Entre Erros Ferteis

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Entre erros férteis e verdades anódinas Artigos / Articles

EntrE Erros fértEis E vErdadEs anódinas: sobrE


“foucault, a arquEologia E as palavras e as coisas:
cinquEnta anos dEpois”, dE ivan dominguEs

Cesar Candiotto 1

Resumo: O objetivo deste artigo consiste em tecer uma apreciação da recepção de As palavras e as coisas,
de Michel Foucault, a partir do último livro de Ivan Domingues, intitulado “Foucault, a arqueologia e
As palavras e as coisas: cinquenta anos depois” (Ed. UFMG, 2023). Um dos escopos do livro é examinar
o alcance de As palavras e as coisas e sua estratégia arqueológica, para dar conta da apresentação do
nascimento das ciências humanas, bem como de sua fragilidade e instabilidade, diante de uma possível
mudança na disposição do saber, cujos sinais podem ser observados por ocasião do advento, no século
XX, da psicanálise lacaniana, da etnologia e da linguística estrutural. Ao privilegiar suas repercussões,
expansões e retificações, cinquenta anos depois, não se tem a pretensão de “corrigir” Foucault, em
função de um olhar de epistemólogo, todavia, apontar a fertilidade e a potência de seu pensamento
para a posteridade. Trata-se de trafegar entre “[...] erros férteis e verdades anódinas.” (DOMINGUES,
2020, p. 386). A aposta é que possíveis hiatos, erros ou confusões identificáveis pelo próprio Foucault e
por seus críticos, à época, jamais invalidam a fertilidade de uma discussão acerca das ciências humanas,
as quais nunca mais foram as mesmas depois dele.
Palavras-chave: Arqueologia do saber. Epistemologia. Michel Foucault. Ciências humanas.
Antropologismo.

Introdução
Neste artigo, procuro elaborar uma apreciação da recepção de As palavras
e as coisas, de Michel Foucault, a partir do último livro de Ivan Domingues,
intitulado “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos

1 Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. https://orcid.


org/0000-0002-7172-4618. E-mail: [email protected].

https://doi.org/10.1590/0101-3173.2023.v46n4.p109

This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.

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depois”. A primeira edição foi publicada na modalidade e-book, pela Editora


UFMG, em 2020. Já a edição corrigida, ampliada e impressa acaba de ser
lançada pela mesma editora, em 2023. Esse estudo é o desdobramento de
minha participação no lançamento do livro, realizada de forma virtual, no
momento da pandemia, em 2021. No ensejo, apresentei a versão em e-book ao
público e interagi com o autor. O retorno a essa obra, desta vez, de maneira
mais elaborada e para um público mais abrangente, busca incorporar novos
elementos, observáveis no contexto especial do lançamento da edição impressa
de 2023, além de repercutir suas principais hipóteses de trabalho, situando-a
no âmbito da produção editorial póstuma dos ditos e escritos de Foucault.2
Neste estudo, em primeiro lugar, exponho um breve percurso dos
principais desdobramentos da herança editorial de Michel Foucault, desde
o projeto dos Dits et écrits até as principais publicações mais recentes, a
fim de melhor situar a inserção da obra de Ivan Domingues. Em seguida,
examino alguns meandros na percepção que o autor apresenta de Foucault,
especialmente a de um camaleão filosófico que se esquiva amiúde a quaisquer
identificações com correntes filosóficas de sua época, definindo-se antes como
um experimentador de diferentes exercícios do pensamento. Reforço que
Domingues propõe um olhar diferente sobre As palavras e as coisas, propriamente
um olhar de epistemólogo, o qual encontra lacunas, erros, ambiguidades, no
escrito do intelectual francês, mas que reconhece na arqueologia um ensaio de
método em relação ao qual a verdade científica não é o ponto de partida para
a identificação dos erros do passado de um saber.
Sem a pretensão de esgotar os desdobramentos do livro, ressalto a
relação estabelecida entre a crítica do antropologismo moderno e a emergência
de outra disposição arqueológica caracterizada pelo desaparecimento do
homem como ser finito e, ao memo tempo, fonte de representação. Nesse
sentido, caberia perguntar se a provável mudança na disposição arqueológica
decorrente do provável desaparecimento iminente do homem indica que
estamos ainda limiar entre a episteme moderna e a contemporânea, ou se
adentramos definitivamente na ordem do discurso que prescinde do sujeito
da consciência.

2 Agradeço a Carlos Ratton, pela transcrição de minha apresentação oral e tradução do abstract, e ao
próprio Ivan Domingues, pelo convite a participar dessa celebração filosófica.

