Entre Memória e História - Pierre Nora

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NORA, Pierre. Entre Memria e Histria: A problemtica dos lugares. In: Projeto Histria. So Paulo: PUC, N. 10, PP. 7-28, dezembro de 1993. Traduo: Yara Aun Khoury.

A escolha deste artigo de Pierre Nora para a elaborao da recenso crtica proposta, como trabalho final, para o seminrio de Lngua Portuguesa e Linguagens Literrias, deve-se ao impacto irreversvel que um dos seus temas de estudo teve sobre a minha forma de pensar o mundo, refiro-me ao estudo da problemtica da memria. O semestre foi inaugurado com a discusso de dois textos, representativos desta temtica, do filsofo alemo Walter Benjamin (a saber, Sobre o conceito da histria e O Narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov), que para mim, representam o despertar para uma nova conscincia que estava adormecida, visto nunca me ter questionado a seu respeito at ento. Benjamin denunciou o desaparecimento de uma memria geracional que j no permite ao indivduo a sua localizao no tempo e no espao. O contributo para o mundo do seu pensamento sobre a arte e a cultura so imensurveis. No desenvolvimento desta temtica os lugares de memria de Nora ganharam o foco da minha ateno por inscreverem o desaparecimento acelerado da memria nacional francesa. Nos finais da dcada de 1970 e no incio dos anos 1980, Nora debruou-se a inventariar os lugares em que memria havia, realmente, encarnado e de que ainda restavam como smbolos (festas, emblemas, monumentos, comemoraes, elogios fnebres, dicionrios e museus) formas de dissecar a memria nacional, a nao e as suas relaes. Alm de algum reconhecimento internacional, o historiador e editor francs Pierre Nora, nascido a 17 de Novembro de 1931 (81 anos), em Paris, um historiador muito conhecido em Frana por trazer uma contribuio singular para a renovao historiogrfica contempornea. Este artigo alerta para a actual invaso do campo da histria pela memria, assunto que me parece merecer maior desenvolvimento e aprofundamento. Nesta dissertao irei seguir as mesmas trs linhas em que o artigo foi estruturado: I . O fim da histria-memria; II. A memria tomada com histria; III. Os lugares de memria, uma outra histria

I . O fim da histria-memria A ideia central desta reflexo a da actual percepo de aceleramento da histria. A sociedade moderna vive na nsia de agarrar o que sobrou de vida no calor da tradio. O fim de alguma coisa desde sempre comeada. (p.7)

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Falar sobre a memria tornou-se imperativo por esta j no existir. A curiosidade pelos lugares onde a memria se refugiou e se cristalizou aumentou como consequncia da ruptura com o passado, deixara de haver meios-memria para dar lugar aos locais memria. Este momento de articulao, onde a conscincia desta ruptura se confunde com o sentimento de uma memria estilhaada, tornou residual aos lugares o sentimento de continuidade. O autor justifica que esta tomada de conscincia surge na decorrncia de uma mutilao irreversvel, de que o desaparecimento dos camponeses (colectividade-memria), no apogeu da evoluo industrial, foi um mero exemplo. Outras causas apontadas so a mundializao, a democratizao, a massificao e a mediatizao. A independncia das novas naes na periferia conduziu para a historicidade as sociedades j despertadas do sono-etnolgico pela violao colonial. Atravs deste mesmo movimento de descolonizao interior, famlias, etnias, grupos portadores de forte bagagem memorial e pouca bagagem histrica, tambm foram levadas para a historicidade. Assistiu-se ao fim das sociedades-memria como aquelas que asseguravam a conservao e a transmisso de valores, como a Igreja ou Escola, Famlia ou Estado. As ideologias-memria serviam para assegurar a passagem regular de passado para o futuro, e indicavam, retrospectivamente, o que era necessrio reter do passado para preparar o futuro. A actual percepo da memria, apoiada pela massificao dos media, de que uma memria orientada para uma herana individual e ancestral, foi substituda pelos acontecimentos do momento. Esse distanciamento aprofunda-se com o desaparecimento das sociedadesmemria, condenadas ao esquecimento por serem conduzidas pela mudana. Este fenmeno de acelerao evidencia a distncia entre a memria social intocada, que teve como exemplo as sociedades arcaicas, e a histria, que o que a sociedade moderna faz do passado. O autor recorre a vrios exemplos para marcar a oposio entre os dois termos: Memria e histria: Por um lado temos a memria integrada, ditatorial, inconsciente dela mesma. Por outro lado a histria com o seu impulso erradicador arrancando a memria e expondo a ciso com uma identidade ancestral e o fim do que considervamos evidente. importante observar o desaparecimento de uma adequao entre estes dois termos, deixando de se fazer uma distino entre a histria vivida e a histria como engenho individual, nas sociedades modernas, salvo raras excepes, como o caso da lngua alem, onde coexiste uma diferenciao entre os dois termos Geschichte e Historie. Enquanto a histria faz da representao do passado um fenmeno sempre actual, atravs da sua construo problemtica e incompleta daquilo que j no existe, requerendo anlise e discurso crtico. A memria espontaneamente actualizadora, como no tem passado remete para a ancestralidade. Como conduzida por elemento vivos, que se encontram em permanente evoluo, encontra-se aberta dialctica da lembrana e da amnsia, deixando-se vulnervel s manipulaes e susceptvel a longas latncias e revitalizaes.

