Nilce Cappoccia
Nilce Cappoccia
Nilce Cappoccia
PUC-SP
NILCE CAPPOCCIA
EXPRESSÃO EM MERLEAU-PONTY
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo- SP
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
NILCE CAPPOCCIA
EXPRESSÃO EM MERLEAU-PONTY
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo-SP
2016
Banca Examinadora
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AGRADECER, PARA ABENÇOAR
o luar da noite.
leituras filosóficas.
Maria Valentina
A experiência da percepção pressupõe a solicitação do
sensível de tal modo que a saída de si requer simultaneamente
a entrada em si, este movimento institui a expressão, tanto das
artes quanto da linguagem. No entanto, é o sujeito que institui
a expressão, não como consciência constituinte, mas como
momentos a serem indefinidamente elaborados pelo artista.
(Codina, 2005, p30)
Este estudo contempla uma reflexão sobre a filosofia de Maurice Merleau-Ponty, cujos
textos principais e desencadeadores foram A Dúvida de Cézanne e O Olho e o espírito,
que articularam a temática da expressão, principalmente da expressão pictórica, como
forma de manifestação criativa sensível. A pintura é apresentada como manifestação
visível de todo esforço desenvolvido pelo pintor em contato com seu objeto de estudo,
num processo meditativo. O artista vivencia e faz uso do corpo, encontrando, nos gestos
e na percepção, toda a experiência vivida. O filósofo retoma a pintura como caminho e
tema para a reflexão.
Introdução ...................................................................................................... 12
INTRODUÇÃO
13
Para se ter o saber, é preciso haver um sujeito pensante. Mas o sujeito vive a
experiência da condição humana, que é temporal e corpórea. Este sujeito é seu corpo, é
seu mundo, é sua situação, primeiramente no plano do vivido e, só posteriormente, no
plano do reflexivo. Assim, é necessário recuperar a relação do sujeito da percepção e o
mundo percebido, um retorno aos fenômenos.
As sensações estão atreladas a relações. Dessa forma, o corpo é que revela a
significação do mundo percebido por ele. Trata-se do corpo próprio, do sujeito
encarnado. O corpo estabelece relações, é a existência do ser-no-mundo. Ele faz a
junção dos contrários, está num campo prático, no espaço e no tempo; há uma
intencionalidade do corpo.
A trajetória da filosofia merleau-pontyana vai da fenomenologia à ontologia,
esta principalmente nos escritos póstumos. Sua filosofia é um mergulho no sensível, do
sensível ao mundo e ao outro.
Com algumas pinceladas filosóficas, acompanhemos o desenrolar do
pensamento de Merleau-Ponty.
Em 1938, finaliza sua tese La Structure Du Comportament (A Estrutura do
Comportamento) e assim declara, nas palavras iniciais do livro:
Neste livro, o filósofo se preocupa com alguns detalhes críticos com relação à
teoria da forma nos trabalhos da psicologia empírica e de sua base fisiológica. O corpo
toma uma proporção de grande importância, deixando de ser um simples veículo
intermediário entre aquele que está percebendo e o mundo percebido. Discute as
relações entre corpo e alma e o corpo vivido ganha destaque, nos seus estudos. Assim
escreve:
Com isso, ser corpo é estar “atado” ao mundo e nosso corpo não “está” no
espaço, mas é seu próprio espaço. Nas palavras de Chauí, “o corpo, que não é coisa nem
ideia, mas espacialidade e motricidade, recinto ou residência e potência exploratória,
não é da ordem do „eu penso‟, mas do „eu posso‟” (Chauí, 2002, p. 68). O corpo é
visível e torna visível aquilo que vê. Toca e é tocado, desenvolve o sentido sensível.
Desta forma, “ao tomar a experiência corporal como originária, Merleau-Ponty
redescobre a unidade fundamental do mundo como mundo sensível” (Chauí apud
Merleau-Ponty, 1984a, p. XI).
espaço “em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se
torna possível” (Merleau-Ponty, 2006a, p. 328). E a experiência será a experiência de
um mundo. Ora, “a percepção reúne nossas experiências sensoriais em um mundo
único, não é como a coligação cientifica junta objetos ou fenômenos” (Merleau-Ponty,
2006a, p. 310), mas reunindo experiências.
das linhas, ao passo que o escritor se instala num mundo já falante, em signos já
elaborados. A linguagem exprime por entre as palavras e pelas palavras. Exprime
quando não diz e quando diz.
