DUTRA, Eliana de Freitas - A Memória em Três Atos

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A memória em

três atos:
deslocamentos
interdisciplinares
Eliana de Freitas Dutra

REVISTA USP • São Paulo • n. 98 • p. 69-86 • JUNHO/JULHO/agosto 2013 69


dossiê Memória

RESUMO ABSTRACT

Este texto pretende elaborar uma refle- The current text has the aim to reflect upon
xão sobre a problemática do tempo, da the question of time, memory and obli-
memória e do esquecimento no campo viousness in the field of historic knowledge.
do conhecimento histórico. Por essa via Through this approach our intention is to
pretendemos contribuir para a discussão contribute to the discussion of how history
de como os historiadores tecem as for- scholars weave the shape of contemporary
mas atuais da história nas relações que history; through the relationships that they
estabelecem entre a história, o tempo e establish between history, time and me-
a memória, nas ligações que constroem mory; in the connections they built between
entre o passado, o presente e o futuro, na past, present and the future; in the tension
sua tensão com os regimes de verdade that is built with the regimes of truth in
da disciplina histórica, ou no seu inevi- the field of history; or in the unavoidable
tável trânsito nas fronteiras de outras overlap on the edges of other academic
disciplinas e formas de conhecimento, disciplines in the face of its responsibilities
face às suas responsabilidades com a with comtemporaneity.
contemporaneidade.

Keywords: history, time, memory, obli-


Palavras-chave: história, tempo, memó- viousness.
ria, esquecimento.

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T
ema fascinante, a me- toriografia contemporânea, a exemplo das ELIANA DE
FREITAS DUTRA
mória tem desafiado a novas hermenêuticas advindas das reflexões é professora titular
ciência, a filosofia, a sobre os usos políticos do passado, as políti- do Departamento
de História da UFMG
história, a literatura, as cas de memória, a escrita da história. e pesquisadora do
artes, e inspirado refle- A linha de abordagem a ser seguida neste CNPq.
xões em diferentes re- texto origina-se do esforço de colocar em diá-
gistros epistemológicos, logo três abordagens da memória de nature-
teóricos e estéticos. A sua presença nas tradi- zas distintas, as quais irão se desdobrando ao
ções de pensamento da Antiguidade clássica, longo do texto: uma fílmica, que tem como
na história da sua organização nas famosas suporte material um documentário; uma li-
“artes de memória” inspiradas por tratados terária, onde a marca é a do recurso à ficção
mnemônicos de origem greco-latina, a sua na forma de um romance; e uma hermenêuti-
entrada no campo das teorias das ciências ca, ancorada na questão da representação do
sociais, a noção contemporânea dos “luga- passado e na constituição de uma forma de
res de memória” e os debates recentes no conhecimento, que é a memória, e de outra
mundo público contemporâneo sobre seus forma de conhecimento, que é a história.
usos, abusos e excessos, bem como sobre o Guardadas as especificidades dos seus
“dever de memória”, apenas aludem ao fato respectivos lugares, nelas encontrei ele-
inequívoco de sua presença em diferentes e mentos para refletir sobre a problemática
importantes momentos da história e da cul- da memória e do esquecimento no campo
tura ocidentais. Neste texto vamos nos ater à do conhecimento histórico, e em cada uma
exploração da pertinência das relações entre recolhi substratos sobre a problemática da
história e memória no âmbito da epistemo- relação entre tempo e história, entre memória
logia da história, e nas suas fronteiras com e esquecimento.
outras epistemologias.
Como somos seres de memória e de his- MEMÓRIA EM CENA E
tória, essas relações, por um lado, nos obri- CENAS DE MEMÓRIA
gam a pensar na dimensão humana da dis-
ciplina histórica e, por outro, nos remetem à Ao final do belíssimo documentário La
reflexão sobre sua posição de relevo dentro Nostalgia de la Luz, produzido pela cineasta 1 Entrevista com Pa-
trício Guzmán, in ci-
de uma linha de preocupações importantes, chileno Patrício Guzmán e por ele definido nemadocumentaire.
qual seja, a dos lugares de renovação da his- como “um filme sobre a memória”1, o cineas- wordpress.com.

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ta se diz convencido de que “a memória tem ria da ditadura. E ele o faz justapondo um
uma força de gravidade, ela sempre nos atrai. olhar para o alto, a observação das estrelas,
Os que têm memória são capazes de viver no cujo passado chega até o presente na forma
frágil tempo presente, os que não a têm não de lembranças trazidas pela luz, e um olhar
vivem em nenhuma parte”2. Essa frase tem a para o nível do solo, direcionado, um, pelas
capacidade de sintetizar três linhas mestras escavações em buscas de pistas e evidências
que orientam o documentário em questão: da existência de outras culturas, outro, para
a similaridade entre a força da memória e a a procura desesperada das mulheres pelos
força gravitacional, uma definindo a condi- restos mortais dos seus familiares chilenos
ção humana e a outra responsável pela me- na terra calcinada do deserto.
cânica do universo; o tempo, como elemento Nesse esforço de aproximação não fal-
de ligação entre os homens e o universo, e tam, no documentário, depoimentos que, em-
matéria da memória; o tempo e a memória bora autorizados pelo exercício e a prática
como condição da história humana. no interior dos domínios científicos da astro-
Nesse documentário, um belo exercício nomia e da arqueologia, emprestam sua voz
poético sobre o cosmo, o tempo e a memó- menos por razões científicas e mais pela em-
ria, seu realizador, no intuito de mostrar a patia com a reflexão filosófica proposta pelo
importância do passado – do qual, ele insiste, realizador do documentário, para quem “a
tudo procede – e esconjurar seu esquecimen- memória é a coisa mais importante da vida.
to, escolheu um lugar, um território, o qual, É o olhar do universo, o olhar da história, a
segundo suas palavras, pertence ao passado: mesma coisa que faz a teologia, a geologia,
o deserto de Atacama. e as mulheres que buscam corpos”. É nes-
Na sua aridez absoluta, o deserto nos é se topos de buscas, e na realização do seu
mostrado como um enorme palimpsesto de cruzamento, que a narrativa cinematográfica
memória e de história. Nele se superpõem vai ser construída. Essa construção não vai
camadas geológicas e temporais, com suas prescindir das autodefinições dos persona-
sobrevivências pré-colombianas, tais como: gens em meio às buscas que empreendem.
animais petrificados, múmias, rochas com Assim é que ouvimos o astrônomo nos
pinturas rupestres; restos de cadáveres dos dizer que a pergunta mais importante que
trabalhadores nas minas de salitre e de sol- os astrônomos se fazem, “de onde viemos”,
dados mortos no século XIX na disputa pelo se mescla com a cultura humana em geral”,
controle das minas, a qual envolveu chilenos, e que “o presente não existe a não ser como
peruanos e bolivianos; pedaços de corpos de uma ilusão”, pois não se vê nada no instante
presos políticos assassinados pela ditadura em que se vê, “tudo que vemos nos chega
de Pinochet e para ali deportados e abando- com atraso através da luz”. O passado seria,
nados na expectativa de ficarem para sempre portanto, o grande objeto dos astrônomos e,
ocultados na sua imensidão. no seu entender, também dos arqueólogos e
Esse espaço, privilegiado para as obser- dos historiadores – ainda que estes estudem
vações e descobertas dos arqueólogos, apre- um passado mais próximo, restrito ao tempo
senta condições excepcionais para a observa- da história dos homens, e os astrônomos, o
ção astronômica responsáveis pela instalação mais longínquo, imerso no tempo do univer-
de um dos mais avançados observatórios do so. Nesse jogo de identificações e definições
mundo, com modernos e potentes telescó- em outro território comum, o da ciência, é o
pios usados por equipes internacionais de arqueólogo que define os astrônomos como
astrônomos. E é pela via de um exercício “arqueólogos do espaço”, que, no presente,
metafórico sensível, e doloroso, que o cine- recordam o passado, decifrando os enigmas
asta vai estabelecer, no espaço do deserto de do espaço, e o reconstroem através de pis-
2 La Nostalgia de la
Luz. Roteiro e direção Atacama, uma aproximação entre as pesqui- tas que a transparência do céu lhes permite
de Patrício Guzmán. sas arqueológicas e astronômicas e a memó- encontrar, tal como o clima seco do deserto