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1 Síntese de um legado
Antes de adentrar-me nos caminhos percorridos por Domingues,
para apontar as repercussões, retificações e expansões do livro As palavras e as
coisas, escopo central de sua escolha metodológica, parece-me adequado situar
os principais desdobramentos editoriais póstumos do espólio de Foucault e
sua indução nas preferências pelo seu percurso investigativo, por parte dos
pesquisadores e autores que debatem sua trajetória intelectual. Dessa maneira,
além do nítido objetivo de ler e apreciar o livro de um amigo e filósofo
brasileiro interessado na importância inconteste da obra magna de Foucault,
tem-se também o fito de contemporaneizar o surgimento desse relevante livro,
no contexto da produção editorial que cerca o nome Michel Foucault.
Nos últimos anos, o eminente professor do Collège de France, nascido
em Poitiers, em 1926, e falecido em Paris, em 1984, tem sido mais estudado
e debatido entre os pesquisadores brasileiros e estrangeiros, tendo-se em vista
seus ditos e escritos dos anos 1970 e 1980 e, em menor medida, dos seus
escritos nos anos 1960. Entretanto, muito já foi publicado sobre seus livros
arqueológicos dessa década. Como Domingues ressalta, houve depois um
certo “esfriamento” de reflexões centradas sobre os escritos arqueológicos,
especialmente as repercussões do livro As palavras e as coisas. Essa preferência é
compreensível, se for levada em conta a importância adquirida pela monumental
publicação póstuma do pensador francês. A começar pela edição realizada por
Daniel Defert e François Ewald, com a colaboração de Jacques Lagrange, dos
Dits et écrits, em 1994, em quatro volumes, pela coleção Bibliothèque des
Sciences Humaines, da Editora Gallimard, que reúne praticamente todos os
trabalhos, conferências, artigos, manifestos, prefácios e posfácios de Foucault,
reeditados em 2001, em dois volumes, pela Quarto/Gallimard.
Soma-se o projeto patrocinado pela Associação para o Centro Michel
Foucault, dirigido por François Ewald e Alessandro Fontana, da publicação
dos cursos no Collège de France, desde 1970 até 1984. A edição completa
durou quase 20 anos, desde 1997 a 2015, e contou com a contribuição de
diversos especialistas no pensamento do autor, os quais se debruçaram nas
fitas cassete, CDs e manuscritos do espólio de Foucault. Em seguida, surge a
coleção da Editora Vrin, “Foucault inédit: Philosophie du présent”, dirigida por
Jean-François Braunstein, Arnold I. Davidson e Daniele Lorenzini, que, entre
2013 e 2019, publicou cinco volumes de diversas conferências de Foucault na

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França, no Canadá e nos Estados Unidos.3 Nesse ínterim, é lançada ainda a


edição, por Frédéric Gros, do livro inédito de Foucault, Les aveux de la chair
(Paris: Gallimard, 2018), último volume da Histoire de la sexualité.
Em 2015, ano em que é editado o último curso no Collège de France,
temos também a consagração de Foucault na coleção Bibliothèque de la Pléiade,
com a publicação de Michel Foucault. Oeuvres (Paris: Gallimard, 2015), em
dois tomos, sob a direção geral de Frédéric Gros. Em um formato de breviário
cristão, com fitas amarelas para a marcação de suas finas páginas, encontramos
a publicação completa de todos os seus livros em vida, precedidos de aparato
crítico de vários especialistas, assim como notas, sendo que, no segundo
volume, são acrescentados 12 artigos importantes do autor, entre 1963 e 1984.
Quando o livro de Domingues foi escrito e encaminhado para
publicação, por ocasião da data comemorativa dos 50 anos de Les mots et
les choses, ainda eram embrionários os primeiros resultados de outro projeto
editorial sobre os escritos de Foucault, anteriores a seu ingresso no Collège
de France, no final de 1970, aí incluídos os chamados cursos e escritos
protoarqueológicos. É o caso da coleção Cours et travaux de Michel Foucault
avant le Collège de France, uma coedição entre EHESS/Gallimard/Seuil, sob
a responsabilidade de François Ewald, a qual conta, até o momento, com
quatro volumes: La Sexualité. Cours donné à l’université de Clermont-Ferrand
(1964) suivi de Le Discours de la sexualité. Cours donné à l’université de
Vincennes (1969), editado por Claude-Olivier Doron, em 2018; Binswanger et
l’analyse existentielle, editado por Elisabetta Basso, em 2021; Phénoménologie
et Psychologie 19531954, editado por Philippe Sabot, em 2021; La question
antropologique. Cours. 1954-1955, editado por Arianna Sforzini, em 2021.
Estas três últimas publicações estão relacionadas a dois trabalhos dos anos 60,
fundamentais para o livro de Domingues, sendo o primeiro deles publicado
postumamente: trata-se da Tese Complementar de doutorado de Foucault,
editada por François Ewald, Daniel Defert e Frédéric Gros, Introduction à
l’Anthropologie. Paris: Vrin, 2008 (trad. brasileira de Márcio Alves Fonseca
e Salma Tannus Muchail, Gênese e estrutura da Antropologia de Kant. São

3 São eles: L’origine de l’herméneutique de soi: conférences prononcées à Darmouth College, 1980 (ed.
Henri-Paul Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2013); Qu’est-ce que la critique? suivi de La
Culture de soi (ed. Henri-Paul Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2015); Discours et vérité
précédé de La parrêsia. 1980 (ed. Henri-Paul Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2016); Dire
vrai sur soi-même: Conférences prononcées à L’Université Victoria de Toronto, 1982 (ed. Henri-Paul
Fruchaud e Daniele Lorenzini. Paris: Vrin, 2017); e Folie, langage, littérature (ed. Henri-Paul Fruchaud,
Daniele Lorenzini e Judith Revel. Paris: Vrin, 2019).

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Paulo: Loyola, 2011). O segundo, o objeto principal do livro aqui analisado,


é justamente Les mots et les choses.

