DUTRA, Eliana de Freitas - A Memória em Três Atos
DUTRA, Eliana de Freitas - A Memória em Três Atos
DUTRA, Eliana de Freitas - A Memória em Três Atos
três atos:
deslocamentos
interdisciplinares
Eliana de Freitas Dutra
RESUMO ABSTRACT
Este texto pretende elaborar uma refle- The current text has the aim to reflect upon
xão sobre a problemática do tempo, da the question of time, memory and obli-
memória e do esquecimento no campo viousness in the field of historic knowledge.
do conhecimento histórico. Por essa via Through this approach our intention is to
pretendemos contribuir para a discussão contribute to the discussion of how history
de como os historiadores tecem as for- scholars weave the shape of contemporary
mas atuais da história nas relações que history; through the relationships that they
estabelecem entre a história, o tempo e establish between history, time and me-
a memória, nas ligações que constroem mory; in the connections they built between
entre o passado, o presente e o futuro, na past, present and the future; in the tension
sua tensão com os regimes de verdade that is built with the regimes of truth in
da disciplina histórica, ou no seu inevi- the field of history; or in the unavoidable
tável trânsito nas fronteiras de outras overlap on the edges of other academic
disciplinas e formas de conhecimento, disciplines in the face of its responsibilities
face às suas responsabilidades com a with comtemporaneity.
contemporaneidade.
ta se diz convencido de que “a memória tem ria da ditadura. E ele o faz justapondo um
uma força de gravidade, ela sempre nos atrai. olhar para o alto, a observação das estrelas,
Os que têm memória são capazes de viver no cujo passado chega até o presente na forma
frágil tempo presente, os que não a têm não de lembranças trazidas pela luz, e um olhar
vivem em nenhuma parte”2. Essa frase tem a para o nível do solo, direcionado, um, pelas
capacidade de sintetizar três linhas mestras escavações em buscas de pistas e evidências
que orientam o documentário em questão: da existência de outras culturas, outro, para
a similaridade entre a força da memória e a a procura desesperada das mulheres pelos
força gravitacional, uma definindo a condi- restos mortais dos seus familiares chilenos
ção humana e a outra responsável pela me- na terra calcinada do deserto.
cânica do universo; o tempo, como elemento Nesse esforço de aproximação não fal-
de ligação entre os homens e o universo, e tam, no documentário, depoimentos que, em-
matéria da memória; o tempo e a memória bora autorizados pelo exercício e a prática
como condição da história humana. no interior dos domínios científicos da astro-
Nesse documentário, um belo exercício nomia e da arqueologia, emprestam sua voz
poético sobre o cosmo, o tempo e a memó- menos por razões científicas e mais pela em-
ria, seu realizador, no intuito de mostrar a patia com a reflexão filosófica proposta pelo
importância do passado – do qual, ele insiste, realizador do documentário, para quem “a
tudo procede – e esconjurar seu esquecimen- memória é a coisa mais importante da vida.
to, escolheu um lugar, um território, o qual, É o olhar do universo, o olhar da história, a
segundo suas palavras, pertence ao passado: mesma coisa que faz a teologia, a geologia,
o deserto de Atacama. e as mulheres que buscam corpos”. É nes-
Na sua aridez absoluta, o deserto nos é se topos de buscas, e na realização do seu
mostrado como um enorme palimpsesto de cruzamento, que a narrativa cinematográfica
memória e de história. Nele se superpõem vai ser construída. Essa construção não vai
camadas geológicas e temporais, com suas prescindir das autodefinições dos persona-
sobrevivências pré-colombianas, tais como: gens em meio às buscas que empreendem.