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lhes permite, a eles, arqueólogos, controlar tempo” (Ricoeur, 2000, p. 200), a exemplo
as evidências do passado. O ar transparente dos historiadores.
do deserto, segundo uma bela imagem de Assim, à justaposição dos olhares para
Guzmán, “permite ler neste grande livro de o céu e sobre a terra, são agregados outros
memória página, por página”. A chave para elementos fundamentais: a construção, pelo
o êxito das buscas são as pistas, os traços regime de Pinochet, do campo de concen-
de uma história preservados pela memória, tração de Chacabuco no local das ruínas das
numa aproximação com os historiadores cuja minas de salitre, e nas mesmas casas dos
prática tem sido regida pelo chamado para- trabalhadores mineiros, as quais, segundo
digma do traço ou do vestígio. o depoimento de um ex-prisioneiro, só foi
Aqui os depoimentos parecem confluir preciso cercar; a proibição pelos militares
para a tentativa de presentificar o passado, das atividades e estudos de um grupo de pri-
dada a tensão temporal que faz com que sioneiros apaixonados pela astronomia – tal
o tempo presente só possa ser apreendido qual o realizador do filme na sua infância –,
como passado, mantida a procura de fios que a pretexto de que planejavam fugir do campo
permitam compor formas para a memória; de concentração se orientando pelas estrelas.
e para o esforço de presentificar o presente, Nesse ponto o cineasta entra em cena com
já que a presença do presente é essencial ao um personagem que, como uma espécie de
imperativo ético da ação, a mensagem maior homem-memória, e com uma autoridade que
do documentário. Nessa linha de cruzamen- nos recorda, guardada a devida distância, a
tos entre as práticas do astrônomo e do ar- dos mestres de verdade da Grécia arcaica
queólogo, e nas ligações buscadas entre os (Dettienne, 1988)3, autentica a existência do
personagens que guiam nosso olhar sobre o campo de concentração retirando-o do es-
deserto de Atacama, ouvimos o arqueólogo – quecimento, e se lembrando do que ali foi
que não esconde sua perplexidade diante da apagado: os cabos eletrificados, as torres de
possibilidade de se conhecer mil anos de his- vigilância, as cercas de arame.
tória, enquanto vê ser esquecida no seu país a Nesse ponto, tal como os memorialistas
história de hoje – reafirmar a obrigação ética na sua palavra escrita, o homem-memória da
de se preservar a memória e não se esquecer prisão de Chacabuco mostra sua diferença
dos mortos. A busca da origem da morte, da palavra mágico-religiosa do “mestre de 3 Dettienne nos fala da
palavra cantada dos
expressa na persistência da busca dos restos verdade”. Para este, a memória, mnemosine, poetas, do seu esta-
mortais das vítimas da ditadura, a busca das era dom de vidência, de decifração do invi- tuto mágico-religio-
origens do Universo, no estudo sistemático sível, transcendência do tempo; para aquele, so, da sua condição
adivinhatória, que
que varre as constelações e as galáxias, e a memória é fato, é transfiguração do acon- tem como suporte a
a busca das origens das várias culturas dos tecimento, transparência do vivido, entrada e memória como po-
tência religiosa. Trata-
povos pré-colombianos estão na base de uma domínio do tempo, conquista do passado hu- -se de uma memória
mesma nostalgia da luz, grande metáfora da mano, certeza do presente. A esse homem o divinizada que, se-
gundo Vernant (1990,
criação, da vida, da verdade, que o dever de cineasta, como a reconhecer o direito de uma pp. 105-48), não esta-
memória impõe resgatar. Esse é o sentimen- função social para a memória, dá a designa- va direcionada para
to dos depoimentos de mães, viúvas, irmãs ção de “transmissor de história”. E essa de- a reconstrução do
passado no interior
há anos vasculhando a terra seca do deserto signação, considerada a condição de atesta- de uma arquitetura
tentando resgatar, com os fragmentos de vida ção do passado por parte da memória, como temporal.

encontrados, a totalidade dos que se foram. veremos à frente, pode ser corroborada por
Recompor os corpos é a forma de recupe- aqueles4 que creem num estatuto próprio da 4 Nos referimos a Ri-
rar a dignidade que sentem ter sido perdida. memória como conhecimento. A exigência coeur (2000). Sobre
esse ponto, no tocan-
Astrônomos e arqueólogos, aqui, aparecem de atestação da existência mesma de um pas- te às relações entre o
confrontados com a imposição “da experi- sado teria sido transmitida à história, como ver o saber, conferir
Har tog (2012, pp.
ência viva da memória, mas também com a modo de conhecimento, pela memória. Esse 203-28) e também
especulação multimilenar sobre a ordem do sujeito de memória, testemunha e fiador, ou Gagnebin (1992).