2 O camaleão filosófico e seu livro barroco


O retrato que Ivan Domingues faz de Foucault e que chama a atenção
é o de um camaleão filosófico, ou seja, um pensador de difícil apreensão e
identificação, principalmente quando se esquiva em identificar-se com uma
disciplina específica, tal como a filosofia (Foucault diz: “Eu não sou filósofo”),
ou com uma corrente de pensamento que está na moda, no momento
(Foucault reitera: “Eu não sou estruturalista.”). Esse retrato de Foucault como
camaleão filosófico, não identificado com uma disciplina ou corrente de
pensamento determinada, é valorizado por Domingues como a potência de
seu pensamento, suas hipóteses se espraiando em diferentes domínios do saber
e tendo sido efetivamente usado como caixa de ferramentas para diferentes
áreas. Sobre esse ponto, tal postura está relacionada também a uma maneira
de se posicionar de Foucault (1969, p. 28), quando escreve, por exemplo,
em A arqueologia do saber: “[...] não me pergunte quem sou e não me diga
para permanecer o mesmo […]”. Ressalta ainda, nesse livro, que a exigência
normalmente feita ao intelectual de permanecer sempre o mesmo, no sentido
de ser reconhecido e identificado como “autor” de uma “obra”, faz parte de
uma moral civil.
Esses contínuos deslocamentos laterais realizados por Foucault diante
de uma identificação filosófica determinada demarcam uma caracterização
que percorre todo o livro de Domingues. Isso se reflete também na forma
como Foucault faz filosofia, ou seja, um saber não fechado em si mesmo,
mostrando-se antes como uma reflexão que se abre a diversos campos, muitas
vezes heterogêneos entre si. Destarte, a filosofia não tem outra razão de existir,
na época contemporânea, na percepção de Foucault, a não ser posicionar-se
como um sistema de pensamento. Não é por acaso que o título da Cátedra
da qual passa a ser o titular, no início dos anos 1970, no Collège de France,
se denomina “História dos sistemas de pensamento”, dando a entender
que a filosofia denota uma maneira de pensar irmanada a outros saberes e
não encapsulada em si mesma. Reside aí justamente a pertinência do livro
de Domingues, quando se propõe ler e analisar o livro de Foucault, a partir
da interlocução entre a filosofia e os saberes empíricos e sua confluência
moderna nas chamadas ciências humanas, lembrando que o professor da

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UFMG já publicou um trabalho importante sobre a filosofia e o problema


da fundamentação das ciências humanas, em sua obra seminal, O grau zero do
conhecimento (1991).
As palavras e as coisas tem sido uma obra debatida e citada com
frequência, na recepção crítica brasileira, mas não com a mesma intensidade
que Vigiar e punir. Não é o caso aqui de fazer uma recensão de todos os
trabalhos que versam sobre o Opus Magnum de Foucault. Em sua incursão
pelas ressonâncias contemporâneas de As palavras e as coisas, Domingues faz
referência recorrente ao livro de Gary Gutting, Michel Foucault’s Archaeology
of Scientific Reason (1989), bem como ao artigo de Jean-François Braunstein,
“Bachelard, Canguilhem et Foucault – le ‘style français’ en épistémologie”
(editado por Pierre Wagner, Les philosophes et la science, Paris, Gallimard, 2002,
p. 920-963). Lembra com frequência dos trabalhos de Roberto Machado, tais
como Ciência e saber – a trajetória da arqueologia de Foucault (Graal, 1981) e
Foucault, a ciência e o saber (Zahar, 2006), sem deixar de se referir a seu último
livro em vida, Impressões de Michel Foucault (N-1, 2017).
Domingues realça, cita e comenta, em nota e no corpo do texto, também
os últimos trabalhos de Philippe Sabot, especialmente o livro, Lire Les mots
et les choses” (PUF, 2006), dedicado à segunda parte de As palavras as coisas.
Ainda faz referência com frequência aos diversos trabalhos dedicados a esse
livro de autoria de Salma Tannus Muchail, responsável pela primorosa tradução
do livro, no Brasil pela Editora Martins Fontes. Portanto, contextualiza a obra
com base em uma recepção crítica qualificada e atual, o que, por isso mesmo,
justifica a importância inconteste de seu livro, especialmente para os leitores
brasileiros.
As palavras e as coisas, como bem pontua Domingues, é uma obra
permeada de polêmicas com o marxismo e sua relação com o existencialismo
sartriano, mas também com a fenomenologia francesa, correntes nas quais
Foucault foi formado à época, por meio de sua interação nos círculos de
Jean Hyppolite, Maurice Merleau-Ponty e Louis Althusser. Porém, passada a
polêmica nos circuitos filosóficos parisienses, o livro de 1966 resta um pouco
na penumbra, nos anos 1970 e 1980, especialmente depois do aparecimento,
em 1975, de Vigiar e punir, e dos três tomos de História da sexualidade, em
1976 e 1984.
Essa impressão de um certo esquecimento se deve também a seu efeito
estetizante, um livro rebuscado, escrito com uma linguagem barroca e de

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difícil apreensão, de onde o efeito paradoxal de seu sucesso de vendas, por


ocasião das suas primeiras edições. Diz-se que os franceses liam As palavras e
as coisas, na Riviera francesa, durante o verão de 1966. O texto que trata da
“morte do homem” tornou-se uma espécie de desdobramento contemporâneo
da crise de fundamento metafísico e do vazio deixado pela “morte de Deus”, o
qual encontramos nos escritos novecentistas de Nietzsche. Contudo, a grande
pergunta que pode ser feita é se as pessoas que liam efetivamente As palavras e
as coisas entendiam a força e a potência desse livro, porque se trata também de
um escrito, até certo ponto, enigmático,
[...] devido ao silêncio e ao véu de mistério que passou a cercar a obra,
passada a onda estruturalista e findo o desconcerto que o seu lançamento
provocou junto à intelectualidade francesa e parisiense. No início, açodada
por um estado de confusão, em meio à polêmica e à novidade, e depois
recolhida num estado de indiferença e desalento. (DOMINGUES, 2020,
p. 27).

Mas também porque, muitas vezes, Foucault deixa o leitor “na mão”,
como é o caso do conceito de disposição da episteme (DOMINGUES, 2020,
p. 372), a qual não é nem ciência nem doxa, mas um sistema de saber.