O livro L’Oeil et l’esprit (O Olho e o espírito) foi lançado em 1961, sendo seu
último texto publicado em vida. Este ensaio situa a relação da filosofia com a ciência.
Com a percepção, se está diante do visível e também da visão. Será o visível que irá
invocar e evocar aquilo que o sujeito vê. Será pela pintura que o visível encontra a
visibilidade.
Cabe lembrar que, neste ensaio, O Olho e o espírito, o filósofo faz uma reflexão
sobre René Descartes, o filósofo dualista, a quem Merleau-Ponty se contrapõe. Para o
cartesiano, a visão é pensamento. “Das coisas aos olhos e dos olhos à visão não se
transmite algo mais que das coisas às mãos do cego e de suas mãos a seu pensamento”
(Merleau-Ponty, 2015b, p. 30). Desta forma, para leitores, ficam claros os passos
filosóficos de cada um destes dois pensadores.
Considerada uma obra inacabada que, graças a Lefort, que reuniu as notas do trabalho,
inclusive redigindo o posfácio, foi editada em 1964. Segundo comentários de Chauí,
Merleau-Ponty rumava para uma “ontologia selvagem ou pré-reflexiva” (Chauí apud
Merleau-Ponty, 1984a, p. XIII). Com este livro, “procura o ser bruto, indiviso, latente,
transcendente, anterior a todas as separações e fixações que o pensamento filosófico ou
cientifico lhe impõe” (Chauí apud Merleau-Ponty, 1984a, p. XIII). Com esta ontologia,
por vezes radical nos questionamentos filosóficos, impunha uma crítica aos conceitos e,
por outro lado, facilitava uma exigência na busca da raiz, da origem nas relações, como
corpo-mundo, corpo-linguagem, mundo sensível-mundo cultural. Nesta concepção
radical, surge um ser que se manifesta infinitamente de forma aberta e nova. Quem sabe
como o pintor Cézanne, que destituído de regras, porém, inteiro e absorto nas relações
com o mundo, o retratava na sua pintura.
“ser um pouco mais e um pouco menos homem” (Merleau-Ponty, 1998, p. 81). “Se
filosofar é descobrir o sentido primeiro do ser, não é possível filosofar abandonando a
situação humana: é, pelo contrário, preciso assumi-la. O saber absoluto do filósofo é a
percepção” (Merleau-Ponty, 1998, p. 24). Ele coloca, na percepção, um potencial de
estudo e descoberta, afirmando que ela “funde tudo” (Merleau-Ponty, 1998, p. 24).
Explica: não somos o objeto que obervamos, porém, este objeto ressoa no aparelho
perceptivo. Exemplificando, nas palavras de Merleau-Ponty:
Não somos esta pedra, mas, quando a vemos, ela ressoa no nosso
aparelho perceptivo, a nossa percepção surge-nos como provindo dela,
isto é, como existindo por ela, como nossa recuperação daquela coisa
muda que, desde que entra na nossa vida, se mexe, desenvolve o seu
intimo, se revela a si própria através de nós. O que julgávamos ser
coincidência é coexistência (Merleau-Ponty, 1998, p. 25-26).
Com essa argumentação, reforça que a ciência “não terá jamais” (Merleau-
Ponty, 2006a, p. 3) o mesmo sentido do mundo percebido, porque a ciência sempre será
uma explicação do mundo. Para ele, o mundo “não é aquilo que eu penso” (Merleau-
Ponty, 2006a, p. 14), mas, única e exclusivamente, aquilo que “vivo” (Merleau-Ponty,
2006ª, p. 14); comunico-me com o mundo e não há condições de possuí-lo, porque ele é
27
Nesta compreensão, o sujeito reconhece uma afinidade com o outro, bem como
sua própria singularidade. É assim que vivencia o individual e o universal.
Para o filósofo, “perceber é tornar algo presente a si com a ajuda do corpo, tendo
a coisa sempre o seu lugar em um horizonte de mundo e consistindo a decifração em
recolocar cada detalhe nos horizontes perceptivos que lhe convier” (Merleau-Ponty,
2015a, p. 76-77). O corpo é ancoradouro das sensações e experiências e habita o mundo.
O filósofo, ao colocar a importância na percepção, está focando e anunciando que a
1
O texto Le Doute de Cézanne encontra-se no livro Sens et Non-Sens,Geneve-Suisse: Nagel, 5ªed., 1965, p.15-44. A tradução
brasileira usada é de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify ,1ª reimpressão, 2015, p. 125-
149.
