A Operação Ensaio. Jorge Larrosa Buendía
A Operação Ensaio. Jorge Larrosa Buendía
A Operação Ensaio. Jorge Larrosa Buendía
A OPERAO ENSAIO:
Jorge Larrosa
Todos ns nos tornamos maiores. H anos estamos lendo Foucault, explicando Foucault, comentando Foucault, buscando compreend-lo, aplic-lo, uslo, tentando manter viva uma obra que nunca quis ser obra, tratando de seguir trabalhando em alguma das mudanas que levam o seu nome, tentando pensar em alguma das direes que ele apontou. Mas, neste tempo, senhoras e senhores1, todos ns nos tornamos maiores. Passados vinte anos da morte de Foucault, talvez seja a hora de fazer o balano. Talvez tenhamos nos reunido para isso. No entanto, nesses vinte anos, somos ns que nos tornamos maiores, e tenho a sensao de que, para muitos de ns, que nos tornamos maiores, um balano da obra de Foucault se confunde com um balano de ns mesmos. Por isso, fazer um balano do que h de vivo na obra de Foucault supe, talvez, fazer um balano do que h de vivo em ns: nas nossas palavras, nas nossas idias, na nossa forma de escrever e de ler, na nossa forma de pensar, em todas essas coisas que somos e fazemos e que, de algum modo, a leitura de Foucault contribuiu e talvez siga contribuindo para formar e transformar. No tenho a menor dvida de que, sem Foucault, vocs e eu seramos outros. No sei se melhores ou piores, mas, em qualquer um dos casos, outros. Ns somos, talvez j, inevitavelmente, os que lamos Foucault. Para mim, como para muitos de vocs, a obra de Foucault marcou os anos da juventude, os anos da aprendizagem, os anos das decises, os anos em que a gente se leva a srio, os anos em que talvez se configura o fundamental de nosso modo de situar-nos em relao ao mundo, aos outros e a ns mesmos. Mais concretamente, os anos nos quais se constitui o fundamental de nossa maneira de nos depararmos com esse nosso estranho ofcio das palavras e das idias. Para mim, a marca de Foucault est na formao do meu modo de escrever e de ler, do meu modo de pensar, do meu modo de habitar esse paradoxal ofcio de professor, esse ofcio que tem a ver com escrever e fazer escrever, com ler e dar a ler, com certos modos de falar e de ouvir, modos de pensar e de dar a pensar. Depois, como muitos de vocs, segui lendo, explicando e comentando Foucault, mesmo que cada vez menos, e tratei de aplicar algum de seus conceitos ou desenvolver algum de seus problemas, mesmo que cada vez menos. Agora sei muito mais de Foucault do que sabia, e creio que o entendo melhor do que entendia. Inclusive, possvel que, direta ou indiretamente, eu tenha feito alguma contribuio ao desenvolvimento dos estudos foucaultianos, em algum dos campos em que trabalhei. Agora me tornei maior. No entanto, o nome Foucault e, portanto, esta reunio que estamos fazendo em nome de Foucault me traz, inevitavelmente, esse inquietante aroma de juventude. talo Moricone, em sua conferncia neste mesmo seminrio, falou de como Foucault foi recebido nos ambientes intelectuais e militantes do Rio de Janeiro, como um modo juvenil de pensar, como a forma-juventude de fazer filosofia, como a forma-juventude do sujeito filosfi-
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co. Isso foi o que tambm aconteceu comigo na minha juventude. Talvez seja por isso que, quando pensava o que seria este encontro, e quando decidia qual poderia ser a minha contribuio para o mesmo, me deu vontade de lhes propor um balano, s que no de Foucault, mas de ns mesmos, do que significa para cada um de ns o fato de que, marcados profundamente pela leitura juvenil de Foucault, nos tornamos maiores. Alguns de vocs devem estar temendo um exerccio retrospectivo de carter marcadamente senil e, portanto, to narcisista como carente de interesse, em relao a saber como chegamos a ser o que somos ou, o que seria ainda pior, um discurso de carter marcadamente moralista logo, insuportvel , sobre a fidelidade ou a traio aos nossos propsitos da juventude, sobre o que permanece e o que no permanece em ns do tempo em que ramos jovens e lamos Foucault. Espero no cair nisso. Mas, sim, quero comear este exerccio com uma pequena nota autobiogrfica que o justifique. E que diga algo, talvez no completamente trivial, sobre o que que significa, ao menos para mim e, talvez, para alguns de vocs, o fato de que houve um tempo em que lamos Foucault e que, agora, nos tornamos maiores. Dizem que quando Foucault era jovem queria ser Blanchot. Talvez possamos pensar, pelos desvios de sua obra, que mais tarde ele quis ser um grego da poca clssica, talvez um epicurista ou um cnico. Embora, isto sim, um epicurista que tivesse lido Blanchot. E, por meio de Blanchot, a Nietzsche. E, por meio de Nietzsche e de Paul Veyne, aos gregos. A mim me parece que Foucault queria mesmo era ser um grego no sculo V antes de Cristo, que dava conferncias numa Califrnia do final do sculo XX, na qual ainda percebiam-se as marcas contraculturais dos anos 70. Eu, quando era jovem, queria ser Foucault. Em algum momento dessa juventude cada vez mais distante, passei uns meses em Paris, no arquivo de Foucault, que ento estava na mesma biblioteca na qual Foucault tinha