animais petrificados, múmias, rochas com Assim é que ouvimos o astrônomo nos
pinturas rupestres; restos de cadáveres dos dizer que a pergunta mais importante que
trabalhadores nas minas de salitre e de sol- os astrônomos se fazem, “de onde viemos”,
dados mortos no século XIX na disputa pelo se mescla com a cultura humana em geral”,
controle das minas, a qual envolveu chilenos, e que “o presente não existe a não ser como
peruanos e bolivianos; pedaços de corpos de uma ilusão”, pois não se vê nada no instante
presos políticos assassinados pela ditadura em que se vê, “tudo que vemos nos chega
de Pinochet e para ali deportados e abando- com atraso através da luz”. O passado seria,
nados na expectativa de ficarem para sempre portanto, o grande objeto dos astrônomos e,
ocultados na sua imensidão. no seu entender, também dos arqueólogos e
Esse espaço, privilegiado para as obser- dos historiadores – ainda que estes estudem
vações e descobertas dos arqueólogos, apre- um passado mais próximo, restrito ao tempo
senta condições excepcionais para a observa- da história dos homens, e os astrônomos, o
ção astronômica responsáveis pela instalação mais longínquo, imerso no tempo do univer-
de um dos mais avançados observatórios do so. Nesse jogo de identificações e definições
mundo, com modernos e potentes telescó- em outro território comum, o da ciência, é o
pios usados por equipes internacionais de arqueólogo que define os astrônomos como
astrônomos. E é pela via de um exercício “arqueólogos do espaço”, que, no presente,
metafórico sensível, e doloroso, que o cine- recordam o passado, decifrando os enigmas
asta vai estabelecer, no espaço do deserto de do espaço, e o reconstroem através de pis-
2 La Nostalgia de la
Luz. Roteiro e direção Atacama, uma aproximação entre as pesqui- tas que a transparência do céu lhes permite
de Patrício Guzmán. sas arqueológicas e astronômicas e a memó- encontrar, tal como o clima seco do deserto
encontrados, a totalidade dos que se foram. veremos à frente, pode ser corroborada por
Recompor os corpos é a forma de recupe- aqueles4 que creem num estatuto próprio da 4 Nos referimos a Ri-
rar a dignidade que sentem ter sido perdida. memória como conhecimento. A exigência coeur (2000). Sobre
esse ponto, no tocan-
Astrônomos e arqueólogos, aqui, aparecem de atestação da existência mesma de um pas- te às relações entre o
confrontados com a imposição “da experi- sado teria sido transmitida à história, como ver o saber, conferir
Har tog (2012, pp.
ência viva da memória, mas também com a modo de conhecimento, pela memória. Esse 203-28) e também
especulação multimilenar sobre a ordem do sujeito de memória, testemunha e fiador, ou Gagnebin (1992).
transmissor da história, que aparece transi- passado. Em seu depoimento, o jovem astrô-
tando pelo espaço feito de ruínas, inscreve a nomo se diz consciente de que ele e a mãe,
si mesmo como um traço de memória entre o que se ocupa de tratar os traumas sofridos
tempo vivido no campo e o tempo construído por antigos prisioneiros políticos, “se movem
pela memória. no tempo do passado” e “trabalham com a
Na sequência é a vez da entrada em cena informação do passado”.
de outro personagem nomeado como o “ar- Outro elemento a reforçar as aproxima-
quiteto de memória”. Esse ex-prisioneiro ções que guiam a narrativa do documentá-
exercitou a sua memória, e parece ter criado rio na sua relação com o tempo, bem como
suas próprias regras de mnemotecnia para com seu fio de busca de corpos celestes e
a memorização das formas dos lugares, das humanos, é a sustentação, por um astrônomo
medidas, das divisões dos cárceres, ou seja, americano da equipe do observatório de Ata-
dos lugares de detenção do campo de Cha- cama, de que a matéria do deserto, o cálcio,
cabuco, nos fazendo lembrar as regras do é também a das constelações de estrelas. “A
clássico Instituto Oratório, de Quintiliano5, matéria da terra era a mesma em todos os
e seus métodos diretos de memorização pelo recôncavos do cosmo.” E os ossos, nos diz
estudo cuidadoso, pela observação, pela re- Guzmán, são matérias perdidas no espaço,
petição, ainda que, à diferença desses, seu como os asteroides. E como traços do passa-
exercício tenha se realizado numa direção do da história humana, ou do universo, urge
sem qualquer relação com a arte da retóri- que sejam recuperados para a memória.
