMANCEIRO DA INCONFIDNCIA (1953)
Romance VIII ou do Chico-Rei
Tigre est rugindo
nas praias do mar.
Vamos cavar a terra, povo,
entrar pelas guas:
O Rei pede mais ouro, sempre,
para Portugal.
O trono de lua,
de estrela e de sol.
Vamos abrir a lama, povo,
remexer cascalho,
guarda na carapinha, negra,
o vu do ouro em p!
Muito longe, em Luanda,
era bom viver.
Bate a enxada comigo, povo,
desce pelas grotas!
L na banda em que corre o Congo
eu tambm fui Rei.
Toda a terra mina:
O ouro se abre em flor...
J est livre o meu filho, povo,
vinde libertar-nos,
que reis, meu Prncipe, cativo,
e ora forro sois!
Mais ouro, mais ouro,
ainda vm buscar.

129

Dobra a cabea, e espera, povo,


que este cativeiro
j nos escorrega dos ombros,
j no pesa mais!
Olha a festa armada:
vermelha e azul.
Canta e dana agora, meu povo,
livres somos todos!
Louvada a Virgem do Rosrio,
vestida de luz.
Tigre est rugindo
nas praias do mar...
Hoje, os brancos tambm, meu povo,
so tristes cativos!
Virgem do Rosrio, deixai-nos
descansar em paz.

LIVRO: POEMAS ESCRITOS NA NDIA (1953)


MULTIDO
Mais que as ondas do largo oceano
e que as nuvens nos altos ventos,
corre a multido.
Mais que o fogo em floresta seca,
luminosos, flutuantes, desfrisados vestidos
resvalam sucesivos,
entre as pregas, os laos, as pontas soltas
dos embaralhados turbantes.
Aonde vo esses passos pressurosos, Bhai?
A que encontro? a que chamado?
em que lugar? por que motivo?
Bhai, ns, que parecemos parados,
por acaso estaremos tambm,
sem o sentirmos,
correndo, correndo assim, Bhai, para to longe,
sem querermos, sem sabermos para onde,
como gua, nuvem, fogo?
Bhai, quem nos espera, quem nos receber,
quem tem pena de ns,
cegos, absurdos, errticos,
a desabarmos pelas muralhas do tempo?

PARTICIPAO
De longe, podia-se avistar o zimbrio e os minaretes

130

e mesmo ouvir a voz da orao.


De perto, recebia-se nos braos
aquela arquitetura de arcos e escadas,
mrmores reluzentes e tetos cobertos de ouro.
De mais perto, encontrava-se cada pssaro
embrechado nas paredes,
cada ramo e cada flor,
e a fina renda de pedra que bordava a tarde azul.
Mas s de muito perto se podia sentir a sombra das mos
que outrora houveram afeioado
coloridos minerais
para aqueles desenhos perfeitos.
E o perfil inclinado do arteso,
ido no tempo annimo,
um dia ali de face enamorada de seu trabalho,
servo indefeso.
E s de infinitamente perto se podia ouvir
a velha voz do amor naquelas salas.
( jorros de gua, finssimas harpas!)
E os nomes de Deus, inmeros,
em lbios, paredes, almas...
( longas lgrimas, finssimos aroios!)
Pobreza, riqueza,
trabalho, morte, amor,
tudo feito de lgrimas.

MSICA
Ia to longe aquela msica, Bhai!
E o luar brilhava. Mas, por mais que o luar brilhasse,
no se sabia quem tocava e em que lugar.
Pelos degraus daquela msica, Bhai,
podia-se ir alm do mundo, alm das formas,
e do arabesco das estrelas pelo cu.
Quem tocaria pela solido, Bhai,
na clara noite toda azul como o deus Krishna
alheio a tudo, reclinado contra o mar!
Ia to longe a tnue msica, Bhai!
E era no entanto uma pequena melodia
tmida, triste, em dois ou trs lmpidos sons.
To frgil sopro em flauta rstica, Bhai!
como o da vida em nossos lbios provisrios...

131

amor? queixume, pensamento? nomes no ar...


Ele tocava sem saber que o ouvido, Bhai,
podia haver acompanhado esse momento
da sua rpida presena em frgil voz.
E ia to longe aquela msica, Bhai!
Com quem falava, entre a gua e anoite? e que dizia?
(Da vida morte, que dizemos, Bhai, e a quem?)

GOLCONDA
Meu peito mesmo Golconda:
pssaros esto colhendo
esmeraldas e diamantes
e h caadores de ronda.
Tumbas de reis e rainhas
vo-se afundando em silncio
no invencvel p do tempo
dono das saudades minhas.
Cada diamante guardado
para ladres inquietos
que partilham as centelhas
do ntegro sol cobiado.
Ai, que meu peito Golconda,
com razes de esmeralda,
com cataratas de luzes
e os assaltantes de ronda.
Cristalino parapeito
da morte! Sombras do mundo,
mos do roubo, falsos olhos,
passai. Golconda o meu peito.

TAJ-MAHAL
Somos todos fantasmas
evaporados entre gua e frondes,
com o luar e o zumbido so silncio,
a msica dos insetos,
gaze tensa na solido.
De vez em quando, borbulha dgua:
prola desabrochada,
sbito jasmim de cristal aos nossos ps.
Fantasmas de magnlias, as cpulas brancas,
orvalhadas de estrelas, na friagem noturna.

132

Tudo como atravs de lgrimas,


com as bordas franjadas de antiguidade,
de indecisos limites,
e um vago aroma vegetal, logo esquecido.
Tudo celeste, inumano, intocvel,
subtraindo-se ao olhar, s mos:
fuga das rendas de alabastro e dos jardins minerais,
com lrios de turquesa e calcednia
pelas paredes;
fuga das escadas pelos subterrneos.
E os ps naufragando em sombra.
Eis o sono da rainha adorada:
longo sono sob mil arcos, de eco em eco.
(Fuga das vozes, livres de lbios, independentes,
continuando-se...)
Vm morrer castamente os bogaris sobre os tmulos.
Movem-se apenas sedas, xales de l,
alvuras: como sem corpo nenhum.
Tudo mais est imvel, exttico:
mesmo o rio, essa vencida espada dgua:
mesmo o lago, esse rosto dormente.
Entre a morte e a eternidade, o amor,
essa memria para sempre.
Foi uma borbulha dgua que ouvimos?
Uma flor que desabrochou?
Uma lgrima na sombra da noite,
em algum lugar?

LIVRO: CANES (1956)

133

Muitos campos tnues


que se inclinam plidos:
flores decadentes
por todos os lados.
Grandes nuvens lricas,
ventos e astros lnguidos
a alta noite fria
clareando e sombreando.
Que vitria etrea
de guerreiros lmpidos!
Mira a brava guerra
sonhos decorridos.
Desce no tempo ngreme
o planeta rpido.
Todo de ouro, o instinto
imobilizado.
E os nomes nos tmulos,
frgil cinza vria...
Quebrados escudos,
abolidas armas.

Se me atravessas a espada,
natural que fique
na carne amargurada
um mudo sangue triste.
No falaremos mais nada,
pois, de tudo que disse,
resta a alma equivocada
com seu puro convite.
Uma celeste chamada
por algum que no vive
apagar a culpada
mo com seu duro crime.
Eu, para sempre calada,
acharei muito simples
que a alma eterna dobrada
seja e (a teus olhos) finde.
(Que a doce loucura amada
do firmamento incline
amor e morte, em cada
noite, nesta plancie!)

134

LIVRO: METAL ROSICLER (1960)


35
Parecia que ia morrendo
sufocada.
Mas logo de seu peito vinha
uma trmula cascata,
que aumentava, que aumentava
com borboletas de espuma
e fogo e prata.
Parecia que ia morrendo
de loucura.
Mas logo rpida movia
no sei que vaga porta escura
e, mais tnue que o sol e a lua,
passava entre fitas e rosas
sua figura.
Parecia que ia morrendo
em segredo.
Mas uma rumorosa vida
rugia mais que oceano ou vento
nas suas mos em movimento.
Agarrava o tempo e o destino
com um gil dedo.
Parecia que ia morrendo
e revivia.
E girava saias imensas,
maiores do que a noite e o dia.
Rouca, delirante, aguerrida,
pisando a morte e os maus agouros,
ol! dizia.

LIVRO: SOLOMBRA (1963)


Pelas ondas do mar, pelas ervas e as pedras,
pelas salas sem luz, por varandas e escadas
nossos passos esto j desaparecidos.
Dilogos foram frgeis nuvens transitrias.
Multides correm como rios entre areias
inexorveis, esvaindo-se em distncia.
Meus olhos vagos, que j viram tanta morte,
firmam-se aqui: voragens, quedas e mudanas
tornam-me em lgrima. derrotas! naufrgios...
A solido tem duras leis: conhece aquela
insuficincia de comandos e poderes.
Sabe da angstia de limites e fronteiras.

135

Entre mos tristes, v-se a harpa imvel.


8
Arco de pedra, torre em nuvens embutida,
sino em cima do mar e luas de asas brancas...
Meu vulto anda em redor, abraado a perguntas.
Anda em redor minha alma: e a msica e a ampulheta
desmancham-se no cu, nas minhas mos dolentes,
e a vastido doa mor fragmenta-se em mosaicos.
calma arquitetura onde os santos passeiam
e com olhos sem sono observam labirintos
de terra triste em que os destinos se entrelaam.
... presa estou, como a rosa e o cristal nas arestas
de exatas cifras delicadas que se encontram
e se separam: em polgonos de adeuses...
Alada forma, onde coincidimos?

22
Sobre um passo de luz outro passo de sombra.
Era belo no vir; ter chegado era belo.
E ainda belo sentir a formao da ausncia.
Nada foi projetado e tudo acontecido.
Movo-me em solido, presente sendo e alheia,
Com portas por abrir e a memria acordada.
A acordada memria! esta planta crescente
com mil imagens pela seiva resvalantes,
na noite vegetal que a mesma noite humana.
Vejo-me longe e perto, em meus ntidos moldes,
em tantas viagens, tantos rumos prisioneira,
a construir o instante em que direi teu nome!
Que labirintos bebem meu rosto?

Tomo nos olhos delicadamente


esta noite jardim de puro tempo
com ramos de silncio unindo os mundos.
Tudo quanto quisesse aqui se encontra:
nos arroios de estrelas pelos bosques
onde h risos (e prximos soluos?).
Sinto perfume e orvalho imagens tnues
que inventa a solido, para fazer-se
de repente saudade. E vejo em tudo
essas cansadas lgrimas antigas,
essas longas histrias sucessivas

136

com seus beros e guerras glrias? tmulos.


Recolho a noite em minhas plpebras.

12
Falo de ti como se um morto apaixonado
falasse ainda em seu amor, sobre a fronteira
onde as coroas desta vida se desmontam.
Sem nada ver, sigo por mapas de esperana?
vento sem braos, vou sonhando encontros certos,
gua cada, penso-me em cristal segura.
Ah, meus caminhos, ah, meu rosto audaz e grave!
O claro sol, as altas sombras, a onda inquieta
e o vasto olhar das grandes noites acordadas!
E abre-se o mundo por mil portas simultneas.
Quem aparece? E outras mil portas sobre o mundo
se fecham. Tudo se revela to perene
que eu que sou translcida morta.

17
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que no se recusa a esse final convite,
em mquinas de adeus, sem tentao de volta.
Todo horizonte um vasto sopro de incerteza.
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
j de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada maior que a vivente,
dizei-me: no quereis ou no sabeis ser sonho?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento, em meus clios guardadas
vo as medidas que separam os abraos.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
Agora s livre, se ainda recordas.

Quero roubar morte esses rostos de ncar,


esses corais da aurora, esses vus de safira,
e antes que em mim tambm se acabe o vu das plpebras.
Roubo a seta que vi passar sobre os meus clios,
agora que o ar descai no espao atravessado,
e antes que em mim tambm se acabe o cu das plpebras.
E por dias sem fim, na imprevista memria
que o sonho lavra em pedras negras e rebeldes,
estanhas cenas brilharo, vastas e tmidas.

137

Este era o acaso a que serviram minhas lgrimas?


Esta era a doce escravido da minha vida?
Isto era toda a tua glria este resduo?
E morte roubo minha alma, apenas?

Nuvens dos olhos meus, de altas chuvas paradas,


por chos de adeuses vo-se os dias em tumulto,
em noites ermas e saudades longe morre.
Sem testemunha vo passando as horas belas.
Tudo que pde ser vitria cai perdido,
Sem mos, sem posse, pela sombra, entre os planetas.
Tudo no espao desprendido de lugares.
Tudo no tempo separado de ponteiros.
E a boca apenas instrumento de segredos.
Por que esperais, olhos severos, grandes nuvens?
Tudo se vai, tudo se perde, e vs, detendo,
num preso cu, fora da vida, as guas densas
de inalcanveis rostos amados!

13
Como trabalha o tempo elaborando o quartzo,
tecendo na gua e no ar anmonas, cometas,
um pensamento gira e inferno e cu modela.
Brandamente suporta em delicados moldes
enigmas onde a noite e o dia pousam como
borboletas sem voz, doce engano de cinza.
Levemente sustenta a grcil estrutura
da verdade que o anima. E a cada instante sofre
de saber-se to tnue e to perto da runa.
( Vernica acesa em secreta paisagem,
to esperada e amada em tristeza e ventura,
malgrado o peso dos enganos e saudades,
e do exerccio das despedidas!)

138

O CAVALO MORTO
Vi a nvoa da madrugada
deslizar seus gestos de prata,
mover densidades de opala
naquele prtico de sono.
Na fronteira havia um cavalo morto.
Gros de cristal rolavam pelo
Seu flanco ntido; e algum vento
torcia-lhe as crinas, pequeno,
leve arabesco, triste adorno,
e movia a cauda ao cavalo morto.
As estrelas ainda viviam
e ainda no eram nascidas
ah! as flores daquele dia ...
mas era um canteiro o seu corpo:
um jardim de lrios, o cavalo morto.
Muitos viajantes contemplaram

139

a fluida msica, a orvalhada


das grandes moscas de esmeralda
chegando em rumoroso jorro.
Adernava triste, o cavalo morto.
E viam-se uns cavalos vivos,
altos como esbeltos navios,
galopando nos ares finos,
com felizes perfis de sonho.
Branco e verde via-se o cavalo morto,
no campo enorme e sem recurso
e devagar girava o mundo
entre as suas pestanas, turvo
corno em luas de espelho roxo.
Dava o sol nos dentes do cavalo morto.
Mas todos tinham muita pressa,
e no sentiram como a terra
procurava, de lgua em lgua,
o gil, o imenso, o etreo sopro
que faltava quele arcabouo.
To pesado, o peito do cavalo morto!

PROFUNDIDADE
Que o alado capitel e a serena cornija em nuvens se desenrolem,
e a alta janela desate os seus braos e em cus tnues perca seu gesto,
que a esttua com seu nome se veja partida em grandes escombros neutros,
que as escadas no tenham mais finalidade e os olhos no as entendam,
ah, tudo isso um vago desastre de andaime e poeira...
Mas o alicerce enterrado persiste, embora os homens sintam somente
um musgo mais denso que enreda os passos da loucura e atrasa a morte.

O RAMO DE FLORES DO MUSEU


1
cinrea Princesa, as vossas flores
ficaro para sempre mais perfeitas,
j que o tempo extinguiu brilhos e cores;
j que o tempo extinguiu a habilidosa
mo que elevou, serenas e direitas,
a tulipa sucinta e a ardente rosa.
No h mais iluso de outra presena
que a do Amor, que inspirou graas to finas
que ningum viu e em que ningum mais pensa
porque os homens e o mundo so de runas.
E este ramo de ptalas franzinas,

140

leve, liberto da mortal sentena,


tinha, Princesa, fbulas divinas
em cada flor, sobre o nada suspensa.

2
Que fantasmas lero, nas incolores
ptalas, as mensagens no aceitas
em ntidos momentos anteriores?
Que fantasmas vero a vossa airosa
figura erguendo as claras mos desfeitas,
noutro imprio, a uma luz mais gloriosa?
cinrea Princesa, muito densa
no mundo humano a trama das neblinas. . .
A floresta do absurdo negra, imensa,
e as sibilas se escondem, repentinas.
Crepitam os junquilhos e as boninas
a um vento secular de indiferena.
Mas, entre vs paredes vespertinas,
o ramo existe, sem que a morte o vena.

Apenas uma sandlia


medieval.
O que ainda resta das danas,
dos torneios e cantigas,
de esperanas,
das amigas e inimigas
de um vago dia feudal.
To pequena para o peso
de qualquer vida calada
que, embora no seja nada,
foi amor? desprezo?
ficou sobrenatural.
Sob a orla de que vestidos?
Em que duros pavimentos?
Que coraes feridos?
Por entre que pensamentos,
a pisar o Bem e o Mal?
No breve tempo do mundo,
tnue p de tnue dona
esta sandlia abandona
como um pequeno sinal.
s metade do passo
no espao.
Jaz a outra em limiar profundo?
Apenas uma sandlia
medieval.

141

PRESENA EM POMPIA
Esta conta no pagars:
ficar sob uma cinza que no sabes.
Sob a cinza que ainda no sabes
ficar teu filho por nascer
e tambm os meninos que j sabiam desenhar nos muros.
Ficaro os figos que ontem puseste na cesta.
Ficaro as pinturas da tua sala
e as plantas do teu jardim, de esttuas felizes,
sob a cinza que no sabes.
Os gladiadores anunciados no lutaro
e amanh no vers, prximo s termas,
a mulher que desejavas.
Tu ficars com a chave da tua porta na mo;
tu, com o rosto da amada no peito;
amo e servo se uniro, no mesmo grito;
os ces se debatero com mordaas de lava;
a mo no poder encontrar a parede;
os olhos no podero ver a rua.
As cinzas que no sabes voaro sobre Apolo e sis.
uma noite ardente, a que se prepara,
enquanto a luz contorna a coluna e o jato d'gua:
a luz do sol que afaga pela ltima vez as roseiras verdes.
FAISO PRATEADO
Quem trouxe o faiso prateado
para a sombra d meus ramos?
No meu, no se demora,
e esto meus olhos chorando.
Tem longas plumas de adeuses,
tem asas tnues de cinza.
Tem uma voz de lonjura
dilatada na pupila.
Ah, o faiso prateado!
Com seus modos de safira,
em finos corais pousado,
vai fugindo e vai cortando,
meu corao, como um barco.
No te quero! No te quero!
S pergunto quem te trouxe.
Tristezas de nunca e de sempre
no se comparam s de hoje.
Ah, o faiso prateado!
Bem que canto No te quero,
como algum que nada sofre.

142

Deus sabe quanto me custa.


Deus sabe e no e no me socorre.
ROMANTISMO
Seremos ainda romnticos
e entraremos na densa mata,
em busca de flores de prata,
de areos, de invisveis cnticos.
Nas pedras, sombra, sentados,
respiraremos a frescura
dos verdes reinos encantados
das lianas e da fonte pura.
E to romnticos seremos,
de to magoado romantismo,
que as folhas dos galhos supremos
que se desprenderem no abismo
pousaro na nossa memria
secas borboletas cadas
e choraremos sua histria,
resumo de todas as vidas.
CARTA
Eu, sim. Mas a estrela da tarde, que subia e descia o cu, cansada e esquecida?
Mas os pobres, batendo s portas, sem resultado, pregando noite e o dia com seu punho seco?
Mas as crianas, que gritavam de corao alarmado: por que ningum nos responde?
Mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mos estendidas toa?
Mas o Santo imvel, deixando as coisas continuarem seu rumo?
E as msicas dentro de caixas, suspirando de asas fechadas?
Ah! Eu, sim porque j chorei tudo, e despi meu corpo usado e triste,
e as minhas lgrimas o lavaram, e o silncio da noite o enxugou.
Mas os mortos, que dentro do cho sonhavam com pombos leves e flores claras,
mas os que no meio do mar pensavam na mensagem que a praia desenrolaria rapidamente at seus
dedos...
Mas os que adormeceram, de to excessiva viglia e eu no sei mais se acordaro...
e os que morreram de tanta espera... e que no sei se foram salvos.
Eu, sim. Mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto da vida,
no sei se te olharam como eu,
renascida de mim, e desprovida de vinganas,
no dia em que precisares de perdo.
QUELUZ
Fui visitar a Rainha,
livre de tanta desgraa.
Por seus jardins demorei-me,
beira de espelhos dgua.
Nem os prprios jardineiros
saberiam quem buscava.
Dona Maria Primeira,
j to morta e embalsamada,

143

por entre bosques e tanques,


veio andando, antiga e clara.
(Assim coberta de sonho,
quem de to longe chegara
simplesmente para v-la,
sem ter que lhe pedir nada?)
Ah, como os sculos morrem...
Filhos, pais, tudo se apaga.
Pombal? Um nome perdido.
Perdidos Aveiro e Tvora.
Lafes? Quem era? Quem fora?
Toda a corte, mera fbula.
Serenins e ladainhas?
espuma sem qualquer praia.
As jias de seu cabelo?
flores de gelo em vidraa.
As sedas dos seus vestidos?
simples aragem drapeada...
A mo, que bondosa e triste,
tanto decreto assinara,
e que foi, morta e rugosa,
solenemente beijada,
menos do que as folhas secas,
pela tarde resvalava...
Dona Maria Primeira,
difana e clara, se afasta.
Nem o vestido da chuva
to leve nos ares passa.
Deixa seu palcio rseo,
sobe para a sua esttua.
Os jardineiros no viam
quem perto deles andava:
Fluida, vaga transparncia
que a verde tarde arregaa.
De tudo, restou-me, apenas,
entre os clios, uma lgrima.

AS VALSAS
Como se desfazem as valsas
por longos pianos areos
que a noite envolve em suas chuvas!
Que ternura nas nossas plpebras,
pelo exlio suave dos gestos
e dos perfis de antigas msicas!
Os marfins opacos recordam,
com uma graa desiludida,
a aura da morta formosura.
Gente de sonho, sem memria,
entrelaada, conduzida
por sales de esperanas e dvida.

144

E eram to leves, nessas valsas!


E levavam lgrimas entre
seus colares e suas luvas!
E falavam de suas mgoas,
valsando, e delicadamente,
com a voz presa e as pestanas midas!
Ah, to longe, to longe, as salas...
Levados os lustres e as vidas,
o amor triste, a humildade loucura...
Ficaram apenas as valsas,
girando cegas e sozinhas,
sem os habitantes da msica!

CAMILO PESSANHA
CAMINHOS
II.
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de qu, nem eu o sei.
Bom dia, companheiro te saudei,
Que a jornada maior indo sozinho.
longe, muito longe, h muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
no monte escabroso, solitrio.
Corta os ps como a rocha dum calvrio,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III.
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordes da caminhada,
Vai j rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
To virgem no o temos na jornada...
Enchamos as cabaas: pela estrada,
Daqui inda este nctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar s todo o caminho,
Eu posso resistir grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,

145

E ter f e sonhar encher a alma.


INSCRIO
Eu vi a luz em um pas perdido.
A minha alma lnguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem rudo!
No cho sumir-se, como faz um verme...
Tatuagens complicadas do meu peito:
Trofus, emblemas, dois lees alados...
Mais, entre coraes engrinaldados,
Um enorme, soberbo amor perfeito...
E o meu braso... Tem de oiro num quartel
Vermelho, um lis; tem no outro uma donzela,
Em campo azul, de prata o corpo, aquela
Que no meu brao como que um broquel.
Timbre: rompante, a megalomania...
Divisa: um ai, que insiste noite e dia
Lembrando runas, sepulturas rasas...
Entre castelos, serpes batalhantes,
E guias de negro, desfraldando as asas,
Que reala de oiro um colar de besantes!
FONGRAFO
Vai declamando um cmico defunto,
Uma plata ri, perdidamente,
Do bom jarreta... E h um odor no ambiente
A cripta e a p, do anacrncio assunto.
Muda o registo, eis uma barcarola:
Lrios, lrios, guas do rio, a lua...
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um Paul, exttica corola.
Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
Dum clarim de oiro o cheiro de junquilhos,
Vvido e agro! tocando a alvorada...
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manh. Que eflvio de violetas!
Desce em folhedos tenros a colina:
Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quais a chama do furor declina...
Oh vem de branco, do imo da folhagem!
Os ramos, leve, a tua mo aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,
Reflectir-te virgem a serena imagem.

146

De silva doida uma haste esquiva


Quo delicada te osculou num dedo
Com um aljfar cor de rosa viva!...
Ligeira a saia... Doce brisa impele-a...
Oh vem! De branco, do imo do arvoredo...
Alma de silfo, carne de camlia...
Esvelta, surge! Vem das guas, nua,
Timoneando uma concha alvinitente!
Os rins flexveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.
Sem vil pudor! Do que h que ter vergonha?
Eis-me formoso, moo e casto, forte.
To branco o peito! para o expor Morte...
Mas que ora a infame! no se anteponha.
A hidra torpe!...Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro rocha onde a cabea te h-de,
Com os cabelos escorrendo gua,
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Depois da luta e depois da conquista
Fiquei s! Fora um acto antiptico!
Deserta a Ilha, e no lenol aqutico
Tudo verde, verde, a perder de vista.
Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!
Quem vos desfez, formas inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
Leo armado, uma espada nos dentes?
Felizes vs, mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Reflectindo as estrelas, boquiabertos...

Quem poluiu, que rasgou os meus lenis de linho,


Onde esperei morrer, meus to castos lenis?
Do meu jardim exguo os altos girassis
Quem foi que os arrancou e lanou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, tbua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
minha pobre me!... No te ergas mais da cova,

147

Olha a noite, olha o vento. Em runa a casa nova...


Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
No venhas mais ao lar. No vagabundes mais.
Alma da minha me... No andes mais neve,
De noite a mnedigar s portas dos casais.

I
Tenho sonhos cruis: nalma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
Saudades desta dor quem em vo procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o corao dum vu escuro!...
Porque a dor, esta falta dharmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o cu dagora,
Sem ela o corao quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque s madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de qu, nem eu o sei.
Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada maior indo sozinho.
longe, muito longe, h muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
no monte escabroso, solitrio.
Corta os ps como a rocha dum calvrio,
E queima como a areia!... Foi no entanto
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordes da caminhada,
Vai j rompendo o sol: vamos embora.
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
To virgem no o temos na jornada...

148

Enchamos as cabaas: pela estrada,


Daqui inda este nctar avigora!...
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar s todo o caminho,
Eu posso resistir grande calma!...
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter f e sonhar encher a alma.
ESTTUA
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, frio escalpelo
O meu olhar quebrei, a debat-lo,
Como a onde na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsesso! Para beb-lo
Fui teu lbio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu sculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mrmore correcto
Desse entreaberto lbio gelado...
Desse lbio de mrmore, discreto,
Severo como um tmulo fechado,
Sereno como um plago quieto.

OLVIDO
Desce por fim sobre o meu corao
O olvido. Irrevocvel. Absoluto.
Envolve-o grave como vu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixo.
A fronte j sem rugas, distendidas
As feies, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas no logradas ou perdidas.
O barro que em quimera modelaste
quebrou-se-te nas mos. Via uma flor...
Pes-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...
Ias andar, sempre fugia o cho,
At que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietao...
MADALENA
... e lhe regou de lgrimas os ps, e os enxugava com os cabelos da sua cabea.
Evangelho de S. Lucas.

149

Madalena, cabelos de rastos,


Lrio poludo, branca flor intil,
Meu corao, velha moeda ftil,
E sem relevo, os caracteres gastos,
De resignar-se torpemente dctil,
Desespero, nudez de seios castos,
Quem tambm fosse, cabelos de rastos,
Ensanguentado, enxovalhado, intil,
Dentro do peito, abominvel cmico!
Morrer tranqilo o fastio da cama...
redeno do mrmore anatmico,
Amargura, nudez de seios castos,
Sangrar, poluir-se, de rastos na lama,
Madalena, cabelos de rastos!

VIOLA CHINESA
Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda,
Sem que amadornado eu antenda
A lenga-lenga fastidiosa.
Sem que o me corao se prenda,
Enquanto nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.
Mas que cicatriz melindrosa
H nele que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitao dolorosa?
Ao longo da viola, morosa...

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES


S, incessante, um som de flauta chora,
Viva, grcil, na escurido tranqila,
Perdida voz que de entre as mais se exila,
Festes de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clares cintila
E os lbios, branca, do carmim desflora...
S, incessante, um som de flauta chora,
Viva, grcil, na escurido tranqila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detm. S modulada trila
A flauta flbil... Quem h de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razo deplora?
S, incessante, um som de flauta chora...

150

VNUS
I.
flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razo se perde!
Ptrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balano alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.
O seu esboo, na marinha turva...
De p flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os ps atrs, como voando...
E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co'a salsugem.

II.
Singra o navio. Sob a gua clara
V-se o fundo do mar, de areia fina...
Impecvel figura peregrina,
A distncia sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparncia luminosa
Repousam, fundos, sob a gua plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrgios, perdies, destroos!
flgida viso, linda mentira!
Rseas unhinhas que a mar partira...
Dentinhos que o vaivm desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

PAISAGENS DE INVERNO

I.
meu corao torna para trs,
Donde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! o sol! Volvei, noites de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...

151

Cismai, meu olhos, como os velhinhos.


Extintas primaveras, evocai-as:
J vai florir o pomar das macieiras.
Hemos de enfeitar os chapus de maias.
Sossegai, esfriai, olhos febris...
E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas...Doces vozes senis...

II.
Passou o outono j, j torna o frio...
outono de seu riso magoado.
lgido inverno! Oblquo o sol, gelado...
O sol, e as guas lmpidas do rio.
guas claras do rio! guas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vo cuidado?
Aonde vais, meu corao vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das guas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mos translcidas e frias...

SAN GABRIEL

I.
Intil! Calmaria. J colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que to altas nos topes tremularam,
Gaivotas que a voar desfaleceram.
Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram)
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que to longe nos trouxeram?
San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abenoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a plancie azul.
Vem-nos levar conquista final
Da luz, do Bem, doce claro irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!

II.

152

Vem conduzir as naus, as caravelas,


Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um monto de estrelas.
Outra vez vamos! Cncavas as velas,
Cuja brancura, rtila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar no mais deixes de envolv-las!
Vem guiar-nos, Arcanjo, nebulosa
Que do alm mar vapora, luminosa,
E noite lactescendo, onde, quietas,
Fulgem as velhas almas namoradas...
Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.

Depois da luta e depois da conquista


Fiquei s! Fora um ato antiptico!
Deserta a Ilha, e no lenol aqutico
Tudo verde, verde, a perder de vista.
Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!
Quem vos desfez, formas inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
Leo armado, uma espada nos dentes?
Felizes vs, mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...
Quem poluiu, quem rasgou os meus lenis de linho,
Onde esperei morrer, meus to castos lenis?
Do meu jardim exguo os altos girassis
Quem foi que os arrancou e lanou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, tbua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
minha pobre me!... No te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em runa a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
No venhas mais ao lar. No vagabundes mais,
Alma da minha me... No andes mais neve,
De noite a mendigar s portas dos casais.

153

Floriram por engano as rosas bravas


No inverno: veio o vento desfolh-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que h pouco me enganavas?
Castelos doidos! To cedo castes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vo tristes!
E sobre ns cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, ptalas, de leve
Juncando o cho, na acrpole de gelos...
Em redor do teu vulto como um vu!
Quem as esparze quanta flor! do cu,
Sobre ns dois, sobre os nossos cabelos?

NO CLAUSTRO DE CELAS
Eis quanto resta do idlio acabado,
primavera que durou um momento...
Como vo longe as manhs do convento!
Do alegre conventinho abandonado...
Tudo acabou... Anmonas, hidrngeas,
Silindras, flores to nossas amigas!
No claustro agora viam as ortigas,
Rojam-se cobras pelas velhas ljeas.
Sobre a inscrio do teu nome delido!
Que os meus olhos mal podem soletrar,
Cansados... E o aroma fenecido
Que se evola do teu nome vulgar!
Enobreceu-o a quietao do olvido,
doce, ingnua, inscrio tumular.

Foi um dia de inteis agonias.


Dia de sol, inundado de sol!...
Fulgiam nuas as espadas frias...
Dia de sol, inundado de sol!...
Foi um dia de falsas alegrias.
Dlia a esfolhar-se, o seu mole sorriso...
Voltavam ranchos das romarias.
Dlia a esfolhar-se, o seu mole sorriso...
Dia impressvel mais que os outros dias.
To lcido... To plido... To lcido!...
Difuso de teoremas, de teorias...
O dia ftil mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
To lcido... To plido... To lcido!...

154

Quando voltei encontrei os meus passos


Ainda frescos sobre a mida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
To rediviva! nos meus olhos baos...
Olhos turvos de lgrimas contidas.
Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?
Onde fostes sem tino, ao vento vrio,
Em redor, como as aves num avirio,
At que a asita fofa lhes falea...
Toda essa extensa pista para qu?
Se h de vir apagar-vos a mar,
Com as do novo rasto que comea...

Imagens que passais pela retina


Dos meus olhos, porque no vos fixais?
Que passais como a gua cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, no me levais?
Sem vs o que so os meus olhos abertos?
O espelho intil, meus olhos pagos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mos,
Flexo casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vos.

CASTELO DE BIDOS
Quando se erguero as seteiras,
Outra vez, do castelo em runa,
E haver gritos e bandeiras
Na fria aragem matutina?
Se ouvir tocar a rebate
Sobre a plancie abandonada?
E sairemos ao combate
De cota e elmo e a longa espada?
Quando iremos, tristes e srios,
Nas prolixas e vs contendas,
Soltando juras, improprios,
Pelas divisas e legendas?
E voltaremos, os antigos
E purssimos lidadores,
(Quantos trabalhos e perigos!)

155

Quase mortos e vencedores?


............................................
............................................
............................................
E quando, Doce Infanta Real,
Nos sorrirs do belveder?
Magra figura de vitral,
Por quem ns fomos combater...

ROTEIRO DA VIDA

I.
Enfim, levantou ferro.
Com os lenos adeus, vai partir o navio.
Longe das pedras ms do meu desterro,
Ondas do azul oceano, submergi-o.
Que eu, desde a partida,
No sei onde vou.
Roteiro da vida,
Quem que o traou?
Nalguma rocha ignota
Se vai despedaar, com violento fragor...
Mareante, deixa as cartas da derrota.
Maquinista, d mais fora no vapor.
Nem sei de onde venho,
Que azar me fadou!?...
Das mgoas que tenho,
Os ais por que os dou...
Ou siga, maldito,
Com a bandeira amarela...
.......................................
Pomares, chals, mercados, cidades...
A olhar da amurada,
Que triste que estou!
Miragens do nada,
Dizei-me quem sou...

II.
Nesgas agudas do areal
E gaivotas que voais em redor do navio,
Tornais o meu crebro mole,
Esmeralda viva do Canal
E desertos inundados de sol!
Meu pobre crebro inconseqente e doentio!

156

No qual uma rede se desenha,


Complicada, de sofrimentos irregulares...
guas que filtrais na areia!
Antes que o crepsculo venha,
O crepsculo e as larvas tumulares,
A impureza intil dissolvei-a.
Que o sol, sem mancha, o cristal sereno
Volatilize, ao seu doce calor,
A fria e exangue liquescncia...
Um hlito! No embaciar de veneno,
Indecisa, incolor,
Da areia o brilho e a viva transparncia.
Recortes vivos das areias,
Tomai meu corpo e abride-lhe as veias...
O meu sangue entornai-o,
Difundi-o, sob o rtilo sol,
Na areia branca como em um lenol,
Ao sol triunfante sob o qual desmaio!

III.
Cristalizaes salinas,
Mirrai na areia o plasma vivaz.
No se desenvolvam as ptomanas...
Que adocicado! Que obsesso de cheiro!
Putrescina: Flor de lils.
Cadaverina: Branca flor do espinheiro!
S o meu crnio, fique,
Rolando, insepulto, no areal,
Ao abandono e ao acaso do simum...
Que o sol e o sal o purifique.

Na cadeia os bandidos presos!


O seu ar de contemplativos!
Que das flores de olhos acesos?!
Pobres dos seus olhos cativos.
Passeiam mudos entre as grades,
Parecem peixes num aqurio.
Campo florido das Saudades,
Porque rebentas tumulturio?
Serenos... Serenos... Serenos...
Trouxe-os algemados a escolta.
Estranha taa de venenos
Meu corao sempre em revolta.
Corao, quietinho... quietinho...
Porque te insurges e blasfemas?
Pschiu... No batas... Devagarinho...
Olha os soldados, as algemas!

157

VIDA
Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliceas.
Foi bem fecunda, a estao pluviosa!
Que vigor no campo das liliceas!
Calquem. Recalquem, no o afogam.
Deixem. No calquem. Que tudo invadam.
No as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? No as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
a queimada... Que lumaru!
Podem calc-lo, deitar-lhe terra,
Que no apagam o lumaru.
Deixem! No calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta alm.
E se arde tudo? Isso que tem?

Deitam-lhe fogo, para arder...


POEMA FINAL
cores virtuais que jazeis subterrneas,
Fulguraes azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clares, cromticas vesnias,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,
As plpebras cerrai, ansiosas no veleis.
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
To graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da gua na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo no sondeis.
Gemebundo arrulhar dos sonhos no sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. No suspireis. No respireis.

BRANCO E VERMELHO
A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

158

Como um deserto imenso,


Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser, suspenso,
No sinto j, no penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delcia sem fim!
Na inundao da luz
Banhando os cus a flux,
No xtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distancia reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A intil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
At o cho, curvados,
Exaustos e curvados,
Vo um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as plpebras me tremem
Quando o aoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Palidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
Sob o aoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
At que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos.
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
cus claros e amenos,
Doces jardins amenos,

159

Onde se sofre menos,


Onde dormem as almas!
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
No sinto j, no penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor.
Que o estertor comea.
cumprir a promessa.
J o sonho comea...
Tudo vermelho em flor...

OITO ELEGIAS CHINESAS


I.
ASCENSO AO MIRADOIRO DO KIANG
Este altssimo torreo abandonado foi outrora clebre.
Aqui plantou seus estandartes, ornados de drages, o fundador da dinastia Han.
Defendia-o, como inultrapassvel fosso, a virtude do rei Eram suprfluos os circundantes canais.
Faziam-lhe guarda as prprias tribos brbaras. De que serviriam muralhas de pedra?
Hoje, como ento, a montanha esplende de rgia majestade.
Rolam do Kiang as guas; e cu e terra confundem as suas vozes outonais.
Da comoo que sente, assomando no alto, quem poderia ordenar o poema?
Pavilho novo, pavilho novo! de pungentes mgoas milenrias
Autor: Wang Yang Min
II.
NOITE, NO PEGO-DRAGO
De onde vem este perfume de flores, embalsamando a noite purssima?
Entre bouas e fragas, uma cabana de ola, perto da qual um arroio murmura
Como de costume, o eremita parte ao surgir a lua.
Em um covo do monte, um pssaro, poisado, ininterruptamente gorjeia.
No lhe importa que as ervas, impregnadas do orvalho, lhe encharquem as alparcatas de juna.
As suas vestes de ligeiro cnhamo, soergue-as, enviesando, a brisa primaveril
borda da torrente, intento fazer versos ao vio das orqudeas.
Embargam-mo as saudades, violentas empolgando-me, do Kiang Pei e Kiang-nan.
Autor: Wang Yang Min

160

III.
SOBRE O TERRAO
Os antigos mortos, invisivelmente
Vm ainda ao seu terrao antigo
J sopra da nona lua o vento lamentoso.
De os trs rios devem estar a chegar os gansos de arribao.
Cobrem nuvens a vastido dos dois Kuangs
Declina, plido, o sol, sobre Pang-Lai
Desterrado da ptria e sem noticias dela,
Para essas bandas volvo de contnuo os olhos.

IV.
EM U-CHANG
Em Hsian-Hsiang j quase outono,
Embora no caia ainda a folha nos jardins do Tung Ting.
noite, e da minha mansarda oio chover,
Sozinho, na cidade de U-Chang.
E lembram-me a amoreira e a catalpa da casa paterna,
Ao sentir perto as guas do Kiang e do Han
V entender algum a grulhada dos gansos,
O festivo alvoroo com que emigram!
V.
EVOCAES DO PASSADO
Eis-me o forasteiro de Ing Mas baldada romagem!
Emudeceram de Ing os afamados cnticos.
alto o pavilho para onde as beldades se retiraram.
A msica da Torrente a que ora modulam
Os tmulos das princesas para que lado ficam?
Sobre Hsian-Hsiang pairam nuvens negras.
Deste abandono, s eu penetro bem a essncia,
Do Kiang borda, desgarrado e triste.

VI.
FANTASIA DA PRIMAVERA
Cai o sol, no imenso horizonte, em flor, do Kiang.
Pra o viandante a olhar. A chuva, que do arvoredo ainda goteja, vai-lhe repassando a tnica
Oh! Se dos mil chores, volta das runas do palcio real de Chu,
As flores soltas me fizessem cortejo, despedida, no regresso ptria!

161

VII.
SOLEDADE
Deleita-me a solido desta choupana
Mas di-me ao recordar vozes amigas.
Sim, geme o verdelho, mas em pas de exlio.
Conturba-me a cor da relva o corao, que remoa.
Desce o sol, em um poente de cirros amarelos.
Passam nuvens sobre o mar, que mais ferrete.
Segunda lua E, na algaravia dos grasnidos,
Oio os gansos darem o alarme pra o regresso.

VIII.
QUEIXUME DAS ESPOSAS DO HSIANG
Ilhus do Norte do Hsiang, onde as orqudeas se ceifam!
Plainos do Sul do Lai, onde se talham as essncias de preo!
As guas, puras, tm cromatismos de gata;
Subtil, a brisa vibraes de jada.
Sobe a nvoa, entre as sombras do Tsang-u.
Baixa o sol entre as brumas do Ting-tang...
As penas dos bambus, quem que as sabe?
Mas bem se lhes vem os sinais das lgrimas.

CAMES
[Super Flumina...]
Sbolos rios que vo
por Babilnia, machei,
Onde sentado chorei
as lembranas de Sio
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilnia ao mal presente,
Sio ao tempo passado.
Ali, lembranas contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram to presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em gua,
deste sonho imaginado,

162

vi que todo o bem passado


no gosto, mas mgoa.
E vi que todos os danos
se causavam das mudanas
e as mudanas dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo s esperanas.
Ali vi o maior bem
quo pouco espao que dura,
o mal quo depressa vem,
e quo triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,


que ento se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, quespalho
tristes palavras ao vento.
Bem so rios estas guas,
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mgoas
e confuso de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou.
Assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei
nos salgueiros pendurei
os rgos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: Msica amada,
deixo-vos neste arvoredo
memria consagrada.
Frauta minha que, tangendo,
os montes fazeis vir
para onde estveis, correndo,
e as guas, que iam decendo,
tornavam logo a subir:
jamais vos no ouviro
os tigres que se amansavam,
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartaro
que por vos ouvir deixavam.

163

J no fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
No movereis a espessura,
nem podereis j trazer
atrs vs a fonte pura,
pois no pudestes mover
desconcertos da ventura.
Ficareis oferecida
Fama, que sempre vela,
frauta de mim to querida;
porque, mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
j sente por pouquidade
aqueles gostos passados.
Um gosto que hoje se alcana,
amanh j o no vejo;
assi nos traz a mudana
de esperana em esperana,
e de desejo em desejo.
Mas em vida to escassa
que esperana ser forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa,
est receitando a morte!
Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade,
no cuide a gente futura
que ser obra da idade
o que fora da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quo ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixe o canto,
a causa dele deixasse.
Mas, em tristezas e enojos,
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
tend presente los ojos
por quien muero tan contento.
rgos e frauta deixava,
despojo meu to querido,
no salgueiro que ali estava
que para trofu ficava
de quem me tinha vencido.
Mas lembranas da afeio
que ali cativo me tinha,
me perguntaram ento:
que era da msica minha
queu cantava em Sio?

164

Que foi daquele cantar


das gentes to celebrado?
Por que o deixava de usar,
pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado?
Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por antro espesso arvoredo;
e, de noite, o temeroso,
cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente
os duros grilhes tocando;
canta o segador contente;
e o trabalhador, cantando,
o trabalho menos sente.
Eu, questas cousas senti
n'alma, de mgoas to cheia,
Como dir, respondi,
quem to alheio est de si
doce canto em terra alheia?
Como poder cantar
quem em choro banho peito?
Porque se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu s descansos enjeito.
Que no parece razo
nem seria cousa idnea,
por abrandar a paixo,
que cantasse em Babilnia
as cantigas de Sio.
Que, quando a muita graveza
de sadade quebrante
esta vital fortaleza,
antes moura de tristeza
que, por abrand-la, cante.
Que se o fino pensamento
s na tristeza consiste,
no tenho medo ao tormento:
que morrer de puro triste,
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo, e passei j,
nem menos o escreverei,
porque a pena cansar,
e eu no descansarei.
Que, se vida to pequena
se acrescenta em terra estranha,
e se amor assi o ordena,
razo que canse a pena
de escrever pena tamanha.
Porm se, para assentar
o que sente o corao,
a pena j me cansar,
no canse para voar
a memria em Sio.

165

Terra bem-aventurada,
se, por algum movimento,
d'alma me fores mudada,
minha pena seja dada
a perptuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra, ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.
E se eu cantar quiser,
em Babilnia sujeito,
Hierusalm, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A minha lngua se apegue
s fauces, pois te perdi,
se, enquanto viver assi,
houver tempo em que te negue
ou que me esquea de ti.
Mas tu, terra de Glria,
se eu nunca vi tua essncia,
como me lembras na ausncia?
No me lembras na memria,
seno na reminiscncia.
Que a alma tbua rasa,
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina,
que voa da prpria casa
e sobe ptria divina.
No , logo, a sadade
das terras onde nasceu
a carne, mas do Cu,
daquela santa cidade,
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que c me pde alterar,
no quem se h-de buscar:
raio de fermosura,
que s se deve de amar.
Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que c sujeita,
no do sol, mas da candeia,
sombra daquela Ideia
quem Deus est mais perfeita.
E os que c me cativaram
so poderosos afeitos
que os coraes tm sujeitos;
sofistas que me ensinaram
maus caminhos por direitos.
Destes, o mando tirano
me obriga, com desatino,
a cantar ao som do dano
cantares damor profano

166

por versos damor divino.


Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
de confuso e despanto,
como hei-de cantar o canto
que s se deve ao Senhor?
Tanto pode o benefcio
da Graa, que d sade,
que ordena que a vida mude;
e o que tomei por vcio
me faz grau para a virtude;
e faz que este natural
amor, que tanto se preza,
suba da sombra ao Real,
da particular beleza
para a Beleza geral.
Fique logo pendurada
a frauta com que tangi,
Hierusalm sagrada,
e tome a lira dourada,
para s cantar de ti!
No cativo e ferrolhado
na Babilnia infernal,
mas dos vcios desatado,
e c desta a ti levado,
Ptria minha natural.
E se eu mais der a cerviz
a mundanos acidentes,
duros, tiranos e urgentes,
risque-se quanto j fiz
do gro livro dos viventes.
E tomando j na mo
a lira santa, e capaz
doutra mais alta inveno,
cale-se esta confuso,
cante-se a viso da paz.
Oua-me o pastor e o Rei,
retumbe este acento santo,
mova-se no mundo espanto,
que do que j mal cantei
a palindia j canto.
A vs s me quero ir,
Senhor e gro Capito
da alta torre de Sio,
qual no posso subir,
se me vs no dais a mo.
No gro dia singular
que na lira o douto som
Hierusalm celebrar,
lembrai-vos de castigar
os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vo
no pobre sangue inocente,
soberbos co poder vo,
arrasai-os igualmente,

167

conheam que humanos so.


E aquele poder to duro
dos afeitos com que venho,
que encendem alma e engenho,
que j me entraram o muro
do livre alvdrio que tenho;
estes, que to furiosos
gritando vm a escalar-me,
maus espritos danosos,
que querem como forosos
do alicerce derrubar-me;
Derrubai-os, fiquem ss,
de foras fracos, imbeles,
porque no podemos ns
nem com eles ir a Vs
nem sem Vs tirar-nos deles.
No basta minha fraqueza,
para me dar defenso,
se vs, santo Capito,
nesta minha fortaleza
no puserdes guarnio.
E tu, carne que encantas,
filha de Babel to feia,
toda de misrias cheia,
que mil vezes te levantas,
contra quem te senhoreia:
beato s pode ser
quem co a ajuda celeste
contra ti prevalecer,
e te vier a fazer
o mal que lhe tu fizeste.
Quem com disciplina crua
se fere mais que a vez,
cuja alma, de vcios nua,
faz ndoas na carne sua,
que j a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
seus pensamentos recentes
e em nacendo os afogar,
por no virem a parar
em vcios graves e urgentes.
Quem com eles logo der
na pedra do furor santo,
e, batendo, os desfizer
na Pedra, que veio a ser
enfim cabea do Canto.
Quem logo, quando imagina
nos vcios da carne m,
os pensamentos declina
quela Carne divina
que na Cruz esteve j.
Quem do vil contentamento
c deste mundo visvel,
quanto ao homem for possvel,

168

passar logo o entendimento


para o mundo inteligvel:
ali achar alegria
em tudo perfeita e cheia,
de to suave harmonia
que nem, por pouca, recreia,
nem, por sobeja, enfastia.
Ali ver to profundo
mistrio na suma alteza,
que, vencida a natureza,
os mores faustos do mundo
julgue por maior baixeza.
tu, divino aposento,
minha ptria singular!
Se s com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que far se em ti se achar?
Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
to justo e to penitente
que, depois de a ti subir
l descanse eternamente.

Oh! como se me alonga, de ano em ano,


a peregrinao cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vo discurso humano!
Vai se gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um remdio, que inda tinha;
se por experincia se adivinha,
qualquer grande esperana grande engano.
Corro aps este bem que no se alcana;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiana.
Quando ele foge, eu tardo; e, na tardana,
se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde, e da esperana.

TAKUBOKO ISHIKAWA
Nas mos um punhado de areia.
Lgrimas a escorrer pelas faces.
Como te esquecer?
Fumaa que se desfaz no cu azul
fumaa que se desfaz melancolicamente
meu espelho.
Runas do Castelo de Kozukata

169

no leito de capim o corao


de 15 anos sugado pelo cu
Deitado de bruos na duna
com um passado distante
a dor do primeiro amor
Monte de minhas recordaes
rio de minhas recordaes:
de qualquer forma saudade a aldeia Shibutami
Quando todos os amigos
parecem me superar, compro flores
e o ntimo reparto com minha mulher.
Sotaque da minha terra
vou estao ouvi-lo
em meio ao povo
Pequena ilha ao leste do mar
brinco luz da areia com um caranguejo
a face molhada de lgrimas.
No se parea com seu pai,
nem com o pai do seu pai assim pensa seu pai, ouviu, filho.
Quando respiro, canta meu peito
mais melanclico
que o vento frio do inverno!
Como se houvesse uma escuta
clandestina do pensamento
afastei o estetoscpio do peito.
Nos meus olhos as margens do rio Kitakami
salgueiros maciamente esverdeados:
nascente de lgrimas.
Montanha de minha terra.
Face a ti,
no encontro palavras para agradecer-te.
Trabalho, trabalho, mas
so amarras minha vida.
Fixo o olhar na palma das mos.
H noite em que a insnia reluz
debaixo do saco de gelo
meu dio aos homens
Voltando da despedida, subitamente,
algo frio rolou pela face,

170

ao pestanejar.
Fugindo pela janela da sala de aula,
ia solitrio,
me deitar na runa daquele castelo.
O trem. Nem sei por que o tomei.
Desci. Mas no h
para onde ir.
O trem em movimento.
H quanto tempo!
Viagem imaginria terra natal.
Extremo do pas. Trem ao costado.
E eu traando a melancolia da cidade
clareada pela neve.
No h retorno primavera
dos 14 anos que me chama
com lgrimas nos olhos
Triste o corao infantil que no chora:
nem repreendendo, nem batendo
(tambm fui assim).
Parado, no corredor, meu desalento,
quando fora empurrei a porta
que sem resistncia se abriu.
Um cais de noite
e a vontade de escrever uma carta to longa
que te faa sentir saudade de mim.
H dias que penso
ser minha linguagem,
talvez, a do vento.
Durmo, repreendendo o corao
que sonha
com um amanh melhor.
Um refgio at o amanhecer.
lembrana de casa
o corao gela.
Mostrar um milagre qualquer
e desaparecer
enquanto estiverem surpresos
Pobre de quem se contenta
escrevendo um romance ridculo.
Vento de incio de outono.