3 Caminhos
Um dos aspectos a ser realçado no livro de Domingues é o caminho a
partir do qual ele percorre o escrito de Foucault de 1966, de sorte a apontar suas
repercussões, retificações e expansões. Não se trata de uma leitura exegética,
no sentido de enfatizar uma via interpretativa internalista; privilegia, antes,
a utilização de Foucault como inspiração, segundo pode ser identificado em
outros de seus livros, tais como O grau zero do conhecimento (Loyola, 1991)
e O Continente e a Ilha: duas vias da filosofia contemporânea (2. ed. Loyola,
2017). A questão de método é central, considerando que Foucault repete que
seus trabalhos podem ser lidos como uma “caixa de ferramentas” (“boîte à
outils”), sendo que, nela, outros pesquisadores podem encontrar ferramentas
conceituais para problematizar o nascimento de outros objetos.
Domingues lê a repercussão do livro em função do confronto entre
duas posições epistemológicas. De um lado, os expoentes da filosofia analítica
– Austin, Searle, Chomsky e companhia, que fazem epistemologia e história
da ciência a partir da lógica –; essa matriz anglo-saxã está particularmente

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presente sobretudo no livro A arqueologia do saber (1969), de maneira explícita,


bem como na forma como Foucault problematiza a questão do discurso,
especialmente nos anos 1968 e 1969. E, de outro lado, temos os chamados
filósofos continentais, com a ressalva de que, para o caso de Foucault,
as referências são as que na França se encarregam da história da ciência,
particularmente Bachelard, Cavaillès, Canguilhem e Koyré, e a ênfase que eles,
de diferentes modos, atribuem ao tripé saber, racionalidade e conceito.
Além dessas duas tradições que procedem da epistemologia, há uma
outra muito presente no livro de Domingues, a saber, aquela que, em sua
expressão francesa, se vale do método estrutural em diferentes campos do
saber, como na análise da comunicação, da antropologia, da linguagem, da
cibernética e em tantos outros domínios, envolvendo pensadores da alçada
de Ferdinand Saussure, Claude Lévi-Strauss e até mesmo, nos Estados
Unidos, Noam Chomsky. Em menor medida, comparecem nessa obra outros
pensadores que também aplicam esse método ou dele se aproximam para
outros propósitos, casos, por exemplo, de Althusser, Lacan e Barthes.
Concordo com Domingues que As palavras e as coisas, pelo amplo
espectro de correntes e autores que movimenta, é um dos livros mais relevantes,
não somente no cenário da Filosofia francesa contemporânea, mas também do
Pensamento Contemporâneo. O autor faz jus à obra, à sua magnitude, à sua
repercussão, ao chamá-la de Opus Magnum (DOMINGUES, 2020, p. 27).

4 O olhar do epistemólogo
Outra escolha relevante do livro de Domingues é a seguinte: em vez
de fazer a arqueologia da arqueologia do saber, o autor procura apontar as
distâncias e as convergências entre epistemologia e arqueologia, em As palavras
e as coisas. O ponto de partida dessa escolha é a conferência ministrada em
Túnis, em 1968, intitulada “Linguística e Ciências Sociais”, publicada em
1969 e, mais tarde, recolhida nos Dits et écrits (FOUCAULT, 2001d, p. 849-
870). Domingues insiste como, nessa conferência, se percebe que, ao retornar
sobre o livro de 1966 e ao redimensionar a relação entre epistemologia e
arqueologia, não é tanto uma distância nem mesmo uma sobreposição a que
se observa entre elas, mas, sim, certa conjunção.
Se Foucault apresenta, no final de As palavras e as coisas, uma
correlação arqueológica fundamental entre a psicanálise lacaniana, a etnologia

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e a linguística estrutural, como sintoma do esgotamento do antropologismo


que anima as ciências humanas; e se ele indica que a linguística estrutural
atingiu o limiar de formalização, próprio de uma ciência constituída, sendo
por isso regente de todas as demais contraciências; e, se, enfim, a articulação
entre história diacrônica e sincronia estrutural anima a linguística, então a
arqueologia do saber de Foucault poderia estar inspirada ou, no limite,
apresentar-se como desdobramento de uma forma de ver a história dos saberes
segundo a qual a diacronia é cruzada pela sincronia, ao modo de um lago
cruzado por um rio, nele provocando deslocamentos e transformações.4
Se a linguística estrutural, segundo Foucault, ultrapassa seu limiar de
formalização como condição para que possa ser considerada uma ciência; e
se, na linguística estrutural, o que se tem não é somente formalização, mas
também historicização, logo, o conceito de episteme, central em As palavras e
as coisas, e outros conceitos, como a priori histórico, por exemplo, não deixam
de estar inspirados nessa concepção que vem da linguística, denotando certa
proximidade com esse saber que adquire seu estatuto de formalização. Essa
poderia ser uma das hipóteses que justifica a aproximação feita por Domingues
entre a arqueologia e a epistemologia, não sendo, contudo, a única.
Destaco que a intenção de Foucault, no livro As palavras e as coisas,
jamais foi a de formalizar, mas justamente apresentar a possibilidade quase
impossível, à época, de articulação entre episteme e história. Ao contrário
dos pensamentos de Kant e Husserl, para os quais os a priori são sempre
formais, Foucault, por sua vez, não dissocia estrutura e história, como
indica a expressão a priori histórico. Pelo contrário, propõe pensar como,
entre saberes, normalmente considerados heterogêneos entre si, os a priori
históricos de cada um deles informam o feixe de relações de uma época, o qual
Foucault chama de episteme, ou seja, a rede que ordena uma maneira de ser de
saberes contemporâneos entre si. Assim é como essa rede, no Renascimento,
é a Semelhança; na Idade Clássica, a Representação; e, na Modernidade, a
História.
Essa possibilidade de articulação entre a estrutura formal do a priori e
a história, conforme bem observa Domingues, se inspira, nos anos 1960, na
linguística transformacional de Chomsky, nas teorias da comunicação e na
cibernética, as quais abrem novos horizontes epistemológicos que permitem
aquela articulação, dificilmente alcançável somente na acepção saussuriana da
4 “[...] a diacronia seria um rio que atravessa um lago, o lago da sincronia.” (FOUCAULT, apud
DOMINGUES, 2020, p. 322).