ca – como de resto toda a arte de memória As lentes de Guzmán, em La Nostalgia
da Antiguidade clássica – e tivesse como de la Luz, constrem o deserto de Atacama
companhia o silêncio, o quase segredo. Os como uma paisagem memorial que ele devol-
desenhos eram feitos à noite, memorizados, ve à história. Paisagem essa feita de traços
escondidos e destruídos pela manhã. Dessa escondidos, recalcados, de traumas e dra-
forma, quando no exílio e longe do campo, mas silenciosos, mas também de traços que,
foi possível, pela recordação, refazê-los em através das condições climáticas do deserto,
detalhes e exibi-los como provas documen- puderam persistir e sair das sombras e da
tais do que viu e da infâmia que viveu. He- escuridão em nome do resgate do humano.
rótodo, nas suas Historiès, registrou, como Persistência e lacuna: duas condições presen-
testemunha que viu e ouviu, as ações e os tes no trabalho da memória e da história. A
grandes e admiráveis feitos que não que- construção memorial acima aludida nos con-
ria que fossem apagados com o tempo por firma que a memória também tem história, e
julgá-los dignos de não se perderem para que, no caso das histórias que tiveram como
a memória dos homens. Já o “arquiteto de cenário o deserto de Atacama, o documen-
memória”, ao contrário, como testemunha e tário de Guzmán foi definitivamente incor-
vítima de terríveis acontecimentos, registrou porado à sua tessitura. Sua narrativa, como
por escrito o cenário de ações indignas dos a dos historiadores, é também expressão de
homens, na imperiosa necessidade de tam- uma relação entre passado e presente. Afinal,
bém reinscrevê-las na história. o que particulariza a história é o movimento,
A força do passado, como um dos supor- o trânsito constante entre passado e presente,
tes narrativos do documentário, é retomada e entre os diferentes momentos do passado.
pela presença, entre os astrônomos – hoje en- História e memória se valem de um tempo
gajados no trabalho em torno da construção já transcorrido, e aquilo que projetam do
5 Sobre as ar tes de
memória bem como
de um grande telescópio –, de um filho de presente para o futuro tem seu respaldo no
sobre os tratados mãe chilena, nascido no exílio, que enfati- passado, objeto, tal como memória de con-
clássicos dessa arte,
za que a energia a ser captada pelas antenas flitos, disputas, interpretações. Vale lembrar
exercida como parte
da retórica, ver o belo do telescópio virá do passado chegando até que, na sua especificidade frente ao tempo
livro de Yates (1974). o presente, mas que pertence à história do natural, único, da astronomia, comum a to-
locado em cima de sua mesa de trabalho tiano, etc. Tudo isso despertado pela visão
durante a redação de ‘Un Coeur Simple’, do papagaio guardado no museu. Será justa-
onde ele se chamava Loulou, o papagaio de mente um enigma surgido em torno do papa-
Félicité, personagem principal do conto de gaio que serviu de modelo ao Loulou que vai
Flaubert” (Barnes, 2000, p. 23). propiciar um interessante exercício da dúvida
ao narrador. Portanto, voltemos a ele.