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Se habitssemos ainda a nossa memria, no teramos necessidade de lhe consagrar lugares. No haveria lugares porque no haveria memria transportada pela histria. (p. 8) apontado como criticismo generalizado a conservao de lugares de memria vazios de seu significado, tornando-os lugares onde ancorar memria. Continuando na sistematizao das muitas oposies entre os dois termos, o autor indica que a memria afectiva e mgica, enquanto a histria uma operao intelectual laicizante. Uma instala e a outra desaloja a lembrana do sagrado. relembrado que Halbwachs j tinha reflectido acerca de haver tantas memrias quanto grupos, podemos falar assim de uma memria mltipla, colectiva, plural e individual. Em oposio, a histria pertence a todos apontando para o Universal. A memria encontra-se enraizada no concreto, no espao, no gesto, na imagem e no objecto. Enquanto a histria agarra-se a continuidades temporais, evolues e a relaes entre as coisas. A memria um absoluto, enquanto a histria conhece apenas o relativo. Em suma, parafraseando o autor, de um lado temos a rvore da memria e por outro a casca da histria. Percebemos que a misso da histria no a da glorificao daquilo que verdadeiramente aconteceu, mas antes a sua anulao. A histria a deslegitimao do passado vivido. (p. 9) A tomada de conscincia historiogrfica do desenvolvimento nacional demanda um exerccio regulado de memria, reconstituindo o passado sem lacunas e sem falhas como meio de memria. Todos os reajustamentos histricos devem ser no sentido de expandir o mbito da memria colectiva. A subverso interior de uma histria-memria por uma histria-crtica, no caso francs, leva ao aparecimento de, cada vez mais, historiadores com o intuito de denunciar as supostas mitologias dos seus antecedentes. O autor usa o exemplo da histria da revoluo francesa para alertar que esta representa a no identificao de uma nao com a sua herana. Aos poucos, o par Estado-Nao, dessacralizado, ameaado apenas pela falta de ameaa, foi substitudo pelo par Estado-sociedade. A histria fez-se saber da sociedade sobre si prpria. A legitimao pelo passado cede lugar legitimao pelo futuro, para prepar-lo. Recuperaram autonomia os trs termos: Nao deixou de ser um combate e passou a ser um dado; Histria tornou-se cincia social; Memria Passa a ser um fenmeno exclusivamente privado. A nao-memria ter sido a ltima encarnao da histria-memria. (p. 12) Segundo o autor, este o tempo dos lugares da memria: tempo da quebra de intimidade com a memria para vivermos numa histria reconstruda. O estudo destes lugares desencadeia dois movimentos, um historiogrfico que faz uma reflexo da histria sobre si mesma, e outro histrico, representando o fim de uma tradio de memria. Ambos os movimentos remetem para os instrumentos de base do trabalho histrico e para os objectos mais simblicos da mossa memria (arquivos, cores de bandeiras nacionais, dicionrios). Os lugares de memria so

