Olhar e Passividade Na Pintura Segundo Merleau-Ponty
Olhar e Passividade Na Pintura Segundo Merleau-Ponty
Olhar e Passividade Na Pintura Segundo Merleau-Ponty
FLORIANÓPOLIS – SC
2015
Amauri Carboni Bitencourt
Florianópolis
2015
Esta tese é dedicada a todos os artistas que em seus processos
criativos
e tentativas de falar sobre sua arte
não foram compreendidos.....
AGRADECIMENTOS
Creio que uma das principais virtudes que o ser humano possa
manifestar é o sentimento de gratidão! Afinal, sozinhos conseguimos
fazer muito pouco. Mesmo aos que se consideram autodidatas, seus
aprendizados, criações e trajetórias são ampliados quando há a inserção
do outro em seu caminho. Bem sabemos que algumas vezes dificultando
o processo e em outras facilitando-o.
Em primeiro lugar minha gratidão é pela Energia que me
mantém vivo e me impele a prosseguir adiante.
Em segundo lugar gostaria de agradecer aos meus pais –
Custódio Bitencourt (in memoriam) e Selvina Carboni Bitencourt – pela
vida e por me incentivarem a estudar, desde tenra idade.
Aos meus familiares e amigos, especialmente meus irmãos,
irmãs, cunhados, cunhadas, sobrinhos(as), por entenderem (às vezes
nem tanto) a minha ausência/presença em datas especiais e importantes
para os encontros, pessoas cujos enlaces fazem com que a vida tenha um
pouco mais de sabor e sentido. Não tenho como citar os nomes, pois
correria o risco de esquecer algum deles, levando-me a uma situação
delicada e indesejada. Cada um sabe a importância que tem em minha
existência.
Um agradecimento especial aos parceiros de baralho,
jogo/brincadeira que me deixa mais tranquilo e mais gordo (comidas!),
bem como partícipe de muitas risadas e disputas!
Manifesto um agradecimento especial aos que participaram mais
efetivamente durante a elaboração desta tese. Cito alguns: Reinaldo
Valmor Marcelino, Yuri Jean Fabris, Patrícia Mônica Moretti, Evandro
Jair Duarte, Marcelo Cesar da Cunha, APAE de Rio do Sul, Greice M.
Fontanive, Elizia Cristina Ferreira, Geane Kantovitz, José Carlos
Mendonça, Astrobilda e Godofredo1.
Aos amigos Luiza Helena Hilgert, Juliano Tomasel e Vitória
Hilgert Tomasel (pequena deusa Tiburça) por me acompanharem em
alguns locais importantes em Paris/França.
Agradeço aos gestores, colegas de trabalho e alunos das
instituições em que trabalho e trabalhei durante este período: Instituto
1
Caso eu tenha esquecido de algum nome sinta-se homenageada (o) por
Astrobilda e Godofredo (obviamente, a lista não se restringe a essa que fiz:
há muitos outros nomes!).
Federal de catarinense (IFC – Campus de Rio do Sul), Uniasselvi de
Indaial e Famesul de Rio do Sul.
Tenho um carinho especial por Ferena Loch, por ter acreditado
em meu trabalho como artista, cujo incentivo e ajuda considero
essencial para a minha chegada até aqui.
A leitura cuidadosa e atenciosa de Elisabete Olinda Guerra
deixou a tese livre de alguns vícios e distorções de escrita, os quais
cometemos quase imperceptivelmente, mas percebidos aos olhos atentos
do outro. Obrigado Bete pela leitura!
Agradeço ao Departamento de Pós-Graduação em Filosofia da
UFSC: Ângela Maria Rachadel Gasparini e Irma Iaczinski, servidoras
técnico-administrativas.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia e a todos
os professores que batalham por um ensino de qualidade e por uma
educação digna e virtuosa.
Meu muitíssimo obrigado pelos professores doutores (as):
Ida Mara Freire: especialmente por me incentivar a tornar a
tese mais singular em termos de arte e criação.
Maria Aparecida Leite: pela participação da banca de
qualificação e pelas dicas sobre o enlace entre Merleau-Ponty e Lacan.
Claudinei A. de Freitas da Silva: pela “correção” cuidadosa do
texto de qualificação, possibilitando uma melhora considerável na
elaboração da tese. Professor em que a educação e o carinho ficam
evidentes à medida em que nos aproximamos dele.