Sentindo-se próximo ao escritor através Pois bem, continuando seu périplo lite-
dessa visão do papagaio, como que transpor- rário e sentimental em Rouen, o narrador
tado mesmo ao passado, o narrador, naquele decide ir a Croisset, pequenina cidade à bei-
momento que poderíamos qualificar de epi- ra-mar onde a família de Flaubert possuía
fânico, verifica que, ao lado da etiqueta, e uma propriedade. Ali, ao visitar o pavilhão,
com idêntico intuito de confirmação de au- única peça remanescente da antiga residên-
tenticidade, está uma fotocópia de uma carta cia familiar do escritor, onde o gabinete de
de Flaubert, escrita a uma amiga, em que trabalho de Flaubert é mantido como um pe-
dizia: queno museu, depara-se, para sua surpresa,
com outro papagaio empalhado. Tal como
“Você sabe o que tenho diante de mim, sobre o outro, esse também tinha uma etiqueta
a minha mesa de trabalho depois de oito dias? que confirmava haver sido emprestado ao
Um papagaio empalhado. Ele permanece em escritor pelo museu de Rouen, o que signi-
posto fixo. Sua vista começa a me importunar. ficava igual pretensão de autencidade, para
Mas eu o conservo, para me encher o cérebro além da igual e excelente conservação, do
da ideia de um papagaio. Porque eu escrevo mesmo verde brilhante, das mesmas plumas
no momento os amores de uma velha moça e encrespadas e do mesmo olho vivo. Diante
de um papagaio” (Barnes, 2000). desse fato o narrador se pergunta: “Como
9 Aqui, um pequeno comparar dois papagaios, dos quais um é
parêntesis: as descri- De fato, nesse conto, Félicité, uma velha já idealizado pela memória e pela metáfo-
ções dos objetos da
sala de visita da pa- e devotada empregada de uma família bur- ra, e o outro é um intruso desagradável?”.
troa de Félicité feitas guesa de Rouen, é tomada por uma estra- Colocada a questão da autencidade à zela-
por Flaubert, nesse
conto, são exploradas
nha paixão por um papagaio: o Loulou. Sem dora do museu, a qual toma partido do seu
por Roland Barthes ter nada de seu, a não ser a sua fé religiosa, papagaio e faz pouco caso do outro, o nar-
como detalhes su- Félicité, depois de perder todos aqueles a rador, admitindo para si mesmo ter se enga-
pérfluos da narrativa,
no seu célebre texto quem se dedicara, sem nada obter em tro- nado pensando que poderia localizar “a voz
“O Efeito de Real”, ca, se apega a Loulou, o papagaio, e quando do escritor” com facilidade, pergunta-se se
onde o autor, pela
via da comparação este morre manda empalhá-lo e o guarda alguém conheceria a verdadeira resposta, e
com o romance rea- como uma relíquia, que se torna objeto de se essa interessaria a alguém além dele, que
lista, manifesta seu
ceticismo contra a
uma devoção quase religiosa. Assim é que, tinha atribuído significação ao primeiro pa-
pretensão referencial na igreja, observando o Espírito Santo, se pagaio. De todo modo, ele decide investigar
da história, a qual ele
indagava acerca da sua possível semelhança a questão, a qual só reaparece de novo no
vai chamar de ilusão
referencial, uma vez com o papagaio. No momento da sua morte, último capítulo do livro. Ali ele nos faz sa-
que, no momento ela tem uma visão mística: a do céu entre- ber que as várias cartas enviadas àqueles que
em que se indica o
pormenor, o detalhe, aberto, planando acima da sua cabeça um poderiam esclarecer o enigma do papagaio,
que parece capturar o imenso papagaio, tal como o Espírito Santo editores, universitários e estudiosos da obra
real, ele já seria signi-
ficação. Os detalhes nas iconografias religiosas9. de Flaubert, não lhe acrescentaram nada de
supérfluos, segundo Motivado pelo encontro com o papagaio, conclusivo, ou ficaram sem resposta. Daí, re-
Barthes (s/d, pp. 131-
o narrador relê o conto e se põe a conjeturar torna ao Hôtel-Dieu, pede autorização para
6), nada acrescenta-
riam na estrutura da sobre as possíveis intenções de Flaubert ao fotografar o papagaio, verifica uma lista de
narrativa, mas a sua escrevê-lo, as possíveis afinidades e paralelos objetos emprestados a Flaubert, enquanto a
função seria, portan-
to, a de dar conta do entre a vida do romancista e a da criada, suas zeladora lhe assegura que o outro papagaio
efeito de real. diferenças, a presença do grotesco flauber- era um impostor. Em seguida vai a Crois-
Reprodução
guardado.