171

Fumaas no cu azul,
o inverno sobre os olhos.
Uma doena, a nostalgia.
Daquela viagem daquele navio
foi um dos passageiros
que no conseguiu morrer
Viajarei, por exemplo, de terno novo:
este ano, tambm
pensei com ansiedade demais.
Razes os pensamentos
que acolho, falta de dinheiro.
sopram os ventos do outono.
Pelo peso do alcochoado,
Suspeitei que o destino se deitou
sobre mim, ao despertar meia-noite.
Cidade de Hakodate, bairro Aoyagui,
poema de amor, de amigo,
tristeza, flor de lio.
Muita gente em algum lugar,
jogos de sorte ou de azar:
tambm quero tentar.
Um trabalho, com prazer.
Ao seu trmino,
pretendo morrer.
Certo dia doena de lado na ausncia da mulher e filho,
imitei o mugido de um boi.
Esta manh
pensei em no mais mentir
e agora fraquejo outra vez
Fecho os olhos, mas o corao
um pulsar cotidiano.
Reabro os olhos tristeza.
Hoje, a caminho do emprego,
de repente, mudei de idia, outra vez,
e fiquei vagando pelo cais.
No meio do caminho,
nenhum bonde para o meu destino:
a chuva, a mar no olhar.

172

Empurro a porta. Um s passo.


Aos olhos de um doente,
o corredor no tem fim.
O longo corredor do hospital
e o desejo de ir, uma vez,
at o fim.
Palavras que a criana
aos 5 anos gravou nos ouvidos:
trabalhador, revoluo...
Amigos e mulher lamentam
meus delrios, pois, mesmo doente,
no deixo de pregar a revoluo.
O bosque circundando a casa de campo
da aldeia Shibutami.
Um cuco amanhecendo em meu corao!
O templo da terra natal.
copa do cedro,
o cuco vinha e cantava!
Por um momento a escurido:
a maior aflio
do homem.
Rompo o dia de ano novo
carregando no sono
o cansao do ano que passou
Nenhum vento. Bom tempo
nesta manh de ano novo.
Vagos pressgios de felicidade.
No minto. Quando falo,
trago um novo amanhecer.
Mas...
Meu filho foi brincar
e ainda no voltou.
Me divirto com o trenzinho!
Mesa da manh:
Corao do marido rastreando estradas!
Mulher e filho: censura e lgrimas!
Deitado, pensava nas coisas.
A mo descansando
do peso do livro.
Certa vez,

173

uma casa desocupada,


um cigarro e minha solido.
Enquanto cavava a areia da duna
uma pistola bem enferrujada
entre meus dedos
Viso tateando o mundo,
comecei a usar culos escuros.
Foi ento que aprendi a chorar sozinho.
Meu bigode
torcido para baixo
o rosto do cara que odeio ultimamente
Minha tosse ecoa
cada vez que papai tosse l?
Quando adoeo, minha terra fugaz.
O coro como que sugado
por um buraco em breu
cansado adormeo
Apesar do riso dos amigos,
a fuga e o retorno inesperado casa.
Que hbito era aquele?
Bengalas como apoio,
surgem papai e mame atravs
da parede de um quarto sem luz.
Babando, num torro de terra,
retratei minha me chorando.
Conheces a tristeza?
De quem ser este monte de areia
esta sepultura que a tempestade
numa noite construiu
A bolinha de areia
sorvendo a lgrima se umidificou
a lgrima sim coisa pesada
Fez-se logo densa a conversa discreta
um claro de pistola
uma vida apagada
O abrir e fechar da boca
uma cara animal
tudo o que enxergava no sujeito
Aquele fsico enorme
sua presena

174

dio era a nica palavra


Havia graa na vida em fuga,
no despertar em casas alheias.
Bons tempos aqueles!
Como comparar essa tristeza
depois de ter sido o senhor
de todas as trevas
Emprestei dinheiro de quem me toma
por um poeta incapaz
de tarefas prticas
Runa de castelo
ainda hoje ali vagueia meu amigo
carregando um filho sem me
Um penhasco
o corao aos saltos
como acabar com esta vida
Quando acendi o fsforo
uma mariposa branca
atravessou a sombra da mo
Olhos fechados, tentei assobiar
baixinho encostado na janela
da noite insone.
Que delcia
o cansao que me invade
aps um trabalho incessante
Retornando noite lata do trabalho
agasalho forte ao peito o filho
que a pouco esfriou para a vida
Quando os companheiros projetarem
nos olhos o fel intragvel da alma
me exilarei em casa
Pareciam soldados sem aflies,
o batalho que passou.
Eu sou a tristeza.
De dois amigos minha imagem,
um morreu, outro saiu das grades
e agora adoece. Oh!
Hoje a mesma coisa:
um telefone, distante, nos ouvidos.
Um poo seco, um triste dia.

175

Mesmo noite, aps me deitar,


assobiava.
A cano dos meus 15 anos.
Morressem todos os que me humilharam,
ainda que por uma s vez:
essa a minha prece.
Hoje, tambm, as dores no peito.
Se vou morrer,
que seja a caminho de minha terra.
Brincando, carreguei mame nas costas
e no pude dar trs passos,
chorando de tanta leveza.

Peguei o espelho
e esgotei todas as caretas
quando cansei de chorar
Todos no mesmo rumo,
E de lado, meu corao
s observa.
De repente a mo que tirava a luva
parou. Sim. A memria
roando o corao.
triste a criana que no se levanta,
mesmo estando acordada.
No a censure, me.
Minha cabea parece um barranco
em que a terra, dia a dia,
desmorona, tristemente.
As sobrancelhas de minha mulher carregando
a criana nas costas. A nevasca invadindo
a estao. Despedida.
Pedras na memria
e nas mos o momento
de adeus minha terra
Um bocejo falso, o sono fingido:
artimanha para encobrir
meu pensamento.
Tristemente sozinho
entre a desarmonia insolvel
me irritei hoje novamente

176

Pensando que fosse caridade


concordei
com as vaidades do amigo
Embaixo daquele castanheiro,
beira de estrada, convenci o amigo
que teimava na existncia de Deus.
Piedade nos olhos tristonhos
da maninha
quando disse que Cristo foi homem
Amofinados pela infncia
meus olhos invejavam o pssaro
que em vo cantava
Depois de revelar a alma
despeo-me do amigo
procurando algo perdido
Em frente loja de espelhos
o susto repentino
com minha miservel aparncia
Pobre do meu amigo
seu profundo descontentamento
e talento vulgar
Cruzando os braos
aguardo enfim o confronto
com um grande inimigo
Sempre, no bonde,
o baixinho e seu olhar de lixa?
minha preocupao, esses dias.
Olhando
o cu sombriamente nublado
a gana de um assassinato
Meu pai, coitado!
Farto novamente do jornal, brinca
com uma formiguinha no jardim.
Assim cresci, como nico filho homem.
Repartiro meus pais
esta melancolia?
Outra vez minha mulher
e seu comportamento livre.
Meu olhar sobre a flor da dlia

177

Por esquecer do remdio


a repreenso materna depois de h muito:
minha alegria
Sentei meu filho na cabeceira.
O olhar firme em seu rosto.
Fugiu.
Mos que se aproximam,
apertam e se perdem.
Gente de nvoa!
Ao professor e amigos
a censura cega e o enigma
da minha indolncia pelos estudos
A cirurgia
a mo sobre a cicatriz
e o desejo de um novo corpo
Melancolia aquela enfermeira em flor
repreendida pelo mdico
e suas mos terremoto em meu pulso
a enfermeira F e suas mos
de metal gravadas na memria:
onde a razo?
Duas ou trs vezes hoje
como explicar o desejo
de um relgio banhado a ouro
Sem nexo
me sentindo uma farsa
fechei os olhos
Apoiado na janela do hospital
contemplo abaixo
o ritmo da vida
Talvez, possa ser tristeza:
quando provei teu sabor,
era demasiadamente cedo.
Como explicar
o olhar impaciente no bando
que maneja picaretas
Mesmo que a greve ferva a mente,
meu sangue j no se agita:
tristeza oculta.
Casualidades

178

meu amigo de ginsio


conduzindo o trem naquela viagem
Volto e durmo em uma sepultura.
Como me magoam
os proprietrios e suas casas!
Tristeza, como encarar
a arrogncia de um cara
vazio e impune?
Antes, a mentira.
Com freqncia, a indiferena.
Agora, a transpirao.
At o riso impossvel a faca que a muito procurava
estava em minhas mos
Deito-me abafado
ao sentir as plpebras cansadas.
A insnia um castigo
Antigas cartas de amor
e tantos erros ortogrficos.
Como perceber, ento!
Esquecida fotografia!
Na manh da mudana,
a moa caiu nos meus ps.

Jornal velho!
Ainda que duas ou trs linhas,
eis o elogio minha poesia.
Com pena de mim e sempre repreendendo
o tmido corao, vou pedir emprstimo.
por que sou assim?
Ao congresso, hoje,
palavres e uma lgrima
de alegria.
No sei porque
mas de qualquer forma parece
que muitas pessoas habitam meu pensamento
Despertou, afinal, o corao!
Uma lgrima pelo artigo de um velho
que fugiu de casa.
A maioria dos lavradores j no bebe

179

mais sake. Se a situao piorar,


que sacrifcio restar?
O pobre jornal de minha terra aberto,
a caa aos erros de reviso.
Esta manh, a tristeza.
Ainda que o hbito de beber sake
cause indisposio
fui ao copo hoje outra vez.
O pensamento
e o destino de caminhar sempre
pelas ruas altas horas da noite
Quero comprar. Quero comprar o livro.
Tentei mostrar minha mulher,
sem insinuar. Mas...
Um susto. Foi aquele beijo
o toque da folha d pltano
que caiu?
Impossvel esquecer o sorriso
do homem preso
na cidade hoje
No fuja do mendigo
amigo, minha imagem
em tempos de fome
Ele embravecia demais papai.
Nesses dias, a calmaria.
Espero que venha a fria.
Numa manh de outono
cruzei pelo caminho
com o autor proibido
Eu e minha sombra
pela noite de Tokio
um regresso do campo deserto
Este tormento, de vez em quando,
em meu corao, como um trem
por um campo vazio.
Minha cabea
e a conquista do infinito:
este ano, o mesmo plano?
Passos inertes na noite
o queixo enterrado no sobretudo
e essa voz parecida com a dela

180

O cdigo Ipsilon
em vrias pginas do velho dirio.
Onde Ipsilon andar?
A recusa da vida!
Ao ouvir o mdico,
o corao emudeceu.
Puxei a conversa em vo
e abracei a lgrima
do paciente vizinho
A morte recomendei
e ela me mostrou
a cicatriz na garganta
Cochichando tristezas
ela esperava
minha embriagus mortal
Naquele brao, a marca do meu beijo,
inalcanvel
pedra branca preciosa.
Inseto chegado ao fogo
freqentava aquela casa
iluminada
Mesmo no travesseiro de seus joelhos
meu corao repousava
sobre minha pessoa
Na velha agenda cor de vinho
a hora e o local
daquele encontro
Coisa simples
esquecida
semente de saudade
Sbitos o telefone e o silncio
no escritrio noite
deserto
Na trilha ao sop da colina
com declive esverdeado de trigo
um pentinho vermelho
Noite a pino
passeio solitrio pela cidade
como um medroso patrulheiro

181

Minha cabea
coroada pelo orvalho
o tempo nulo ao vagar pela cidade
A cidade no mais profundo silncio
e a pele ecoando o som pesado
dos meus sapatos
Branco, branco.
Os gelos brilham. A tarambola canta
Luas de inverno e o mar de Kushiro.
O sake, naquele fim de mundo,
como se tragasse as razes da tristeza.
H um fim para essa dor?
A noite em fim de caminho
e o calor da mo dela
ao meu lado em meio a neve
Atirou o brinquedo
e sentou-se, o filhinho, quieto ao meu lado.
O que povoa sua mente?
Meus olhos num ponto da esteira
e a mulher atrs do segredo
do meu pensamento
Hoje, quase pedi outra vez:
me deixe sozinho
em uma penso.
Espiando ao redor,
tento falar com o tronco
jogado pelo mar ao p da duna
A areia fugindo vazia
entre o vo dos dedos:
inanimada tristeza
Da mais de cem vezes escritos na areia
voltei-me cansado
desisti de morrer
Um infeliz encurralado
todas as noites
eu no coletivo lotado
Um tiro ecoou no fundo do bosque
tristeza calando fundo
e o prazer na morte do som
Por ruas sem nome

182

perambulo outra vez


em busca de um novo viver
O professor. Tormenta constante.
Seu cavanhaque e o falar reproduzido.
Bode, a alcunha.
Faa-me apoiar outra vez
no parapeito do terrao
do ginsio de Morioka
Todos os amigos por seus caminhos
e meu corao querendo novamente
chorar em segredo
Na cadeia agora o amigo
antes notvel como gnio
sopram os ventos de outono
Shighea, mope poeta saltimbanco.
Parece que sua paixo
tambm foi triste.
Msica
o antigo desejo de minha mulher
que agora no canta
Certo dia, os amigos todos aos quatro ventos.
Oito anos se passaram
e a fama no abraou ningum.
O corao de minha juventude
foi-se embora voando levemente
como uma pipa cuja linha se arrebentou
Animal adoentado
o corao foi manso
ao ouvir coisas de minha terra
Qual o destino daquela bola
que lancei no telhado de madeira
da escola em tempos de fantasia
H dois dias um quadro uma montanha
e de repente nesta manh
minha terra e montanha no peito
Pobres crianas que lecionei
em breve tambm deixaro
nossa terra
No primrio disputou comigo
a distino da classe

183

o dono da estalagem
Ainda em meus olhos a flor vermelha
estampada em todo avental
o amor dos seis anos
Minha nostalgia brilha
piedosa no corao
infindvel ouro puro
Da janela do trem ao norte distante
o cume da montanha minha terra
preparo a reverncia
Oh cheiro de milho verde assado
na rua silenciosa e larga
em noite de outono
O nome Koyakko ela me disse
sua relha e a volpia do lobo
como esquecer
O mar de Tsugaru
e os olhos meigos da marinha
pelo balano do navio

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

LIVRO: POESIA (1944)


I
Apesar das runas e da morte,
Onde sempre acabou cada iluso,
A fora dos meu sonhos to forte,
Que de tudo renasce a exaltao
E nunca minhas mos ficam vazias.

LUAR
O luar enche a terra de miragens
E as coisdas tm hoje uma alma virgem,
O vneto acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que o perfeito acorde da minha alma.

184

Espero sempre por ti o dia inteiro,


Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E h em todas as coisas o agoiro
De uma fantstica vinda.

II
Pudesse eu no ter laos nem limites
vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder a seus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.

Se tanto me di que as coisas passem


porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.

Mais do que tudo, odeio


Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.

Aquelas que exaltadas e secretas


janela espreitaram inquietas
O rumor dos poentes nas estradas,
Julgaram vir de ti essa passagem
Contida na beleza da paisagem.
Solitrias mordendo a sua fome
Percorrem o silncio dos jardins
E vo gritando s sombras o teu nome.

COMO UMA FLOR VERMELHA


sua passagem a noite vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, intil, alheia.
Ningum sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaos
E acorda as ruas mortas.
Ento o mistrio das coisas estremece

185

E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

JARDIM PERDIDO
Jardim em flor, jardim de impossesso,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solido,
A verdura das rvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava,
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.
A luz trazia em si a agitao
De parasos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidade e suspenso.
Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazia em ti sempre suspenso
Outro jardim possvel e perdido.

JARDIM
Algum diz:
Aqui antigamente houve roseriras Ento as horas afastam-se estrangeiras,
Como se o tempo fosse feito de demoras.

FUNDO DO MAR
No fundo do mar h brancos pavores,
Onde as plantas so animais
E os animais so flores.
Mundo silencioso que no atinge
A agitao das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloia o cavalo marinho.
Um polvo avana
No desalinho
Dos seus mil braos,
Uma flor dana,
Sem rudo vibram os espaos.
Sobre a areia o tempo poisa

186

Leve como um leno.


Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Cu, terra, eternidade das paisagens,


Indiferentes ante o rumor leve,
Que ns sempre lhes somos. Vento breve,
Heris e deuses, trgicas passagens,
Cuja tragdia mesma nada inscreve
Na perfeio completa das imagens.
Todo o nosso tumulto menos forte
Do que o eterno perfil de uma montanha.
Cala-se a terra ao nosso amor edstranha
- Talvez um dia embale nossa morte.

III
A HORA DA PARTIDA
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o cho e as portas batem, quando
A noite cada n em si deslaa.
A hora da partida soa quando
As rvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me estranha e longqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Que poderei de mim mais arrancar


Para suportar o dom da tua mo,
Anjo rubro do vento e solido
Que me trouxeste o espao, o deus e o mar?
No cu, a linha ltima das casas
j azul, alada, imensa e leve.
Nenhum gesto, nenhum destino breve
Porque em todos esto inquietas asas.
Depois ao pr do sol ardem as casas,
O cu e o fogo passam pela terra,
E a noite negra vem cheia de brasas
Num crescendo sem fim que nos desterra

187

H cidades acesas na distncia,


Magnticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltao e ressonncia.
H cidades acesas cujo lume
Destri a insegurana dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braos
Em nardos que me matam de perfume.
E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual o nome
Do profundo existir que me consome
Neste pas de nvoa e de no ser.

Sinto os mortos no frio das violetas


E nesse grande vago que h na lua.
A terra fatalmente um fantasma,
Ela que toda morte em si embala.
Sei que canto beira de um silncio,
Sei que bailo em redor da suspenso,
E possuo em redor da impossesso.
Sei que passo em redor dos mortos mudos
E sei que trago em mim a minha morte.
Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes no soube dos m eus actos,
Que a morte ser simples como ir
Do interior da casa para a rua.

SINAL DE TI
I
No darei Teu nome minha sede
De possuir os cus azuis sem fim,
Nem vertigem spbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.
No darei o Teu nome limpidez
De certas horas puras que perdi,
Nem s imagens de oiro que imagino
Nem a nenhuma coisa que sonhei.

188

Pois tudo isso s a minha vida,


Exalao da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.
Mesmo no azul extremo da distncia,
L onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama s a minha vida.
II
Tu no nasceste nunca das paisagens,
Nenhuma coisa traz o Teu sinal,
Dionysos quem passa nas estradas
E Apolo quem floresce nas manhs.
No ests no sabor nem na vertigem
Que as presenas bebidas nos deixaram.
No Te tocam os olhos nem as almas,
Pois no te vemos nem Te imaginamos.
E a verdade dos cnticos breve
Como a dos roseirais: exalao
Do nosso ser e no sinal de Ti.
III
A presena dos cus no a Tua,
Embora o vento venha no sei donde.
Os oceanos no dizem que os criaste,
Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.
S o olhar daqueles que escolheste
Nos d o Teu sinal entre os fantasmas.

No ponto onde o silncio e a solido


Se cruzam coma noite com o frio,
Esperei como quem espera em vo,
To ntido e preciso era o vazio.

LIVRO: DIA DO MAR [1947]


I
ESPERA
Dei-te a solido do dia inteiro.

189

Na praia deserta, brincando com a areia,


No silncio que apenas quebrava a mar cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.

ESTA A HORA...
esta a hora perfeita em que se cala
O confuso murmurar das gentes
E dentro de ns finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.
esta a hora em que as rosas so as rosas
Que floriram nos jardins persas
Onde Saadi e Hafiz as viram e amaram.
estaa hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiam e chamaram
esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas unicamente,
esta a hora em que o tempo abolido
E nem sequer conheo a minha face.

AS ROSAS
Quando noite desfolho e trinco as rosas
como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doura amarga dos poentes,
E a exaltao de todas as esperas.

DIA DE HOJE
dia de hoje, dia de horas claras
Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas
Em que h por vezes sbitas demoras
Plenas como as pausas dum verso.
dia de hoje, dia de horas leves
Bailando na doura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.

190

II
por ti eu se nefeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera.
por ti que a noite chama e espera.
s tu quem anuncia o poente nas estradas.
E o vento torcendo as rvores desfohadas
Canta e grita que tu vais chegar.

ENDYMION
Por ti lutavam deuses deumanos.
E eu vi-te numa praia abandonado
luz, e pelos ventos destroado,
E os teus membros rolaram nos oceanos.

DIONYSOS
Entre as rvores escuras e cladas
O cu vermelho arde,
E nascido da secreta cor da tarde
Dionysos passa na poeira das estradas.
A abundncia dos frutos de Setembro
Habita a sua face e cada membro
Tem essa perfeio vermelha e plena,
Essa glria ardente e serena
Que distinguia os deuses dos mortais.

ALEXANDRE DA MACEDNIA
A prefeio, a eternidade, a plenitude
Escorriam da sagrada juventude
Dos teus membros.
A luz bailava em roda dos teus passos
E a ardennte palidez da tua divindade
Ergueu-se na pureza dos espaos.
Estreitamente os teus dedos
Para l das vagas nsias, incertezas e segredos
Prendiam os dedos da sorte.
E o destino que em ns caos e luto,
Era em ti verdade e harmonia
Caminho puro e absoluto.

191

III
NAVEGAO
Distncia da distncia derivada
Apario do mundo: a terra escorre
Pelos olhos que a vem revelada.
E atrs um outro longe imenso morre.

PAINIS DO INFANTE
Prncipes do silncio taciturnos
Por quem chamava nos longnquos cus nocturnos
A verdade das estrelas nunca vistas.
A vossa face a face dos elementos,
Solitria como o mar e como os montes
Vinda do fundo de tudo como as fontes
Dura e pura como os ventos.

GRUTA DE CAMES
Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta
Cujo silncio ainda escuta
Os teus gestos e os teus passos.
A, diante do mar como tu transbordaste
De confisso e segredo,
Choraste a face pura
Das bancas amadas
Mortas to cedo.

KASSANDRA
Homens, barcos, batalhas e poentes,
No sei quem, no sei onde delirava.
E o futuro vermelho transbordava
Atravs das pupilas transparentes.
dia de oiro sobre as coisas quentes,
Os rostos tinham almas que mudavam,
E as avez estrangeiras trespassavam
As minhas mos abertas e presentes.
Houve instantes de fora e de verdade Era o cantar de um deus que me embalava
Enchendo o cu de sol e de saudade.

192

Mas no deteve a lei que me levava,


Perdida sem saber se caminhava
Entre os deuses ou entre a humanidade.

PARTIDA
I
Como uma flor incerta entre os teus dedos
H harmonia de um bailar sem fim,
E tens o silnci indizvel de um jardim
Invadido de luar e de segredos.
II
Nas tuas mos trazias o meu mundo.
Para mim dos teus gestos escorriam
Estrelas infinitas, mar sem fundo
E nos teus olhos os mitos principiam.
Em ti eu conheci jardins distantes
E disseste-me a vida dos rochedos
E juntos penetramos nos segredos
Das vozes dos silncios dos instantes.
III
Os teus olhos so lagos e so fontes,
E em todo o teu ser existe
O sonho grave, ntido e trsite
De uma paisagem de pinhais e montes.
Na tua voz as palavras so nocturnas
E todas as coisas graves, grandes, taiturnas
A ti so semelhantes.

Estranha noite velada,


Sem estrelas e sem lua,
Em cuja bruma recua
Fantasma de si mesma cada imagem.
Jaz em runas a paisagem,
A dissoluo habita cada linha.
Enorme, lenta e vaga
A noite ferozmente apaga
Tudo quanto eu era e quanto eu tinha.
E mais silenciosa do que um lago,
Sobre a agonia desse mundo vago,

193

A morte dana
E em seu redor tudo recua
Sem fora e sem esperana.
Tudo que era certo se dissolve;
O mar e a praia tudo se resolve
Na mesma solido eterna e nua.

IV
LUA
Entre a terra e os atros, flor intensa,
Nascida do silncio, a lua cheia
D vertigem ao marr e azula a areia,
E a terra segue-a em xtase suspensa.

DANA DE JUNHO
Em silncio nas coisas embaladas
Vo danando ao sabor dos seus segredos.
Nos seus vesstidos brancos e bordados
Raios de lua poisam como dedos,
E em seu redor baloiam arvoredos
Escuros entre os cus artomentados.

UM DIA
Um dia, mortos, gastos, voltaremos
A viver lives como os animais
E mesmo to cansados floriremos
Irmo vivos do mar e dos pinhais.
O vento levar os mil cansaos
Dos gestos agitados, irreais,
E h-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.
S ento poderemos caminhar
Atravs do mistrio que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar,
E em ns germinar a sua fala.

As imagens transbordam fugitivas


E estamos nus em frente s coisas vivas.
Que presena jamais pode cumprir
O impulso que h em ns, interminvel,

194

De tudo ser e em cada flor florir?

RECONHECI-TE
I
Reconheci-te logo destruda
Sem te poder olhar por que tu eras
O prprio corao da minha vida
E eu esperei-te em todas as esperas.

II
Conheci-te e vivi-te em cada deus
E do teu peso em mim que eu fui triste
Sempre. Tu depois s me destruste
Com os teus passos mais reais que os meus.

Porque forma quebrados os teus gestos?


Quem te cercou de muros e de abismos?
Quem desviou na noite os teus caminhos?
Quem derramos no cho os teus segredos?

MEDEIA
(adaptado de Ovdio)
Trs vezes roda, trs vezes inunda
Na gua da fonte os seus cabelos leves,
Trs vezes grita, trs vezes se curva
E diz: Noite fiel aos meus segredos,
Lua e atros que aps o dia claro
Iuminais a sombra silenciosa,
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos,
Deuses do bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa fora, pois
Ajudada por vs posso fazer
Que os rios entre as margens espantadas
Voltem correndo at s suas fontes.
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou ench-los de espuma e fundas ondas,
Posso chamar a mim os ventos, posso
Larg-los cavalgando nos espaos.
As palavras que digo e cada gesto
Que em redor do seu som no ar disponho

195

Torcem longnquas rvores e os homens


Despedaam-se e morrem no seu eco.
Posso encher de tormentos os animais,
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e floresam os penedos.

V
GESTO
Em tudo Te vi amanhecer
Mas nenhuma presena Te cumpriu,
S me ficou o gesto que subiu
s mais longqnuas fontes do meu ser.

HORIZONTE VAZIO
Horizonte vazio em que nada resta
Dessa fabulosa festa
Que um dia teiluminou.
As tuas linhas outrora foram fundas e vastas,
Mas hoje esto vazias e gastas
E foi o meu desejo que as gastou.
Era do pinhal verde que descia
A noite bailando em silenciosos passos,
E naquele pedao de mar ao longe ardia
O chamamento infinito dos espaos.
Nos areais cantava a claridade,
E cada pinheiro continha
No irreprimvel subir da sua linha
A explicao de toda heroicidade.
Horizonte vazio, esqueleto do meu sonho,
rvore morta sem fruto,
Em teu redor deponho
A solido, o o caos e o luto.

QUANDO
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuar o jardim, o cu e o mar,
E como hoje igualmente ho-de bailar
As quatro estaes minha porta.

196

Outros em Abril passaro no pomar


Em que eu tantas vezes passei,
Haver longos poentes sobre o mar,
Outros amaro as coisas que eu amei.
Ser o mesmo brilho a mesma festa,
Ser o mesmo jardim minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu no estivesse morta.

OS MORTOS DE HECATE
Ao nosso lado os mortos em surdina
Bebem a exalao da nossa vida.
So a sombra seguindo os nossos gestos,
Sinto-os passar quando leves vm
Alta noite buscar o nossos restos.
Passam nos quartos onde nos deixamos,
Envolvem-se nos gestos que traamos,
Repetem as palavras que dissemos,
E debruados sobre o nosso sono
Bebem como um leite o nosso sonho.
Intangveis, sem peso e sem contorno
Ressurgem no sabor vivo do sangue.
Sorriem s imagens que vivemos
E choram por ns quando nas as vemos,
Porque j sabem para aonde vamos.

Bebido o luar, brios de horizontes,


Julgamos que viver era abraar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.
Mas solitrios somos e passamos,
No so nossos os frutos nem as flores,
O cu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.
Porqu jardins que ns no colheremos,
Lmpidos nas auroras a nascer,
Porque o cru e o mar se no seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.

VI
EURYDICE

197

A noite o seu manto que ela arrasta


Sobre a triste poeira do meu ser
Quando escuto o cantar do seu morrer
Em que o meu corao todo se gasta.
Voam no firmamento os seus cabelos
Nas suas mos a voz do mar ecoa
Usa as estrelas como uma coroa
E atravessa sorrindo os pesadelos.
Veio com ar de algum que no existe,
Falava-me de tudo quanto morre
E devagar no ar quebrou-se, triste
De ser apario, gua que escorre.

RIO
Rio, mltipla forma fugidia
De gestos infinitos e perdidos
E no seu prprio ritmo diludos
Contnua apario brilhante e fria.
Nos teus lmpidos olhos de vidente
As paisagens reflectem-se mais fundas
Imveis entre os gestos da corrente.
E o pas em redor verde silvestre
Alargou-se e abriu-se modulado
No silncio brilhante que lhe deste.

NEVOEIRO
Quem poder saber que estranha bruma
Brotou caladamente em minha volta
Pra que eu perdesseas horas uma a uma
Sem um gesto, sem gritos, sem revolta.
Quem poder saber que estranhos laos
E que sabor de morte lento e amargo
Sugaram todo o sangue dos meus braos O sangue que era sede do mar largo.
Quem poder saber em que respostas
Se quebrou o subir do meu pedido
Para que eu bebesse imagens decompostas
luz de um pr de sol enlouquecido.

Aquelas cujos ombros se extinguiram


Contra os muros dum quarto misterioso

198

Onde h uma janela voltada para longe


Aquelas em cujos olhos no h cor
fora de fitarem o vazio
Que vai e vem entre o horizonte e elas
Aquelas cujo desespero cai
De todo o cu a pique sobre a terra,
Imutvel e completo, igual
Ao silncio do mar sobre os naufrgios.
Elas so aquelas que esperaram
Que todas as promessas se cumprissem
E que nos cegos deuses confiaram.

LIVRO: CORAL (1950)


PRIMEIRA PARTE

I
As minhas mos mantm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se no quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu corao sustenta o ritmo das coisas.

Sei que estou s e gelo entre as folhagens


Nenhuma gruta pode me proteger
Como um lao deslaa-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.
Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pssaro morto da folhagens
Tomabando se desfaz na terra fria.

II
Terror de te amar num stio to frgil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeio
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

III
199

SIBILAS
Sibilas no interior dos antros hirtos
Totalmente sem amor e cegas,
Alimentando o vazio como um fogo
Enquanto a sombra dissolve a noite e o dia
Na mesma luz de horror desencarnada.
Trazer para fora o monstruoso orvalho
Das noites interiores, o suor
Das foras amarradas a si mesmas
Quando as palavras batem contra os muros
Em grandes voos cegos de aves presas
E agudamente o horror de ter as asas
Soa como um relgio no vazio.
SONETO MANEIRA DE CAMES
Esperana e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E j no sei se quero ou se no quero
To longe de razes meu tormento.
Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peo desespero
Ainda que mo ds pois o que eu quero
Ningum o d seno por um momento.
Mas como s belo, amor, de no durares,
De ser to breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Amor perfeito dado a um ser humano:
Tambm morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

A FONTE
Ouve a fonte translcida da quinta
Cercada de varandas onde a ausncia
De algum eterna mora e se debrua.

SEGUNDA PARTE
I
ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI
Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ngulos mortais da sombra com luz.

200

V como as espadas nascem evidentes


Sem que ningum as erguesse de repente.
V como os gestos se esculpem
Em geometrias exactas do destino.
V como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um s irrompe e faz um lrio de si mesmo.
V como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mgoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.
E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silncio agudo dos espaos,
Nos ngulos mortais da sombra com a luz.

OS PASSROS
Ouve que estranhos pssaros da noite
Tenho defronte da janela:
Pssaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo.
Falam-se de noite, trazem
Dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruis.
Cravam no luar as suas garras
E a respirao do terror desce
Das suas asas pesadas.

Neste dia de mar e nevoeiro


to prximo o teu rosto.
So os longos horizontes
Os ritmos soltos dos ventos
E aquelas aves
Que desde o princpio das estaes
Fizeram ninhos e emigraram
Para que num dia inverso tu a visses.
Aquelas aves que tinham
Uma memria eterna do teu rosto
E voam sempre dentro do teu sonho
Como se o teu olhar as sustentasse.

201

Luminosos os dias abolidos


Quando o meio-dia inclinava a sombra das colunas
E o azul do cu tomava em si a terra
Apaziguada no murmrio
Das folhagens e dos deuses.

Nos ltimos terraos dos esspaos


Sobre os ventos imveis e calados
Dorme.
Nem a Primavera derramada
Nem o terror e o caos que a terra gera
Nem a sombra vermelha dos corpos mutilados
Atravessam
As barreiras de silncio que o separam.
Tem o rosto voltado ao infinito
Um rosto perfeito de traos imutveis.
Nem frio, nem calor, nem ar, nem gua
O alimentam.
Respiram unicamente o seu segredo
O seu segrdo secreto para sempre
E duas fontes correm dos seus olhos fechados.

III
A raiz da paisagemn foi cortada.
Tudo flutua ausente e dividido,
Tudo flutua sem nome e sem rudo.

Cada dia mais evidente que partimos,


Sem nenhum possvel regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
No h saudade nem terror que baste.

LIVRO: NO TEMPO DIVIDIDO [1954]

POEMAS DE UM LIVRO DESTRUDO

202

I.
A memria longnqua de uma ptria
Eterna mas perdida e no sabemos
Se passado ou futuro onde a perdemos.
II.
EURYDICE
Este o trao que trao em redor do teu corpo amado e perdido
Para que cercada sejas minha
Este o canto do amor em que te falo
Para que escutando sejas minha
Este o poema engano do teu rosto
No qual eu busco a abolio da morte
III.
As paredes so brancas e suam de terror
A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo como eu fechado e interior
No sei por onde o vento possa entrar
Toda esta verdura um segredo
Um murmrio em voz baixa para os mortos
A lamentao hmida da terra
Numa sombra sem dias e sem noites
IV.
Na minha vida h sempre um silncio morto
Uma parte de mim que no se pode
Nem desligar nem partir nem regressar
Aondes as coisas eram uma intimamente
Como no seio morno de uma noite
V.
INVERNO
Parece que eternamnete sobre a terra
Chover desolao e frio
A mesma neve de horror desencarnada
A mesma solido dentro das casas
VI.
Por que ser que no h ningum no mundo
S encontrei distncia e mar
Sempre sem corpo os nomes aos soar
E todos a contarem o futuro
Como se fosse o nico presente

203

Olhos criavam outras imagens


Quebrando em dois o amor insuficiente
E nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperana
VII.
No procures verdade no que sabes
Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece solitrio
Fora de saber fora de leis
Dentro de um ritmo cego inumervel
Onde nunca foi dito nenhum nome
VIII.
No te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braos e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento
No tew chamo para te conhecer
Conheo tudo fora de no ser
Peo-te que venhas e me ds
Um pouco de ti mesmo onde eu habite
IX.
Como estranha a minha liberdade
As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio para que eu passe
Como estranho viver sem alimento
Sem que nada em ns precise ou gaste
Como estranho no saber
A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.
Eu falo da primeira liberdade
Do primeiro dia que era mar e luz
Dana, brisa, ramagens e segredos
E um primeiro amor morto to cedo
Que em tudo que era vivo se encarnava.
O ARCO DAS ESPUMAS
O mar rolou as suas ondas negras
Sobre as praias tocadas do infinito

204

Iremos juntos sozinhos pela areia


Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a mar cheia
As palavras que disseres e que eu disser
Sero somente as palavras que h nas coisas
Virs comigo desumanamente
Como vm as ondas com o vento
O belo dia liso como um linho
Interminvel ser sem um defeito
Cheio de imagens e de conhecimento
PROMESSA
Na clara paisagem essencial e pobre
Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade.

POEMA DE AMOR DE ANTNIO E DE CLEPATRA


Pelas tuas mos medi o mundo
E na balana dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.
SONETO DE EURYDICE
Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausncia que povoa terra e cu
E cobre de silncio o muno inteiro.
Assim bebi manhs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.
Porm nem nas mars nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.
E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.
O sol e o dia brilham sem ti
Talvez no sejam mais o sol e o dia.
O sol e o dia agora
Esto l onde o teu sorriso mora
E no aqui.
NO TEMPO DIVIDIDO

205

E agora Deuses que vor direi de mim?


Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vs e sem memria
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si prprio se devora.
AS FLORES
Era preciso agradecer s flores
Terem guardado em si,
Lmpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manh futura.
Como quem colhe flores tu serena
Vais colhendo sem chorar a nossa pena
Olhas por ns sem mgoa nem saudade
E o cu azul, a luz, as Primaveras
Habitam na perfeita claridade
Em que nos esperas.
.
SANTA CLARA DE ASSIS
Eis aquela que parou em frente
Das altas noites puras e suspensas.
Eis aquela que soibe na paisagem
Adviinhhar a unidade prometida:
Corao atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.
TMULO NOS ASTROS
Como s belo
Cercado de sete anis como Saturno
Fechado no teu fogo mais secreto.
Como s belo
No corao do silncio ilimitado,
Imutvel e perfeito
De pura escurido aureolado.
J nenhum rosto mora no teu pensamento
De nenhum peso os teus gestos se alimentam
Nenhum acaso desvia
O teu olhar atento.

LIVRO: MAR NOVO [1958]

206

o teu rosto ainda que eu procuro


Atravs do terror e da distncia
Para a reconstruo de um mundo puro.

CANTE JONDO
Numa noite sem lua o meu amor morreu
Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.

A memria de ti calma e antiga


Habita os meus caminos olitrios
Enquanto o acaso vo me oferece os vrios
Rostos da hora inimiga
Nem terror nem lgrimas nem tempo
Me separaro de ti
Que moras para alm do vento

AS TRS PARCAS
A trs Parcas que tecem os errados
Caminhos onde a rir atraioamos
O puro tempo onde jamais chegamos
As trs Parcas conhecem os maus fados.
Por ns elas esperam nos trocados
Caminhos onde cegos nos trocamos
Por algum que no somos nem amamos
Mas que presos nos leva e dominados.
E nunca mais o doce vento areo
Nos levar ao mundo desejado
E nunca mais o rosto do mistrio
Ser o nosso rosto conquistado
Nem nos daro os deuses o imprio
Que nossa espera tinham inventado.

II
207

LIBERDADE
Aqui nesta praia onde
No h nenhum vestgio de impureza,
Aqui onde h somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espao e lcida unidade
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a prpria liberdade.

MEDITAAO DO DUQUE DE GANDA SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL


Nunca mais
A tua face ser pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poder nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroos
Do teu ser. Em breve a podrido
Beber os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mo na sua mo.
Nunca mais amarei quem no possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glria, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparncia
E nem sequer me resta a tua ausncia,
s um rosto de nojo e negao
E eu fecho os olhos para no te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

NUFRAGO
Agora mosto oscilas
Ao sabor das correntes
Com medusas em vez de pupilas.
Agora reinas entre imagens puras
Em pases transparentes e de vidro,
Sem corao e sem memria
Em todas as presenas diludo.
Agora liberto moras
Na pausa branca dos poemas.
Sem nome e sem destino
Nalimpidez da gua.

208

Aquele que partiu


Precedendo os prprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperana.
Ele no ficou para conosco
Destruir com amargas mos seu prprio rosto.
Intacta a sua ausncia
Como a esttua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em runas.
Ele no ficou para assistir
morte da verdade e vitria do tempo.
Que ao longe
Na mais longnqua praia
Onde s haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu prprio pensamento.
E que ningum repita o seu nome proibido.

Este o tempo
Da selva mais obscura
At o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Esse o tempo em que os homens renunciam.

III

PORQUE
Porque os outros e mascaram mas tu no
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que no tem perdo.
Porque os outros tm medo mas tu no.
Porque os outros so os tmulos caiados
Onde germina calada a podrido.
Porque os outros se calam mas tu no.

209

Porque os outros se compram e se vendem


E os seus gestos do sempre dividendo.
Porque os outros so hbeis mas tu no.
Porque os outros vo sombra dos abrigos
E tu vais de mos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu no.

ELECTRA
Os muros da casa dos Manon escorrem sangue
E as rvores do jardim escorrem lgrimas.
O lago busca em vo o reflexo antigo duma infncia
Que se tornou homens, mulheres, dios e armas.
Numa janela aparecem duas mos torcidas
E nos corredores ressoam as palavras
De traio, da nusea, da mentira
E o tempo vestido de verde senta-se nas salas.
O rosto de Electra absurdo.
Ningum o pediu nem pertence ao jogo.
As suas mos vingadoras destoam na conversa
Assustam a penumbra e ofendem o pecado.

SEMI-RIMBAUD
Seu rosto uma caverna
Onde frios ventos cantam
Passa rasgando o luar
E desesperando a noite
Pelas ruas oblquas da cidade
Em madrugadas duvidosas
Constri o mal com gestos cautelosos
E sonha a inverso total das coisas
Contri o mal com gestos rigorosos
Lcido de vcio e de noitada
ntegro como um poema
Completo lgico sem falha
A aurora desenha o seu rosto com os dedos
As suas rbitas iguais s das caveiras
Seu rosto voluntrio e inventado
Magro de solido verde de intensa
Vontade de negar e no ceder

210

De caminhar de mo dada com o nojo


De ser um espectro de terror para os vivos
E uma acusao escrita nas paredes.

LUAR
Toma-me noite em teus jardins suspensos
Em teus ptios de luar e de silncio
Em teus adros de vento e de vazio.
Noite
Bagdad debruada no teu rio
Pas dos brilhos e do esquecimento
Com teu rumor de cedros e teu lento
Crculo azul do tempo.

LIVRO: LIVRO SEXTO [1962]

I. AS COISAS
Algarve
1
A luz mais que pura
Sobre a terra seca
2
Eu quero o canto o ar a anmona a medusa
O recorte das pedras sobre o mar
3
Um homem que sobe um monte desenhado
A tarde transparente das aranhas
4
A luz mais que pura
Quebra a sua lana
AS CIGARRAS
Com o fogo do cu a calma cai
No muro branco as sombras so direitas
A luz persegue cada coisa at

211

Ao mais extremo limite do visvel


Ouvem-se mais as cigarras do que o mar
PESCADOR
1
Irmo limpo das coisas
Sem pranto interior
Sem introverso
2
Este que est inteiro em sua vida
Fez do mar e do cu seu ser profundo
E manteve com serena lucidez
Aberto seu olhar e posto sobre o mundo
REINO
Reino de medusas gua lisa
Reino de silncio e luz e pedra
Habitao das formas espantosas
Coluna de sal e crculo de luz
Medida da Balana misteriosa
GRUTA DO LEO
Para alm da terra roxa e desflorida
Mostra-me o mar a gruta roxa e rouca
Feita de puro interior
E povoada
De cava ressonncia e sombra e brilho
A CONQUISTA DE CACELA
As praas fortes foram conquistadas
Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza
Porm Cacela
Foi desejada s pela beleza
MUSA
Musa ensina-me o canto
Venervel e antigo
O canto para todos
Por todos entendido
Musa ensina-me o canto
O justo irmo das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

212

Musa ensina-me o canto


Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra
Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmrio
Do mar que a cercava
(Eu me lembro do cho
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)
Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco
Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava
Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do cho e da parede
Da casa primitiva
Musa ensina-me o canto
Venervel e antigo
Para prender o brilho
Dessa manh polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
De casa limpa e branca
Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
MANH
A manh esttica parada
Entre o Tejo azul e a Torre branca
Que branca e barroca sobe das guas
Manh acesa de silncio e louvor
Na breve primavera violenta
Assim a minha vida que era calma
De repente se tornou nsia e saudade
Mas a brisa da varanda doce e suave

213

Um pssaro porque algum regou

A VAGA
Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada
Seu prprio cavalo
Como cavaleiro
Fora e chicoteia
Porm mulher
Deitada na areia
Ou bailarina
Quem sem ps passeia
RESSURGIREMOS
Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
So o nome das coisas
E onde so claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
So o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convm tornar claro o corao do homem
E erguer a negra exactido da cruz
Na luz branca de Creta.

II. A ESTRELA
EIS-ME
Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mgicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silncio
Ante o silncio e o esplendor da tua face
Mas tu s de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mo em toca
O meu corao desce as escadas do tempo em que no moras
E o teu encontro
So plancies e plancies de silncio

214

Escura a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto est para alm do tempo opaco
E eu no habito os jardins do teu silncio
Porque tu s de todos os ausentes o ausente

DESPEDIDA
Na estao na tarde o fumo
O rumor o vaivm as faces
Annimas
Criam no interior do amor um outro cais
As lgrimas
O fogo da minha alma as queima antes que brotem

MEIO DA VIDA
Porque as manhs so rpidas e o seu sol quebrado
Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra
A casa compe uma por uma as suas sombras
A casa prepara a tarde
Frutos e canes se multiplicam
Nua e aguda
A doura da vida

FELICIDADE
Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estreala da noite to lmpida e serena
Pelo ncar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presena incerta
Tua presena fantstica e liberta

TRADUZIDO DE KLEIST
Dizem que no outro mundo o sol mais brilhante
E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vem essas maravilhas
So olhos apodrecidos.