trabalhado nos ltimos anos de sua vida. Nessa biblioteca estava no s a obra de Foucault, como, tambm, muitos dos textos gregos e latinos que Foucault lia e consultava. De sorte que, quando encontrava uma citao de Sneca ou de Marco Aurlio, podia me permitir o luxo de pedir os mesmos exemplares de Sneca ou de Marco Aurlio que Foucault tinha lido, s vezes com marcas e sublinhados do prprio Foucault, e continuar a leitura. Ento, o que me aconteceu que passava mais tempo lendo Sneca e Marco Aurlio do que ao prprio Foucault. Por outro lado, como o que eu queria era ser francs, e no espanhol, e como cada vez mais tinha a impresso de que Foucault era talvez um dos maiores nessa maravilhosa tradio dos moralistas franceses que comea com Montaigne e que atravessa, de forma to nobre, a assim chamada Ilustrao com personalidades do porte de Montesquieu ou de Voltaire, ou do prprio Rousseau , comecei a ler Montaigne, num francs do sculo XVIII, que me lembrava o rstico catalo dos meus avs. Se para ser espanhol preciso ler Dom Quixote, para ser francs, pensava eu, h que se ler Montaigne. E a sim veio o deslumbramento. Tanto que
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decidi que queria mesmo era ser Montaigne. Embora, isto sim, um Montaigne que tivesse lido Foucault e que, talvez, at poderia dar conferncias, seno na Califrnia, em alguns lugares desse Brasil brasileiro que ento, para mim, era somente uma vaga imagem do distante. Naquela poca eu andava tomando notas para aquilo que, depois, seria o meu primeiro livro; um livro sobre a experincia da leitura, mas, acima de tudo, um livro no qual eu estava aprendendo a escrever, no qual eu tratava de criar um estilo prprio (com o perdo da expresso), no qual tentava apropriar-me de uma certa biblioteca e, tambm, por que no dizer, apropriar-me de alguns assuntos em relao aos quais eu poderia me apresentar como especialista. Esse livro, naturalmente, tem um captulo sobre Montaigne e um captulo sobre Foucault; e como, quando finalmente foi publicado, eu j tinha feito alguma conferncia no Brasil, tambm tem um captulo que resultado de uma conversa em Porto Alegre com Alfredo Veiga-Neto, um dos responsveis pelo fato de o Brasil ser hoje, em parte, foucaultiano. Para que vocs tenham uma idia daquela bela primavera em Paris, na qual eu traa Foucault lendo Montaigne, na qual eu tentava me distanciar do concurso de imitadores de Foucault, querendo ser Montaigne e, talvez ai de mim! para recuperar algo desse esprito de juventude... algo do aroma daquele tempo no qual, entre Foucault e Montaigne, eu ainda estava buscando a mim mesmo, vou ler pra vocs, na seqncia, um fragmento do meu dirio daqueles dias.
Passo as manhs com Foucault e as tardes com Montaigne. Me interessa o que dizem, claro, mas me interessa, acima de tudo, seu modo de escrever e de ler, suas reflexes sobre a escrita e a leitura. O que eu gosto de passar as manhs com Foucault em sua biblioteca, com seus livros, com os livros que ele lia, que ele citava, em relao aos que ele pensava... E passar as tardes com Montaigne, imaginando-o, tambm, em sua biblioteca, nesse movimento quase enlouquecido entre as estantes que armazenam a leitura e a mesa que centra a escrita. A biblioteca em que passo as manhs est cheia de foucaultianos de todas as raas, de todas as lnguas e de todas as idades, que tentam falar como Foucault, pensar como Foucault, rir como Foucault, viver como Foucault e at morrer como Foucault. Nessa biblioteca, s vezes, tenho a estranha sensao de estar participando de um concurso de dubls de Foucault. Tanto assim que penso, s vezes, que mesmo que nos intitulemos pesquisadores, todos viemos aqui com a secreta inteno, seno de ser Foucault, ao menos de que algo dele se encarne em ns. Mas no banco em que passo as tardes lendo Montaigne, vendo passar as garotas e pensando em minha vida, no mundo e em ti, sei que o que eu gostaria de verdade ser Montaigne, esse cavalheiro francs asctico, elegante, corts, constantemente assombrado pela riqueza da vida; esse homem do mundo, mundano no bom sentido da palavra, esse vivente, tambm no bom sentido da palavra, com uma liberdade interior quase inimaginvel, capaz de uma enorme ternura com tudo o que o rodeava, uma ternura que nunca sentimental; esse homem que viveu entre os livros, mulheres e cavalos,
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sempre com o corao na mo, ou com o corao na pena, ou com o corao na lngua, sincero, mas, ao mesmo tempo, discreto e contido; esse homem que fez, do cultivo paciente e obsessivo dos seus cios e distanciamentos, uma obra, mas que tambm trabalhou quando teve que trabalhar, com toda a honestidade e sem nenhuma esperana; esse homem que inventou o ensaio e que fez de sua vida um ensaio com essa paixo, esse frescor, esse vigor, essa inocncia e essa despreocupao que prpria dos comeos de qualquer coisa, antes de sua cristalizao em frmulas; esse homem cuja lngua me capturou nesta belssima primavera na qual estou dedicando as manhs para estudar Foucault, esse outro escritor com o qual tambm estou aprendendo o que significa ensaiar e o que significa ensaiar-se.