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transmissor da história, que aparece transi- passado. Em seu depoimento, o jovem astrô-
tando pelo espaço feito de ruínas, inscreve a nomo se diz consciente de que ele e a mãe,
si mesmo como um traço de memória entre o que se ocupa de tratar os traumas sofridos
tempo vivido no campo e o tempo construído por antigos prisioneiros políticos, “se movem
pela memória. no tempo do passado” e “trabalham com a
Na sequência é a vez da entrada em cena informação do passado”.
de outro personagem nomeado como o “ar- Outro elemento a reforçar as aproxima-
quiteto de memória”. Esse ex-prisioneiro ções que guiam a narrativa do documentá-
exercitou a sua memória, e parece ter criado rio na sua relação com o tempo, bem como
suas próprias regras de mnemotecnia para com seu fio de busca de corpos celestes e
a memorização das formas dos lugares, das humanos, é a sustentação, por um astrônomo
medidas, das divisões dos cárceres, ou seja, americano da equipe do observatório de Ata-
dos lugares de detenção do campo de Cha- cama, de que a matéria do deserto, o cálcio,
cabuco, nos fazendo lembrar as regras do é também a das constelações de estrelas. “A
clássico Instituto Oratório, de Quintiliano5, matéria da terra era a mesma em todos os
e seus métodos diretos de memorização pelo recôncavos do cosmo.” E os ossos, nos diz
estudo cuidadoso, pela observação, pela re- Guzmán, são matérias perdidas no espaço,
petição, ainda que, à diferença desses, seu como os asteroides. E como traços do passa-
exercício tenha se realizado numa direção do da história humana, ou do universo, urge
sem qualquer relação com a arte da retóri- que sejam recuperados para a memória.
ca – como de resto toda a arte de memória As lentes de Guzmán, em La Nostalgia
da Antiguidade clássica – e tivesse como de la Luz, constrem o deserto de Atacama
companhia o silêncio, o quase segredo. Os como uma paisagem memorial que ele devol-
desenhos eram feitos à noite, memorizados, ve à história. Paisagem essa feita de traços
escondidos e destruídos pela manhã. Dessa escondidos, recalcados, de traumas e dra-
forma, quando no exílio e longe do campo, mas silenciosos, mas também de traços que,
foi possível, pela recordação, refazê-los em através das condições climáticas do deserto,
detalhes e exibi-los como provas documen- puderam persistir e sair das sombras e da
tais do que viu e da infâmia que viveu. He- escuridão em nome do resgate do humano.
rótodo, nas suas Historiès, registrou, como Persistência e lacuna: duas condições presen-
testemunha que viu e ouviu, as ações e os tes no trabalho da memória e da história. A
grandes e admiráveis feitos que não que- construção memorial acima aludida nos con-
ria que fossem apagados com o tempo por firma que a memória também tem história, e
julgá-los dignos de não se perderem para que, no caso das histórias que tiveram como
a memória dos homens. Já o “arquiteto de cenário o deserto de Atacama, o documen-
memória”, ao contrário, como testemunha e tário de Guzmán foi definitivamente incor-
vítima de terríveis acontecimentos, registrou porado à sua tessitura. Sua narrativa, como
por escrito o cenário de ações indignas dos a dos historiadores, é também expressão de
homens, na imperiosa necessidade de tam- uma relação entre passado e presente. Afinal,
bém reinscrevê-las na história. o que particulariza a história é o movimento,
A força do passado, como um dos supor- o trânsito constante entre passado e presente,
tes narrativos do documentário, é retomada e entre os diferentes momentos do passado.
pela presença, entre os astrônomos – hoje en- História e memória se valem de um tempo
gajados no trabalho em torno da construção já transcorrido, e aquilo que projetam do
5 Sobre as ar tes de
memória bem como
de um grande telescópio –, de um filho de presente para o futuro tem seu respaldo no
sobre os tratados mãe chilena, nascido no exílio, que enfati- passado, objeto, tal como memória de con-
clássicos dessa arte,
za que a energia a ser captada pelas antenas flitos, disputas, interpretações. Vale lembrar
exercida como parte
da retórica, ver o belo do telescópio virá do passado chegando até que, na sua especificidade frente ao tempo
livro de Yates (1974). o presente, mas que pertence à história do natural, único, da astronomia, comum a to-

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dos os homens, o tempo da história – com de uma montanha de vidro” (Sebald, 2008,
sua arquitetura construída pelos historia- p. 158); as diferentes apreensões do tempo no
dores na captura, no interior da vida social mundo social; as relações da memória com
e política, dos seus múltiplos movimentos, a verdade, a criação, as formas de represen-
das suas durações, dos seus vários ritmos, tação e as exigências de cientificidade; a
das suas rupturas e continuidades, das suas presença da subjetividade. Essas indagações
linhas entrecruzadas – comporta, para além podem levar a exercícios de reflexão em ou-
de variados itinerários, diferentes formas de tros territórios, nem tão próximos, nem tão
apreensão. As experiências temporais da his- distantes daquele do deserto de Atacama,
tória, vivenciadas pelos homens no seu pre- mas igualmente capazes de, no contraste
sente, vão construir diferentes relações entre entre diferentes percepções e manuseios da
o passado e o futuro, as quais não prescin- memória, enriquecer as análises no campo
dem da memória e das formas de lembrar. da história e dotá-las de maior complexidade.
No documentário de Guzmán, a força Um desses territórios é o da ficção literária.
das imagens e os depoimentos que invocam
a materialidade dos traços do passado como ÀS VOLTAS COM A
evidências em si mesmos não esbateram a MEMÓRIA DE FLAUBERT
realidade de sua construção e sua condição
de representação, das quais o “cenário ima- No instigante livro O Papagaio de Flau-
ginário”6, como um dos recursos utilizados bert – cuja intriga ficcional é um pretexto
pelo cineasta para nos transportar as formas, para o autor revisitar e problematizar a vida,
cores e movimentos do cosmos, é apenas um a obra, as análises da obra e as correspon-
detalhe. Por sua vez, a forte ênfase documen- dências de Flaubert, bem como os lugares
tária no passado, aliada à carga afetiva que onde o autor viveu –, o romancista inglês Ju-
nos faz reviver os horrores da ditadura chi- lian Barnes (2000) mistura realidade e ficção
lena, os quais se justificam como um fator numa fina e demolidora ironia literária con-
consciente de ordem ética e política, não tra os juízos dos biógrafos e críticos do es-
significa que o futuro não tenha lugar na re- critor transformados em memória sobre ele8.
lação entre tempo e memória. O futuro, ali, O personagem principal é o próprio Gus-
como para os historiadores, também procede tave Flaubert, e o narrador da história é um
do passado e das experiências nele vividas, médico inglês, pretenso especialista na sua
quando aquele passado era o presente para os obra, alter ego do escritor Julian Barnes, o
homens daquele tempo, com suas esperanças qual, nas pegadas do romancista francês,
e expectativas por realizar. visita Rouen, cidade onde nasceu e morreu
Nesse belo documentário, que podemos Flaubert. Lá descobre, num canto do museu
6 Entrevista com Patrí-
denominar de objeto memorial, em que os do Hôtel-Dieu, onde o pai de Flaubert havia cio Guzmán, op. cit.
procedimentos de criação do cinema7 foram sido cirurgião, um papagaio empalhado, que
7 Tais como o som, as
colocados a serviço da memória, os historia- teria sido emprestado ao escritor pelo Museu imagens, o uso da
dores são levados com delicadeza a refletir de Rouen para lhe servir de modelo enquanto luz, os cortes, os en-
quadramentos, entre
sobre questões que envolvem a memória e escrevia seu célebre conto “Un Coeur Sim- outros que aqui não
o tempo, e que os redirecionam ao seu do- ple” (Flaubert, 1994). Em meio às várias pe- foram trabalhados
por excederem o ob-
mínio. Esse é caso das perguntas sobre as ças e objetos ligados à história da medicina jetivo deste texto.
formas de sobrevivência do passado; as pos- encontrava-se o papagaio, aliás, brasileiro,
8 Com inúmeras modi-
síveis imperfeições da memória; suas des- da região amazônica, o qual portava a de- ficações nos valemos
continuidades e inevitável alteridade – esta, vida etiqueta identificatória com a seguinte aqui, bem como na
parte seguinte deste
inscrita na diferença temporal entre o vivido inscrição: artigo, de ideias de-
e o momento da lembrança, sobre a qual já senvolvidas no texto
“O que É Avançado
se disse, poeticamente, que “a impressão “Papagaio tomado emprestado por Gustave nas Ciências Huma-
que temos é de enxergar o passado através Flaubert ao Museu de Rouen, para ser co- nas” (Dutra, 2006).

