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DOI: 10.5433/1984-3356.

2012v5n10p875

Foucault, experiência, literatura

Foucault, experience, literature

Timothy O’Leary1

Tradução de João Rodolfo Munhoz Ohara2

Um livro é produzido, um minúsculo evento, um pequeno objeto maleável...


(Foucault)3

Um livro é um grão de areia...


(Calvino)4

O que mais ameaça a leitura é isso: a realidade do leitor, sua personalidade, sua
falta de modéstia, sua insistência teimosa em permanecer si mesmo frente ao que lê.
(Blanchot)5

1
Associate Professor do departamento de filosofia da Universidade de Hong Kong. MA em filosofia pela
Universidade Paris X, PhD em filosofia pela Universidade Dean (Austrália).
2 Aluno do Mestrado em História Social da Universidade Estadual de Londrina.
3 FOUCAULT, Michel. History of Madness. Londres: Routledge, 2006. [Histoire de la folie a l’âge classique. 2ª
ed. Paris: Gallimard, 1972] A seguir, referenciado como HM, com os números das páginas da edição francesa e
da edição inglesa: HM xxxvii [9]. Minha tradução difere ocasionalmente da versão publicada.
4 CALVINO, Italo. The Uses of Literature. San Diego: Harvest Books, 1987, p. 87.
5 BLANCHOT, Maurice. The Space of Literature. Lincoln: University of Nebraska Press, 1982, p. 198.

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A questão geral que gostaria de tratar aqui é "o que a literatura pode fazer?" Se
um livro é um evento minúsculo, um objeto pequeno, um mero grão de areia, como se
pode dizer que ele faz alguma coisa? Em uma das várias entrevistas nas quais discute
sua insatisfação com o horizonte filosófico de seus dias de estudante, dominado pelo
marxismo, pela fenomenologia e pelo existencialismo, Foucault faz a seguinte afirmação:
"para mim, a ruptura se deu primeiramente Waiting for Godot, de Beckett, uma
6
performance de tirar o fôlego." Meu objetivo neste texto é estabelecer as bases para
compreender como é possível que um trabalho de literatura tenha tal efeito - qual seja,
forçar-nos a pensar de outra maneira. É realmente possível que trabalhos de literatura
mudem as pessoas que os leem? Ou, para dar a essa questão um foco ligeiramente
diferente, as pessoas são capazes de mudarem a si mesmas através de suas leituras
literárias? Permitam-me dizer antes de tudo que responderei afirmativamente a tal
questão – argumentarei que a literatura pode, de fato, exercer esse tipo de efeito.

Seria fútil, no entanto, responder afirmativamente a essa questão se não


pudéssemos dizer algo sobre como a literatura pode efetuar tais mudanças, e será esse
meu foco aqui. Partindo do reconhecimento de que a literatura só pode ser entendida
completamente na interação entre um leitor e um texto, nós teremos de analisar os dois
lados desse par. Minha questão então se torna: o que é que, nas formas do sujeito
humano, por um lado, e nas formas e modos da literatura, por outro, torna possível para
este agir sobre aquele com um efeito transformador? Neste texto, devido a limitações
de espaço, focarei principalmente no primeiro aspecto: as formas de subjetividade
humana e sua historicidade essencial. Mas, em última instância, nós veremos que uma
abordagem foucauldiana a essa questão necessariamente passa pela ideia de ficção e de
fictício, o que nos permite construir uma ponte para a questão da literatura em si. A
abordagem que tomo aqui, no entanto, requer antes de tudo uma escavação detalhada
do desenvolvimento da noção de experiência na obra de Foucault, dos primeiros aos
últimos de seus trabalhos.

I A Arqueologia da Experiência de Foucault

Entre os conceitos centrais do pensamento de Foucault – poder, saber, verdade,


7
crítica – há um que recebeu menos atenção do que merece: experiência . Este conceito

6 RUAS, Charles. "Interview with Michel Foucault". In: FOUCAULT, Michel. Death and the Labyrinth. Londres e
Nova York: Continuum, 2004. p. 176.
7 Duas notáveis exceções são: RAYNER, Timothy. Between fiction and reflection: Foucault and the experience
book. Continental Philosophy Review. Holanda, n. 36, 2003, p. 27-43; e GUTTING, Gary. Foucault's Philosophy
of Experience. Boundary 2. Durham, v. 29, n. 2, 2002, p. 69-85. Mas ver também o capítulo sobre Bataille,

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atravessa os trabalhos de Foucault dos primeiros aos últimos de uma maneira que
raramente chama a atenção para si mesmo, mas ocasionalmente desponta em
expressões ressonantes como "experiência-limite" e "livro-experiência". Em uma
8
entrevista dada em 1978 , por exemplo, Foucault dá conta de todo seu desenvolvimento
filosófico nos termos de tal conceito. Havia certos trabalhos, diz, escritos por Bataille,
Blanchot, Nietzsche, que abriram para ele a possibilidade de uma filosofia como uma
"experiência-limite" (EMF, 241 [43]) – uma experiência que nos toma de nós mesmos e
nos deixa diferentes de antes. Tais livros, os quais ele também gostaria de escrever, ele
chama "livros-experiência" ao invés de "livros-verdade"; e eram experimentais
(expérience também significa experimento) no sentido de que colocavam o autor e o
leitor em um teste de seus próprios limites (EMF, 246 [47]). Assim, seus livros sobre a
loucura, a prisão e a sexualidade não examinam apenas nossas formas de conhecimento
e nossas práticas, mas também tentam transformá-las. Mas paralelamente a esse uso
fascinante do conceito há um sentido mais mundano no qual a experiência é tomada
como as estruturas fundamentais, gerais e dominantes de pensamento, ação e
sentimento que prevalecem em uma dada cultura a um dado tempo. Daí, por exemplo,
a discussão extensiva, em História da Loucura, da "experiência clássica da loucura", ou a
identificação de uma "experiência moderna da sexualidade", em História da Sexualidade,
volume dois. Naquele livro, a experiência é finalmente apresentada como o modo
histórico no qual a existência nos é dada como "uma coisa que pode e deve ser
9
pensada" , enquanto, em sua última aula no Collège de France, Foucault ainda fala em
10
termos de experiência cristã e experiência europeia moderna de filosofia . A experiência
é então um evento desafiante que transcende limites, mas também a estrutura histórica
dominante que será desafiada. Esses dois sentidos do conceito, em toda sua aparente
contradição, serão meu foco aqui.

Comecemos com o prefácio da primeira edição de História da Loucura, no qual


Foucault cita, sem atribuição, uma passagem de um dos poemas em prosa de René
Char, terminando com a sentença "Développez votre étrangeté légitime " (desenvolva

Blanchot e Foucault em JAY, Martin. Songs of Experience: modern American and European variations on a
Universal theme. Berkeley: University of California Press, 2006.
8 "Interview with Michel Foucault". In: Power. Baltimore: Penguin Books, 2000. (Coleção Michel Foucault:
Essential Works, 3). Esta coleção, adiante, EW3. "Entretien avec Michel Foucault". In: DEFERT, D.; EWALD, F. Dits
et écrits: IV. Paris: Gallimard, 1984. Esta coleção, adiante, DEIV. Esta entrevista, adiante, EMF com números de
página da edição em inglês imediatamente e da edição francesa entre colchetes. Infelizmente a tradução para
o inglês desta entrevista pode ser confusa em certas partes.
9 FOUCAULT, Michel. The Use of Pleasure. Harmondsworth: Penguin Books, 1988. (The History of Sexuality, 2).
[FOUCAULT, M. L'usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984. (Histoire de la sexualité, 2).] Daqui em diante, UP,
com números de páginas da edição em inglês imediatamente e da edição francesa entre colchetes. UP, 6-7
[13].
10 Aula de 28 de Março de 1984; inédita, mas gravações disponíveis no Fonds Michel Foucault, l'IMEC, Caen.