32
posteriormente banqueiro, que o financiasse para estudar pintura em Paris. Mas foi,
assim mesmo, para Paris.
Quando instalado em Paris, afirmou: “apenas mudei de lugar e o aborrecimento
me acompanhou” (Cézanne, apud Merleau-Ponty, 2015c, p. 126). Mantinha-se sempre
ansioso e enfastiado, apresentando instabilidade emocional. Nunca apresentou as razões
dessas situações. Um mês antes de sua morte, aos 67 anos, assim disse: “Encontro-me
num tal estado de perturbação cerebral, numa perturbação tão grande que temo, a
qualquer momento, que minha frágil razão me abandone” (Cézanne, apud Merleau-
Ponty, 2015c, p. 125). Mesmo diante dessas confissões e incertezas, fazia sucesso
vendendo seus quadros, que se “espalharam pelo mundo” (Merleau-Ponty, 2015c, p.
126).
Aos 51 anos, já de volta a Aix-en-Provence, sua cidade natal, buscou encontrar
a natureza que melhor lhe convinha e também se voltou ao meio da sua infância, ao
convívio com sua mãe e irmã. Pinta, até mesmo na tarde do falecimento da mãe.
Cézanne dizia que a “vida é assustadora” (Cézanne, apud Merleau-Ponty, 2015c, p.
126). Tornou-se cada vez mais tímido e desconfiado de tudo e todos, e mais suscetível
às relações com os outros. Há registros de sua dificuldade em manter contatos. Quando
criança, foi machucado por outra criança ao passar por ela; desde então, os contatos não
lhe eram bem-vindos. Quando encontrava os amigos, fazia sinal para os mesmos não se
aproximassem. Merleau-Ponty faz um relato: “Num dia da velhice, tendo tropeçado,
Émile Bernard o amparou com a mão. Cézanne ficou furioso. Andando a passos largos
pelo ateliê, gritava que não deixaria que o „fisgassem‟” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 127).
Merleau-Ponty comenta as dificuldades do pintor com relação aos contatos
sociais:
Para Merleau-Ponty, ao contrário, a obra não é efeito da vida, mas foi necessária
esta vida para realização desta obra. A obra de arte é uma maneira de existir. Escreve
Marilena Chauí: “A obra de arte é existência” (Chauí, 2002, p. 169).
Há relatos de que Paul Cézanne utilizava mais de cento e cinquenta poses para
realizar um retrato e muitas sessões para realizar uma natureza morta. Merleau-Ponty
inicia o texto A Dúvida de Cézanne fazendo essa observação e comentando: “O que
chamamos sua obra não era, para ele, senão o ensaio e a aproximação de sua pintura”
(Merleau-Ponty, 2015c, p. 125); pode-se dizer, uma proposta de ensaio.
Cézanne meditava muito, durante horas, antes de executar sua pintura e sua
pesquisa recaia sobre a perspectiva, a cor e o desenho, entre outras observações. Para
ele, na pintura, o mundo é mostrado e tem sua visibilidade. O mundo torna-se visível.
Com relação à questão da perspectiva, Merleau-Ponty comenta que as pesquisas
realizadas pelo pintor apontam para uma “fidelidade aos fenômenos” (Merleau-Ponty,
2015c, p. 132). Trata-se de perspectiva vivida, a da nossa percepção, que não é
perspectiva geométrica e nem fotográfica. Assim sendo, na percepção, objetos mais
próximos aparecem menores e objetos mais afastados são maiores.
A pintura busca reencontrar a experiência da percepção como “experiência
primordial” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 135), isto é, anterior a qualquer intervenção
humana. Na experiência ou na “percepção primordial” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134) o
que se encontra e se pretende trazer à expressão é o que Luiz Damon Moutinho chama
de “mundo pré-objetivo” (Moutinho, 2006, p. 348) ou o mesmo que “mundo pré-
humano” (Moutinho, 2006, p. 351).
Trata-se de “exprimir o mundo tal como se organiza espontaneamente, por si
mesmo” (Moutinho, 2006, p. 351), e que não se identifica com “nosso mundo habitual e
comum, em que as coisas parecem já definidas e acabadas, necessárias” (Moutinho,
2006, p. 351).