Ensaiar e ensaiar-se, disso se tratava, para mim, naquela primavera parisiense. Por um lado, estava trabalhando nisso, as tecnologias do eu e as artes da existncia. Por outro, j estava pensando na forma e no contedo daquilo que viria a ser o meu primeiro livro, selecionando minhas leituras, formando meu estilo, configurando minhas temticas. No meio disso tudo, estava buscando a mim mesmo, pensando em quem eu era e no que eu queria fazer comigo mesmo. Estava comeando a ensaiar e a ensaiar-me. E a que a leitura de Foucault misturou-se de Montaigne. Poderia se dizer que essa primavera parisiense marcou meus ltimos anos de formao. E agora que me tornei maior continuo com isso do ensaiar e do ensaiar-se, mas de outra forma, girando em torno da experincia na leitura e na escrita, elaborando a relao entre experincia e subjetividade, e entre experincia e pluralidade, tentando problematizar as trs maiores linguagens da experincia: o poema, a narrativa e o ensaio. Enfim, nisso que ando agora, lendo outra vez Montaigne, Adorno, Luckcs, Musil, Benjamin, Foucault, tentando sondar como o ensaio pode ser tomado como uma linguagem da experincia, como uma linguagem que modula de um modo particular a relao entre experincia e pensamento, entre experincia e subjetividade, e entre experincia e pluralidade. E tentando pensar, em relao a isso, os limites e as possibilidades de minhas prprias opes de escrita. E a, nesse contexto, que preparei a minha participao nesta reunio, na qual eu j no sei se fao um balano da obra de Foucault ou um balano de mim mesmo.
Ensaio e experimentao
Se minha alma pudesse dar p, eu no me ensaiaria, me resolveria; mas ela se encontra sempre em aprendizagem e prova. Montaigne
Na introduo ao segundo volume da Histria da sexualidade, O uso dos prazeres um escrito que est entre o programtico e o testamentrio , Foucault nomeia o seu trabalho com a palavra ensaio, assim, entre aspas. Todos vocs
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conhecem a citao. Mas no vou l-la agora para depois coment-la, mas, sim, vou fazer exatamente o contrrio. Vou deixar essa citao para o final, para l-la depois da minha interveno, depois de fazer algumas consideraes sobre o ensaio. No tanto sobre a forma do ensaio, mas sobre a operao do ensaio, sobre o que acontece ao pensamento quando ensaia, e escrita, e vida; sobre porque, s vezes, o pensamento e a escrita e a vida ensaiam, se fazem ensaio. Diz-se, com razo, que h tantos ensaios como ensastas, que o ensaio , justamente, a forma no regulada da escrita e do pensamento, sua forma mais variada, mais protica, mais subjetiva. Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio uma atitude existencial, um modo de lidar com a realidade, uma maneira de habitar o mundo, mais do que um gnero da escrita. Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio o escrito precipitado de uma atitude existencial que, obviamente, mostra enormes variaes histricas, contextuais e, portanto, subjetivas. Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio uma determinada operao no pensamento, na escrita e na vida, que se realiza de diferentes modos em diferentes pocas, em diferentes contextos e por diferentes pessoas. Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio o modo experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como uma escrita que d o que pensar; e o modo experimental, por ltimo, da vida, de uma forma de vida que no renuncia a uma constante reflexo sobre si mesma, a uma permanente metamorfose. Todos vocs conhecem a importncia que tem, em Foucault, essa tripla atitude experimental. E todos vocs devem ter atentado para a freqncia em que aparece a palavra experincia nos momentos em que Foucault tenta dar conta de suas intenes como escritor, como pensador, como militante, particularmente nos prlogos de suas obras maiores, nas introdues a seus cursos ou em muitas das entrevistas. De modo que, no interior dessas consideraes sobre a operao ensaio, sobre a relao entre ensaio e experincia, sobre o ensaio como uma das linguagens da experincia, tentarei perfilar por que Foucault um ensasta e, acima de tudo, como o , qual a sua forma peculiar de realizar a operao ensaio. esse o assunto que gostaria de submeter s suas consideraes. E se a obra de Foucault fosse uma operao-ensaio no pensamento, na escrita e na vida? E se fosse, tambm, uma operao sobre o ensaio? Porque o retorno do ensaio s pode ser problemtico. Uma das caractersticas do ensaio , precisamente, uma incessante problematizao e reproblematizao de si mesmo. Portanto, a questo no seria a da permanncia, em Foucault, de um gnero tradicional, de um gnero que nasce com a modernidade e se desenvolve com ela, mas o modo como Foucault reinventa o ensaio, operando sobre aquelas peculiaridades que o constrangem a ser um gnero moderno. A questo seria o modo como Foucault opera sobre o ensaio, para faz-lo habitvel e operativo, alm de seus limites histricos. Vou comear, ento, a tratar desse assunto de um modo, sem dvida, esquemtico e provisrio, e s depois, ao final desta conferncia, lerei outra vez
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essa famosa citao que tantas vezes lemos, que quase sabemos de cor, com a esperana de ter ampliado a sua sonoridade, de ter multiplicado suas ressonncias, e com a esperana, por que no dizer?, de que nos diga algo sobre ns, agora que nos tornamos maiores, mais alm ou aqum do esclerosamento escolar de uma obra cujos contornos nos so cada vez mais ntidos e em cujos limites e possibilidades ainda trabalhamos, os que estamos aqui, em diferentes contextos e com diferentes destinos.