No momento de fazer a comparação das
fotos, recorre ao seu exemplar do conto na
página em que Flaubert dá a descrição de
Loulou: “corpo verde, extremidade das asas
rosa, cabeça azul e pescoço dourado”. A des-
crição correspondia exatamente ao primeiro
papagaio, aquele do Hôtel-Dieu, uma vez
que as cores do exemplar de Croisset eram
invertidas, ou seja, a cabeça era dourada e o
pescoço, azul. Isso posto, e decidido a esta- Capa da edição
francesa de
belecer de vez a verdade sobre os papagaios,
O Papagaio
o narrador se dirige à casa de um grande es- de Flaubert:
pecialista em Flaubert, o membro mais an- realidade e
tigo da Sociedade dos Amigos de Flaubert. ficção ironizam
Apresentado o enigma dos dois papagaios, a memória
o narrador demanda ao especialista se ele construída
sobre o escritor
saberia qual era o verdadeiro e qual era o
impostor. E ouve como resposta que, quando é que Flaubert era um artista e um escritor
o museu de Croisset foi criado, em 1905, e de imaginação. Afinal, por que ele deveria
se reuniram todos os objetos possíveis rela- descrever o papagaio exatamente como ele
cionados a Flaubert, o conservador decidiu era, simplesmente porque ele o tinha tomado
tentar obter o papagaio que havia sido de- emprestado? Por que ele não teria invertido
volvido pelo escritor ao museu de história as cores se isso lhe soava melhor? A segun-
natural. Os responsáveis pelo museu se dis- da é que Flaubert teria devolvido o papagaio
puseram prontamente a atender ao pedido e ao museu em 1876, depois de ter termina-
conduziram o conservador à seção de pássa- do de escrever sua história, e o museu do
ros da sua reserva, onde havia nada menos pavilhão em Croisset só foi instalado trinta
do que cinquenta papagaios da Amazônia. anos mais tarde, em 1905. Esse espaço de
O conservador, tal como o narrador, releu a tempo poderia ter sido suficiente para que o
descrição de Loulou feita por Flaubert e es- papagaio fosse comido por traças, houvesse
colheu o papagaio cuja semelhança era mais se desagregado, perdido o enchimento, mu-
próxima à descrição. dado de cor.
Quarenta anos mais tarde, após a guerra, Nesse ponto o narrador se dá conta, per-
quando a coleção do Hôtel-Dieu começou a plexo e desiludido, de que não importava
ser organizada, passou-se a mesma coisa, qual poderia ser o verdadeiro papagaio, ou
e outro papagaio foi escolhido e de acordo que seria completamente possível que ne-
com a mesma descrição. Por isso haveria nhum dos dois o fosse. Ainda assim, diante
dois papagaios. A explicação do especialis- de uma resposta que, segundo ele, não era
ta, entretanto, não foi suficiente para impedir uma resposta, e de um fim que não era um
o narrador de colocar duas outras questões. fim, e sentindo que a história se desacelerava
Quem escolheu o primeiro papagaio; no tal como os movimentos do coração de Féli-
caso, o museu de Croisset não poderia ter cité, descritos por Flaubert “como uma fonte
escolhido o verdadeiro? E por que o segundo que se esgota, como um eco que desaparece”,
papagaio, o escolhido para o Hôtel-Dieu, era o narrador arrisca-se, antes de partir, a voltar
mais parecido com a descrição de Flaubert ao museu de Rouen e verificar, na sua reser-
do que o primeiro? A resposta do interlo- va, o destino dos tais cinquenta papagaios
cutor vai ponderar duas coisas: a primeira da Amazônia. Dos cinquenta ele verifica que
restavam três (com as cores apagadas debai- só pode ser construído a partir da lacuna.