Esse mundo é “original” e “originário”. “É “original à medida que ele não pode
ser construído com nenhuma categoria prévia, já definida, como se fosse a tradução de
um pensamento já claro (...); e é originário no sentido de que ele nos mostra a gênese
das coisas” (Moutinho, 2006, p. 353).
senhora; apesar de demonstrar linha reta, os lados estão desarticulados. Esta deformação
perspectiva, no conjunto do quadro, deixa de ser visível quando olhado globalmente. O
pintor, ao transportar para a tela essa deformação, a imobiliza, detendo o movimento
espontâneo.
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Já o desenho, deverá ser o resultado da cor, isto porque é uma massa sem
lacunas e um organismo de cores. O espaço vibra os contornos e as retas instalam linhas
de força. Nas observações do filósofo: “O desenho e a cor não são mais distintos: à
medida que pintamos, desenhamos; quanto mais a cor se harmoniza, mais preciso é o
desenho” (Cézanne apud Merleau-Ponty, 2015c, p. 134). Cézanne, aos poucos,
abandona o contorno com a cor preta fazendo das pinceladas coloridas, justapostas, uma
prática que assegurará a plenitude da sua pintura. Cézanne não sugere somente pela cor
as sensações táteis que dariam a forma e a profundidade, porque, na “percepção
primordial” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134), as distinções entre a visão e o tato são por
ora desconhecidas e será a ciência do corpo humano que irá nos ensinar a distinção dos
sentidos; estes, desde o início, são o centro das atenções. Assim confirma o filósofo: “ A
coisa vivida não é reconhecida ou construída” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134), mas,
reencontrada “a partir dos dados dos sentidos” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134) sendo
que se oferece “como centro de onde estes se irradiam” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134).
Ver a profundidade, o aveludado, a maciez, bem como a dureza dos objetos e, como
diria Cézanne, o cheiro.
O pintor quer exprimir o mundo e será preciso que as cores tragam em si esse
“Todo indivisível” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134).
(Moutinho, 2006, p. 355). E continua: “Assim, não é porque não disse tudo que a obra
de Cézanne é inválida, pois o que ela se propôs a dizer é infinito: como toda obra
moderna, também ela está condenada ao inacabamento” (Moutinho, 2006, p.361),
inacabamento não porque é “falta”, mas porque “traz à tela um sentido em formação”
(Moutinho, 2006, p. 361).
A expressão é infinita e, para Cézanne, como exaustivos foram seus estudos, não
negligenciou e nem abandonou a fisionomia dos objetos e dos rostos. O que ele queria
era captar a cor que emerge. Pintar um rosto não é despojá-lo do seu pensamento,
comenta Merleau-Ponty; o pintor interpreta, mas, essa interpretação, “não deve ser um
pensamento separado da visão” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 134-135). Isto se explica
pelo retorno que Cézanne faz à “experiência primordial” (Merleau-Ponty, 2015c, p.
135). Sua pintura “revela o fundo da natureza inumana sobre o qual o homem se instala”
(Merleau-Ponty, 2015c, p. 135). O filósofo explica esse contexto comentando que
estamos rodeados de objetos construídos pelo próprio homem, como: utensílios em
casas, nas ruas, nas cidades, e são coisas consideradas inabaláveis; porém, Cézanne,
com sua pintura, suspende esses hábitos, revelando outra natureza. Muitas vezes, seus
personagens são considerados estranhos e a própria natureza aparece de forma
despojada dos seus atributos. “Mas somente um homem, justamente, é capaz dessa
visão que vai até as raízes, aquém da humanidade constituída” (Merleau-Ponty, 2015c,
p. 136).
A pintura de Cézanne não nega a tradição e nem a ciência. Quando do seu
período em Paris, visitava o Louvre diariamente, por acreditar na possibilidade de
aprender a pintar através dos estudos geométricos, dos planos e das formas. Ao pintar
uma paisagem, buscava as informações geológicas. Todas essas observações de cunho
abstrato fazem parte das intervenções do pintor, mas sempre a partir do mundo visível.
Merleau-Ponty esclarece que o que motiva o gesto do pintor vai além da perspectiva, da
geometria, das cores ou outro conhecimento qualquer. Os gestos do pintor recaem no
motivo da paisagem, na totalidade desta paisagem. Ao iniciar a sua prática, começava
por “descobrir as bases geológicas” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 136). Assim dizia a
senhora Cézanne: “ele „germinava‟ com a paisagem” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 136). A
paisagem passa a ser um “organismo nascente” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 137) e seria
necessário reunir tudo o que a versatilidade do olhar, porventura, teria dispersado.