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locado em cima de sua mesa de trabalho tiano, etc. Tudo isso despertado pela visão
durante a redação de ‘Un Coeur Simple’, do papagaio guardado no museu. Será justa-
onde ele se chamava Loulou, o papagaio de mente um enigma surgido em torno do papa-
Félicité, personagem principal do conto de gaio que serviu de modelo ao Loulou que vai
Flaubert” (Barnes, 2000, p. 23). propiciar um interessante exercício da dúvida
ao narrador. Portanto, voltemos a ele.
Sentindo-se próximo ao escritor através Pois bem, continuando seu périplo lite-
dessa visão do papagaio, como que transpor- rário e sentimental em Rouen, o narrador
tado mesmo ao passado, o narrador, naquele decide ir a Croisset, pequenina cidade à bei-
momento que poderíamos qualificar de epi- ra-mar onde a família de Flaubert possuía
fânico, verifica que, ao lado da etiqueta, e uma propriedade. Ali, ao visitar o pavilhão,
com idêntico intuito de confirmação de au- única peça remanescente da antiga residên-
tenticidade, está uma fotocópia de uma carta cia familiar do escritor, onde o gabinete de
de Flaubert, escrita a uma amiga, em que trabalho de Flaubert é mantido como um pe-
dizia: queno museu, depara-se, para sua surpresa,
com outro papagaio empalhado. Tal como
“Você sabe o que tenho diante de mim, sobre o outro, esse também tinha uma etiqueta
a minha mesa de trabalho depois de oito dias? que confirmava haver sido emprestado ao
Um papagaio empalhado. Ele permanece em escritor pelo museu de Rouen, o que signi-
posto fixo. Sua vista começa a me importunar. ficava igual pretensão de autencidade, para
Mas eu o conservo, para me encher o cérebro além da igual e excelente conservação, do
da ideia de um papagaio. Porque eu escrevo mesmo verde brilhante, das mesmas plumas
no momento os amores de uma velha moça e encrespadas e do mesmo olho vivo. Diante
de um papagaio” (Barnes, 2000). desse fato o narrador se pergunta: “Como
9 Aqui, um pequeno comparar dois papagaios, dos quais um é
parêntesis: as descri- De fato, nesse conto, Félicité, uma velha já idealizado pela memória e pela metáfo-
ções dos objetos da
sala de visita da pa- e devotada empregada de uma família bur- ra, e o outro é um intruso desagradável?”.
troa de Félicité feitas guesa de Rouen, é tomada por uma estra- Colocada a questão da autencidade à zela-
por Flaubert, nesse
conto, são exploradas
nha paixão por um papagaio: o Loulou. Sem dora do museu, a qual toma partido do seu
por Roland Barthes ter nada de seu, a não ser a sua fé religiosa, papagaio e faz pouco caso do outro, o nar-
como detalhes su- Félicité, depois de perder todos aqueles a rador, admitindo para si mesmo ter se enga-
pérfluos da narrativa,
no seu célebre texto quem se dedicara, sem nada obter em tro- nado pensando que poderia localizar “a voz
“O Efeito de Real”, ca, se apega a Loulou, o papagaio, e quando do escritor” com facilidade, pergunta-se se
onde o autor, pela
via da comparação este morre manda empalhá-lo e o guarda alguém conheceria a verdadeira resposta, e
com o romance rea- como uma relíquia, que se torna objeto de se essa interessaria a alguém além dele, que
lista, manifesta seu
ceticismo contra a
uma devoção quase religiosa. Assim é que, tinha atribuído significação ao primeiro pa-
pretensão referencial na igreja, observando o Espírito Santo, se pagaio. De todo modo, ele decide investigar
da história, a qual ele
indagava acerca da sua possível semelhança a questão, a qual só reaparece de novo no
vai chamar de ilusão
referencial, uma vez com o papagaio. No momento da sua morte, último capítulo do livro. Ali ele nos faz sa-
que, no momento ela tem uma visão mística: a do céu entre- ber que as várias cartas enviadas àqueles que
em que se indica o
pormenor, o detalhe, aberto, planando acima da sua cabeça um poderiam esclarecer o enigma do papagaio,
que parece capturar o imenso papagaio, tal como o Espírito Santo editores, universitários e estudiosos da obra
real, ele já seria signi-
ficação. Os detalhes nas iconografias religiosas9. de Flaubert, não lhe acrescentaram nada de
supérfluos, segundo Motivado pelo encontro com o papagaio, conclusivo, ou ficaram sem resposta. Daí, re-
Barthes (s/d, pp. 131-
o narrador relê o conto e se põe a conjeturar torna ao Hôtel-Dieu, pede autorização para
6), nada acrescenta-
riam na estrutura da sobre as possíveis intenções de Flaubert ao fotografar o papagaio, verifica uma lista de
narrativa, mas a sua escrevê-lo, as possíveis afinidades e paralelos objetos emprestados a Flaubert, enquanto a
função seria, portan-
to, a de dar conta do entre a vida do romancista e a da criada, suas zeladora lhe assegura que o outro papagaio
efeito de real. diferenças, a presença do grotesco flauber- era um impostor. Em seguida vai a Crois-

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set, onde fotografa também o papagaio ali

Reprodução
guardado.
No momento de fazer a comparação das
fotos, recorre ao seu exemplar do conto na
página em que Flaubert dá a descrição de
Loulou: “corpo verde, extremidade das asas
rosa, cabeça azul e pescoço dourado”. A des-
crição correspondia exatamente ao primeiro
papagaio, aquele do Hôtel-Dieu, uma vez
que as cores do exemplar de Croisset eram
invertidas, ou seja, a cabeça era dourada e o
pescoço, azul. Isso posto, e decidido a esta- Capa da edição
francesa de
belecer de vez a verdade sobre os papagaios,
O Papagaio
o narrador se dirige à casa de um grande es- de Flaubert:
pecialista em Flaubert, o membro mais an- realidade e
tigo da Sociedade dos Amigos de Flaubert. ficção ironizam
Apresentado o enigma dos dois papagaios, a memória
o narrador demanda ao especialista se ele construída
sobre o escritor
saberia qual era o verdadeiro e qual era o
impostor. E ouve como resposta que, quando é que Flaubert era um artista e um escritor
o museu de Croisset foi criado, em 1905, e de imaginação. Afinal, por que ele deveria
se reuniram todos os objetos possíveis rela- descrever o papagaio exatamente como ele
cionados a Flaubert, o conservador decidiu era, simplesmente porque ele o tinha tomado
tentar obter o papagaio que havia sido de- emprestado? Por que ele não teria invertido
volvido pelo escritor ao museu de história as cores se isso lhe soava melhor? A segun-
natural. Os responsáveis pelo museu se dis- da é que Flaubert teria devolvido o papagaio
puseram prontamente a atender ao pedido e ao museu em 1876, depois de ter termina-
conduziram o conservador à seção de pássa- do de escrever sua história, e o museu do
ros da sua reserva, onde havia nada menos pavilhão em Croisset só foi instalado trinta
do que cinquenta papagaios da Amazônia. anos mais tarde, em 1905. Esse espaço de
O conservador, tal como o narrador, releu a tempo poderia ter sido suficiente para que o
descrição de Loulou feita por Flaubert e es- papagaio fosse comido por traças, houvesse
colheu o papagaio cuja semelhança era mais se desagregado, perdido o enchimento, mu-
próxima à descrição. dado de cor.
Quarenta anos mais tarde, após a guerra, Nesse ponto o narrador se dá conta, per-
quando a coleção do Hôtel-Dieu começou a plexo e desiludido, de que não importava
ser organizada, passou-se a mesma coisa, qual poderia ser o verdadeiro papagaio, ou
e outro papagaio foi escolhido e de acordo que seria completamente possível que ne-
com a mesma descrição. Por isso haveria nhum dos dois o fosse. Ainda assim, diante
dois papagaios. A explicação do especialis- de uma resposta que, segundo ele, não era
ta, entretanto, não foi suficiente para impedir uma resposta, e de um fim que não era um
o narrador de colocar duas outras questões. fim, e sentindo que a história se desacelerava
Quem escolheu o primeiro papagaio; no tal como os movimentos do coração de Féli-
caso, o museu de Croisset não poderia ter cité, descritos por Flaubert “como uma fonte
escolhido o verdadeiro? E por que o segundo que se esgota, como um eco que desaparece”,
papagaio, o escolhido para o Hôtel-Dieu, era o narrador arrisca-se, antes de partir, a voltar
mais parecido com a descrição de Flaubert ao museu de Rouen e verificar, na sua reser-
do que o primeiro? A resposta do interlo- va, o destino dos tais cinquenta papagaios
cutor vai ponderar duas coisas: a primeira da Amazônia. Dos cinquenta ele verifica que

