Entre Erros Ferteis
Entre Erros Ferteis
Entre Erros Ferteis
Cesar Candiotto 1
Resumo: O objetivo deste artigo consiste em tecer uma apreciação da recepção de As palavras e as coisas,
de Michel Foucault, a partir do último livro de Ivan Domingues, intitulado “Foucault, a arqueologia e
As palavras e as coisas: cinquenta anos depois” (Ed. UFMG, 2023). Um dos escopos do livro é examinar
o alcance de As palavras e as coisas e sua estratégia arqueológica, para dar conta da apresentação do
nascimento das ciências humanas, bem como de sua fragilidade e instabilidade, diante de uma possível
mudança na disposição do saber, cujos sinais podem ser observados por ocasião do advento, no século
XX, da psicanálise lacaniana, da etnologia e da linguística estrutural. Ao privilegiar suas repercussões,
expansões e retificações, cinquenta anos depois, não se tem a pretensão de “corrigir” Foucault, em
função de um olhar de epistemólogo, todavia, apontar a fertilidade e a potência de seu pensamento
para a posteridade. Trata-se de trafegar entre “[...] erros férteis e verdades anódinas.” (DOMINGUES,
2020, p. 386). A aposta é que possíveis hiatos, erros ou confusões identificáveis pelo próprio Foucault e
por seus críticos, à época, jamais invalidam a fertilidade de uma discussão acerca das ciências humanas,
as quais nunca mais foram as mesmas depois dele.
Palavras-chave: Arqueologia do saber. Epistemologia. Michel Foucault. Ciências humanas.
Antropologismo.
Introdução
Neste artigo, procuro elaborar uma apreciação da recepção de As palavras
e as coisas, de Michel Foucault, a partir do último livro de Ivan Domingues,
intitulado “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos
https://doi.org/10.1590/0101-3173.2023.v46n4.p109
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2 Agradeço a Carlos Ratton, pela transcrição de minha apresentação oral e tradução do abstract, e ao
próprio Ivan Domingues, pelo convite a participar dessa celebração filosófica.
1 Síntese de um legado
Antes de adentrar-me nos caminhos percorridos por Domingues,
para apontar as repercussões, retificações e expansões do livro As palavras e as
coisas, escopo central de sua escolha metodológica, parece-me adequado situar
os principais desdobramentos editoriais póstumos do espólio de Foucault e
sua indução nas preferências pelo seu percurso investigativo, por parte dos
pesquisadores e autores que debatem sua trajetória intelectual. Dessa maneira,
além do nítido objetivo de ler e apreciar o livro de um amigo e filósofo
brasileiro interessado na importância inconteste da obra magna de Foucault,
tem-se também o fito de contemporaneizar o surgimento desse relevante livro,
no contexto da produção editorial que cerca o nome Michel Foucault.
Nos últimos anos, o eminente professor do Collège de France, nascido
em Poitiers, em 1926, e falecido em Paris, em 1984, tem sido mais estudado
e debatido entre os pesquisadores brasileiros e estrangeiros, tendo-se em vista
seus ditos e escritos dos anos 1970 e 1980 e, em menor medida, dos seus
escritos nos anos 1960. Entretanto, muito já foi publicado sobre seus livros
arqueológicos dessa década. Como Domingues ressalta, houve depois um
certo “esfriamento” de reflexões centradas sobre os escritos arqueológicos,
especialmente as repercussões do livro As palavras e as coisas. Essa preferência é
compreensível, se for levada em conta a importância adquirida pela monumental
publicação póstuma do pensador francês. A começar pela edição realizada por
Daniel Defert e François Ewald, com a colaboração de Jacques Lagrange, dos
Dits et écrits, em 1994, em quatro volumes, pela coleção Bibliothèque des
Sciences Humaines, da Editora Gallimard, que reúne praticamente todos os
trabalhos, conferências, artigos, manifestos, prefácios e posfácios de Foucault,
reeditados em 2001, em dois volumes, pela Quarto/Gallimard.