Faço, aqui, também, um agradecimento aos demais membros da
banca que aceitaram o convite de ler e dar suas contribuições para o
aprimoramento desta tese.
Agradecimento especial:
Ao orientador Marcos José Müller, que me acompanha desde a
Graduação em Filosofia na UFSC (Trabalho de Conclusão de Curso),
Mestrado (Dissertação) e Doutorado (tese). Presença e ausência
importantes para o meu aprendizado de escrita e de leitura, mas de cujo
contato sempre saio mais “amplo”. Foram mais de 10 anos de uma
frutífera convivência que renderam escritos e telas muito mais além do
que eu imaginara inicialmente. Seus preciosos ensinamentos, que
recolhi qual flores plantadas em um caminho, levarei para a vida toda.
“Os frutos são mais constantes.
Gostam de ser pintados.
Parecem sentar-se ali e pedir desculpa por estarem cansados.
Transmitem o pensamento através dos seus aromas.
Apresentam-se com todas as fragrâncias, falam dos campos que
deixaram,
da chuva que os nutriu, dos alvoreceres que viram.”
(Cézanne, citado por Joachim, Gasquet)
C Causeries (1948)
EP Éloge de la Philosophie et autres essais
IP L’instituition/ la passivité
NC Notes de Cours
OE L’Oeil et l’Esprit
Parc1 Parcours
Parc2 Parcous deux
PM La prose du monde
PhP Phénoménologie de la Perception
PPE Psicologia e pedagogia da criança
PrP Le Primat de la perception
RCF Résumés de cours
RCS Merleau-Ponty na Sorbonne
S Signes
SC La struture du comportement
SnS Sens et non-sens
UAC L‘union de l’ame et du corps chez Malebranche, Biran et
Bergson
VI Le visible et l’Invisible
SUMÁRIO
SUMÁRIO ..............................................................................................19
PRÓLOGO: VER-SE VENDO .............................................................21
1 INTRODUÇÃO: UMA FILOSOFIA TAL QUAL UMA OBRA
DE ARTE ................................................................................................29
2 ONTOLOGIA E PINTURA: O VISÍVEL ........................................47
2.1 De Cézanne à busca pela expressão da gênese do ser ...................50
2.2 Mais além das essências: pintura e transcendência .......................66
2.3 Cor, linha e movimento como desdobramentos do visível ...........80
3 ONTOLOGIA E OLHAR: O INVISÍVEL .....................................105
3.1 Do pensamento de ver ao olhar como enigma ............................108
3.2 A profundidade como idealidade de horizonte ...........................126
3.3 A formação das imagens e a idealidade pura.............................. 143
4 ONTOLOGIA E OUTREM: A PASSIVIDADE ............................163
4.1 Reversibilidade do olhar ....... ......................................................165
4.2 A esquize do olho e do olhar na pintura..... .................................184
4.3 Por uma reabilitação ontológica do sensível............................... 213
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ..........................................................237
REFERÊNCIAS ...................................................................................249
ANEXOS ...............................................................................................263
PRÓLOGO: VER-SE VENDO
2
Em nosso estudo tomaremos o conceito de olhar de forma semelhante ao de
visão, exceto quando abordarmos o olhar lacaniano como sendo objeto da
pulsão escópica. Esta diferenciação se fará com maior ênfase no tópico 4.2 A
esquize do olho e do olhar na pintura.
30
3
As referências das citações seguem respectivamente: abreviações
costumeiramente utilizadas pelos pesquisadores e comentadores da obra de
Merleau-Ponty, paginação da obra original e paginação da obra traduzida para a
língua portuguesa. Para uma melhor compreensão, ver nota nas referências.
31
4
Em outro poema Manoel de Barros (2013, p. 381) descreve sobre o “lugar” em
que o artista deve se “instalar” para que a operação de expressão aconteça: “Lá
onde a gente pode ver o próprio feto do verbo -/ ainda em movimento./ Aonde a
gente pode enxergar o feto dos nomes –/ ainda sem penugens./ Por que não
32
voltar a apalpar as primeiras formas da/ pedra. A escutar/ Os primeiros pios dos
pássaros. A ver/ As primeiras cores do amanhecer./ Como não voltar para onde
a invenção está virgem?”.