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linguística “estrutural”. A meu ver, em seu livro, mas também nas entrevistas
que o seguem, Foucault procura se desfazer da ideia de que o histórico é
somente constituído pela diacronia, sendo ele também identificável na
sincronia acontecimental daquilo que organiza e ordena os diferentes saberes
de um espaço epistêmico.
Domingues (2020, p. 374) utiliza o termo “competição” entre
arqueologia e epistemologia, fazendo menção ao uso da noção de paradigma
científico que Foucault realça, na Conferência de Túnis, o que significa que
a episteme da arqueologia não estaria tão distante assim das ciências. Além
disso, Domingues realiza outra observação a propósito dos saberes modernos:
a biologia é um dos carros-chefes do livro de Foucault, quando se trata dos
saberes empíricos e, portanto, trata-se de outra justificativa para apontar
até que ponto o pensamento científico ou a perspectiva epistemológica do
conhecimento científico está presente nesse livro. Em relação a essa observação,
entendo que Foucault não vê na Biologia do século XIX o nascimento de
uma ciência em face da História Natural; antes, sua apreensão como um saber
que se entende ao lado de outros saberes empíricos – Economia Política e
Filologia – constitutivos da episteme da História. A originalidade de Foucault
parece ter sido pensar não propriamente a partir das ciências constituídas,
porém, justamente nos limites da Representação, quando a vida, o trabalho e
a linguagem demarcam o início de uma rede arqueológica na qual o finito se
entende a partir dos próprios saberes empíricos.
Outro ponto importante a ser observado sobre a relação entre
arqueologia e epistemologia é o escopo do livro, que consiste em examinar
o alcance de uma arqueologia focada no nascimento das ciências humanas,
ao mesmo tempo que Foucault quer realçar a fragilidade, a instabilidade do
objeto sobre o qual essas ciências incidem. No fundo, ele não desenvolve uma
arqueologia das ciências humanas para corroborar o estatuto de cientificidade
dessas “ciências”. Muito pelo contrário, sua arqueologia pretende indicar
que seu objeto, o homem, é um acontecimento instável na ordem do saber.
E, portanto, se ele nasceu num determinado momento, no final do século
XVIII, já na segunda metade do século XX, quando se antevê modificações
na disposição dos saberes na rede arqueológica da História, ele está em vias de
desaparecer.
Foucault não alude exatamente à morte do homem, em As palavras e
as coisas, como repercute seu livro, nas entrevistas e recensões. Antes, escreve
que, diante de uma mudança na disposição do saber, o homem desapareceria

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“[...] como um grão de areia, na orla do mar” (FOUCAULT, 1966, p. 398).


O desaparecimento provável do homem é coetâneo de sua dispersão como
sujeito da consciência, nos diferentes discursos e campos disciplinares das
ciências humanas e sociais. Tal dispersão é fortemente enfatizada no Capítulo
X de As palavras e as coisas, correspondente ao surgimento das chamadas
contraciências, a saber, a etnologia, a linguística e a psicanálise lacaniana.
Reforço que Foucault bem poderia chamá-las de contrassaberes, porém,
prefere caracterizá-las como contraciências, como se a dissolução do homem
delas resultante fosse imanente àqueles saberes que quiseram, na Modernidade,
se elevar ao estatuto de ciências. Para além do livro de Domingues, essa
observação reforça, ainda mais, a tentativa de intersecção entre as perspectivas
epistemológica e arqueológica da análise. Não é surpreendente que Domingues
tente, do início ao fim de seu livro, estabelecer mais convergências do que
divergências entre arqueologia e epistemologia, já que seu olhar sobre o livro
é fundamentalmente o de um epistemólogo de formação (DOMINGUES,
2020, p. 20).

5 Arqueologia e Ciências Humanas


Domingues lança inicialmente um olhar contextual sobre As palavras e
as coisas. Os primeiros dois capítulos são dedicados a essa leitura; em seguida,
mergulha em uma perspectiva mais interna da obra de Foucault, nos Capítulos
3, 4 e 5 e parte do Capítulo 6; e, finalmente, uma mirada que privilegia As
palavras e as coisas pela perspectiva do próprio Foucault – Capítulos 7 e 8. Não
vou me prender aos detalhes de cada um desses capítulos, restringindo-me a
alguns de seus pontos mais relevantes.
Um deles é o trabalho conceitual levado a cabo para explicar o que
Foucault entende por arqueologia. Logo no Primeiro capítulo, “Foucault, a
arqueologia e a escola epistemológica francesa”, Domingues ressalta que ela
não remete à arché grega, no sentido de princípio, mas faz referência, antes, à
ordenação dos arquivos empoeirados da história. Assim, também, a episteme
não se refere evidentemente à epistemologia, como já frisava Canguilhem, no
artigo publicado em 1967, na Revista Critique, intitulado “Mort de l’homme
ou épuisement du Cogito?” Nele, o diretor de tese de Foucault adverte que
a epistemologia não versa sobre a episteme das ciências ou sobre o nous
platônico. Muito pelo contrário, é uma episteme entendida no sentido mais
amplo, que inclui o saber comum.

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CANDIOTTO, C.