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seu estranhamento legítimo) . Este imperativo poderia ser uma epígrafe de toda a obra
de Foucault, uma série de livros que em seu esforço para "pensar diferentemente"
(penser autrement) (UP, 9 [15]) exploram constantemente o que quer que esteja fora de
nossas maneiras de pensar e agir. O trabalho sobre a loucura, em particular, parte para
explorar o corte original pelo qual a loucura e a desrazão foram expulsas da experiência
racional do ocidente moderno – a divisão na qual eles se tornaram o que é mais
12
estranho, estrangeiro e excluído para a razão . Quando o livro foi republicado em 1972,
no entanto, Foucault removeu o prefácio original e escreveu um novo. Neste, ele abre
mão do papel de voz autoral, resistindo ao que vê como a tentação de impor uma lei
interpretativa à sua obra. Afinal, um livro deve ser, diz ele, "um evento minúsculo" (HM,
xxxvii [9]), mas um evento seguido de uma série crescente de simulacros -
interpretações, citações, comentários – que um autor não pode e não deveria tentar
limitar. Fazendo uma curiosa distinção, Foucault diz que não gostaria que um livro
tomasse para si o estatuto de texto, ao qual a crítica gostaria de reduzi-lo. Ele gostaria
que o livro se apresentasse, ao invés disso, como "discurso", pelo que compreende "ao
mesmo tempo uma batalha e uma arma, estratégia e golpe [...] encontro irregular e cena
repetível" (HM, xxxviii [10]). O que é então a série de eventos na qual esse livro sobre a
loucura se inscreve? A que batalha e luta ele contribui? Uma maneira de responder tais
questões é começar com a centralidade da noção de experiência que estrutura e anima
a abordagem de Foucault em relação à loucura.

No centro do livro, como o prefácio original mostra, há duas noções de


experiência. Por um lado, há a ideia de uma "experiência-limite", um corte fundador
pelo qual uma cultura exclui o que funcionará como seu exterior (HMP, xxix [161]) –
neste caso, a exclusão da loucura e da desrazão pela razão. Assim, é uma questão deste
livro voltar ao "degré zéro" (HMP, xxvii [159]) da história da loucura, no qual razão e
desrazão ainda são indiferenciados, ainda não divididos, voltar a um tempo antes dessa
13
exclusão . Foucault sugere que se poderia fazer uma série de histórias dessas
experiências-limite, que podem incluir a construção do oriente como outro do ocidente,
a divisão fundamental entre razão e sonho, e a instituição das proibições sexuais. A esta

11
O prefácio original foi incluso na tradução para o inglês (op. cit.); em Francês se encontra em DEFERT, D.;
EWALD, F. (org.). 1954-1969. Paris: Gallimard, 1994. (Dits et écrits, 1). Este volume de DE, adiante, DEI. O
capítulo, daqui adiante, HMP, com números de páginas da edição em inglês imediatamente e da edição
francesa entre colchetes. Esta citação, HMP, xxxvi [167]. Para a fonte de Foucault, veja CHAR, René. Fureur et
mystère. Paris: Gallimard, 1967, p. 71.
12 Não é surpresa descobrir que o grupo de poemas do qual a citação de Char vem é chamado Partage Formel
(Divisão Formal).
13
É importante notar que Foucault não busca aqui um acesso à loucura em algum tipo de estado puro. De
fato, ele explicita mais tarde no mesmo Prefácio que esse "estado selvagem" e essa "pureza primitiva"
permanecerão sempre inacessíveis (HMP, xxxiii [164]). No entanto, pode-se objetar que ele, apesar disso,
parece assumir que há tal estado, mesmo que não possamos acessá-lo.

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lista poderíamos adicionar a divisão original, representada para nós por Platão, entre o
discurso racional e a linguagem poética. É digno de nota que essa "experiência-limite"
de 1961 não é a mesma à qual Foucault apela na entrevista de 1978 que citei em relação
14
ao "livro-experiência" . Naquela entrevista, uma "experiência-limite" é uma experiência
extrema que transgride os limites de uma cultura – isto é, uma experiência do tipo da
que Bataille descreve e conjura – enquanto aqui se trata da experiência pela qual uma
cultura cria tais limites. Mais uma vez, vemos que a tensão entre os sentidos da
experiência reproduz a si mesma, mas desta vez internamente a uma de suas formas.
Entretanto, permaneçamos por um momento dentro do contexto de História da
Loucura. Para entendermos a forma da experiência-limite que separa a razão da loucura,
é necessário voltar ao que Foucault chama de "experiência clássica da loucura". Nessa
expressão, recorrente ao longo do livro, a "experiência" é tomada como se surgisse do
conjunto completo das maneiras dominantes de ver, pensar e agir sobre a loucura –
maneiras que incluem sistemas de pensamento, instituições e aparatos legais ("noções,
instituições, medidas judiciais e policiais, conceitos científicos") (HMP, xxxviii [164]).

O primeiro ponto a notar sobre esse segundo uso do conceito é que Foucault
nunca dá uma definição explícita de experiência, nunca nos diz exatamente o que o
termo cobre. Na parte inicial do livro nós lemos frases como "todas as principais
15
experiências do Renascimento" (HM, 8 [21]) , "a experiência ocidental da loucura" (HM,
16 [34]), "a experiência da loucura no século XV" (HM, 21 [43]), e claro a ubíqua
"experiência clássica da loucura" (HM, 15 [32]), mas a experiência em si nunca é definida.
Ainda assim, é possível reunir o entendimento de Foucault acerca do conceito. Em
primeiro lugar, ele envolve a maneira pela qual um dado objeto é visto e
conceitualizado em uma dada cultura. Por exemplo, no início do Renascimento, Foucault
nos diz, havia um confronto entre duas formas possíveis da experiência da loucura –
uma "trágica" e uma "crítica" (HM, 26 [45]). E essas duas formas, ele diz, são a base de
"tudo que podia ser sentido (éprouvé) e formulado (formulé) sobre a loucura no começo
do Renascimento" (HM, 27 [46]). Mais adiante, falando do grande encarceramento da
desrazão, ele diz que é esse "modo de percepção" que deve ser interrogado para
entender a "forma de sensibilidade à loucura" (HM, 54 [80]) da idade clássica. A prática
do internamento, ele sugere, explica parcialmente "o modo pelo qual a loucura era
percebida, e vivida, pela idade clássica" (HM, 55 [80]). Fora dessa prática, uma "nova
sensibilidade" (sensibilité) com relação à loucura nasce (HM, 62 [89]), um novo objeto é
criado, e as várias maneiras de lidar com a desrazão são organizadas ao redor de uma
forma de "percepção" (HM, 101 [140]). Um exemplo final: "o classicismo sentiu
(éprouvé) uma delicadeza em relação ao inumano que o Renascimento nunca sentiu

14 Ver nota 6 acima.


15 A versão em inglês, inexplicavelmente, traduz o "toutes" de Foucault como "many" (“muitos”).

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(ressentie)" (HM, 143 [192]). O primeiro aspecto de qualquer experiência, então, será as
formas de percepção ou sensibilidade que a tornam possível – ou mesmo necessária.
Uma dada estrutura de experiência torna possível e traz à luz certas maneiras de
perceber, ver, sentir um objeto.

Mas essas formas de percepção não são os únicos componentes de uma estrutura
de experiência. Apesar do foco aparente de Foucault no fenômeno da percepção e da
consciência (individual), deve ser enfatizado que a experiência da loucura não é apenas
uma forma de sensibilidade. Ela também compreende tanto as práticas institucionais de
internamento quanto as formas de conhecimento que se desenvolvem ali dentro e
fundamentam tais instituições. Em uma entrevista dada logo após a publicação original,
Foucault faz a seguinte afirmação, que poderia servir como sumário do livro: "A loucura
só existe em uma sociedade, ela não existe fora das formas de sensibilidade que a
16
isolam e as formas de repulsão que a excluem ou capturam" (DEI, 169) . Essas formas
de repulsão, que ao mesmo tempo excluem e capturam, podem ser tomadas para
compreender o que Foucault mais tarde chamaria de aspectos de poder-saber da
relação com a loucura. Há, então, certa "consciência (conscience) prática e concreta no
classicismo" que faz parte de sua experiência distintiva da loucura (HM, 158 [211]). De
fato, essa experiência é "expressa" nas "práticas de internamento" (HM, 137 [185]). Na
idade clássica, então, as formas de repulsão compreendiam os grandes hospitais (como
Bicêtre em Paris e Bethlehem em Londres), combinados com os modos de
conhecimento que tentavam explicar a loucura, por exemplo, em termos da pura
ausência de razão.