215

INSCRIO
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que no vivi junto ao mar

FERNANDO PESSOA
Teu canto justo que desdenha as sombras
Limpo de vida vivo de pessoa
Teu corajoso ousar no ser ningum
Tua navegao com bssola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo.
Criaram teu poema arquitectura
E s semelhante a um deus de quatro rostos
E s semelhante a um deus de muitos nomes
Caritide de ausncias isento de destinos
Invocando a presena j perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas no colhidas

CARTA AOS AMIGOS MORTOS


Eis que morrestes agora j no bate
O vosso corao cujo bater
Dava ritmo e esperana ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
O olhar no atravessa esta distncia
No irei procurar-vos pois no sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo onde que respiro e vejo
Porm aqui eu escolhi viver
Nada me resta seno olhar de frente
Neste pas de dor e de incerteza
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a viso dura e mais difcil
Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de dio e de injustia
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as face a morrerem uma por uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem no uma coluna
Eu vos peo por este amor cortado
Que vos lembreis de mim l onde o amor
J no pode morrer nem ser quebrado

216

Que o vosso corao que j no bate


O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeio da claridade
Se compadea de mim e de meu pranto
Se compadea de mim e de meu canto

INSTANTE
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silncio

O HOSPITAL E A PRAIA
E eu caminhei no hospital
Onde o banco desolado e sujo
Onde o branco a cor que fica quando no h cor
E onde a luz cinza
E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distncia
Enrolei-os em redor do meu pescoo
Caminhei na praia quase livre como um deus
No perguntei por ti pedra meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era avento e a pedra
E isso inteiramente me bastava
E nos espaos da manh marinha
Quase livre como um deus eu caminhava
Porm no hospital eu vi o rosto
Que no pinheiral nem rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a for absurda e desmedida

III. AS GRADES
A PURA FACE
Como encontrar-te depois de ter perdido
Uma por uma as tardes que encontrei

217

O ser de todo o ser de quem nem sei


Se podes ser ao menos pressentido?
No te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixo com que eu a amei
E porque no s tempo no te dei
Meu desejo pelas horas consumido
Apenas imagino que me espera
No infinito silncio a pura face
Pralm de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce

PTRIA
Por um pas de pedra e vento duro
Por um pas de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silncio e de pacincia
Que a misria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exatido
Dum longo relatrio irrecusvel
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das to amadas
Palavras sempre ditas com paixo
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
Pedra
rio
vento
Pranto
dia
canto
Espao
raiz
e gua
minha ptria e meu centro

casa
alento

Me di a lua me solua o mar


E o exlio se inscreve em pleno tempo

PRANTO PELO DIA DE HOJE


Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador sendo impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar destrudo
Por troas por insdias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
To sbias to subtis e to peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

218

EXLIO
Quando a ptria que temos no a temos
Perdida por silncio e por renncia
At a voz do mar se torna exlio
E a luz que nos rodeia como grades

DATA
( maneira dEustache Deschamps)

Tempo de solido e de incerteza


Tempo de medo e tempo de traio
Tempo de injustia e de vileza
Tempo de negao
Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravido
Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silncio e de mordaa
Tempo onde o sangue no tem rastro
Tempo de ameaa

O SUPER-HOMEM
Onde est ele o super-homem? Onde?
Encontrei-o na rua ia sozinho
No via a dor nem a pedra nem o vento
Sua loucura e sua irrealidade
Lhe serviam de espelho e de alimento

BABILNIA
Com ptios interiores e com palmeiras
Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com esttuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro
Com corredores e silncios e penumbras

219

Com vestidos de linho tocando a pedra pura


Com cinamomo e nardo
Com jarras donde corria azeite e vinho
Com multides com gritos com mercados
Com esteiras claras sob os cus pintados
Com escribas com magos e advinhos
Com prisioneiros com servos com escravos
Com lucidez feroz com amargura
Com cincia e arte
Com desprezo
Babilnia nasceu de lodo e limo

O VELHO ABUTRE
O velho abutre sbio e alisa as suas penas
A podrido lhe agrada e seus discursos
Tm o dom de tornar as almas mais pequenas

BARCOS
Um por um para o mar passam os barcos
Passam em frente de promontrios e de terraos
Cortando as guas lisas como um cho
E todos os deuses so de novo nomeados
Para alm das runas de seus templos

LIVRO: GEOGRAFIA [1967]

I. INGRINA

MUNDO NOMEADO OU DESCOBERTA DAS ILHAS


Iam de cabo em cabo nomeando
Baas promontrios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas
E as coisas mergulhadas no sem-nome

220

Da sua prpria ausncia regressadas


Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas

II. PROCELRIA

VELRIO RICO
O morto est sinistro e amortalhado
Rodeado de herdeiros inquietos como sombras
Que atormentam o ar com seus pecados

III. A NOITE E A CASA

ESCUTO
Escuto mas no sei
Se o que oio silncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das plancies do vazio
Ou a conscincia atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
olhado e amado e conhecido
E por isso ponho em cada gesto
Solenidade e risco

VELA
Em redor da luz
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada
Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada

221

Em redor da chama
Que a menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda
Enquanto a noite antiga
Imensa e exterior
Tece seus prodgios
E ordena seus milnios
De espao e de silncio
De treva e de esplendor

ESPERA
Deito-me tarde
Espero por uma espcie de silncio
Que nunca chega cedo
Espero a ateno a concentrao da hora tardia
Ardente e nua
ento que os espelhos acendem seu segundo brilho
ento que se v o desenho do vazio
ento que se v subitamente
A nossa prpria mo poisada sobre a mesa
ento que se v o passar do silncio
Navegao antiqussma e solene

IV. DUAL
DE UM AMOR MORTO
De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano
De um amor morto no fica
Nenhuma memria
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora
Pois um amor morto no deixa
Em ns seu retrato
De infinita memria

222

apenas um facto
Que a eternidade ignora

DUAL
Altas mars no tumulto me ressoam
E paredes de silncio me reflectem

O VAZIO DESDE SEMPRE


O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeio da tua ausncia
O FILHO PRDIGO
Banido da tua herana
Dispersaste as tuas foras contra os enganos da terra
Comendo o pao magro das sementeiras devastadas At que viraste os teus passos para o avesso:
Filho prdigo que nenhum pai esperava em seu regresso

OS ESPELHOS
Os espelhos ascendem o seu brilho todo o dia
Nunca so baos
E mesmo sob a plpebra da treva
Sua lisa pupila cintila e fita
Como a pupila do gato
Eles nos reflectem. Nunca nos decoram
Porm s na penumbra da hora tardia
Quando a imobilidade se instaura no centro do silncio
Que tona dos espelhos aflora
A luz que os habita e nos apaga:
Luz arrancada
Ao interior de um fogo vtreo

V. MEDITERRNEO
NO GOLFO DE CORINTO
No Golfo de Corinto
A respirao dos deuses visvel:
um arco um halo uma nuvem
Em redor das montanhas e das ilhas

223

Como um cu mais intenso e deslumbrado


E tambm o cheiro dos deuses invade as estradas
um cheiro a resina a mel e a fruta
Onde se desenham grandes corpos lisos e brilhantes
Sem dor sem suor sem pranto
Sem a menor ruga de tempo
E uma luz de amor no poente se espalha
o sangue dos deuses imortal e secreto
Que se une ao nosso sangue e com ele batalha

SUNION
Na nudez da luz (cujo exterior o interior)
Na nudez do vento (que a si prprio se rodeia)
Na nudez marinha (duplicada pelo sal)
Uma a uma so ditas as colunas de Sunion

ELECTRA
O rumor do estio atormenta a solido de Electra
O sol espetou a sua lana nas plancies sem gua
Ela solta os seus cabelos como um pranto
E o seu grito ecoa nos ptios sucessivos
Onde em colunas verticais o calor treme
O seu grito atravessa o canto das cigarras
E perturba no cu o silncio de bronze
Das guias que devagar cruzam seu voo
O seu grito persegue a matilha da frias
Que em vo tentam adormecer no fundo dos sepulcros
Ou nos cantos esquecidos do palcio
Porque o grito de Electra a insnia das coisas
A lamentao interior arrancada dos sonhos dos remorsos e dos crimes
E a invocao exposta
Na claridade frontal do exterior
No duro sol dos ptios
Para que a justia dos deuses seja convocada

TOLON
Um mar horizontal corta os espelhos
E um sol de sal cintila sobre a mesa
Habitamos o ar livre rente ao dia
Rente ao fruto rente ao vinho rente s guas
E sob o peso leve da folhagem

224

ANTINOOS
Sob o peso nocturno dos teus cabelos
Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra no ouvida
Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelao dos deuses que no sei
Porm passaste atravs de mim
Como passamos atravs da sombra

CREPSCULO DOS DEUSES


Um sorriso de espanto brotou nas ilhas do Egeu
E Homero fez florir o roxo sobre o mar
O Kouros avanou um passo exactamente
A palidez de Athena cintilou no dia
Ento a claridade dos deuses venceu os monstros nos frontes de todos os templos
E para o fundo do seu imprio recuaram os Persas
Celebramos a vitria: a treva
Foi exposta e sacrificada em grandes ptios brancos
O grito rouco do coro purificou a cidade
Como golfinhos a alegria rpida
Rodeava os navios
O nosso corpo estava nu porque encontrara
A sua medida exacta
Inventmos: as colunas de Sunion imanentes luz
O mundo era mais nosso cada dia
Mais eis que se apagaram
Os antigos deuses sol interior das coisas
Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas
Somos alucinados pela ausncia bebidos pela ausncia
E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:
Ide dizer ao rei que o belo palcio jaz por terra quebrado
Phebo j no tem cabana nem loureiro proftico nem fonte melodiosa
A gua que fala calou-se
TACA
Quando as luzes da noite se refletirem nas guas verdes de Brindisi
Deixars o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estar em ti acesa como um fruto
Irs proa entre os negrumes da noite
Sem nenhum vento, sem nenhuma brisa s um sussurrar de bzio no silncio
Mas pelo sbito balano pressentirs os cabos
Quando o barco rolar na escurido fechada

225

Estars perdida no interior da noite no respirar do mar


Porque esta a viglia de um segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordara no intenso azul
Subirs devagar como os ressuscitados
Ters recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirs confirmada e reunida
Espantada e jovem como as esttuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto

VI. BRASIL OU DO OUTRO LADO DO MAR

DESCOBRIMENTO
Um oceano de msculos verdes
Um dolo de muitos braos como um polvo
Caos incorruptvel que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam suas crinas nos alsios
O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recm-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

LIVRO: DUAL (1972)


I. A CASA
EURYDICE
O teu rosto era mais antigo do que todos os navios
No gesto branco das tuas mos de pedra

226

Ondas erguiam seu quebrar de pulso


Em ti eu celebrei minha unio com a terra
EM NOME
Em nome da tua ausncia
Constru com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei

II. DELPHICA
I (FRISO ARCAICO)
Eu vos sado, filhas dos corcis de ps de tempestade.
Simnides de Keos
Pata dos corcis da tempestade
To concisa to duras e to finas
Puro rigor de espigas arquitrave
Medida amor e fria se combinam
II
Esse que humano foi como um deus grego
Que harmonia dos cormos manifesta
No s em sua mo e sua testa
Mas em seu pensamento e seu apego
quele amor inteiro e nunca cego
Que emergia da praia e da floresta
Na secreta nostalgia de uma festa
Trespassada de espanto e de segredo
Agora jaz sem fonte e sem projecto
Quebrou-se o tremplo actual antigo e puro
De que ele foi medida e arquitecto
Python venceu Apolo num fronto obscuro
Quebrada foi desde seu eixo recto
A construo possvel do futuro
III (ANTINOOS)
Noite diurna
At mais funda limpidez do instinto
Sob os teus cabelos em anel sombria vinha
Corpo terrestre e solene como o azul mais aceso da montanha
O quase imvel fogo dos teus beios
Pesa como fruto pleno no rumor de brisa da rvore
Porta aberta para toda a natureza
atravs de ti que os meus rios caminham como veias
Novilho de testa curta no secreto silncio dos bosques
Sobre os teus ombros poisa terrvel o meio-dia

227

Do divino celebrado no terrestre


IV
Desde a orla do mar
Onde tudo comeou intacto no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o cu cego de luz bebia o ngulo do seu vo
Onde amei com xtase a cor o peso e a forma necessria das conchas
Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas
E nadei de olhos abertos na transparncia das guas
Para reconhecer a anmona a rocha o bzio a medusa
Para fundar no sal e na pedra o eixo recto
Da construo possvel
Desde a sombra do bosque
Onde se ergue o espanto e o no-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dana da conscincia mltipla
Desde a sombra do bosque desde a orla do mar
Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas guias definem no bronze de um voo imvel e pesado
Porm quando cheguei o palco jazia disperso e destrudo
As guias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga
A lngua torceu-se na boca da Sibila
A gua que primeiro eu escutei j no se ouvia
S Antinoos mostrou o seu corpo assombrado
Seu nocturno meio-dia
V (O AURIGA)
A nudez dos ps que o escultor modelou com amor e mincia
Mostra a pura nudez do teu estar na terra
A longa tnica em seu recto cair diz o austero
Aprumo de prumo da sua juventude
O pulso fino a concisa mo divina dizem
O pensamento rpido e sutil como Athena
E a vontade sensvel e serena:
A ti mesmo te guias como a teus cavalos
Os beios de seiva inchados como fruto
Dizem o teu amor da vida extasiado e grave
E sob as pestanas de bronze nos olhos de esmalte e de nix
Fita-nos a tua paixo tranqila
O teu projecto
De em ti mesmo celebrares a ordem natural do divino
O nmero imanente
VI (ANTINOOS DE DELPHOS)
Tua face taurina tua testa baixa
Teus cabelos em anel que sacudias como crina

228

Teu torso inchado de ar como uma vela


Teu queixo redondo tua boca pesada
Tua pesada beleza
Teu meio-dia nocturno
Tua herana dos deuses que no Nila afogaste
Tua uidade inteira com teu corpo
Num silncio de sol obstinado
Agora so de pedra no museu de Delphos
Onde montanhas te rodeiam como incenso
Entre o austero auriga e a arquitrave quebrada
VII
De novo em Delphos o Python emerge
Do sono sob os sculos contido
As guias afastaram o seu vo
S as abelhas zumbem ainda no flanco da montanha seu vozear de bronze
Sob as negras nuvens mrbidos estios o Python emerge
A ordem nautual do divino deslocada
De novo cresce o poder do monstruoso
De novo cresce o poder do Apodrecido
De novo o corpo de Python reunido
Nenhum deus respira no respiar das coisas
As mquinas rescem o Python emerge
Sob o hmido interior da terra movem-se devagar os seus anis
Ventos da sia em sua boca trazem
O estridente clamor da fria tantra
Tudo vai rolar na violncia do instante
Nenhuma coisa construda na pedra

III. HOMENAGEM A RICARDO REIS


I
No creias, Ldia que nenhum estio
Por ns perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adimos colher.
Cada dia te dado uma s vez.
E no redondo crculo da noite
No existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde ser tarde e j tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelvel rasto
Que o no-vivido deixa.
No creias na demora em que te medes.
Jamais se detm Kronos cujo passo
Vai sempre mais frente
Do que o teu prprio passo.
II
Escuta, Ldia, como os dias correm

229

Fingidamente imveis,
E sombra de folhagens e palavras
Os deuses transparecem
Como para beber o sangue oculto
Que nos tornou atentos.

III
Ausentes so os deuses mas presidem.
Ns habitamos nessa
Transparncia ambgua.
Seu pensamento emerge quando tudo
De sbito se torna
Solenemente exacto.
O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa ateno ao mundo
o culto que pedem.

IV
Falamos junto luz. L fora a noite
Imvel brilha sobre o mar parado.
sombra das palavras o teu rosto
em mim se inscreve como se durasse.

V
Faz da tua vida em frente luz
Um lcido terrao exacto e branco
Docemente cortado
Pelo rio das noites.
Alheio o passo em perdida estrada
Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexvel assiste
tua prpria ausncia.

VI
Irmo do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
Pra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impes
Leis que no so as minhas.
Teus ps batem a dana
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidia cintilas
Longas mos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira

230

E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.

VII
Eros, Neera, sacudiu os seus
Cabelos sobre a testa larga e baixa
Eros-Neera-Antinoos
Irrompe no terrao.
Palmeiras nas runas de Palmira.
Eros poisou seu rosto no teu ombro,
Eros soltou as feras
Do halali, Neera.

IV. DUAL
MANH DE OUTONO NUM PALCIO DE SINTRA
Um brilho de azulejo e de folhagem
Povoa o palcio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado
Ele no quis ouvir o alade dos dias
Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mo rejeitou o sussurro das guas
Mas o pequeno palcio ntido sem nenhum fantasma
Sua sombra clara como a sombra de um palmar
No seu ptio canta um alvoroo de incio
Em suas guas brilha a juventude do tempo

A FONTE
Com voz nascente a fonte nos convida
A renascermos incessantemente
Na luz do antigo sol nu e recente
E no sussuro da noite primitiva

V. ARQUIPLAGO
Eis aqui o pas da imanncia sem mcula
O reino que te rene
Sob o rumor de folhagem que h nos deuses
O EFEBO
Claro e esguiamente medido como a amphora
Como a amphora

231

Ele contm um vinho intenso e resinado


A lucidez da sua forma coulta a embriaguez
A sua claridade conduz-no ao encontro da noite
A sua rectido de coluna preside imanncia dos desastres

LAMENTAO DE ADRIANO SOBRE A MORTE DE ANTNOOS


No escreverei mais o meu nome em letras gregas sobre a cera das tabuinhas
Porque ests morto
E contigo morreu o meu projecto de viver a condio divina

VI. EM MEMRIA
CAMES E A TENA

Irs ao Pao. Irs pedir que a tena


Seja paga na data combinada
Este pas te mata lentamente
Pas que tu chamaste e no responde
Pas que tu nomeias e no nasce
Em tua perdio se conjuraram
Calnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou seu ser inteiramente
E aqueles que invocaste no te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela pacincia cuja mo de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto
Irs ao Pao irs pacientemente
Pois no te pedem canto mas pacincia
Este pas te mata lentamente

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA


Para que ela tivesse um pescoo to fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule

232

Para que os seus olhos fossem to frontais e limpos


Para que a sua espinha fosse to direita
E ela usasse a cabea to erguida
Com uma to simples claridade sobre a testa
Foram necessrias sucessivas geraes de escravos
De corpo dobrado e grossas mos pacientes
Servindo sucessivas geraes de prncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
vidos cruis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiar de gente
Para que ela fosse aquela perfeio
Solitria exilada sem destino

LIVRO: O NOME DAS COISAS [1977]

I. 1972-73
CCLADES
(evocando Fernando Pessoa)
A claridade frontal do lugar impe-me a tua presena
O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse
Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti prprio
Vivo de ti prprio
Em Lisboa cenrio da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O freqentador irnico delicado e corts dos cafs da Baixa
O visionrio discreto dos cafs virados para o Tejo
(Onde ainda no mrmore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mos
O imperceptvel dedilhar das tuas mos)
Esquartejado pelas frias do no-vivido
margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactido desenhaste os mapas
Das mltiplas navegaes da tua ausncia
Aquilo que no foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com prumos sondas astrolbios bssolas
Procedeste ao levantamento do desterro

233

Nasceste depois depois


E algum gastara em si toda a verdade
O caminho da ndia j fora descoberto
Dos deuses s restava
O incerto perpassar
No murmrio e no cheiro das paisagens
E tinha muitos rostos
Para que no sendo ningum dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso no adverso
Porm obstinada eu invoco dividido
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada s ilhas onde jamais vieste
Estes so os arquiplagos que derivam ao longo do teu rosto
Estes so os rpidos golfinhos da tua alegria
Que os deuses no te deram nem quiseste
Este o pas onde a carne das esttuas como choupos estremece
Atravessado pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respirao das coisas
Nas praias onde h um espelho voltado para o mar
Aqui o enigma que me interroga desde sempre
E mais nu e veemente e por isso te invoco:
Porque foram quebrados os teus gestos?
Quem te cercou de muros e de abismos?
Quem derramou no cho os teus segredos?
Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus ps nas ilhas
E a sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruado sobre ti
No estio deste lugar chamo por ti
Que hibernaste a prpria vida como o animal na estao adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro para melhor ver recua
E quiseste a distncia que sofreste
Chamo por ti reno os destroos as runas os pedaos
Porque o mundo estalou como pedreira
E no cho rolam capitis e braos
Colunas divididas estilhaos
E da nfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros
Porm aqui as deusas cor de trigo
Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam o sol azul onde te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausncia
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
vivo de ti mesmo

234

E que ser e estar coincidissem


No um da boda
Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penlope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse

CHE GUEVARA
Contra ti se ergueu a prudncia dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indeciso dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revoluo com desforra
De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas
Porm
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece

GRCIA 72
De novo os persas recuaro para os confins do seu imprio
Afundados em distncia confundidos com o vento
De novo o dia ser liso sobre a orla do mar
Nada encobrir a pura manh da imanncia

FERNANDO PESSOA OU O POETA EM LISBOA


Em sinal de sorte ou de desgraa
A tua sobra cruza o ngulo da praa
(Trmula intacta impossessiva alheia
E como escrita de lpis leve e baa)
E sob o vo das gaivotas passa
Atropelada por tudo quanto passa
Em sinal de sorte ou de desgraa

O PALCIO
Era um dos palcios do Minotauro
O da minha infncia para mim o primeiro

235

Tinha sido construdo no sculo passado (e pintado a vermelho)


Esttuas escadas veludos granitos
Tlias o cercavam de msica e murmrio
Paixes e traies o inchavam de grito
Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam
Seu ptio era interior era trio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palcios do Minotauro
O da minha infncia para mim o vermelho
Ali a magia como fogo ardia de Maro a Fevereiro
A prata brilhava o vidro Luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia
Era um dos palcios do Minotauro
O da minha infncia para mim o primeiro
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fria o clamor o no dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia

PARFRASE
Antes ser na terra escravo de um escravo
Do que ser no outro mundo rei de todas as sombras
Homero, Odisseia

Antes ser sob a terra abolio e cinza


Do que ser neste mundo rei de todas as sombras

II. 1974-75
REVOLUO
Como casa limpa
Como cho varrido
Como porta aberta
Como puro incio
Como tempo novo
Sem mancha nem vcio

236

Como a voz do mar


Interior de um povo
Como pgina em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitao

Separados fomos por ctaras e canto


E pelos longos poemas silabados
E entre ns deitaram-se paisagens
Que nos mantinham imveis e distantes
Embora o fogo secreto das palavras
E a veemncia do canto e das imagens
Embora a paixo das noites consteladas
E o nevoeiro tocando a nossa face
Separados fomos por ctaras e canto
Como outros por prises ou por espadas

III
SER POSSVEL
Ser possvel que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada sejam seno seu rosto ido
Sem regresso nem resposta s perdido?

A FORMA JUSTA
Sei que seria possvel construir um mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaos e das fontes
O cu e o mar e a terra esto prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos se ningum a atraioasse proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a prpria forma justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possvel construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel perfeio do universo

237

Por isso recomeo sem cessar a partir da pgina em branco


E este meu ofcio de poeta para a reconstruo do mundo

POEMA
Cantaremos o desencontro:
O limiar e o linear perdidos
Cantaremos o desencontro:
A vida errada num pai errado
Novos ratos mostram a avidez antiga

LIVRO: NAVEGAES [1983]

LISBOA
Digo: Lisboa
Quando atravesso vinda do sul o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extenso nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas
Vejo-a a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carncia
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de no-ser
Com seus meandros de espanto insnia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e mscara
Enquanto o largo mar Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construda ao longo da sua prpria ausncia
Digo o nome da cidade
Digo para ver

AS ILHAS
III
luz do aparecer a madrugada
Iluminava o cncavo de ausentes
Velas a demandar essas paragens
Aqui desceram as ncoras escuras

238

Daqueles que vieram procurando


O rosto real de todas as figuras
E ousaram aventura a mais incrvel Viver a inteireza do possvel

V
Ali vimos a veemncia do visvel
O aparecer total exposto inteito
E aquilo que nem sequer ousramos sonhar
Era o verdadeiro

VI
NAVAGAVAM SEM O MAPA QUE FAZIAM
Navegavam sem o mapa que faziam
(Atrs deixando conluios e conversas
Intrigas surdas de bordis e paos)
Os homens sbios tinham concludo
Que s podia haver o j sabido:
Para a frente era s o inavegvel
Sob o clamor de um sol inabitvel
Indecifrada escrita de outros astros
No silncio das zonas nebulosas
Trmula a bssola tacteava espaos
Depois surgiram as costas luminosas
Silncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visvel frente a frente

VII
Difcil saber de frente a tua morte
E no te esperar nunca mais nos espelhos da bruma

DERIVA
IV
Ele porm dobrou o cabo e no achou a ndia
E o mar o devorou com o instinto de destino que h no mar

239

VII
Outros diro senhor as singraduras
Eu vos direi a praia onde Luzia
A primitiva manh da criao
Eu vos direi a nudez recm-criada
A esquiva doura e a leve rapidez
De homens ainda cor de barro que julgaram
Sermos seus antigos deuses tutelares
Que regressavam

VIII
Vi as guas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rpidas aves furtivos animais
Vi prodgios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que j nenhum de ns entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanas
Oiro tambm flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi prolas e conchas e corais
Desertos fontes trmulas campinas
Vi o rosto de Eurydice nas neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
S do Preste Joo no vi sinais
As ordens que levava no cumpri
E assim contando tudo quanto vi
No sei se tudo errei ou descobri

X
Sombrios deuses
Senhores do medo antigo
O sopro como esttuas suspendendo
Na movedia luz das lamparinas

XI
Olhos abertos do navegador
Mudam aqui a luz a sombra a cor
E tambm faces e gestos se modulam

240

Segundo elaboradas estranhezas


Outro o recorte da vaga e do penedo
Caudas de drages seguem os barcos

XIII
Cano rente ao nada
No silncio quieto
Da noite parada
Como quem buscasse
Seu rosto e o errasse

LIVRO: ILHAS [1989]

I. POEMAS REENCONTRADOS
FRAGMENTO DE OS FRACOS
............................................................
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam o erro dos outros
Administram os erros dos outros
So hbeis e sbios
Tm uma longa experincia do poder
E quando no podem usar a prpria fora
Usam a fraqueza dos outros
E ganham
Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisvel
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um toiro na arena
............................................................

A PRINCESA DA CIDADE EXTREMA OU A MORTE DOS RITOS


Quando o palcio do rei do Estio foi invadido
Is princesa da Cidade Extrema
Inclinou gravemente a cabea pequena
E em seu sorriso de coral os dentes brilharam como gros de arroz
Quando levaram sua coleo de jades

241

O seu leito de sndalo


O sorriso franziu sua narina fina
Suas pestanas acenaram como borboletas
Quando levaram suas jarras vermelhas seus livros de estampas
Ela continuou flexvel e serena
Suas pestana aplaudiram como leques pretos
Seus lbios recitaram a sentena antiga:
Aquele que despojado fica livre
No lago viu-se
Ela mesma era
Flexvel e brilhante como seda
Fresca e macia como jade
Colorida e preciosa como estampa
Serena como seda dormiu nessa noite sobre esteiras
Porm a aurora do tempo novo despontou na cidade
Quando ela acordou
O cortejo das mos no acorreu
A mo que na jarra pe a flor
A mo que acende o incenso
A mo que desenrola o tapete
A mo que faz cantar a msica das harpas
A longa subtil mo que pinta o contorno dos olhos
A mo fresca e lenta que derrama os perfumes
Mo nenhuma invoca o esprito dos deuses
Protectores do tecto
Mo nenhuma dispe o ritual antiqussimo que introduz
O fogo linear do dia
Mo nenhuma traa o gesto que constri
A forma celeste do dia
As vozes dizem:
Ergue-te sozinha
No s dolo no s divina
Nenhuma coisa divina
Como seda no cho cai desprendida
Assim ela esvada
Quando a si torna no torna sua imagem
Tudo abolido e bebido em repentina voragem
O colquio dos bambus calou-se
Nem a r coaxa
Como caule ao vento seu pescoo fino baloia
Suas pestanas permanecem imveis como as do cego que h milnios

242

Junto da ponte no v o rio


Em seus vestidos tropea como o cego
Suas mos tacteiam o ar
Muito alto ouve ranger o cu
So os deuses rasgando suas sedosas bandeiras de vento
Para no ouvir o silvo dos gumes acerados
Mergulha no lago at ao lodo
Depois flutua muitos dias
No centro da corola que formam
Os seus largos vestidos espalhados

NO TE ESQUEAS NUNCA
No te esqueas nunca de Thasos nem de Egina
O pinhal a coluna a veemncia divina
O templo o teatro o rolar de uma pinha
O ar cheirava a mel e a pedra a resina
Na esttua morava tua nudez marinha
Sob o sol azul e a veemncia divina
No te esqueas nunca de Treblinka e Hiroshima
O horror o terror a suprema ignomnia

II
PERSONA
Mitolgico personagem parece
Um falco do Egipto
Sob seu lgico discurso permanece
Intacto o no dito
Mas algo de falco nele se inscreve
Hierglifo indecifrvel
E o deus que ele foi ou nele esteve
Desarticula o seu olhar instvel

III
OS NAVEGADORES
O mltiplo nos inebria
O espanto nos guia

243

Com audcia desejo e calculado engenho


Formos os limites Porm o Deus uno
Dos desvios nos protege
Por isso ao longo das escalas
Cobrimos de oiro o interior sombrio das igrejas

DESCOBRIMENTO
Saudavam com alvoroo as coisas
Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manh

IV
GUITARRA
Na voz de oiro e de sombra da guitarra
Algo de mim a si prprio renuncia

Glosa de So well Go no more a roving de Byron


No irei mais meu erro errando errante
Pela noite fora
Embora a lua brilhe tanto como outrora
Embora como outrora
No cesse do amor a voz uivante
Que me devora
Pois o corao gasta o peito
E a espada gasta a bainha
O tempo ri o corao desfeito
E a alma sozinha
Embora a noite sempre pea amor
E o dia volte demasiado cedo
E o luar corte como espada nua
No irei mais em pnico e segredo
Sob a luz da lua

O PAS SEM MAL


Um etnlogo diz ter encontrado
Entre selvas e rios depois de longa busca
Uma tribo de ndios errantes
Exaustos exauridos semimortos

244

Pois tinham partido desde h longo anos


Percorrendo florestas desertos e campinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do pas sem mal
Como os revolucionrios do meu tempo
Nada tinham encontrado

OS BIOMBOS NAMABAM
Os biombos Nambam contam
A histria alegre das navegaes
Pasmo de povos de repente
Frente a frente
Alvoroo de quem v
O to longe to ao p
Laca e leque
Kimono camlia
Perfeio esmero
E o sabor do tempero
Cerimnias mesuras
Nipnicas finuras
Malcia perante
Narigudas figuras
Inchados cales
Enquanto no alto
Das mastreaes
Fazem pinos do saltos
Os geis acrobatas
Das navegaes
Danam de alegria
Porque o mundo encontrado
muito mais belo
Do que o imaginado

ESTTUA DE BUDA
Os belos traos o inchado beio a narina fina
O torneado corpo e sua
Beleza to carnal de magnlia e fruto
Em to longqua latitue representam
O prncipe da perfeio da renncia
Antes do museu
Em sua frente
Oscilvam sombras e luzes enquanto deslizava

245

O rio das preces

ELSINORE
No palcio dos tridas como em Elsinore
Tudo era cavernoso as paredes
Eram grossas o espao excessivo e sonoro
Roucas as vozes da maldio antiga
Porm em Micenas o sangue era exposto
E corria vermelho como num grande talho
Sujando apenas as mos dos assassinos
E a gua da banheira
L fora o rio a luz
Continuavam limpos e transparentes
O crime era um corpo estranho circunscrito
No pertencia natureza das coisas
Em Elsinore ao contrrio o mal era um veneno
Subtil
Invadia o ar e a luz penetrava
Os ouvidos as narinas o prprio pensamento
O amor era impossvel e ningum podia
Libertar-se:
O inferno vomitava sua pestilncia invadia
As veias e os rios:
No entanto o mal no se via: era apenas
Um leve sabor a podre que fazia parte
Da natureza das coisas

LIVRO: MUSA (1994)

2 ANDAMENTO
ORPHEU
Orpheu
seu canto alto e grave
O canto de oiro o xtase da lira
Orpheu
A palidez sagrada de seu rosto
Que de clares e sombras se ilumina
Ante seus ps se deitam mansas feras

246

Vencidas pela msica divina

EURYDICE EM ROMA
Por entre clamor e vozes oio atenta
A voz da flauta na penumbra fina
E ao longe sob a copa dos pinheiros
Com leves ps que nem as ervas dobram
Intensa absorta sem se virar pra trs E j separada Eurydice caminha

3 ANDAMENTO

ELEGIA
Aprende
A no esperar por ti pois no te encontrars
No instante de dizer sim ao destino
Incerta paraste emudecida
E os oceanos depois devagar te rodearam
A isso chamaste Orpheu Eurydice Incessante intensa a lira vibrava ao lado
Do desfilar real dos teus dias
Nunca se distingue bem o vivido do no vivido
O encontro do fracasso Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta
Quando se ergue o canto
Por isso a memria sequiosa quer vir tona
Em procura da parte que no deste
No rouco instante da noite mais calada
Ou no secreto jardim beira-rio
Em Junho

FERNANDO PESSOA
Com o sobretudo abotoado at o queixo
Embiocado afastado
No lugar mais escuro do caf escrevia
O mltiplo poema o canto inumervel
Arrancado ao desejo paixo memria
s lucidssimas frias da renncia

247

LIVRO: O BZIO DE CS E OUTROS POEMAS [1997]

O INFANTE
Aos homens ordenou que navegassem
Sempre mais longe para ver o que havia
E sempre para o sul e que indagassem
O mar a terra o vento a calmaria
O povos e os astros
E no desconhecido cada dia entrassem

NO MEU PAS
As pequenas cidades intensas
Onde o tempo no dissolvido mas dura
E cada instante ressoa nas paredes da esquina
E o rosto de Laura aflora na janela desencontrada
E apaixonado de testa obstinada como a de um toiro
Em vo a procura onde ela nunca est
aqui que ao passarmos a nossa garganta se aperta
Enquanto um homem alto e magro
Baixando a direito o chapu largo e escuro
De cima a baixo se descobre
Ao transpor o limiar sagrado da casa

LIVRO: DISPERSOS

MAR
De novo o som o ressoar o mar
De novo o embalo do tumulto mais antigo
E a inteireza do instante primitivo
De novo o canto o murmurar o mar
Que se repete intacto e sacral
De novo o limpo e nu clamor primordial

NAVEGADORES
Esses que desenharam os mapas da surpresa
Contornando o cabos e dando nome s ilhas
E por entre brilhos espelhos e distncias
Por entre areas brumas irisadas
Em extticas manhs solenes e paradas
No breve instante eterno surpreederam

248

O arcaico sorrir do mar recm-criadp

LIVRO: INDITOS
Enigmticos, desertos e suspensos
Os espaos vermlhos do poente
Pases de completa maravilha,
Cobrem o campo morto dos destroos
Um por um morremos olhos fitos
No caminho dos deuses.

So estes os dias do novo estio deslumbrado


Quando depomos as grades e as barreiras
Como um vestido que foi usado contra o frio
So estes os dias em que a ferocidade depe as suas armas

1
A respirao dos deuses um silncio nu
E uma nudez mais aguda poisada sobre as coisas
2
Aqui minha alma se suspende
Como tocando a substncia pressentida
3
Eis o centro do mundo sem umbigo
A exacta proporo de presena e vazio

249

SO FRANCISCO DE ASSIS
CNTICO DAS CRIATURAS / CNTICO DO IRMO SOL
Altssimo, onipotente, bom Senhor,
teus so o louvor, a glria, a honra e toda a bno.
Somente a ti, altssimo, convm,
e ningum mais digno de te nomear.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas tuas criaturas,
especialmente o nobre irmo sol,
que faz o dia e com ele nos ilumina.
belo e radiante num grande esplendor:
carrega a tua face.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irm lua e as estrelas,
que no cu formaste, claras e preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmo vento,
pelo ar nublado e sereno e todo o clima
donde tiram sustento as tuas criaturas.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irm gua,
que muito til e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmo fogo,
com que a noite se alumia,
pois ele belo e alegre e vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irm me terra,
que nos sustenta e governa
e que produz diversos frutos com flores furta-cores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu
amor
e suportam doenas e aflies.
Felizes daqueles que as sustentam em paz,
pois por ti, Altssimo, sero coroados.
Louvado sejas, meu senhor, por nossa irm a morte
corporal,
da qual ningum que vive pode escapar.
Ai daqueles que morrem me pecados mortais,
felizes os que ela achar em tua santssima vontade,
pois a morte segunda no lhes far mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
e agradecei e servi-o com toda humildade.

WISAWA SZYMBORSKA
A MULHER DE LOT
Dizem que olhei para trs de curiosa.
Mas quem sabe eu tambm tinha outras razes.

250

Olhei para trs de pena pela tigela de prata.


Por distrao amarrando a tira da sandlia.
Para no olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela sbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobedincia dos mansos.
Alerta perseguio.
Afetada pelo silncio, na esperana de Deus ter mudado de idia.
Nossas duas filhas j sumiam para l do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errncia. Sonolncia.
Olhei para trs enquanto punha a trouxa no cho.
Olhei para trs por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
J no eram bons nem maus simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pnico consorte.
Olhei para trs de solido.
De vergonha de fugir s escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi s quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impresso de que me viam dos muros de Sodoma
e caam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trs de raiva.
Para me saciar de sua enorme runa.
Olhei para trs por todas as razes mencionadas acima.
Olhei para trs sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus ps.
Foi uma fenda que de sbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi ento que ambos olhamos para trs.
No, no. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escurido no caiu do cu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei vrias vezes.
Se algum me visse, por certo acharia que eu danava.
concebvel que meus olhos estivessem abertos.
possvel que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

LBUM
Ningum na famlia nunca morreu de amor.
O que passou, passou, mas nada que alimente um mito.
Romeus tsicos? Julietas diftricas?
Alguns at atingiram uma idade senil.
Nenhuma vtima de falta de reposta
a uma carta manchada de lgrimas!
Ao fim e ao cabo sempre aparecia algum vizinho
de pincen carregando um buqu.
Nunca ningum sufocou num armrio estiloso
porque o marido da amante voltou de repente!
Nenhuma mantilha, babado ou fita
nunca impediu ningum de aparecer na foto.
E nunca na alma o Bosch infernal!
E nunca com uma pistola pelo quintal!
(Faleceram de bala na cabea, mas por outros motivos

251

e em macas de campanhas.)
Mesmo essa de coque exttico
e olheiras fundas como depois de uma folia
se foi em meio a uma grande hemorragia
mas no para ti, danarino, e no com pena.
Talvez algum muito antes do daguerretipo
mas desses no lbum, nenhum, que eu tenha sabido.
As tristezas se desfaziam em risos, corriam os dias
e eles consolados sumiam-se de gripe.

A CURTA VIDA DOS NOSSOS ANTEPASSADOS


No eram muitos os que passavam dos trinta.
A velhice era privilgio das pedras e das rvores.
A infncia durava tanto quanto a dos filhotes dos lobos.
Era preciso se apressar, dar conta da vida
antes que o sol se pusesse,
antes que a primeira neve casse.
Meninas de treze anos gerando filhos,
meninos de quatro anos rastreando ninhos de pssaros na moita,
jovens de vinte servindo de guias nas caadas
ainda h pouco no existiam, j no existem.
Os fins da infinitude rpido se juntavam.
As bruxas ruminavam maldies
ainda com todos os dentes da mocidade.
Sob os olhos do pai o filho se tornava homem.
Sob as rbitas do av nascia o neto.
De todo modo, no contavam os anos.
Contavam as redes, os tachos, os ranchos, os machados.
O tempo, to generoso para qualquer estrela no cu,
estendia-lhes a mo quase vazia
e a retirava rpido, como se tivesse pena.
Mais um passo, mais dois
ao longo de um rio brilhante,
que da treva emerge a na treva some.
No havia nenhum instante a perder,
perguntas a postergar e iluminaes tardias
a no ser as que tivessem sido antes experimentadas.
A sabedoria no podia esperar os cabelos brancos.
Tinha que ver claro, antes que a claridade chegasse,
e ouvir toda voz, antes que ela se propagasse.
O bem e mal
dele sabiam pouco, porm tudo:
quando o mal triunfa, o bem se esconde;
quando o bem aparece, o mal fica de tocaia.
Nem um nem outro se pode vencer
nem colocar a uma distncia sem volta.
Por isso se h alegria, com um misto de aflio,
se h desespero, nunca sem um fio de esperana.
A vida, mesmo se longa, sempre ser curta.
Curta demais para se acrescentar algo.
PRIMEIRA FOTO DE HITLER
E quem essa gracinha de tiptop?

252

o Adolfinho, filho do casal Hitler!


Ser que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da pera de Viena?
De quem essa mozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem essa barriguinha cheia de leite, ainda no se sabe:
de um tipgrafo, padre, mdico, mercador?
Quais caminhos percorrero estas pernocas, quais?
Iro para o jardinzinho, a escola, o escritrio, o casrio
com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrs,
no faltaram sinais na terra nem no cu:
gernios na janela, um sol primaveril,
a msica de um realejo no porto,
votos de bom augrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho proftico da me:
sonhar com uma pomba- sinal de boas-novas,
se for pega- vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem , o coraozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graa de Deus e bate na madeira, sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebs de todos os outros lbuns de famlia.
No, no vai chorar agora,
o fotgrafo atrs do pano preto vai fazer um clique.
Ateli Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau uma cidade pequena mas respeitvel,
firmas slidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de po e de sabo cinzento.
No se ouve o ladrar dos ces nem os passos do destino.
Um professor de histria afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos.
TORTURAS
Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frgeis, juntas alongveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta.
Nada mudou.
Treme o corpo como tremia
antes de se fundar e Roma e depois de fundada,
no sculo XX antes e depois de Cristo,
as torturas so como eram, s a terra encolheu
e o que quer que se passe parece ser na porta ao lado.
Nada mudou.
S chegou mais gente,
e s velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, e ser o grito da inocncia

253

segundo escala e registro sempiternos.


Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimnias, as danas.
O gesto da mo protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o cho, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.
Nada mudou.
Apenas o curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
some, volta, chega perto, voa longe,
estranha a si prpria, inatingvel,
ora certa, ora incerta da sua existncia,
enquanto o corpo , ,
e no tem para onde ir.

DRUMMOND

SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA


Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas h que no vi.
Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto misto
e que odiei ou senti.
Nem Fausto nem Mefisto,
deusa que se ri
deste nosso oaristo,
eis-me a dizer: assisto
alm, nenhum, aqui,
mas no sou eu, nem isto.

QUINTANAS BAR
Num bar fechado h muitos, muitos anos, e cujas portas de ao bruscamente se descerram, encontro,
que eu nunca vira, o poeta Mario Quintana.
To simples reconhec-lo, toda identificao v. O poeta levanta seu corpo. Levanto o meu. Em
algum lugar coxilha? montanha? vai rorejando a manh.
Na total desincorporao das coisas antigas, perdura um elemento mgico: estrela-do-mar ou
Aldebar?, tamanquinhos, menina correndo com o arco. E corre com ps de l.

254

Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cmplices, ele com seu talism. Assim me
fascinavam outrora as feitiarias da preta, na cozinha de picum.
Na conspirao da madrugada, erra solitrio dissolve-se o bar o poeta Quintana. Seu olhar
devassa o nevoeiro, cada vez mais densa a bruma de antanho.
Uma teia se tecendo, e sem trabalho de aranha. Falo de amigos que envelheceram ou que sumiram na
semente de avel.
Agora voamos sobre tetos, garupa da bruxa estranha. Para iludirmos a fome, que no temos, pintamos
um rom.
E j os homens sem provncia, despeta-la-se a flor alde. O poeta aponta-me casas: a de Rimbaud, a de
Blake, e a gruta camoniana.
As amadas do poeta, l embaixo, na curva do rio, ordenam-se em lenta pavana, e uma a uma, gotas
cidas, desaparecem no poema. h tantos anos, ser ontem, foi amanh? Signos criptogrficos ficam
gravados no cu eterno ou na mesa de um bar abolido, enquanto, debruado sobre o mrmore,
silenciosamente viaja o poeta Mrio Quintana.

VIVER
Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era s a batida
numa porta fechada?
E ningum respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?
Isso, ou menos que isso,
uma noo de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?
O projeto de escuta
procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?
Como viver o mundo
em termos de esperana?
E que palavra essa
que a vida no alcana?

O FIM NO COMEO
A palavra cortada
na primeira slaba.
A consoante esvanecida
sem que a lngua atingisse o alvolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo havia, havia um campo?
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.
A vida no chega a ser breve.

255

POEMA PATTICO
Que barulho esse na escada?
o amor que est acabando,
o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
Que barulho esse na escada?
Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
a lua imvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
Que barulho esse na escada?
a torneira pingando gua,
o lamento imperceptvel
de algum que perdeu no jogo
enquanto a banda de msica
vai baixando, baixando de tom.
Que barulho esse na escada?
a virgem com um trombone,
a criana com um tambor,
o bispo com uma campainha
e algum abafando o rumor
que salta de meu corao.

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO


Provisoriamente no cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraos,
no cantaremos o dio porque esse no existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertes, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mes, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos tmulos nascero flores amarelas e medrosas.

BOLERO DE RAVEL
A alma cativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia.
Infinita, infinitamente...
As mos no tocam jamais o areo objeto,
esquiva ondulao evanescente.
Os olhos, magnetizados, escutam
e no crculo ardente nossa vida para sempre est presa,
est presa...
Os tambores abafam a morte do Imperador.

256

ANOITECER
a hora em que o sino toca,
mas aqui no h sinos;
h somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trgicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
a hora em que o pssaro volta,
mas de h muito no h pssaros;
s multides compactas
escorrendo exaustas
como espesso leo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.
a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo no pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz morte mergulho
no poo mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.
Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silncio.
Haver disso no mundo?
antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
CONSOLO NA PRAIA
Vamos, no chores
A infncia est perdida.
A mocidade est perdida.
Mas a vida no se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o corao continua.
Perdeste o melhor amigo.
No tentaste qualquer viagem.
No possuis casa, navio, terra.
Mas tens um co.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustia no se resolve.
sombra do mundo errado

257

murmuraste um protesto tmido.


Mas viro outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas guas.
Ests nu na areia, no vento
Dorme, meu filho.

ONTEM
At hoje perplexo
ante o que murchou
e no eram ptalas.
De como este banco
no reteve forma,
cor ou lembrana.
Nem esta rvore
balana o galho
que balanava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis est gravado
no no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

RETRATO DE FAMLIA
Este retrato de famlia
est um tanto empoeirado.
J no se v no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mos dos tios no se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A av ficou lisa, amarela,
sem memrias da monarquia.
Os meninos, como esto mudados.
O rosto de Pedro tranqilo,
usou os melhores sonhos.
E Joo no mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantstico.
As flores so placas cinzentas.
E a areia, sob ps extintos,
um oceano de nvoa.

258

No semicrculo das cadeiras


nota-se certo movimento.
As crianas trocam de lugar,
mas sem barulho: um retrato.
Vinte anos um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se prope.
Esses estranhos assentados,
meus parentes? No acredito.
So visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.
Ficaram traos da famlia
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo cheio de surpresas.
A moldura deste retrato
em vo prende suas personagens.
Esto ali voluntariamente,
saberiam se preciso voar.
Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salo,
ir morar no fundo de mveis
ou no bolso de velhos coletes
A casa tem muitas gavetas
e papis, escadas compridas.
Quem sabe a malcia das coisas,
quando a matria se aborrece?
O retrato no me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
J no distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idia de famlia
viajando atravs da carne.

ONDE H POUCO FALVAMOS


um antigo
piano, foi

259

de alguma av, morta


em outro sculo.
E ele toca e ele chora e ele canta
sozinho,
mas recusa raivoso filtrar o mnimo
acorde, se o fere
mo de moa presente.
Ai piano enguiado, Jesus!
Sua gente est morta,
seu prazer sepultado,
seu destino cumprido,
e uma tecla
pe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.
um rato?
O vento?
Descemos a escada, olhamos apavorados
a forma escura, e cessa o seu lamento.
Mas esquecemos. O dia perdoa.
Nossa vontade amar, o piano cabe
em nosso amor. Pobre piano, o tempo
aqui passou, dedos se acumularam
no verniz rodo. Floresta de dedos,
montes de msica e valsas e murmrios
e sandlias de outro mundo em chos nublados.
Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos.
Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco:
Ele estronda. A poeira profusa salta,
e aranhas, seres de asa e pus, ignbeis,
circulam por entre a matria sarcstica, irredutvel.
Assim nosso carinho
encontra nele o fel, e se resigna.
Uma parede marca a rua
e a casa. toda proteo,
docilidade, afago. Uma parede
se encosta em ns, e ao vacilante ajuda,
ao tonto, ao cego. Do outro lado a noite,
o medo imemorial, os inspetores
da penitenciria, os caadores, os vulpinos.
Mas a casa um amor. Que paz nos mveis.
Uma cadeira se renova ao meu desejo.
A l, o tapete, o liso. As coisas plcidas
e confiantes. A casa vive.
Confio em cada tbua. Ora, sucede
que um ncubo perturba
nossa modesta, profunda confidncia.
irmo do corvo, mas faltam-lhe palavras,
busto e humour. Uma dolncia rgida,
o reumatismo de noites imperiais, irritao

260

de no ser mais um piano, ante o potico sentido da palavra,


e tudo que deixam mudanas,
viagens, afinadores,
experimento de jovens,
brilho fcil de rapsdia,
outra vez mudanas,
golpes de ar, madeira bichada,
tudo que morte de piano e o faz sinistro, inadaptvel,
meio grotesco tambm, nada piedoso.
Uma famlia, como explicar? Pessoas, animais,
objetos, modo de dobrar o linho, gosto
de usar este raio de sol e no aquele, certo copo e no outro,
a coleo de retratos, tambm alguns livros,
cartas, costumes, jeito de olhar, feitio de cabea,
antipatias e inclinaes infalveis: uma famlia,
bem sei, mas e esse piano?
Est no fundo
da casa, por baixo
da zona sensvel, muito
por baixo do sangue.
Est por cima do teto, mais alto
que a palmeira, mais alto
que o terrao, mais alto
que a clera, a astcia, o alarme.
Cortaremos o piano
em mil fragmentos de unha?
Sepultaremos o piano
no jardim?
Como Anbal o jogaremos
ao mar?
Piano, piano, deixa de amofinar!
No mundo, tamanho peso
de angstia
e voc, girafa, tentando.
Resta-nos a esperana
(como na insnia temos a de amanhecer)
que um dia se mude, sem noticia,
clandestino, escarninho, vingativo,
pesado,
que nos abandone
e deserto fique esse lugar de sombra
onde hoje impera. Sempre imperar?
( um antigo piano, foi
de alguma dona, hoje
sem dedos, sem queixo, sem
msica na fria manso.
Um pedao de velha, um resto
de cova, meu Deus, nesta sala
onde ainda h pouco falvamos.)

261

REMISSO
Tua memria, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vo se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.
Mas, pesares de qu? perguntaria,
se esse travo de angstia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,
e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forou ao exlio das palavras,
seno contentamento de escrever,
enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo do teu ser?

O CHAMADO
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
j no criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.
Ao v-lo curvo e desgarrado
na catica noite urbana,
o que senti, no alegria,
era, talvez, carncia humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperana que no digo)
para onde vai a que angra serena,
a que Pasrgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espao
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparncias sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuio,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ningum
pressentisse, em torno, o Chamado.

RELGIO DO ROSRIO

262

Era to claro o dia, mas a treva,


do som baixando, em seu baixar me leva
pelo mago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pnico do mundo,
que se entrelaa no meu prprio choro,
e compomos os dois um vasto coro.
Oh dor individual, afrodisaco
selo gravado em plano dionisaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do prprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invoc-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memria some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
to habitual e rica de pungncia
como um fruto maduro, uma vivncia,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espao e do caos e das esferas,
do tempo que h de vir, das velhas eras!
No pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
No motor de tudo e nossa nica
fonte de luz, na luz de sua tnica?
O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e brisa e fala impura.
O amor no nos explica. E nada basta,
nada de natureza assim to casta
que no macule ou perca sua essncia
ao contacto furioso da existncia.

263

Nem existir mais que um exerccio


de pesquisar de vida um vago indcio,
a provar a ns mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praa do Rosrio,
foi-se, no som, a sombra. O columbrio
j cinza se concentra, p de tumbas,
j se permite azul, risco de pombas.

LAVRA
DESTRUIO
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto no se vem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que so? Dois inimigos.
Amantes so meninos estragados
pelo mimo de amar: e no percebem
quanto se pulverizam no enlaar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada. Ningum. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrana de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

OS EXCNTRICOS
1
Chega a uma fazenda, apeia do cavalinho, de casa! Pede que lhe sirvam leito assado, e retira-se,
qualquer que seja a resposta.

2
Diz: Vou para o Japo e tranca-se no quarto, s brindo para que lhe levem alimento e bacia de banho, e
retirem os excretos. No fim de seis meses, regressa de viagem.
3

264

Cola duas asas de fabricao domstica nas costas e projeta-se do sobrado, na certez-esperana de vo.
Todas as costelas partidas.

4
Apaixona-se pela moa, que se casa com outro. Persegue o casal em todas as cidades para onde este se
mude. O marido, desesperado, atira nele, pela janela. No outro lado da rua, d outra janela, d uma
gargalhada e desaparece: a bala acerta no boneco que o protege sempre.

5
Data suas cartas de certo lugar: Meio do mundo, encontro das tropas, idas e vindas. Ao terminar, sada:
Dodarododo e assina: Dr. Manuel Buzina, que no mata, mas amofina.

LEO-MARINHO
Suspendei um momento vossos jogos
na fmbria azul do mar, peitos morenos.
Pescadores, voltai. Silncio, coros
de rua, no vaivm, que um movimento
diverso, uma outra forma se insinua
por entre as rochas lisas, e um mugido
se faz ouvir, soturno e diurno, em pura
exalao opressa de carinho.
o louco leo-marinho, que pervaga,
em busca, sem saber, como da terra
(quando a vida nos di, de to exata)
nos lanamos a um mar que no existe.
A doura do monstro, oclusa, espera...
Um leo-marinho brinca em ns, e triste.
DELIGAMENTO
minhalma, d o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar!
Sem pesar de ter existido e no ter saboreado o inexistvel.
Quem sabe um dia o alcanars, alma conclusa?
minha alma, irm deserta, consola-te de me teres habitado,
se no fui eu que te habitei, hspede maligno,
com irritao, com desamor, com desejo de ferir-te:
que farei sem ti, agora que te despedes
e no prometes lembrar este copo destitudo?
minha, de ningum, alma liberta,
a parceria terminou, estamos quites!
SONO LIMPO

265

No mais o sonho, mas o sono limpo


de todo o excremento romntico.
A isso aspiro, deus expulso
de um Olimpo onde sonhar eram verses
de existir.
No morte: ao sono
que petrifica a morte e vai alm
e me completa em minha finitude,
ser isento de ser, predestinado
ao prmio excelso de exalar-se.
No mais, no mais o gozo
de instantes de delcia, pasmo, espasmo.
Quero a ltima rao do vcuo,
a ltima danao, pargrafo penltimo
do estado menos que isso de no ser.

COMO ENCARAR A MORTE


DE LONGE
Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lpis-lazli,
e pousando-o sobre uma accia
cantam o canto costumeiro.
O barco l fica banhado
de brisa aveludada, acar,
e os bem-te-vis, j esquecidos
de perpassar, dormem no espao.
A MEIA DISTNCIA
Claridade infusa na sombra,
treva implcita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se no viu a no ser em sonho?
Mas insones tornamos a v-lo
e um vago arrepio vara
a mais ntima pele do homem.
A superfcie jaz tranqila.
DE LADO
Sente-se j, no a figura,
passos na areia, ps incertos,
avanado e deixando ver
um certo cdigo de sandlias.
Salvo rosto ou contorno explcito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em ns se recusa.
DE DENTRO

266

Agora no se esconde mais.


Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gs de um estado indefinvel.
Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferro de desejo.
SEM VISTA
Singular, sentir no sentindo
ou sentimento inespresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e ltus e sons.
Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, s
o no saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.
O ENTERRADO VIVO
sempre no passado aquele orgasmo,
sempre no presente aquele duplo,
sempre no futuro aquele pnico.
sempre no meu peito aquela garra.
sempre no meu tdio aquele aceno.
sempre no meu sono aquela guerra.
sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fria.
Sempre no meu engano outro retrato.
sempre nos meus pulos o limite.
sempre nos meus lbios a estampilha.
sempre no meu no aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausncia.
INSCRIES RUPESTRES NO CARMO
Os desenhos da Lapa, to antigos
que nenhum bisav os viu traar,
esses riscos na pedra, indecifrveis,
palavras sem palavras, mas falantes
ao surdo ouvido indiferente de hoje,
esse abafado canto das origens
que o professor no sabe traduzir
noite (cismo agora) se destacam
da laje fria, espalham-se no campo.
So notcias de ndios, religies

267

ligando mente e abismo, vida solta


em fantsticos ritos amorosos,
de sangue, de colheitas, em meio a deuses
nativos do serto do mato-dentro.
Cada linha desdobra-se, arabescos
sonoros e uma festa como nunca
mais se veria em terra conquistada
por meus antepassados cobiosos
de ouro, gado, caf, recobre a terra
devolvida a seus donos naturais.
No o boi: o tapir, nem o sitiante
nem porteira-limite nem papis
marcando posse, prazo, juro, herana.
um tempo antes do tempo de relgio,
e tudo se recusa a ser Histria
e a derivar em provas escolares.
L vou eu, carregando minha pedra,
meu lpis, minha turva tabuada,
rumo aula de inspidos ditados,
cismando nesses mgicos desenhos
que bem desenharia, fosse ndio.
A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgaravam,
tive a fortuna e graa de te ver.
Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez, reflorindo, esvoaaram
em orvalhada luz de amanhecer.
bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo a minha voz
para exaltar o redivivo amor
que de memria-imagem se alimenta
e em doura converte o prprio horror!
A TORRE SEM DEGRAUS
No trreo se arrastam possuidores de coisas recoisificadas.
No 1 andar vivem depositrios de pequenas convices, mirando-as remirando-as com lentes de contato.
No 2 andar vivem negadores de pequenas convices, pequeninos eles mesmos.
No 3 andar tls tls a noite cria morcegos.
No 4, no 7, vivem amorosos sem amor, desamorando.
No 5, algum semeou de pregos dentes de fera cacos de espelho a pista encerada para o baile das
debutantes de 1848.
No 6, rumina-se poltica na certeza-esperana de que a ordem precisa mudar deve mudar h de mudar,
contanto que no se mova um alfinete para isso.
No 8, ao abandono, 255 cartas registradas no abertas selam o mistrio da expedio dizimada por ndios
Anfika.
No 9, cochilam filsofos observados por apoftegmas que no chegam a concluso plausvel.
No 10, o rei instala seu gabinete secreto e esconde a coroa de crisprasos na terrina.
No 11, moram (namoram?) virgens contidas em cinto de castidade.
No 12, o aqurio de peixes fosforescentes ilumina do teto a poltrona de um cego de nascena.
Ateno 13. Do 24 baixar s 23h um peloto para ocupar-te e flitar a bomba suja, de que te dizes
depositrio.