Cézanne dizia que tinha seu motivo, e
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explicava que a paisagem deve ser abraçada nem muito acima nem
muito abaixo, ou, ainda, recuperada viva numa rede que nada deixa
passar. Então, ele atacava seu quadro por todos os lados; ao mesmo
tempo, cercava de manchas coloridas o primeiro traço de carvão, o
esqueleto geológico. A imagem saturava-se, ligava-se, desenhava-se,
equilibrava-se, tudo chegava à maturidade ao mesmo tempo. A
paisagem, ele dizia, pensa-se em mim e eu sou sua consciência. Nada
mais afastado do naturalismo do que essa ciência intuitiva (Merleau-
Ponty, 2015c, p. 137).
desconhecida. Quando da morte deste personagem, sua pintura é liberada aos amigos
que encontram somente “um caos em cores, de linhas incompreensíveis, uma muralha
de pintura” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 138). E o pintor Frenhofer pintava um corpo de
mulher. Comentam que Cézanne, ao ler o romance, chorou emocionando-se muito,
alegando que o personagem pintor era ele. Balzac dá voz ao pintor fictício: “Uma mão
não pertence apenas ao corpo, ela exprime e continua um pensamento que é preciso
captar e traduzir” (Balzac apud Merleau-Ponty, 2015c, p. 138). Esta é a luta dos
pintores para tornar acessível, tornar próximo aos seres humanos aquilo que desponta do
próprio “mundo pré-objetivo” (Moutinho, 2006, p. 348)
Não existe arte recreativa, apesar de ser possível fabricar objetos que causem
prazer, associando-os com ideias já prontas ou simplesmente já vistas. Cézanne e
Balzac, como todo artista, não se contentam em ser um animal cultivado. O artista
assume a cultura desde o seu começo e a recria, como se fosse a primeira palavra do
homem ou a pintura que nunca tivesse pintado. Desta forma,
O artista, ao lançar sua obra, assim como o homem lançou a primeira palavra,
não sabia se era mais um grito que se destacava no fluxo da vida individual, permitindo
a “existência independente de um sentido identificável” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 139).
O sentido que o artista irá dizer não está em lugar algum, não está nas coisas e nem nele
mesmo. O que Cézanne faz é voltar para uma ideia ou projeto de um “logos infinito”
(Merleau-Ponty, 2015c, p. 140). Com isso, a incerteza e a solidão de Cézanne não se
explicam por características nervosas, mas pela intenção da obra. Cézanne queria pintar
o mundo e converte-lo em espetáculo, torna-lo visível, fazer ver como ele nos toca.
Uma obra de arte poderá unir vidas separadas, não existirá como num sonho ou
como num delírio, ou numa tela colorida; “ela habitará indivisa em vários espíritos,
presumivelmente em todo espírito possível, como uma aquisição para sempre”
(Merleau-Ponty, 2015c, p. 140).
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é certo que a vida não explica a obra, mas é certo também que elas se
comunicam. A verdade é que essa obra por fazer exigia essa vida.
Desde seu inicio, a vida de Cézanne só encontrava equilíbrio
apoiando-se na sua obra ainda futura, era o projeto dela, e a obra nela
se anunciava por sinais premonitórios que seria um erro tomar por
causas, mas que fazem da obra e da vida uma única aventura
(Merleau-Ponty, 2015c, p. 141).
Suas obras eram inacabadas, como o abandono de seu pai na infância. Leonardo
ignorava a autoridade, confiava somente na natureza e no seu próprio julgamento,
semelhante às pessoas que não foram educadas pela figura da força protetora paterna. A
investigação, a sua solidão e a curiosidade definem o seu espírito e estabelecem uma
relação direta com sua história. A sua liberdade é essa constatação da criança que ele foi
e desapegou-se, apegando-se à “consciência pura” (Merleau-Ponty, 2015c, p.147) ao
assumir sua posição frente ao mundo e aos outros. “Leonardo nunca deixará de ser o
que foi” (Merleau-Ponty, 2015c, p. 148).
Ser o que sempre foi. Constatar sua liberdade. O pintor Leonardo, assim como
Cézanne, coloca a vida na pintura. Cézanne encontra, nas linhas e nas cores, o seu
mundo e sua obra. Os pincéis e a natureza foram um respiro na sua existência, vivida na
solidão.