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restavam três (com as cores apagadas debai- só pode ser construído a partir da lacuna.
xo do inseticida), os quais, de acordo com o A referência ao ausente é, assim, cons-
desiludido narrador, “o fixavam como três titutiva do modo de presença do passado e,
velhos debochados, cobertos de caspa e in- nesse sentido, a perda se nos apresenta como
dignos” (Barnes, 2000, p. 342). Antes de sair inerente ao trabalho de memória e à constru-
de cena, ele os olha uma última vez dizendo ção historiográfica. Seja a perda do traço ma-
para si mesmo que, talvez, fosse um deles… terial, com alterações físicas ou destruição, a
Diante dessa incerteza, desse sentimento exemplo dos corpos do deserto de Atacama,
de que algo foi irremediavelmente perdido, o seja a perda do traço psíquico, como marca
que o narrador/escritor parece nos sugerir é afetiva do evento.
que o que restou efetivamente da sua busca Ao longo do texto, o autor, tal como o
do verdadeiro papagaio – ou do verdadeiro narrador, se debate sobre a maneira como
Flaubert, ou da verdade do escritor – foi o transitamos no passado – “perdidos, teme-
texto de Flaubert. Porque a sua biografia, o rosos, desorientados, nós seguimos os signos
seu passado, que o narrador tanto insiste em que sobreviveram; lemos os nomes das ruas,
recuperar na sua materialidade autêntica e mas não podemos saber com certeza onde
numa relação direta com a sua representação, nos encontramos” (Barnes, 2000, p. 101) –,
se lhe apresenta como uma rede de pesca, inquieta-se com as possibilidades que temos
que o autor define como um conjunto de bu- em apreender o passado, que ele chama de
racos ligados por um fio. passado estrangeiro, uma vez que “nós le-
A percepção da fragilidade dos alicerces mos, nós aprendemos, nós interrogamos,
da memória, suas lacunas, e a inquietação do nós nos lembramos, nós somos respeitosos e
autor com as diferentes percepções da tem- um detalhe fortuito muda tudo”, questiona-
poralidade, a angústia com a ideia de verda- -se sobre a prática e a autoridade da história,
de, retornam, em outro dos seus romances dizendo que: “nós podemos ler documentos
mais recentes (O Sentido de um Fim), no durante dezenas de anos, mas muito frequen-
qual o personagem principal, formado em temente somos tentados a levantar a mão aos
história e professor de história, ao relembrar céus e declarar que a história é simplesmente
sua vida de estudante e as relações do seu um gênero literário: o passado é uma ficção
grupo de amigos, recupera uma resposta autobiográfica que se dá ares de relatório
dada por um colega à questão, colocada pelo parlamentar […]. Seria a história uma aqua-
seu professor de história no passado, sobre o rela de amador, rápida e exata?”.
que seria a história afinal. E ouve: “É aque- Nesses questionamentos, guardadas as
la certeza fabricada no instante em que as distâncias de época e suas respectivas visões
imperfeições da memória se encontram com de história, o autor se apropria das problema-
as falhas da documentação”. A resposta abre tizações, quiçá das convicções, do próprio
um diálogo interessante com o professor, e a Flaubert acerca da história – manifestadas, é
mencionamos apenas para reforçar que, aqui, importante lembrar, através dos personagens
as promessas de uma analogia com a proble- do seu livro Bouvard et Pécuchet –, o qual
mática da identidade narrativa e ambição de acreditava que a história era sempre julga-
verdade da história, com a problemática dos mento e opinião, não era capaz de produzir
laços entre o passado e os objetos memoriais, um relato confiável, e que a verdade não teria
e a questão mesma da relação entre memória morada em lugar algum. Nesse livro o ceti-
e da história são promessas expressivas. E cismo de Flaubert diante da impossibilidade
elas nos fazem lembrar que a atitude retros- de testemunho objetivo do passado se traduz
pectiva comum à história e à memória e o no ridículo dos personagens, na crença in-
fato mesmo de que ambas se definam como gênua de Bouvard e Pécuchet na história, a
modos de perseverança do passado no pre- qual, diante do impasse, acaba desembocan-
sente não eliminam o fato de que o passado do no “caminho do romance” (Farge, 1997).

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Se, na literatura, o modelo narrativo, ou ram sombras de traumatismos da história eu-
seja, a dimensão retórica do discurso ficcio- ropeia, a exemplo do holocausto, das guerras,
nal, é um procedimento suficiente para ligar das consequências da aventura colonizadora
os vários buracos, dar existência a um tecido e e também das violentas ditaduras latino-
sustentá-lo com a construção de uma verdade -americanas, dos genocídios e massacres na
da literatura, nós sabemos que na história as África e na Ásia. Nisso ele não está sozinho
coisas se passam de outra maneira. Isso nos e, embora não nos detenhamos nesse ponto,
remete às implicações cognitivas tanto da me- poderíamos citar uma dezena de trabalhos
mória quanto da história e, por elas, podemos surgidos nos últimos anos, em que seus au-
adentrar em outras considerações, motivadas tores, a exemplo de Todorov (2000), Beatriz
pela leitura do livro de Paul Ricoeur (2000), Sarlo (2007), Henry Rousso (1987), Michel
em que se empreende um verdadeiro tour de Pollack (1986), entre outros, se debatem so-
force em direção a uma fenomenologia da me- bre o papel do historiador frente à memória
mória, passando pela epistemologia das ciên- do passado, a escolha entre o trabalho de
cias históricas e culminando numa reflexão memória ou o dever de memória, e os riscos
sobre o esquecimento. e paradoxos do dever de memória; os confli-
tos e exigências da comemoração; o dever do
DE FRAGMENTOS testemunho; a memória do genocídio entre a
DE MEMÓRIA E DA retórica e a manipulação, entre outros.
REPRESENTAÇÃO DO A problemática comum a unir as partes
PASSADO do livro de Ricoeur é a da representação do
passado. O seu ponto de partida é o pressu-
Confrontado, como os historiadores, com posto com o qual nos alinhamos à existência
os mesmos problemas dos laços entre história de dialética entre memória e história, o que
e memória, e preocupado, conforme declara, não significa admitir o argumento simplista
com o excesso de memória, ali, e o excesso de uma complementaridade entre ambas. Por
de esquecimento, acolá, bem como com as essa dialética evitamos alguns pares de opo-
influências da comemoração e dos abusos sição, como, por exemplo, entre uma histó-
de memória e do esquecimento na contem- ria crítica, situada do lado da ciência, e uma
poraneidade, preocupação que, aliás, ele memória tomada como algo fluido e fantas-
qualifica de pública, de cívica10, Ricoeur se magórico, ou ainda entre a memória coletiva
dispõe a fazer um percurso em três etapas: na e a história tal como pensada por Maurice
primeira ele passa pela memória e pelos fe- Halbwachs (1990; 1994). Entendemos que
nômenos mnemônicos, numa perspectiva fe- essa dialética é reivindicada como uma su-
nomenológica, em que revisita, entre outros, peração dos impasses frente a uma relação
os tratados clássicos de memória de autoria de tensão, de conflito, a que a relação histó-
de Platão, Aristóteles e Santo Agostinho; na ria-memória foi relegada, por um lado, pela
segunda, passa pela história, tomando como emergência de uma história da memória, a
eixo a epistemologia das ciências históricas; qual, muito embora tenha desvelado a condi-
e, por fim, pela hermenêutica da condição ção da história como produtora de memórias
histórica dos seres humanos, pela via de uma e aberto o terreno para a uma história das
meditação sobre o esquecimento. Ao final do metamorfoses da memória, acabou, como
percurso, uma reflexão sobre o perdão e a bem detectado por Ricoeur, por se apropriar
defesa de uma política da justa memória, de da memória, historicizando-a submetendo-
uma memória pacífica, que reconcilie o pas- -a à história, anulando sua existência teórica
sado com o presente, vem afirmar a perspec- e, por outro lado, pelas pressões do poder
tiva ético-moral – e “cívica” – traduzida pela político e dos grupos sociais que impõem à
ideia de um “dever de memória” com que o história um exercício utilitário da memória, 10 Ver “Advertissement”
autor reveste sua reflexão, sobre a qual pai- expresso nas comemorações e nos vínculos (Ricoeur, 2000, p. I).