Falar da "experiência clássica da loucura" é, então, falar das formas de consciência,


sensibilidade, comprometimento prático e saber científico que tomam a "loucura" como
objeto. E mesmo que Foucault mais tarde admita que seu uso do termo experiência
fosse "muito inconstante" [très flottant] na História da Loucura , ainda assim é um
17

conceito ao qual recorre com certa regularidade ao longo do resto de sua obra. Em As
Palavras e as Coisas, por exemplo, é-nos dito que seu objetivo é mostrar o que surge da
"experiência de ordem" entre os séculos XVI e XIX. Sua questão aqui é: como a
"experiência da linguagem" – uma "experiência cultural, global" – do fim do
18
Renascimento dá lugar a uma nova experiência na idade clássica? Seria errado sugerir,

16
Esta entrevista, publicada no Le Monde em 1961, permanece sem tradução.
17 "Preface to The History of Sexuality, Volume II". In: RABINOW, Paul (org.). The Foucault Reader. Londres:
Penguin Books, 1991. Para o texto francês ver Dits et écrits, IV, op. cit. Daqui adiante, PHS, com paginação da
edição em inglês imediatamente e da edição francesa entre colchetes. PHS, 336 [581].
18
FOUCAULT, Michel. The Order of Things: an archaeology of the Human Sciences. Londres: Tavistock
Publications, 1982. [FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris:
Gallimard, 1966.] Daqui adiante, OT, com paginação da edição em inglês imediatamente e da edição francesa
entre colchetes. OT, 45-46 [56].

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no entanto, que a história do uso do conceito por Foucault é inteiramente coerente. É


evidente, por exemplo, que após o fim dos anos 60, e até o final dos anos 70, ele tendia
cada vez menos a caracterizar seu trabalho em termos de uma investigação da
experiência. Podemos imaginar que esse foi o resultado de sua crescente insatisfação
com a fluidez do conceito, mas também com o fato de que o conceito, com suas
conotações de psicologia individual, chocava-se com seu novo foco nos corpos, na
resistência e no poder. Podemos notar, por exemplo, em seu comentário na Arqueologia
do Saber, que a História da Loucura havia dado um papel muito grande a uma noção
incipiente de experiência – uma que trazia o risco de reintroduzir "um sujeito anônimo e
19
geral da história" .

Apesar disso, por volta do fim dos anos 70, acompanhando a virada final na
trajetória de Foucault, o conceito de experiência retornou. Não mais inconstante como
havia sido, uma mudança que resultou em grande parte da complexidade crescente de
sua metodologia como um todo. Resumindo brevemente, podemos dizer que a
abordagem de Foucault a qualquer questão conteria agora três momentos, cada qual
representando uma fase particular de sua obra. Em um campo como a sexualidade,
então, ele considerará primeiramente as formas de saber ( savoir) e discursos que se
constroem ao redor do comportamento sexual (grosso modo correspondendo ao seu
trabalho nos anos 60); em segundo lugar, ele considerará as formas de poder que
atravessam nosso comportamento (correspondendo grosseiramente ao seu trabalho
nos anos 70); e finalmente, um momento que surge apenas no início dos anos 80, ele
considerará os modos de relação de si mesmo que promovem e fundamentam nossa
sexualidade. É preciso dizer claramente que ainda que esse primeiro, segundo e terceiro
momentos tenham essa sequência em seu próprio desenvolvimento, uma vez que todas
as três abordagens se tornam disponíveis, todas se ligam de maneira inextricável e não
se hierarquizam cronologicamente. Como Foucault coloca em uma entrevista tardia
(RM), "esses três domínios da experiência só podem ser entendidos uns em relação aos
20
outros e não separadamente" . De fato, se a segunda fase não faz mais do que
acrescentar o poder ao saber na formação de um novo conceito – poder-saber –
podemos dizer que a fase final introduz outro conceito – poder-saber-si mesmo. O que
nos importa, entretanto, é que esse novo conceito tripartite pode receber um nome
mais simples – experiência.

II A Transformação da Experiência

19
FOUCAULT, Michel. The Achaeology of Knowledge. Londres: Routledge, 1989, p. 18. Note, no entanto, que
"expérience" é confusamente traduzido como "experimento".
20 "The Return of Morality". In: KRITZMAN, L. (org.). Michel Foucault: Politics, Philosophy, Culture. Londres:
Routledge, 1988, p. 243. [DEIV, 697].

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Foucault começa a ser explícito quanto à centralidade da ideia de experiência a


partir do fim dos anos 70; inicialmente em uma entrevista concedida em 1978, mas
publicada apenas em 1980 (EMF), e mais tarde em várias versões do prefácio ao
21
segundo volume da História da Sexualidade . Na entrevista de 1978, o entrevistador
pede a ele que esclareça sua relação com a constelação intelectual francesa como um
todo no pós-Segunda Guerra, do marxismo e da fenomenologia ao existencialismo e o
modernismo literário. O que emerge mais claramente de sua resposta é a impressão de
que, ao menos neste estágio de seu pensamento, Foucault toma certa noção de
experiência como um fio condutor ligando múltiplos aspectos de sua trajetória
intelectual e pessoal. Nós já vimos como essa entrevista prioriza o que ele chama de
"experiências-limite", representadas para ele por Bataille e Blanchot – tais experiências
que servem para "tomar o sujeito de si mesmo" e garantir que ele não permanecerá
como era antes (EMF, 241 [43]). E também vimos que ele gostaria que seus próprios
livros tivessem esse tipo de efeito, tanto para si mesmo quando para seus leitores – ele
quer que sejam "livros-experiência" mais do que "livros-verdade" ou "livros-
demonstração" (EMF, 246 [47]).

Tal entrevista também nos dá uma maneira de entender como essas experiências-
limite se relacionam com outros tipos de experiência-limite, aquelas que, como vimos,
representam um gesto fundador pelo qual uma cultura exclui aquilo que funcionará
como seu exterior – por exemplo, a loucura (HMP, xxix [161]). Foucault fala desses
momentos de ruptura, ou divisão, como dando surgimento a certa experiência na qual
um sujeito emerge concomitantemente a um campo de objetos. Assim, o processo pelo
qual o objeto "loucura" emerge no fim do século XIX também envolve o processo de
emergência de um sujeito capaz de conhecer a loucura (EMF, 254 [55]). Isso se qualifica
como um tipo de experiência-limite porque envolve uma transformação na forma de
subjetividade, através da constituição de um campo de verdade. No entanto, o que é
importante para Foucault é que um livro que conte essa história deveria prover ele
mesmo uma experiência que, em sua própria maneira, é também uma experiência-
limite. Assim,

a experiência através da qual nós conseguimos compreender de


maneira inteligível certos mecanismos (por exemplo, o aprisionamento,
a punição, etc.) e a maneira na qual nós nos separamos deles ao
percebermo-los de outra maneira, deveria ser uma e a mesma coisa. É
isso o verdadeiro coração do que eu faço. (EMF, 244 [46], modificado).

O que nós encontramos, então, é que Foucault usa o conceito de experiência-


limite nos (como se houvessem) dois lados da análise: ele é tanto o objeto da pesquisa

21 Detalhes abaixo.

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histórica, quanto, em um sentido diferente, seu objetivo. Como ele admite: "é sempre
uma questão de experiências-limite e da história da verdade. Sou prisioneiro, enredado
nesse entrançado de problemas" (EMF, 257 [57]). Junto das várias tentativas de Foucault
de caracterizar seu próprio trabalho (em termos de saber, poder/saber, ou saber-poder-
subjetividade), podemos situar esta como uma fórmula adicional e talvez útil: seu
trabalho busca continuamente entender e desembaraçar as conexões entre formas de
experiência e formas de saber, entre subjetividade e verdade. E esse é um emaranhado
que ele continua a explorar até (e incluindo) seus últimos trabalhos.