2
[...] dans une maison qui domine le petit bassin flanqué de cyprès qu‟il pouvait voir de la fenêtre de la pièce où il
écrivait et d‟où il voyait le reflet des eaux venir visiter le rang de cyprès [...] - Tradução nossa.
3
Scince et art. Les conditions de la visibilité. Le démembrement cartésien. La déhiscense de l”Être. Art et
temporalité. - A tradução dos subtítulos é nossa.
49
é licito afirmar ser uma maquina de informação, mas esse corpo atual
que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas
palavras e sob meus atos (Merleau-Ponty, 2015b, p. 17).
Se há um enigma, este
fazendo do mundo o estofo do corpo. Dessa forma, a visão se faz no meio das coisas, na
“indivisão do senciente e do sentido” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 20)
O filósofo afirma:
Merleau-Ponty afirma que a imagem não é mero “decalque, uma copia, uma
segunda coisa” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 22). Ela também é um paradoxo da junção
entre o interior e o exterior.
E refere:
Nossos olhos de carne “já são muito mais que receptores para as luzes, as cores
e as linhas” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 22). É com eles que se aprende a ver, vendo. É
com eles que o “pintor entra em posse de sua visão” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 23). “O
olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao
visível pelos traços da mão” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 23).
Merleau-Ponty completa:
Nas palavras do filósofo: “O pintor, qualquer que seja, enquanto pinta, pratica
uma teoria mágica da visão” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 24). O pintor reconhece que a
55
O que o olhar pede à montanha, exatamente? Pede para revelar os meios visíveis
pelos quais a montanha se faz montanha, diante dos nossos olhos. Ele lhe pede a luz, a
iluminação, a sombra, o reflexo, a cor. Enfim, é o olhar do pintor sobre como as coisas
se arranjam para compor o talismã do mundo e, assim, podermos ver o visível. O
filósofo ilustra, apontando a pintura de Rembrandt, Ronda Noturna, (figura 4) onde a
mão da figura de um homem aponta para a direção do espectador e faz sombra no corpo
da figura, ao lado do capitão. Apresenta esta imagem, simultaneamente. Este
cruzamento dos “dois aspectos incompossíveis” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 25), que
estão juntos e formam a espacialidade do capitão. Deste jogo de sombras ou de outros
aspectos semelhantes, “todos os homens que têm olhos foram algum dia testemunhas”
(Merleau-Ponty, 2015b, p. 25). É esta testemunha, são estes olhos que veem as coisas e
o espaço. A pintura visa interrogar essa “gênese secreta e febril das coisas em nosso
corpo” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 25).
56
O papel do pintor, diz Max Ernst, é cercar e “projetar o que dentro dele se vê”
(Ernest apud Merleau-Ponty, 2015b, p. 25). Desta forma, o pintor vive na fascinação,
seus gestos e traços, que somente ele é capaz de fazer, são revelados a outros. Entre o
pintor e o visível, os papeis se invertem. André Marchand assim revela, ao alegar que
muitos pintores disseram que as coisas os olhavam. Um relato sobre Paul Klee ilustra
esta questão:
Não se sabe “quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado” (Merleau-
Ponty, 2015b, p. 26). Dizem que o homem nasceu no momento que aquilo que estava no
corpo materno se fez visível para nós e para si. “A visão do pintor é um nascimento
continuado” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 26).
Numa das obras mais tardias e grandiosas, a última das várias imagens
do Monte Sainte- Victorie, vê-se o grau de lucidez estrutural a que
chegou o mestre [...] sem duvida, uma das obras mais „especulativas‟
ou „ontológicas‟ de Cézanne, ponto de chegada de sua pesquisa
dirigida à compreensão global do ser e de sua estrutura vital [...] se o
contato direto com o mundo é pensamento, o pensamento também é
contato direto com o mundo [...] (Argan, 2008, p. 116).
Ainda nas palavras de Argan: “A operação pictórica não reproduz, e sim produz
a sensação: não como dado para uma reflexão posterior, mas como pensamento,
consciência da ação” (Argan, 2008, p. 110).
(
61
Imagem e coisa
inscrevem na percepção comum. A pintura nos faz ver a ausência do objeto verdadeiro,
assim como vemos o objeto na vida real; nos faz ver onde há espaço, onde não há
espaço. Dessa forma, o quadro é plano e nos oferece, artificialmente, o que nós
veríamos diante das coisas.