xo do inseticida), os quais, de acordo com o A referência ao ausente é, assim, cons-
desiludido narrador, “o fixavam como três titutiva do modo de presença do passado e,
velhos debochados, cobertos de caspa e in- nesse sentido, a perda se nos apresenta como
dignos” (Barnes, 2000, p. 342). Antes de sair inerente ao trabalho de memória e à constru-
de cena, ele os olha uma última vez dizendo ção historiográfica. Seja a perda do traço ma-
para si mesmo que, talvez, fosse um deles… terial, com alterações físicas ou destruição, a
Diante dessa incerteza, desse sentimento exemplo dos corpos do deserto de Atacama,
de que algo foi irremediavelmente perdido, o seja a perda do traço psíquico, como marca
que o narrador/escritor parece nos sugerir é afetiva do evento.
que o que restou efetivamente da sua busca Ao longo do texto, o autor, tal como o
do verdadeiro papagaio – ou do verdadeiro narrador, se debate sobre a maneira como
Flaubert, ou da verdade do escritor – foi o transitamos no passado – “perdidos, teme-
texto de Flaubert. Porque a sua biografia, o rosos, desorientados, nós seguimos os signos
seu passado, que o narrador tanto insiste em que sobreviveram; lemos os nomes das ruas,
recuperar na sua materialidade autêntica e mas não podemos saber com certeza onde
numa relação direta com a sua representação, nos encontramos” (Barnes, 2000, p. 101) –,
se lhe apresenta como uma rede de pesca, inquieta-se com as possibilidades que temos
que o autor define como um conjunto de bu- em apreender o passado, que ele chama de
racos ligados por um fio. passado estrangeiro, uma vez que “nós le-
A percepção da fragilidade dos alicerces mos, nós aprendemos, nós interrogamos,
da memória, suas lacunas, e a inquietação do nós nos lembramos, nós somos respeitosos e
autor com as diferentes percepções da tem- um detalhe fortuito muda tudo”, questiona-
poralidade, a angústia com a ideia de verda- -se sobre a prática e a autoridade da história,
de, retornam, em outro dos seus romances dizendo que: “nós podemos ler documentos
mais recentes (O Sentido de um Fim), no durante dezenas de anos, mas muito frequen-
qual o personagem principal, formado em temente somos tentados a levantar a mão aos
história e professor de história, ao relembrar céus e declarar que a história é simplesmente
sua vida de estudante e as relações do seu um gênero literário: o passado é uma ficção
grupo de amigos, recupera uma resposta autobiográfica que se dá ares de relatório
dada por um colega à questão, colocada pelo parlamentar […]. Seria a história uma aqua-
seu professor de história no passado, sobre o rela de amador, rápida e exata?”.
que seria a história afinal. E ouve: “É aque- Nesses questionamentos, guardadas as
la certeza fabricada no instante em que as distâncias de época e suas respectivas visões
imperfeições da memória se encontram com de história, o autor se apropria das problema-
as falhas da documentação”. A resposta abre tizações, quiçá das convicções, do próprio
um diálogo interessante com o professor, e a Flaubert acerca da história – manifestadas, é
mencionamos apenas para reforçar que, aqui, importante lembrar, através dos personagens
as promessas de uma analogia com a proble- do seu livro Bouvard et Pécuchet –, o qual
mática da identidade narrativa e ambição de acreditava que a história era sempre julga-
verdade da história, com a problemática dos mento e opinião, não era capaz de produzir
laços entre o passado e os objetos memoriais, um relato confiável, e que a verdade não teria
e a questão mesma da relação entre memória morada em lugar algum. Nesse livro o ceti-
e da história são promessas expressivas. E cismo de Flaubert diante da impossibilidade
elas nos fazem lembrar que a atitude retros- de testemunho objetivo do passado se traduz
pectiva comum à história e à memória e o no ridículo dos personagens, na crença in-
fato mesmo de que ambas se definam como gênua de Bouvard e Pécuchet na história, a
modos de perseverança do passado no pre- qual, diante do impasse, acaba desembocan-
sente não eliminam o fato de que o passado do no “caminho do romance” (Farge, 1997).