Nesse capítulo de Domingues, encontramos ainda um debate acerca da


caracterização “vaga” das ciências humanas, no livro de Foucault. A análise dos
mitos é uma ciência humana, por exemplo? A sociologia é uma ciência humana
ou uma ciência social? Foucault não se preocupa muito com essa pergunta. Já
Domingues tenta estabelecer especificidades para delimitar melhor o que se
entende por ciências humanas. Além disso, também faz questão de salientar
que a noção de discurso está ausente em As palavras e as coisas, ao passo que se
torna central, no livro A arqueologia do saber (1969) e em A ordem do discurso
(1971). Enfatiza que essas estratégias fazem parte dos deslocamentos laterais
de Foucault no próprio interior da arqueologia, primeiro problematizando a
percepção do louco, depois o olhar médico, em seguida, o saber e a episteme
e, finalmente, o discurso.
A cada livro escrito por Foucault o que se percebe não é tanto uma
continuidade, todavia, certa singularidade, pois concebe a escritura enquanto
uma experiência de transformação. No entanto, isso não significa que eles não
possam ser articulados; mas, a meu ver, essa articulação é muito temerária,
quando Foucault tenta justificar as escolhas de seus livros, nas páginas de uma
obra posterior. Para além do capítulo de Domingues, desconfio particularmente
que A arqueologia do saber e muitas de suas formulações possam ser as balizas
para interpretar As palavras e as coisas, já que o livro de 1969 é muito mais uma
“resposta” a questões que foram postas a Foucault e seu deslocamento rumo à
relação entre as práticas discursivas e as práticas sociais, sobre a qual incidirão
seus trabalhos nos anos 70.

6 A direction for the use: o prefácio à edição inglesa


Um segundo ponto relevante se refere às escolhas metodológicas e
bibliográficas. Em “As palavras e as coisas, a arqueologia e as ciências humanas”,
título do segundo capítulo, Domingues recolhe não somente a tradição francesa
e brasileira, nas publicações, como também torna o “Prefácio à edição inglesa”,
de 1970, da editora londrina Tavistock, o carro-chefe de sua leitura. Ressalta
que esse texto é um direction for the use (DOMINGUES, 2020, p. 76-79), ou
seja, um parâmetro de como se pode ler As palavras e as coisas, que, na edição
inglesa, é modificado por The Order of Things. Nesse capítulo, o autor enfatiza
que Arqueologia do saber é o livro no qual Foucault sinaliza para o caráter
epistemológico de As Palavras e as coisas. A partir dele é que Domingues mostra
os dois eixos da filosofia contemporânea e seus tripés, sugeridos por Foucault.

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Entre erros férteis e verdades anódinas Artigos / Articles

O primeiro, chamado eixo epistemológico, formado pela consciência/


conhecimento/ciência; e o segundo, eixo arqueológico, constituído pela
prática discursiva/saber/ciência. No livro inteiro, Domingues tem em mente
o cruzamento entre esses dois eixos, sempre sublinhando que jamais Foucault
cede à tentação da consciência, do significado e do sentido, que parece ser o
caso do tripé epistemológico do eixo 1; e que, pelo contrário, Foucault enfatiza
o discurso dissociado do sujeito da consciência. Pode-se dizer, se sujeito há no
eixo arqueológico, não é o sujeito transcendental, não é o sujeito metafísico, não
é o sujeito fenomenológico, é o sujeito como efeito de uma prática discursiva. O
cruzamento desses dois eixos é que anima o olhar retrospectivo que Domingues
realiza sobre As palavras e as coisas, leitura que ele denomina epistemológica,
diante de uma perspectiva que normalmente tende a ser somente arqueológica.

7 A relação com a “Tese Complementar” de doutorado


Invoco um terceiro ponto relevante da obra, que é a relação estabelecida
pelo autor, no Capítulo 6, entre As palavras e as coisas e a Tese Complementar de
doutorado, defendida dia 20 de maio de 1961, na Sorbonne, sob a direção de
Jean Hyppolite. Essa tese consistiu na tradução para o francês do texto de Kant,
Antropologia do ponto de vista pragmático, assim como de uma “Introdução” de
mais de 100 páginas. Domingues lamenta que, durante seus anos passados
em Paris, por ocasião de seu doutorado, não tomou conhecimento do único
exemplar da Tese Complementar depositado na Biblioteca da Sorbonne,
porque a tradução da Antropologia foi publicada pela Editora Vrin, precedida
de uma “Notice historique” de pouco mais de 4 páginas,5 em 1964, enquanto
a “Introdução” só seria publicada bem mais tarde, em 2008.6
Na versão e-book de seu livro, que é de 2020, Domingues efetua uma
relação mais sóbria e pontual sobre a articulação da Tese Complementar com
As palavras e as coisas. Contudo, na edição impressa e ampliada, de 2023,
escreve mais de 50 páginas a respeito, no Anexo: “Cap. 6 – A Episteme
Moderna: Contrapontos. Notas Complementares sobre As palavras e as Coisas
e a Questão Antropológica”. O Anexo, segundo me escreveu recentemente, foi
resultando de uma construção difícil, que se apresenta em três camadas: 1) a
Tese Complementar (Introdução); 2) As palavras e as coisas, especialmente os
5 KANT, I. Anthropologie du point de vie pragmatique. Tradução de Michel Foucault. Paris: Vrin, 1964.
6 FOUCAULT, M. Introduction à l’Anthropologie de Kant. Paris: Vrin, 2008. (FOUCAULT, M. Gênese
e estrutura da Antropologia de Kant. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail.
São Paulo: Loyola, 2011).