22
Na primeira versão do Prefácio ao segundo volume da História da Sexualidade ,
Foucault explica a relação entre seu novo interesse na subjetividade e seu foco anterior
no discurso e no poder, em termos de um projeto geral da história crítica do
pensamento. Isso significaria a história das formas de objetivação, subjetivação e
coerção que, em determinado momento, para um grupo particular de pessoas,
constituem o que ele chama de "a priori histórico de uma experiência possível" (F, 460
[632]). Adotando a perspectiva de História da Loucura, por exemplo, poderíamos dizer
que para certas pessoas no século XVIII a experiência da loucura se tornou possível por
uma combinação histórica específica de formas de objetivação, subjetivação e coerção.
Tais formas, tais estruturas de experiência, determinaram a maneira pela qual as pessoas
loucas, irracionais, eram vistas, conceitualizadas e relacionadas, por aqueles que
23
consideravam a si mesmos sãos e racionais. Na segunda versão desse Prefácio ,
Foucault explica que tratar a sexualidade como uma forma histórica singular de
experiência significa tratá-la como "a correlação de um domínio do saber, um tipo de
normatividade e um modo de relação consigo mesmo" (PHS, 333 [579]). Para levar
adiante uma história crítica dessa "experiência complexa" (ibid.), no entanto, ele deve ter
as ferramentas metodológicas para investigar cada uma dessas áreas, e é por esse
motivo que, no início dos anos 80, ele tenta buscar uma maneira de entender o terceiro
domínio - o do si mesmo e suas relações. É interessante notar que nesse Prefácio,
referenciando seus trabalhos anteriores, ele menciona sua insatisfação com o método
24
da psicologia existencial (representada para ele por seu trabalho sobre Binswanger ) –
uma insatisfação que surgiu, diz agora, da "insuficiência teórica na elaboração da noção
de experiência" (PHS, 334 [579]) daquele método. Uma das diferenças principais então,

22 O verbete intitulado "Foucault" que Foucault mesmo publicou sob o pseudônimo de Maurice Florence é, de
acordo com os editores de Dits et écrits, baseado em uma versão antiga deste Prefácio. Veja nota introdutória
em DEIV, 631; e em FAUBION, James (org.). Essential Works of Foucault, 1954-1984, Vol. 2. Harmondsworth:
Penguin Books, 2000, p. 459. Daqui adiante, EW2. Este artigo, daqui adiante, F, com paginação da edição em
inglês imediatamente e da edição francesa entre colchetes.
23 "Preface to the History of Sexuality, Volume II", PHS, citado acima.
24 Ver FOUCAULT, M. Introduction. In: BINSWANGER, Ludwig. Le rêve et l'existence. Paris: Desclee, 1954.

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entre o que poderíamos chamar de fases pré-crítica e crítica de Foucault, é precisamente


o trabalho sobre uma noção suficientemente complexa de experiência.

Uma parte central dessa noção é, como vimos, a ideia de que nossa experiência –
no sentido cotidiano do termo – é determinada por formas de saber, poder e relações
25
com si mesmo que são historicamente singulares . E agora nós podemos acrescentar
que tais formas, como um todo, constituem o que Foucault chama de pensamento – ou
seja, a história crítica do pensamento é simplesmente a história das formas, ou
estruturas de nossa experiência. De fato, pensamento, nessa perspectiva, é o que
constitui o ser humano como sujeito.

Por "pensamento", quero dizer aquilo que institui, nas diversas formas
possíveis, o jogo do verdadeiro e do falso e que, consequentemente,
constitui o ser humano como um sujeito do conhecimento; aquilo que
funda a aceitação ou a rejeição da regra e constitui o ser humano como
um sujeito social e jurídico; aquilo que institui a relação consigo mesmo
e com os outros, e constitui o ser humano como sujeito ético. (PHS, 334
[579])

O pensamento é, assim, a base da constituição do ser humano como um sujeito


nos três domínios do saber, poder e si mesmo – que são, como vimos, os três eixos, ou
domínios fundamentais da experiência. É claro, neste sentido, que o pensamento não é
algo a ser buscado exclusivamente em formulações teóricas da filosofia ou da ciência.
Ele pode, no entanto, ser encontrado em cada maneira de falar, fazer e conduzir a si
mesmo. Ele pode ser considerado, de fato, diz Foucault, como "a própria forma da ação"
em si mesma (PHS, 335 [580]). Como podemos ver, Foucault está agora trabalhando
com uma noção multifacetada de experiência; e é uma que não pode ser acessada
através da consciência individual, mas através de uma análise do que ele chama de
"práticas". Podemos estudar as formas de experiência, ele diz, através de uma análise
das práticas – enquanto entendermos práticas como "sistemas de ação [...] habitados
por formas de pensamento" (ibid.). E é precisamente isso o que ele faz em suas histórias
da loucura, da prisão e da sexualidade.

Os ecos kantianos desse projeto crítico têm, sem dúvida, ressoado claramente:
Foucault foi desperto do sono da psicologia existencial pelo seu encontro com
Nietzsche, e emergiu em uma fase crítica na qual buscava o a priori da experiência. No
entanto, não se trata de buscar o a priori kantiano, mas o a priori histórico; e não toda

25 Isso pode oferecer uma maneira de diferenciar a compreensão de Foucault sobre a experiência do
entendimento da fenomenologia. Não é este o lugar para tratar deste problema, mas ver o artigo de Gutting
(nota 6, acima) para um esboço das questões envolvidas.

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experiência possível, mas a experiência historicamente singular. O projeto de Foucault


então difere fundamentalmente do kantiano não apenas por conta da historicização
tanto do a priori quanto da experiência (e, é claro, do sujeito conhecedor), mas também
porque ele estabelece a tarefa não de identificar limites inquebráveis da razão, mas de
identificar singularidades e trabalhar para sua transformação. Isso quer dizer que esse é
um projeto crítico no sentido nietzscheano, não no kantiano. O que isso significa para a
experiência é que o projeto crítico não pretende somente entender os fundamentos
históricos de nossa experiência, mas procurar até que ponto seria possível mudar tal
experiência – transformá-la, através um trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo.
Na versão final do Prefácio ao segundo volume da História da Sexualidade, Foucault
situa tal projeto no contexto de uma possível história da verdade – uma história dos
"jogos de verdade, os jogos do verdadeiro e do falso, através dos quais o ser é
constituído historicamente como experiência; ou seja, como algo que pode e deve ser
26
pensado" (UP, 6-7 [13]) . É nesses jogos de verdade, e através deles, que as formas
historicamente singulares da experiência podem – talvez – ser transformadas.

Agora que chegamos a essa ideia da transformação da experiência, retornemos à


ambiguidade do uso de Foucault do termo. Por um lado, como vimos, a experiência é a
forma geral, dominante na qual o ser é dado a um período histórico como algo que
pode ser pensado. Por outro, a experiência é algo que é capaz de nos separar de nós
mesmos e mudar a maneira como pensamos e agimos. Ao longo de seu trabalho, e de
sua vida, Foucault valorizou aquelas experiências que nos levavam aos limites de nossas
formas de subjetividade. Essa era a atração de escritores como Bataille, Blanchot e
Nietzsche nos anos de 1960; era a atração das práticas sadomasoquistas que ele discutiu
em entrevistas no início dos anos de 1980; e era também a atração de seu engajamento
mais solene com os Estoicos e os Cínicos da antiguidade tardia. Não havia sentido em
escrever um livro, ele acreditava, a não ser que fosse uma experiência na qual de alguma
maneira ele se mudasse. Como diz, no fim da primeira versão do Prefácio à História da
Sexualidade, "a dor e o prazer do livro é ser uma experiência" (PHS, 339 [584]). Mas
como é possível para a experiência ser tanto o fundo geral dominante quanto a força
externa que intervém para mudar tal fundo?

Tal problema, que pode ser relacionado ao problema de explicar a mudança


histórica, é um que, em diferentes formas, animou toda a trajetória teórica de Foucault.
E é um problema do qual ele estava bem ciente. Vejamos um exemplo, de As Palavras e
as Coisas, no qual ele levanta a questão da legitimidade do estabelecimento de
descontinuidades e períodos na história do pensamento. Como podemos justificar a
definição dos limites de uma época para a qual estabelecemos certa coerência e

26 Note que do francês essa passagem poderia ser traduzida como "através do que o ser constitui a si mesmo
historicamente como experiência" ("à travers lesquels l'être se constitue historiquement comme expérience").