Soma-se o projeto patrocinado pela Associação para o Centro Michel
Foucault, dirigido por François Ewald e Alessandro Fontana, da publicação
dos cursos no Collège de France, desde 1970 até 1984. A edição completa
durou quase 20 anos, desde 1997 a 2015, e contou com a contribuição de
diversos especialistas no pensamento do autor, os quais se debruçaram nas
fitas cassete, CDs e manuscritos do espólio de Foucault. Em seguida, surge a
coleção da Editora Vrin, “Foucault inédit: Philosophie du présent”, dirigida por
Jean-François Braunstein, Arnold I. Davidson e Daniele Lorenzini, que, entre
2013 e 2019, publicou cinco volumes de diversas conferências de Foucault na
3 São eles: L’origine de l’herméneutique de soi: conférences prononcées à Darmouth College, 1980 (ed.
Henri-Paul Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2013); Qu’est-ce que la critique? suivi de La
Culture de soi (ed. Henri-Paul Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2015); Discours et vérité
précédé de La parrêsia. 1980 (ed. Henri-Paul Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2016); Dire
vrai sur soi-même: Conférences prononcées à L’Université Victoria de Toronto, 1982 (ed. Henri-Paul
Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2017); e Folie, langage, littérature (ed. Henri-Paul Fruchaud,
Daniele Lorenzini e Judith Revel. Paris: Vrin, 2019).
Mas também porque, muitas vezes, Foucault deixa o leitor “na mão”,
como é o caso do conceito de disposição da episteme (DOMINGUES, 2020,
p. 372), a qual não é nem ciência nem doxa, mas um sistema de saber.
3 Caminhos
Um dos aspectos a ser realçado no livro de Domingues é o caminho a
partir do qual ele percorre o escrito de Foucault de 1966, de sorte a apontar suas
repercussões, retificações e expansões. Não se trata de uma leitura exegética,
no sentido de enfatizar uma via interpretativa internalista; privilegia, antes,
a utilização de Foucault como inspiração, segundo pode ser identificado em
outros de seus livros, tais como O grau zero do conhecimento (Loyola, 1991)
e O Continente e a Ilha: duas vias da filosofia contemporânea (2. ed. Loyola,
2017). A questão de método é central, considerando que Foucault repete que
seus trabalhos podem ser lidos como uma “caixa de ferramentas” (“boîte à
outils”), sendo que, nela, outros pesquisadores podem encontrar ferramentas
conceituais para problematizar o nascimento de outros objetos.
Domingues lê a repercussão do livro em função do confronto entre
duas posições epistemológicas. De um lado, os expoentes da filosofia analítica
– Austin, Searle, Chomsky e companhia, que fazem epistemologia e história
da ciência a partir da lógica –; essa matriz anglo-saxã está particularmente
4 O olhar do epistemólogo
Outra escolha relevante do livro de Domingues é a seguinte: em vez
de fazer a arqueologia da arqueologia do saber, o autor procura apontar as
distâncias e as convergências entre epistemologia e arqueologia, em As palavras
e as coisas. O ponto de partida dessa escolha é a conferência ministrada em
Túnis, em 1968, intitulada “Linguística e Ciências Sociais”, publicada em
1969 e, mais tarde, recolhida nos Dits et écrits (FOUCAULT, 2001d, p. 849-
870). Domingues insiste como, nessa conferência, se percebe que, ao retornar
sobre o livro de 1966 e ao redimensionar a relação entre epistemologia e
arqueologia, não é tanto uma distância nem mesmo uma sobreposição a que
se observa entre elas, mas, sim, certa conjunção.
Se Foucault apresenta, no final de As palavras e as coisas, uma
correlação arqueológica fundamental entre a psicanálise lacaniana, a etnologia
linguística “estrutural”. A meu ver, em seu livro, mas também nas entrevistas
que o seguem, Foucault procura se desfazer da ideia de que o histórico é
somente constituído pela diacronia, sendo ele também identificável na
sincronia acontecimental daquilo que organiza e ordena os diferentes saberes
de um espaço epistêmico.