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CANDIOTTO, C.

capítulos XIX e XX; e 3) a Antropologia, de Kant, de sorte que o livro de 1966


aparece comprimido entre esses outros dois textos.
Outra peculiaridade do Anexo é a constatação de que Domingues
reverte o vetor temporal que havia utilizado nos demais capítulos de seu livro,
o qual se estendia, inicialmente, de 1966 a 1984. Agora, retrocede de 1966 a
1961, “[...] tendo como ponto de chegada ou limiar as duas teses de doutorado
com as quais se iniciam a fase arqueológica do filósofo, na qual PC [As palavras
e as coisas] está inscrita [...] deixando para trás a fase fenomenológica do jovem
filósofo, quando Foucault não era ainda Foucault.”.
Em seu Capítulo 6, dedicado especialmente à relação entre o
antropologismo moderno e a crítica arqueológica, Domingues analisa a relação
capital entre a analítica da finitude e o seu desenvolvimento embrionário,
na Tese Complementar. Enfatiza, de maneira aguda, uma diferença notável
entre esses dois estratos de discurso: em 1961, Foucault não trabalha ainda
com o conceito de episteme. Na Tese Complementar, o privilégio recai
sobre a relação entre as três críticas, a Antropologia e o Opus postumum, do
chinês de Konnisberg.7 Nessa tese, Foucault não inclui Kant na “abertura”
do antropologismo moderno, a partir das distinções críticas. Porém, salienta
até que ponto o originário da Antropologia é um misto impuro do a priori
das críticas, e do fundamental do Opus postumum (DOMINGUES, 2020, p.
250).
Já em As palavras e as coisas, Foucault escreve que Kant distingue entre o
empírico e o transcendental, possibilitando a “abertura” dessas duas dimensões
da analítica da finitude. Foucault vê nas distinções críticas kantianas um
“índice” ou divisor de águas, Kant não fazendo parte das confusões entre
o empírico e o transcendental que encontramos nos séculos XIX e XX no
positivismo, na dialética e na fenomenologia. Na Tese Complementar, parece
ser o Übermensch, de Nietzsche que teria liberado a Modernidade de seu sono
antropológico. No livro de 1966, essa liberação está muito mais próxima da
7 Quando se trata de estabelecer a relação da Antropologia com as três Críticas, especialmente se a
pergunta “O que é o homem?” repete ou não as conhecidas perguntas das três críticas, passagem
que Foucault encontra na Lógica, fica evidenciado que sua referência – como a da maior parte dos
foucaultianos - tem sido o confronto entre a pergunta antropológica e o sujeito de conhecimento.
A partir de uma frequência de provas textuais extraída de termos do Index da tradução inglesa da
Antropologia, Domingues tenta evidenciar, em seu Anexo ao Capítulo 6, que o grande mote do chinês
de Königsberg, nesse livro mal enjambrado, não era epistêmico, mas, antes, moral, não estando em
jogo uma filosofia do conhecimento, contudo, uma filosofia moral ou uma filosofia prática. Essa
descoberta, como é perceptível, desnuda outra leitura da Antropologia pouco explorada e que merece
ser repercutida.

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Entre erros férteis e verdades anódinas Artigos / Articles

relação que Foucault estabelece entre o formal e o histórico, pela criação da


arqueologia do saber. A noção de episteme e sua proximidade ao método
estrutural, embora irredutível a ele, pode ser considerada uma alternativa da
época contemporânea ao moderno sono antropológico, no positivismo, na
dialética e na fenomenologia.
Nesse sentido, pensar a história a partir das descontinuidades das
epistemes e da sincronia entre os saberes de uma mesma época só é possível
em função de uma arqueologia do saber; entretanto, essa arqueologia, por
sua vez, somente encontra sua condição histórica de possibilidade nesse
momento de esgotamento da episteme moderna e de abertura a uma nova
disposição epistemológica, quiçá, a uma nova ordem, que é a do discurso.
Resta a pergunta: tendo em vista que Foucault, em seus escritos posteriores,
identifica o desaparecimento do sujeito da consciência com o surgimento da
ordem do discurso, estaríamos ainda no limiar entre a episteme moderna e a
contemporânea ou adentramos definitivamente na ordem do discurso?

8 Foucault par lui-même


Outro ponto relevante a ser salientado no livro de Domingues,
especialmente no Capítulo 7, é a retomada que Foucault faz de As palavras
e as coisas, ainda nos anos 1960. Domingues segue um critério metodológico
importante: não recolher tudo o que foi escrito nessa época e todas as críticas
que foram feitas, mas realizar uma seleção de textos. O primeiro, de 1968, é
o famoso “Foucault répond à Sartre”, publicado em La Quinzaine littéraire,
reeditado nos Dits et écrits I (FOUCAULT, 2001a, p. 690-696). Outro texto
é “Réponse à une question”, publicado na revista Esprit, em maio de 1968,
também reeditado nos Dits et écrits I ((FOUCAULT, 2001b, p. 701-723). Essa
revista fez uma série de questões a Foucault, contudo, ele responde somente à
última, sob a alegação: “[...] isso sim tem a ver com o meu trabalho”. O terceiro,
proferido como conferência na Universidade de Túnis, em 1968, intitulado
“Linguistique et sciences sociales”, publicado em 1969, na Revue tunisienne
de sciences sociales, também reeditado em Dits et écrits I (FOUCAULT, 2001d,
p.849-869).
A partir desses três textos, Domingues retrata um Foucault preocupado
em “esclarecer” sua obra, nos meios intelectuais e midiáticos. O pensador
francês recolhe as principais críticas que lhe foram dirigidas, retifica alguns
aspectos que não considera mais adequados sobre a obra de 1966 e, acima

Trans/Form/Ação, Marília, v. 46, n. 4, p. 109-126, Out./Dez., 2023. 123


CANDIOTTO, C.