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unidade – tal qual a idade clássica, por exemplo? Isso não é simplesmente estabelecer
um limite arbitrário em "um todo constantemente móvel" (OT, 55 [64])? E, tendo
estabelecido essa continuidade, como podemos então explicar o colapso ou o
desaparecimento desse sistema coerente? Se essa época contém em si mesma um
princípio de coerência, então de onde viria o "elemento estrangeiro [ l'élément
étranger]" (OT, 56 [64]) que o subverte? "Como", Foucault pergunta, "pode um
pensamento derreter ante a qualquer coisa que não si mesmo?" (ibid.) Como podemos
explicar o fato de que "em alguns anos uma cultura algumas vezes deixa de pensar
como vinha pensando até então e passa a pensar outras coisas de uma nova maneira?"
(ibid.) A melhor resposta que Foucault pode dar é dizer que esse tipo de
descontinuidade começa "com uma erosão do exterior" (ibid.), uma erosão que se torna
possível pela maneira na qual o pensamento continuamente "busca escapar a si mesmo"
(ibid.). A tarefa de investigar tais modos de fuga, no entanto, é uma que Foucault diz
ainda não estar preparado para tomar. No momento, ele diz, teremos simplesmente que
aceitar as descontinuidades postas – em toda sua obviedade e sua obscuridade.

Mesmo que, nesse contexto, Foucault se afaste de mais considerações sobre esse
exterior do pensamento, em outro sentido podemos dizer que todo seu trabalho foi
uma tentativa de investigar a maneira pela qual o pensamento "busca escapar de si
mesmo" através do contato com tal exterior. E a cada virada renovada daquele esforço,
o fio condutor era a ideia do estranho, do estrangeiro, do alien e a questão de sua
procedência e seus efeitos. Resumindo brevemente, mais uma vez, poderíamos dizer
que cada um dos três períodos nos quais podemos dividir o trabalho de Foucault
27
carrega consigo uma concepção diferente do exterior . Nos anos de 1960, tal
concepção está ligada ao seu trabalho com a literatura e, em particular, com as ideias de
transgressão e de exterior que ele toma de Bataille e Blanchot. Em uma série de ensaios
publicados em periódicos literários da época, Foucault demonstrou a influência que, por
exemplo, o "pensamento do exterior" de Blanchot teve no desenvolvimento de sua
28
abordagem a tal conjunto de questões . Em particular, a escrita literário-crítica de
Blanchot permitiu a ele formular a conexão entre certa crise da subjetividade e a
29
experiência de um exterior que nos chega por uma linguagem sem sujeito . Nos anos

27 Para uma categorização similar da abordagem de Foucault ao "exterior" ver REVEL, Judith. La naissance
littéraire du biopolitique. In: ARTIÈRES, Philippe (org.). Michel Foucault, la littérature et les arts. Paris: Editions
Kimé, 2004.
28 Ver, por exemplo, "A Preface to Transgression" sobre Bataille e "The Thought of the Outside" sobre
Blanchot, ambos em EW2 e DEI.
29 Não tenho espaço aqui para fazer justiça a esse elemento no trabalho de Foucault dos anos de 1960 sobre
literatura, mas ver minha exposição muito mais detalhada em "Foucault's Turn From Literature" na Continental
Philosophy Review a ser publicada. Gostaria apenas de apontar que a abordagem que desenvolvo neste artigo
deve menos aos escritos explicitamente literários de Foucault dos anos de 1960 do que às suas elaborações
tardias de uma teoria da experiência (embora é claro que hajam muitas conexões necessárias entre ambos).

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de 1970, com a virada para a política e a questão do poder, poderíamos dizer que o
exterior do pensamento, a engrenagem ou o motor da mudança, é conceitualizado
como resistência que, talvez, tem sua fonte nas forças do corpo. Enquanto que nos anos
de 1980, com a virada final, o exterior se torna, de maneira estranha, o interior da
subjetividade em si mesma; em outras palavras, o potencial de mudança emerge de uma
dobra de si sobre si mesmo.

Um dos constantes elementos nesse desenvolvimento é a maneira que o termo


"étrange" (estranho/estrangeiro) reaparece em todas as suas formas. Nós já vimos a
frase de René Char que Foucault inclui no primeiro Prefácio à História da Loucura -
"Développez votre étrangeté légitime." Vários anos mais tarde ele transforma isso, em
uma exibição de auto-depreciação irônica, respondendo aos críticos de As Palavras e as
Coisas. Em resposta às críticas ele fala de sua percepção quanto a sua própria "bizarrerie
[bizarrice]" – e o que ele chama de sua "étrangeté si peu légitime [estranheza pouco
30
legítima]" (DEI, 674) . Em As Palavras e as Coisas mesmo, ele fala da literatura como
forma de discurso que é, desde o século XVI, "mais estranha" à cultura ocidental (OT, 49
[59]); e falando das figuras do louco e do poeta, ele diz que eles encontram seu "poder
de estranheza [leur pouvoir d'étrangeté]" nos limites, nas fronteiras externas de nossa
própria cultura (OT, 55 [64]). Mais tarde, no início dos anos de 1980, ele pode dizer que
todo – e único – ponto em escrever um livro, ou fazer filosofia, é precisamente introduzir
um elemento do estranho em nossas maneiras de pensar. Qual seria o ponto de se
escrever um livro, ele pergunta, se ele não permitisse à pessoa que o escreveu
"estabelecer consigo mesma uma estranha e nova relação?" (PHS, 339 [584]). De fato, de
acordo com os volumes finais de A História da Sexualidade, é a tarefa da filosofia ver até
onde ela pode pensar de outra maneira, pelo "exercício que faz de um saber que é
estranho a ela" (UP, 9 [15]).

Retornando à questão de como a experiência pode ser tanto o fundo aceito


quanto a força transformadora, nós podemos agora dizer que tal possibilidade sempre
surge de algo que funciona como seu exterior. Não há nada constante ou universal
sobre esse exterior, no entanto, já que ele é sempre relativo às formas dominantes de
um dado regime de pensamento e prática. Nós vimos que para Foucault o locus do
exterior muda conforme sua metodologia geral se desenvolve. No início dos anos de
1960 é algo que é experimentado e transmitido através de certos trabalhos de literatura,
e também nos gestos fundadores de exclusão, enquanto que nos anos de 1980 é algo
que se faz sentir, por exemplo, no cultivo de técnicas transformadoras de si mesmo.
Neste estágio Foucault aparentemente deixou para trás seu interesse – e sua fé – na

30 Ver tradução para o inglês (que diverge da minha): "Politics and the Study of Discourse" in: BURCHELL, G. et
al. (org.). The Foucault Effect: studies in governmentality. Nova York: Hemel Hempstead, Prentice-Hall, 1991, p.
53.

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literatura como uma das maneiras pelas quais o pensamento "busca escapar de si
mesmo." Em seu trabalho tardio, seus livros-experiência não são mais de Beckett,
Blanchot ou Bataille, mas de Sêneca, Diógenes e Platão. E são, é claro, seus próprios
livros – especialmente A História da Loucura, Vigiar e Punir e o primeiro volume da
História da Sexualidade. Devemos, no entanto, resistir à tentação de ver essa mudança
como um desenvolvimento progressivo que deixaria para trás cada fase anterior. Ao
invés disso, não há nada que nos impeça de manter todos os três níveis
simultaneamente, de maneira que o trabalho de transformar a experiência pode, em
épocas e maneiras diferentes, ser realizado através de obras de literatura, através de
uma resistência cuja fonte está no corpo, e de uma reelaboração de suas relações com
“si mesmo”. Para nós, seria então possível combinar a conceitualização de Foucault
sobre o estranho, ou o exterior, do pensamento com sua noção de experiência e sua
possível transformação, e usar tal modelo como uma maneira de entender um dos
efeitos dos quais a literatura é capaz.