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resqucios dos rituais de uma sociedade sem rituais que vive o futuro, valorizando o novo em oposio ao antigo. Nascemos e vivemos do sentimento de que j no existe uma memria espontnea e, por isso, necessrio criar arquivos, manter celebraes, por estas no serem operaes naturais que seriam rapidamente varridas pela histria. defendido que se a lembrana que encerram fosse realmente vivida, os lugares de memria, seriam inteis. Adianta que estes lugares so momentos de histria arrancados ao movimento da histria, quando estes so devolvidos j no esto vivos, nem mortos. Desta forma, os lugares de memria so lugares ambguos com um duplo sentido de pertencimento e desprendimento, resultado da oscilao de um mundo ancestral para um mundo de ralao incerta com aquilo que nos gerou. II. A memria tomada com histria Nesta seco, feita a advertncia de que se deve ter conscincia de que quando empregamos o termo histria, no nos estamos a referir memria verdadeira. Essa, hoje, encontra-se refugiada no gesto e no hbito, nos saberes do corpo-humano, nos saberes reflexos, tudo o resto foi transformado em histria: voluntria e deliberada. possvel observar o que aconteceu nesta passagem, de uma memria imediata para uma memria indirecta na metamorfose contempornea. Nos dias de hoje, a memria psicolgica, individual e subjectiva, deixou de ser social, colectiva e englobadora. O autor esclarece que esta memria difere da arquivstica, porque se apoia em indcios precisos, registos concretos e imagens visveis. Esta uma memria registradora que delega ao arquivo a preocupao de se lembrar por ela. O autor evoca a memria de papel, apresentada por Leibniz, a memria vivida colectivamente. Podemos notar que a memria , cada vez menos, vivida no seu interior, tendo necessidade de suportes externos tangveis, para aquilo que j no vivido internamente. Este sentimento de evaporao rpida justifica, segundo Nora, a obsesso pelo arquivo, tudo digno de ser memorvel. Na minha opinio emprica, julgo que o crescente fenmeno das redes socias exemplifica o actual estado das coisas. Durante sculos, coleccionadores, eruditos e especialistas incumbiram-se da acumulao documentria, vivendo margem da sociedade e a da histria que por eles ia sendo escrita. Tinham como centro do seu trabalho erudito a histria-memria. Hoje, os historiadores soltaramse do culto documental, porque aprenderam que o segredo a destruio controlada, mas a sociedade continua a glorificar o conservadorismo do culto da produo arquivstica. A ttulo de exemplo, do meu conhecimento, devido a anterior experincia profissional, a certificao de qualidade adoptada pelas grandes empresas, como resposta crescente competitividade dentro do mercado empresarial. Estas certificaes de Sistema de Gesto da Qualidade (SGQ) garantem ao cliente final a satisfao das suas expectativas, e so atribudas mediante o cumprimento de rigorosas regras que se regem pelo princpio do registo da evidncia

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documental de todo o trabalho realizado, pela empresa em questo, para posterior auditoria com vista a renovao dessa mesma certificao. A necessidade, cada vez maior, de ir em busca das origens reflecte uma histria positivista elaborada por grupos e campos disciplinares, quando historiadores a abandonaram. Colocou-se a cada disciplina a responsabilidade de confirmar os fundamentos da sua prpria constituio. O fim da histria-memria multiplicou as memrias que reivindicam a sua memria-histrica. A materializao da memria dilatou-se, descentralizou-se. Deixaram de ser a famlia, a Igreja e o Estado, os grandes produtores arquivsticos. A conscincia do terrorismo da memria historicizada, memria-prtese, obriga a todos, individualmente, a se responsabilizar pela sua prpria histria, visto esta ter deixado de ser uma ptica social. Esta alterao de conscincia obriga a uma nova redefinio de identidade, por parte de cada grupo, atravs da sua histria. a converso definitiva psicologia individual, a relao com a memria da inteira responsabilidade do indivduo, tornando-se memria privada. III. Os lugares de memria, uma outra histria Aqui, o autor esboa um quadro das metamorfoses contemporneas: Da memria-arquivo, para a memria-dever, at memria-distncia. Como resultado, o lugar de memria substituiu o homem-memria. Estes lugares tm trs significaes possveis: Material, simblica e funcional, em conjunto, mas em diferente graus. O aparentemente, apenas, material, como um arquivo, s lugar de memria se for objecto de ritual. At aquilo que parece ser de importante significao simblica, como o caso de um minuto de silncio, apenas um recorte material de uma unidade material. So, ainda, distinguidos os lugares dominantes, triunfantes, impostos por uma autoridade nacional; dos lugares dominados, os lugares de refgio e das peregrinaes do silncio. Tudo pode ser rplica do passado no presente, mas s ocupa o lugar de memria se, e quando, existe vontade de memria. O faz um lugar de memria justamente escapar histria, porque simboliza, significa. Ausentes de inteno de memria, os lugares de memria, tornaram-se lugares de histria. A razo fundamental de um lugar de memria parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte. (p. 22) As clssicas fontes directas e fontes indirectas so indicadas como possveis instrumentos de anlise com vista o estabelecimento de regras para o trabalho da crtica histrica. E acrescenta que os acontecimentos e os livros de histria so os instrumentos da memria em histria. Um acontecimento ocupa o lugar de memria se implicar o conhecimento de outra Memrias (p. 25). Os acontecimentos enquadram-se em dois tipos de cenrio: Os acontecimentos notados no momento e que o futuro reconhece a importncia das suas origens, e os acontecimentos que adquirem de imediato uma carga simblica. Nos livros de histria, so apenas lugares de memria, aqueles que elaboram uma representao efectiva de memria ou