Ensaiar no presente
Esta ordem no to firme como aparenta; nenhum objeto, nenhum eu, nenhuma forma, nenhum princpio seguro; tudo sofre uma invisvel, porm incessante, transformao; no instvel, o futuro tem mais possibilidades que no estvel, e o presente nada mais que uma hiptese ainda no superada. R. Musil No temos como herana mais do que vento e fumaa. Montaigne
O ensaio surge quando se abre a possibilidade de uma nova experincia do presente. Primeiro, quando o passado perdeu toda a autoridade e, portanto, volta a ser lido a partir do presente, mas sem nenhuma reverncia, sem nenhuma submisso. Segundo, quando o futuro aparece como algo to incerto, to desconhecido, que impossvel se projetar nele. Terceiro, quando o prprio presente aparece como um tempo arbitrrio, como um tempo que no foi escolhido, como um tempo que s pode ser tomado como uma morada contingente e provisria, na qual sempre nos sentiremos estranhos; como um tempo que escorre constantemente das nossas mos, resistindo a qualquer uma das nossas tentativas de fix-lo, de solidific-lo, de traar a sua forma e o seu perfil. O ensaio uma escrita no presente ou, melhor dizendo, uma escrita que estabelece uma certa relao com o presente. H uma vinculao bem estreita entre o ensaio e a atualidade. Mas uma vinculao que , ao mesmo tempo, uma distncia ou, melhor, que se produz atravs da distncia. Em Foucault, que um ensasta fantasiado de historiador, trata-se de uma relao com o presente, que se produz por meio de uma distncia temporal, construda de um modo muito especfico. O ensaio no se situa fora do tempo, mas no tempo e, alm disso, num tempo consciente de sua fugacidade, de sua caducidade, de sua finitude, de sua contingncia. O ensaio tambm , mesmo que de outra forma, palavra no tempo, pensamento no tempo. Poderamos dizer que o ensasta pensa e escreve sabendo-se mortal, sabendo que tanto suas palavras como suas idias so mortais e que, talvez por isso, esto vivas. O ensasta sabe que nasceu e que morrer.
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Sabe que tudo o que , suas palavras e suas idias, seu modo de se relacionar com o mundo, com os outros e consigo mesmo, tem um comeo e um fim. S pode pensar a si mesmo a partir dessa origem e desse fim, no tempo que vai desde o seu nascimento at a sua morte, no tempo que lhe tocou viver, no tempo que lhe tocou pensar, no tempo que lhe tocou escrever. No entanto, no ensaio no se trata do presente como realidade, mas como experincia. No ensaio trata-se de dar forma a uma experincia do presente. essa experincia do presente a que d o que pensar, a que deve ser pensada. A questo do ensaio o que nos acontece agora, quem somos agora, o que podemos pensar e o que podemos dizer e o que podemos experimentar agora, neste exato momento da histria. Por isso, quando o ensasta adota a mscara do historiador, o tema de suas histrias no o passado, mas o presente. O que interessa ao ensasta-historiador a histria do presente: no a verdade de nosso passado, mas o passado de nossas verdades; no a verdade do que fomos, mas a histria do que somos, daquilo que, talvez, j estamos deixando de ser. Vocs sabem como se constri essa relao com o presente na arqueologia, na genealogia: a arqueologia de nossos saberes, a genealogia de nossas prticas. Vocs sabem como aparece a questo da atualidade explicitamente tematizada em O que a Ilustrao?; qual a relao que a se estabelece com a maneira de interrogar o presente de Kant, de Baudelaire, nessa relao explcita entre uma experincia do presente e algumas formas de subjetividade. Vocs tambm sabem como se apresenta a questo do presente, nessa ampliao da distncia histrica que se produz com o salto aos gregos. Sempre se trata de criar uma distncia entre ns e ns mesmos. Sempre se trata de desconjuntar o presente, de desnaturalizar o presente, de estranhar o presente, de converter o presente, no em um tema, mas em um problema, de fazer com que percebamos quo artificial, arbitrrio e produzido o que nos parece dado, necessrio ou natural, de mostrar a estranheza daquilo que nos mais familiar, a distncia do que nos mais prximo. Foucault produz essa desfamiliarizao do presente, usando um recurso retrico de origem nietzschiana: nem sempre fomos o que somos. Vocs conhecem os comeos de Foucault: a razo uma inveno recente, o homem uma inveno recente, a priso uma inveno recente, a escola uma inveno recente, a infncia uma inveno recente, a normalidade uma inveno recente, a sexualidade uma inveno recente. Muitos dos livros de Foucault comeam com um momento de estranhamento, com a localizao no passado de algo em que, claramente, no podemos nos reconhecer: o suplcio de Damiens em Vigiar e punir, a nau dos loucos na Histria da loucura, e poderamos multiplicar os exemplos. Trata-se de proibir a racionalizao retrospectiva, a histria linear, o sujeito constante e fundador. Trata-se de produzir, entre ns e o nosso passado, fraturas, diferenas, mutaes, descontinuidades. Trata-se de apontar para algo de nosso passado que no podemos chamar de nosso, que possa ser tomado como o outro do que somos.