III Ficção, experiência, experimento

A análise de Foucault a respeito da experiência nos dá um caminho para


responder a primeira parte de minha questão, com relação às condições de
possibilidade da transformação da experiência, mas também nos dá um caminho para
começar a responder a segunda parte, com relação à capacidade da literatura agir como
uma transformadora da experiência. Isso acontece, como veremos, através do papel que
ela dá à ficção e ao fictício, uma noção que pode, em última instância, ajudar-nos a
determinar o modo distintivo de ação da literatura que torna tal transformação possível.
Mesmo que eu não tenha interesse em formular uma definição geral da literatura aqui,
uma que incluiria seguramente e excluiria todos aqueles trabalhos os quais são ou não
são dignos de tal título, ainda pode ser possível dar conta mínima e preliminarmente do
que tais formas compartilham. E esse, poderíamos dizer simplesmente, é um uso
particular da linguagem que é fictício em natureza. Dizer que esse uso da linguagem é
fictício, no entanto, não é dizer que ele não tem ligação com o mundo no qual vivemos,
ou com a verdade. Em um antigo ensaio sobre alguns membros do grupo Tel Quel, por
exemplo, Foucault rejeita a opção fácil de entender a ficção em termos de uma oposição
31
entre real e irreal, realidade e imaginário . Ele nos convoca, ao invés disso, a pensar no
fictício como surgido de certo tipo de distância – não a distância entre a linguagem e as
coisas, mas uma distância interna à linguagem. O fictício, neste sentido, seria a
capacidade da linguagem de nos colocar em contato, como Foucault diz, com "aquilo
que não existe, na medida em que é" (DEI, 280). E, de acordo com Foucault, qualquer

31 FOUCAULT, Michel. Distance, Aspect, Origine. In: DEI, p. 281. Este ensaio não foi traduzido para o inglês.

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uso da linguagem que fale dessa distância, e a explore – seja na prosa, na poesia,
romance ou "reflexão" (presumivelmente incluindo a filosofia) – é uma linguagem de
ficção (DEI, 280-1).

Talvez ajude se situarmos tal formulação em relação a uma discussão muito mais
tardia sobre o papel do intelectual – de uma entrevista de 1983. Aqui Foucault sugere
que a tarefa do filósofo-historiador é efetuar um diagnóstico do presente focando as
"linhas de fragilidade" que tornam possíveis "fraturas virtuais" em nossa realidade
contemporânea. Ao seguir tais linhas seríamos capazes de captar aqueles elementos de
nosso presente que estão abertos à mudança. O papel do intelectual seria então "dizer
aquilo que é, fazendo-o aparecer como aquilo que pode não ser, ou pode não ser como
32
é" . Esse é um eco interessante e inverso da caracterização anterior da ficção: a ficção
diz aquilo que não é, na medida em que é; enquanto o intelectual diz aquilo que é, na
medida em que (potencialmente) não é. Mas, é claro, essa não é tanto uma inversão
quanto uma expressão alternativa da mesma sugestão: que a ficção (no sentido mais
amplo possível do termo) se relaciona com a realidade abrindo espaços virtuais os quais
permitem que nos engajemos em uma relação potencialmente transformadora com o
mundo; trazer à tona aquilo que não existe e transformar aquilo que existe. O insight
que Foucault expressa no ensaio dos anos de 1960 é que essa possibilidade, a
possibilidade de ligar a distância entre aquilo que é e aquilo que pode ser, é dada a nós
na natureza mesma da linguagem.

Não há dúvida de que Foucault entendeu seus próprios trabalhos de "reflexão", ou


seja, seus trabalhos histórico-filosóficos, como que operando dentro desse campo do
fictício. Em uma discussão sobre sua História da Sexualidade, volume I, por exemplo, ele
responde a uma questão sobre a natureza dramática de seus trabalhos dizendo, "Estou
33
bastante ciente de que jamais escrevi qualquer coisa além de ficções" . Uma ficção, no
entanto, não é necessariamente alheia à verdade. É possível que a ficção induza efeitos
de verdade, tanto quanto é possível para um discurso de verdade fabricar, ou
ficcionalizar, algo. Já que a ficção não é definida em oposição à verdade, daqui em
diante, a colocação de Foucault não pode ser tomada como uma admissão de
imprecisão histórica. Antes, trata-se uma declaração sobre o poder criativo ou produtivo
do livro no contexto de um momento histórico particular. Esse livro, de fato todos os
seus livros, são ficções no sentido de que eles intervêm em uma dada situação para
operar – ou para ficcionalizar – uma transformação. "'Ficcionaliza'-se a história ao

32
"Structuralism and Post-structuralism" in: EW2, p. 450 (DEIV, 449).
33 "The History of Sexuality" in: GORDON, Colin (org.). Power/Knowledge. Nova York: Pantheon Books, 1980, p.
193. [DEFERT, D.; EWALD, F. (org.). 1976-1979. Paris: Gallimard, 1994, p. 236. (Dits et écrits, 3). Daqui adiante,
DEIII.

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começar pela realidade política que a torna verdade, 'ficcionaliza'-se uma política que
ainda não existe começando por uma verdade histórica." (ibid.)

Devemos pensar a ficção, daqui em diante, da mesma maneira em que pensamos


a poesis, ou seja, como um engajamento fundamentalmente produtivo com o mundo.
Ficcionalizar é fabricar, produzir, trazer à existência. O aspecto distintivo das histórias de
Foucault, o aspecto que dá a elas seu poder transformador, é o fato de que não são
apenas descrições do passado, mas tentativas de modificar o presente através de uma
transformação, ou uma ficcionalização, da experiência. E toda experiência é, em certo
nível, relacionada com o fictício. Em uma discussão de História da Loucura, no contexto
de sua ideia de um livro-experiência, Foucault sublinha novamente a importância para
ele de induzir no leitor uma experiência que teria efeito transformador. Tal efeito, no
entanto, deve ser baseado em uma pesquisa historicamente precisa. "Não pode", ele
dizia, "ser exatamente um romance" (EMF, 243 [45]). Mas o que mais importa não é a
série de achados historicamente verificáveis ou verdadeiros; mais do que isso, é a
experiência que o livro torna possível. E tal experiência não é nem verdadeira, nem falsa;
como toda outra experiência, ela é uma ficção. "Uma experiência", diz Foucault, "é
sempre uma ficção; é algo que alguém fabrica para si mesmo, que não existe antes e
passa a existir depois" (ibid., modificado). Apesar disso, essa experiência fabricada
mantém um complexo conjunto de relações com a verdade da pesquisa histórica. A
experiência que o livro torna possível é fundada na verdade de seus achados, mas a
experiência em si mesma é uma nova criação que pode inclusive, até certo ponto,
destruir a verdade na qual é baseada. Não é surpreendente então que Foucault admita
que "o problema da verdade do que eu digo é, para mim, um problema muito difícil, o
problema central mesmo" (EMF, 242 [44]).

Mas e essa ideia de que toda experiência é um tipo de ficção, ou algo que
fabricamos para nós mesmos? Como podemos entender essa sugestão? Pode ajudar
aqui se começarmos retomando algo da riqueza semântica do termo "experiência",
tanto em francês quanto no inglês. Já vimos que no francês o termo expérience pode
significar tanto experiência quanto experimento, e essa é uma possibilidade que, como
34
Raymond Williams aponta , também existia no inglês até pelo menos o final do século
XVIII. O termo "experience", naquele tempo, "tornou-se não apenas um teste ou uma
tentativa consciente, mas uma consciência do que havia sido testado ou tentado, e a
35
partir daí uma consciência de um efeito ou estado." E essa é uma consciência que
emerge, como a raiz latina da palavra indica, de uma abertura para o mundo, uma
abertura que é inerentemente perigosa. Em latim, expereri (tentar, testar) está ligada à

34 WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. Londres: Fontana, 1976, p. 99.
35 Ibid.

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palavra para perigo – periculum . Experiência, portanto, em ambos os sentidos, é algo


36

que emerge de um encontro necessariamente cauteloso com o mundo – ou com o


estranho e o estrangeiro. Um filósofo que faz uso dessa maneira de conceber a
experiência é John Dewey. Brevemente, para Dewey a experiência não é algo que
simplesmente nos acontece, não é algo no qual somos meramente receptores passivos.
É também uma forma de atividade. No seu sentido mais abrangente, é a interação de
um organismo com seu ambiente. A ideia central aqui é que a experiência é uma
questão de fazer e viver. Na experiência, diz Dewey, "o ser age, assim como vive, e suas
vivências não são impressões estampadas sobre uma cera inerte, mas dependem da
37
maneira como o organismo reage e responde." O organismo, assim, "é uma força, não
38
uma transparência" (ibid.) . Se o organismo, ou o indivíduo, é uma força, mais do que
uma superfície de registro passiva, então podemos dizer que toda experiência é uma
ficção no sentido de que algo novo é fabricado, algo novo emerge da interação entre o
organismo e o mundo.