de tudo, expande os horizontes da arqueologia. Domingues utiliza tanto esse


recorte bibliográfico extremamente cirúrgico, pontual e adequado, quanto
uma seleção de textos nos quais Foucault se corrige e se desdiz, explicando
melhor certas passagens, expandindo outras análises e retificando confusões
e erros que ele mesmo observa. Ao mesmo tempo que Domingues privilegia
posições de Foucault, no final dos anos 1960, sobre As palavras e as coisas, abre
também novos horizontes de análise, sem se prender ao que ele “quis dizer”
em um momento em que o “dito” já deixa de ser seu objeto de pensamento.
Indica, assim, por que não devemos ser foucaultianos, ou seja, tomar seus livros
como verdades ou certezas em relação às quais cumpriria defendê-las diante de
quaisquer críticas e de forma extemporânea aos objetos que ele problematiza.
Vale ser destacado ainda o privilégio que Domingues atribui
às manifestações mais tardias de Foucault sobre As palavras e as coisas,
especialmente no capítulo 8: “Foucault par lui-même: esclarecimentos,
expansões, retificações – fase genealógica.” Para tanto, elege dois textos
fundamentais. Um deles é a famosa entrevista na revista Il Contributo, a qual
ocorre em 1978 e é publicada somente em março de 1980. Trata-se de um
longo diálogo que se chama Conversazione con Michel Foucault, reeditado
em Dits et écrits, II (FOUCAULT, 2001e, p. 860-914), a partir do qual
Domingues ressalta a posição de Foucault deveras singular: para seu autor,
o livro é algo a ser experimentado, escrever é uma experimentação filosófica.
Foucault justamente produz ficções heterotópicas, não está preocupado com
a fidelidade a certas correntes ou conceitos; escreve, antes, para criar espaços
outros.
O outro texto, objeto do capítulo 8, é a entrevista concedida a
Gérard Raulet, publicada, em 1983, na Revista Spuren (“Um welchen Preis
sagt die Vernunft die Wahrheit? Ein Gespräch mit Michel Foucault”),
reeditada nos Estados Unidos na Revista Telos, na primavera de 1983, com
o título “Structuralism and Poststructuralism”, e incluída nos Dits et écrits II
(FOUCAULT, 2001f, p. 1250-1276). Nela, Foucault faz uma atualização de
seu projeto filosófico, desde os escritos de juventude até o projeto da História
da sexualidade, com a incursão especial por As palavras e as coisas. Domingues
ressalta que esse livro sempre foi considerado marginal, quando Foucault fala
par lui-même, uma obra fora da curva em relação às suas grandes preocupações
a respeito da loucura, da sexualidade ou da criminalidade. Em razão de seu
hermetismo, As palavras e as coisas pode ainda ser identificado como um livro
marginal, posto que “[...] foi escrito para ‘chercheurs’.” (DOMINGUES, 2020,

124 Trans/Form/Ação, Marília, v. 46, n. 4, p. 109-126, Out./Dez., 2023.


Entre erros férteis e verdades anódinas Artigos / Articles

p. 14). Contudo, cumpre observar que se trata de uma avaliação paradoxal,


porque nada explica que um texto tão hermético tenha sido objeto da leitura de
tantas pessoas comuns, naquele verão de 1966, nas praias da Riviera francesa.
Transcorridos mais de 50 anos de sua publicação, o livro As palavras e as
coisas ainda é objeto de significativo interesse da recepção crítica, caso especial
da obra de Ivan Domingues aqui examinada. Ciente de diversas incursões
realizadas acerca do Opus Magnum de Michel Foucault, não tenho dúvidas
de que estamos diante de um dos mais significativos esforços de análise crítica
sobre a arqueologia do saber realizados no Brasil. Nada mais certeiro do que
indicar “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos
depois” (2023) a todos os interessados na discussão acerca do nascimento das
ciências humanas, dos limites e possibilidades do método arqueológico e na
interpretação da leitura foucaultiana do sono antropológico moderno.

CANDIOTTO, C. Through fertile errors and anodyne truths: about the book by ivan
domingues entitled “foucault, a arqueologia e as palavras e as coisas: cinquenta anos
depois”. Trans/form/ação, Marília, v. 46, n. 4, p. 109-126, Out./Dez., 2023.

Abstract: The aim of this paper is to provide an appreciation of Michel Foucault’s The Order of Things
reception, from the latest book by Ivan Domingues entitled “Foucault, a arqueologia e As palavras e
as coisas: cinquenta anos depois” (Ed. UFMG, 2023). One of the scopes of the book is to examine
the range of The Order of Things and its archaeological strategy to account for the presentation of
the birth of human sciences, as well as its fragility and instability in the face of a possible change in
the disposition of knowledge. Or Episteme’s disposition, according to Foucault terminology, whose
signs of change can be observed on the occasion of the advent, in the twentieth century, of Lacanian
psychoanalysis, ethnology and structural linguistics. By privileging its repercussions, expansions and
rectifications fifty years later, it is not intended to “correct” Foucault from an epistemological point of
view, but to point out the fertility and power of his thoughts for posterity. It is about going through
“fertile errors and anodyne truths” (DOMINGUES, 2020, p. 386). The bet is that possible gaps, errors
or confusions identifiable by Foucault himself and by his critics at the time never invalidate the fertility
of a discussion concerning human sciences, which were never the same after Foucault.
Keywords: Archeology of knowledge. Epistemology. Michel Foucault. Human sciences.
Anthropologism.

Trans/Form/Ação, Marília, v. 46, n. 4, p. 109-126, Out./Dez., 2023. 125


CANDIOTTO, C.

Referências
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DOMINGUES, I. O Continente e a Ilha: duas vias da filosofia contemporânea. 2. ed.
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DOMINGUES, I. Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos
depois. Belo Horizonte: UFMG, 2020 (Edição e-book).
DOMINGUES, I. Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos
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FOUCAULT, M. Les Mots et les choses: une archéologie des Sciences Humaines. Paris:
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FOUCAULT, M. Réponse à une question. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits, I. Paris:
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FOUCAULT, M. Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie. In:
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GUTTING, G. Michel Foucault’s Archaeology of Scientific Reason. Cambridge:
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MACHADO, R. Ciência e saber – a trajetória da arqueologia de Foucault. Rio de
Janeiro: Graal, 1981.
MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

Recebido: 21/02/2023
Aprovado: 29/03/2023

126 Trans/Form/Ação, Marília, v. 46, n. 4, p. 109-126, Out./Dez., 2023.

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