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E se nem sempre fomos o que somos, claro que nem sempre seremos o que somos. Vocs sabem como funcionam as fices de futuro em Foucault. Se na relao com o passado se trata de proibir toda a racionalidade retrospectiva, na relao com o futuro trata-se de proibir toda a racionalidade projetvel. Nada de propor essas alternativas que no so outra coisa do que uma projeo idealizada e deslocada do que somos. No modo que nos constitui, de marcar o tempo que vir, imaginar outro sistema ainda faz parte do sistema, desenhar uma imagem do futuro ainda faz parte das convenes do presente. Nada de utopias, essas confortveis avenidas nas quais a continuidade entre o que somos e o que queramos ser fica sublinhada, idealizada, magnificada. Vocs conhecem o uso magistral que Foucault faz desse efeito retrico da retro-profecia, de profetizar o olhar para trs, a partir de um tempo futuro, no qual o nosso presente aparecer como estranho, como arbitrrio, como extico, como incompreensvel. Trata-se de projetar o prximo fim do que somos e imaginar, a partir desse lugar fictcio, algum que nos olhar com esse mesmo rosto atnito com o qual ns lemos o suplcio de Damiel ou o suave deslizar da nau dos loucos. Naturalmente, a questo o que o presente, o que o presente nos diz. Para isso, h que se buscar signos do presente, detalhes significativos, talvez miudezas, aspectos mnimos que paream banais, mas contemplados de outro modo, partindo de outro ponto de vista, de outra disposio, de modo que apaream como vistos pela primeira vez. Trata-se de procurar detalhes que possam funcionar como sintomas, tambm no sentido mdico da palavra: sintomas de nossa sade e de nossa doena, de nossa vida e de nossa rigidez, do que somos e j no podemos ou j no queremos ser. A est a magia e o talento do ensasta, nesse olhar afinado que lhe permite prestar ateno quilo que habitualmente passa desapercebido, ao detalhe, mas que, ao mesmo tempo, consegue que esse detalhe aparea sob uma nova perspectiva e que se amplie at o infinito, que expresse todo um mundo e toda uma forma de habit-lo e, ao mesmo tempo, o estranhe at torn-lo inabitvel. Ou torn-lo habitvel, mas, precisamente, nesse estranhamento. Darei um exemplo. Alfredo Veiga-Neto acaba de me passar um texto muito belo que escreveu com Maura Corcini e que tem como epgrafe uma frase de As palavras e as coisas, que diz assim: aparentemente, este lugar simples. O texto uma descrio mais ou menos foucaultiana de uma fotografia que representa o fragmento de uma aula, de uma sala de aula. A foto de um lugar evidente, conhecido, aparentemente simples, mas que o talento do ensasta capaz de ampliar at derivar dele toda uma concepo do espao e do tempo escolar, toda uma concepo da ordem pedaggica, de seus rituais, de suas regras, de seus limites e de suas possibilidades, tambm das resistncias e das transgresses que se produzem em seu interior. Mas o presente difcil. A experincia do presente que o ensasta isola e pensa tem que abrir caminho entre os porta-vozes do presente, entre os donos do presente, entre o rudo ensurdecedor de tudo aquilo que nos dado e nos vendido como presente, entre as imagens por demais evidentes com as quais,
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constantemente, se fabrica o presente. Por isso o ensaio uma escrita no presente e para o presente, mas para o enfrentamento das certezas e das evidncias do presente, para a des-realizao do presente. Uma des-realizao do presente, que tem conseqncias inevitveis na des-realizao do passado e, ento, na des-realizao do futuro. Essa seria, para mim, a primeira operao de Foucault sobre o ensaio e sua marca em todos ns, leitores j velhos de Foucault: pensar o presente do ponto de vista de sua des-realizao. Por isso os velhos leitores de Foucault tm srios problemas no s com a idia de realidade, no s com o assim chamado realismo filosfico, literrio, epistemolgico, artstico ou de qualquer outro tipo, mas com a prpria realidade. A realidade, juntamente com a sua origem e o seu destino, sua aceitao e sua transformao j , para ns, talvez para sempre, um problema. E a experincia do presente j se tornou, para ns, e talvez para sempre, o mais difcil.
O ensaio aparece com o eu, com o sujeito, com o sujeito moderno, mas no em sua fora, em seu orgulho, mas em sua precariedade, em sua relatividade, em sua contingncia. Da a auto-ironia existencial, a relativizao constante do eu, a rejeio permanente ao que poderamos chamar, com Adorno, a coao da identidade. Poderamos dizer que o ensaio participa de um dos princpios estruturantes do pensamento moderno: o sujeito como lugar e fundamento da verdade. Dissolvidas as garantias transcendentais, o sujeito no tem outro fundamento a no ser aquele que ele mesmo seja capaz de se dar. Por conseguinte, trata-se de um sujeito que, na modernidade, oscila entre sua precariedade e sua arrogncia, o reconhecimento de sua insubstancialidade e sua vontade de fazer- se a si mesmo e de fazer o mundo. Mas mesmo que seja em sua face mais frgil, mais pessoal e mais modesta, o ensaio pertence, sem dvida, a esse sistema de pensamento que Foucault chamou de pensamento antropolgico. O ensaio uma escrita e um pensamento em primeira pessoa ou, melhor dizendo, uma escrita e um pensamento que estabelece uma certa relao com a primeira pessoa: que diz eu, mesmo no dizendo eu, que diz ns mesmo que a forma que esse ns adota seja um de seus maiores problemas. Alm disso, a primeira pessoa no est presente necessariamente como tema, mas como ponto de vista, como olhar, como posio discursiva, como posio pensante. O ensasta, necessariamente, no pe a si mesmo em sua escrita, em