De fato, a ideia de que a experiência é uma atividade do indivíduo, ao invés de


algo que acontece ao indivíduo, já está contida nas estruturas do idioma francês – de
uma maneira que não acontece no inglês. Em francês, ter uma experiência é faire une
expérience (literalmente, fazer uma experiência). De maneira similar, assim como no
inglês nós diríamos que temos um sonho, em francês se faz um sonho ( j'ai fait un rêve).
No caso da experiência, isso significa que sempre que lemos em inglês Foucault
discutindo sobre ter uma experiência, frequentemente, em francês, ele está usando a
frase faire une expérience. A significância dessa diferença se dá porque essa é uma frase
que poderia, quase tão facilmente, ser traduzida para o inglês como "fazendo um
experimento." No uso de Foucault do termo, assim, a ideia de que a experiência é um
39
engajamento ativo e experimental nunca está longe da superfície . Podemos agora ver
como é possível ligar a ideia de ficção, em seu sentido mais amplo, com a ideia de
experiência. Podemos fazer isso através do conceito de experimento, que é seu
elemento comum. Então, quando Foucault diz que todas suas obras são ficções,
podemos entendê-lo como se dissesse que elas são ficções porque são experimentais e,
ao contrário, elas são experimentais precisamente porque são ficções.

36 Ver a excelente discussão dessas questões em JAY, Martin. Songs of Experience, op. cit, p 9-11.
37 DEWEY, John. Art as Experience. Nova York: Perigree Books, 1980, p. 246.
38
Discuto esses paralelos em "Foucault, Dewey e a Experiência da Literatura". New Literary History. Maryland,
v. 36, n. 4, 2005, p. 543-557.
39 Permita-me dar um exemplo de como essa riqueza semântica se perde na tradução. Na entrevista que citei,
Foucault diz: "Mon problème est de faire moi-même, et d'inviter les autres à faire avec moi...une expérience de
ce que nous sommes...une expérience de notre modernité telle que nous en sortions transformés" (EMF, 242
[44]). A tradução para o inglês, no entanto, reduz esse sentido de engajamento em um experimento
transformador ao falar simplesmente de "compartilhar uma experiência". Essa tradução também comete o erro
de traduzir o primeiro "faire moi-même" como "construir a mim mesmo".

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Deveria também ser possível agora distinguir claramente entre os dois sentidos
nos quais Foucault tem usado o termo experiência. Podemos distinguir entre, de um
lado, algo que podemos chamar experiência "cotidiana" ou "de fundo" e, de outro, algo
que podemos chamar de experiência "transformadora". Em História da Loucura, por
exemplo, podemos dizer que Foucault descreveu aspectos da experiência cotidiana da
loucura na idade clássica, enquanto nos últimos volumes da História da Sexualidade, ele
explorou a experiência cotidiana da sexualidade no mundo antigo. No entanto, temos
de ter em mente que essa experiência cotidiana incorpora um grande leque de
elementos (epistemológicos, normativos, etc.) dos quais qualquer indivíduo dado
poderia estar desavisado. Não é cotidiano, então, no sentido de ser comumente
entendido, mas no sentido de que forma um pano de fundo constante, mesmo que
constantemente em mudança, para nossas maneiras de perceber, entender e agir no
mundo. É dessa forma de experiência que Foucault finalmente fala nos termos dos três
eixos de conhecimento, poder e si mesmo. Por outro lado, a categoria das experiências
transformadoras compreenderia não apenas as experiências-limite de Bataille dos anos
de 1960, e as experiências proporcionadas pelos livros do próprio Foucault, entendidos
como livros-experiência, mas também os tipos de experiência que muitos trabalhos de
literatura possibilitam para seus leitores. Essas são experiências que nos param em
nosso caminho e fazem com que seja mais difícil continuar pensando e agindo da
maneira como fazíamos antes. Em outras palavras, elas tornam mais difíceis para nós
continuar irrefletidamente nas formas de nossa experiência cotidiana.

Mas e quanto à relação entre essas duas formas de experiência? Como as


experiências transformadoras agem sobre a experiência cotidiana? Comecemos
observando que quando falo de experiência cotidiana, estou falando da experiência no
geral, que é, em certo sentido, sempre singular, enquanto que ao falar de experiências
transformadoras sou obrigado a falar de experiências no plural. O que isso indica é que
as experiências transformadoras são acontecimentos discretos, pontuais que intervêm e
40
interrompem formas de experiência cotidiana que são mais fluídas e contínuas . No
entanto, elas não são apenas pontos altos, ou momentos de intensidade, no fluxo
cotidiano; ao invés disso, ou em adição a isso, são eventos que deixam a experiência de
fundo transformada. Se pudermos chamar esse tipo de experiência de transformadora,
então, é porque ela tende a transformar nossa experiência cotidiana ao realizar uma
tomada, ou uma reconfiguração, junto dos três eixos de conhecimento, poder e si
mesmo. Em outras palavras, uma experiência transformadora, seja sob a forma de um
trabalho de filosofia, ficção ou história – ou em qualquer de suas múltiplas formas
possíveis – deixará o indivíduo não mais o mesmo de antes.

40 Seria interessante comparar essa concepção com a distinção que Dewey faz entre experiência
ordinária e uma experiência; e também com a distinção comum na filosofia alemã entre Erlebnis e Erfahrung.
Tal comparação está, no entanto, fora do escopo do presente artigo.

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IV Rumo à literatura

No início deste artigo eu disse que a questão que gostaria de responder é "o que
torna possível que obras de literatura ajam sobre as formas de subjetividade e
experiência humanas com um efeito transformador?" A primeira parte de minha
resposta foi apontar que essas formas de subjetividade e experiência humanas são
construídas historicamente de maneira a estarem constantemente mudando e se
modificando. A segunda parte da minha resposta, que esboçarei agora, é sugerir que a
literatura pode contribuir para esse processo de transformação através de sua natureza
fictícia que tanto ressoa com a natureza produtiva e criativa de toda experiência, quanto
introduz algo que pode funcionar como um exterior na relação com a experiência
cotidiana do leitor. É importante notar, no entanto, que a literatura, como a filosofia, não
está sempre ou necessariamente ao lado da transformação e oposta à experiência
cotidiana. É mais provável, de fato muito mais provável, que o que chamamos de
literatura endossará e reforçará modos aceitos de experiência e pensamento, do que os
desmantelará e transformará. Tais obras são sempre provisórias e experimentais em
natureza; não há maneira garantida de transformar a experiência cotidiana, assim como
não há qualquer maneira de prever precisamente o efeito ou o potencial de qualquer
obra. E é igualmente importante lembrar que tais modificações são sempre pequenas,
frágeis e incertas, especialmente, precisamos admitir, aquelas que a literatura é capaz de
afetar.

Para esboçar esta resposta quero retornar a Beckett; não ao Waiting for Godot,
que foi tão importante para Foucault, mas para seu romance The Unnamable (1958), o
terceiro em uma trilogia que incluiu Molloy (1955) e Malone Dies (1956) . O que
41

podemos dizer sobre o efeito desses romances? Que tipos de transformação eles são
capazes de efetuar? Um de seus efeitos potenciais, eu diria, é tornar mais difícil para os
leitores continuar com certo entendimento de si mesmos como centros de
racionalidade, linguagem e experiência. Falando muito esquematicamente, poderíamos
dizer que a experiência cotidiana de si mesmo que os livros desmantelam é baseada no
cogito cartesiano. Descartes pode duvidar de tudo, exceto de sua própria existência
como um ser pensante e, portanto, racional. Mas Beckett pode duvidar até mesmo
disso. E de fato o que seus livros tornam possível, através do mundo fictício que criam, é
que o leitor compartilhe de um experimento no qual sua concepção de si mesmo é
colocada à prova e, talvez momentaneamente, explodida. Em uma discussão sobre a
arte do romance, Milan Kundera aponta que o personagem fictício não é uma imitação
42
de um ser vivente, mas "um ser imaginário. Um si mesmo experimental." Não

41 BECKETT, Samuel. Three Novels. Nova York: Grove Press, 1991.


42 KUNDERA, Milan. The Art of the Novel. Londres: Faber and Faber, 1988, p. 34.

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deveríamos ver esse ser como primeiramente um alter-ego para o autor, mas mais como
uma mesmidade experimental para qualquer leitor da obra. Com relação aos romances
de Beckett, no entanto, podemos dizer que seus personagens são experimentais no
duplo sentido: não apenas eles são um experimento que o autor constrói e permite ao
leitor que participe, mas eles continuamente se envolvem em experimentações de si
mesmos. Por vezes isso pode parecer similar com os experimentos de pensamento que
os filósofos – como Descartes ou Husserl – usam, mas os personagens de Beckett
tipicamente vão à direção contrária, qual seja, não através da dúvida rumo a um novo
fundamento para a certeza, mas de uma certeza, através da dúvida, para um
despedaçamento de si mesmo e de sua base no mundo.

