2023 BB AiDeMim Galeria Texto
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É tomando emprestado pedaços do mundo que Bárbara Basseto compõe, em sua pintura, um mundo novo, próprio.
Seu olho, curioso e ladrão, percorre campos vastos: prateleiras de lojas de antiguidades, brechós, peças de roupa de
alta-costura, livros de arte e moda, vídeos, pedaços de arquitetura, padrões decorativos de objetos domésticos, a
incidência de luz sobre azulejos e piscinas, o caimento de cortinas, toalhas e tapetes, playlists que ouve nas longas horas
pintando no ateliê e o que mais encontrar em uma caminhada pela rua. Nesta exposição, a primeira individual da artista,
predominam os vários tipos de tecido nas obras e os versos de love songs nos títulos.
Basseto constrói – com o meticuloso conhecimento adquirido de sua formação em conservação e restauro – o seu
suporte. Por vezes, são telas feitas com tecidos de múltiplas origens; por outras, são o linho cru ou as madeiras de textura
lisa, cuja pintura final mostra indícios do gesso crê usado na preparação. De todo modo, a matéria do que é feita a pintura
se mostra na imagem final. Sem ilusão, mas com o suscitar do desejo. Seus objetos são sedutores.
O ponto de partida não é o branco, pretensamente neutro, das telas comuns de algodão. Esse método produz uma
agradável complicação na incorporação de materiais ou estampas. Ela precisa compor com o que já é composto por outra
pessoa – na verdade, por uma indústria, da moda ou do design de produtos. Assim que é criado o seu problema a ser
resolvido, em uma espécie de jogo no qual o primeiro movimento é sempre do seu “oponente”. Não à toa, o quadriculado
do tabuleiro de xadrez chamou sua atenção. A estratégia de ataque da pintora se volta para as combinações de cores
inusitadas e os acontecimentos materiais diversos.
Zerei as Moedas do Desejo é um exemplo flagrante. A artista adquire uma camisa listrada da Dior. A partir do tecido
fino, ela estica a tela, não sem antes costurar as aberturas. O preparo da superfície oferece rigidez, confere um caráter
embalsamado à peça, que nunca mais verá uso, apenas contemplação. No entanto, a obra não parece sisuda. Basseto
adiciona novas cores e padronagens à estampa, em uma paleta brilhante e deslumbrante. Assim, podemos perceber seu
modo de ação. Ela introduz um desvio altamente sofisticado na composição de que se apropria. Basseto corrompe – uso
essa palavra porque ela não segue regras, mas, antes, uma força singular contraditória, uma intuição premeditada, um
impulso calculado.
Basseto cria enigmas da estirpe de Ana Cristina César, com apropriação, citação e criação. O índice onomástico, ou ao
menos um deles, no qual Basseto esconde os ladrões de quem rouba versos de amor, é a sua pesquisa de mestrado. Lá,
ela explora a sua relação com a pop art, sobretudo com Jasper Johns, a produção de mulheres do movimento Pattern and
Decoration e a infusão de referências femininas, populares e multiculturais no severo grid do Minimalismo.
Entre as referências, me chama atenção a produção de Joyce Kozloff. A ousadia da então jovem artista americana, ao contrapor
com suas próprias palavras os adjetivos prescritivos, que configuravam regras rígidas, de Ad Reinhardt, para a arte.
O nome dado à exposição é um verso de Mutante, música composta pelo casal Rita Lee e Roberto de Carvalho. Remete
ao procedimento que a artista usa na composição de suas obras e seus títulos, a sua poética prosaica. Mas também se
refere a um espírito reelaborado por Bárbara Basseto, encontrado também nos adjetivos de Kozloff, que configura um
modo de pensar e abalar o império absoluto da razão, do imperialismo, da monotonia, da pureza, da universalidade, do
formalismo estéril, como se dissesse: “Ai de mim, que sou assim. Romântica”.