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sua linguagem ou em seu pensamento, mas, sem dvida, tira algo de si e, acima de tudo, faz algo consigo mesmo escrevendo, pensando, ensaiando. Trata-se no tanto da verdade subjetiva, como da verdade da subjetividade, na convico de que o comunicvel, o transmissvel, o que vale a pena escrever, o que vale a pena pensar no o real abstrato e nem o real emprico; no a verdade mais ou menos definitiva do que so as coisas, mas a experincia viva de algum, o sentido sempre aberto e mvel do que nos acontece. No se trata de medir o que h, mas de medir-se com o que h, de experimentar seus limites, de inventar suas possibilidades. A verdade do ensasta no algo exterior, mas algo que a prpria vida faz. Trata-se da verdade da subjetividade, da verdade feita subjetividade e de uma subjetividade que se faz verdadeira no ato mesmo de ensaiar-se. O ensasta sempre escreve e pensa sobre si mesmo e a partir de si mesmo. O valor de sua escrita e de seu pensamento no se apia em nada exterior, em nenhuma autoridade, em nenhuma conveno. Por isso, o ensasta arca com a responsabilidade do que dito, e essa responsabilidade que o torna verdadeiro. O ensaio tem algo da expresso de uma subjetividade, da biografia de uma subjetividade. Mas desde que essa subjetividade expresse um mundo, o seu mundo. E, tambm, desde que essa subjetividade se ponha prova, se ensaie, se invente e se transforme. Por isso, o ensasta no s pe em questo o que somos, o que sabemos, o que pensamos, o que dizemos, o modo como olhamos, como sentimos, como julgamos, mas, acima de tudo, pe em jogo a si mesmo nesse questionamento. Por isso, o ensaio , tambm, olhar a existncia a partir dos possveis, ensaiar novas possibilidades de vida. A questo seria, ento, se o ensaio pode dar conta dessa subjetividade que, ao mesmo tempo, reivindica uma experincia no antropolgica ou no subjetiva do pensamento, da escrita e da vida. Foucault fez algumas operaes a esse respeito. Foucault emancipou o ensaio da figura do autor, da figura desse que o duplo literrio do conceito filosfico de sujeito. E o desmascarou como fico, como efeito da linguagem, destituiu-o de sua soberania. E Foucault transformou, tambm, a relao entre o sujeito e a verdade. Em primeiro lugar, desnaturalizando o dispositivo cientfico-tcnico moderno, a partir do qual se definem as regras dos jogos de verdade. Em segundo lugar, criticando um certo modo de vinculao entre subjetividade e verdade e convidando a uma certa des-sujeio de si mesmo em relao s polticas da verdade. Por fim, tornando verdadeiro uma experincia de verdade aquilo que no deixa de destituir aquele que fala e de questionar seu prprio discurso, aquilo que no deixa de destituir aquele que pensa e de questionar seu prprio pensamento, aquilo que no deixa de destituir aquele que vive e de questionar a sua prpria vida, sua prpria existncia. O ensaio, ento, no mais a expresso de um sujeito, mas o lugar no qual a subjetividade ensaia a si mesma, experimenta a si mesma, em relao sua prpria exterioridade, quilo que lhe estranho. O ensaio como
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modo de escrita, de pensamento e de vida, no qual o sujeito faz a experincia de sua prpria contingncia e de sua prpria transformao. Por isso, no ensaio, o importante no a posio do sujeito ou a o-posio ao sujeito, mas a exposio do sujeito; uma exposio que um experimento de si no sentido ativo de quem faz uma experincia ou no sentido passional de quem padece uma experincia. O sujeito do ensaio, a primeira pessoa do ensaio, um sujeito, ou uma primeira pessoa que se ensaia, um sujeito ou uma primeira pessoa experimentador e experimental. Essa seria, para mim, a segunda operao de Foucault sobre o ensaio e sua marca em todos ns, leitores j velhos de Foucault: pensar o sujeito, essa primeira pessoa do singular que pensa, que escreve e que vive, do ponto de vista de sua transformao. Por isso, para ns, velhos leitores de Foucault, a primeira pessoa do singular, essa pessoa que diz eu quando pensa, quando escreve ou quando vive, j , talvez para sempre, um problema, e j se fez para ns, talvez para sempre, o mais difcil.
Ensaiar distncia
Eu no pinto o ser, pinto o devir. Montaigne Homens de atos ou homens de ar, essa a alternativa. T.W. Adorno
O ensasta abre e ajusta uma distncia. Essa distncia no s nos separa do mundo, da realidade, do presente, mas, acima de tudo, nos separa de ns mesmos. A questo se essa distncia ainda pode ser chamada de uma distncia crtica ou de uma distncia reflexiva, ou se conviria, talvez, aquilo que Toms Abraham, na conferncia de abertura deste mesmo seminrio, chamou de uma distncia mediadora. O ensaio nasce com a crtica, o gnero da crtica. No entanto, talvez seja preciso corrigir o que entendemos por crtica. Em primeiro lugar, se o ensaio o gnero da crtica, porque o gnero da crise, da crise de uma certa forma de pensar, de falar, de viver. A experincia do presente faz desse mesmo presente um momento crtico, de transio, de mutao. E nessa mutao que o ensasta se quer inserir. O ensaio a escrita de um tempo inseguro e problemtico, de um tempo deriva, como dizia Montaigne. Por isso, o ensaio floresce no Renascimento tardio, quando termina a grande cultura medieval com base teolgica; tambm no Sculo das Luzes, quando o esprito crtico do Iluminismo coincide com a crise das filosofias sistemticas do sculo XVII; tambm no sculo XIX, ao final das grandes construes do idealismo; e talvez agora, no nosso presente, com a crise da modernidade.