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construídos com as lutas de reivindicações o vínculo da memória com a ação, na expe-


identitárias, direito de minorias submetidas. riência viva do presente histórico, o que nos
Nesse caso a memória é elevada à posição de interessa de perto, como veremos à frente.
matriz da história (Ricoeur, 2000)11. Esse movimento do passado em direção
Ricoeur, aliás, reafirma seu pressupos- ao futuro e do futuro de volta ao passado é
to com a advertência de que a desconfiança expressão dessa atualização, a qual, no nosso
frente às deficiências e aos abusos da memó- entender, também é o que permite à memória
ria pode levar a uma sacralização da postu- dar forma à realidade passada, fazer as vezes
ra histórica, tanto quanto o recobrimento da do fio que estabelece as ligações perdidas, tal
história pela memória levaria a operação da como procuradas, seja na ficção, em torno do
compreensão/explicação histórica a um im- papagaio de Flaubert, seja na dolorosa re-
11 Ver, sobretudo, cap. passe epistemológico. alidade dos arqueólogos e das mulheres na
2, primeira parte, “La O que nos interessa reter, sem esquecer sua busca no deserto de Atacama, ou seja,
Mémoire Exercée: Us
et Abuse”, pp. 67-111,
que o campo da memória é minado por con- entre os indivíduos, os eventos e os lugares
e cap. 2, segunda flitos, é a sua reivindicação de um estatuto no espaço e no tempo.
parte, “La Condition teórico próprio para a memória, assentado As implicações historiográficas da rei-
Historique – Histoire
et Temps”, pp. 449- no seu poder de ligação ao passado, seu vindicação desse estatuto teórico na rela-
535. poder de atestação em relação ao passado, ção da história com a memória, no nosso
12 Aqui vale abrir um enfim, assentado no fato de que a memória é entender, são significativas. Por tal estatuto
pequeno parênte-
sis para lembrar que
guardiã da dialética do que Ricoeur (2000, é esconjurada a pretensão da história em re-
o termo “literária” pp. 364-7) chama de passagem (passeité) do duzir a memória a apenas mais um dos seus
é utilizado por Ri- passado, ou seja, a relação entre o que “não é objetos, um objeto novo, fazendo com que
coeur em referência
a uma das fases da mais” com o “tendo sido”. Em Tempo e Nar- ela se identifique com a história, bem como
operação histórica, rativa (Ricoeur, 1983) já nomeava a memória com o uso flutuante do passado segundo as
aliás, última fase, a
fase representativa, como “o presente do passado”. É essa condi- interrogações do presente. Por outro lado,
segundo os termos ção da memória que asseguraria, a seu ver, o ele permite que a memória apareça com a
de Michel de Certeau
(1982), e que Ricoeur
reconhecimento das imagens do passado e o sua capacidade de se historicizar sob dife-
(2000, p. 171) endos- testemunho oral. A função matricial da me- rentes formas culturais, as quais dão forma
sa. Nessa fase, como
mória assim parece-nos ser bem essa apon- ao texto histórico da memória. Pois, como
veremos à frente, o
discurso histórico é tada: a de portar o sentido da “orientação na salienta Ricoeur (2000, p. 511), “é sempre
colocado na forma passagem do tempo” (Ricoeur, 2000, p. 116). sobre formas culturais historicamente limi-
literária, ou escriturá-
ria, e endereçado ao Outra dimensão do seu estatuto se entrelaça tadas que a capacidade de fazer memória se
conhecimento dos com a primeira por se assentar na condição deixa apreender”.
leitores de história.
Ressaltamos que o da memória de fazer com que o passado se Não obstante isso, é preciso não perder de
uso do termo “lite- torne presente. Aqui entra em cena a dimen- vista a afirmação de Ricoeur (2000, pp. 168-
rária” é completa-
são de temporalidade da memória, a qual, 9) de que na “autonomia do conhecimento
mente diferente da
perspectiva que lhe conforme entendemos, é a responsável pelo histórico em relação ao fenômeno mnemôni-
dá Carlo Ginzburg seu caráter de atualização, a sua abertura ao co permanece a pressuposição maior de uma
(2001), quando, ao
distinguir história presente e ao futuro – captadas pela sensibili- epistemologia coerente da história enquanto
de memória, enfatiza dade de Marcel Proust (1986), transformadas disciplina científica e literária”12.
a condição literária
como um elemento em princípio heurístico por Bergson (1990), Admitido, portanto, o pressuposto de
definidor mais am- e em promessa de redenção por Walter Ben- certa autonomia do conhecimento históri-
plo: ou seja, história
se distingue da me-
jamim (1980; 1985a, 1985b, 1985c; Matos, co frente à memória, e na compreensão do
mória porquanto é 1989, 1993), pois capaz de unir o instante que aproxima e ao mesmo tempo distingue
uma reflexão sobre e a duração. Nesses deslocamentos, sempre história e memória, uma questão-chave vai
a distância que nos
separa do passado reatualizados, nessas coincidências, entre orientar o percurso analítico de Ricoeur des-
por meio da expres- passado, presente e futuro, é que o tempo de o início: a de que, na sua relação com o
são de um “gênero
literário” chamado da memória se deixa entrever. Isso porque passado, história e memória possuem preten-
historiografia. esse caráter de atualização é o que assegura sões de natureza diferente – a história teria