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brevirios pedaggicos. A memria perdura-se em lugares, como a histria em acontecimentos (p. 25). Traam-se ainda outras classificaes: Lugares pblicos/lugares privados, lugares de memria puros (como elogios fnebres), e lugares com uma dimenso de memria nica entre um leque de significaes possveis (bandeiras). Nora justifica que o interesse por esta tipologia deve-se ao facto desta ser possvel. Sem dvida, ela ajuda a evidenciar a rede articulada que liga os objectos, numa organizao inconsciente da memria colectiva, da qual devemos ter conscincia. Os lugares so o nosso momento de histria nacional (p. 27). Diferentes de todos os objectos de histria, os lugares de memria no tm referncias na realidade, eles escapam histria, eles so eles prprios- espao ou tempo, espao e tempo (p. 27) um crculo onde tudo conta, tudo tem significado. O lugar de memria um lugar duplo, fechado sobre a sua identidade, mas aberto sobre a extenso das possveis significaes. Considera que a memria s conhece duas formas legtimas, a histrica ou a literria. Exercidas at aos nossos dias em paralelamente, mas agora, em separado. O desaparecimento da histria-memria e da histria fico contribuiu para a anulao da fronteira, comeando um novo tipo de histria que deve o seu prestgio e legitimidade sua nova relao com o passado, um outro passado (p. 28). O autor conclui que a histria o nosso imaginrio de substituio, e que o interesse pelos lugares onde se ancora denncia o enfraquecimento da nossa memria colectiva. Julgo que o caso portugus, segundo o filsofo portugus, Jos Gil, na sua obra Portugal, Hoje O medo de existir, difere do francs, como aqui apresentado. Nesta obra, feita a radiografia do carcter portugus, onde se conclui que Portugal o pas da no inscrio por falta de olhar crtico sobre a realidade. Nas palavras do autor, os portugueses no sabem falar uns com os outros, nem dialogar, nem debater, nem conversar. Duas razes concorrem para que tal acontea: O movimento saltitante com que passam de um assunto para outro e a incapacidade de ouvir. Deixa patente que os movimentos de trocas culturais mostram um processo que acontece apenas a nvel do estrato da elite letrado, no comtemplando a baixa cultura. Uma vez que a histria deixou de ser a detentora daquilo que pensvamos saber, nos dias que correm, chegam at ns diferentes verses acerca da histria encoberta da humanidade, procurando encontrar o significado de lugares de memria para os quais a histria no tem resposta, como o mistrio das Pirmides de Giz, dos monumentos Maia, dos Moais nas Ilhas da Pscoa, entre uma lista infindvel de fenmenos que a prpria Cincia no consegue explicar. O prprio Canal Histria j estreou a quinta temporada de uma srie que analisa 75 milhes de anos de indcios credveis sobre a presena extraterrestres na Terra - "Aliengenas". Considero que este crescente bombardeamento de informao reflecte uma sociedade traumatizada, amnsica, esquecida do passado necessrio para poder preparar o seu futuro, restanos um presente que nos incumbe de nos responsabilizarmos por ns prprios.

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Referncias: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da histria. In: Magia e tcnica, arte e poltica. Ensaios sobre literatura e histria da cultura. Obras escolhidas. V.1. Ed: Brasiliense, 1987. Traduo: Srgio Paulo Rouanet. PP. 222 - 232. BENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221 (Escrito em 1936 sob o ttulo Der Erzhler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows). GIL, Jos. Portugal, Hoje - O Medo de Existir. Lisboa. Relgio Dgua, 12 edio. 2008. HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Centauro, 2006. Traduo: Beatriz Sidou.

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