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Por isso est ligado perplexidade. E ao ceticismo. O ensaio tem algo de suspender o juzo. Aparece quando a faculdade de julgar some, quando os critrios com os quais podemos julgar o que ou o que deveria ser, no existem. H no ensaio uma renncia segurana da teoria, segurana da prtica. Por isso, est vinculado ao antidogmatismo em todas as suas formas: nem a segurana do sistema, nem a segurana do mtodo, nem a segurana da idia, nem a segurana dos fatos. O ensasta no pode falar em nome de nada: nem em nome do saber sobre o presente, nem em nome do poder sobre o futuro. O ensasta pratica a skepsis (crtica e indagao), mais do que a gnosis (saber). Mas trata-se de uma skepsis que se conserva como skepsis, que no almeja transformar-se em gnosis. O ensasta no faz do ceticismo um saber, mas uma atitude. No ensaio funciona uma crtica imanente. A crtica parcial, provisria, aberta, sem fundamentos transcendentes. Trata-se de uma crtica fundada na experincia e, ao mesmo tempo, experimental, que abre a experincia. Trata-se, tambm, de uma crtica reflexiva, dobrada sobre si mesmo. No ensaio, a crtica confunde-se com a autocrtica, com o desprendimento de si, com um desprendimento que tem a ver com a des-sujeio dos jogos de verdade e dos jogos de poder, das inumerveis redes que tecem a verdade e o poder, tanto do lado do poder da verdade, quanto do lado da verdade do poder. Por isso, no ensaio, a crtica , indiscutivelmente, um exerccio de liberdade ou de libertao, uma ascese da liberdade. O ensasta s pode confiar-se criticamente prpria experincia, s lhe resta experimentar, ver e fazer ver at onde possvel falar e pensar de outro modo, at onde possvel viver de outro modo. Por isso, no se trata, no ensaio, de cotejar a realidade com a idia, mas de cotejar a experincia em relao verdade do poder e ao poder da verdade. Algo que, talvez, se chame pensamento. Esta seria, para mim, a terceira operao de Foucault sobre o ensaio e sua marca em todos ns, leitores j velhos de Foucault: pensar a crtica, ou a meditao, ou o pensamento, como um exerccio de liberdade, como um exerccio mais afirmativo do que negativo, mais criativo do que militante, mais de exposio do que de oposio. Por isso para ns, velhos leitores de Foucault, a crtica j , talvez para sempre, um problema; e se tornou, para ns, o mais difcil.
Ensaiar escrevendo
Os outros formam o homem, eu o recito. Montaigne
A escrita um dos lugares do ensaio. No h dvida de que certos modos de produo artstica tambm so atravessados pela operao ensaio. Seria interessante, talvez, pensar a partir desta perspectiva algumas das formas arts-
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ticas mais experimentais das vanguardas histricas e de seus herdeiros. Alguns dos cineastas da Escola de Barcelona, desconfortveis frente distino entre o cinema documental e o cinema de fico, e longe, desde sempre, de toda inteno didtica ou terica, o que poderamos chamar de cinema de tese, chamam de ensaios s suas produes. Tenho a sensao de que algumas das formas mais interessantes de renovao do romance o aproximam do ensaio, e no penso em Saramago. Alm disso, em todos esses domnios, tambm se operaram profundas transformaes na concepo do que seja a realidade (com novos conceitos e novas prticas do realismo), no que seja o autor, ou a obra, nas relaes entre a arte e a verdade, a arte e a crtica, a arte e a liberdade. Em muitos domnios tambm se poderia pensar em algo assim como um retorno do ensaio, um retorno que , tambm, uma reinveno no momento que, ao reinventarse, ao retornar problematicamente, o ensaio se dirige a outra coisa, libertando-se de seus pressupostos modernos. Sabemos que Foucault foi muito sensvel literatura e s artes. Sabemos que Foucault fez de sua relao com a literatura e com as artes algo mais profundo do que uma ocupao marginal, e algo mais profundo do que uma ocupao crtica. Foucault nunca fez crtica literria, e sequer filosofia da literatura ou da arte. Para Foucault, talvez, a literatura foi um dos lugares que ele escolheu para uma meditao sobre a relao entre escrita e pensamento. Por isso, a ltima parte desta conferncia no pode ter outro lugar do que esse entre, entre pensar e escrever, entre escrever e pensar; o que seria uma escrita que pensa e que pensa sobre si mesma, e um pensamento que escreve e que escreve sobre si mesmo. sabido que o ensaio considerado como um hbrido entre a filosofia e a literatura. Sua vontade de verdade o habilita como filosfico, e a sua vontade de estilo, como literrio. Entretanto, no ensaio, tanto a verdade como o estilo so inseparveis do sujeito e so inseparveis da vida, da inveno e da experimentao de possibilidades de vida, de formas de vida, de estilos de vida. Mas a que aparecem os problemas. No ensaio moderno, precisamente por sua vontade de autoria, o estilo expressa, ao mesmo tempo, a experincia de um sujeito e a construo de um mundo. No ensaio moderno, o estilo o homem, ou o autor, ou o sujeito. O estilo a marca da subjetividade na linguagem. E na verdade. Mas na obra de Foucault trata-se de outra coisa. A questo da literatura e sua sobreposio com a questo da escrita, da escrita pensante e da escrita do pensamento, no tem a ver somente com os recursos expressivos, mesmo que, nos recursos expressivos, no h dvida de que Foucault um escritor deslumbrante. Poderamos dizer que, em Foucault, a questo da escrita o ncleo fundamental no qual afirma e, ao mesmo tempo, problematiza sua vocao filosfica e sua concepo do pensamento. Foucault, a um s tempo, faz da filosofia, fico, e da literatura, verdade. E a a escrita aparece como o lugar do pensamento e como o enigma de um fosso reflexivo que
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se abre. Em Foucault, o pensamento se faz escrita, se pensa como escrita e, no limite, se dissolve em escrita. E justamente ao dissolver-se como escrita que ele se abre para a sua prpria transformao, para seu prprio ensaio. Em Foucault, ensaiar seria uma experincia simultnea de escrita e pensamento, uma experincia na qual se decidiria o que nos dado dizer e o que nos dado pensar, ao mesmo tempo, no presente, na primeira pessoa. E essa seria, para mim, a quarta operao de Foucault sobre o ensaio e a sua marca em todos ns, leitores j velhos de Foucault: transformar em problema a relao entre escrita e pensamento. Agora j sabemos que pensar de outro modo exige escrever de outro modo, que nossa vontade de um outro pensamento inseparvel de nossa vontade de uma outra escrita, de uma outra lngua. Por isso, para ns, leitores j velhos de Foucault, a escrita j , talvez para sempre, um problema, e a escrita se fez para ns o mais difcil.