No início de The Unnamable , por exemplo, o narrador (se podemos chamá-lo


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assim) começa um processo que parece ser decididamente cartesiano: "Eu, de quem sei
nada, eu sei que meus olhos estão abertos..." (U, 304). Mas essa certeza não poderá
formar a base para nenhum outro conhecimento. Como ele sabe que seus olhos estão
abertos? "Por causa das lágrimas que escorrem deles incessantemente" (ibid.). Ele
continua:

Ah sim, estou verdadeiramente banhado em lágrimas. Elas se juntam


em minha barba e dali, quando ela já não pode segurá-los - não, sem
barba, sem cabelo também, é uma grande bola suave que carrego em
meus ombros, sem traços característicos, a não ser os olhos, dos quais
apenas as covas restam. E não fosse pelo distante testemunho de
minhas palmas, minhas solas, que eu ainda não pude esmagar, eu
satisfatoriamente me daria a forma, se não a consistência, de um ovo,
com dois buracos não importa onde para preveni-la de estourar. (U,
305)

É importante notar que o processo pelo qual o enunciador dá a si mesmo uma


forma aqui é essencialmente fictício em natureza. Ele não descobre sua forma através de
introspecção ou auto-exame, mas dá a si mesmo uma forma, ele se ficcionaliza, através
de sua própria fala. "Eu satisfatoriamente me daria a forma...de um ovo", diz ele, e mais
tarde até mesmo os olhos cheios de lágrimas serão transformados. "Eu secarei essas
covas jorrantes também, as taparei, assim, está feito, chega de lágrimas, sou uma grande
bola falante, falando sobre coisas que não existem, ou que talvez existam, impossível
saber, não é meu objetivo" (U, 305). Quer tais coisas existam ou não está além da conta,
porque, apesar disso, elas estão ali para nós, os leitores do romance. Elas atestam, como
Foucault diria, o poder da linguagem de transmitir "aquilo que não existe, na medida em
que é" (DEI, 280).

43 N. T.: doravante, referenciado como U, seguido da paginação.

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Blanchot, na epígrafe que usei para este artigo, recrimina o leitor pela "insistência
teimosa em permanecer si mesmo em face do que lê". Mas a obra de Beckett enfrenta
isso com sua própria insistência teimosa em realizar uma desagregação experimental de
seus personagens. A experiência transformadora que isso torna possível para o leitor é
que eles, também, percam suas cabeças, vejam se não poderiam também perder esses
órgãos, "todas as coisas que pulam pra fora" – "por que eu deveria ter um sexo, alguém
que já nem tem nariz" (U, 305). Afinal, por que precisamos de órgãos? Qual é sua
função? Como o enunciador pergunta um pouco mais tarde sobre a boca, "Não seria
melhor se eu tivesse apenas de dizer babababa, por exemplo, enquanto esperasse para
descobrir a verdadeira função desse venerável órgão?" (U, 308). Dessa maneira, o
romance descasca o indivíduo enquanto um ser incorporado, pensante e falante, e
insiste teimosamente que o leitor não permaneça como si mesmo em face do que lê. E
isso, emprestando palavras de Foucault, seria o prazer e a dor do livro. Minha sugestão,
então, é que se situarmos a nós mesmos na perspectiva da obra tardia de Foucault,
seguindo a análise da noção de experiência que delineei aqui, seremos capazes de dar
conta efetivamente de como a literatura pode operar uma transformação da
experiência. Minha asserção é que obras de literatura são capazes, não tanto (ou não
apenas) de expressar uma experiência, mas de transformar uma experiência. E elas o
fazem intervindo experimentalmente e modificando nossos modos de pensamento –
considerando pensamento no sentido bem amplo delineado acima. Em outras palavras,
podemos compreender as obras de literatura como intervenções experimentais,
transformadoras, na experiência cotidiana do leitor – considerando a experiência
cotidiana junto dos três eixos que a análise de Foucault deixa abertos.

Essa maneira de formular o efeito da literatura, no entanto, levanta um número de


questões importantes que nós não tratamos ainda. Como sabemos, a análise da
experiência de Foucault envolve separar (ao menos em teoria) três aspectos ou eixos:
saber, poder e si mesmo. A primeira questão que pode surgir, então, é se deveríamos
dizer que essa experiência tripartite é transformada apenas se todos os três eixos são
modificados. Em outras palavras, podemos falar de uma transformação que ocorra se
apenas um dos três é afetado? Em primeiro lugar, temos de lembrar que a abordagem
de Foucault quanto à mudança individual e social sempre reconheceu tanto a
necessidade quanto o valor de práticas parciais e não-totalizantes, e não há razão para
supor que sua atitude para com a literatura seria diferente. Podemos sugerir
seguramente, então, que para uma obra como The Unnamable de Beckett ser efetiva
nos termos foucauldianos, não necessariamente precisaríamos modificar nossa
experiência em todos os três eixos. Mas isso ainda deixa a questão quanto às obras de
literatura serem apenas ou particularmente adequadas para afetar um único eixo – que
seria, presumivelmente, o eixo de si mesmo ou da ética. Seguindo essa linha de
raciocínio, podemos sugerir, por exemplo, que uma obra como A Origem das Espécies

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(1859) de Charles Darwin teve um profundo efeito transformador em nossa experiência


no nível do saber, enquanto uma obra como Os Irmãos Karamazov (1879) de
Dostoievsky foi (e continua a ser) mais capaz de afetar uma transformação ética. Isso
implicaria que a ética fosse o domínio no qual a literatura é mais provavelmente efetiva
– ou mesmo o domínio exclusivo no qual ela tenha efeito? Não há dúvida de que essas
são conclusões atrativas, e de certa maneira fáceis de chegar. Mas o problema é que
elas também compartimentalizam muito facilmente os três eixos de que Foucault fala.
Podemos mesmo dizer, por exemplo, qual eixo foi o mais afetado pelo trabalho de
Darwin? Ele não alterou profundamente nosso auto-entendimento em termos de
ciência, religião e ética – de fato, todos os três eixos de nossa experiência? E de maneira
similar, não poderíamos dizer que o valor da obra de Dostoievsky vem de seu olhar
sobre o comportamento humano – e do conhecimento que ganhamos disso – tanto
quanto de sua habilidade de modificar nossa relação com nós mesmos? Indo além,
poderíamos de fato argumentar que ela modifica nossa relação com nós mesmos
precisamente na medida em que modifica o que tomamos como fatos sobre o
comportamento humano. O que isso implica para o caso da literatura é a extrema
dificuldade, se não a impossibilidade, de delimitar claramente os eixos sobre os quais
um efeito se exerce, dadas as consequências reverberantes dos mesmos sobre os outros
eixos. Em outras palavras, para ser breve, temos de considerar seriamente a insistência
de Foucault sobre a interligação íntima desses três eixos, e que eles "só podem ser
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entendidos uns em relação aos outros e não separadamente."

No entanto, ao menos no contexto deste artigo, não é necessário dar um fim


definitivo à complexidade dessas relações. Ao invés disso, seria melhor manter uma
abertura aos múltiplos efeitos dos quais a literatura pode ser capaz. Tudo que
precisamos concluir por ora é que o esquema que delineei aqui nos dá uma maneira de
entender a ideia da qual partimos; qual seja, certas obras de literatura podem nos
compelir a pensar diferentemente. Porque, se é verdade que obras de literatura são
fundamentalmente produtos de seu tempo, essa ideia precisa ser balanceada com a
insistência de que elas podem agir, à maneira de um experimento, tanto em seu tempo
quanto contra ele. Esses minúsculos eventos, esses grãos de areia, têm mesmo seus
efeitos múltiplos e estranhos.

44 "The Return of Morality" (DEIV, 69) 7, op. cit., p. 243.

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