268

No 14, mora o voluntrio degolado de todas as guerras em perspectiva, disposto a matar e a morrer em
cinco continentes.
No 15, o ltimo leitor de Dante, o ltimo de Cervantes, o ltimo de Musil, o ltimo do Dirio Oficial
dizem adeus palavra impressa.
No 16, agricultores protestam contra a fuso de sementes que faz nascerem cereais invertidos e o milho
produzir crianas.
No 17, preparam-se oraes de sapincia, tratados internacionais, bulas de antibiticos.
No se sabe o que aconteceu ao 18, suprimido da Torre.
No 19, profetas do Antigo Testamento conferem profecias no computador analgico.
No 20, Cacex Otan Emfa Joc Juc Fronap FBI Usaid Cafesp Alalc Eximbank trocam de letras, viram Xfp,
Jjs, IxxU e que sei mais.
No 22, banqueiros incineram duplicatas vencidas, e das cinzas nascem novas duplicatas.
No 23, celebra-se o rito do boi manso, que de to manso ganhou biografia e aurola.
No 24, vide 13.
No 25, que fazes tu, morcego do 3? que fazes tu, miss adormecida na passarela?
No 26, nossas sombras despregadas dos corpos passeiam devagar, cumprimentando-se.
O 27 uma clnica de nervosos dirigida por general-mdico reformado, e em que aos sbados todos se
curam para adoecer de novo na segunda-feira.
Do 28 saem boatos de revoluo e cruzam com outros de contra-revoluo.
Imprprio a qualquer uso que no seja o prazer, o 29 foi declarado inabitvel.
Excesso de lotao no 30: moradores s podem usar um olho, uma perna, meias palavras.
No 31, a Lei afia seu arsenal de espadas inofensivas, e magistrados cobrem-se com cinzas de ovelhas
sacrificadas.
No 32, a Guerra dos 100 Anos continua objeto de anlise acuradssima.
No 33, um homem pede pra ser crucificado e no lhe prestam ateno.
No 34, um ladro sem ter o que roubar rouba o seu prprio relgio.
No 35, queixam-se da monotonia deste poema e esquecem-se da monotonia da Torre e das queixas.
Um mosquito , no 36, nico sobrevivente do que foi outrora residncia movimentada com jantares
peras paves.
No 37, a cano.
Filorela amarlina
lousileno i flanura
meleglrio omoldana
plunigirio olanin.
No 38, o parlamento sem voz, admitido por todos os regimes, exercita-se na mmica de oraes.
No 39, a celebrao ecumnica dos anjos da luz e dos anjos da treva, sob a presidncia de um meirinho
surdo.
No 40, s h uma porta uma porta uma porta.
Que se abre para o 41, deixando passar esqueletos algemados e conduzidos por fiscais do Imposto de
Conscincia.
No 42, goteiras formam um lago onde biam ninfias, e ninfetas executam bailados quentes.
No 43, no 44, no... (continua indefinidamente).

JORGE LUIS BORGES


A Lus de Cames
Sem pena e sem ira o tempo vela
As hericas espadas. Pobre e triste
tua ptria saudosa preferiste
Retornar, morrendo nela,
E com ela. No mgico deserto
A flor de Portugal se havia perdido
E o spero espanhol, antes vencido,
Ameaava o seu flanco aberto.
Quero saber se aqum dessa ribeira
Extrema compreendeste humildemente
Que todo o perdido, o Ocidente
E o Oriente, o ao e a bandeira,

269

Perduraria (alheio a toda humana


Mutao) em tua Eneida lusitana.
QUADRA
Morreram outros, mas isso aconteceu no passado,
Que a estao (ningum o ignora) mais propcia morte.
possvel que eu, sdito de Yacub Alamansur,
Morra como tiveram de morrer as rosas e Aristteles?
(Do Div de Almotsim El Magrebi, sculo XII.)
LIMITES
H uma linha de Verlaine que no voltarei a lembrar,
H uma rua prxima proibida a meus passos,
H um espelho que me fitou pela ltima vez,
H uma porta que fechei at o fim do mundo,
Entre os livros de minha biblioteca (posso v-los agora)
H um que no mais abrirei.
Neste vero farei cinqenta anos;
A morte me desgasta, incessante.
( De Inscripiciones, de Julio Platero Haedo, Montevidu, 1923)
O POETA DECLARA SEU RENOME
O crculo do cu mede minha glria,
As bibliotecas do Oriente disputam o meus versos,
Os emires me procuram para encher-me de ouro a boca,
Os anjos j sabem de memria meu ltimo zgel.
Meus instrumentos de trabalho so a humilhao e a angstia;
Quem dera eu tivesse nascido morto.
(Do Div de Albucsim El Hadrami, sculo XII.)

O DESPERTAR
Entra a luz e ascendo torpemente
Desde os sonhos ao sonho partilhado
E as coisas readquirem seu esperado
E devido lugar e no presente
Converge o assustador e vasto o vago
Ontem: as seculares migraes
Dos pssaro e dos homens, as legies
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Volta tambm a cotidiana histria:
Meu rosto e voz, e meu temor e sorte.
Ah! Se aquele outro despertar, a morte,
Deparasse-me um tempo sem memria
Do nome meu e do que eu tenho sido!
Ah! Se nessa manh houvesse olvido!

270

O INSTANTE
Onde as eras, o sonho derradeiro
De espadas com que os trtaros sonharam,
Onde as fortes paredes que arrombaram,
E a rvore de Ado, e o outro Madeiro?
O presente est s. S a memria
Erige o tempo. Sucesso e engano
So a rotina do relgio. O ano
Menos vo no do que a v histria.
H um abismo entre o albor e o sol que desce
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto, ao se mirar nos desgastados
Cristais da noite, no se reconhece.
O hoje fugaz tnue e eterno;
Nem outro Cu esperes, nem Inferno.
O PERDIDO
Onde estar minha vida, a que tudo
Pde se e no foi, a venturosa
Ou a de triste horror, essa outra coisa
Que pde ser a espada ou o escudo
E que no foi? Onde estar o perdido
Antepassado persa ou noruegus,
Onde o acaso de no me enceguecer,
Onde a ncora e o mar, onde o olvido
De ser quem sou? Onde estar a pura
Noite que ao rude lavrador confia
O iletrado e laborioso dia,
Conforme pede a literatura?
Penso tambm naquela companheira
Que me queria, e quem sabe ainda queira.
FALA UM BUSTO DE JANO
Ningum abra nem feche qualquer porta
Sem honrar a memria do Bifronte,
Que as preside. Abarco o horizonte
De incertos mares e de terra certa.
Minhas duas faces divisam o que passou
E o porvir. Posso v-los similares
Aos ferros, s discrdias e aos males
Que Algum pde apagar mas no apagou
Nem apagar. As duas mos me faltam
E sou de pedra imvel. No poderia
Precisar se contemplo uma porfia
Ou de ontens que se afastam.
Vejo minha runa: a coluna truncada
E as faces, que no vo se ver por nada.
O ADVENTO
Sou o que fui na aurora, entre a tribo.
Deitado em meu canto da caverna,
Lutava por afundar nas obscuras

271

guas do sonho. Espectros de animais


Feridos pelo estilhao da flecha
Davam horror negrura. Mas algo,
Talvez z execuo de uma promessa,
A morte de um rival sobre a montanha,
Talvez o amor, ou uma pedra mgica,
Me fora outorgado. Perdi tudo.
Pelos sculos gasta, a memria
S guarda essa noite e sua manh.
Sentia desejo e medo. Bruscamente
Ouvi o surdo tropel interminvel
De um rebanho atravessando a aurora.
Arco de roble, flechas que se cravam,
Deixei-os e corri at a greta
Que se abre no extremo da caverna.
Foi ento que os vi. Brasa avermelhada,
Cruis os cornos, montanhoso o lombo,
A crina lgubre como os seus olhos
Que espreitavam malvados. Aos milhares.
So os bises, eu disse. A palavra
Nunca antes passara por meus lbios,
Mas senti que talvez fosse seu nome.
Era como se eu nunca houvesse visto,
Como se houvesse estado cego e morto
No tempo antes das vises da aurora.
Eles surgiram da aurora. Eram a aurora.
No quis que os outros profanassem
Aquele denso rio de bruteza
Divina, de ignorncia, de soberba,
Indiferente como as estrelas.
Pisotearam um co no caminho;
Teriam feito o mesmo com um homem.
Depois os traaria na caverna
Com ocre e cinbrio. Foram os Deuses
Do sacrifcio e das preces. Nunca
Disse minha boca o nome de Altamira.
Foram muitas minhas formas e mortes.
O ADVENTO
Sou o que fui na aurora, entre a tribo.
Deitado em meu canto da caverna,
Lutava por afundar nas obscuras
guas do sonho. Espectros de animais
Feridos pelo estilhao da flecha
Davam horror negrura. Mas algo,
Talvez z execuo de uma promessa,
A morte de um rival sobre a montanha,
Talvez o amor, ou uma pedra mgica,
Me fora outorgado. Perdi tudo.
Pelos sculos gasta, a memria
S guarda essa noite e sua manh.
Sentia desejo e medo. Bruscamente
Ouvi o surdo tropel interminvel
De um rebanho atravessando a aurora.
Arco de roble, flechas que se cravam,
Deixei-os e corri at a greta
Que se abre no extremo da caverna.
Foi ento que os vi. Brasa avermelhada,

272

Cruis os cornos, montanhoso o lombo,


A crina lgubre como os seus olhos
Que espreitavam malvados. Aos milhares.
So os bises, eu disse. A palavra
Nunca antes passara por meus lbios,
Mas senti que talvez fosse seu nome.
Era como se eu nunca houvesse visto,
Como se houvesse estado cego e morto
No tempo antes das vises da aurora.
Eles surgiram da aurora. Eram a aurora.
No quis que os outros profanassem
Aquele denso rio de bruteza
Divina, de ignorncia, de soberba,
Indiferente como as estrelas.
Pisotearam um co no caminho;
Teriam feito o mesmo com um homem.
Depois os traaria na caverna
Com ocre e cinbrio. Foram os Deuses
Do sacrifcio e das preces. Nunca
Disse minha boca o nome de Altamira.
Foram muitas minhas formas e mortes.
AO FILHO
No sou eu, so os mortos quem te gera.
So meu pai, o seu pai, o de outras eras
Traando um longo ddalo de amores
Desde Ado nos desrticos albores
De Caim e de Abel, em sua aurora
Antiga, que j mitologia;
Sangue e medula chegam a e este dia
Que est por vir, em que te gero agora.
Sinto sua multido. Ns, somos ns
E, entre ns, ests tu e teus futuros
Filhos que hs de gerar. Os nascituros
E os do rubro Ado. Sou esse aps
Tambm. O eterno em coisas j fixadas
Do tempo, que so formas apressadas.
O PASSADO
Tudo era fcil, nos parece agora
Naquele plstico ontem irrevogvel:
Scrates, que, apurada a cicuta,
Discorre sobre a alma e seu caminho,
Enquanto a morte azul lhe vai subindo
Pelos ps regelados; a implacvel
Espada que retumba na balana;
Roma, que impe o numeroso hexmetro
Ao obstinado mrmore dessa lngua
Que manejamos hoje, espedaada;
Os piratas de Hengist que atravessam
A remo o temerrio Mar do Norte
E com as fortes mos e a coragem
Fundam um reino que ser o Imprio;
O rei saxo que oferta o da Noruega
Sete palmos de terra e que cumpre,
Antes que o sol decline, a promessa
Na batalha de homens; os cavaleiros

273

Do deserto, que cobrem o Oriente


E ameaam as cpulas da Rssia;
Um persa que relata a primeira
Das mil e uma noites e no sabe
Que deu incio a um livro que os sculos
Das outras geraes, ulteriores,
No entregaro ao quieto esquecimento;
Snorri, que salva em sua perdida Tule,
Sob a luz de crepsculos morosos
Ou na noite propcia memria,
As letras e os deuses da Germnia;
O jovem Schopenhauer, que descobre
Um projeto geral do universo;
Whitman, que numa redao do Brooklin,
Entre o cheiro de tinta e de tabaco,
Toma e a ningum conta a infinita
Resoluo de ser todos os homens
E de um livro escrever que seja todos;
Arredondo, que mata Idiarte Borda
Em certa manh de Montevidu
E se entrega justia, declarando
Ter agido sozinho e no ter cmplices;
O soldado que morre em cho normando,
O que na Galilia encontra a morte.
Essas coisas podiam no ter sido.
Quase no foram. Ns as concebemos
Em um ontem fatal e inevitvel.
No h outro tempo que o agora, este pice
Do j ser e do foi, daquele instante
Em que a gota cai na clepsidra.
O ontem ilusrio um recinto
De imutveis figuras de cera
Ou de reminiscncias literrias
Que o tempo ir perdendo em seus espelhos.
Carlos Doze, Breno, rico, o Vermelho,
E a tarde inapreensvel que foi tua
Na eternidade so, no na memria.

ROBERT BROWNING
A MINHA LTIMA DUQUESA
(Ferrara)
Aquela a minha ltima Duquesa pintada na parede,
parece mesmo que est viva. Agora considero
aquela pea um encanto; as mos de Fra Pandolfo
trabalharam um dia diligentes e ali est ela.
No quer sentar-se a contempl-la? Eu disse
Fra Pandolfo de propsito, pois nunca
estranhos como o senhor fitaram aquele semblante
com a profundidade e a paixo de seu olhar sincero
que no se voltassem para mim (pois ningum corre
a cortina que abri para o senhor ver, a no ser eu)
parecendo perguntar-me, se a tanto ousassem.
como que um olhar assim ali se oculta; por isso no

274

o primeiro a voltar-se e a perguntar. No foi, senhor,


s a presena do marido que deu aquele esplendor
s faces da Duquesa. provvel que
Fra Pandolfo tivesse dito por acaso Esse manto
encobre demasiado o vosso pulso, senhora ou As tintas
nunca podem imitar o suave rubor
que se esbate ao longo do pescoo coisas assim
eram favores, pensava ela, e motivo bastante
para despertar aquele rubor de alegria. Ela tinha
um corao como direi? que depressa exultava
impressionvel facilmente; ela gostava de tudo
quanto via e seu olhar tudo alcanava.
Senhor, tudo era igual! Os meus favores no seu regao,
a luz do dia declinando no poente,
o ramo de cerejeira que um louco solcito
apanhava no pomar, e a mula branca
que ela montava volta do terrao tudo e cada coisa
lhe merecia as mesmas palavras satisfeitas
ou um rubor ao menos. Ela agradecia s pessoas bom! mas
de um modo no sei bem como como se atribusse
ddiva do meu nome quase milenrio
o mesmo valor de qualquer outra coisa. Quem iria censurar
coisas sem importncia como estas? Mesmo se tivesse jeito
para falar (e no tenho) explicando claramente
o que se espera de uma pessoa assim e dissesse isto
ou aquilo quem em ti me desagrada; aqui pecas por defeito
alm por excesso e se ela se deixasse ensinar
deste modo sem frontalmente
opor sua vontade, pedindo at desculpa,
mesmo assim seria humilhante. E eu no quero nunca
humilhar-me. Oh senhor ela sorria sem dvida
quando eu passava sua beira mas a quem
no concedia ela igual sorriso? A coisa tomou vulto. Dei ordens.
Sumiram-se os sorrisos. Ali est ela
como se estivesse viva. No quer levantar-se. Vamos
ao encontro das pessoas l abaixo. Repito:
a conhecida generosidade do Conde, vosso amo,
garantia de serem satisfeitas minhas jutas pretenses
em matria de dote.
Embora, como disse a princpio, o meu interesse
seja a filha dele que linda. No. Desceremos,
senhor, os dois juntos. Mas repare naquele Neptuno
domando um cavalo marinho (uma raridade, dizem)
que eu, a Claus de Innsbruck, mandei fundir em bronze.
(traduo Joo Almeida Flor)

MINHA LTIMA DUQUESA


Ali est a minha ltima duquesa
Na parede. Parece viva. Que beleza

275

De obra! Fra Pandolfo no poupou esforo


E ei-la de corpo inteiro, no em busto ou torso.
Voc no quer sentar-se para ver melhor?
No por acaso mencionei o seu pintor,
Pois no costumo a estranhos olhos desvelar
A profundeza da paixo que h nesse olhar,
Que s a mim dirigido (pois s eu
Abro a cortina) mas eu sinto, percebeu?,
Que quem a v logo se indaga: de onde veio
Esse olhar? Com voc, meu caro, no receio,
a mesma coisa. Pois eu digo: simplesmente,
A presena do esposo pouco para a mente
Que procura a razo daquela mancha rosa
De prazer no seu rosto. Uma frase ociosa,
Talvez, de Fra Pandolfo. Eu acho que o seu manto
Cobre demais o seu pulso, ou, No pode tanto
A arte, no, reproduzir no pode o leve
Rubor em sua garganta, a ir e vir to breve.
Galanteria corts, no mais o suficiente
Para fazer brilhar um rosto, de repente.
Tinha um jeito, a duquesa, um corao aberto
Ao gostar... ao aolhar... Contentamento certo,
O dela; incerto o meu... Ela no distinguia
Entre gozar das graas que eu lhe concedia,
O declnio da luz ao sol poente, o ramo
De cerejas que o bobo servial de um amo
Lhe oferecia, a mula branca que montava
Pela terrraa, a rir a tudo ela igualava
Com uma boa palavra, ou um rubor, ao menos.
Que agradecesse, tudo bem mas somenos
Equiparar o dom dos novecentos anos
A presentes sem nome? At planos
De dissuadi-la... Rebaixar-me a isso... O dom
Da palavra me falta... E como, alto e bom som,
Chegar a ela assim: Olhe, sua atitude,
Me desagrada, passou do ponto, mude?
Que aceitasse o sermo e at mostrasse medo,
Isto, para mim, seria ceder, e eu nunca cedo.
Claro, meu caro, de passagem, um sorriso
Ela me dava mas a quem no dava? Aviso
No dei, dei ordens: os sorrisos, de imediato,
Murcharam. Mas j pode levantar-se... fato...
Nesse retrato, agora, ela parece viva...
Podemos ir? Embaixo, a companhia festiva
Nos aguarda. Repito: a generosidade
Do conde, seu senhor, sem dvida h de
Sabe r pesar a minha justa pretenso
Ao dote da menina, a cujas graas vo
Os meus melhores sentimentos. De passagem,
Olhe essa pea de escassssima tiragem:
um bronze de Netuno domando um delfim
Que Claus de Innsbruck fez fundir s para mim.

276

ANA AKHMTOVA
RQUIEM
1935-1940
No, no foi sob outro firmamento,
Nem sob a proteo de asas estranhas:
Estive ento entre o meu povo,
L onde o meu povo, infelizmente, estava.

INTRODUO
Aconteceu quando a sorrir
Eram s os mortos: contentes pela paz.
E, intil sobra, pendia
Em volta de suas celas, Leningrado.
E, quando loucas de dor,
J marchavam as legies dos condenados,
E os silvos do trem cantavam
Um breve canto de adeus.
As estrelas da morte sobrestavam
Rssia inocente, se crespando
Sob as botas de sangue
E a sola dos negros cambures.

1.
Levaram-te ao amanhecer.
Atrs de ti, como no enterro, eu ia,
No quarto escuro, choravam os meninos.
Acabava-se a vela sobre o altar,
Nos lbios teus, do cone, o frio.
O suor mortal na testa... No d para esquecer!
Como as mulheres dos francos-atiradores,
Uivarei pelas torres do Kremlin.

3.
No, no sou eu, algum mais que sofre.
Eu no teria podido. Panos negros de l cubram
O que se passou, e levem os lampies...
Noite

5.
H dezessete meses eu grito,

277

Te chamo para casa.


Joguei-me aos ps do carrasco,
Meu filho e meu terror.
Tudo turvou-se para sempre,
No posso mais distinguir
Quem homem ou fera e quanto
A pena me cabe esperar.
H somente flores de p,
E o tilintar do turbulo, e rastros,
Algures, para lugar nenhum.
Direto nos olhos fita-me
E ameaa de morte prxima
A enorme estrela.

GARCILASO DE LA VEGA
Quando paro a pensar no meu estado
e a ver os passos a que fui trazido,
acho, vendo por onde andei perdido,
que a maior mal podia haver chegado;
mas quando esqueo do caminho andado,
nem sei como a este mal fui atrado;
sei que me acabo, e mais terei sentido
ver acabar comigo o meu cuidado.
Acabarei, pois me entreguei sem arte
a quem ir perder-me e acabar-me
se ela quiser, e saber quer-lo;
pois, como o meu querer pode matar-me.
o dela, que nem de minha parte,
podendo, que far se no faz-lo?

FERNANDO PESSOA
PASSOS DA CRUZ
I.
Esqueo-me das horas transviadas...
O Outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqestrando a lucidez

278

Um espasmo apagado em dio nsia


Pe dias de ilhas vistas do convs
No meu cansao perdido entre os gelos,
E a cor do Outono um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonncia...

II.
H um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efmera e espectral ledice...
Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...
Florir do dia a capitis de Luz...
Violinos do silncio enternecidos...
Tdio onde o s ter tdio nos seduz...
Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao p dos sculos perdidos
E cismo o seu perfil de inrcia e vo...
III.
Adagas cujas jias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convs sem ningum cheio de malas...
O ntimo silncio das opalas
Conduz orientes at jias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de cio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo s pelo cessar das lanas
Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovao, e erguem as crianas...
Mas no teclado as tuas mos pararam
E indefinidamente repousaram...

IV.
tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mos!,
E, beijando-o, descesse plos desvos
Do sonho, at que enfim eu o encontrasse
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra reis cristos

279

Ajoelhando, inimigos e irmos,


Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...
Caverna em estalactites o teu gesto...
No poder eu prend-lo, fazer mais
Que v-lo e que perd-lo!... E o sonho o resto...

FLORBELA ESPANCA

LOUCURA
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! No sei onde era dantes
Meu solar, meus palcios, meus mirantes!
No sei de nada, Deus, No sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixes e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
No tenho nada, deus, no tenho nada!...
Pesadelos de insnia, brios de anseio!
Loucura a esboar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
pavoroso mal de ser sozinha!
pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!

NIHIL NOVUM
Na penumbra do prtico encantado
De Bruges, noutras eras, j vivi;
Vi os templos do Egito com Loti;
Lancei flores, na ndia, ao rio sagrado.
No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bsforo errei, pensando em ti!
O silncio dos claustros conheci
Pelos poentes de ncar e brocado...
Mordi as rosas brancas de Ispa
E o gosto a cinza em todas era igual!
Sempre a charneca brbara e deserta,

280

Triste, a florir, numa ansiedade v!


Sempre da vida o mesmo estranho mal,
E o corao a mesma chaga aberta!

HERMANN HESSE
LAMENTO
A ns no foi doado um ser.
Somos apenas correnteza,
Flumos de bom grado pelas formas:
Pelo dia e a noite, a gruta e a catedral.
Por elas penetramos, incitados
Pela sede de ser.
Assim ns vamos sem repouso,
Enchendo as formas uma a uma,
sem que nenhuma delas seja para ns
A ptria, a ventura ou a dor.
Estamos sempre a caminhar,
Somos sempre visitantes,
No ouvimos o apelo do campo nem do arado,
Para ns no cresce o po.
Os desgnios de deus sobre ns no sabemos,
Ele brinca conosco, barro em sua mo,
O barro que mudo e tem plasticidade,
Quem no sabe nem rir nem chorar:
Barro amassado, porm jamis queimado.
Ah! Quem me dera transformar-me em dura pedra!
Permanecer enfim!
que ns aspiramos pela eternidade,
Mas nossa aspirao apenas,
eternamente um medroso tremor,
E no vir jamais a ser repouso em nossa via.

TRANSIGIR
Os intransigentes e simplrios
No suportam, claro, nossas dvidas.
O mundo superfcie, explicam simplesmente,
e um disparate a lenda dos abismos.
Pois se houvesse realmente outras dimenses,
Alm das duas boas, velhas conhecidas,
Poderia algum morar com segurana?
Poderia algum viver despreocupado?

281

Portanto, para conseguirmos a paz,


Risquemos uma dessas dimenses!
Porque se so honestos os intransigentes,
E a viso dos abismos to perigosa,
Prescindimos da terceira dimenso.

EM SEGREDO, PORM, TEMOS SEDE...


Grcil, toda esprito,
Com delicadeza de arabescos,
Nossa vida assemelha-se
existncia das fadas,
Que vai girando em bailados suaves.
Em redor do nada,
Ao qual sacrificamos
O ser e o presente.
Dos sonhos a beleza, joviais folguedos,
Como um hlito, em pura concordncia;
Bem no fundo da tua superfcie jovial,
Cintila o anseio pela noite,
Pelo sangue e a barbrie.
No vazio a girar, sem peias ou necessidades,
Vai livre a nossa vida,
Pronta sempre a folgar;
Em segredo, porm, temos sede de realidade,
Do gerar, do nascer,
Temos sede da dor e da morte.

LETRAS
Ns s vezes tomamos da pena e escrevemos
Sinais sobre uma folha branca de papel:
Dizem isto ou aquilo, e todos o conhecem,
um brinquedo que tem as suas regras.
Mas se viesse um selvagem
Ou habitante da lua,
E seus olhos curiosos, vidos de conhecer,
Cassem nessa folha de papel,
Nesse campo sulcado de runas,
Receberia uma imagem
fixa e estranha do mundo.
O A e o B seriam para ele
Homem e animal,
Olhos, lnguas, membros a mover-se,
Ora ponderados, ora impetuosos;
Leria como na neve as pegadas do corvo,
Havia de correr, de repousar,

282

Sofrer, voar com essas letras,


E da criao veria as possibilidades todas
Fanstasmagorizar pelos negros e fixos sinais,
deslizar pelas barras de ornamentos;
Veria arder o amor, estremecer a dor,
Havia de espantar-se, rir, chorar, tremer,
Porque, por detrs dos gradis
Barrados dessa escrita,
Surgiria em miniatura o mundo inteiro,
Em seu mpeto cego, transformado
Em ano, enfeitiado nesses caracteres
Prisioneiros, os quais, em passos tesos,
De tal modo se igualam,
que o mpeto da vida e do morrer,
Volpia e sofrimento, irmanam-se,
Mal se diferenciam...
Finalmente o selvagem gritaria,
Presa de medo insuportvel,
E ento atiaria o fogo,
E batendo na testa, por entre litanias,
Ofertaria s chamas
A branca folha rnica.
E talvez pressentisse, adormecendo,
Que esse mundo inexistente,
Ilusionismo, invento insuportvel,
Retornava ao nada,
Sugado, levado para as terras de ningum,
E ento o selvagem haveria
De suspirar, de rir e de sanar.

LENDO UM ANTIGO FILSOFO


O que ontem possua encantoe nobreza,
Fruto de sculos de pensamentos raros,
De chofre empalidece, murcha e perde o sentido,
Como as gavinhas de uma partitura,
Em que apagamos claves, sustenidos;
Desapareceu de um edifcio
O centro mgico de gravidade,
A gaguejar vacila, desmorona,
Num eterno ecoar,
O que tinha aparncia de harmonia.
Assim tambm um rosto
Velho e cheio de sabedoria,
Que idolatrvamos,
Amarrota-se e, pronto para a morte,
Tremula sua fulgurante luz espiritual,
Em um jogo lastimoso e erradio

283

De rugas miudinhas.
Assim tambm um elevado sentimento
Pode em nossos sentidos, num instante,
Em esgares transformar-se em dissabor,
Como se h muito possusse dentro de si
O saber de que tudo apodrece,
Tudo tem de murchar e de morrer.
E sobre esse nojento vale de cadveres
Se estira dorido, e no entanto incorrupto,
O esprito saudoso de fanais ardentes,
Combate a morte e torna-se imortal.

O LTIMO JOGADOR DE AVELRIOS


Com seu jogo na mo, as coloridas contas,
Sentado, com as cotas encurvadas;
Em redor dele a terra,
Pela guerra e a peste devastada,
E sobre as runas cresce a hera,
E na hera zumbem as abelhas.
Uma paz fatigada, com surdo saltrio,
Ressoa pelo mundo, tranqila senectude
O ancio vai contando
seus coloridos avelrios;
um azul, outro branco segura,
Um grande, um pequenino escolhe,
E os vai combinando em anel para o jogo.
Ele outrora foi grade jogador de smbolos,
Mestre de muitas artes e de muitas lnguas,
Conhecedor do mundo,
E muito viajado, um homem clebre,
Conhecido at mesmo nos plos,
Cercado sempre de alunos e colegas.
Agora, s ele sobrou, velho, gasto e sozinho,
Nenhum mancebo aspira sua bno,
Nenhum magister convida-o disputa;
Tudo se foi, os templos, bibliotecas,
Escolas de Castlia no existem mais...
O ancio repousa entre os escombros,
Com as contas na mo, hierglifos,
Que outrora continham profundo sentido,
E agora so apenas cacos
De vidro colorido.
Vo rolando em silncio das mos do velhinho
e se perdem na areia...

A UMA TOCCATA DE BACH


Primordial e rgido silncio... As trevas reinam...

284

Um raio de luz irrompe


Da fenda em ziguezague que se abriu na nuvem;
Do cego inexistir, abarca as profundezas do universo.
Constri palcios e de luz envolve a noite,
faz pressentir os cristais, cumes, aclives e grotas,
Torna os ares azuis, inconsistentes, e compacta a terra.
Num ato criador, o raio luminosos fende
Para a ao e a guerra a matriz germinante:
A fulgurar inflama o mundo apavorado.
A sementeira de luz, por onde passa,
Vai transformando tudo, e organizando;
Magnfica ressoa ao exaltar da vida,
E louvar a vitria da luz ao Criador.
A luz se arroja num reflexo em direo de Deus,
Penetra pela agitao das criaturas,
No mpeto imenso do Esprito-Pai.
Torna gozo e tristeza, fala, imagem e canto,
Os mundos, um a um, vai plasmando em abbada
Da catedral nos arcos da vitria,
mpeto, esprito, luta e ventura, amor.

UM SONHO
Num convento das montanhas, como visitante
Entrei, na hora em que todos
Tinham ido rezar, em uma biblioteca.
Aos reflexos da luz crepuscular da tarde,
Com suave brilho cintilavam
Na parede pergaminhos das lombadas,
Com inscries maravilhosas,
De livros aos milhares.
Cheio de avidez e encantamento,
Tomei de um livro e li:
ltimo passo para se encontrar
a quadratura do crculo.
Este livro, pensei, levo comigo!
Num outro livro, um in-quarto de couro dourado,
Em letras minsculas se lia:
De como Ado comeu tambm da outra rvore...
Da outra rvore? De qual: da vida?
Nesse caso, imortal seria Ado?
No era em vo, eu percebi, que eu me encontrava ali.
Vendo um in-flio que em sua lombada,
Nas bordas e nos cantos, cintilava
Nas cores matizadas do arco-ris.
Seu ttulo, uma iluminura, dizia assim:
Do sentido anlogo das cores e dos sons.
Uma prova da correlao
Das cores e da sua difrao,
Com as tonalidades musicais.
Prometendo maravilhas, o coro de matizes
Fulgurava! E comecei a pressentir,

285

Que cada livro que eu pegava


Vinha comprovar:
Nessa sala se achava a biblioteca
Do paraso; todas as perguntas
Que jamais me atormentaram,
Toda a sede de conhecimento
Que me havia queimado,
Encontrava ali sua resposta,
E toda a fome o po do esprito.
Porque por onde quer que eu lanasse
Um rpido olhar a um volume,
Encontrava nele um ttulo
Cheio de promessas; havia ali resposta
Para todas as necessidades, e podia-se
Partir toda espcie de frutos
Que um discpulo jamais imaginou e desejou a medo,
A que jamais um mestre estendeu ousado a mo.
O sentido mais oculto e mais puro das coisas.
Toda espcie de sabedoria,
Poesia, cincia, a fora mgica
De toda a espcie de investigaes,
Com sua chave e seu vocabulrio,
A mais fina essncia do esprito,
Se conservava ali em obras magistrais,
Misteriosas, inauditas
Havia ali respostas a todas as questes
E todos os mistrios, cuja posse era o dom
Que os favores da hora de magia ofereciam.
Ento eu coloquei, com as mos trmulas,
Na escrivaninha, um daqueles volumes,
Decifrei a escrita mgica de imagens,
Assim como em um sonho, muitas vezes,
Se empreende a brincar, algo nunca prendido,
Acertando sempre, sem errar jamais.
Em breve ergui o vo a regies
Consteladas do esprito, incrustadas no zodaco,
Onde tudo que jamais foi visto
Nas revelaes sonhadas pelos povos,
Herana de milnios de experincia csmica
Se unia em novos laos, harmoniosamente,
Em que jogo mtuo de correlaes;
Surgia em revoada toda a espcie
De conhecimento de outras eras,
De smbolos, e descobertas sempre novas
De questes sublimes.
E assim, ao ler, em minutos ou horas,
Eu percorri de novo
O caminho de toda a humanidade,
Apreendendo o sentido comum interior,
Das mais antigas e modernas descobertas;
Eu lia e via os vultos simblicos da escrita
Se emparelharem,se afastarem,

286

Circularem, separarem-se a fluir,


Derramando-se em novas formaes,
Simblicas figuras de um caleidoscpio,
Que recebiam um sentido novo, inesgotvel.
E quando, deslumbrado por esse espetculo,
Virei o rosto para repousar os olhos,
Vi que eu no era ali o nico visitante.
Na sala estava um ancio fitando os livros,
Talvez o arquivista, que eu via ocupado
Seriamente em seu trabalho,
Dedicado inteiramente aos livros, e fui pre
Da curiosidade de saber
De que espcie e que sentido tinha a ocupao
A que se dedicava com fervor o velho.
E vi o ancio, com engelhada e branda mo,
Tomou de um livro, leu
O que estava escrito na lombada,
Sussurrou com lbios plidos o ttulo
Um ttulo de entusiasmar, prometedor
De horas preciosas de leitura!
Borrou-o com os dedos, levemente,
Escreveu sorrindo um novo ttulo,
Completamente diferente, e em seguida
Continuou a andar, tomando aqui um livro,
E um outro acol, o ttulo apagando,
E escrevendo outro em seu lugar.
Confuso, observei-o longamente,
E ento, j que minha razo
Se negava a entender, voltei ao livro,
Onde h pouco havia lido algumas linhas;
Mas a seqncia de imagens
Que me encantara no mais encontrei,
E o mundo simblico
Apagou-se e se afastou,
Esse mundo em que eu mal penetrara,
E cujo contedo era to rico de sentido csmico;
Vacilou, correu em crculo,
Pareceu enublar-se,
E ao se esvair, nada mais deixou de si,
Do que os vislumbrar pardacento
De pergaminhos vazios.
Sobre o meu ombro eu senti ua mo,
Ergui os olhos e vi ao meu lado
O aplicado velho; ergui-me. A sorrir,
Ele pegou meu livro, enquanto um calafrio
Me percorria, e qual eponja, seu dedo
Foi borrando o ttulo; sobre o couro limpo
Escreveu novo ttulo, questes e promessas,
E desenhando cuidadosamente as letras
Uma a uma, sua pena deu
A velhas questes as mais modernas refraes.
Em seguida levou em silncio livro e pena.

287

SERVIR
No comeo reinavam virtuosos prncipes,
Consagrando campo, cereais e arado,
E o direito era seu de ofertar sacrifcios
E indicar a medida, na estirpe dos mortais
Sedentos do domnio justo do Invisvel,
Que mantm o sol e a luz em equilbrio,
E cujos vultos de radincia eterna,
No conhecem a dor nem o mundo mortal.
H muito a fila sagrada dos filhos de Deus
Esvaiu-se, e a humanidade ficou s,
No oscilar do prazer e da dor, longe do ser,
Um devir eterno, sem medida e sagrao.
Jamais, porm, morreu o vero sentido da vida,
E a ns coube a misso de conservar, na decadncia,
Pelo jogo dos smbolos, pela imagem e o canto,
A exortao do sagrado respeito.
Talvez a escurido desaparea um dia,
Talvez um dia os tempos se transformem,
E o sol nos regar de novo como um Deus,
De nossas mos aceitando oferendas.

BOLHAS DE SABO
Um ancio, nos anos da velhice,
Destilou de estudo e de reflexes,
A obra da sua ancianidade.
E em suas crespas gavinhas,
A folguejar ele estirou
Muita sabedoria cheia de doura.
Com fervor tempestuoso, um estudante
Aplicado, em bibliotecas e arquivos
Pesquisou, ardente de ambio;
Cria uma obra nos seus jovens anos,
De profundidade genial.
Sentado, um menino sopra num canio,
Enche de ar as matizadas bolhas de sabo,
E uma a uma elas vo estourando
Com a roupa e os louvores de um Salmo;
E a criana entrega toda a alma ao sopro.
E todos trs, o velho, o menino e o estudante,
Vo criando, da espuma da maia universal,
Sonhos sedutores, que em si no tm valor,
Porm, onde a sorrir, a luz eterna
Reconhece a si prpria,

288

E jubilante inflama-se.

APS A LEITURA DA SUMMA CONTRA GENTILES


Outrora, nos parece, a vida era mais verdadeira,
O mundo mais ordeiro, mais esclarecidos os espritos,
A cincia e a sabedoria
No se haviam ainda separado.
Os antigos viviam melhor, mais joviais,
Dos quais ns lemos em Plato e nos chineses,
E em toda a parte, coisas estupendas
Ah! E sempre que ns penetrvamos
No harmonioso templo da Smula de Aquino,
Sentamos saudar-nos distncia
O mundo da verdade pura,
Maduro e cheio de doura:
Tudo ali nos parecia luminoso, a natureza
Compenetrada pelo esprito;
Por Deus e para Deus formado o homem,
Anunciada a lei e a ordem com sentenas belas,
Tudo se complementando no conjunto, sem ruptura.
Ao contrrio, a ns, os psteros, parece-nos
luta somos condenados, a atravessar desertos,
dvida somente e amargas ironias,
S nos pertencem as ardentes nsias e a saudade.
Mas acontea o mesmo aos nossos netos
Que a ns; eles nos vero transfigurados
Quais santos e sbios, porque ouvem,
Dos confusos corais da nossa vida e lamentosos,
Apenas eco, cheios de harmonia,
De sofrimentos e lutas extintos,
Em narrativas de formosos mitos.
E talvez quem de ns foi o menos ousado,
Afligido por mais questes e dvidas,
Ser por certo aquele cuja ao
Por mais tempo agir no futuro,
Edificante exemplo para a juventude;
E quem mais dvidas sofreu, ser um dia
Invejado, talvez, como um homem feliz,
Que nunca conheceu necessidade ou medo,
E viveu numa poca em que a vida era um prazer,
Venturoso como as criancinhas.
Porque em ns tambm vive o esprito
Daquele eterno Esprito, que em todos os tempos
chamado o Irmo dos Espritos:
Ele sobrevive ao Hoje, e no tu e eu.

DEGRAUS

289

Assim como as flores murchas e a juventude


Do lugar velhice, assim floresce
Cada perodo de vida, e a sabedoria e a virtude,
Cada um a seu tempo, pois no podem
Durar eternamente. O corao,
A cada chamado de vida deve estar
Pronto para a partida e um novo incio,
Para corajosamente e sem tristeza,
Entregar-se a outros, novos compromissos.
Em todo o comeo reside um encanto
Que nos protege e ajuda a viver.
Os espaos, um a um, devamos
Com jovialidade percorrer,
Sem nos deixar prender a nenhum deles
Qual uma ptria;
O Esprito Universal no quer atar-nos
Nem nos quer encerrar, mas sim
Elevar-nos degrau por degrau, nos ampliando o ser.
Se nos se nos sentimos bem aclimatados
Num crculo de vida e habituados,
Nos ameaa o sono; e s quem de contnuo
Est pronto a partir e a viajar,
Se furtar paralisao do costumeiro.
Mesmo a hora da morte talvez nos envie
Novos espaos recenados
O apelo da vida que nos chama no tem fim...
Sus, corao, despede-te e haure sade!

O JOGO DE AVELRIOS
Msica do cosmo, msica dos mestres,
Estamos prontos a ouvir com respeito,
A conjurar para uma casta festa
Venerandos espritos de abenoados tempos.
Deixamo-nos elevar pelo mistrio
Daquelas magas frmulas,
Em cujo encanto e imensido ilimitada,
Tempestuosa, a vida,
Fluiu em claros smbolos.
Como constelaes eles vibram, cristalinos,
Nossa vida foi posta a seu servio,
E ningum pode de seus crculos tombar,
A no ser para o centro sagrado.

VIRGLIO
290

BUCLICAS
IV BUCLICA
Musas da Siclia, erga-se um pouco o nosso tom:
nem todos prezam o arvoredo e os baixos tamarizes;
cantamos selvas; selvas sejam, pois, dignas de um cnsul.
A ltima idade j chegou da predio de Cumas:
a grande ordem dos sculos, de novo ei-la que nasce.
Tambm j volta a Virgem, volta o reino de Saturno;
j uma nova prognie desce dos mais altos cus.
Casta Lucina, ampara, que j reina o teu Apolo,
o menino que est nascendo: a gerao de ferro
com ele findar, ao mundo vindo a raa de ouro.
sendo tu cnsul surgir a glria dessa idade,
Plio; sob o teu poder comearo os grandes meses.
Se o nosso crime deixou traos, nada valem eles,
que de um terror perptuo livrar-se-o todas as terras.
Ter a vida dos deuses o menino, que os ver
no meio dos heris, e ser visto em meio a eles,
regendo com as virtudes de seu pai um mundo em paz.

Sem trato algum, menino, a terra te oferecer


como primcia as heras que se lastram, mais o bcar,
e as colocsias misturadas ao ridente acanto.
Por si, cheias de leite, as cabras voltaro ao aprisco,
e os rebanhos no mais tero pavor dos grandes lees.
Teu prprio leito cobrir-te- de cariciosas flores;
morrer a serpente, e a planta de falaz veneno
morrer; e aqui e ali h de crescer o amomo assrio.
Assim que as proezas dos heris e os feitos de teu pai
puderes ler, e discernir o que a virtude seja,
o campo dourar-se-, aos poucos, com a tenra espiga,
dos incultos silvados pender, vermelha, a uva,
e os duros robles suaro um orvalhado mel.
Mas do delito antigo restaro poucos vestgios,
que faro afrontar os mares e cingir de muros
as cidades, ou abrir na terra os sulcos da lavoura.
existiro, para levar heris dos mais seletos,
outro Tfis e outra Argo; e existiro mais outras guerras,
e um grande Aquiles outra vez ser mandado a Tria.
Quando ento, j firmada, a idade te fizer um homem,
o navegante deixar o mar, e o pinho nutico
as trocas do comrcio; toda a terra dar tudo.
No sofrer o solo enxadas, nem a vinha a foice;
tambm o forte lavrador desjungir seus touros;
no mais a l aprender a mentir com cores vrias,
mas no prado o carneiro mudar seu velo, dando-lhe

291

ora um tom rubro suave, ora amarelo aafroado;


um zarco natural nos pastos vestir os cordeiros.
Fiai sculos tais disseram as parcas aos seus fusos,
concordes com o poder inaltervel dos destinos.
J logo ser tempo, marcha para as grandes honras,
cara prole dos deuses, grande filho, tu, de Jpiter!
V como esto de acordo o mundo de pesada abbada
e as terras todas, e a extenso do mar, e o cu profundo!
V como, com os sculos por vir, tudo se alegra.
A ltima parte desta vida seja-me to longa,
que para te dizer os feitos no me falte o alento!
O trcio Orfeu no poder vencer-me nestes cantos,
nem Lino, ainda que a Orfeu a me Calope socorra
e por seu turno d assistncia a Lino o belo Apolo.
se competir comigo o prprio P, por juiz a Arcdia,
dar-se- por vencido o prprio P, por juiz a Arcdia.
Comea, criana, a conhecer a me com teu sorriso;
dez meses retiveram tua me em longo enfado.
Comea, criana: aquele que no ri prpria me
a mesa no ter de um deus, o leito de uma deusa.

DELMIRA AGUSTINI
O INEFVEL
Traduo de Henriqueta Lisboa
Morro de estranho mal. No, no me mata a vida
a morte no me mata e nem me mata o amor.
Morro de um pensamento mudo como ferida.
No sentiste jamais aquela estranha dor
de um pensamento imenso enraizado vida
devorando alma e carne e no alcana a dar flor?
Nunca levastes dentro uma estrela dormida
por inteiro a abrasar-vos sem nenhum fulgor?
Cmulo dos martrios! Levar eternamente
desgarradora e seca a trgica semente
como um dente feroz que as entranhas corroeu.
Mas arranc-la em flor que amanhecera um dia
milagrosa e ideal ah! maior no seria
do que ter entre as mos a cabea de Deus.

ROSALA DE CASTRO
A JUSTIA PELA MO

292

Aqueles com fama de honrados na vila


roubaram-me a veste com que me cobria,
jogaram-me estrume nas galas de um dia,
a roupa que usava rasgaram-me em tiras.
Nem pedra deixaram aonde eu vivia
sem lar, sem abrigo, nas terras baldias,
no cho como as lebres dormi nas campinas,
meus filhos, meus anjos que tanto eu queria,
morreram, morreram da fome que tinham.
Fiquei desonrada, murcharam-me a vida,
fizeram-me um leito de silvas e espinhos
e no entanto os raposos de raa maldita
tranqilos num leito de rosas dormiam.
Salvai-me, juzes! gritei... e eles riram,
zombaram de mim, e vendeu-me a justia,
Bom Deus, ajudai-me! gritei afligida,
to alto que estava, bom Deus no me ouvira.
Ento como loba doente ou ferida,
de um salto com raiva tomei a foicinha,
rondei de mansinho, nem folha me ouvia!
E a lua escondia-se, e a fera dormia
com seus companheiros em colcha macia.
Olhei-os com calma, e as mos estendidas
de um golpe, de um s, eu deixei-os sem vida.
E ao lado, contente, sentei-me, das vtimas,
tranqila esperando pela alva do dia.
E ento... Ento se cumpriu a justia,
eu, neles, e as leis, nesta mo que os ferira.

JOAN SALVAT-PAPASSEIT
NADA MESQUINHO
Nada mesquinho
nem hora alguma spera,
nem de sombra o destino da noite.
E a geada to clara
que enche o sol de fascnio
do banho indo ao deleite:
tal que cada coisa pronta o leito as reflita.
Nada mesquinho,
e tudo rico tal vinho e a face corada.
E toda onda do mar sempre riu,
Primavera de inverno Primavera de stio.
E tudo Primavera:
e toda folha verde eternamente.
Nada mesquinho,
porque os dias no passam;
e no chega a morte nem por ser demandada.
E se hs demandado ela te finge uma cova

293

porque da morte pra tornar a nascer necessitas.


E jamais somos choro
esparso a gomos de bergamota.
Nada mesquinho
porque a cano se canta em cada fio de coisa.
Hoje, amanh e ontem
se espetala uma rosa:
e lhe vem leite no peito mais jovem das virgens.
[traduo: Adriano Delima]

NADA MESQUINHO
Nada mesquinho
nem hora nenhuma intratvel,
nem escura a aventura da noite.
E o orvalho claro
que o sol sai e fica pasmo
e tem vontade de tomar banho:
que se espelha a cama de toda coisa feita.
Nada mesquinho
e tudo rico como o vinho e a face corada.
E a onda do mar sempre ri,
Primavera de inverno Primavera de vero.
E tudo Primavera:
e toda folha verde eternamente.
Nada mesquinho,
porque os dias no passam;
e a morte no chega nem sequer se foi chamada.
E sei foi chamada disfara uma cova para vocs
porque para nascer de novo vocs precisam morrer
E nunca somos um pranto
mas um sorriso fino
que se dispersa feito gomos de laranja.
Nada mesquinho
porque a cano canta em cada nadinha.
Hoje, amanh e ontem
se desfolhar uma rosa
e a virgem mais nova ter leite no peito.
[traduo de Ronald Polito & Josep Domnech Pensat]

ANNA AKHMTOVA
RQUIEM
1935-1940
No, no foi sob outro firmamento,
Nem sob a proteo de asas estranhas:

294

Estive ento entre meu povo,


L onde meu povo, infelizmente, estava.
1961.
INTRODUO
Aconteceu quando a sorrir
Eram s os mortos: contentes pela paz.
E, intil sobra, pendia
Em volta de suas celas, Leningrado.
E quando, loucas de dor,
J marchavam as legies dos condenados,
E os silvos do trem cantavam
Um breve canto de adeus.
As estrelas da morte sobrestavam
Rssia inocente, se crespando
Sob as botas de sangue
E a sola dos negros cambures.
1.
Levaram-te ao amanhecer,
Atrs de ti, como no enterro, eu ia,
No quarto escuro, choravam os meninos.
Acabava-se a vela sobre o altar,
Nos lbios teus, do cone, o frio.
O suor mortal na testa... No d para esquecer!
Como as mulheres dos franco-atiradores,
Uivarei pelas torres do Kremlin.
1935, Moscou.
3.
No, no sou eu, algum mais que sofre.
Eu no teria podido. Panos negros de l cubram
O que se passou,
E levem embora os lampies...
Noite...
5.
H dezessete meses eu grito,
Te chamo para casa.
Joguei-me aos ps do carrasco,
Meu filho e meu terror.
Tudo turvou-se para sempre,
No posso mais distinguir
Quem homem ou fera e quanto
A pena me cabe esperar.
H somente flores de p,
E o tilintar do turbulo, e rastros,
Algures, para lugar nenhum.
Direto nos olhos fita-me
E ameaa de morte prxima

295

A enorme estrela.

MANUEL BANDEIRA
CANO DAS DUAS NDIAS
Entre estas ndias de leste
E as ndias ocidentais
Meu Deus que distncia enorme
Quantos Oceanos Pacficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medias
Pbis a no poder mais
Altos como a estrela-dalva
Longnquos como Oceanias
Brancas, sobrenaturais
Oh inacessveis praias!...
BOI MORTO
Como em turvas guas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroos do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
rvores da paisagem calma,
Convosco altas, to marginais!
Fica a alma, a atnita alma,
Atnita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto,
Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ningum sabe. Agora boi morto,
Boi morto, boi morto, boi morto.
CNTICO DOS CNTICOS
Quem me busca a esta hora tardia?
Algum que treme de desejo.
Sou teu vale, zfiro, e aguardo
Teu hlito... A noite to fria!
Meu hlito no, meu bafejo,

296

Meu calor, meu trgido dardo.


Quando por mais assegurada
Contra os golpes de amor me tinha,
Eis que irrompes por mim deiscente...
Cntico! Prpura! Alvorada!
Eis que me entra profundamente
Como um deus em sua morada!
Como a espada em sua bainha.
Estudios para una bailadora andaluza
I
Se dira cuando sale
bailando por siguiriyas
que con la imagen del fuego
entera se identifica.
Todos los gestos del fuego
los posee se dira:
los de las hojas del fuego,
de su cabello, de su lengua;
gestos del cuerpo del fuego,
de su carne en agona,
la del fuego, puro nervio,
carne entera en carne viva.
Luego, el carcter del fuego
tambin se adivina en ella:
igual gusto por lo extremo,
de naturaleza hambrienta,
gusto por llegar al fin
de aquello que se aproxima,
gusto por llegarse al fin,
por llegar a su ceniza.
Pero la imagen del fuego
en un punto es desmentida:
porque el fuego no es capaz
como ella en las siguiriyas,
de arrancarse de s mismo
desde una primera chispa,
esa que cuando ella quiere
la enciende fibra por fibra,
porque solo ella es capaz
de encenderse estando fra,
de incendiarse de la nada,
de incendiarse por s misma.