Ensaiar
E agora sim, a citao:
Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero, esse motivo poder ser suficiente por ele mesmo. a curiosidade em todo caso, a nica espcie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinao: no aquela que procura assimilar o que convm conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinao do saber se ele assegurasse apenas a aquisio dos conhecimentos e no, de certa maneira, e tanto quanto possvel, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questo de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se v, indispensvel para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo tm que permanecer nos bastidores; e que nos mximo eles fazem parte desses trabalhos de preparao que desaparecem por si ss a partir do momento em que produzem seus efeitos. Mas o que filosofar hoje em dia quero dizer, a atividade filosfica seno o trabalho crtico do pensamento sobre o prprio pensamento? Se no consistir em tentar saber de que maneira e at onde seria possvel pensar diferentemente em vez de legitimar o que j se sabe? Existe sempre algo de irrisrio no discurso filosfico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde est a sua verdade e de que maneira encontr-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingnua; mas seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu prprio pensamento, atravs do exerccio de um saber que lhe estranho. O ensaio que necessrio entender como experincia modificadora de si no jogo da verdade, e no como apropriao simplificadora de outrem para fins de comunicao o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ascese, um exerccio de si, no pensamento (Foucault, 1998, p. 13).
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Coda
Deveria acabar aqui. Mas comecei esta conferncia relembrando o tempo em que ramos jovens e lamos Foucault, e isso se paga. Permiti-me ler-lhes um fragmento do meu dirio daqueles dias, e isso se paga. Convidei-os a confundir o balano da obra de Foucault aos vinte anos da sua morte com o balano do que h de vivo em ns mesmos, e isso se paga. Assim, terminarei escrevendo uma palavra que gostaria no presente, que gostaria em primeira pessoa e que gostaria libertadora ou libertria. Uma palavra que no sei se foucaultiana, mas acho que , ou que poderia ser, pronunciada aqui e agora por um velho moralista que lia Foucault querendo ser Montaigne. Uma palavra que gostaria que nos protegesse, mesmo que apenas um pouco, desse destino talvez inevitvel de golfinhos lamentveis, de herdeiros da quarta fila, de usufruturios de posies universitrias mais ou menos confortveis, de caadores de bolsas de estudo ou de pesquisa, de burocratas do pensamento, de peticionrios de respeitabilidade ou de legitimao, de ladres de idias alheias ou de repetidores de textos alheios, de administradores de obras dos outros... Desse destino professoral, triste e moribundo que acompanha a todos os epgonos por demais covardes, por demais medocres. Refiro-me palavra verdade. Mas no entendida como a relao entre um enunciado e a assim chamada realidade, mas como a relao entre cada um de ns e sua escrita, seu pensamento e sua vida. Uma relao que no seja de domnio, mas de compromisso, que no seja de apropriao, mas de transformao. Que exista algum dentro de nossa forma de escrever, de nossa forma de pensar, de nossa forma de viver. Seja a que for. Que mantenhamos, ao menos, a mnima dignidade de escrever sem mentir e sem mentir para ns, de pensar sem mentir e sem mentir para ns, de viver sem mentir e sem mentir para ns. Num presente cada vez mais difcil e nunca garantido. Numa primeira pessoa cada vez mais impossvel, mas sempre perseguida. Numa distncia crtica cada vez mais problemtica e mais ctica, mas cada vez mais livre. Ao mesmo tempo no singular e no plural. Escrevendo. Pensando. Vivendo. Sempre no devir. Ensaiando. De outro modo. Talvez a lio de Foucault seja, em ltima anlise, uma lio moral, como todas as que valem a pena. Algo que tem a ver com a verdade de um constante exerccio de si na escrita, no pensamento, na vida. Algo que tem a ver com a honestidade e com a generosidade. Algo que tem a ver com o ensaio.
Nota 1. O presente texto foi apresentado como palestra de encerramento no Seminrio Internacional Michel Foucault: perspectivas, realizado em Florianpolis, em setembro de 2004, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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Referncias Bibliogrficas FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade II. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
Traduo de Carla Cardarello, do original em espanhol. Reviso de Rosa Maria Bueno Fischer. Jorge Larrosa professor da Universidade de Barcelona, Espanha. Endereo para correspondncia: E-mail: [email protected]
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