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uma pretensão de verdade e a memória de to de reserva, o qual tem uma significação
fidelidade. Essa pretensão da memória a uma positiva, pois é um esquecimento que pre-
fiabilidade definiria, segundo ele, o seu es- serva –, e que paradoxalmente torna possível
tatuto veritativo e a sua grandeza cognitiva, a memória. E, podemos acrescentar, faz do
separando a memória da imaginação. É a esquecimento um meio imemorial, tal como
confiança advinda da fidelidade que a teo- Ernst Renan (1947-61) propôs a propósito da
ria da memória transmitiria à teoria da his- nação: a opção de esquecer para estar juntos,
tória. Ela precederia a ambição de verdade na célebre frase “a essência de uma nação
da história, cujo estabelecimento, é preciso é que todos os indivíduos tenham bastantes
lembrar, se deu em relação à pretensão de coisas em comum, e também que todos te-
verdade de outras ciências (Ricoeur, 2000, nham esquecido bastantes coisas”. Entre as
pp. 295-6, 364-5). E o esquecimento seria coisas a serem esquecidas pelos cidadãos
um desafio por excelência interposto tanto franceses, ele menciona a Noite de São Bar-
à ambição de fidelidade da memória quanto tolomeu, os massacres da região do Midi no
à de verdade da história. Os momentos difí- século XVIII, entre outros episódios.
ceis da memória, ou o que Ricoeur e outros A existência do esquecimento, no entanto,
chamam de “memória ruim”, ficam, – para nos lembra Ricoeur, é também uma proteção
além das patologias no campo cerebral, e das contra a ideia delirante de um conhecimento
resistências, ou do recalcamento, no campo exaustivo. Uma memória sem esquecimento,
psicológico –, por conta das manipulações, uma memória que não esquece nada, nos ad-
nos impedimentos, nos comandos de contro- verte Ricoeur, é um fantasma monstruoso,
le da memória, de ordem ideológica e políti- um espectro, que o personagem Funes, o me-
ca, os quais se interporiam como abusos na morioso, de Borges, encarnaria na medida
reconquista da lembrança. exata. O mesmo Borges, no entanto, cioso
Pela via do esquecimento, nas reflexões dos desbordamentos da memória voluntária
de Ricoeur (2000, pp. 536-88), vamos nos e das proezas inúteis da memorização, e para
aproximando um pouco mais da compre- quem a memória e o esquecimento seriam
ensão da memória e da história. A primeira igualmente inventivos, registra num poema
figura do esquecimento, segundo Ricoeur, sua percepção da memória como “essa forma
é o apagamento de traços memoriais. E ele do esquecimento que retém o formato, não o
distingue três tipos: o cerebral, corticoide, sentido” (Borges, 1990, p. 476). Daí, uma vez
de que tratam as neurociências; o psíquico, mais, a afirmação da realidade da conjuga-
relacionado às emoções e ao plano da efeti- ção – inevitável – do trabalho de memória, e
vidade deixada em nós pelos eventos, e que da história, com o trabalho do esquecimento.
a memória involuntária captura na sua des- O que significa dizer, de outro modo, que a
continuidade; e o material, ou documentário, história e a memória, igualmente, se fazem
que segundo ele diria respeito, sobretudo, aos sobre perdas e lacunas.
historiadores. Em qualquer desses níveis, no Ambas se fazem também como um modo
entanto, acreditamos ser forçoso reconhecer, de seleção do passado, como uma construção
o esquecimento se traduz em perdas: seja intelectual. Já nos alertava Bergson (1990)
para a memória involuntária, a memória vo- que a memória não superpõe, não acumula
luntária, ou a história. O esquecimento, por- indistintamente os acontecimentos, ela opera
tanto, pode ser tomado como emblema da realizando escolhas.
vulnerabilidade da condição histórica, e com A ambição de fiabilidade da memória,
ele é o passado na sua condição mnemônica entretanto, se defronta com outra proble-
e histórica que é ameaçado (Ricoeur, 2000, mática para além do esquecimento. É o que
pp. 374-5). Ricoeur (2000, p. 511) vai chamar de “enig-
A segunda figura do esquecimento pro- ma central do fenômeno mnemônico”, “o
posta por Ricoeur é o chamado esquecimen- enigma constitutivo da problemática intei-

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ra da memória”, qual seja, a representação ra. A escrita estabeleceria, assim, um corte


presente da coisa ausente. Essa dialética da entre o nível memorial e o nível do discurso
ausência/presença no coração da represen- histórico. O arquivo, aliás, lugar também
tação do passado é portadora da marca do social, e que, segundo Certeau (1982, pp.
tempo, ou seja, do sentimento de distância 78-93), realiza uma repartição cultural dos
temporal próprio da lembrança traduzido objetos em documentos, num gesto inaugu-
pela ideia de anterioridade, de um antes, do ral, é, aliás, criado para conjurar a ameaça
que se passou antes, do que foi. A memória de desaparecimento do traço material. O
seria assim a representação presente de uma único problema, aqui, é que Ricoeur pare-
coisa ausente, marcada pelo timbre da an- ce vedar à história também a apreensão das
terioridade, da profundidade do tempo, da manifestações da memória involuntária no
distância temporal. campo da experiência do vivido, o que não
Ricoeur (2000, pp 26-7) nos diz: é, de forma alguma, interditado ao historia-
dor, e que é diferente do impedimento ao
“No momento do reconhecimento, sobre o reconhecimento tal como apontado por ele.
qual desemboca o esforço da invocação, é Talvez isso se deva à consolidação de uma
que essa exigência de verdade se declara ela tradição de trabalho com a memória volun-
mesma. Nós sentimos e sabemos então que tária no campo da historiografia, ou ainda
alguma coisa se passou, que alguma coisa ao desconhecimento de alguns historiadores
teve lugar, o que nos implica como agente, resistentes aos avanços da história cultural,
como paciente, como testemunha”. de que a subjetividade também é histórica,
seja a da memória ou do tempo, o qual não
E o testemunho, nos lembra Ricoeur, é é vivido de forma igual e simultânea pelos
a estrutura fundamental de transição entre sujeitos sociais. O tempo subjetivo, o tempo
memória e história. Isso porque “o milagre dos indivíduos com suas emoções, percep-
do reconhecimento não é permitido ao his- ções e vivências, dificilmente pode ser apre-
toriador” e não tem um equivalente na histó- endido fora da sua relação com a memória.
ria. Essa é a diferença, segundo ele, entre o Outras linhas de problematização sobre a
projeto de verdade da história e o objetivo de subjetividade da memória têm sido reforçadas
fidelidade da memória, uma vez que o nosso por estudos polêmicos advindos do campo da
modo de conhecimento, sempre indireto, é neurologia, que, de forma pessimista, questio-
sempre mediado pelo traço, seja pelo traço nam o mecanismo de fidelidade da memória
textual, através da transposição escriturária sob o argumento de que lembranças, “mesmo
do passado, seja pelo traço material, docu- as mais vivas”, e o “sentimento de convicção e
mental. Essas reflexões dotam de sentido e de crença nelas” não necessariamente corres-
nos transportam para as escolhas, metafóri- pondem a algo que foi vivido, e que de fato se
cas, e as ênfases do documentário de Guz- passou. A defesa dessa subjetividade radical
mán, La Nostalgia de la Luz. da memória (Sacks, 2013) se escuda na tese
O traço documental é a expressão de uma de que não existiria “nem na mente nem no
memória arquivada – a qual, junto com o tes- cérebro, nenhum mecanismo para garantir a
temunho, marcaria a entrada da memória na verdade das nossas recordações, ou pelo me-
esfera pública e na historiografia. Essa me- nos o caráter verídico delas”.
mória depositada em arquivo assinalaria, no De toda forma, tem razão Ricoeur ao
caso da história, segundo Ricoeur, a entrada destacar que é o traço ou o indício de qual-
da escrita na operação historiográfica, uma quer tipo, como o quer Ginzburg (1989), e
vez que mobilizaria – e nosso autor insiste o testemunho, como queria Marc Bloch
nesse ponto – vários tipos de escritura: desde (s/d), que, unidos na noção de documento,
a etapa dos arquivos até a escrita literária em asseguram a continuidade da passagem da
forma de livros e arquivos oferecidos à leitu- memória à história, e atribuem autoridade à