II
En el lomo de la danza
(va cargada o carga ella?)
es imposible decir
si es amazona o yegua.
La energa retenida

297

en su danza ella conserva,


y todo el nervio de cuando
algn caballo se encrespa.
O sea, ambas tensiones:
la de quien la silla sienta
y monta un animal
controlado a duras penas
y aquella del animal
dominado por las riendas
que resiente ser mandado
y obedeciendo protesta.
Entonces, cmo decir
si ella es amazona o yegua:
de tal modo se adecuan
aquello animal y ella,
aquella parte que manda
y aquella que se rebela,
aquello que en ella monta
y lo que es montado en Ella
que mejor ser afirmar
que la amazona y la yegua
estn hechas de igual cosa
y un nervio igual las enerva,
y que no puede trazarse
algn tipo de frontera
entre ella y su montura,
ella es amazona yegua.
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,
que somente ela capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.
II
Subida ao dorso da dana
(vai carregada ou a carrega?)
impossvel se dizer
se a cavaleira ou a gua.
Ela tem na sua dana
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.
Isto : tanto a tenso
de quem vai montado em sela,
de quem monta um animal
e s a custo o debela,
como a tenso do animal
Do Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse
Sobre msica
As origens da msica so muito remotas. Ela se originou na medida e tem suas razes no
grande Um. A grande Unidade gerou os dois plos; os dois plos geraram a energia das

298

trevas e da luz.
Quando o mundo est em paz, quando todas as coisas esto em calma, obedecendo em
suas transformaes ao superior, ento a msica pode atingir a perfeio. Quando os desejos
e paixes no se encaminham por falsas vias, ento a msica pode aperfeioar-se. A msica
perfeita tem suas causas. Ela se originou do equilbrio. O equilbrio se originou do direito, o
direito se originou do sentido csmico. Por isso s se pode falar sobre msica com um home
que tenha reconhecido o sentido csmico.
A msica se baseia na harmonia entre o cu e a terra, na concordncia do sombrio e do
luminoso.
As naes decadentes e os homens maduros para o declnio tambm no se privam da
msica, mas sua msica no jovial. Por isso, quanto mais ruidosa a msica, tanto mais
melanclicos se tornam os homens, tanto mais decadente o pas, tanto maior a queda do
prncipe. Desse modo a essncia da msica tambm se perde.
O que todos os sagrados prncipes apreciavam na msica era sua jovialidade. Os tiranos
Chieh e Chou Hsin executavam msica ruidosa. Consideravam belas as sonoridades fortes, e
interessante a ao da quantidade macia. Aspiravam a sonoridades novas e raras, a sons
nunca ouvidos por nenhum ouvido; procuravam superar-se um ao outro e excederam todas e
medidas e metas.
A causa da descoberta do estado Chiu foi ter descoberto a msica mgica. bastante
ruidosa essa msica, mas na verdade afastou-se da essncia da msica. Pelo fato de se ter
afastado da prpria essncia da msica que essa msica no jovial. Se a msica no
jovial, o povo murmura, e a vida deperece. Tudo isso surge por se desconhecer a essncia da
msica e ter em vista apenas sonoridades ruidosas.
Por isso a msica de uma poca harmoniosa calma e jovial, e o governo equilibrado. A
msica de uma poca inquieta excitada e colrica, e seu governo mau. A msica de uma
nao em decadncia sentimental e triste e seu governo corre perigo.
Atribudo a Li Bu We, extrado do livro Primavera e outono.
Murasaki. La Historia De Genyi20
Los editores del orientalista Arthur Waley han publicado en un solo volumen servicial su ya
famosa traduccin de la Historia de Gengi de Murasaki, antes apenas accesible (o
inaccesible) en seis onerosos volmenes. Esa versin puede calificarse de clsica: est
redactada con casi milagrosa naturalidad y le interesa menos el exotismo -horrenda palabra!
- que las pasiones humanas de la novela. Ese inters es justo; la obra de Murasaki es muy
precisamente lo que se llama una novela psicolgica. Hace mil aos la compuso una dama de
honor de la segunda emperatriz del Japn; en Europa sera inconcebible antes del siglo
diecinueve. Lo anterior no quiere decir que la vasta novela de Murasaki sea ms intensa o
ms memorable o mejor que la obra de Fielding o de Cervantes; quiere decir que es ms
compleja y que la civilizacin que denota es ms delicada. Dicho sea con otras palabras: no
afirmo que Murasaki Shikibu tuviera el talento de Cervantes, afirmo que la escuchaba un
pblico ms sutil. En el Quijote, Cervantes se limita a distinguir el da de la noche; Murasaki
(El puente de los sueos, captulo diez) nota en una ventana las estrellas borrosas detrs
de la nieve que cae. En el prrafo anterior, menciona un largo puente hmedo en la neblina,
que parece mucho ms lejos. Tal vez el primer rasgo es inverosmil; los dos son
extraamente eficaces.

299

He alegado dos rasgos de orden visual; quiero destacar uno psicolgico. Una mujer, detrs
de una cortina, ve entrar a un hombre. Escribe Murasaki: Instintivamente, aunque ella
saba muy bien que l no poda verla, se alis el pelo con la mano.
Es evidente que en dos o tres fragmentos lineales no cabe la medida de una novela de
cincuenta y cuatro captulos. Me atrevo a recomendarla a quienes me leen. La traduccin
inglesa que ha motivado esta breve nota insuficiente se titula The Tale of Genji y ha sido

traducida al alemn el ao pasado (Die Geschichte vom Prinzen Genji,


Insel -Verlag). En francs hay una traduccin integral de los nueve
primeros captulos (Le roman de Genji, Plon, 1928) y algunas pginas en
la Anthologie de la littrature japonaise de Michel Revon.

1699 Madrid
O ENFEITIADO
Embora no tenha sido anunciada pelo heraldo trombeteiro, pelas ruas de Madrid
voa a notcia. Os inquisidores descobriram o culpado do feitio do rei Carlos. A
feiticeira Isabel ser queimada viva na praa Maior.
Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o monarca bebia sua
poo de p de vbora, infalvel para dar foras, mas em vo: o pnis seguia
abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam saindo babas e
hlito imundo e nem uma palavra que valesse a pena.
O malefcio no vinha de certa xcara de chocolate com p de testculos de
enforcado, como tinham dito as bruxas de Cangas, nem do prprio talism que o
rei usava pendurado no pescoo, como acreditou o exorcista frei Mauro. Houve
quem dissesse que o monarca tinha sido enfeitiado pela prpria me, com tabaco
da Amrica ou pastilhas de benjuy; e inclusive se rumoreou que o mordomo-mor, o
duque de Castellflorit, tinha servido mesa real um presunto misturado com unhas
de mulher moura ou judia queimada pela Inquisio.
Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o redemoinho de agulhas,
grampos, caroos de cereja e louros cabelos de Sua Majestade, que a feiticeira
Isabel tinha escondido pertinho da alcova real.
Balana o nariz, balana o lbio, balana o queixo; mas agora que o rei foi
desembruxado, parece que os olhos dele se acenderam um pouquinho. Um ano
ergue o crio, para que o Rei contemple seu retrato, que h anos pintou Carreo.
Enquanto isso, fora do palcio faltam po e carne, peixe e vinho, como se Madrid
fosse uma cidade sitiada.
1699 Madrid . O ENFEITIADO - Embora no tenha sido anunciada pelo heraldo
trombeteiro, pelas ruas de Madrid voa a notcia. Os inquisidores descobriram o
culpado do feitio do rei Carlos. A feiticeira Isabel ser queimada viva na praa
Maior.Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o monarca bebia sua
poo de p de vbora, infalvel para dar foras, mas em vo: o pnis seguia
300

abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam saindo babas e
hlito imundo e nem uma palavra que valesse a pena. O malefcio no vinha de
certa xcara de chocolate com p de testculos de enforcado, como tinham dito as
bruxas de Cangas, nem do prprio talism que o rei usava pendurado no pescoo,
como acreditou o exorcista frei Mauro. Houve quem dissesse que o monarca tinha
sido enfeitiado pela prpria me, com tabaco da Amrica ou pastilhas de benjuy;
e inclusive se rumoreou que o mordomo-mor, o duque de Castellflorit, tinha servido
mesa real um presunto misturado com unhas de mulher moura ou judia
queimada pela Inquisio. Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o
redemoinho de agulhas, grampos, caroos de cereja e louros cabelos de Sua
Majestade, que a feiticeira Isabel tinha escondido pertinho da alcova real. Balana
o nariz, balana o lbio, balana o queixo; mas agora que o rei foi desembruxado,
parece que os olhos dele se acenderam um pouquinho. Um ano ergue o crio,
para que o Rei contemple seu retrato, que h anos pintou Carreo. Enquanto isso,
fora do palcio faltam po e carne, peixe e vinho, como se Madrid fosse uma
cidade sitiada.

1566 Madrid
O FANTICO DA DIGNIDADE HUMANA
Frei Bartolom de Las Casas est passando por cima do rei e do Conselho das
ndias. Ser castigada a sua desobedincia? Aos noventa e dois anos, pouco lhe
importa. Meio sculo lutou ele. No esto em sua faanha as chaves de sua
tragdia? Muitas batalhas deixaram que ele ganhasse; faz tempo que sabe disso,
porque o resultado da guerra estava decidido por antecipao.
Os dedos j no lhe do confiana. Dita a carta. Sem autorizao de ningum, se
dirige diretamente Santa S. Pede ao papa Pio V que mande cessar as guerras
contra os ndios e que ponha fim ao saqueio que usa a cruz como libi. Enquanto
dita se indigna, sobe-lhe o sangue cabea e se rompe a voz que lhe sobra, rouca
e pouca.
Subitamente, cai ao cho.

1566 Madrid
Mesmo perdendo, vale a pena.
Os lbios se movem, dizem palavras sem som.
301

Me perdoars, Deus?

Frei Bartolom pede clemncia no Juzo Final, por ter acreditado que os escravos
negros e mouros aliviariam a sorte dos ndios.
Jaz estendido, mida a testa, plido, e no cessam de mover-se os seus lbios.
Um trovo explode, lento, ao longe. Frei Bartolom, o nascedor, o fazedor, fecha os
olhos. Embora tenha sido sempre duro de ouvido, escuta a chuva sobre o telhado
do convento de Atocha. A chuva molha a sua cara. Sorri.
Um dos sacerdotes que o acompanham murmura alguma coisa sobre a estranha
luz que acendeu-lhe o rosto. Atravs da chuva, livre de dvida e tormento, frei
Bartolom est viajando, pela ltima vez, para os verdes mundos onde conheceu a
alegria.
Obrigado dizem seus lbios, em silncio, enquanto l as oraes luz de
vaga-lumes, salpicado pela chuva que golpeia o teto de folhas de palmeiras.
Obrigado diz, enquanto celebra missa em choupanas sem paredes e batiza

crianas nuas nos rios.


Os sacerdotes fazem o sinal-da-cruz. Caram os ltimos gros de areia do relgio.
Algum vira a ampulheta, para que o tempo no pare.
Madrid, 1634
Quem se escondia no bero da tua mulher?
O Conselho Supremo do Santo Ofcio da Inquisio, velando pela limpeza do
sangue, decide que de agora em diante se far cuidadosa investigao antes que
seus funcionrios contraiam matrimnio.
Todos os que trabalham para a Inquisio, o porteiro e o fiscal, o torturador e o
verdugo, o mdico e o ajudante de cozinha, devero apresentar a genealogia de
dois sculos da mulher que escolheram, para evitar que se casem com pessoas
infectas.
Pessoas infectas, ou seja: com litros ou gotas de sangue ndio e ou sangue negro,
ou com tataravs de f judia ou cultura islmica ou devoo a qualquer heresia.
1641 Madrid
A ETERNIDADE CONTRA A HISTRIA
O conde-duque de Olivares morde os punhos e amaldioa baixinho. muito o que
manda, depois de vinte anos de tanto fazer e desfazer na corte, mas mais forte
pisa Deus.
302

A Junta de Telogos acaba de rejeitar o projeto de canalizao dos rios Tejo e


Manzanares, que tanto bem faria para os pramos de Castela. Os rios ficaro
como os fez Deus, e ao arquivo iro os projetos dos engenheiros Carducci e
Martelli.
Na Frana anunciam que logo se abrir o grande canal do Languedoc, para unir o
Mediterrneo com o vale do Garona. Enquanto isso, nesta Espanha que
conquistou a Amrica, a Junta de Telogos decide que atenta contra a Divina
Providncia quem tenta melhorar o que ela, por motivos inescrutveis, quis que
seja imperfeito. Se Deus quisesse que os rios fossem navegveis, os teria feito
navegveis.
Madrid, 1641. A ETERNIDADE CONTRA A HISTRIA - O conde-duque de
Olivares morde os punhos e amaldioa baixinho. muito o que manda, depois de
vinte anos de tanto fazer e desfazer na corte, mas mais forte pisa Deus. A Junta de
Telogos acaba de rejeitar o projeto de canalizao dos rios Tejo e Manzanares,
que tanto bem faria para os pramos de Castela. Os rios ficaro como os fez Deus,
e ao arquivo iro os projetos dos engenheiros Carducci e Martelli. Na Frana
anunciam que logo se abrir o grande canal do Languedoc, para unir o
Mediterrneo com o vale do Garona. Enquanto isso, nesta Espanha que
conquistou a Amrica, a Junta de Telogos decide que atenta contra a Divina
Providncia quem tenta melhorar o que ela, por motivos inescrutveis, quis que
seja imperfeito. Se Deus quisesse que os rios fossem navegveis, os teria feito
navegveis.

Lima, 1670. "Tenha d de ns", Tinham-lhe dito, sem palavras, os ndios das minas
de Potos. E no ano passado o conde de Lemos, vice-rei do Peru, escreveu ao rei
da Espanha: No h nao no mundo to fatigada. Eu descarrego minha
conscincia com informar a Vossa Majestade com esta clareza: no prata o que
se leva Espanha, e sim sangue e suor de ndios. O vice-rei viu o monte que
come homens. Das comunidades trazem ndios atados a cordas com argolas de
ferro, e quantos mais o monte come, mais cresce sua fome. As aldeias ficam
vazias de homens. Depois do relatrio ao rei, o conde de Lemos proibiu as
jornadas de semana inteira nas covas asfixiantes. Golpes de tambor, prego de
negro: daqui para a frente, disps o vice-rei, trabalharo os ndios da sada at o
pr-do-sol, porque no so escravos para pernoitar nas galerias. Ningum
acreditou. E agora recebe, em seu austero palcio de Lima, uma resposta do
303

Conselho das ndias, de Madrid. O Conselho se nega a suprimir o trabalho forado


nas minas de prata e mercrio.

Madrid, 1700
Penumbra de Outono
Nunca pde vestir-se sozinho, nem ler correntemente, nem ficar em p por conta
prpria. Aos quarenta anos, um velhinho sem herdeiros, que agoniza rodeado de
confessores, exorcistas, cortesos e embaixadores que disputam o trono.
Os mdicos, vencidos, tiraram de cima dele as pombas recm-mortas e as
entranhas de cordeiro. As sanguessugas j no cobrem seu corpo. No lhe do de
beber aguardente nem a gua-da-vida trazida de Mlaga, porque s resta esperar
a convulso que o arrancar deste mundo. A luz das tochas, um Cristo
ensangentado assiste, da cabeceira da cama, cerimnia final. O cardeal salpica
gua benta com o aspersrio. A alcova fede a cera, incenso, sujeira. O vento
golpeia os prticos do palcio, mal amarrados com barbantes.
O levaro morgue de El Escoriai, onde o espera, h anos, a urna de mrmore
que leva seu nome. Essa era a sua viagem preferida, mas h tempos que no
visita a prpria tumba nem mostra o nariz nas ruas. Est Madrid cheia de buracos
e lixo e vagabundos armados; e os soldados, que mal e mal vivem da sopa boba
dos conventos, no se preocupam em defender o rei. Nas ltimas vezes em que se
atreveu a sair, as lavadeiras do rio Manzanares e os rapazes da rua perseguiram a
carruagem e cobriram ele de insultos e pedradas.
Carlos II, com os vermelhos olhos arregalados, treme e delira. Ele um pedacinho
de carne amarela que foge entre os lenis, enquanto foge tambm o sculo e
acaba, assim, a dinastia que fez a conquista da Amrica.
Barcelona, 1533
As guerras santas
Da Amrica chegam os heraldos da boa-nova. O imperador fecha os olhos e
assiste o avano das velas e sente o cheiro do breu e do sal. Respira o imperador
como o mar, mar cheia, mar vazia; e sopra para apressar os navios inchados de
tesouros.
A Providncia acaba de dar-lhe de presente um novo reino, onde o ouro e a prata
abundam como o ferro em Vizcaya. O assombroso tesouro est a caminho. Com
ele poder tranqilizar os banqueiros que o enforcam e poder finalmente pagar os
seus soldados, lanceiros suos, mercenrios alemes, infantes espanhis, que
no vem uma moeda nem em sonhos. O resgate de Atahualpa financiar as
304

guerras santas contra a meia-lua do Isl, que chegou s portas de Viena, e contra
os hereges que seguem Lutero na Alemanha. O imperador armar uma grande
frota para varrer do Mediterrneo o sulto Solimo e o velho pirata Barba Roxa.
O espelho devolve ao imperador a imagem do deus da guerra: a armadura
adamascada, com rendas cinzeladas ao bordo da gola e da couraa, o casco de
plumas, o rosto iluminado pelo sol da glria: as sobrancelhas ao ataque sobre os
olhos melanclicos, o barbudo queixo lanado para a frente. O imperador sonha
com Argel e escuta o chamado de Constantinopla. Tunes, cada em mos infiis,
tambm espera pelo general de Jesus Cristo.
Roma, 1537
O PAPA DIZ QUE SO COMO NS.
O papa Paulo III estampa seu nome no selo de chumbo, que mostra as efgies de
So Pedro e So Paulo, e o amarra em um pergaminho. Uma nova bula sai do
Vaticano. Se chama Sublimis Deus e descobre que os ndios so seres humanos,
dotados de alma e razo.

Jamestown, 1644
Opechancanough
Antes que um soldado ingls o fulmine pelas costas, o chefe Opechancanough se
pergunta: "Onde est o guardio invisvel de minhas viagens? Quem roubou-me a
minha sombra?".
Aos cem anos, foi derrotado. Tinha ido ao campo de batalha em uma liteira.
Faz mais de oitenta anos que o almirante Pedro Menndez de Avils levou-o a
Cadiz. Apresentou-o na corte de Felipe II: Eis aqui um belo prncipe ndio da
Florida. Puseram-lhe calas, gibo e gola. Em um convento dominicano de Sevilha
ensinaram-lhe a lngua e a religio dos castelhanos. Depois, no Mxico, o vice-rei
deu-lhe seu nome de presente e Opechancanough passou a chamar-se Luis de
Velasco. Ao mesmo tempo regressou terra de seus pais, como intrprete e guia
dos jesutas. Sua gente achou que ele voltava da morte. Predicou o cristianismo e
depois despiu-se e degolou os jesutas e tornou a chamar-se como antes.
Desde aquele tempo, matou muito e viu muito. Viu as chamas devorando aldeias e
campos de cultivo e viu seus irmos vendidos a quem pagava mais, nesta regio
que os ingleses batizaram de Virgnia em memria a uma rainha virgem de
esprito. Viu a varola engolindo homens e o tabaco, faminto, devorando terras. Viu
como eram apagados do mapa dezessete das vinte e oito comunidades que
305

existiam aqui, e como as outras recebiam a possibilidade de escolher entre a


dispora e a guerra. Trinta mil ndios deram as boas-vindas aos navegantes
ingleses que chegaram baa de Chesapeake, em uma fresca manh de 1607.
Sobrevivem trs mil.

O SOL E A LUA
O primeiro sol, o sol de gua, a inundao levou. Todos os que moravam no
mundo se converteram em peixes.
O segundo sol, os tigres devoraram.
O terceiro, uma chuva de fogo, que incendiou as gentes, arrasou.
O quarto, o sol de vento, a tempestade apagou. As pessoas se transformaram em
macacos e se espalharam pelos montes.
Pensativos, os deuses se reuniram em Teotihuacn.
Quem se ocupar de trazer o amanhecer?
O senhor dos caracis, famoso por sua fora e por sua formosura, deu um passo
adiante.
Eu serei o sol disse.
Quem mais? Silncio.
Todos olhavam para o Pequeno Deus Purulento, o mais feio e desgraado dos
deuses, e disseram:
Tu.
O Senhor dos Caracis e o Pequeno Deus Purulento se retiraram para os montes
que agora so as pirmides do sol e da lua. Ali em jejum, meditaram.
Depois os deuses juntaram lenha, armaram uma fogueira enorme e os chamaram.
O Pequeno Deus Purulento tomou impulso e se atirou nas chamas. Em seguida
emergiu, incandescente, no cu.
O Senhor dos Caracis olhou a fogueira com o cenho franzido. Avanou,
retrocedeu, parou. Deu um par de voltas. Como no se decidia, tiveram de
empurr-lo. Com muita demora subiu ao cu. Os deuses, furiosos, o esmurraram.
Bateram em sua cara com um coelho, uma e outra vez, at que mataram seu
brilho. Assim, o arrogante Senhor dos Caracis se transformou na lua. As manchas
da lua so as cicatrizes daquele castigo.
Mas o sol resplandecente no se movia. O gavio de pedra voou at o Pequeno
Deus Purulento:
Por que no andas?
E respondeu o desprezado, o fedorento, o corcunda, o manco:
Porque quero o sangue e o reino.
Este quinto sol, o sol do movimento, iluminou os toltecas e ilumina os astecas. Tem
garras e se alimenta de coraes humanos.

306

Madrid, 1620

Las danzas del Diablo vienen de Amrica


Gracias al cadver de san Isidro, que en las ltimas noches ha dormido a su
lado, el rey Felipe III se siente mejor. Este medioda ha comido y bebido sin
ahogarse. Sus platos favoritos le han encendido los ojos y ha vaciado de un trago la
copa de vino.
Moja ahora sus dedos en la fuente de agua que un paje, arrodillado, le ofrece. El
panetier alcanza la servilleta al mayordomo semanero. El mayordomo semanero la
pasa al mayordomo mayor. El mayordomo mayor se inclina ante el duque de Uceda.
El duque recoge la servilleta. Humillando su frente, la tiende al rey. Mientras el rey
se seca las manos, el trinchante le sacude las miguitas de la ropa y El sacerdote
eleva una oracin de gracias a Dios.
Felipe bosteza, se desata el alto cuello de encajes, pregunta qu hay de nuevo.
El duque cuenta que han venido a palacio los de la Junta de Hospitales. Se quejan
de que el pblico se niega a ir al teatro desde que el rey prohibi los bailes; y los
hospitales viven de los corrales de comedias. Seor, han dicho los de La Junta AL
duque, desde que no hay bailes no hay entradas. Los enfermos se mueren. No
tenemos con qu pagar las vendas ni los mdicos. Los actores recitan versos de
Lope de Vega que elogian al indio americano:
Taquitn mitanacunl,
espaol de aqu para all.
...En Espaa no hay amor,
crolo ans:
all reina el inters
y amor aqu.
Pero de Amrica el pblico exige cantares salados y danzas de las que pegan fuego
a los ms honestos. De nada vale que los actores hagan llorar a las piedras y rer a
los muertos, ni que las artes de la tramoya arranquen relmpagos a las nubes de
cartn. Si los teatros siguen vacos, gimen los de la Junta, los hospitales
tendrn que cerrar.
Les contest dice el duque que Su Alteza decidira.
Felipe se rasca la barbilla, se investiga las uas.
Si Su Majestad no ha mudado de parecer... Lo prohibido, prohibido est, y bien
prohibido.
La zarabanda y la chacona hacen brillar los sexos en la oscuridad. El padre Mariana
ha denunciado estas danzas, inventos de negros y de salvajes americanos,
infernales en las palabras y en los meneos. Hasta en las procesiones se escuchan
sus coplas de elogio al pecado; y cuando brotan sus lascivos sones de las
panderetas y las castauelas, ya no son dueas de sus piernas las monjas de los
conventos y la cosquilla del Diablo les dispara las caderas y los vientres.
La mirada del rey persigue los andares de una mosca gorda, haragana, entre
los restos del banquete.
Y t, qu opinas? pregunta el rey a la mosca.
El duque se da por aludido:
Esos bailes de truhanes son msica de aquelarres, como bien ha dicho Su
Majestad, y el lugar de las brujas est en las hogueras de la plaza Mayor.
Los manjares han desaparecido de la mesa, pero persiste en el aire el pegajoso
aroma.
Balbuceante, ordena el rey a la mosca:
Decide t.
Ni el peor enemigo podra acusar a Su Alteza de intolerancia insiste el duque.
Indulgente ha sido Su Majestad. En tiempos del rey su padre, que Dios lo tenga en

307

la gloria...
No eres t quin manda? murmura Felipe.
... otros premios reciba quien osara bailar la zarabanda! Doscientos azotes y a
remar a galeras!
T, digo susurra el rey, y cierra los ojos.
T y un espumoso globito, saliva que siempre le sobra en la boca, asoma entre
los labios.
El duque insina una protesta y en seguida calla y retrocede en puntas de pie.
Felipe se va hundiendo en el sopor, pesadas las pestaas, y suea con uma mujer
gorda y desnuda que devora barajas.
No dia 26 de fevereiro de 1659, Felipe IV nomeou Velzquez cavaleiro da Ordem de
Santiago. Nos meses subseqentes o Conselho das Ordens investigou cada canto
da sua linhagem e da sua histria pessoal, entrevistando 148 testemunhas em
Sevilha, Madri e na fronteira portuguesa, perto do lugar onde a famlia tinha
origem.
O veredito, divulgado em 26 de fevereiro de 1659, deve ter sido uma surpresa:
rejeitara a nomeao porque no ficara provado o status nobre da av paterna nem
dos avs maternos do artista. Hoje parece no haver dvida de que a evidncia
genealgica estabeleceu, na verdade, que os dois ramos da famlia de Velzquez
pertenciam baixa nobreza. Por inferncia, o verdadeiro motivo da rejeio era sua
profisso. Os pintores s tinham qualificao para a Ordem de Santiago se no
aceitassem pagamento por suas obras. Vrios colegas de Velzquez Zurbarn,
Cano, Carreo e Nardi, entre eles prestaram depoimento nesse sentido, mas
todos sabiam que eles estavam mentindo.
Velzquez s pode ter ficado chocado com a deciso. A tentativa de aumentar seu
prestgio resultara numa humilhao pblica. No dia 3 de abril, o Conselho notificou
o rei de que era necessria uma dispensa papal para desculpar a nobreza no
comprovada, o que podia ser obtido rapidamente. Entretanto, a coisa no acabou
a: em 3 de agosto o soberano foi informado de mais um pecado genealgico.
Exigiu-se nova dispensa papal, e quando esta chegou, o Conselho foi obrigado a
admitir Velzquez na Ordem de Santiago (28 de novembro de 1659). A cavalaria
assim obtida era uma vitria de Pirro. Sem o apoio decidido do rei, a pretenso do
artista certamente seria rejeitada pelos nobres, que se recusavam a reconhecer a
pintura como uma atividade digna de um cavaleiro. Para Velzquez, isso reforou
sua deciso de dedicar o tempo ao servio pessoal do monarca. Para os pintores de
Madri no houve motivo de comemorao, pois o episdio revelava que eles
estavam muito longe de merecer aceitao social. Era evidente que a admisso de
Velzquez na Ordem de Santiago no estabelecia um precedente, era apenas a
exceo que confirmava a regra.
Recife, 1602
LA PRIMERA EXPEDICIN CONTRA PALMARES
Em los ingenios, que extrujan e exprimen caas y hombres, se mide El trabaja d
cada esclavo como se mide el peso de ls caas

O URUTAU

308

Sou filha da desgraa, disse Nheambi, a filha do chefe, quando seu pai proibiu
proibiu seus amores com um homem de uma comunidades inimiga.
Disse isso e fugiu.
Pouco tempo depois a encontraram, nos montes do Igauu. Encontraram uma
esttua. Nheambi olhava sem ver; estava muda a sua boca e adormecido o seu
corao.
O chefe mandou chama o que decifra os mistrios e cura as doenas. Toda a
comunidade acudiu para presenciar a ressurreio.
O sbio pediu conselho erva-mate e ao vinho de mandioca. Aproximou-se de
Nheambi e mentiu-lhe junto a o ouvido:
- O homem que ama acaba de morrer.
O grito de Nheambi converteu a todos os ndios em salgueiros-chores. Ela voou,
feita pssaro.
Os gritos do urutau, que em plena noite estremecem as montanhas, podem ser
escutados a mais de uma lgua. difcil ver o urutau. Ca-lo, impossvel. No h
quem alcance o pssaro fantasma.

La Imperial, 1599
AS FLECHAS CHAMEJANTES
A rebelio estala na costa do Pacfico e os troves acodem as cordilheiras dos
Andes.
Martn Garca ez de Loyola, sobrinho de Santo Igncio, tinha vindo do Peru com
fama de caador incansvel e certeiro matador. L tinha capturado Tpac Amar, o
ltimo dos Incas. O mandaram como governador ao Chile para que amansasse os
araucanos. Aqui matou ndios, roubou ovelhas e queimou sementeiras sem deixar
um gro. Agora os araucanos passeiam sua cabea na ponta de uma lana.
Os ndios chamam para a luta soprando ossos de cristo como se fossem
trombetas. Mscaras de guerra, couraas de couro: a cavalaria araucana arrasa o
sul. Sete povoados se desmoronam, um depois do outro, sob a chuva de flechas de
fogo. A presa se faz caador. Os araucanos sitiam La Imperial. Para deix-la sem
gua, desviam o curso do rio.
Meio reino do Chile, todo o sul do Bo Bo, volta a ser araucano.
Os ndios dizem, apontando a lana: Este meu amo. Este no me manda tirar
ouro para ele, nem que traga ervas ou lenhas, nem que guarde seu gado, nem que
plante e colha para ele. Com este amo quero andar.

Granada, 1499
QUEM SO ESPANHIS?
As mesquitas continuam abertas em Granada, sete anos depois da rendio deste
ltimo reduto dos mouros na Espanha. lento o avanar da cruz depois da vitria
da espada. O arcebispo Cisneros decide que Cristo no pode esperar.
Mouros chamam os espanhis cristos os espanhis de cultura islmica, que levam
aqui oito sculos. Milhares e milhares de espanhis de origem judia j forma

309

condenados ao desterro. Aos mouros tambm ser dado escolher entre o batismo e
o exlio; e para os falsos convertidos ardem as fogueiras da Inquisio. A unidade
da Espanha, deste Espanha que descobriu a Amrica, no ser a soma de suas
partes.
Por ordem do arcebispo Cisneros, marcham para a priso os sbios muulmanos de
Granada. Altas chamas devoram os livros islmicos, religio e poesia, filosofia e
cincia, exemplares nicos que guardavam a palavra de uma cultura que regou
estas terras e nelas floresceu.
Do alto, os lavrados palcios so testemunhas mudas do avassalamento, enquanto
as fontes no param de dar gua ao jardim.
Tenochtitln, 1506
O DEUS UNIVERSAL
Nos adoratrios ardem os fogos. Ressoam os tambores. Um atrs do outro os
prisioneiros sobem as arquibancadas at a pedra redonda do sacrifcio. O sacerdote
crava-lhes no peito o punhal de pedra, ergue o corao em uma das mos e
mostra-o ao sol que brota dos vulces azuis.
A que deus oferece o sangue? O sol o exige, para nascer cada dia e viajar de um
horizonte ao outro. Mas as ostentosas cerimnias da morte tambm servem a outro
deus, que no aparece nos cdices nem nas canes.
Se esse deus no reinasse sobre o muno, no haveria escravos nem amos, nem
vassalos nem colnias. Os mercadores astecas no poderiam arrancar dos povos
submetidos um diamante a troco de um feijo; nem trocar uma esmeralda por um
gro de milho, nem ouro por guloseimas, nem cacau por pedras. Os carregadores
no atravessariam a imensido do imprio em longas filas, levando nas costas
toneladas de tributos. O povo ousaria usar tnica de algodo e beberia chocolate e
teria a audcia de mostrar proibidas plumas de quetzal e pulsiras de ouro e
magnlias e orqudeas reservadas aos nobres. Cairiam, ento, as mscaras que
ocultam os rostos dos chefes guerreiros, o bico da guia, os dentes do tigre, os
penachos de plumas que ondulam e brilham no ar.
Esto manchadas de sangue as escadarias do templo maior e os crnios se
acumulam no cento da praa. No somente para que se mova o sol, no: tambm
para que esse deus secreto decida no lugar dos homens. Em homenagem ao
mesmo deus, do outro lado do mar os inquisidores fritam os hereges nas fogueiras
ou os retorcem nas cmaras de tormento. o Deus do Medo. O Deus do Medo, que
tem dentes de rato e asas de urubu.

Quebec, 1717
O HOMEM QUE NO ACREDITAVA NO INVERNO
De acordo com o que contou Rabelais e Voltaire repetiu, to frio o frio do Canad
que as palavras se congelam ao sair da boca e ficam suspensas no ar. No final de
abril, os primeiros sis partem os gelos obre os rios e a primavera explode no meio
de gemidos de ressurreio.
Ento, e s ento, possvel escutar as frases pronunciadas no inverno.

310

Os colonos franceses temem o inverno mais do que temem os ndios, e invejam os


animais que o atravessam dormindo. Nem o urso nem a marmota percebem as
maldades do frio: vo embora do mundo por alguns meses, enquanto o inverno
parte as rvores com rudos de tiros e transforma os humanos em esttuas de
sangue congelado e carne de mrmore.
O portugus Pedro da Silva passava o invernos levando cartas em um tren de
ces, sobre os gelos do rio So Loureno. No vero, viajava de canos, e, s vezes,
por culpa dos ventos, demorava um ms inteiro indo e vindo de Quebec a Montreal.
Pedro levava decretos do governador, relatrios de frades e funcionrios, ofertas de
vendedores de peles, promessas de amigos, segredos de amantes.
O primeiro carteiro do Canad trabalhou durante um quarto de sculo sem pedir
licena ao inverno. Agora morreu.

So Joo del Rei, 1718


O PELOURINHO
A horda aventureira derruba selvas, abre montanhas, desvia rios; e enquanto o fofo
revela fulgores nas pedras ferruginosas, os perseguidores do ouro comem sapos e
razes e fundam cidades sob o duplo signo da fome e do castigo.
A instalao do pelourinho indica o nascimento de cada cidade na regio brasileira
do ouro: o pelourinho o centro de tudo, e ao seu redor ficaro as casas, as igrejas
nos topos dos morros: o pelourinho, com uma coroa na ponta alta e um par de
argolas para prender os escravos que meream o aoite.
Erguendo a espada na frente do pelourinho, o conde de Assumar d nascimento
oficial aldeia de So Joo Del Rei. Quatro meses levou a viagem do Rio de Janeiro
at aqui, e no caminho comeu carne de macaco e formigas assadas.
Essa terra lhe d pnico e asco. O conde de Assumar, governador de Minas Gerais,
acredita que o esprito de rebelio uma segunda natureza dessa gente intratvel e
sem domiclio: aqui os astros induzem desordem, diz, e a gua exala motins e a
terra solta vapor de tumultos: so insolentes as nuvens, rebeldes os ares, e o ouro,
desaforado.
Manda co conde que seja cortada a cabea de todo fugitivo, e organiza milcias para
perseguir a negrada rebelde. Os desgraados, nem brancos nem negros, miserveis
filhos do senhor e da escrava ou mistura de mil sangues, so os caadores de
escravos fugidos.
Nascidos para viver fora da lei, so bons para morrer matando. Eles, mulatos e
mestios, so muitos: no existem aqui mulheres brancas nem existe maneira para
cumprir a vontade do rei que, l de Lisboa, ordenou evitar a descendncia
defeituosa e impura.

COMUNHO
Muito ter que ocultar a histria, dama de vus rosados, beijadora dos que vencem.
Bancar a distrada ou ficar doente de fingida amnsia; mentir que foram mansos
e resignados, talvez at felizes, os escravos negros do Brasil.

Mas os amos das plantaes obrigam os cozinheiros a provar na frente deles cada prato.
311

Venenos de lenta agonia escorregam entre as delcias da mesa. Os escravos matam; e


tambm se matam ou fogem, que so maneiras de roubar ao amo a sua principal
riqueza.
Ou se sublevam, acreditando, danando, cantando, que a maneira de se redimir e
ressuscitar.
O cheiro das canas cortadas embebeda o ar das plantaes e ardem fogos na terra e nos
peitos: o fogo tempera as lminas, repicam os tambores. Os tambores invocam os velhos
deuses, que voam at essa terra de exlio, respondendo s vozes de seus filhos perdidos,
e entram neles e fazem amor com eles, arrancando-lhes msica e uivos,devolvendo-lhes
assim, intacta, a vida quebrada.
Na Nigria ou no Daom, os tambores pedem fecundidade para as mulheres e as terras.
Aqui, no. Aqui, as mulheres geram escravos e as terras os aniquilam. Aqui, os deuses
agrrios cedem o passo aos deuses guerreiros. Os tambores no pedem fecundidade,
pedem vingana; Ogum, o deus do ferro, afia punhais, e no enxadas.

Segura de La Frontera, 1520


A DISTRIBUIO DA RIQUEZA
Murmura-se e luta-se no acampamento dos espanhis. Os soldados no tem mais
remdio que entregar as barras de ouro salvadas do desastre. Quem esconda algo,
ser enforcado.
As barras provm das obras dos ourives e dos escultores do Mxico. Antes de
converter-se em presa de guerra e fundir-se em lingotes, este ouro foi serpente a
ponto de morder, tigre a ponto de saltar, guia a ponto de voar ou punhal que
serpenteia e corre como Corts explica que este ouro no mais que gotinhas
comparado com o que os espera. Retira a quinta parte para o rei, outra quinta parte
para ele, mais ao que cabe ao seu pai e ao cavalo que morreu, e entrega aos
capites quase todo o resto. Pouco ou nada recebe os soldados, que lamberam este
ouro, o morderam, o pesaram na palma da mo, dormiram com ele debaixo da
cabea e contaram a ele seus sonhos de vingana.
Enquanto isso, o ferro em brasa marca a cara dos soldados ndios recmcapturados em Tepeaca e Huaquechula.
O ar cheira a carne queimada.
Cuzco, 1523
HUINA CPAC
Enfrentando o sol que aparece, atira-se na terra e humilha a face.
Recolhe com as mos os primeiros raios e leva-os boca e bebe a luz. Depois
ergue-se e fica em p. Olha fixo o sol, sem pestanejar.
Atrs de Huaina Cpac, suas muitas mulheres aguardam com a cabea baixa.
Esperam tambm, em silncio, os muitos prncipes. O Inca est olhando para o sol,
olha-o de igual para igual, e um murmrio de escndalo cresce entre os sacerdotes.
Passaram-se muitos anos desde que Huaina Cpac, filho do pai resplandecente,
subiu ao trono com o ttulo de poderoso e jovem chefe rico de virtudes. Ele
estendeu seu imprio muito alm das fronteiras de seus antepassados. Faminto de

312

poder, descobridor, conquistador, Huaina Cpac conduziu seus exrcitos da selva


amaznica at as alturas de Quito, e de Chaco at a costa do Chile. A golpes de
machado e vos de flechas, fez-se dono de novas montanhas e plancies e areais.
No h quem no sonhe com ele nem existe quem no o tema neste reino que ,
agora, maior que a Europa. De Huaina Cpac dependem os pastos, a gua e as
pessoas. Por causa de sua vontade se moveram a cordilheira e as pessoas. Neste
imprio que no conhece a roda, ele mandou construir edifcios, em Quito, com
pedras de Cuzco, para que no futuro se entenda sua grandeza e sua palavra seja
acreditada pelos homens.
O Inca est olhando fixo para o sol. No por desafio, como temem os sacerdotes,
mas por piedade. Huaina Cpac sente pena do sol, porque sendo o sol seu pai e pai
de todos os incas desde o antigamente das idades, no tem direito fadiga nem ao
aborrecimento. O sol jamais descansa, jamais brinca, jamais esquece. No pode
faltar ao dever de cada dia e atravs do cu percorre, hoje, o caminho de ontem e
de amanh.
Enquanto contempla o sol, Huaina Cpac decide: Breve, morrerei.

Cajamarca, 1532
PIZARRO
Mil homens vo varrendo o caminho do Inca at a vasta praa onde aguardam,
escondidos, os espanhis. A multido treme ao passar o Pai Amado, o Uno, o nico,
o dono do trabalho e das festas; calam os que cantam e se detm os que danam.
pouca luz, a ltima do dia, relampagueiam de ouro e prata as coroas e as roupas
de Atahualpa e seu cortejo de senhores do reino.
Onde esto os deuses trazidos pelos ventos? O Inca chega ao centro da praa e
ordena esperar. H uns dias, um espio se meteu no acampamento dos invasores,
puxou-lhes as barbas e voltou dizendo que no eram mais que um punhado de
ladres sados do mar. Esta blasfmia custou-lhe a vida. Onde esto os filhos de
Wiracocha que levam estrelas nos calcanhares e descarregam troves que
provocam o estupor, o estampido e a morte?
O sacerdote Vicente de Valverde emerge das sombras e sai ao encontro de
Atahualpa

Um dia, por felicidade, esse trabalho exaustivo cessaria de todo. Um dia, ele
tambm, ficaria livre do tormento de pensar. Viria o silncio, finalmente; o repouso
no silncio!... Lembrou-se daquele cais de Munique onde certa vez passeara, at
altas horas, uma fascinante tentao de suicdio... Uma frase, como uma
reminiscncia musical, cantou-lhe de repente na memria: Descansaremos... Era a
frase final de uma pea russa que vira representar em Genebra, guardava ainda no
ouvido a voz da artista, uma eslava de rosto de criana, com olhos cndidos e
febris, que repetia balanando a cabecinha: Descansaremos... Uma entonao
sonhadora, um som alongado como um acordeon, acompanhado de um olhar
fatigado, onde havia, na verdade, muito mais de resignao que de esperana: No
tiveste alegrias na vida... Pacincia, tio Vnia, pacincia... Descansaremos...
Descansaremos...

313

Paris, 1804
NAPOLEO
Os graves acordes do rgo convocam os sessenta reis que a Frana teve, e talvez
os anjos, enquanto o papa de Roma oferece a coroa de ouro a Napoleo Bonaparte.
Napoleo cinge a prpria testa com o louro dos csares. Depois desce, lento,
majestoso de arminho e prpura, e coloca o diadema que consagra Josefina
primeira imperatriz da histria da Frana. Em carruagem de ouro e cristal chegaram
ao trono dessa nao o pequeno estrangeiro, grande guerreiro, brotado das speras
montanhas da Crsega, e sua esposa Josefina, nascida na Martinica, antilhana que,
dizem, quando abraa, carboniza. Napoleone, o tenente de artilharia que odiava os
franceses, se transforma em Napoleo I.
O fundador da dinastia que hoje se inaugura ensaiou mil vezes essa cerimnia de
coroao. Cada personagem do cortejo, cada ator, vestiu-se como ele decidiu,
situou-se onde ele quis, moveu-se como ele mandou.
Ah, Jos, se nosso pai nos visse...
A voraz parentada, prncipes e princesas da nova nobreza da Frana, cumpriu seu
dever. verdade que Letcia, a me, negou-se a vir, a me que est no palcio
resmungando, mas Napoleo ordenar a David, artista oficial, que outorgue a
Letcia lugar proeminente no quadro que retratar esses faustos para a posteridade.
Os convidados no cabem na catedral de Notre-Dame. Entre eles, um jovem
venezuelano estica o pescoo para no perder nenhum detalhe. Aos vinte anos,
Simn Bolvar assiste, alucinado, ao nascimento da monarquia napolenica: No
sou mais que um brilhante do punho da espada de Bonaparte...
Nesses dias, num salo dourado de Paris, Bolvar conheceu Alexander Von
Humboldt. O sbio aventureiro, recm-chegado da Amrica, lhe disse:
Creio que seu pas est maduro para a independncia, mas no vejo o homem
que possa...

La vacuna
Matando ratas y mosquitos ha vencido a la peste bubnica y a la fiebre amarilla.
Ahora Oswaldo Cruz declara la guerra a la viruela. De a miles mueren, por viruela,
los brasileos. Cada vez mueren ms, mientras los mdicos desangran a los
moribundos y los curanderos espantan la peste con humo de bosta de vaca.
Oswaldo Cruz, responsable de la higiene pblica, implanta la vacuna obligatoria.
El senador Rui Barbosa, orador de pecho hinchado y docta labia, pronuncia
discursos que atacan a la vacuna con jurdicas armas floridas de adjetivos. Em
nombre de la libertad, Rui Barbosa defiende el derecho de cada individuo a
contaminarse si quiere. Torrenciales aplausos y ovaciones lo interrumpen de frase
en frase.
Los polticos se oponen a la vacuna. Y los mdicos. Y los periodistas: no hay diario
que no publique colricos editoriales y despiadadas caricaturas que tienen por
vctima a Oswaldo Cruz. l no puede asomarse a la calle sin sufrir insultos y
pedreas.
Contra la vacuna, cierra filas el pas entero. Por todas partes se escuchan mueras
a la vacuna. Contra la vacuna se alzan en armas los alumnos de la Escuela Militar,
que por poco tumban al presidente.

314

Ro de Janeiro, 1910

Retrato del abogado ms caro del Brasil


Hace seis aos, se opuso a la vacuna antivarilica en nombre de la Libertad. La
epidermis del individuo es tan inviolable como su conciencia, deca Rui Barbosa: el
Estado no tiene derecho a violar el pensamiento ni el cuerpo, ni siquiera em nombre
de la higiene pblica. Ahora, condena con toda severidad la violencia y La barbarie
de la rebelin de los marineros. El iluminado jurista y preclaro legislador se opone
al azote pero repudia los mtodos de los azotados. Los marineros, dice, no han
planteado su justa demanda como es debido, civilizadamente, por los mdios
constitucionales, utilizando los canales competentes dentro del marco de las
normas
jurdicas
en
vigencia.
Rui Barbosa cree en la Ley, y fundamenta su fe con eruditas citas de romanos
imperiales y liberales ingleses. En la realidad, en cambio, no cree. El doctor solo
muestra cierto realismo cuando a fin de mes cobra su sueldo de abogado de La
empresa extranjera Light and Power, que en el Brasil manda ms que Dios.

O general Santa Anna tinha sido onze vezes


presidente do Mxico. Comprovava a lealdade de
seus generais vendendo pedaos do pas e
cobrando impostos de cachorros, cavalos e janelas;
mas amide teve que fugir do palcio, disfarado de
pobre. Embora fosse um especialista em perder
guerras, fez levantar muitas esttuas a si mesmo, a
galope em bronze, a espada para cima, e por
decreto converteu seu aniversrio em festa nacional.
Quando voltou do exlio, j tinham morrido todos os
seus amigos e todos os seus inimigos. Afundado
numa poltrona, sempre com um galo nos braos,
Santa Anna esfregava antigas medalhas ou cocava
a perna de pau. Estava cego, mas acreditava ver
carruagens de prncipes e presidentes detendo-se
sua porta. Estava surdo, mas acreditava ouvir
ladainhas de multides acorrendo para lhe
315

suplicar audincia e clemncia ou emprego.


Que esperem! - uivava Santa Anna. - Que se
calem!
De sua casa na Rua Vergara, hipotecada, sempre
vazia, ele tirado agora, para ser levado ao
cemitrio. Um galo anda na frente do atade,
encarando gente e puxando briga.

Ganga Zumba
Misa de accin de gracias en la iglesia matriz: el gobernador de Pernambuco, Aires
de Sousa de Castro, recoge los faldones de su casaca recamada y se hinca ante el
trono del Santsimo. A su lado, cubierto por una amplia capa de seda roja, se hinca
tambin Ganga Zumba, jefe supremo de la federacin de los Palmares.
Vuelo de campanas, alborozo de artillera y tambores: el gobernador otorga a
Ganga Zumba el ttulo de maese de campo, y en prueba de amistad adopta a dos
de sus hijos ms pequeos, que se llamarn Sousa de Castro. Al cabo de las
conversaciones de paz celebradas en Recife entre los delegados del rey de Portugal
y los representantes de Palmares, se celebra el acuerdo: los santuarios de Palmares
sern desalojados. Se declara libres a todos los indivduos all nacidos, y quienes
llevan la marca del hierro candente volvern a manos de sus
propietarios.
Pero yo no me rindodice Zumb, sobrino de Ganga Zumba.
Zumb se queda en Macacos, capital de Palmares, sordo a los sucesivos bandos que
le ofrecen perdn.
De los treinta mil palmarinos, slo cinco mil acompaan a Ganga Zumba. Para los
dems, es un traidor que merece muerte y olvido.
No creo en la palabra de mis enemigos dice Zumb. Mis enemigos no se creen
ni entre ellos.
Macacos, 1694

La ltima expedicin contra Palmares


El cazador de indios, matador de muchas leguas de indios, naci de madre india.
Habla guaran y portugus casi nada. Domingos Jorge Velho es capitn de
mamelucos de San Pablo, mestizos que han sembrado el terror en medio Brasil em
nombre de los seores coloniales y para feroz exorcismo de la mitad de su sangre.
En los ltimos seis aos, el capitn Domingos alquil sus servicios a la corona
portuguesa contra los indios janduim, alzados en el sertn de Pernambuco y en Ro
Grande do Norte. Despus de larga carnicera llega a Recife, victorioso, y all lo
contratan para arrasar Palmares. Le ofrecen un buen botn en tierras y negros para
vender en Ro de Janeiro y Buenos Aires, y adems le prometen infinitas amnistas,
cuatro hbitos de rdenes religiosas y treinta grados militares para repartir entre
sus hombres.

316

Con el catalejo en bandolera sobre el pecho desnudo, abierta la casaca grasienta, el


capitn Domingos desfila a caballo por las calles de Recife, a la cabeza de sus
oficiales mestizos y sus soldados indios degolladores de indios. Cabalga entre nubes
de polvo y olores de plvora y aguardiente, atravesando ovaciones y bandadas de
pauelos blancos: este mesas nos salvar de los negros alzados, cree o quiere la
gente, convencida de que los cimarrones tienen la culpa de la falta de brazos en los
ingenios y tambin tienen la culpa de las pestes y las sequas que estn asolando al
nordeste, porque no enviar Dios la salud ni la lluvia mientras no cese el escndalo
de Palmares.
Y se organiza la gran cruzada. De todas partes acuden voluntarios, empujados por
el hambre, en busca de racin segura. Se vacan las crceles: hasta los presos se
incorporan al mayor ejrcito hasta ahora reunido en el Brasil.
Los exploradores indios marchan adelante y los changadores negros a la
retaguardia. Nueve mil hombres atraviesan la selva, llegan a la sierra y suben hacia
la cumbre donde se alzan las fortificaciones de Macacos. Esta vez llevan caones.
Varios das dura el asedio. Los caones aniquilan la triple muralla de madera y
piedra. Se pelea cuerpo a cuerpo, al borde del abismo. Son tantos los muertos que
no hay donde caer, y contina la degollatina entre las breas. Muchos negros
intentan huir y resbalan al vaco por los despeaderos; y muchos se arrojan
eligiendo el precipicio.
Las llamas devoran la capital de Palmares. Desde la lejana ciudad de Porto Calvo se
ven los resplandores de la gigantesca fogata, que arde durante toda la noche.
Quemar hasta la memoria. Los cuernos de caza no cesan de anunciar el triunfo.
El jefe Zumb, herido, ha conseguido escapar. Desde los altos picos llega a la selva.
Deambula por los tneles verdes, en la espesura, buscando a los suyos.