Tudo o que se pensa da visão faz dela um pensamento. Com isto, o “enigma da
visão não é eliminado, é transferido do „pensamento de ver‟ à visão em ato” (Merleau-
Ponty, 2015b, p. 37).
Para Descartes, o pensamento unido a um corpo não pode, por definição, ser
pensamento. A visão pode ser exercida, praticada, isto é, “visão em ato” (Merleau-
Ponty, 2015b, p. 37), mas dela nada de verdadeiro podemos tirar, pois, para Descartes,
não se pode conceber o pensamento em união da alma e do corpo.
Nas palavras do filósofo, a “filosofia por fazer é a que anima o pintor, não
quando exprime opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto,
quando, dirá Cézanne, ele „pensa por meio da pintura‟” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 40).
70
Profundidade
Cor
2015b, p. 44), mas está longe de ser uma cor que envolve as coisas ou um espaço-
envoltório. Merleau-Ponty cita a obra de Cézanne, o Retrato de Vallier, (figura 11) onde
as cores estão dispostas com uma função de modelar; os espaços irradiam os planos,
havendo um movimento que flutua entre os planos de cor.
72
“A pintura é uma arte do espaço” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 49). Ela se faz tendo
“a tela ou o papel” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 49) como suporte. A “tela imóvel poderia
sugerir mudança de lugar” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 49), movimento de um lugar a
outro, como o “rastro de uma estrela cadente” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 49) que se
projeta na retina; esta “sugere uma transição, um mover que ela não contém” (Merleau-
Ponty, 2015b, p. 49).
Visão e pensamento
que pela visão “tocamos o sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em toda parte, tão
perto dos lugares distantes quanto das coisas próximas” (Merleau-Ponty, 2015, p. 52).
A visão nos ensina que “seres diferentes” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 52) estão
juntos, “existem, no entanto, absolutamente juntos, em „simultaneidade‟” (Merleau-
Ponty, 2015b, p. 52). E “qualquer coisa visual” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 53), por
mais singular que seja, também funciona como dimensão, por ser o resultado da
abertura do ser. “Isto quer dizer, finalmente, que o próprio do visível é ter um forro de
invisível em sentido estrito, que ele torna presente como certa ausência” (Merleau-
Ponty, 2015b, p. 53).
Por tudo isto, Merleau-Ponty afirma que “a ideia de uma pintura universal, de
uma totalização da pintura, de uma pintura inteiramente realizada, é desprovida de
sentido” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 55). Para os pintores, mesmo que se passem milhões
de anos após, ainda algo estará por pintar. Findar, sem acabar. A pintura torna visível.
Nas palavras do filósofo, “a pintura jamais está completamente fora do tempo, porque
está sempre no carnal” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 51).
Nenhuma pintura completa a pintura e nenhuma obra se completa,
absolutamente, e “cada criação modifica, altera, esclarece, aprofunda, confirma, exalta,
recria ou cria antecipadamente todas as outras” (Merleau-Ponty, 2015b, p. 56). O
filósofo termina o texto referindo que as criações tem, diante de si, uma vida, sua
própria vida.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Cézanne foi o pintor escolhido por Merleau-Ponty. O pintor buscava, nos seus
quadros, “retomar a visão primitiva pelo homem junto à natureza” (Muller, 2001, p.
224), retratando as coisas que “aparecem ao nosso olhar” (...) numa “organização
espontânea” (...), almejando “apresentar a expressividade do mundo primordial em que
vivemos” (Muller, 2001, p. 224). Completa Muller, ao falar de Cézanne:
Para Cézanne, a natureza está no seu interior, e o pintor pinta com o pensamento.
Chauí afirma: “pintar é uma maneira de pensar” (Chauí, 2002, p. 178). E continua com
o raciocínio:
O corpo “não é um receptáculo para uma alma ou uma consciência: é meu modo
fundamental de ser e de estar no mundo” (Chauí, 2010, p. 269). E, Chauí complementa:
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O pintor „traz seu corpo‟. Com efeito, não vemos como um espírito
poderia pintar. É emprestando seu corpo ao mundo que o pintor
transforma o mundo em pintura‟. Com essas palavras, Merleau-Ponty
abre o ensaio O Olho e o espírito (Chauí, 2010, p. 276).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARMO, P.S. do. Merleau-Ponty - Uma introdução. São Paulo: Educ, 2011.
2ªedição.