Domingues (2020, p. 374) utiliza o termo “competição” entre
arqueologia e epistemologia, fazendo menção ao uso da noção de paradigma
científico que Foucault realça, na Conferência de Túnis, o que significa que
a episteme da arqueologia não estaria tão distante assim das ciências. Além
disso, Domingues realiza outra observação a propósito dos saberes modernos:
a biologia é um dos carros-chefes do livro de Foucault, quando se trata dos
saberes empíricos e, portanto, trata-se de outra justificativa para apontar
até que ponto o pensamento científico ou a perspectiva epistemológica do
conhecimento científico está presente nesse livro. Em relação a essa observação,
entendo que Foucault não vê na Biologia do século XIX o nascimento de
uma ciência em face da História Natural; antes, sua apreensão como um saber
que se entende ao lado de outros saberes empíricos – Economia Política e
Filologia – constitutivos da episteme da História. A originalidade de Foucault
parece ter sido pensar não propriamente a partir das ciências constituídas,
porém, justamente nos limites da Representação, quando a vida, o trabalho e
a linguagem demarcam o início de uma rede arqueológica na qual o finito se
entende a partir dos próprios saberes empíricos.
Outro ponto importante a ser observado sobre a relação entre
arqueologia e epistemologia é o escopo do livro, que consiste em examinar
o alcance de uma arqueologia focada no nascimento das ciências humanas,
ao mesmo tempo que Foucault quer realçar a fragilidade, a instabilidade do
objeto sobre o qual essas ciências incidem. No fundo, ele não desenvolve uma
arqueologia das ciências humanas para corroborar o estatuto de cientificidade
dessas “ciências”. Muito pelo contrário, sua arqueologia pretende indicar
que seu objeto, o homem, é um acontecimento instável na ordem do saber.
E, portanto, se ele nasceu num determinado momento, no final do século
XVIII, já na segunda metade do século XX, quando se antevê modificações
na disposição dos saberes na rede arqueológica da História, ele está em vias de
desaparecer.
Foucault não alude exatamente à morte do homem, em As palavras e
as coisas, como repercute seu livro, nas entrevistas e recensões. Antes, escreve
que, diante de uma mudança na disposição do saber, o homem desapareceria
CANDIOTTO, C. Through fertile errors and anodyne truths: about the book by ivan
domingues entitled “foucault, a arqueologia e as palavras e as coisas: cinquenta anos
depois”. Trans/form/ação, Marília, v. 46, n. 4, p. 109-126, Out./Dez., 2023.
Abstract: The aim of this paper is to provide an appreciation of Michel Foucault’s The Order of Things
reception, from the latest book by Ivan Domingues entitled “Foucault, a arqueologia e As palavras e
as coisas: cinquenta anos depois” (Ed. UFMG, 2023). One of the scopes of the book is to examine
the range of The Order of Things and its archaeological strategy to account for the presentation of
the birth of human sciences, as well as its fragility and instability in the face of a possible change in
the disposition of knowledge. Or Episteme’s disposition, according to Foucault terminology, whose
signs of change can be observed on the occasion of the advent, in the twentieth century, of Lacanian
psychoanalysis, ethnology and structural linguistics. By privileging its repercussions, expansions and
rectifications fifty years later, it is not intended to “correct” Foucault from an epistemological point of
view, but to point out the fertility and power of his thoughts for posterity. It is about going through
“fertile errors and anodyne truths” (DOMINGUES, 2020, p. 386). The bet is that possible gaps, errors
or confusions identifiable by Foucault himself and by his critics at the time never invalidate the fertility
of a discussion concerning human sciences, which were never the same after Foucault.
Keywords: Archeology of knowledge. Epistemology. Michel Foucault. Human sciences.
Anthropologism.
Referências
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depois. Belo Horizonte: UFMG, 2020 (Edição e-book).
DOMINGUES, I. Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos
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MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
Recebido: 21/02/2023
Aprovado: 29/03/2023