Honduras del paisaje, hondones del alma. Fuma en pipa Zumb, perdida la mirada
en las altas piedras rojas y en las grutas abiertas como heridas, y no ve que nace el
da con luz enemiga ni ve que huyen los pjaros, asustados, en bandadas.
No ve que llega el traidor. Ve que llega el compaero, Antonio Soares, y se levanta
y lo abraza. Antonio Soares le hunde varias veces el pual en la espalda.
Los soldados clavan la cabeza en la punta de una lanza y la llevan a Recife, para
que se pudra en la plaza y aprendan los esclavos que Zumb no era inmortal.
Ya no respira Palmares. Haba durado un siglo y haba resistido ms de cuarenta
invasiones este amplio espacio de libertad abierto en la Amrica colonial. El viento
se ha llevado las cenizas de los baluartes negros de Macacos y Subupira,
Dambrabanga y Obenga, Tabocas y Arotirene. Para los vencedores, el siglo de
Palmares se reduce al instante de las pualadas que acabaron con Zumb. Caer La
noche y nada quedar bajo las fras estrellas. Pero, qu sabe la vigilia comparado
con
lo
que
sabe
el
sueo?
Suean los vencidos con Zumb; y el sueo sabe que mientras en estas tierras un
hombre sea dueo de otro hombre, su fantasma andar. Cojeando andar, porque
Zumb era rengo por culpa de una bala; andar tiempo arriba y tiempo abajo y
cojeando pelear en estas selvas de palmeras y en todas las tierras del Brasil. Se
llamarn
Zumb
los
jefes
de
las
incesantes
rebeliones
negras.

Cresceu sombra de Jurez. O homem que mata


chorando, dizia Jurez.
317

- Chorando, chorando, me fuzila num descuido.


Porfirio Daz passa um quarto de sculo mandando
no Mxico.
Os bigrafos oficiais registram para a posteridade
seus bocejos e seus provrbios. No tomam nota
quando ele diz:
- O melhor ndio est a quatro metros abaixo da
terra.
- Mata-os quentinhos.
- No me alvorocem a cavalhada.
A cavalhada so os legisladores, que votam pela
aprovao cabeceando de sono, e que chamam
dom Porfirio de o nico, o Indispensvel, o
Insubstituvel. O povo o chama de dom Perfdo e
zomba de seus cortesos:
- Que horas so?
Na raiz da sociedade capitalista est o uso burgus da cultura que separa o
homem de si prprio, dos outros e da vida, que divide os homens em trabalhadores
intelectuais e trabalhadores manuais. Na raiz da sociedade capitalista est a cultura
que divide.
Por isso nenhum socialismo real poder ser construdo sem revoluo cultural. Para
que o socialismo seja real preciso que a cultura seja posta em comum.

Se tivesse a simples sabedoria antiga de que tudo destino e o destino com os deuses que cuidam da
vida humana, e que pensar assim, mesmo em momentos de dor e agonia, conforta e alivia o corao; de
que a fortuna dos homens ascende e cai no como resposta a seus atos e indagaes, e que as mudanas se
sucedem com absurda e gratuita fatalidade, pelo menos a nossos olhos, talvez no h outros; de que o
destino cego e s um cego pode ver na escurido, embora se possa, depois do acontecido, examinando
as causas e conseqncias, dizer que havia razes remotas e mesmo prximas, e que tudo aconteceu por
isso e por aquilo (um erro ou acidente perfeitamente evitvel, por exemplo), no desejo muito humano que
temos de tudo explicar e tudo prever.
, Tirsias, iluminado interiormente pela luz da tua escurido, nos ajude a desvendar e entender, porque
essa a nossa humana nsia indagadora; mesmo sabendo que impossvel ao homem alterar o intrincado
tecido. s vezes, Tirsias, cuidamos, e por isso a ti recorremos, no Hades ou quando ainda vivias, e ainda

318

agora, antecipadamente sabendo que no se pode evitar e mesmo assim desesperadamente querendo, com
a iluso de que as tuas falas, to carregadas de lutos, pressgios e significados, possam nos dizer e nos
orientar em nossas tarefas e atos, como os antigos, no to antigos como tu, mareavam segundo as
estrelas e o simples rumo do agulho. Te pedimos porque s e foste humano e no um ser divino, e
sabemos que ao Senhor dos orculos, no a ti a quem s dado ver, somente esta velhssima prece
podemos balbuciar: Nos livre, Senhor, das dores e cicatrizes, e se impossvel, nos d fora e coragem para
suportar.
[...]
Nenhum deles sabia, Tirsias, que o destino do futuro campo dos deuses, onde nada se pode fazer; e o
destino do passado o reino dos mortos, onde intil, impossvel habitar.
Se tivesse a simples sabedoria antiga de que tudo destino e o destino com os deuses que cuidam da
vida humana, e que pensar assim, mesmo em momentos de dor e agonia, conforta e alivia o corao; de
que a fortuna dos homens ascende e cai no como resposta a seus atos e indagaes, e que as mudanas se
sucedem com absurda e gratuita fatalidade, pelo menos a nossos olhos, talvez no h outros; de que o
destino cego e s um cego pode ver na escurido, embora se possa, depois do acontecido, examinando
as causas e conseqncias, dizer que havia razes remotas e mesmo prximas, e que tudo aconteceu por
isso e por aquilo (um erro ou acidente perfeitamente evitvel, por exemplo), no desejo muito humano que
temos de tudo explicar e tudo prever. , Tirsias, iluminado interiormente pela luz da tua escurido, nos
ajude a desvendar e entender, porque essa a nossa humana nsia indagadora; mesmo sabendo que
impossvel ao homem alterar o intrincado tecido. s vezes, Tirsias, cuidamos, e por isso a ti recorremos,
no Hades ou quando ainda vivias, e ainda agora, antecipadamente sabendo que no se pode evitar e
mesmo assim desesperadamente querendo, com a iluso de que as tuas falas, to carregadas de lutos,
pressgios e significados, possam nos dizer e nos orientar em nossas tarefas e atos, como os antigos, no
to antigos como tu, mareavam segundo as estrelas e o simples rumo do agulho. Te pedimos porque s e
foste humano e no um ser divino, e sabemos que ao Senhor dos orculos, no a ti a quem s dado ver,
somente esta velhssima prece podemos balbuciar: Nos livre, Senhor, das dores e cicatrizes, e se
impossvel, nos d fora e coragem para suportar. [...] Nenhum deles sabia, Tirsias, que o destino do
futuro campo dos deuses, onde nada se pode fazer; e o destino do passado o reino dos mortos, onde
intil, impossvel habitar.

Buenos Aires, 1935

Borges
Le horroriza todo lo que rene a la gente, como el ftbol o la poltica, y todo lo que
la multiplica, como el espejo o el acto del amor. No reconoce otra realidad que La
que existe en el pasado, en el pasado de sus antepasados, y en los libros escritos
por quienes supieron nombrarla. El resto es humo.
Con alta finura y filoso ingenio, Jorge Luis Borges cuenta la Historia universal de la
infamia. De la infamia nacional, la que lo rodea, ni se entera.

Campo Jordn, 1933

Chove?... Nenhuma chuva cai...


Ento onde que eu sinto um dia
Em que o rudo da chuva atrai
319

A minha intil agonia?


Onde que chove, que eu o ouo?
Onde que triste, claro cu?
Eu quero sorrir-te, e no posso,
cu azul, chamar-te meu...
E o escuro rudo da chuva
constante em meu pensamento.
Meu ser a invisvel curva
Traada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus ps como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove.
H sempre escuro dentro em mim.
Se escuto, algum dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim ...
Quando que eu serei da tua cor,
Do teu plcido e azul encanto,
claro dia exterior,
cu mais til que o meu pranto?

El Paso, 1915
AZUELA
No Texas, no desterro, um mdico do exrcito de Pancho Villa conta a
revoluo mexicana como uma fria intil. Segundo o romance Os de
baixo, de Mariano Azuela, esta uma histria de cegos bbados, que
atiram sem saber por que nem contra quem e do porradas animalescas
buscando coisas para roubar ou fmeas para fornicar, num pas que fede a
plvora e a fritura de botequim.

1.
Da primavera, o amanhecer

Da primavera, o amanhecer. quando palmo a palmo vo se definindo as


esmaecidas linhas das montanhas e no cu arroxeado tremulam delicadas
nuvens.
Do vero, a noite. Em especial, os tempos de luar, mas tambm as trevas,
320

de vaga-lumes entrecruzando-se em profuso. Ou ento, os solitrios ou


mesmo em pares que seguem com brilhos fugazes. A chuva tambm
igualmente bela.
Do outono, o entardecer. So os momentos do arrebol da tarde em que o sol
j se acha prestes a tocar as colinas, quando se tornam comoventes os
corvos que se apressam para os ninhos em grupos de trs ou quatro, ou
dois e trs, e o que diramos ento, ao avistarmos os minsculos gansos
selvagens seguindo em fila, que encantadores! O sol j posto, melanclico
soa o ciciar do vento e o canto dos insetos.
Do inverno, o despertar. Indescritvel com a neve caindo e nele incluo a
ofuscante brancura da geada. Mesmo na ausncia destas, em manh de um
frio cortante, o apressar das pessoas em acender o fogo e o corre-corre
entre os aposentos com os carves acesos so cenas tpicas desta estao.
O sol j nas alturas e o frio mais ameno, no nos cativa mais a brasa j
quase tornada cinzas no braseiro porttil.
Do Livro do Travesseiro de Sei Shnagon, aia da imperatriz Teishi, redigido
entre os anos de 994 e 1001.
A histria do Japo tem sido pica, mas diferentemente
No dia seguinte s Recitaes dos Nomes de Buda
No dia seguinte s Recitaes dos Nomes de Buda, trouxeram um venervel
biombo de pintura de infernos para que Sua Consorte Imperial se dignasse
apreciao. Parecia infindvel o mal-estar que eu sentia. Embora Sua
Consorte Imperial me instigasse: Vede isto! Vede!, no me dignei a voltar
meu olhar, e, devido ao mal-estar, acabei me escondendo num aposento
pequeno do Palcio Imperial.
Com a forte chuva, chegou o tdio e, ento, por ordem do Imperador, todos
foram convocados aos aposentos da Consorte Imperial e o corteso se
puseram a entreter na arte dos sons.
O lamasmo uma curiosa extenso teocrtica, hierrquica, poltica,
econmica e social o budismo Mahayana. O Buda havia predicado sua lei ao
norte da ndia, s margens do Ganges; o lamasmo alcanou seu apogeu no
Tibet no sculo XIV de nossa era. Sua afinidade com a Igreja catlica foi
assinalada por Rhys Davids e por quase todos os expositores do tema.
Os comunistas chegaram ao poder na China em 1949 e no tardaram em
ocupar o Tibet; apesar do tratado pelo qual se comprometiam a respeitar a
tradio religiosa, foram abolindo todas as instituies da velha cultura. O
Dalai-Lama fugiu para a ndia e o seguiram muitos fiis, que hoje
constituem em Darjeeling a nica populao que conserva a antiga f.
No Hinayana no h sacerdotes, h monges; o lamasmo, por sua vez, nos
mostra uma vistosa hierarquia, cujas duas cabeas - o Dalai Lama ou
Glorioso Rei e o Pantchen-Lama ou Glorioso Mestre - exerceram, como os
321

papas medievais, o poder temporal e espiritual. Naes brbaras como a


dos tibetanos e dos mongis eram incapazes de conformar-se com as
Quatro Nobres Verdades e com a rgida austeridade do Caminho ctuplo; foi
preciso atra-las com as pompas da liturgia, os complexos ritos, a
manipulao de rosrios, a incorporao de divindades locais e de antigas
prticas mgicas que era difcil ou impossvel obliterar. Bernard Shaw
escreveu que a converso de um negro do Congo f de Cristo a
converso da f de Cristo a um negro do Congo; igualmente, os tibetanos
retiveram sua crena nos espritos da natureza e dos mortos. Alm disso,
esse sincretismo foi facilitado pela ndole mgica e politesta do Budismo
Mahayana.
[Sobe as especulaes filosficas e msticas de um planeta imaginrio]
Uma

das escolas de Tln chega a negar o tempo: argumenta que o


presente indefinido, que o futuro no tem realidade seno como esperana
presente, que o passado no tem realidade seno como lembrana presente.2
Outra escola declara que transcorreu j todo o tempo e que nossa vida
apenas a lembrana ou reflexo crepuscular, e sem dvida falseado e
mutilado, de um processo irrecupervel. Outra, que a histria do universo
e nela nossas vidas e o mais tnue detalhe de nossas vidas a escrita que
produz um deus subalterno para entender-se com um demnio. Outra, que o
universo comparvel a essas criptografias nas quais no valem todos os
smbolos e que s verdade o que acontece a cada trezentas noites. Outra,
que enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado e que assim
cada homem dois homens.
[Sobre o caos dos acasos e quem o controla a loteria de Babilnia]
A Companhia, com modstia divina, elude toda publicidade. Seus agentes,
como bvio, so secretos; as ordens que d continuamente (qui
incessantemente) no diferem das que prodigalizam os impostores.
Ademais, quem poder gabar-se de ser um simples impostor? O bbado que
improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de repente e
estrangula a mulher a seu lado, no executam, porventura, uma secreta
deciso da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparvel ao de
Deus, provoca toda espcie de conjecturas. Uma insinua abominavelmente
que faz j sculos que no existe a Companhia e que a sacra desordem de
nossas vidas puramente hereditria, tradicional; outra a julga eterna e
ensina que perdurar at a ltima noite, quando o ltimo deus aniquile o
mundo. Outra afiana que a Companhia onipotente, mas que influi
somente em coisas minsculas: no grito de um pssaro, nos matizes da
ferrugem e do p, nos entressonhos da alva. Outra, por boca de heresiarcas
mascarados, que nunca existiu nem existir. Outra, no menos vil,
argumenta que indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa
322

corporao, porque Babilnia no outra coisa seno um infinito jogo de


acasos.
No posso pretender que o que tenho feito em relao aos problemas
polticos e sociais tenha grande importncia. relativamente fcil exercer
um efeito imenso graas a um evangelho dogmtico e preciso, como o do
comunismo. Mas, de minha parte, no posso crer que o que a humanidade
necessita seja algo de preciso ou dogmtico. Nem posso crer firmemente
em qualquer doutrina parcial que se ocupa apenas de alguma parte ou de
algum aspecto da vida humana. H os que mantm que tudo depende das
instituies, e que as boas instituies daro lugar, inevitavelmente, ao
Advento do Milnio. E, por outro lado, esto os que crem que o que
necessrio uma mudana nos coraes e que, comparado com isso, as
instituies so de pouca importncia. No posso aceitar nenhuma dessas
concepes. As instituies modelam o carter e o carter transforma as
instituies. A reforma de ambas as coisas devem ser realizadas em
unssono. E, se se deseja que os indivduos conservem o grau de iniciativa e
flexibilidade que devem ter, no se lhes deve forar para que todos se
metam num molde rgido; ou, para usar outra metfora, no se lhes deve
alistar no mesmo exrcito. A diversidade um fator essencial, embora
impea a aceitao universal de um evangelho nico. Entretanto, pregar
semelhante doutrina difcil, especialmente em tempos penosos. E
possvel que no seja eficaz at que alguma experincia trgica nos ensine
sua amarga lio.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrs e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
323

Caminhais libertos.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por nvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.
Do vale montanha,
Da montanha ao monte
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto sem fim,
Sem ningum que o conte,
Caminhais em mim.

Durante quatro meses e meio, em 1918, estive preso por fazer propaganda
pacifista. [...] Meus companheiros de priso me pareceram bastante
interessantes, e de maneira alguma moralmente inferiores ao resto das
pessoas, ainda que estivessem, em conjunto, ligeiramente abaixo do nvel
de inteligncia, como demonstrava o fato de haverem sido presos.
En qu rumbo
Se ha perdido mi paloma.
Cmo pudo
Deslizarse de mi mano
Si la sangre de mi pulso
Al partir no lo ha notado.
Ay, cario...
Yo tengo un pecado nuevo
Que quiero estrenar contigo,
Beber el llanto de tus ojos
Si han sufrido.
En qu grieta de otros labios
Bebers agita mansa,
En qu labios
Son los mos olvidados.
Ay, cario...
Yo tengo un pecado nuevo
Que quiero estrenar contigo,
Beber el llanto de tus ojos
Beber el llanto de tus ojos
Y estar contigo.

324

UM PROBLEMA
Imaginemos que em Toledo encontrado um papel com um texto arbico e
que palegrafos o declaram um de punho e letra daquele Cide Hamete
Benengeli de quem Cervantes derivou o Dom Quixote. No texto lemos que o
heri (que, como se sabe, percorria os caminhos da Espanha, armado de
espada e lana, e desafiava qualquer um por qualquer motivo) descobre, no
final de um de seus muitos combates, que deu morte a um homem. Neste
ponto cessa o
fragmento; o problema adivinhar, ou conjecturar, como reage Dom
Quixote.

325

Que eu saiba, h trs respostas possveis. A primeira de ndole negativa;


nada especial acontece, porque no mundo alucinatrio de Dom Quixote a
morte no menos comum que a magia e ter matado um homem no tem
por que abalar quem se bate, ou acredita bater-se, com endragos e
encantadores. A segunda pattica. Dom Quixote jamais conseguiu
esquecer que era uma projeo de Alonso Quijano, leitor de histrias
fabulosas; ver a morte, compreender que um sonho o levou culpa de
Caim, desperta-o de sua consentida loucura talvez para sempre. A terceira
talvez seja a mais verossmil. Morto aquele homem, Dom Quixote no pode
admitir que o ato tremendo obra de um delrio; a realidade do efeito o faz
pressupor uma igual realidade da causa e Dom Quixote no sair nunca de
sua loucura.
Resta outra conjectura, que alheia ao orbe espanhol e mesmo ao orbe do
Ocidente e requer um mbito mais antigo, mais complexo e mais fatigado.
Dom Quixote que j no Dom Quixote, mas um rei dos ciclos do Industo
intui diante do cadver do inimigo que matar e gerar so atos divinos ou
mgicos que notoriamente transcendem a condio humana. Sabe que o
morto ilusrio, como tambm so a espada sangrenta que lhe pesa na
mo e elemesmo e toda sua vida pretrita e os vastos deuses e o universo.
ESPERANAS CUMPRIDAS E DESILUSES
No transcurso dos oitenta e dois anos de minha vida, o muno se
transformou tanto quanto em qualquer perodo equivalente da histria
humana, se no mais. Quando eu era jovem o mundo tinha uma estrutura
aparentemente estvel, e se confiava em que tal estrutura no
experimentaria alteraes fundamentais, mas, somente, o tipo de evoluo
gradual que havia tido lugar na Inglaterra. Existiam as grandes potncias,
que eram europias (a maioria das pessoas se esquecia dos Estados Unidos,
que nessa altura ainda estava se recuperando da Guerra Civil). Todas as
grandes potncias, aexceto a Franas, eram monarquias, ea Frana havia
deixado de ser-lo apenas dois anos antes do meu nascimento. Quando pela
primeira vez tive conscincia poltica, Disraeli era primeiro-ministro e o pas
estava entregue a uma lua-de-mel imperialista. Foi a poca em que a rainha
Vitria se converteu em Imperatriz da ndia e o primeiro-ministro se jactava
de haver assegurado a paz com honra. A paz consistia em no chegar
guerra com a Rssia; a honra consistia na ilha de Chipre, que agora nos
causa incmodos de primeira categoria. Foi naqueles dias que se criou a
palvra jingo [partidrio de uma poltica internacional forte]. O poderioa de
longo alcance da Inglaterra se evidenciava na Guerra Afeg, na Guerra Zulu
e na Primeira Guerra Ber. Me ensinaram a desaprovar tudo aquilo e fui
educado no credo do Pequeno Ingls. Mas este credo nunca foi
completamente sincero. O menor dos Pequenos Ingleses se alegrava com as
proezas da Inglaterra. O poder e domnio da aristocracia e dos latifundirios
era incomparvel. Quando meu tio se casou com a filha de uma magnata da
grande indstria, minha av estava to orgulhosa de ser liberal que no se
ops a esse matrimnio com o que ela chamava o comrcio. Alm da Gr326

Bretanha, dominavam o mundfo os imprios orientais da Alemanha, da


ustria e da Rssia. Ningum os acreditava transitrios, no obstante o
Imprio Alemo ter surgido apenas um ano antes de meu nascimento, e que
o Imprio Russo chegaria a adotar, mais cedo ou mais tarde (assim
pensavam os liberais ocidentais), uma constituio parlamentar.

SONHO DE VLADIMIR MAIAKVSKI, POETA E REVOLUCIONRIO


Em 3 de abril de 1930, no ltimo ms de sua vida, Vladimir Maiakvski,
poeta e revolucionrio, teve o mesmo sonho que h um ano vinha tendo
todas as noites.
Sonhou que estava no metr de Moscou, num trem que corria em
velocidade alucinante. Ele era fascinado pela velocidade porque amava o
futuro e as mquinas, mas agora sentia uma nsia enorme de descer e
remexia insistentemente no objeto que tinha guardado no bolso. Para
acalmar a prpria ansiedade, pensou em sentar-se e escolheu um banco
vizinho a uma velhinha vestida de preto, que carregava uma sacola de
compras. Quando Maiakvski sentou-se ao seu lado, a velhinha assustou-se
e teve um sobressalto.
Serei assim to feio? Pensou Maiakvski, e sorriu para a velhinha, dizendo:
no tenha medo, sou apenas uma nuvem e s o que peo para descer
deste trem.
Finalmente o trem parou numa estao qualquer e Maiakvski desceu com
displicncia. Entrou no primeiro banheiro que encontrou e tirou o objeto do
bolso. Era um pedao de sabo amarelo*, como o que usam as lavadeiras.
Abriu a torneira e comeou a esfregar cuidadosamente as mos, mas a
sujeira que sentia nas palmas no saia. Ento, enfiou novamente o sabo no
bolso e saiu para a galeria. A estao estava deserta. No fundo, debaixo de
um grande cartaz, havia trs homens que, quando o viram, vieram ao seu
encontro. Estavam com impermeveis pretos e chapus de feltro.
Polcia poltica, disseram os trs homens em unssono, revista de segurana.
Maiakvski levantou os braos e deixou-se revistar.
E isto o que ? Perguntou um dos homens com ar de desdm, brandindo o
pedao de sabo.
No sei, disse Maiakvski com ferocidade, no sei nada dessas coisas, sou
apenas uma nuvem.
Isto sabo, sussurrou, prfido, o homem que o interrogava, e voc com
327

certeza lava as mos frequentemente, o sabo ainda est unido.


Maiakvski nada respondeu e enxugou a testa banhada de suor.
Venha conosco, disse o homem, e o agarrou pelo brao, enquanto os dois
outros o seguiam.
Subiram uma escadaria e saram numa grande estao ao ar livre. Debaixo
da estao havia um tribunal, com juzes com roupas de militares e um
pblico de crianas com roupas de orfanato.
Os trs homens o conduziram at o banco dos acusados e entregaram o
sabo a um dos juzes. O juiz pegou o megafone e disse: Nossos servios de
segurana surpreenderam um ru em flagrante delito, carregando no bolso
o objeto de sua atividade suspeita.
O pblico dos rfos expressou em coro a sua desaprovao.
O ru est condenado locomotiva, disse o juiz, batendo na banca om o
martelo de madeira.
Dois guardas avanaram, despiram Maiakvski e o vestiram com um
enorme bluso amarelo. Depois, conduziram-no a uma locomotiva que
bufava, guiada por um foguista seminu, de ar ferino. Na locomotiva estava
um verdugo, com um capuz de verdugo e um chicote na mo.
Veremos agora o que sabe fazer, disse o verdugo, e a locomotiva partiu.
Maiakvski olhou para fora e viu que estavam atravessando a grande
Rssia. Imensos campos e plancies, onde jaziam por terra homens e
mulheres macilentos, com grilhes nos pulsos.
Essa gente espera os seus versos, disse o verdugo, recite. E o chicoteou.
E Maiakvski os seus piores versos. Eram versos tonitruantes de celebrao
e de retrica. E, enquanto recitava, as pessoas alavam os punhos e o
maldiziam, e maldiziam sua me.
Em seguida, Vladimir Maiakvski acordou e foi ao banheiro lavar as mos.

*Em seus ltimos anos, Maiakvski foi acometido por uma grave forma de
neurose obsessiva. Lavava continuamente as mos, e saa de casa com um
sabonete no bolso. A verso oficial e controversa sustenta que tenha se
suicidado com um tiro de pistola, em 1930.
[Sobre a relao entre os movimentos de massa e os sentimentos
328

individuais, ilustrados pela experincia do autor com o regime sovitico na


poca de Lnin]
Durante os primeiros dias da guerra [1 Guerra Mundial], fiquei
impressionado pela conexo entre a poltica e a psicologia individual. O que
as massas resolvem fazer resultado das paixes que sentem em comum, e
essas paixes no so, como me vi obrigado repentinamente a comprovar,
as que haviam sido assinalados pelos tericos polticos. Naquela poca eu
no sabia nada da psicanlise, mas a observao das multides dispostas
guerra me inspirou pensamentos que eram bastante afins aos dos
psicanalistas, como descobri mais tarde. Me pareceu que no se poderia
estabelecer nenhuma reforma, se no se modificavam os sentimentos dos
indivduos. Os sentimentos dos indivduos adultos so produzidos por muitas
causas: experincias da infncia; educao; luta econmica e xito ou
frustrao em suas relaes pessoais. Os homens, via de regra, tero
sentimentos amveis ou hostis em relao com seus semelhantes na
medida em que tenham a impresso de que suas vidas so ditosas ou
desgraadas. Existem santos que podem suportar a desgraa sem
converterem-se em amargurados e h homens cruis a que nenhum xito
abranda. Mas a poltica descansa principalmente sobre a massa mdia da
humanidade, e esta massa ser cruel ou bondosa de acordo com as
circunstncias. Desde aqueles primeiros dias de agosto de 1914, sempre
estive firmemente convicto de que as nicas melhorias consistentes que se
podem fazer nos assuntos humanos so as que aumentam os sentimentos
benvolos e diminuem a ferocidade.
Quando visitei a Rssia em 1920, me encontrei ali com uma filosofia muito
diferente da minha, uma filosofia que se baseava no dio, na fora e no
poder desptico. Minhas concepes sobre a guerra me isolaram da opinio
corrente; meu profundo horror pelo que se fazia na Rssia me isolou da
opinio esquerdista. Permaneci solitrio em poltica at que, pouco a pouco,
a opinio esquerdista do Ocidente se foi dando conta de que o que os
comunistas russos estavam criando no era um paraso.
Na filosofia marxista tal e como era interpretada em Moscou, eu encontrava
dois erros enormes. O erro na teoria consistia em crer que a nica forma de
poder indesejvel sobre os seres humanos o econmico, e que este
consubstancial com a propriedade. Nesta teoria no se tem em conta outras
formas de poder militar, poltico e propagandstico e se esquece que o
poder de uma grande organizao econmica est concentrado em um
pequeno conselho administrativo, e no repartido entre os proprietrios
nominais ou acionistas. Se sups, portanto, que a explorao e a opresso
deveriam desaparecer se o Estado se convertesse no nico capitalista, e
no se teve em conta que isto outorgaria aos funcionrios do Estado toda a
capacidade de opresso, e mais ainda, que anteriormente possuam os
capitalistas individuais. O outro erro, que se refere aos sentimentos,
consistia em supor que pode sair algo bom de um movimento cuja fora
propulsora o dio. Os que haviam sido inspirados, principalmente, pelo
dio aos capitalistas e aos latifundirios, adquiriram o costume de odiar, e,
uma vez alcanada a vitria, se viram obrigados a buscar novos objetos de
dio. Da provieram, por um mecanismo psicolgico natural, as depuraes,
as chacinas de kulaks e os campos de trabalhos forados. Estou persuadido
de que Lnin e seus primeiros colaboradores agiram com o desejo de
beneficiar a humanidade, mas como conseqncia de erros em psicologia e
teoria poltica, criaram um inferno em vez de um paraso. Isto constituiu
uma lio objetiva de grande importncia para mim, que me disse que, se
329

se queria obter algum resultado positivo na organizao das relaes


humana, era necessrio pensar corretamente e agir corretamente tambm.
[...]
Nunca fui capaz de crer sinceramente em nenhum remdio universal que
pudesse curar todas as enfermidades. Pelo contrrio, cheguei a pensar que
uma das principais causas do transtorno do mundo reside na crena
dogmtica e fantica em alguma doutrina sem fundamento adequado. O
nacionalismo, o fascismo, o comunismo e, atualmente, o anticomunismo,
sem exceo, deram oportunidade a fanticos zelosos dispostos a cometer
horrores indizveis em defesa de algum credo mesquinho. Todos esses
fanatismos tm, em maior ou menor grau, o defeito que encontrei nos
marxistas de Moscou: que sua fora dinmica se deve principalmente ao
dio.
*Russell no considerava as aberraes cruis do regime sovitico como
simples desvio do marxismo puro e original. Para ele a base emotiva do
marxismo tal como o prprio filsofo o concebeu o dio, e seus erros
tericos em filosofia e economia foram relevados por Marx para que esse
elemento essencial, to poderoso em mover multides, fosse preservado.
Ocorre-me uma reflexo imoral, que ao mesmo tempo uma correo de estilo.
Cuido haver dito, no captulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier. No
morria, vivia. Viver no a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os
joalheiros deste mundo, gente muito vista na gramtica. Bons joalheiros, que seria
do amor se no fossem os vossos dixes e fiados? Um tero ou um quinto do
universal comrcio dos coraes. Esta a reflexo imoral que eu pretendia fazer, a
qual ainda mais obscura do que imoral, porque no se entende bem o que eu
quero dizer. O que eu quero dizer que a mais bela testa do mundo no fica menos
bela, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada.
Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me...
...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de ris; nada menos.
Eu tinha visto Terra e Liberdade at a metade, porque voc havia me recomendado
esse filme, ou dito que ele esclarecia alguma coisa sobre a Guerra Civil na
Catalunha.
Un hombre que me impresion, no tanto por su capacidad como por su resuelta
absorcin en la filosofa, incluso en las circunstancias ms difciles, fue el nico
filsofo yugoslavo de nuestro tiempo, que se llamaba Branislav Petronievic. Nos
vimos slo una vez, en el ao 1917. La nica lengua que conocamos en comn era
el alemn, de modo que tuvimos que utilizarla, a pesar de que, por ello, la gente
nos miraba suspicazmente en la calle. Los servicios haban llevado a cabo
recientemente su heroica retirada en masa ante los invasores alemanes y yo estaba
ansioso por obtener un relato de un testigo presencial gracias a mi amigo; pero l
slo quera exponerme su teora de que el nmero de los puntos en el espacio ES
finito y que puede ser estimado por consideraciones derivadas de la teora de los
nmeros. La consecuencia de esa diferencia de intereses fue una conversacin
bastante curiosa. Yo deca: Estuvo usted en la gran retirada?, y l contestaba:
S, pero yo creo que la manera de calcular el nmero de puntos en el espacio
es... Yo preguntaba: La hizo usted a pie?; y l contestaba: S. Vea usted: el
nmero tiene que ser primo. Yo: No intento usted conseguir un caballo?; l:
Empec a caballo, pero me ca. Y no sera difcil saber qu numero primo. A
pesar de todos mis esfuerzos, no pude conseguir nada ms de l sobre algo tan
trivial como la Gran Guerra. Admiraba su capacidad para alejarse intelectualmente
de los accidentes de su existencia corprea, en lo cual me parece que poos
antiguos estoicos podan haber rivalizado con l. Despus de la Primera Guerra

330

Mundial, el gobierno yugoslavo Le encomend la realizacin de una edicin


magnfica del filsofo yugoslavo del siglo XVIII, Boscovic, pero no s lo que fue de
l despus.
Um homem que me impressionou no tanto por sua capacidade quanto por sua resoluta absoro na
filosofia, inclusive nas circunstncias mais difceis, foi o nico filsofo iugoslavo de nosso tempo, que se
chamava Branislav Petronijevi. Nos vimos apenas uma vez, em 1917. A nica lngua que conhecamos
em comum era o alemo, de modo que tivemos que us-la, apesar de que, por isso, as pessoas nos
olhassem suspicazmente na rua. Os srvios haviam levado a cabo recentemente sua herica retirada em
massa frente aos invasores alemes e eu estava ansioso por obter o relato de uma testemunha ocular
graas ao meu amigo, mas ele s queria expor-me sua teoria de que o nmero de pontos no espao
finito, e pode ser estimado por consideraes derivadas da teoria dos nmeros. O resultado dessa
diferena de interesses foi uma conversa bastante curiosa. Eu dizia: Voc esteve na grande retirada?, e
ele respondia: Sim, mas eu creio que a maneira de calcular o nmero de pontos no espao .... Eu
perguntava: Voc fez a marcha a p? e ele respondia: Sim. Veja voc: o nmero tem que ser primo.
Eu: Voc no tentou conseguir um cavalo?; ele: Comecei a cavalo, mas ca. E no seria difcil saber
que nmero primo. Apesar de todos os meus esforos, no pude conseguir dele nada mais que isso sobre
algo to trivial quanto a 1 Guerra. Admirava sua capacidade de afastar-se intelectualmente dos acidentes
de sua existncia corprea, algo em que me parece que poucos dos antigos esticos poderiam rivalizar
com ele. Depois da 1 Guerra Mundial, o governo iugoslavo lhe encomendou a realizao de uma
magnfica edio do filsofo do sculo XVIII, Bocovic, mas no soube o que aconteceu com ele depois
disso.

Tem em mente que isso so as fontes de todos os seres: Eu; eu que sou o provir e
a dissoluo do universo. Nada est acima de mim, Dhanamjaya, tudo est urdido
em mim, como os fios de um tecido. Eu sou o gosto nas guas, Kaunteya, eu sou o
brilho na Lua e no Sol; a Palavra das Supremas Escrituras, que todo o som no
espao e a virilidade nos homens, como tambm o perfume auspicioso na terra,
o esplendor na luz, a vida em todos os seres e o caminho para os ascetas. Saibame, Partha, como a semente eterna de tudo, a verdade para quem pode v-la, o
diamante entre todos os fulgores. E nos fortes eu sou a fora desprovida de matria
ou paixo, embora quando o caminho, a lei permite, eu seja tambm a matria e a
paixo. As coisas que derivam da Luz, da Violncia e das Trevas, saiba que
procedem de mim, que no estou nelas: elas que existem em mim, porque eu
sou a Realidade. Em todo este Universo, confundindo por essas foras, os seres no
me reconhecem, porque eu estou muito acima de tudo isto, eu sou o Imutvel. A
Iluso que me oculta instransponvel por quem no me procura, Eu, o supremo e
o ltimo, o oculto imanifesto. No me vem os malignos, os insensatos, os abjetos,
os que se perdem na Iluso e a quem a Iluso transforma em fantasmas, em
espectros. As pessoas benvolas que a mim se devotam, Arjuna, so os que
superam a Iluso pela dor, o que a superam pelo conhecimento, e os que a
subjugam pelo desejo de poder. Todos estes so honorveis em seus caminhos,
mas o que procura o conhecimento pela unidade do esprito com o Absoluto
depois de muitos renascimentos, este o que acima de todos excelente, o que
me alcana.

No dia seguinte s Recitaes dos Nomes de Buda

331

No dia seguinte s Recitaes dos Nomes de Buda, trouxeram um venervel biombo


de pinturas de infernos para que a Imperatriz se dignasse apreciao. Parecia
infindvel o mal-estar que eu sentia. Embora Sua Majestade me instigasse: Vede
isto! Vede!, no me dignei a voltar meu olhar, e, devido ao mal-estar, acabei me
escondendo num aposento pequeno do Palcio Imperial.
Com a forte chuva, chegou o tdio e, ento, por ordem do Imperador, todos foram
convocados aos aposentos da Imperatriz e os cortesos se puseram a entreter na
arte dos sons. O alade do Baixo-Conselheiro Michitaka era realmente elogivel. A
ctara de treze cordas de Minamotono Narimasa, a flauta de Tairano Yukyoshi, a
flauta sh do Mdio-Capito Minamotono Tsunefusa, todos nos proporcionaram
intenso prazer. Entretiveram-se por um tempo, mas, parando de dedilhar o alade,
proferiu Sua Excelncia o Alto-Conselheiro Fujiwarano Korechika uma citao do
poeta Hakurakuten:
Cessaram os sons do alade
Mas cala seu nome o msico
Tais palavras fizeram-me sair de meu esconderijo. Todos riram de mim quando se
ouviu o comentrio: Realmente as pinturas de infernos so amedrontadoras.
Entretanto, como resistir ao fascnio de deleites como este?.

93. Coisas que perturbam


Coisas que perturbam. A sensao de quebrar um pente ornamentado batendo-o
em algo ao lustr-lo. Uma carruagem de boi tombada. Uma coisa assim to grande
faz qualquer pessoa supor que ela pesada e estvel, e perturba e desaponta ao
fazer sentir ser tudo apenas um sonho.
Ficar falando, sem o mnimo pejo, para a prpria pessoa, sobre seus pontos
desagradveis e vexatrios. perturbador demais esperar pelo amado a noite toda
acordada, achando que ele certamente viria, mas, de madrugada,
momentaneamente dele esquecida, adormecer; e, com o crocitar muito prximo do
corvo, abrir os olhos e ver que j dia.
Mostrar uma carta destinada a outrem a certa pessoa que no poderia l-la. No
me proporcionar chance para dar um ultimato e acusar algum, que no tem
possibilidade de defender-se, de algo do qual ele sequer se lembra. Muito
perturbadora a sensao quando derrubamos algo.

As datas ausentes
Lentamente o veneno o sangue invade.
Porm fracasso e esforo no fatigam.
A agrura fica, a agrura fica e mata.
A vida, sem sistema ou viso clara,
s finais conseqncias tem de ir;
Lentamente o veneno o sangue invade.
Sangraram velho co, porm de fato
332

Fluem do jovem co de sangue os rios;


A agrura fica, a agrura fica e mata.
Montes de escria e tumbas orientais
Usurpam a sujeira sem bani-la.
Lentamente o veneno o sangue invade.
No ter fogo ser uma pele amarga.
Fogo total morte. Dos resduos
A agrura fica, a agrura fica e mata.
Eis os versos perdidos, eis os males
De ausentes datas em que a alma expira.
Lentamente o veneno o sangue invade.
A agrura fica, a agrura fica e mata.
Ao crepsculo
Aflies e alegrias
atravessmos, mos unidas;
da caminhada ora repousamos
na quietude da paisagem.
Derredor vergam-se os vales,
escurece j o cu;
s duas cotovias se internam,
sonhadoras, no ar rescendente.
Acerca-te e deixa-as esvoaar,
no tarda ser hora de deitar;
do rumo no nos desviemos
no meio de tal solido.
paz ampla e imvel!
To intensa ao crepsculo,
como nos fatigou o caminho
ser isto, acaso, a morte?

GUILHERME DE ALMEIDA
Vamos, portanto, como dois estranhos,
deixando para trs o nosso ninho!
Desmancha ao vento, os caracis castanhos
do teu cabelo, e vai devagarinho!
Devagarinho como vou... So ganhos
os momentos perdidos no caminho.
Foi to curta a iluso, foram tamanhos
os desenganos que provei sozinho!
E to pequeno o mundo em que vivemos,
que impossvel que no nos encontremos,
que no nos encontremos nunca mais!
H uma vaga esperana refletida
nos adeuses que trocam, pela vida,
333

os que vo como eu vou, como tu vais!


Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos
alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade a mesma em todas as datas. Feita a
compensao dos desejos que variam, das aspiraes que se transformam,
alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantstica
de esperanas, a atualidade uma. Sob a colorao cambiante das horas,
um pouco de ouro mais pela manh, um pouco mais de prpura ao
crepsculo a paisagem a mesma de cada lado beirando a estrada da
vida

Ser olhada, ela logo aprenderia, no era a nica indignidade trazida pela
fama. Quando A
ma no escuro ganhou o Prmio Carmen Dolores Barbosa de melhor livro
publicado no ano
anterior, Clarice viajou a So Paulo para receb-lo. Compareceu cerimnia
em 19 de
setembro de 1962, com sua amiga Maria Bonomi, a jovem artista que
vestira as roupas de
Clarice na Casa Branca. A cerimnia foi presidida por ningum menos que
Jnio Quadros.
Jnio, o presidente que proibiu o biquni, no era o tipo da figura que
combinasse muito
com Copacabana. Depois de proferir um interminvel discurso na
encantadora casa da sra.
Barbosa, Sua Excelncia convidou Clarice a um quarto privado, onde se ps
a apalp-la com
tanto ardor que, na luta para afast-lo, ela rasgou o vestido. Ofegante,
Clarice saiu correndo
do quarto e disse a Maria Bonomi que precisavam ir embora imediatamente,
jogando o xale da

amiga nos ombros, para cobrir o vestido rasgado.


DATA - Tempo de solido e de incerteza /Tempo de medo e tempo de traio /Tempo de injustia e de
vileza /Tempo de negao //Tempo de covardia e tempo de ira /Tempo de mascarada e de mentira /Tempo
que mata quem o denuncia /Tempo de escravido //Tempo dos coniventes sem cadastro /Tempo de
silncio e de mordaa /Tempo onde o sangue no tem rastrro /Tempo de ameaa
Sempre - Peregrina paloma imaginria/ que incendeias os ltimos amores;/ alma de
luz, de msica e de flores,/ peregrina paloma imaginria.// Adeja sobre a rocha
solitria/ banhada pelo mar glacial das dores;/ haja, a teu passo, um feixe de
esplendores,/ por sobre a adusta rocha solitria...// Adeja sobre a rocha solitria,/
peregrina paloma, asa de neve,/ como uma hstia divina, asa to leve.// Como um
floco de neve, asa divina,/ floco de neve, lrio, hstia e neblina,/ peregrina paloma
imaginria...

Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa,


com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento,
334

tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco antes,


mesa, em presena de Dona Isabel. Lonie fingia prestar-lhe ateno e nada
mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que
distraidamente, comeou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.}
Perea o dia em que nasci, e a noite em que anunciaram: Nasceu um menino!
Aquela noite um tenebroso redemoinho a arrase, e no se conte entre os dias do
ano, nem se enumere entre os meses! Que essa noite fique estril e no seja digna de
louvor. Que a amaldioem os que amaldioam o dia, os que esto prontos para
despertar Leviat! Que se obscuream as estrelas do seu crepsculo. Essa noite
espere pela luz e a luz no venha, ela no veja as plpebras da aurora. Pois no
fechou a porta do ventre que me trouxe, e no escondeu dos meus olhos tantos males!
Por que no morri no ventre materno, ou no expirei logo ao sair das entranhas? Por
que em dois joelhos fui acolhido e em dois peitos, amamentado? Pois agora,
dormindo, eu estaria calado e repousaria no meu sono, com os reis e governadores da
terra, que constroem para si mausolus, ou com os nobres, que possuem ouro e
enchem de prata suas casas. Ou, como um aborto ocultado, eu no existiria, ou como
os que, concebidos, nem chegaram a ver a luz. Ali acaba o tumulto dos mpios, ali
repousam os que esgotaram as foras. E os que haviam sido prisioneiros no so
mais molestados, nem ouvem a voz do capataz. Ali esto pequenos e grandes, e o
escravo est livre do seu senhor. Por que foi dada a luz a um infeliz e a vida, queles
que tm a alma amargurada? Eles aguardam a morte e ela no vem, e at escavam,
procurando-a mais que a um tesouro: eles se alegrariam intensamente, e ficariam
muito felizes diante do sepulcro. Por que, ento, dar luz algum cujo caminho est
oculto e a quem Deus cercou de trevas? Em vez de comer, fico suspirando e o meu
rugido como guas de enxurrada. O que eu mais temia, aconteceu comigo; o que eu
receava, me atingiu. No dissimulo, no me calo, no me aquieto: a ira de Deus veio
sobre mim!

335

A AUTORIDADE - Em pocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das


canoas e os homens na popa. As mulheres caavam e pescavam. Elas saam
das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam
as choas, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o
frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo. Assim era a vida
entre os ndios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, at que um dia os
homens mataram todas as mulheres e puseram as mscaras que as
mulheres tinham inventado para aterroriz-los. Somente as meninas recmnascidas se salvaram do extermnio. Enquanto elas cresciam, os assassinos
lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas
acreditaram. Tambm acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.

Em tempos muito remotos, quando as mulheres possuam as flautas sagradas, os


homens carregavam lenha e gua e preparavam o po de mandioca. Contam os
homens que o sol se indignou ao ver que as mulheres reinavam no mundo. O sol
desceu selva e fecundou uma das virgens, deslizando sucos de folhas entre suas
pernas. Assim nasceu Jurupari. Jurupari roubou as flautas sagradas e entregou-as
aos homens. Ensinou-lhes a ocult-las e defend-las e a celebrar festas e rituais
sem mulheres. Contou-lhes, alm disso, os segredos que deveriam transmitir ao
ouvido de seus filhos vares.
Duas aplicaes da sua tica merecem referncia: primeiro, seu desprezo pelas
mulheres; segundo, sua crtica ao cristianismo. No se cansa jamais de investir
contra as mulheres. Em seu livro pseudo-proftico Assim falava Zaratustra, diz que
as mulheres no so capazes ainda de amizade; so ainda gatos, ou pssaros,
ou, quando muito vacas. "O homens devem ser adestrados para a guerra e as
mulheres para a recreao dos guerreiros. O resto tolice." A recreao do
guerreiro deve ser de uma forma muito peculiar, se que devemos confiar em seu
enftico aforismo sobre o assunto: "Vais encontrar uma mulher? No esqueas o
chicote. Nem sempre to feroz, embora seja sempre igualmente desdenhoso.
Em "A Vontade de Poder" diz: "Agrada-nos a mulher por ser talvez a mais
saborosa, delicada e etrea das criaturas humanas. Que prazer para ns encontrar
criaturas que s tem na cabea bailes, tolices e atavios! Elas tem sido sempre a
delcia de toda alma varonil tensa e profunda. No entanto, mesmo essas graas s
so encontradas em mulheres que so mantidas na linha por homens varonis; logo
que conseguem qualquer independncia, tornam-se intolerveis. "A mulher tem
muito de que se envergonhar; na mulher h muito pedantismo, superficialidade,
suficincia, presunes ridculas, desregramentos e indiscrio oculta... Coisas
que foram, at agora, refreadas e dominadas por medo do homem. Assim o diz em
Alm do Bem e do Mal, onde acrescenta que devamos considerar as mulheres
como uma propriedade, como os orientais. Todo o seu juzo sobre as mulheres
apresentado como uma verdade axiomtica; no so opinies apoiadas em provas
histricas ou em sua prpria experincia, que quanto ao que se refere s
336

mulheres, quase que se limitava sua irm. bvio que em seus sonhos um
guerreiro, no um professor; todos os homens que admira so militares. Sua
opinio das mulheres, como a de todos os homens, uma objetivao de sua
prpria emoo com respeito a elas, que claramente um sentimento de temor.
"No esqueas teu chicote" - mas em cada dez mulheres, nove teriam arrebatado
o chicote, e ele o sabia, de modo que se conservava afastado delas, curando sua
vaidade ferida com observaes nada amveis.
"Se me atravessas a espada,/ natural que fique / na carne amargurada / um
mudo sangue triste. // No falaremos mais nada, / pois, de tudo que disse,/ resta a
alma equivocada/ com seu puro convite.// Uma celeste chamada/ por algum que
no vive/ apagar a culpada/ mo com seu duro crime.// Eu, para sempre calada,/
acharei muito simples/ que a alma eterna dobrada / seja - e (a teus olhos) finde.//
(Que a doce loucura amada/ do firmamento incline/ amor e morte, em cada/ noite,
nesta plancie!)"

Alm de desenvolver uma concepo extraordinria da estrutura csmica, os


Puranas fazem o mesmo com respeito ao Tempo. O mundo passa por um ciclo de
quatro idades, ou yuga: o krta, o satya, perodo perfeito que dura 1.728.000 anos
humanos; a idade treta de 1.296.000 de anos; a idade dvapara de 864.000 anos; e
a idade de escurido kali, de 432.000 anos, que comeou com a Guerra
Mahabharata (que segundo a tradio, comeou em 3102 antes de Cristo). No
total, se somam 4.320.000 anos em que o mundo se distancia progressivamente
de um estado perfeito para um estado moralmente degenerado que negligencia o
Darma. [...] O perodo total de quatro yugas se denomina manvantara, a idade, o
perodo vital de um manu. Depois de mil manvantaras [4 bilhes e 320 milhes de
anos], que para Brama apenas um dia, o universo destrudo pelo fogo ou por
uma inundao, a que se seguir a noite de Brama, que tem a mesma durao, ou
seja, mil manvantaras, at que o processo comece de novo e assim durante toda a
eternidade. Um kalpa um dia e uma noite de Brama, e totaliza 8.649.000.000
anos. No h fim para esse processo, e nem outro propsito alm do de servir ao
Jogo (lila) do Senhor.

O que sempre me repugnara em baratas que elas eram obsoletas e no


entanto atuais. Saber que elas j estavam na Terra, e iguais a hoje, antes
mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o
337

primeiro homem surgido j as havia encontrado proliferadas e se


arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formao das
grandes jazidas de petrleo e carvo do mundo, e l estavam durante o
grande avano e depois durante o grande recuo das geleiras a
resistncia pacfica. Eu sabia que as baratas resistiam a mais de um ms
sem alimento ou gua. E que at de madeira faziam substncia nutritiva
e aproveitvel. E que, mesmo depois de pisadas, descomprimiam-se
lentamente e continuavam a andar. Mesmo congeladas, ao degelarem,
prosseguiam na marcha...
No, no havia sal naqueles olhos. Eu tinha a certeza de que os olhos da
barata eram insossos. Para o sal eu sempre estivera pronta, o sal era a
transcendncia que eu usava para poder sentir um gosto, e poder fugir
do que eu chamava de nada. Para o sal eu estava pronta, para o sal eu
toda me havia construdo.
Me: matei uma vida, e no h braos que me recebam agora e na hora
do nosso deserto, amm. Me, tudo agora tornou-se de ouro duro.
Interrompi uma coisa organizada, me, e isso pior que matar, isso me
fez entrar por uma brecha que me mostrou, pior que a morte, que me
mostrou a vida grossa e neutra amarelecendo. A barata est viva, e o
olho dela fertilizante, estou com medo de minha rouquido, me.
No trigsimo ano, no quinto dia do quarto ms, quando me encontrava entre os deportados, s
margens do rio Cobar, abriram-se os cus e contemplei vises divinas. No quinto dia do ms era o quinto ano de cativeiro do rei Joaquin - foi a palavra do Senhor dirigida ao sacerdote
Ezequiel, filho de Buzi, na Caldia, s margens do rio Cobar. Nesse lugar veio a mo do
Senhor sobre mim. Tive ento uma viso: soprava do lado norte um vento impetuoso, uma
espessa nuvem com um feixe de fogo resplandecente, e, no centro, sado do meio do fogo,
algo que possua um brilho vermelho. Distinguia-se no centro a imagem de quatro seres que
aparentavam possuir forma humana. Cada um tinha quatro faces e quatro asas. Suas pernas
eram direitas e as plantas de seus ps se assemelhavam s do touro, e cintilavam como
bronze polido. De seus quatro lados mos humanas saam por debaixo de suas asas. Todos os
quatro possuam rostos, e asas. Suas asas tocavam uma na outra. Quando se locomoviam,
no se voltavam: cada um andava para a frente. Quanto ao aspecto de seus rostos tinham
todos eles figura humana, todos os quatro uma face de leo pela direita, todos os quatro uma
face de touro pela esquerda, e todos os quatro uma face de guia. Eis o que havia no tocante
as suas faces. Suas asas estendiam-se para o alto, cada qual tinha duas asas que tocavam s
dos outros, e duas que lhe cobriam o corpo. Cada qual caminhava para a frente: iam para o
lado aonde os impelia o esprito, no se voltavam quando iam andando. No meio desses seres,
divisava-se algo parecido com brasas incandescentes, como tochas que circulavam entre eles,

338

e desse fogo que projetava uma luz deslumbrante, saam relmpagos. Os seres
ziguezagueavam como o raio.
Ora, enquanto contemplava esses seres vivos, divisei uma roda sobre a terra ao lado de cada
um dos quatro. O aspecto e a estrutura dessas rodas eram os de uma gema de Trsis. Todas
as quatro se assemelhavam, e pareciam construdas uma dentro da outra. Podiam deslocar-se
em quatro direes, sem retornar em seus movimentos. Seus aros eram de uma altura
assombrosa, guarnecidos de olhos em toda a circunferncia. Quando os seres vivos se
deslocavam ou se erguiam da terra, locomoviam-se as rodas e se elevavam com eles.