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Reprodução
representação histórica do passado. Os traços passado no ato de memória –, sua intenção Cena do
documentais, traços referenciais, constituem, de representar como “verdade” as coisas pas- documentário
portanto, uma imbricação inevitável da histó- sadas vai se concretizar no momento literá- La Nostalgia
de la Luz:
ria e da memória. O traço será assim uma es- rio ou escriturário, no momento da exposição
memória e
pécie de conector, o qual, como as ruínas e os que se segue à fase documentária, e à fase história no
restos no deserto de Atacama, presentifica o explicativa/compreensiva, segundo os três deserto de
passado, sendo essencial para a configuração momentos da operação histórica tal como Atacama
do tempo, pois religa o passado ao presente. definidos por Michel de Certeau.
Daí Ricoeur falar de um terceiro tempo, insta- Esses momentos são tomados na sua im-
lado como uma ponte entre o tempo vivido e o bricação uns nos outros porque pressupõem
tempo cósmico, como uma das condições for- que o historiador não consulta o arquivo sem
mais da operação histórica. Ele configura, nos procedimentos de pesquisa, um problema
lembra François Dosse (2001), o que Koselleck para a compreensão, um projeto de explica-
(1990) qualifica como nosso espaço de expe- ção, e tampouco explica seja o que for sem
riência, ou seja, o passado tornado presente. recorrer à colocação de ideias, processos,
Dessa forma, a aceitarmos as ponderações de eventos em forma literária.
Ricoeur, o traço, embora imerso num tempo Embora mais abertamente colocada na
do presente, é o suporte de uma significação fase terminal da operação historiográfica, a
que não está lá, e sim noutro tempo. noção de representação, entretanto, não se
Nesse ponto a história e a memória apa- reduz à fase terminal, mas é suposta exis-
recem compartilhando de uma mesma con- tir atravessando as outras fases anteriores.
dição histórica, definida por Ricoeur (2000, Incluindo-se aí as várias etapas prévias da
p. 367) como “um regime de existência colo- “explicação compreensiva e da prova docu-
cado sob o signo do passado como não sendo mental”, as quais seriam marcadas de ponta a
mais, mas tendo sido”, o que atribui ao pas- ponta pelo signo da escrita, segundo Ricoeur
sado um duplo estatuto. No caso da história, e Certeau, ou pelo signo da combinação da
uma vez lhe estando interditada a experiên- retórica com a prova, como o quer Carlo
cia do “reconhecimento” da lembrança, atri- Ginzburg (2000, especialmente pp. 13-66).
buto da memória involuntária – mas que nem A hipótese de Ricoeur para a especifi-
por isso cancela a representação icônica do cidade do uso do referente no regime his-

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toriográfico é a de que ela não pode ser da representação mnemônica não pode ser
obtida apenas pela disposição das peças na distinguida claramente no plano epistemo-
ordem interna do discurso histórico, mas lógico”. Essa é uma novidade teórica que,
no seu trânsito entre o traço documental, se não pode resolver os impasses da relação
a explicação causal e a sua colocação na história e memória – uma vez que o histo-
forma literária. Isso não significa, no en- riador enfrenta a complexidade de articular
tanto, desconhecer a dimensão icônica da o saber histórico sobre o trabalho de memó-
representação historiográfica, o que é bem ria e no presente da história –, pelo menos é
diferente da ilusão referencial postulada capaz de nos mostrar que a operação histo-
por Barthes. Nesse sentido, o papagaio riográfica não prescinde nem da experiência
de Flaubert ou o piano e o barômetro na viva da memória, nem do trabalho sobre o
sala de visitas da patroa de Félicité não traço, e nem da especulação sobre a ordem
se reduzem a simples representações, ou do tempo. A sua novidade teórica maior, no
significados do real, mas seriam traços ma- entanto, no nosso modesto entender, advém
teriais de um passado que insiste em du- mesmo da sua proposição de uma dialética
rar, seriam uma referência ao real, ainda entre história/memória ancorada na ideia do
que uma referência deslocada, como nos “ser no tempo”.
lembra Certeau (1982, p. 53), já que “não É, sobretudo, essa chave de leitura que
é mais imediatamente dada pelos objetos nos interessa reter deste diálogo rápido – e
narrados ou reconstituídos”. seletivo – empreendido aqui com o livro de
Noutra linha interpretativa, esses traços Paul Ricoeur, com vistas à organização do
poderiam ser como espelhos deformantes, percurso analítico realizado, inspirado pelas
para ficarmos com a expressão usada por duas outras abordagens da memória que fo-
Carlo Gizburg (1989, p. 44) para designar as ram sua fonte de inspiração. Não poderíamos
fontes históricas, para quem “as fontes não terminar esta breve reflexão sem nos remeter
são nem janelas escancaradas, como acre- para a questão da ordem do tempo e da expe-
ditam os positivistas, nem muros que obs- riência viva da memória, tal como pensadas
truem a visão, como querem os céticos […] por Reinhart Koselleck (2000, p. 310).
a análise da distorção específica de qual- Esse autor, tal como já dissemos em outro
quer fonte implica já um elemento constru- texto aqui citado, sustenta a ideia da concre-
tivo”. Assim, mais do que a efetividade do tização da história no cruzamento da experi-
texto de Flaubert, que para nossa sorte está ência e da espera, onde a experiência significa
aí para nos encantar, o papagaio, legítimo não só o poder de ter transformado o passado
ou não, mesmo que arruinado pelo efeito no presente, mas a capacidade de atualizar o
corrosivo do tempo, poderia se prestar a passado integrando, no seu desenrolar, “os
outras construções, no campo da memória possíveis atualizados ou em falta”. Isso per-
histórica, ou talvez até da memória literária. mite pensar que o presente do passado, a me-
Afinal, é em condições efetivamente histó- mória, e o presente do futuro, a espera, são
ricas que as “memórias” exercem a capaci- momentos correlatos do presente do presente,
dade de rememoração. ou seja, do momento da ação. Do território
De sua parte, muito embora admita que memorial do deserto de Atacama, ao territó-
na fase explicativo-compreensiva da história rio ficcional criado em torno da memória de
a distância entre história e memória se apro- um escritor, ao fim, o que temos então neste
funde, pois nesse momento todos os usos texto? Algumas aporias para os historiado-
dos conectores, dos traços disponíveis, são res indagados sobre a utilidade da história,
colocados à prova, Ricoeur (2000, p. 648) questionados sobre as formas de ação sobre
segue afirmando que “a competição entre a memória; desafiados na sua consciência do
a verdade presumida da representação his- que é o tempo presente, e confrontados sobre
tórica do passado e a fidelidade presumida a definição social do seu papel.

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