toriográfico é a de que ela não pode ser da representação mnemônica não pode ser
obtida apenas pela disposição das peças na distinguida claramente no plano epistemo-
ordem interna do discurso histórico, mas lógico”. Essa é uma novidade teórica que,
no seu trânsito entre o traço documental, se não pode resolver os impasses da relação
a explicação causal e a sua colocação na história e memória – uma vez que o histo-
forma literária. Isso não significa, no en- riador enfrenta a complexidade de articular
tanto, desconhecer a dimensão icônica da o saber histórico sobre o trabalho de memó-
representação historiográfica, o que é bem ria e no presente da história –, pelo menos é
diferente da ilusão referencial postulada capaz de nos mostrar que a operação histo-
por Barthes. Nesse sentido, o papagaio riográfica não prescinde nem da experiência
de Flaubert ou o piano e o barômetro na viva da memória, nem do trabalho sobre o
sala de visitas da patroa de Félicité não traço, e nem da especulação sobre a ordem
se reduzem a simples representações, ou do tempo. A sua novidade teórica maior, no
significados do real, mas seriam traços ma- entanto, no nosso modesto entender, advém
teriais de um passado que insiste em du- mesmo da sua proposição de uma dialética
rar, seriam uma referência ao real, ainda entre história/memória ancorada na ideia do
que uma referência deslocada, como nos “ser no tempo”.
lembra Certeau (1982, p. 53), já que “não É, sobretudo, essa chave de leitura que
é mais imediatamente dada pelos objetos nos interessa reter deste diálogo rápido – e
narrados ou reconstituídos”. seletivo – empreendido aqui com o livro de
Noutra linha interpretativa, esses traços Paul Ricoeur, com vistas à organização do
poderiam ser como espelhos deformantes, percurso analítico realizado, inspirado pelas
para ficarmos com a expressão usada por duas outras abordagens da memória que fo-
Carlo Gizburg (1989, p. 44) para designar as ram sua fonte de inspiração. Não poderíamos
fontes históricas, para quem “as fontes não terminar esta breve reflexão sem nos remeter
são nem janelas escancaradas, como acre- para a questão da ordem do tempo e da expe-
ditam os positivistas, nem muros que obs- riência viva da memória, tal como pensadas
truem a visão, como querem os céticos […] por Reinhart Koselleck (2000, p. 310).
a análise da distorção específica de qual- Esse autor, tal como já dissemos em outro
quer fonte implica já um elemento constru- texto aqui citado, sustenta a ideia da concre-
tivo”. Assim, mais do que a efetividade do tização da história no cruzamento da experi-
texto de Flaubert, que para nossa sorte está ência e da espera, onde a experiência significa
aí para nos encantar, o papagaio, legítimo não só o poder de ter transformado o passado
ou não, mesmo que arruinado pelo efeito no presente, mas a capacidade de atualizar o
corrosivo do tempo, poderia se prestar a passado integrando, no seu desenrolar, “os
outras construções, no campo da memória possíveis atualizados ou em falta”. Isso per-
histórica, ou talvez até da memória literária. mite pensar que o presente do passado, a me-
Afinal, é em condições efetivamente histó- mória, e o presente do futuro, a espera, são
ricas que as “memórias” exercem a capaci- momentos correlatos do presente do presente,
dade de rememoração. ou seja, do momento da ação. Do território
De sua parte, muito embora admita que memorial do deserto de Atacama, ao territó-
na fase explicativo-compreensiva da história rio ficcional criado em torno da memória de
a distância entre história e memória se apro- um escritor, ao fim, o que temos então neste
funde, pois nesse momento todos os usos texto? Algumas aporias para os historiado-
dos conectores, dos traços disponíveis, são res indagados sobre a utilidade da história,
colocados à prova, Ricoeur (2000, p. 648) questionados sobre as formas de ação sobre
segue afirmando que “a competição entre a memória; desafiados na sua consciência do
a verdade presumida da representação his- que é o tempo presente, e confrontados sobre
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