EDUARDO GALEANO
Memria do Fogo, Vol. III. O Sculo do Vento

Anenecuilco, 1911
ZAPATA
Nasceu cavaleiro, arrieiro e domador. Cavalga deslizando, navegando a
cavalo as plancies, cuidadoso para no importunar o profundo sono da
terra. Emiliano Zapata homem de silncios. Ele diz calando.
Os camponeses de Anenecuilco, sua aldeia, casinhas de pau-a-pique e teto
de palha, salpicadas na colina, fizeram de Zapata o chefe e entregaram a
ele os papis dos tempos dos vice-reis, para que ele saiba guard-los e
defend-los. Esse punhado de documentos prova que essa comunidade,
aqui enraizada desde sempre, no intrusa em sua terra.
A comunidade de Anenecuilco est estrangulada, como todas as demais
comunidades da regio mexicana de Morelos. Cada vez existem menos ilhas
de milho no oceano de acar. Da aldeia de Tequesquitengo, condenada a
morrer porque seus ndios livres se negavam a transformar-se em pees de
quadrilha, nada sobra alm da cruz da torre da igreja. As imensas
plantaes avanam engolindo terras, guas e bosques. No deixam espao
nem para enterrar os mortos:
Se querem plantar, plantem em vasos.
Matadores e rbulas se ocupam dos despojos, enquanto os devoradores de
comunidades escutam concertos em seus jardins e criam cavalos de plo e
ces de exposio.
Zapata, caudilho dos avassalados do lugar, enterra os ttulos debaixo do
soalho da igreja de Anenecuilco e se lana luta. Sua trope de ndios, bem
plantada, bem montada, mal armada, cresce ao andar.
Anenecuilco, 1911. ZAPATA - Nasceu cavaleiro, arrieiro e domador. Cavalga
deslizando, navegando a cavalo as plancies, cuidadoso para no importunar
o profundo sono da terra. Emiliano Zapata homem de silncios. Ele diz
calando. Os camponeses de Anenecuilco, sua aldeia, casinhas de pau-apique e teto de palha, salpicadas na colina, fizeram de Zapata o chefe e
entregaram a ele os papis dos tempos dos vice-reis, para que ele saiba
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guard-los e defend-los. Esse punhado de documentos prova que essa


comunidade, aqui enraizada desde sempre, no intrusa em sua terra. A
comunidade de Anenecuilco est estrangulada, como todas as demais
comunidades da regio mexicana de Morelos. Cada vez existem menos ilhas
de milho no oceano de acar. Da aldeia de Tequesquitengo, condenada a
morrer porque seus ndios livres se negavam a transformar-se em pees de
quadrilha, nada sobra alm da cruz da torre da igreja. As imensas
plantaes avanam engolindo terras, guas e bosques. No deixam espao
nem para enterrar os mortos: Se querem plantar, plantem em vasos.
Matadores e rbulas se ocupam dos despojos, enquanto os devoradores de
comunidades escutam concertos em seus jardins e criam cavalos de plo e
ces de exposio. Zapata, caudilho dos avassalados do lugar, enterra os
ttulos debaixo do soalho da igreja de Anenecuilco e se lana luta. Sua
trope de ndios, bem plantada, bem montada, mal armada, cresce ao andar.
Coyoacn, 1938
TROTSKI
Todas as manhs, se surpreende de acordar vivo. Embora a casa tenha guadas nas
guaritas e esteja rodeada de arames eletrificados, Leon Trotski sabe que uma
fortaleza intil. O criador do exrcito vermelho agradece ao Mxico, que lhe deu
refgio, mas agradece mais sorte:
Vs, Natasha comenta todas as manhs com sua mulher. Ontem noite
no nos mataram, e voc ainda se queixa.
Desde que Lenin morreu, Stalin liquidou, um a um, os homens que tinham
encabeado a revoluo russa. Para salv-la, diz Stalin. Para apodera-se dela, diz
Trotski, homem marcado para morrer.
Atrevido, Trotski continua acreditando no socialismo, por mais sujo que esteja de
barro humano. Afinal de contas, quem poderia negar que o cristianismo muito
mais que a Inquisio?

Coyoacn, 1938. TROTSKI - Todas as manhs, se surpreende de acordar vivo.


Embora a casa tenha guadas nas guaritas e esteja rodeada de arames eletrificados,
Leon Trotski sabe que uma fortaleza intil. O criador do exrcito vermelho
agradece ao Mxico, que lhe deu refgio, mas agradece mais sorte: Vs,
Natasha comenta todas as manhs com sua mulher. Ontem noite no nos
mataram, e voc ainda se queixa. Desde que Lenin morreu, Stalin liquidou, um a
um, os homens que tinham encabeado a revoluo russa. Para salv-la, diz Stalin.
Para apodera-se dela, diz Trotski, homem marcado para morrer. Atrevido, Trotski
continua acreditando no socialismo, por mais sujo que esteja de barro humano.
Afinal de contas, quem poderia negar que o cristianismo muito mais que a
Inquisio?

A GUERRA DO CHACO

340

Bolvia e Paraguai esto em guerra. Os dois povos mais pobres da Amrica do Sul,
os que no tm mar, os mais vencidos e despojados, se aniquilam mutuamante por
um pedao de mapa. Escondidas entre as dobras de ambas as bandeiras, a
Standard Oil Company e a Royal Dutch Shell disputam o possvel petrleo do
Chaco.
Metidos na guerra, paraguaios e bolivianos esto obrigados a se odiar em nome de
uma terra que no amam, que ningum ama: o Chaco um deserto cinzento,
habitado por espinhos e serpentes, sem um pssaro cantor nem uma pegada de
gente. Tudo tem sede neste mundo de espanto. As mariposas se apinham,
desesperadas, sobre as poucas gotas de gua. Os bolivianos vm da geladeira ao
forno: foram arrancados dos picos dos Andes e arrojados nestes matagais
calcinados. Aqui morrem de bala, mas morrem mais de sede.
Nuvens de moscas e mosquitos perseguem os soldados, que agacham a cabea e
avanam trotando atravs do emaranhado, em marchas foradas, contra as linhas
inimigas. De um lado e do outro, o povo descalo boi de piranha que paga os
erros dos oficiais. Os escravos do patro feudal e do nobre rural morrem de
uniforme ao servio da imperial avareza.
Fala um dos soldados bolivianos que marcha rumo morte. No diz nada sobre a
glria, nada sobre a ptria. Diz, resfolegando:
Maldita a hora em que nasci homem.

A GUERRA DO CHACO - Bolvia e Paraguai esto em guerra. Os dois povos mais


pobres da Amrica do Sul, os que no tm mar, os mais vencidos e despojados, se
aniquilam mutuamante por um pedao de mapa. Escondidas entre as dobras de
ambas as bandeiras, a Standard Oil Company e a Royal Dutch Shell disputam o
possvel petrleo do Chaco. Metidos na guerra, paraguaios e bolivianos esto
obrigados a se odiar em nome de uma terra que no amam, que ningum ama: o
Chaco um deserto cinzento, habitado por espinhos e serpentes, sem um pssaro
cantor nem uma pegada de gente. Tudo tem sede neste mundo de espanto. As
mariposas se apinham, desesperadas, sobre as poucas gotas de gua. Os bolivianos
vm da geladeira ao forno: foram arrancados dos picos dos Andes e arrojados
nestes matagais calcinados. Aqui morrem de bala, mas morrem mais de sede.
Nuvens de moscas e mosquitos perseguem os soldados, que agacham a cabea e
avanam trotando atravs do emaranhado, em marchas foradas, contra as linhas
inimigas. De um lado e do outro, o povo descalo boi de piranha que paga os
erros dos oficiais. Os escravos do patro feudal e do nobre rural morrem de
uniforme ao servio da imperial avareza. Fala um dos soldados bolivianos que
marcha rumo morte. No diz nada sobre a glria, nada sobre a ptria. Diz,
resfolegando: Maldita a hora em que nasci homem.

Cidade Trujillo, 1936


NO ANO 6 DA ERA DE TRUJILLO
corrigem o nome da capital da Repblica Dominicana. Santo Domingo, assim

341

batizada por seus fundadores, passa a chamar-se Ciudad Trujillo. Tambm o porto
se chama agora Trujillo, e Trujillo se chamam muitos povoados, praas, mercados e
avenidas. De Ciudad Trujillo, o generalssimo Rafael Lenidas Trujillo faz chegar ao
generalssimo Francisco Franco sua mais fervorosa adeso.
Trujillo, incansvel aoite de comunistas e hereges, nasceu, como Anastasio
Somoza, da ocupao militar norte-americana. Sua natural modstia no o impede
de aceitar que seu nome figure nas placas de todos os automveis e sua efgie em
todos os selos de correio. No se ops a que se outorgue a seu filho Ramfis, de trs
anos de idade, a patente de coronel, por tratar-se de um ato de estrita justia. Seu
sentido de responsabilidade o obriga a designar pessoalmente ministros e porteiros,
bispos e rainhas de beleza. Para estimular o esprito de empresa, Trujillo outorga a
Trujillo o monoplio do sal, do tabaco, do azeite, do cimento, da farinha e dos
fsforos.
Em defesa da sade pblica, Trujillo fecha os estabelecimentos comerciais que no
vendem carne dos matadores Trujillo ou leite de suas fazendas; e por razes de
segurana pblica torna obrigatrias as aplices que Trujillo vende. Apertando com
mo firme o timo do progresso, Trujillo exonera de impostos as empresas de
Trujillo e proporciona irrigao e caminhos s suas terras e clientes s suas
fbricas. Por ordem de Trujillo, dono da fbrica de sapatos, vai preso quem ousar
pisar descalo as ruas de qualquer aldeia ou cidade.
Tem voz de assovio, o todo-poderoso, mas no discute nunca. No jantar ergue a
taa e brinda com o governador ou o deputado que depois do caf ir parar no
cemitrio. Quando uma terra lhe interessa, no a compra: ocupa-a. Quando uma
mulher lhe agrada, no a seduz: aponta-a.

Cidade Trujillo, 1936. NO ANO 6 DA ERA DE TRUJILLO corrigem o nome da capital


da Repblica Dominicana. Santo Domingo, assim batizada por seus fundadores,
passa a chamar-se Ciudad Trujillo. Tambm o porto se chama agora Trujillo, e
Trujillo se chamam muitos povoados, praas, mercados e avenidas. De Ciudad
Trujillo, o generalssimo Rafael Lenidas Trujillo faz chegar ao generalssimo
Francisco Franco sua mais fervorosa adeso. Trujillo, incansvel aoite de
comunistas e hereges, nasceu, como Anastasio Somoza, da ocupao militar norteamericana. Sua natural modstia no o impede de aceitar que seu nome figure nas
placas de todos os automveis e sua efgie em todos os selos de correio. No se
ops a que se outorgue a seu filho Ramfis, de trs anos de idade, a patente de
coronel, por tratar-se de um ato de estrita justia. Seu sentido de responsabilidade
o obriga a designar pessoalmente ministros e porteiros, bispos e rainhas de beleza.
Para estimular o esprito de empresa, Trujillo outorga a Trujillo o monoplio do sal,
do tabaco, do azeite, do cimento, da farinha e dos fsforos. Em defesa da sade
pblica, Trujillo fecha os estabelecimentos comerciais que no vendem carne dos
matadores Trujillo ou leite de suas fazendas; e por razes de segurana pblica
torna obrigatrias as aplices que Trujillo vende. Apertando com mo firme o timo
do progresso, Trujillo exonera de impostos as empresas de Trujillo e proporciona
irrigao e caminhos s suas terras e clientes s suas fbricas. Por ordem de
Trujillo, dono da fbrica de sapatos, vai preso quem ousar pisar descalo as ruas de
qualquer aldeia ou cidade. Tem voz de assovio, o todo-poderoso, mas no discute
nunca. No jantar ergue a taa e brinda com o governador ou o deputado que depois
do caf ir parar no cemitrio. Quando uma terra lhe interessa, no a compra:
ocupa-a. Quando uma mulher lhe agrada, no a seduz: aponta-a.

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Montevidu, 1914. BATLLE - Escreve artigos caluniando os santos e pronuncia


discursos atacando o negcio da venda de terrenos no Alm. Quando assumiu a
presidncia do Uruguai, no teve outro remdio a no ser jurar por Deus e pelos
Santos Evangelhos, mas em seguida esclareceu que no acreditava em nada disso.
Jos Batlle y Ordez governa desafiando os poderosos do cu e da Terra. A Igreja
prometeu-lhe um bom lugar no inferno: atiaro o fogo as empresas por ele
nacionalizadas ou por ele obrigadas a respeitar os sindicatos operrios e a jornada
de trabalho de oito horas; e o diabo ser o macho vingador das ofensas que ele
infligiu ao setor masculino. Est legalizando a libertinagem dizem seus
inimigos, quando Batlle aprova a lei que permite s mulheres se divorciarem por
sua prpria vontade. Est dissolvendo a famlia dizem, quando estende o
direito de herana aos filhos naturais. O crebro da mulher inferior dizem,
quando cria a universidade feminina e quando anuncia que em breve as mulheres
votaro, para que a democracia uruguaia no caminhe com uma perna s e para
que no sejam as mulheres eternas menores de idade que do pai passam s mos
do marido.
Washington, 1939
NO ANO 9 DA ERA DE TRUJILLO
uma salva de vinte e um tiros de canho lhe d as boas-vindas na academia militar
de West Point. Trujillo se areja com um leque de marfim e cumprimenta abanando a
plumagem de avestruz do seu chapu.
Acompanha-o uma rechonchuda delegao de bispos, generais e cortess, um
mdico e um bruxo especialista em mau-olhado. Tambm o acompanha o
brigadeiro Ramfis Trujillo, de nove anos de idade, que arrasta uma espada mais
comprida que ele.
O general George Marshall oferece a Trujillo um banquete a bordo do Mayflower e o
presidente Roosevelt o recebe na Casa Branca. Legisladores, governadores e
jornalistas cobrem de louvores o estadista exemplar. Trujillo, que paga seus mortos
vista, tambm vista compra elogios, colocando os gastos no item Alpiste para
passarinhos do oramento do Poder Executivo da Repblica Dominicana.
Washington, 1939. NO ANO 9 DA ERA DE TRUJILLO uma salva de vinte e um tiros
de canho lhe d as boas-vindas na academia militar de West Point. Trujillo se areja
com um leque de marfim e cumprimenta abanando a plumagem de avestruz do seu
chapu. Acompanha-o uma rechonchuda delegao de bispos, generais e cortess,
um mdico e um bruxo especialista em mau-olhado. Tambm o acompanha o
brigadeiro Ramfis Trujillo, de nove anos de idade, que arrasta uma espada mais
comprida que ele. O general George Marshall oferece a Trujillo um banquete a
bordo do Mayflower e o presidente Roosevelt o recebe na Casa Branca.
Legisladores, governadores e jornalistas cobrem de louvores o estadista exemplar.
Trujillo, que paga seus mortos vista, tambm vista compra elogios, colocando
os gastos no item Alpiste para passarinhos do oramento do Poder Executivo da
Repblica Dominicana.
Buenos Aires, 1930
YRIGOYEN

343

Ao despenhadeiro da crise mundial chega tambm o presidente argentino Hiplito


Yrigoyen. condenado queda pelos preos da carne e do trigo.
Calado e sozinho, Yrigoyen assiste ao fim de seu poder. Desde outro tempo, desde
outro mundo: esse velho obstinado se nega at hoje a usar telefone e jamais entrou
num cinema, desconfia dos automveis e no acredita nos avies. Conquistou o
povo sem discursos, conversando, convencendo um por um, pouco a pouco. Agora
o amaldioam os mesmos que ontem desenganchavam os cavalos de sua
carruagem, para lev-lo no brao. A multido arroja rua os mveis de sua casa.
O golpe militar que derruba Yrigoyen foi cozido, ao calor da sbita crise, nos sales
do Jockey Clube e do Crculo de Armas. O enfermo patriarca, rangendo de
reumatismo, selou seu destino quando se negou a entregar o petrleo argentino
Standard Oil e Shell; e para cmulo quis enfrentar a catstrofe dos preos
negociando com a Unio Sovitica.
Soou outra vez, para o bem do mundo, a hora da espada, - havia proclamado o
poeta Leopoldo Lugones, anunciando a era militar na Argentina.
Em peno golpe, o jovem capito Juan Domingo Pern v que sai correndo do palcio
do governo, correndo toda, um entusiasta que grita:
Viva a Ptria! Viva a Revoluo!
O entusiasta leva uma bandeira argentina enrolada debaixo do brao. Dentro da
bandeira, a mquina de escrever que acaba de roubar.
Buenos Aires, 1930. YRIGOYEN - Ao despenhadeiro da crise mundial chega tambm
o presidente argentino Hiplito Yrigoyen. condenado queda pelos preos da
carne e do trigo. Calado e sozinho, Yrigoyen assiste ao fim de seu poder. Desde
outro tempo, desde outro mundo: esse velho obstinado se nega at hoje a usar
telefone e jamais entrou num cinema, desconfia dos automveis e no acredita nos
avies. Conquistou o povo sem discursos, conversando, convencendo um por um,
pouco a pouco. Agora o amaldioam os mesmos que ontem desenganchavam os
cavalos de sua carruagem, para lev-lo no brao. A multido arroja rua os mveis
de sua casa. O golpe militar que derruba Yrigoyen foi cozido, ao calor da sbita
crise, nos sales do Jockey Clube e do Crculo de Armas. O enfermo patriarca,
rangendo de reumatismo, selou seu destino quando se negou a entregar o petrleo
argentino Standard Oil e Shell; e para cmulo quis enfrentar a catstrofe dos
preos negociando com a Unio Sovitica. Soou outra vez, para o bem do mundo,
a hora da espada, - havia proclamado o poeta Leopoldo Lugones, anunciando a era
militar na Argentina. Em peno golpe, o jovem capito Juan Domingo Pern v que
sai correndo do palcio do governo, correndo toda, um entusiasta que grita:
Viva a Ptria! Viva a Revoluo! O entusiasta leva uma bandeira argentina enrolada
debaixo do brao. Dentro da bandeira, a mquina de escrever que acaba de roubar.

Acapulco, 1923
A FUNO DAS FORAS DA ORDEM NO PROCESSO DEMOCRTICO
Quando terminou o filme do Tom Mix, houve discurso. Em p, na frente da tela do
nico cinema de Acapulco, Juan Escudero surpreendeu o pblico com um discurso
contra os mercadores sanguessugas. Quando os fardados se atiraram em cima dele,
j tinha nascido o Partido Operrio de Acapulco, batizado por ovao.
Em pouco tempo, o Partido operrio cresceu, ganhou as eleies e fincou sua
bandeira rubro-negra no palcio municipal. Juan Escudero, alta figura, de costeletas,
bigodes engomados, o novo prefeito, o prefeito socialista: num abrir e fechar de

344

olhos transforma o palcio em sede de cooperativas e sindicato, empreende a


campanha de alfabetizao e desafia o poder dos donos de tudo: as trs empresas
que possuem a gua, o ar, o solo e a sujeira deste imundo porto mexicano,
abandonado por Deus e pelo governo federal. Ento os donos de tudo organizam
novas eleies, para que o povo corrija seu erro, mas o Partido Operrio de
Acapulco torna a ganhar. De tal forma que no h mais remdio a no ser convocar
o exrcito que imediatamente age para normalizar a situao. O vitorioso Juan
Escudero recebe dois tiros, um no brao e outro na testa, tiro de misericrdia bem
de pertinho, enquanto os soldados botam fogo no palcio municipal.
Acapulco, 1923. A FUNO DAS FORAS DA ORDEM NO PROCESSO DEMOCRTICO Quando terminou o filme do Tom Mix, houve discurso. Em p, na frente da tela do
nico cinema de Acapulco, Juan Escudero surpreendeu o pblico com um discurso
contra os mercadores sanguessugas. Quando os fardados se atiraram em cima dele,
j tinha nascido o Partido Operrio de Acapulco, batizado por ovao. Em pouco
tempo, o Partido operrio cresceu, ganhou as eleies e fincou sua bandeira rubronegra no palcio municipal. Juan Escudero, alta figura, de costeletas, bigodes
engomados, o novo prefeito, o prefeito socialista: num abrir e fechar de olhos
transforma o palcio em sede de cooperativas e sindicato, empreende a campanha
de alfabetizao e desafia o poder dos donos de tudo: as trs empresas que
possuem a gua, o ar, o solo e a sujeira deste imundo porto mexicano, abandonado
por Deus e pelo governo federal. Ento os donos de tudo organizam novas eleies,
para que o povo corrija seu erro, mas o Partido Operrio de Acapulco torna a
ganhar. De tal forma que no h mais remdio a no ser convocar o exrcito que
imediatamente age para normalizar a situao. O vitorioso Juan Escudero recebe
dois tiros, um no brao e outro na testa, tiro de misericrdia bem de pertinho,
enquanto os soldados botam fogo no palcio municipal.

Acapulco, 1923
Escudero
Ressuscita e continua ganhando eleies. Em cadeira de rodas, mutilado, quase
mudo, faz sua campanha triunfal de deputado ditando discursos a um garoto que
decifra seus murmrios e os repete a viva voz nos palanques.
Os donos de Acapulco decidem pagar trinta mil pesos patrulha militar, para que
desta vez dispare como se deve. Nos livros maiores de contabilidade das empresas
se registra a sada dos fundos, mas no o destino. E finalmente Juan Escudero cai
fuziladssimo, morto por morte total, para que ningum duvide.
Acapulco, 1923. ESCUDERO Ressuscita e continua ganhando eleies. Em cadeira
de rodas, mutilado, quase mudo, faz sua campanha triunfal de deputado ditando
discursos a um garoto que decifra seus murmrios e os repete a viva voz nos
palanques. Os donos de Acapulco decidem pagar trinta mil pesos patrulha militar,
para que desta vez dispare como se deve. Nos livros maiores de contabilidade das
empresas se registra a sada dos fundos, mas no o destino. E finalmente Juan
Escudero cai fuziladssimo, morto por morte total, para que ningum duvide.
Campos de Durango, 1923
PANCHO VILLA L AS MIL E UMA NOITES,

345

soletrando em voz alta e luz de candeeiro, porque esse o livro que lhe d
melhores sonhos; e depois acorda cedinho para pastorear gado com seus velhos
companheiros de luta.
Villa continua sendo o homem mais popular nos campos do norte do Mxico,
embora os do governo no gostem dele nem um pouquinho. Hoje faz trs anos que
Villa transformou em cooperativa a fazenda de Canutillo, que j tem hospital e
escola, e um mundo de gente veio celebrar.
Villa est escutando suas canes favoritas quando dom Fernando, peregrino de
Granada, conta que John Reed morreu em Moscou.
Pancho Villa manda parar a festa. At as moscas detm o seu vo.
Quer dizer que Juanito morreu? Meu irmo Juanito?
Justo ele mesmo.
Villa fica acreditando e no acreditando.
Eu o vi se desculpa dom Fernando. Est enterrado com os heris da
revoluo l deles.
O pessoal nem respira. Ningum incomoda o silncio. Dom Fernando murmura:
Foi de tifo, no de tiro.
E Villa balana a cabea:
Quer dizer que Juanito morreu.
E repete:
Quer dizer que Juanito morreu.
E se cala. E olhando longe, diz:
Eu nunca tinha ouvido a palavra socialismo. Ele me explicou.
Em seguida, se ergue, e abrindo os braos, desafia os mudos violeiros:
E a msica? O que aconteceu com a msica? Manda ver.
Campos de Durango, 1923. PANCHO VILLA L AS MIL E UMA NOITES, soletrando em voz alta e
luz de candeeiro, porque esse o livro que lhe d melhores sonhos; e depois acorda cedinho para
pastorear gado com seus velhos companheiros de luta. Villa continua sendo o homem mais popular nos
campos do norte do Mxico, embora os do governo no gostem dele nem um pouquinho. Hoje faz trs
anos que Villa transformou em cooperativa a fazenda de Canutillo, que j tem hospital e escola, e um
mundo de gente veio celebrar. Villa est escutando suas canes favoritas quando dom Fernando,
peregrino de Granada, conta que John Reed morreu em Moscou. Pancho Villa manda parar a festa. At as
moscas detm o seu vo. Quer dizer que Juanito morreu? Meu irmo Juanito? Justo ele mesmo.
Villa fica acreditando e no acreditando. Eu o vi se desculpa dom Fernando. Est enterrado com
os heris da revoluo l deles. O pessoal nem respira. Ningum incomoda o silncio. Dom Fernando
murmura: Foi de tifo, no de tiro. E Villa balana a cabea: Quer dizer que Juanito morreu. E
repete: Quer dizer que Juanito morreu. E se cala. E olhando longe, diz: Eu nunca tinha ouvido a
palavra socialismo. Ele me explicou. Em seguida, se ergue, e abrindo os braos, desafia os mudos
violeiros: E a msica? O que aconteceu com a msica? Manda ver.

Cidade do Mxico, 1923


O POVO PS UM MILHO DE MORTOS NA REVOLUO MEXICANA,
em dez anos de guerra, para que finalmente os chefes militares se
apoderem das melhores terras e dos melhores negcios. Os oficiais da
revoluo partilham o poder e a glria com os doutores esfoladores de
ndios e os polticos de aluguel, brilhantes oradores de banquete que
chamam Obregn de Lenin mexicano.
346

No caminho da reconciliao nacional, toda divergncia superada atravs


de contratos de obras pblicas, concesses de terra ou favores de bolsos
escancarados. lvaro Obregn , o presidente, define seu estilo de governo
com uma frase que far escola no Mxico.
No h general que resista a um disparo de cinqenta mil pesos.
Cidade do Mxico, 1923. O POVO PS UM MILHO DE MORTOS NA
REVOLUO MEXICANA, em dez anos de guerra, para que finalmente os
chefes militares se apoderem das melhores terras e dos melhores negcios.
Os oficiais da revoluo partilham o poder e a glria com os doutores
esfoladores de ndios e os polticos de aluguel, brilhantes oradores de
banquete que chamam Obregn de Lenin mexicano. No caminho da
reconciliao nacional, toda divergncia superada atravs de contratos de
obras pblicas, concesses de terra ou favores de bolsos escancarados.
lvaro Obregn , o presidente, define seu estilo de governo com uma frase
que far escola no Mxico. No h general que resista a um disparo de
cinqenta mil pesos.
La Paz, 1967
RETRATO DE UM SUPERMACHO
Nos ombros de Nen, seu gigante guarda-costas, o general Ren Barrientos
atravessa a cidade de La Paz. Do alto de Nen, vai cumprimentando os que
o aplaudem. Entra no palcio do governo. Sentando em sua escrivaninha,
com Nen atrs, assina decretos que vendem a preo de banana o cu, o
solo e o subsolo da Bolvia.
H dez anos, Barrientos estava passando uma temporada num manicmio
em Washington, D.C., quando lhe veio cabea a idia de ser presidente da
Bolvia. Fez carreira pela via do atletismo. Disfarado de aviador norteamericano, assaltou o poder; e o exerce metralhando operrios e arrasando
bibliotecas e salrios.
O matador do Che galo cacareador, homem de cem picas, cem mulheres e
mil filhos. Nenhum boliviano voou tanto, discursou tanto nem roubou tanto.
Em Miami, os exilados cubanos o elegem Homem do Ano.
La Paz, 1967. RETRATO DE UM SUPERMACHO - Nos ombros de Nen, seu
gigante guarda-costas, o general Ren Barrientos atravessa a cidade de La
Paz. Do alto de Nen, vai cumprimentando os que o aplaudem. Entra no
palcio do governo. Sentando em sua escrivaninha, com Nen atrs, assina
decretos que vendem a preo de banana o cu, o solo e o subsolo da
Bolvia. H dez anos, Barrientos estava passando uma temporada num
manicmio em Washington, D.C., quando lhe veio cabea a idia de ser
presidente da Bolvia. Fez carreira pela via do atletismo. Disfarado de
aviador norte-americano, assaltou o poder; e o exerce metralhando
operrios e arrasando bibliotecas e salrios. O matador do Che galo
cacareador, homem de cem picas, cem mulheres e mil filhos. Nenhum
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boliviano voou tanto, discursou tanto nem roubou tanto. Em Miami, os


exilados cubanos o elegem Homem do Ano.
Cidade do Mxico, 1915
O QUASE-PODER
Uma batidinha de aldrava, entre querendo e no querendo, e uma porta se
entreabre: algum descobre a cabea e com o descomunal chapelo
apertado entre as mos pede, pelo amor de Deus, gua ou tortilla. Os
homens de Zapata, ndios de calas brancas e cartucheiras cruzadas no
peito, perambulam pelas ruas da cidade que os despreza e teme. Em
nenhuma casa so convidados a entrar. A trs por dois tropeam nas ruas
com os homens de Villa, tambm estrangeiros, perdidos, cegos.
Suave chiado de sandlias, chs-chs, chs-chs, nos degraus de mrmore;
ps que se assustam com o prazer do tapete; rostos olhando-se com
estranheza no espelho dos soalhos encerados; os homens de Zapata e Villa
entram no Palcio Nacional; e o percorrem como que pedindo desculpas, de
salo em salo. Pancho Villa se senta na dourada poltrona que foi trono de
Porfirio Daz, para ver o que se sente, e ao seu lado Zapata, roupa cheia de
bordados, com cara de estar sem estar, responde com murmrios s
perguntas dos jornalistas.
Os generais camponeses triunfaram, mas no sabem o que fazer com a
vitria:
Este rancho est muito grande para ns.
O poder assunto de doutores, ameaador mistrio que s os ilustrados
podem decifrar, os entendidos em alta poltica, os que dormem em
travesseiros maciozinhos.
Quando cai a noite, Zapata vai para um hotelzinho, a um passo da estrada
de ferro que leva sua terra, e Villa ao seu trem militar. Ao cabo de alguns
dias se despedem da Cidade do Mxico.
Os pees das fazendas, os ndios das comunidades, os prias do campo
descobriram o centro do poder e durante um tempinho o ocuparam, como
de visita, nas pontas dos ps, ansiosos por terminar o quanto antes essa
excurso lua. Alheios glria do triunfo, regressam, finalmente, para as
terras onde sabem andar sem se perder.
O herdeiro de Huerta, o general Venustiano Carranza, cujas estropiadas
tropas esto se recuperando com a ajuda dos Estados Unidos, no poderia
imaginar melhor notcia.
Cidade do Mxico, 1915. O QUASE-PODER - Uma batidinha de aldrava, entre
querendo e no querendo, e uma porta se entreabre: algum descobre a
cabea e com o descomunal chapelo apertado entre as mos pede, pelo
amor de Deus, gua ou tortilla. Os homens de Zapata, ndios de calas
brancas e cartucheiras cruzadas no peito, perambulam pelas ruas da cidade
que os despreza e teme. Em nenhuma casa so convidados a entrar. A trs
por dois tropeam nas ruas com os homens de Villa, tambm estrangeiros,
348

perdidos, cegos. Suave chiado de sandlias, chs-chs, chs-chs, nos


degraus de mrmore; ps que se assustam com o prazer do tapete; rostos
olhando-se com estranheza no espelho dos soalhos encerados; os homens
de Zapata e Villa entram no Palcio Nacional; e o percorrem como que
pedindo desculpas, de salo em salo. Pancho Villa se senta na dourada
poltrona que foi trono de Porfirio Daz, para ver o que se sente, e ao seu
lado Zapata, roupa cheia de bordados, com cara de estar sem estar,
responde com murmrios s perguntas dos jornalistas. Os generais
camponeses triunfaram, mas no sabem o que fazer com a vitria: Este
rancho est muito grande para ns. O poder assunto de doutores,
ameaador mistrio que s os ilustrados podem decifrar, os entendidos em
alta poltica, os que dormem em travesseiros maciozinhos. Quando cai a
noite, Zapata vai para um hotelzinho, a um passo da estrada de ferro que
leva sua terra, e Villa ao seu trem militar. Ao cabo de alguns dias se
despedem da Cidade do Mxico. Os pees das fazendas, os ndios das
comunidades, os prias do campo descobriram o centro do poder e durante
um tempinho o ocuparam, como de visita, nas pontas dos ps, ansiosos por
terminar o quanto antes essa excurso lua. Alheios glria do triunfo,
regressam, finalmente, para as terras onde sabem andar sem se perder. O
herdeiro de Huerta, o general Venustiano Carranza, cujas estropiadas tropas
esto se recuperando com a ajuda dos Estados Unidos, no poderia
imaginar melhor notcia.
Dajabn, 1937
PROCEDIMENTO CONTRA A AMEAA NEGRA
Os condenados so negros do Haiti, que trabalham na Repblica Dominicana. Um
dia e meio dura esta operao militar de exorcismo, planejada pelo general Trujillo
at o ltimo detalhe. Na regio dominicana do acar, os soldados encerram os
bias-frias haitianos nos currais, rebanhos de homens, mulheres e crianas, e os
liquidam ali mesmo a golpes de faco; amarram seus ps e mos e a ponta de
baioneta atiram-nos ao mar.
Trujillo, que passa p na cara vrias vezes por dia, quer que a Repblica
Dominicana seja branca.

Dajabn, 1937. PROCEDIMENTO CONTRA A AMEAA NEGRA - Os condenados so


negros do Haiti, que trabalham na Repblica Dominicana. Um dia e meio dura esta
operao militar de exorcismo, planejada pelo general Trujillo at o ltimo detalhe.
Na regio dominicana do acar, os soldados encerram os bias-frias haitianos nos
currais, rebanhos de homens, mulheres e crianas, e os liquidam ali mesmo a
golpes de faco; amarram seus ps e mos e a ponta de baioneta atiram-nos ao
mar. Trujillo, que passa p na cara vrias vezes por dia, quer que a Repblica
Dominicana seja branca.
Dajabon, 1937. PROCEDIMENTO CONTRA A AMEACA NEGRA - Os condenados sao
negros do Haiti, que trabalham na Republica Dominicana. Um dia e meio dura esta
operacao militar de exorcismo, planejada pelo general Trujillo ate o ultimo detalhe.

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Na regiao dominicana do acucar, os soldados encerram os boias-frias haitianos nos


currais, rebanhos de homens, mulheres e criancas, e os liquidam ali mesmo a
golpes de facao; amarram seus pes e maos e a ponta de baioneta atiram-nos ao
mar. Trujillo, que passa po na cara varias vezes por dia, quer que a Republica
Dominicana seja branca.

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Washington, 1939
NO ANO 9 DA ERA DE TRUJILLO
uma salva de vinte e um tiros de canho lhe d as boas-vindas na academia militar
de West Point. Trujillo se areja com um leque de marfim e cumprimenta abanando a
plumagem de avestruz do seu chapu.
Acompanha-o uma rechonchuda delegao de bispos, generais e cortess, um
mdico e um bruxo especialista em mau-olhado. Tambm o acompanha o
brigadeiro Ramfis Trujillo, de nove anos de idade, que arrasta uma espada mais
comprida que ele.
O general George Marshall oferece a Trujillo um banquete a bordo do Mayflower e o
presidente Roosevelt o recebe na Casa Branca. Legisladores, governadores e
jornalistas cobrem de louvores o estadista exemplar. Trujillo, que paga seus mortos
vista, tambm vista compra elogios, colocando os gastos no item Alpiste para
passarinhos do oramento do Poder Executivo da Repblica Dominicana.
Washington, 1939. NO ANO 9 DA ERA DE TRUJILLO uma salva de vinte e um tiros
de canho lhe d as boas-vindas na academia militar de West Point. Trujillo se areja
com um leque de marfim e cumprimenta abanando a plumagem de avestruz do seu
chapu. Acompanha-o uma rechonchuda delegao de bispos, generais e cortess,
um mdico e um bruxo especialista em mau-olhado. Tambm o acompanha o
brigadeiro Ramfis Trujillo, de nove anos de idade, que arrasta uma espada mais
comprida que ele. O general George Marshall oferece a Trujillo um banquete a
bordo do Mayflower e o presidente Roosevelt o recebe na Casa Branca.
Legisladores, governadores e jornalistas cobrem de louvores o estadista exemplar.
Trujillo, que paga seus mortos vista, tambm vista compra elogios, colocando
os gastos no item Alpiste para passarinhos do oramento do Poder Executivo da
Repblica Dominicana.

So Domingos, 1956
NO ANO 26 DA ERA DE TRUJILLO
sua imagem vendida nos mercados, entre os santinhos da Virgem Maria,
So Jorge e outros milagrosos:
Santos, santos baratos!
Nada do que dominicano alheio a Trujillo. Tudo pertence a ele: a primeira
noite das virgens e a ltima vontade dos moribundos, as pessoas e as
vacas, a frota de avies e a cadeia de prostbulos, os engenhos de acar e
os moinhos de trigo, a fbrica de cerveja e a fbrica engarrafadora de
poes da virilidade.
H vinte e seis anos, Trujillo exerce a vice-presidncia de Deus na Repblica
Dominicana. A cada quatro anos, a frmula que foi abenoada em
democrticas eleies: Deus e Trujillo, proclamada nos cartazes em todos os
muros e em todas as portas.
Em sua obra Meditaes Morais, que lhe valeu o ttulo de Primeira-Dama das
Letras Antilhanas, dona Maria de Trujillo comparou seu marido com El Cid e
351

com Napoleo Bonaparte. A rechonchuda dona Maria, que durante a


semana pratica a usura e aos domingos a mstica, foi por sua vez
comparada a Santa Tereza de Jesus pela crtica local.
Com espada de El Cid ou chapu de Napoleo, Trujillo posa para as
esttuas. As esttuas o multiplicam em bronze ou mrmore, com o queixo
que no tem e sem a papada que tem. Milhares de esttuas: do alto dos
pedestais, Trujillo cavalga e vigia at o ltimo canto de cada cidade ou
povoado. Neste pas no h nem uma mosca que cague sem a sua licena.
So Domingos, 1956. NO ANO 26 DA ERA DE TRUJILLO sua imagem
vendida nos mercados, entre os santinhos da Virgem Maria, So Jorge e
outros milagrosos: Santos, santos baratos!
Nada do que dominicano alheio a Trujillo. Tudo pertence a ele: a primeira
noite das virgens e a ltima vontade dos moribundos, as pessoas e as
vacas, a frota de avies e a cadeia de prostbulos, os engenhos de acar e
os moinhos de trigo, a fbrica de cerveja e a fbrica engarrafadora de
poes da virilidade. H vinte e seis anos, Trujillo exerce a vice-presidncia
de Deus na Repblica Dominicana. A cada quatro anos, a frmula que foi
abenoada em democrticas eleies: Deus e Trujillo, proclamada nos
cartazes em todos os muros e em todas as portas. Em sua obra Meditaes
Morais, que lhe valeu o ttulo de Primeira-Dama das Letras Antilhanas, dona
Maria de Trujillo comparou seu marido com El Cid e com Napoleo
Bonaparte. A rechonchuda dona Maria, que durante a semana pratica a
usura e aos domingos a mstica, foi por sua vez comparada a Santa Tereza
de Jesus pela crtica local. Com espada de El Cid ou chapu de Napoleo,
Trujillo posa para as esttuas. As esttuas o multiplicam em bronze ou
mrmore, com o queixo que no tem e sem a papada que tem. Milhares de
esttuas: do alto dos pedestais, Trujillo cavalga e vigia at o ltimo canto de
cada cidade ou povoado. Neste pas no h nem uma mosca que cague sem
a sua licena.
So Domingos, 1961
NO ANO 31 DA ERA TRUJILLO
O peso de papel uma luva de beisebol de porcelana, entre dourados
cupidos e danarinas. Rodeado de bustos de Trujillo e fotos de Trujillo,
Trujillo passa em revista as ltimas listas de conspiradores, enviadas por
seus espies. Com mo desdenhosa risca alguns nomes de homens e
mulheres que no amanhecero, enquanto os torturadores arrancam novos
nomes dos presos que uivam na fortaleza de Ozama.
As listas inspiram em Trujillo tristes reflexes. cabea dos conspiradores
figuram o embaixador dos Estados Unidos e o arcebispo primaz das ndias,
que at ontem mesmo partilhavam de seu governo. O Imprio e a Igreja
renegam agora o filho to fiel, que tornou-se inapresentvel aos olhos do
mundo, e cospem em sua mo prdiga. Di muito tamanha ingratido no
autor do desenvolvimento capitalista da Repblica Dominicana. E ainda
352

assim, de todas as condecoraes penduradas em seu peito e na sua


barriga e nas paredes, Trujillo continua preferindo a Gr-Cruz da Ordem de
So Gregrio Magno, outorgada pelo Vaticano, e a medalhinha que h
muitos anos compensou seus servios Infantaria da Marinha dos Estados
Unidos.
At a morte ser Sentinela do Ocidente, apesar de todos os pesares, o
homem que foi oficialmente chamado de Benfeitor da Ptria, Salvador da
Ptria, Pai da Ptria, Restaurador da Independncia Financeira, Campeo da
Paz Mundial, Protetor da Cultura, Primeiro Anticomunista das Amricas, Lder
Egrgio, Ilustrssimo e Generalssimo.
So Domingos, 1961. NO ANO 31 DA ERA TRUJILLO - O peso de papel uma
luva de beisebol de porcelana, entre dourados cupidos e danarinas.
Rodeado de bustos de Trujillo e fotos de Trujillo, Trujillo passa em revista as
ltimas listas de conspiradores, enviadas por seus espies. Com mo
desdenhosa risca alguns nomes de homens e mulheres que no
amanhecero, enquanto os torturadores arrancam novos nomes dos presos
que uivam na fortaleza de Ozama. As listas inspiram em Trujillo tristes
reflexes. cabea dos conspiradores figuram o embaixador dos Estados
Unidos e o arcebispo primaz das ndias, que at ontem mesmo partilhavam
de seu governo. O Imprio e a Igreja renegam agora o filho to fiel, que
tornou-se inapresentvel aos olhos do mundo, e cospem em sua mo
prdiga. Di muito tamanha ingratido no autor do desenvolvimento
capitalista da Repblica Dominicana. E ainda assim, de todas as
condecoraes penduradas em seu peito e na sua barriga e nas paredes,
Trujillo continua preferindo a Gr-Cruz da Ordem de So Gregrio Magno,
outorgada pelo Vaticano, e a medalhinha que h muitos anos compensou
seus servios Infantaria da Marinha dos Estados Unidos. At a morte ser
Sentinela do Ocidente, apesar de todos os pesares, o homem que foi
oficialmente chamado de Benfeitor da Ptria, Salvador da Ptria, Pai da
Ptria, Restaurador da Independncia Financeira, Campeo da Paz Mundial,
Protetor da Cultura, Primeiro Anticomunista das Amricas, Lder Egrgio,
Ilustrssimo e Generalssimo.

So Domingos, 1961
O FALECIDSSIMO
deixa como herana um pas inteiro, alm de nove mil e seiscentas
gravatas, dois mil ternos, trezentos e cinqenta uniformes e seiscentos
pares de sapatos em seus armrios de So Domingos, e quinhentos e trinta
milhes de dlares, em suas contas particulares na Sua.
Rafael Lenidas Trujillo caiu numa emboscada, crivado em seu automvel.
Seu filho, Ramfis, voa de Paris para cuidar da herana, do enterro e da
vingana.
Ramfis Trujillo, colega e amigo de Porfrio Rubirosa, adquiriu certa
353

notoriedade desde sua recente misso cultural em Hollywood. Ali,


obsequiou automveis Mercedes-Benz e casacos de vison e chinchila a Kim
Novak e Zsa Zsa Gabor, em nome do faminto mas generoso povo
dominicano.
So Domingos, 1961. O FALECIDSSIMO deixa como herana um pas inteiro,
alm de nove mil e seiscentas gravatas, dois mil ternos, trezentos e
cinqenta uniformes e seiscentos pares de sapatos em seus armrios de
So Domingos, e quinhentos e trinta milhes de dlares, em suas contas
particulares na Sua. Rafael Lenidas Trujillo caiu numa emboscada, crivado
em seu automvel. Seu filho, Ramfis, voa de Paris para cuidar da herana,
do enterro e da vingana.
Ramfis Trujillo, colega e amigo de Porfrio Rubirosa, adquiriu certa
notoriedade desde sua recente misso cultural em Hollywood. Ali,
obsequiou automveis Mercedes-Benz e casacos de vison e chinchila a Kim
Novak e Zsa Zsa Gabor, em nome do faminto mas generoso povo
dominicano.

Cidade do Mxico, 1937


CRDENAS
O Mxico no lava as mos frente guerra da Espanha. Lzaro Crdenas,
raro presidente amigo do silncio proclama sua solidariedade, mas
sobretudo a pratica: envia armas frente republicana, atravs do mar, e
recebe as crianas rfs que os barcos trazem aos montes.
Crdenas governa escutando. andarilho e escutador: de povoado em
povoado caminha, conhecendo queixas e necessidades com infinita
pacincia, e nunca promete mais do que faz. At Crdenas, a arte de
governar no Mxico consistia em mover a lngua; mas ele diz sim ou no e
todo mundo acredita. No vero do ano passado anunciou a reforma agrria
e desde ento no parou de entregar terras s comunidades indgenas.
Os que transformaram a revoluo em negcio odeiam-no cordialmente.
Dizem que Crdenas cala porque se esqueceu da lngua castelhana, de
tanto andar entre os ndios, e que qualquer dia destes vai aparecer vestindo
tanga e plumagens.
Cidade do Mxico, 1937. CRDENAS - O Mxico no lava as mos frente
guerra da Espanha. Lzaro Crdenas, raro presidente amigo do silncio
proclama sua solidariedade, mas sobretudo a pratica: envia armas frente
republicana, atravs do mar, e recebe as crianas rfs que os barcos
trazem aos montes. Crdenas governa escutando. andarilho e escutador:
de povoado em povoado caminha, conhecendo queixas e necessidades com
infinita pacincia, e nunca promete mais do que faz. At Crdenas, a arte de
governar no Mxico consistia em mover a lngua; mas ele diz sim ou no e
todo mundo acredita. No vero do ano passado anunciou a reforma agrria
354

e desde ento no parou de entregar terras s comunidades indgenas. Os


que transformaram a revoluo em negcio odeiam-no cordialmente. Dizem
que Crdenas cala porque se esqueceu da lngua castelhana, de tanto andar
entre os ndios, e que qualquer dia destes vai aparecer vestindo tanga e
plumagens.

Anenecuilo, 1938
NICOLS, FILHO DE ZAPATA
Antes que ningum, antes mais que ningum, os camponeses de
Anenecuilco lutaram pela terra; e depois de muito sangue continua mais ou
menos na mesma a comunidade onde Emiliano Zapata nasceu e se rebelou.
No centro da luta dos camponeses h um punhado de papis, mordidos
pelas traas e pelos sculos. Esses documentos provam, com cunho do vicerei, que esta comunidade dona de sua comarca. Emiliano Zapata os havia
deixado nas mos de um de seus soldados, Pancho Franco:
Se perder isso, compadre, vai secar pendurado num galho.
Vrias vezes Pancho Franco salvou por um triz os papis e a vida. Vrias
vezes teve de buscar refgio nas montanhas, frente aos avanos dos
militares e dos politiqueiros.
O melhor amigo da comunidade o presidente Lzaro Crdenas, que veio a
Anenecuilco, escutou os camponeses e reconheceu e ampliou seus direitos.
O pior inimigo da comunidade o voraz deputado Nicols Zapata, o filho
maior de Emiliano, que apoderou-se das melhores terras e quer ficar
tambm com as piores.
Anenecuilo, 1938. NICOLS, FILHO DE ZAPATA - Antes que ningum, antes
mais que ningum, os camponeses de Anenecuilco lutaram pela terra; e
depois de muito sangue continua mais ou menos na mesma a comunidade
onde Emiliano Zapata nasceu e se rebelou. No centro da luta dos
camponeses h um punhado de papis, mordidos pelas traas e pelos
sculos. Esses documentos provam, com cunho do vice-rei, que esta
comunidade dona de sua comarca. Emiliano Zapata os havia deixado nas
mos de um de seus soldados, Pancho Franco: Se perder isso, compadre,
vai secar pendurado num galho. Vrias vezes Pancho Franco salvou por um
triz os papis e a vida. Vrias vezes teve de buscar refgio nas montanhas,
frente aos avanos dos militares e dos politiqueiros. O melhor amigo da
comunidade o presidente Lzaro Crdenas, que veio a Anenecuilco,
escutou os camponeses e reconheceu e ampliou seus direitos. O pior
inimigo da comunidade o voraz deputado Nicols Zapata, o filho maior de
Emiliano, que apoderou-se das melhores terras e quer ficar tambm com as
piores.
Boston, 1953

355

A UNITED FRUIT
Trono de bananas, uma banana empunhada guisa de cetro: Sam
Zemurray, senhor de terras e mares do reino da banana, no achava que
seus vassalos da Guatemala pudessem provocar-lhe dores de cabea:
Os ndios so demasiado ignorantes para o marxismo costumava dizer,
e era aplaudido pelos burocratas da corte em seu palcio real de Boston,
Massachusetts.
A Guatemala forma parte dos vastos domnios da United Fruit Company h
meio sculo, por obra e graa de sucessivos decretos de Manuel Estrada
Cabrera, que governou rodeado de adules e espies, lagos de baba,
bosques de orelhas, e de Jorge Ubico, que achava que era Napoleo mas
no era no. A United Fruit tem na Guatemala as terras que quiser, imensos
campos baldios, e dona da estrada de ferro, do telefone, do telgrafo, dos
portos, dos barcos e de muitos militares, polticos e jornalistas.
As infelicidades de Sam Zemurray comearam quando o presidente Juan
Jos Arvalo obrigou a empresa a respeitar o sindicato e o direito de greve.
Mas agora pior: o novo presidente, Jacobo Arbenz, pe em marcha a
reforma agrria, arranca da United Fruit as terra no cultivadas, comea a
reparti-las entre cem mil famlias e atua como se na Guatemala mandassem
os sem-terra, os sem-po, os sem.
Boston, 1953. A UNITED FRUIT - Trono de bananas, uma banana
empunhada guisa de cetro: Sam Zemurray, senhor de terras e mares do
reino da banana, no achava que seus vassalos da Guatemala pudessem
provocar-lhe dores de cabea: Os ndios so demasiado ignorantes para o
marxismo costumava dizer, e era aplaudido pelos burocratas da corte em
seu palcio real de Boston, Massachusetts. A Guatemala forma parte dos
vastos domnios da United Fruit Company h meio sculo, por obra e graa
de sucessivos decretos de Manuel Estrada Cabrera, que governou rodeado
de adules e espies, lagos de baba, bosques de orelhas, e de Jorge Ubico,
que achava que era Napoleo mas no era no. A United Fruit tem na
Guatemala as terras que quiser, imensos campos baldios, e dona da
estrada de ferro, do telefone, do telgrafo, dos portos, dos barcos e de
muitos militares, polticos e jornalistas. As infelicidades de Sam Zemurray
comearam quando o presidente Juan Jos Arvalo obrigou a empresa a
respeitar o sindicato e o direito de greve. Mas agora pior: o novo
presidente, Jacobo Arbenz, pe em marcha a reforma agrria, arranca da
United Fruit as terra no cultivadas, comea a reparti-las entre cem mil
famlias e atua como se na Guatemala mandassem os sem-terra, os sempo, os sem.
Cidade da Guatemala, 1953
ARBENZ
O presidente Truman botou a boca no mundo quando os trabalhadores
356

comearam a ser pessoas nas plantaes de banana da Guatemala. E agora


o presidente Eisenhower cospe relmpagos frente expropriao da United
Fruit.
O governo dos Estados Unidos considera um atropelo o fato de que o
governo da Guatemala leva a srio os livros de contabilidade da United
Fruit. Arbenz pretende pagar, como indenizao, o valor que a prpria
empresa tinha atribudo s suas terras para fraudar impostos. John Foster
Dulles, secretrio de Estado, exige vinte e cinco vezes mais.
Jacobo Arbenz, acusado de conspirao comunista, no se inspira em Lenin
e sim em Abraham Lincoln. Sua reforma agrria, que se prope a
modernizar o capitalismo na Guatemala, mais moderada que as leis rurais
norte-americanas de quase um sculo atrs.
Cidade da Guatemala, 1953. ARBENZ - O presidente Truman botou a boca
no mundo quando os trabalhadores comearam a ser pessoas nas
plantaes de banana da Guatemala. E agora o presidente Eisenhower
cospe relmpagos frente expropriao da United Fruit. O governo dos
Estados Unidos considera um atropelo o fato de que o governo da
Guatemala leva a srio os livros de contabilidade da United Fruit. Arbenz
pretende pagar, como indenizao, o valor que a prpria empresa tinha
atribudo s suas terras para fraudar impostos. John Foster Dulles, secretrio
de Estado, exige vinte e cinco vezes mais. Jacobo Arbenz, acusado de
conspirao comunista, no se inspira em Lenin e sim em Abraham Lincoln.
Sua reforma agrria, que se prope a modernizar o capitalismo na
Guatemala, mais moderada que as leis rurais norte-americanas de quase
um sculo atrs.
Washington, 1954
A MQUINA DE DECIDIR, PEA POR PEA
DWIGHT EISENHOWER Presidente dos Estados Unidos. Derrubou o governo
de Mohammed Mossadegh, no Ir, porque tinha nacionalizado o petrleo.
Mandou derrubar tambm o governo de Jacobo Arbenz, na Guatemala.
SAM ZEMURRAY Principal acionista da United Fruit. Todas as suas
inquietaes se transformam automaticamente em declaraes do governo
dos Estados Unidos e em rifles, morteiros, metralhadoras e avies da CIA.
JOHN FOSTER DULLES Secretrio de Estado dos Estados Unidos. Foi
advogado da United Fruit.
ALLEN DULLES Diretor da CIA. Irmo de John Foster Dulles. Como o irmo,
presto servios jurdicos United Fruit. Juntos organizaram a Operao
Guatemala.
JOHN MOORS CABOT Secretrio de Estado para Assuntos Interamericanos.
Irmo de Thomas Cabot, que foi presidente da United Fruit.
BEDEL SMITH Subsecretrio de Estado. Serve como element de ligao na
Operao Guatemala. Futuro membro da diretoria da United Fruit.
HENRY CABOT LODGE Senador. Representante dos Estados Unidos na ONU.
357

Acionista da United Fruit. Em vrias ocasies recebeu dinheiro desta


empresa, a troco de discursos no Senado.
ANNE WHITMAN Secretria pessoal do presidente Eisenhower. Casada com
o chefe de relaes pblicas da United Fruit.
SPRUILLE BRADEN Foi embaixador dos estados unidos em vrios pases
latino-americanos. Recebe salrio da United Fruit desde 1948. Exorta
Eisenhower, com grande eco na imprensa, a sumprimir pela fora o
comunismo na Guatemala.
ROBERT HILL Embaixador dos Estados Unidos na Costa Rica. Colabora com
a operao Guatemala. Futuro membro da diretoria da United Fruit.
JOHN PEURIFOY Embaixador dos Estados Unidos na Guatemala. Chamado
de O Carniceiro da Grcia, graas sua anterior gesto diplomtica em
Atenas. No fala uma palavra em espanhol. Formou-se politicamente no
Senado, em Washington, onde trabalhou como ascensorista.
Washington, 1954. A MQUINA DE DECIDIR, PEA POR PEA - DWIGHT
EISENHOWER Presidente dos Estados Unidos. Derrubou o governo de
Mohammed Mossadegh, no Ir, porque tinha nacionalizado o petrleo.
Mandou derrubar tambm o governo de Jacobo Arbenz, na Guatemala. SAM
ZEMURRAY Principal acionista da United Fruit. Todas as suas inquietaes
se transformam automaticamente em declaraes do governo dos Estados
Unidos e em rifles, morteiros, metralhadoras e avies da CIA. JOHN FOSTER
DULLES Secretrio de Estado dos Estados Unidos. Foi advogado da United
Fruit. ALLEN DULLES Diretor da CIA. Irmo de John Foster Dulles. Como o
irmo, presto servios jurdicos United Fruit. Juntos organizaram a
Operao Guatemala. JOHN MOORS CABOT Secretrio de Estado para
Assuntos Interamericanos. Irmo de Thomas Cabot, que foi presidente da
United Fruit. BEDEL SMITH Subsecretrio de Estado. Serve como element
de ligao na Operao Guatemala. Futuro membro da diretoria da United
Fruit. HENRY CABOT LODGE Senador. Representante dos Estados Unidos na
ONU. Acionista da United Fruit. Em vrias ocasies recebeu dinheiro desta
empresa, a troco de discursos no Senado. ANNE WHITMAN Secretria
pessoal do presidente Eisenhower. Casada com o chefe de relaes pblicas
da United Fruit. SPRUILLE BRADEN Foi embaixador dos estados unidos em
vrios pases latino-americanos. Recebe salrio da United Fruit desde 1948.
Exorta Eisenhower, com grande eco na imprensa, a sumprimir pela fora o
comunismo na Guatemala. ROBERT HILL Embaixador dos Estados Unidos
na Costa Rica. Colabora com a operao Guatemala. Futuro membro da
diretoria da United Fruit. JOHN PEURIFOY Embaixador dos Estados Unidos
na Guatemala. Chamado de O Carniceiro da Grcia, graas sua anterior
gesto diplomtica em Atenas. No fala uma palavra em espanhol. Formouse politicamente no Senado, em Washington, onde trabalhou como
ascensorista.
Quito, 1912
ALFARO
Uma mulher alta, toda vestida de negro, amaldioa o presidente Alfaro
enquanta crava o punhal em seu cadver. Depois levanta na ponta de um
pau, bandeira ondulante, o ensangentado farrapo de sua camisa.
Atrs da mulher de negro, marcham os vingadores da Santa Me Igreja.
Com cordas vo arrastando, pelos ps, o morto despido. Das janelas
358

chovem flores. Gritam vivas religio as velhas come-santos, engolehstias, espalha-intrigas. Alagam-se de sangue as ruas empedradas, que os
ces e as chuvas nunca podero lavar at o fim. A carnificina culmina em
fogo. Acende-se uma grande fogueira e nela atiram o que sobra do velho
Alfaro. Depois pisam suas cinzas os assassinos e ladres pagos pelos filhos
dos senhores.
Eloy Alfaro tinha ousado desapropriar as terras da Igreja, dona de muito
Equador, e com suas rendas tinha criado escolas e hospitais. Amigo de
Deus, no do Papa, tinha implantado o divrcio e tinha liberado os ndios
presos por dvidas. Ningum era to odiado pela batina e to temido pelos
de casaca.
Cai a noite. Fede a carne queimada o ar de Quito. A banda militar toca
valsas e marchas no coreto da Praa Grande, como em todos os domingos.
Painala, 1523
A MALINCHE
De Corts teve um filho, e para Corts abriu as portas de um imprio. Foi
sua sombra e vigia, intrprete, conselheira, mensageira e amante, tudo isso
ao longo da conquista do Mxico; e continua cavalgando ao seu lado.
Passa por Painala vestida de espanhola, veludos, sedas, cetins, e no
princpio ningum reconhece a florida senhora que vem com os novos amos.
Do alto de um cavalo alazo, a Malinche passeia o seu olhar pelas margens
do rio, respira fundo o aroma adocicado do ar e busca, em vo, os rinces
da folhagem onde h mais de vinte anos descobriu a magia e o medo.
Passaram-se muitas chuvas e vendavais e penas e pesares desde que sua
me a vendeu como escrava e foi arrancada da terra mexicana para servir
aos senhores maias de Yucatn.
Quando a me descobre quem a que chegou de visita a Painala, se atira
aos seus ps e se banha em lgrimas suplicando perdo. A Malinche detm
a choradeira com um gesto, levanta sua me pelos ombros, abraa-a e
pendura em seu pescoo os colares que usa. Depois, monta o cavalo e
segue o seu caminho junto aos espanhis.
No necessita odiar sua me. Desde que os senhores de Yucatn a deram
de presente a Hernn Corts h quatro anos a Malinche teve tempo de
vingar-se. A dvida est paga: os mexicanos se inclinam e tremem quando a
vem chegar. Basta um olhar de seus olhos negros para que um prncipe
balance na forca. Sua sombra flutuar, alm da morte, sobre a grande
Tenochtitln, que ela tanto ajudou a derrotar e a humilhar. E seu fantasma
de cabelos soltos e tnica flutuante continuar metendo medo, para
sempre, saindo dos bosques e grutas de Chapultepec.
Granada, 1499
QUEM SO OS ESPANHIS?
As mesquistass continuam abertas em Granada, sete anos deepois da
rendio deste ltimo reduto dos mouros na Espanha. lento o avano da
cruz depois da vitria da espada. O arcebispo Cisneros decide que Cristo
no pode esperar.
Mouros chamam os espannhis cristos os espanhis de cultura islmica,
que levam aqui oito sculos. Milhares e milhares de espanhis de origem
judia j foram condenados ao desterro. Aos mouros tambm ser dado
359

escolher entre o batismo e o exlio; e para os falsos convertidos ardem as


fogueiras da Inquisio. A unidade da Espanha, desta Espanha que
descobriu a Amrica, no ser o resultado da soma de suas partes.
Por ordem do arcebispo Cisneros, marcham para a priso os sbios
muulmanos de Granada. Altas chamas devoram os livros islmicos, religio
e poesia, filosofia e cincia, exemplares nicos que guardavam as palavras
de uma cultura que regous estas terras e nelas floresceu.
Do alto, os lavrados palcios da Alhambra so testemunhas mudas do
avassalamento, enquanto as fontes no param de dar gua aos jardins.
Rio Sin, 1514
O REQUERIMENTO
Navegaram muito mar e tempo e esto fartos de calores, selvas e
mosquitos. Cumprem, mesmo assim, as instrues do rei: no se pode
atacar os ndios sem requerer, antes, sua submisso. Santo Agostinho
autoriza a guerra contra os que abusam de sua liberdade, porque em sua
liberdade perigariam no sendo domados; mas bem diz So Isidoro que
nenhuma guerra justa sem prvia declarao.
Antes de lanar-se sobre o ouro, os gros de ouro talvez grandes como ovos,
o advogado Martin Ferndez de Enciso l com pontos e vrgulas o ultimato
que o intrprete, aos tropeos, demorando-se na entregas vai traduzindo.
Enciso fala em nome do rei Don Fernando e da rainha dona Joana sua filha,
domadores de gentes brbaras. Faz saber aos ndios do Sin que Deus veio
ao mundo e deixou em seu lugar So Pedro, que So Pedro tem por sucessor
o Santo Padre, e que o Santo Padre, Senhor do Universo, fez merc ao rei de
Castela de toda a terra das ndias e desta pennsula.
Os soldados se assam nas armaduras. Enciso, letra mida e slaba lenta,
requer dos ndios que deixem estas terras, pois no lhes pertencem, e
adverte que se quiserem ficar para viverem aqui, que paguem a Suas
Altezas tributo de ouro em sinal de obedincia. O intrprete faz o que pode.
Os dois caciques escutam em silncio, sem pestanejar, o estranho
personagem que lhes anuncia que em caso de negativa ou demora lhes
far a guerra, e que os converter em escravos e tambm suas mulheres e
seus filhos, e como tais os vender e dispor deles, e que as mortes e danos
desta guerra justa no sero culpa dos espanhis.
Respondem os caciques, sem olhar para Enciso, que muito generoso com o
alheio foi o Santo Padre, que bbado devia estar quando disps do que no
era seu, e que o rei de Castela um atrevido, porque vem ameaar a quem
no conhece.
Ento, corre o sangue.
De agora em diante, o longo discurso ser lido em plena noite, sem
intrprete e a meia lgua das aldeias que sero arrasadas de surpresa. Os
indgenas adormecidos no escutaram as palavras que os declaram
culpados pelos crimes cometidos contra eles.
Barcelona, 1533
AS GUERRAS SANTAS
Da Amrica chegam os heraldos da boa nova. O imperador fecha os olhos e
assiste o avano das velas e sente o cheiro do breu e do sal. Respira o
imperador contra o mar, mar cheia, mar vazia; e sopra para apressar os
360

navios inchados de tesouros.


A Providncia acaba de dar-lhe de presente um novo reino, onde o ouro e a
prata abundam como o ferro em Vizcaya. O assombroso tesouro est a
caminho. Com ele poder tranqilizar os banqueiros que o enforcam e
poder finalmente pagar os seus soldados, lanceiros suos, mercenrios
alemes, infantes espanhis, que no vem uma moeda nem em sonhos. O
resgate de Atahualpa financiar as guerras santas contra a meia-lua do Isl,
que chegou s portas de Viena, e contra os hereges que seguem Lutero na
Alemanha. O imperador armar uma grande frota para varrer do
Mediterrneo o sulto Solimo e o velho pirata Barba Roxa.
O espelho devolve ao imperador a imagem do deus da guerra: a armadura
adamascada, com rendas cinzeladas ao bordo da gola e da couraa, o casco
de plumas, o rosto iluminado pelo sol da glria: as sobrancelhas ao ataque
sobre os olhos melanclicos, o barbudo queixo lanado para a frente. O
imperador sonha com Argel e escuta o chamado de Constantinopla. Tunes,
cada em mos infiis, tambm espera pelo general de Jesus Cristo.
Cidade Real de Chiapas, 1545
DE VALLA DOLID CHEGA A M NOTCIA
A coroa espanhola suspendeu as mais importantes leis novas, que faziam
dos ndios homens livres.
Enquanto duraram, apenas trs anos, quem as cumpriu? Na realidade
continuam sendo escravos at os ndios que levam marcada no brao, em
carne viva, a palavra livre.
- Para isto me deram razo?
Frei Bartolom sente-se abandonado por Deus, folha sem galho, solitrio e
ningum.
- Me disseram que sim para que nada mude. Agora, nem o papel proteger
os que no tm mais escudos que seus ventres. Para isso receberam os reis
o Novo Mundo das mos do Papa? Deus mero pretexto? Esta sombra de
verdugo sai de meu corpo?
Acocorado em uma manta, escreve uma carta ao prncipe Felipe. Anuncia
que viajar a Valladolid sem esperar resposta ou licena.
Depois, Frei Bartolom se ajoelha sobre a esteira, de cara para a noite, e
reza em voz alta uma orao inventada.
Yuste, 1558
QUEM SOU EU, QUEM TEREI SIDO
Respirar uma faanha e a cabea arde. J no caminham os ps inchados
pela gota. Deitado no terrao, o que foi monarca de metade do mundo
espanta os bufes e contempla o crepsculo neste vale da Extremadura. O
sol j se vai, alm da serra roxa, e os ltimos reflexos pintam de vermelho
as sombras sob o convento dos jernimos.
Com passo de vencedor entrou em muitas cidades. Foi aclamado e odiado.
Muitos deram a vida por ele; e muitos mais arrancaram a vida em seu
nome. Depois de quarenta anos de viajar e lutar, o mais alto prisioneiro de
seu prprio imprio quer descanso e esquecimento. Hoje fez que
celebrassem uma missa de rquiem por si prprio. Quem sou, quem terei
sido? Pelo espelho, viu entrar a morte. O que mente ou o mentido?
361

Entre batalha e batalha, luz das fogueiras, assinou mais de quatrocentos


emprstimos com banqueiros alemes, genoveses e flamengos, e nunca
trouxeram bastante ouro e prata os galees da Amrica. Ele, que tanto
amava a msica, escutou mais estrondos de canhes e cavalos que
melodias de alades; e no fim de tanta guerra, seu filho, Felipe, herda um
imprio em bancarrota.
Atravs da nvoa, pelo norte, Carlos tinha chegado Espanha aos
dezessete anos, seguido ppor seu squito de mercadores flamengos e
banqueiros alemes, em uma infinita caravana de carretas e cavalos.
Naquele ento ele no sabia nem cumprimentar na lngua de Castela. Mas
amanh escolher esta lngua para despedir-se:
- Ai, Jesus! sero as suas ltimas palavras.
Nova Valencia do Rei, 1561
AGUIRRE

No centro do palco, machado na mo, aparece Lope de Aguirre rodeado de


dezenas de espelhos. O perfil do rei Felipe II se recorta, negro, imenso, sobre o
pano de fundo.
LOPE DE AGUIRRE falando ao pblico. Caminhando nossa derrota, e passando
por mortes e desventuras, tardamos mais de dez meses e meio em chegar boca
do rio das Amazonas, que rio grande e temeroso e mal afortunado. Depois,
tomamos posse da ilha Margarita. Ali cobrei em forca ou porrete vinte e cinco
traies. E depois, abrimos passo em terra firme. Tremem de medo os soldados do
rei Felipe! Logo sairemos da Venezuela... Logo entraremos triunfantes no reino do
Peru! (D a volta e enfrenta sua prpria imagem, de dar pena, em um dos
espelhos.) Eu fiz de dom Fernando de Guzmn rei no rio das Amazonas! (Ergue o
machado e parte o espelho.) Eu o fiz rei e eu o matei! E o capito de sua guarda e
o tenente-general e quatro capites! (Enquanto fala, vai despedaando todos os
espelhos, um atrs do outro). E seu mordomo e seu capito capelo! E uma
mulher que estava contra mim, e um comendador de Rodas, e um almirante... e
seis outros aliados!... capites e sargento-mor! E quiseram me matar e os
enforquei! (Pulveriza os ltimos espelhos.) Matei todos! Todos! (Senta-se, muito
sufocado, no cho coberto de cristais. Nas mos, vertisal, o machado. O olhar
perdido. Longo silncio.) Em minha mocidade passei o oceano indo s terras do
Peru, por valer mais com a lana na mo... Um quarto de sculo!... Mistrios,
misrias... Eu cavei cemitrios arrancando para outros pratarias e xcaras de
ouro... Montei forca no centro de cidades no nascidas... A cavalo, persegui
multides... Os ndios fugindo apavorados atravs das chamas. Cavaleiros de
pomposo ttulo e emprestadas roupas de seda, filhos de sei l quem, filhos de
ningum, agonizando na selva, raivosos, mordendo terra, o sangue envenenado
pelos dardos... Na cordilheira, guerreiros de armadura de ao atravessados de
lado a lado por vendavais mais violentos que qualquer tiro de arcabuz... Muitos
encontraram sepultura no ventre dos abutres.... Muitos ficaram amarelos como o
362

ouro que buscavam... A pele amarela, os olhos amarelos.... E o ouro... (Deixa cair
o machado. Abre com dificuldade as mos, que so como garras. Mostra as
palmas.) Desvanecido... Ouro que virou sombra ou orvalho... (Olha com estupor.
Fica mudo por longos momentos. De repente, se levanta. De costas para o pblico,
ergue o punho seco e torto contra a enorme sombra de Felipe II, projetada, a barba
em ponta, no pano de fundo.) Poucos reis vo ao inferno, porque poucos sois!
(Caminha at o pano de fundo arrastando sua perna manca.) Ingrato! Eu perdi
meu corpo defendendo-te contra os rebeldes do Peru! Te entreguei uma perna e
um olho e estas mos que pouco me servem! Agora, o rebelde sou eu! Rebelde
at a morte, por tua ingratido! (Encara o pblico, desembainha a espada.) Eu,
Prncipe dos rebeldes! Lope de Aguirre o Peregrino, Ira de Deus, Caudilho dos
feridos! No te necessitamos, rei da Espanha! (Se acendem luzes coloridas sobre
vrios pontos do palco.) No deixaremos com vida ministro teu! (Se atira, com a
espada na mo, contra um facho de luz avermelhada.) Auditores, governadores,
presidentes, vice-reis! Guerra de morte contra os alcagetes cortesos! (O facho
de luz continua em seu lugar, indiferente espada que o corta.) Usurpadores!
Ladres! (A espada fere o ar.) Vs destrustes as ndias! (Avana contra o facho de
luz dourada.) Letrados, tabelies, caga-tintas! At quando haveremos de sofrer
vossos roubos nestas terras por ns ganhadas? (As cuteladas atravessam um
facho de luz branca.) Frades, bispos, arcebispos! Vs no quereis enterrar nenhum
ndio pobre! Por penitncia tens na cozinha uma dzia de moas! Traficantes!
Traficantes de sacramentos! Ladres! (E assim continua o intil torvelinho da
espada contra os fachos de luz imvel, que se multiplicam no palco. Aguirre vai
perdendo as foras e parece cada vez mais solitrio e pequenino).

DA CARTA DE LOPE DE AGUIRRE A FELIPE II


... J de fato percebemos neste reino quanto de cruel s e quebrantador de
f e palavra, e assim temos nesta terra tuas promessas por menos crdito
que os livros de Martinho Lutero, pois teu Vice-rei Marqus de Canete
enforcou Martin de Robles, homem destacado a teu servio, e o bravoso
Tomas Vzquez, conquistador do Peru, e o triste Alonso Deaz, que trabalhou
mais no descobrimento deste reino que os exploradores de Moiss no
deserto...
Olha, olha, rei espanhol, que no sejas cruel a teus vassalos nem ingrato,
pois estando tu e teu pai nos reinos de Espanha sem nenhuma tristeza, te
deram teus vassalos a custa de seu sangue e sua fazenda tantos reinos e
363

senhorios quanto nestas partes tens, e olha, rei e senhor, que no podes
levar com ttulo de rei justo nenhum interesse destas partes onde no
aventurastes nada, sem que primeiro os que nisso trabalharam e suaram
sejam gratificados...
Ai, ai que pena to grande que Csar e Imperador teus pai conquistasse
com as foras de Espanha a soberba Germania e gastasse tanta moeda
levada destas ndias descobertas por ns, que no te apiedes de nossa
velhice e cansao sequer para matar-nos a fome um dia!...

La Florida, 1521
PONCE DE LEN
Estava velho, ou se sentia. O tempo no seria suficiente, nem agentaria
cansado corao. Juan Ponce de Len queria descobrir e conquistar o mundo
invicto que as ilhas da Flrida tinham anunciado para ele. Pela grandeza de
suas faanhas, queria deixar an a lembrana de Cristvo Colombo.
Aqui desembarcou, perseguindo o rio mgico que atravessa o jardim das
delcias. No lugar da fonte da juventude, encontrou esta flecha que lhe
atravessa o peito. Nunca se banhar nas guas que devolvem o brio dos
msculos e o brilho dos olhos sem apagar a experincia da alma sbia.
Os soldados o levam, nos braos, at o navio. O vencido capito murmura
queixas de recm-nascido, mas sua idade continua sendo muita e ainda
avana. Quem o carrega comprova, sem assombro, que aqui teve lugar uma
nova derrota na contnua luta do sempre contra o jamais.
Painala, 1523
A MALINCHE
De Corts teve um filho, e para Corts abriu as portas de um imprio. Foi
sua sombra e vigia, intrprete, conselheira, mensageira e amante, tudo isso
ao longo da conquista do Mxico; e continua cavalgando ao seu lado.
Passa por Painala vestida de espanhola, veludos, sedas, cetins, e no
princpio ningum reconhece a florida senhora que vem com os novos amos.
Do alto de um cavalo alazo, a Malinche passeia seu olhar pelas margens do
rio, respira fundo o aroma adocicado do ar e busca, em vo, os rinces da
folhagem onde h mais de vinte anos descobriu a magia e o medo.
Passaram-se muitas chuvas e venda vais e penas e pesares desde que sua
me vendeu-a como escrava e foi arrancada da terra mexicana para servir
aos senhores maias de Yucatn.
Quando a me descobre quem a que chegou de visita a Painala, se atira
aos seus ps e se banha em lgrimas suplicando perdo. A Malinche detm
a choradeira com um gesto, levanta sua me pelos ombros, abraa-a e
pendura em seu pescoo os colares que usa. Depois, monta o cavalo e
segue seu caminho junto aos espanhis.
No necessita odiar sua me. Desde que os senhores de Yucatn a deram
de presente a Hernn Corts, h quatro anos, a Malinche teve tempo de
vingar-se. A dvida est paga: os mexicanos se inclinam e tremem quando a
vem chegar. Basta um olhar de seus olhos negros para que um prncipe
balance na forca. Sua sombra flutuar, alm da morte, sobre a grande
Tenochtitln que ela tanto ajudou
364

a derrotar e a humilhar, e seu fantasma de cabelos soltos e tnica flutuante


continuar metendo medo, para sempre, sado dos bosques e das grutas de
Chapultepec.
So Domingos, 1531
UMA CARTA
Aperta a cabea perseguindo as palavras que aparecem e fogem: No
olhem minha baixeza de ser e rudeza de dizer, suplica, e sim a vontade com
que a diz-lo sou movido.
Frei Bartolom de Las Casas escreve ao Conselho das ndias. Melhor teria
sido para os ndios, afirma, ir ao inferno com sua infidelidade, seu pouco a
pouco e a ss, que ser salvos pelos cristos. J chegam aos cus os alaridos
de tanto sangue humano derramado: os queimados vivos, assados em
grelhas, jogados a cachorros bravos...
Levanta, caminha. Entre nuvens de p ondula o hbito branco.
Depois, senta na beirada da cadeira cravejada de tachinhas. Com a pluma
coa o nariz longo. A mo ossuda escreve. Para que na Amrica se salvem
os ndios e se cumpra a lei de Deus, prope que a cruz mande na espada.
Que se submetam as guarnies aos bispos; e que se mandem colonos para
cultivar a terra ao abrigo das praas fortes. Os colonos, diz, poderiam levar
escravos negros ou mouros ou de outra sorte, para servir-se, ou viver por
suas mos, ou de outra maneira que no fosse em prejuzo dos ndios...
Cajamarca, 1532
PlZARRO
Mil homens vo varrendo o caminho do Inca at a vasta praa onde
aguardam, escondidos, os espanhis. A multido treme ao passar o Pai
Amado, o Uno, o nico, o dono do trabalho e das festas; calam os que
cantam e se detm os que danam. pouca luz, a ltima do dia,
relampagueiam de ouro e prata as coroas e as roupas de Atahualpa e seu
cortejo de senhores do reino.
Onde esto os deuses trazidos pelos ventos? O Inca chega ao centro da
praa e ordena esperar. H uns dias, um espio se meteu no acampamento
dos invasores, puxou-lhes as barbas e voltou dizendo que no eram mais
que um punhado de ladres sados do mar. Esta blasfmia custou-lhe a vida.
Onde esto os filhos de Wiracocha que levam estrelas nos calcanhares e
descarregam troves que provocam o estupor, o estampido e a morte?
O sacerdote Vicente de Valverde emerge das sombras e sai ao encontro de
Atahualpa. Com uma das mos ergue a Bblia e com a outra um crucifixo,
como
conjurando uma tormenta em alto-mar, e grita que aqui est Deus, o
verdadeiro, e que todo o resto burla. O intrprete traduz e Atahualpa, no
alto da multido,
pergunta:
- Quem te disse isso?
- Est dito na Bblia, o livro sagrado.

365

- Ento deixe que ela me diga.


A poucos passos, atrs de uma parede, Francisco Pizarro desembainha a
espada.
Atahualpa olha a Bblia, faz com que ela d voltas em sua mo, sacode-a
para que soe e aperta-a contra o ouvido:
- No diz nada. Est vazia.
E a deixa cair.
Pizarro espera este momento desde o dia em que se ajoelhou frente ao
imperador Carlos V, descreveu-lhe o reino grande como a Europa que tinha
descoberto e se propunha a conquistar e prometeu-lhe o mais esplndido
tesouro da histria da humanidade. E desde antes: desde o dia em que sua
espada traou uma linha na areia e uns poucos soldados mortos de fome,
inchados pelas pragas, juraram acompanh-lo at o final. E desde antes
ainda, desde muito antes: Pizarro espera este momento desde cinqenta e
quatro anos atrs, quando foi atirado porta de uma igreja da Extremadura
e bebeu leite de porca por no ter quem lhe desse de mamar.
Pizarro grita e se lana. Ao sinal, abre-se a armadilha. Soam as trombetas,
carrega a cavalaria e estalam os arcabuzes, da paliada, sobre a multido
perplexa e sem armas.
Cidade do Mxico, 1536
MOTOLINA
Frei Torbio de Motolina caminha, descalo, montanha acima. Vai
carregando uma bolsa pesada nas costas.
De Motolina chamam, no linguajar do lugar, a quem pobre ou aflito, e ele
veste ainda o hbito remendado e esfarrapado que lhe deu nome h anos,
quando chegou caminhando, descalo como agora, do porto de Veracruz.
Se detm no alto da ladeira. Aos seus ps, se estende a imensa lagoa e nela
resplandece a cidade do Mxico. Motolina passa a mo na testa, respira
fundo e crava na terra, uma depois da outra, dez cruzes toscas, galhos
amarrados com cordo, e enquanto as crava vai oferecendo-as:
- Esta cruz, meu Deus, pelas pestes que aqui no se conheciam e com tanta
sanha foram cevadas nos naturais.
- Esta pela guerra e esta pela fome, que tantos ndios mataram como gotas
h no mar e gros na areia.
- Esta pelos arrecadadores de tributos, zanges que comem o mel dos
ndios; e esta pelos tributos, pois para cumprir com eles havero de vender
os ndios seus filhos e suas terras.
- Esta pelas minas de ouro, que tanto fedem a morto que a uma lgua no
se pode passar.
- Esta pela grande cidade do Mxico, erguida sobre as runas de
Tenochtitln, e pelos que nas costas trouxeram vigas e pedras para construla, cantando e gritando noite e dia, at morrer extenuados ou esmagados
pelos derrubamentos.
- Esta pelos escravos que de todas as comarcas foram arrastados at esta
cidade, como manadas de animais, marcados no rosto; e esta pelos que
caem nos caminhos levando as grandes cargas de mantimentos para as
minas.
- E esta, Senhor, pelos contnuos conflitos e escaramuas de ns, os
espanhis, que sempre terminam em suplcio e matana de mulos.
Ajoelhado frente s cruzes, Motolina roga:
366

- Perdoa-os, Deus. Te suplico que os perdoes. De sobra sei que continuam


adorando seus dolos sanguinrios, e que se antes tinham cem deuses,
contigo tm cento e um. Eles no sabem distinguir a hstia de um gro de
milho. Mas se merecem o castigo de Tua dura mo, tambm merecem a
piedade de Teu generoso corao.
Depois Motolina se persigna, sacode o hbito e empreende, ladeira abaixo,
o regresso.
Pouco antes da Ave-Maria, chega ao convento. Solitrio em sua cela, se
estende na cama e lentamente come um po.

Instantneo de Buenos Aires (Ceclia Meireles)


Naturalmente, sempre h criaturas de boa vontade, que se antecipam a
fazer-nos a descrio da cidade para onde vamos. Assim, de muitos
lugares, de variada gente, ouvi que Buenos Aires era uma cidade antiptica
e solene, transbordando de bifes cbicos de meio metro de aresta, com toda
a espcie de agasalhos de peles e de l amontoados em balces infinitos,
carteiras de crocodilo maiores do que os prprios crocodilos, e tantas lojas
de elegncia masculina como se a cidade estivesse permanentemente
espera de uma visita ai dele! do belo Brummel.
Mas Sidarta Gautama, um prncipe que pouca gente conhece, e de que
alguns falam sob o nome de Buda, disse uma vezNo creias em nada por
ouvir dizer. No creias pela f das tradies, que so transmitidas por longas
geraes. No creias em nada s porque tenha sido dito e repetido por
muita gente. No creias sob o testemunho de nenhum sbio. No creias em
nada s pelas prrobabilidades que haja em seu favor, ou porque um velho
hbito te induza a essa crena. No creias no que imaginaste, pensando que
um ente superior te fez uma revelao. No creias em nada s pela
autoridade dos mais velhos e dos professores.
De Um grande discurso, Crnicas de Viagem de Ceclia Meireles, Vol. 2
Comentando uma observao do professor japons sobre o comunismo
produto de um vcuo criado pela ausncia de valores ticos e morais da
vida Radhakrishna pondera que o comunismo a rplica maneira
artificial, grosseira e desonesta por que so praticadas as religies. Fala-se
de pureza de pensamento e praticam-se tantas coisas contra a tica, o
esprito e a humanidade! Por essas deficincias, a religio tem sido criticada
no plano da Cincia e da tica. O atesmo militante resulta da religio mal
praticada. Se fssemos verdadeiramente capazes de pr em prtica o Amor
e a Verdade que as religies pregam, evitaramos tal situao; mas a nossa
conduta demonstra nossa ausncia de f em Deus; enquanto as nossas
crenas proclamam tal f. [...]
(Insisto em que a humanidade com um atrso de dois mil anos. Tudo quanto
havia para ser ensinado foi ensinado. Cada um aprendeu o que pde, sem
contar os que no puderam ou no quiseram aprender nada. E o resultado
termos de aprender de novo.)

367

Maracay, 1935
GMEZ
O ditador da Venzuela, Juan Vicente Gmez, morre econtinua mandando.
Ficou no poder vinte e sete anos, sem que ningum o tirassse ou matasse, e
agora no h quem se atreva a chiar. Quando o atde do terrvrl velhinho
fica indiscutivelmente sepultado debaixo de montanhas de terra, finalmente
os presos derrubam as portas dos crceres e solta-se o povo em gritarias e
saqueios.
Gmez morre solteiro. Engendrou filhos de monto, amando como quem
mija, mas jamais passou a noite inteira nos braos de uma mulher. A luz da
alvorada encontrou-o sempre sozinho, em sua cama de ferro, sob a imagem
da Virgem Maria e junto de bas cheios de dinheiro.
No gastou nem uma moeda. Pagava tudo com petrleo. Distribuiu petrleo
aos borbotes, Standard Oil, Gulf, Texas, Shell, e com poos de
petrleo pagou as contas do mdico que lhe aplicava as sondas na bexiga,
os sonetos dos poetas que escreviam sua glria e as tarefas secretas dos
verdugos que cuidavam da ordem para ele.
Montevidu, 1970
RETRATO DE UM PROFESSOR DE TORTURADORES
Os guerrilheiros tupamaros liquidam Dan Anthony Mitrione, um dos
instrutores norte-americanos da polcia do Uruguai.
O falecido dava seus cursos para oficiais num poro prova de som. Para as
lies prticas utilizava mendigos e prostitutas caados na rua. Assim
mostrava a seus alunos o efeito dos diversos nveis de voltagem nas zonas
mais sensveis do corpo humano, e ensinava a eles como aplicar vomitivos e
outras substncias qumicas. Nos ltimos meses, trs homens e uma mulher
morreram durante estas aulas de Tcnica de Interrogatrio.
Mitrione detestava a desordem e a sujeira. E detestava a linguagem
incorreta:
- Bolas, no, delegado. Testculos.
Tambm detestava o gasto intil, o movimento no necessrio, o dano que
pode ser evitado:
- uma arte, mais que uma tcnica dizia: - a dor exata, no lugar exato, na
medida exata.
Buenos Aires, 1977
RETRATO DE UM ARTISTA DO DINHEIRO
O ministro da Economia da ditadura argentina, Jos Alfredo Martnez de Hoz,
um devoto da empresa privada. Nela pensa nos domingos, quando se
ajoelha na missa, e tambm nos dias de semana, quando d aulas na Escola
Militar. Mesmo assim, o ministro se livra da empresa privada que dirige.
Generosamente a cede ao Estado, que paga dez vezes o que ela vale.
O generais transformam o pas num quartel. O ministro o transforma num
cassino. Cai sobre a Argentina um dilvio de dlares e coisas. a hora dos
368

verdugos, mas tambm dos pilantras e malabaristas: os generais mandam


calar e obedecer enquanto os ministros mandam especular e consumir. O
que trabalha um otrio; o que protesta, um cadver. Para reduzir os
salrios, metade e reduzir nada os operrios rebeldes, o ministro
suborna com dinheiro doce a classe mdia, que viaja a Miami e volta
carregada de montanhas de aparelhos e aparelhinhos e besteiras e
besteirinhas. Frente cotidiana matana, os panacas remediados levantam
os ombros:
- Alguma coisa fizeram. No foi toa.
Ou assoviam olhando para outro lado:
- Melhor no se meter. Problema seu, meu caro.

Memria do Fogo, Vol. I. Os Nascimentos

De um amor morto fica / Um pesado tempo quotidiano/ Onde os


gestos se esbarram /Ao longo do ano// De um amor morto no fica/
Nenhuma memria/ O passado se rende/ O presente o devora/E os
navios do tempo/ Agudos e lentos/ O levam embora // Pois um amor
morto no deixa/ Em ns seu retrato/ De infinita demora/ apenas
um facto/ Que a eternidade ignora
Na desordem aparente de nosso misterioso mundo, cada homem vive
ajustado a um sistema com to refinado rigor e os sistemas entre si, e
todos a tudo que o indivduo que se desvia, por um momento que
seja, corre o risco de perder o seu lugar para sempre. Corre o risco de
ser o Pria do Universo.
Aflies e alegrias/ atravessmos, mos unidas;/ da caminhada ora repousamos/ na quietude
da paisagem.// Derredor vergam-se os vales,/ escurece j o cu;/ s duas cotovias se
internam,/ sonhadoras, no ar rescendente.// Acerca-te e deixa-as esvoaar,/ no tarda ser
hora de deitar;/ do rumo no nos desviemos/ no meio de tal solido.// paz ampla e imvel!/
To intensa ao crepsculo,/ como nos fatigou o caminho ser isto, acaso, a morte?

Santa Maria do Darin, 1514. POR AMOR S FRUTAS - Gonzalo Fernndez de


Oviedo, recm-chegado, prova as frutas do Novo Mundo. A goiaba lhe parece
muito superior ma. A fruta-do-conde formosa e oferece uma polpa branca,
aguada, de muito temperado sabor, que por muito que se coma no causa dano
nem empanturra. O mamey (Mamey fruta alongada semelhante ao sapoti, da
mesma famlia). Tem um sabor de lamber os lbios e cheira muito bem. No existe
nada melhor, opina. Mas morde uma nspera e lhe invade a cabea um aroma que
nem o almscar iguala. A nspera a melhor fruta, corrige, e no se acha coisa
que se lhe possa comparar. Descasca, ento, um abacaxi. O dourado abacaxi
cheira como gostariam de cheirar os pssegos e capaz de abrir o apetite de
quem j nem lembra a vontade de comer. Oviedo no conhece palavras que
meream dizer suas virtudes. Se alegram seus olhos, seu nariz, seus dedos, sua
369

lngua. Esta supera todas, sentencia, como as plumas do pavo real resplandecem
sobre as de qualquer ave.
Tu vive, todos nos vivemos, baseados no axioma de que a ideia de revolucao e incompativel
com a ideia de ordem. Todo nos estamos intoxicados por esse romantismo heroico,
sanguinario... Mas queres saber de uma coisa? Ha dias em que me interrogo sobre isso, em
que me pergunto o porque dessa adesao geral as ideias de violencia... Sera unicamente
porque a violencia nos e indispensavel para agir com eficacia? Nao... E tambem porque essas
teorias encontram eco nos nossos mais baixos instintos, nos mais antigos, os mais fundamente
arraigados no homem!... Olhemo-nos no espelho... Com que olhos ferozes, com que ricto de
selvagens, com que alegria cruel e barbara todos nos fingimos aceitar essa violencia como
uma necessidade. A verdade e que nos apegamos a ela por motivos muito menos
confessaveis, muito mais pessoais; porque todos nos temos, no fundo do coracao, uma
desforra a tirar, um odio a satisfazer... E, para saborear sem remorsos esse apetite de
vinganca, que ha de melhor do que poder justifica-lo pela submissao a uma lei fatal? [...] A
necessidade de destruir e ainda mais poderosa que a esperanca de construir... Para quantos
de nos, a revolucao, antes de ser uma obra de transformacao social, nao sera uma ocasiao
para saciar essa necessidade de vinganca, que encontrara uma embriagadora satisfacao no
tumulto, no motim, na guerra civil, no assalto brutal ao poder? Que delirio de represalia, no dia
em que pudermos, por uma vitoria sangrenta, impor por nossa vez a nossa tirania, a tirania de
nossa justica!... [...] Qual de nos podera pretender ter escapado completamente a esse
contagio capitoso da destruicao?

Potso, 1600
A OITAVA MARAVILHA DO MUNDO
Incessantes caravanas de lhamas e mulas levam ao porto de Arica a prata que, por todas as
suas bocas, sangra o morro de Potos. Ao cabo de longa navegao os lingotes se despejam
na Europa para financiar a guerra, a paz e o progresso.
Em troca chegam a Potos, de Sevilha ou de contrabando, vinhos da Espanha e chapus e
sedas da Frana, bordados, espelhos e tapearias de Flandres, espadas alems e papelaria
genovesa, meias de Npoles, cristais de Veneza, ceras de Chipre, diamantes do Ceilo,
marfins da ndia e perfumes da Arbia, Mlaca e Goa, tapetes da Prsia e porcelanas da
China, escravos negros de Cabo Verde e Angola e cavalos chilenos de muito brio.
Tudo carssimo nesta cidade, a mais cara do mundo. S so baratas a chicha e as folhas de
coca. Os ndios, arrancados fora das comunidades de todo o Peru, passam os domingos
nos currais, danando ao redor de tambores e bebendo chicha at rodar no cho. Ao
amanhecer da segunda-feira so arrastados morro adentro e mascando coca perseguem, a
golpes de picareta, as veias de prata, serpentes alviverdes que aparecem e fogem pelas tripas
deste ventre imenso, nenhuma luz, ar nenhum. Ali trabalham os ndios a semana inteira,
prisioneiros, respirando p que mata os pulmes e mascando a coca que engana a fome e
disfara a extenuao, sem saber quando anoitece nem quando amanhece, at que no fim do
sbado soa o toque de orao e sada. Avanam ento, abrindo caminho com velas acesas, e
emergem no domingo ao amanhecer, que so assim fundas as covas e e os infinitos tneis e
galerias.
Um padre, recm-chegado a Potos, os v aparecer nos subrbios da cidade, longa procisso

370

de fantasmas esqulidos, as costas marcadas pelo chicote, e comenta:


- No quero ver este retrato do inferno.
- Pois feche os olhos, padre. aconselham.
- No posso diz o sacerdote. - Com os olhos fechados vejo mais.

Potos, 1616
RETRATOS DE UMA PROCISSO
Morro mgico o de Potos: nestes altos paramos inimigos, que s ofereciam solido e frio, fez
brotar a cidade mais povoada do mundo.
Altas cruzes de prata encabeam a procisso, que avana entre duas fileiras de estandartes e
dee espadas. Sobre as ruas de prata, ferraduras de prata; soam os cavalos luxuosos de veludo
e brides cobertos de prolas. Para confirmao dos que mandam e consolo dos que servem,
a prata desfila, fulgurante, pisa forte, sabedora de que no h espao da terra ou do cu que
no possa comprar.
Vestiu-se de festa a cidade: os balces brilham de brases e flmulas; de uma mar de
farfalhantes sedas, espumas de bordados e cataratas de prolas, as senhoras admiram a
cavalgada que avana com estrpito de trombetas, pfaros e atabaques. Uns quantos
cavaleiros levam vendas negras em um dos olhos e protuberncias e chagas na testa, que no
so marcas da guerra e sim da sfilis; mmas voando vo e vm, dos balces rua, da rua aos
balces, os beijos e os gracejos.
Abrem caminho, mascarados, o Interesse e a Cobia. Canta a Cobia, mscara de cobras,
enquanto o cavalo faz cabriolas:
Dizem que sou dos males a raiz
mas meu trofu
a ningum deixar feliz.
E responde o Interesse, calas negras, gibo negro bordado de ouro, mscara negra sob o
negro chapu cheio de plumas:
Seu eu venci o amor e o amor vence a morte, sou de todos o mais forte.
Encabea o bispo um lento e longo exrcito de padres e encapuzados nazarenos armados de
altos crios e candelabros de prata, at que o rudo da trombeta dos heraldos se impe sobre o
repicar dos sininhos anunciando a Virgem de Guadalupe, Luz dos que esperam, Espelho de
justia, Refgio de pecadores, Consolo dos aflitos, Palma verde, Vara florescida, Pedra
refulgente. Ela chega em ondas de ouro e madreprola, nos braos de cinqenta ndios;
afogada por muitas jias, assiste com olhos de assombro o bulcio dos querubins de asas de
prata e o espetacular movimento de seus adoradores. No branco corcel irrompe o Cavaleiro da
Ardente Espada, seguido por um batalho de pajens e lacaios de librs brancas. O Caavaleiro
atira longe o seu chapu e canta Virgem:
Em minha dama, embora morena, tal formosura se encerra que suspende cu e terra.
Lacaios e pajens e libr roxa correm atrs do Cavaleiro do Amor Divino,que vem trotando,
ginete romano, ao vento das longas casacas de seda arroxeada: frente Virgem cai de joelhos
e humilha a testa coroada de louro, mas quando incha o peito para cantar as rimas,explode
uma fuzilaria de fumaa de enxofre. Invadiu a rua o carro dos Demnios, e ningum presta a
menor ateno ao Cavaleiro do Amor Divino.
O prncipe Trtaro, adorador de Maom, abre suas asas de morcego, e a princesa Prosrpina,

371

cabeleira e cauda de serpentes, lana do alto blasfmias e gargalhadas que a corte dos diabos
celebra. Em alguma parte soa de repente o nome de Jesus Cristo e o carro do Inferno
arrebenta-se em uma exploso descomunal. O prncipe Trtaro e a princesa Prosrpina
atravessam de um salto a fumaa e as chamas e rodam, prisioneiros, aos ps da Me de Deus.
Cobre-se a rua de anjinhos, aurolas e asas de prata cintilante, e alegra o ar o som de violes
e guitarras, ctaras e flautins.Os msicos, vestidos de donzelas, festejam a chegada da
Misericrdia,da Justia, da Paz e da Verdade, quatro airosas filhas de Potos erguidas sobre
poltronas de prata e veludo. Tm cabea e peito de ndio os cavalos que puxam a carruagem.
E chega ento, atropelando, a Serpente. Sobre mil pernas de ndios desliza o imenso rptil,
aberta a boca flamejante, metendo medo e fogo na romaria, e aos ps da Virgem desafia e
combate. Quando os soldados cortam-lhe a cabea a golpes de machado e espada, das
entranhas da serpente emerge, com seu orgulho feito pedaos, o Inca. Arrastando suas
assombrosas vestes, o filho do Sol cai de joelhos frente Divina Luz. Exibe a Virgem manto de
ouro, rubis e prolas grandes como gros-de-bico, e mais que nunca brilha, acima de seus
olhos atnitos, a cruz de ouro da coroa imperial.
Depois, a multido. Artesos d

Escribi mucho acerca de la cultura americana, de la que no tena muy buena opinin. Pronunci un
discurso en la Universidad de California, La tradicin corts en la filosofia americana, la esencia del
cual vena a ser que la Amrica acadmica era extraa al espritu del pas, que es, deca, vigoroso, pero
filisteo. A m me haba parecido, en mis vagabundeos por las universidades americanas, que stas
armonizaran ms con el espritu del pas si fueran edificadas en forma de rascacielos, que en su forma
actual de edificaciones seudogticas ordenadas alrededor de un campus. Esta era tambin la opinin
de Santayana. Me parece, sin embargo, que exista cierta diferencia entre su opinin y la ma. Santayana
gozaba sintindose distanciado y despreciativo, mientras que a m esa actitud, cuando me vea forzadoa
sentirla, me dola enormemente.

100003356399077 (Danilo)
ltimo: 100003971326044

Con anterioridad a la influencia de la cultura snscrita, o brahmnica, la cultuta tamil ya era de por s muy
rica y las influencias, o formas culturales, procedentes del norte se adaptaron e se modelaron segn las
costumbres indgenas tamiles. Em lo relativo a la relegin devocional dos factores importantes
potenciaron su desarollo en la cultura tamil: la poesia tamil, y la divindad tamil Murukan.
La coleccin ms antiga de literatura cankam incluye dos grupos fundamentales: las Ocho Antologas y
las Diez Canciones. Estas antologas de poesa tienen dos temas bsicos: el amor y la guerra. El gnero
potico amoroso se denomina akam (interior o interno), mientras que el blico o heroico se denomina
puam (exterior o externo). La poesia amorosa es especialmente significativa, ya que classifica las
emociones interiores amorosas (uri) em cinco grupos que corresponden con cinco tipos de paisaje exterior
e de representaciones simblicas. Estas correspondencias se identifican tambin com tipos de flor. Son: en
primer lugar, hacer el amor, que corresponde a un paisaje agreste con flores de montaa que se abren cada
doce aos, su smbolo son los campos de mijo y las cataratas; en segundo lugar, esperar al ser querido con
ansiedad, que corresponde a la playacuyo smbolo son tiburones y pescadores; en tercer lugar, la
separacin, que corresponde a un paisaje rido con una flor del desierto, y cuyo smbolo son los buitres,
los elefantes hambrientos y los ladrones; em cuarto lugar, esperar a la esposa con paciencia, que
corresponde a un paisaje pastoral con flores de jazmn y cuyo smbolo son los toros, un pastor de ganado,
o la estacin lluviosa; y, por ltimo, el enfado, real o imaginario, que corresponde a um paisaje agrcola y

372

de valle fluvial, y cuyo smbolo es la cigea o la garza real.


Antes de ser influenciada pela cultura snscrita ou bramnica, a cultura tmil j era por si mesma muito
rica, e as influncias ou formas culturais procedentes do norte se adaptaram e se moldaram de acordo
com os costumes indgenas tmeis. Em relao religio devocional, dois fatores importantes
potenciaram seu desenvolvimento na cultura tmil: a poesia nativa, chamada cankam, e a divindade tmil
Muruka. A coletnea mais antiga de literatura cankam inclui dois grupos fundamentais: as Oito
Antologias e as Dez Canes. Estas antologias de poesia tm dois temas bsicos: o amor e a guerra. O
gnero potico amoroso se denomina akam (interior ou interno), enquanto que o blico ou herico se
denomina puam (exterior ou externo). A poesia amorosa especialmente significativa, uma vez que
classifica as emoes interiores amorosas em cinco grupos que correspondem a cinco tipos de paisagens
exteriores e de representaes simblicas. Estas correspondncias se identificam tambm com tipos de
flor. So: em primeiro lugar,o ato sexual, que corresponde a uma paisagem agreste com flores de
montanha que se abrem a cada doze anos, seus smbolos so os campos de cereais e as cataratas; em
segundo lugar, esperar ao ser querido com ansiedade, que corresponde praia, cujos smbolos so os
tubares e os pescadores; em terceiro lugar, a separao, que corresponde a uma paisagem rida com uma
flor de deserto, e cujos smbolos so os abutres, os elefantes famintos e os ladres. Em quarto lugar,
esperar a esposa com pacincia, que corresponde a uma paisagem pastoral com flores de jasmm e cujos
smbolos so os touros, um pastor de gado ou a estao chuvosa; e, por ltimo, o enfado, real ou
imaginrio, que corresponde a uma paisagem agrcola de vale fluvial, e cujos smbolos so a cegonha ou a
gara-real.
email: [email protected]
Rutracker Nome: pedroh86 senha: 250186
Fre vdeo editor 1.4.13.805

Ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas grutas. Mas
um "ela" achou por terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja todo
s e mngua de me. Levou-o para casa. Aconchegou-o. Alimentou-o e
dava-lhe murmrios e terminou descobrindo que ele gostava de carne crua.
Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas
demorou a ir em busca do prprio destino que seria o de reunir-se aos de
sua doida raa: que se afeioara, essa diablica ave, moa. At que em
um arranco - como se estivesse em luta consigo prprio - libertou-se com o
vo para a profundeza do mundo.

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