5
Especificamente no texto A linguagem indireta e as vozes do silêncio, de
Merleau-Ponty, originariamente inserida na obra Signos, utilizamos a tradução
feita por Maria E. G. G. Pereira, e editada pela Cosac & Naify no volume cujo
título é “O olho e o espírito”. Os demais textos de Signos seguimos a paginação
editada pela Martins Fontes (cuja tradução é feita também por Maria E. G. G.
Pereira).
33
que anima o pintor”, afirma Merleau-Ponty (OE, 60, 33), “não quando
exprime opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se
faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele ‘pensa por meio da pintura’”.
Partimos então, tal qual Merleau-Ponty em O olho e o espírito, da
meditação sobre o universo da pintura que nos fornece, de certo modo,
uma linguagem nova e conquistadora, “muito próxima da linguagem
literária e poética, uma linguagem que argumenta, por certo, mas
consegue se subtrair a todos os artifícios da técnica que uma tradição
acadêmica fizera crer inseparável do discurso filosófico” (LEFORT,
2004, p. 112).
Nosso objetivo central é mostrar a questão do olhar a da
atividade-passividade na pintura à luz de Merleau-Ponty. Em linhas
gerais, assegura Merleau-Ponty: “meu ‘olhar’ é um desses dados do
‘sensível’, do mundo bruto e primordial, que desafia a analítica do ser e
do nada, da existência como consciência e da existência como coisa”,
faz-nos atentar para uma passividade-atividade de nossa criação, e mais
do que isso: “exige uma reconstrução completa da filosofia” (VI, 243,
183-141). Afinal, a filosofia não pode mais querer ingenuamente
desvendar os segredos do mundo, como se houvesse a possibilidade de
um pensamento puro que veria os fenômenos do exterior, querer falar
das questões centrais que move a sua reflexão, sem se instalar no
mundo, sem se ater ao fato de que não podemos nos afastar do mundo e
da própria experiência. Nosso ponto de partida não é o pensamento
reflexionante: é o mundo sensível. Ademais, “não é só a filosofia, no
início é o olhar que interroga as coisas” (VI, 137, 103).
O que procuraremos sustentar em nossa tese, primeiramente, é
que o artista experimenta uma passividade diante do seu ato criativo.
Imbricado com esta atividade-passividade, ele transmuta para a tela o
enigma que percebe em seu contato com a natureza. Desse modo, a arte
faz ver que o fundante não está na consciência reflexiva frente a um
mundo habitado por homens pensantes, mas, trata-se, antes, de suprimir
a clivagem entre os opostos binários que os pensadores - a priori -
tomavam posição para construir suas teses. Merleau-Ponty quer algo
diferente: ultrapassando as concepções empiristas e racionalistas, que
procuravam afastar o homem do mundo, busca reinserir este, pois,
novamente no mundo, inovando, assim, a maneira de fazer filosofia. É
no próprio mundo que estamos imersos e o habitamos desde que
nascemos. É nele que atuamos e existimos. Logo, para Merleau-Ponty,
não há mais sentido em interrogar nossa vida e as coisas sem levar em
conta nossa mundaneidade. Ele almeja por uma filosofia que pensa a
relação entre o nosso corpo e as coisas visíveis, “que mergulha no
34
6
Em Notes de cours [notas de cursos] realizados entre 1959-1961, mais
especificamente em um realizado entre 1958 e 1959 cujo título é La philosophie
aujourd’hui [a filosofia hoje], Merleau-Ponty explora quatro áreas do
conhecimento humano que, a seu ver, mostram a relação do homem com o
mundo, numa tarefa que é renovadora e expressiva, trazendo novas formas de
pensar a ontologia. É dentro deste contexto – e aprendendo com elas – que
Merleau-Ponty adentra no mundo da pintura, da literatura, da música e da
psicanálise.
35
outro é agente e que, por outro lado, somos passivos, sofrendo os efeitos
deste mesmo gesto.
Fomos condicionados a crer que a visão se origina em nossos
órgãos ópticos, numa relação em que os objetos vistos estão situados do
lado de fora, como se fôssemos os únicos atuantes do ato perceptivo,
sem, contudo, levar em conta a relação inversa: no espetáculo do mundo
também somos vistos por todos os lados. Assim, a reversibilidade do
olhar é um dos aspectos fundamentais na teoria merleau-pontyana. Será
que existe uma maneira correta de olhar?
O poeta Manoel de Barros (2013, p. 278) escreve que:
Talvez, Fernando Pessoa (2013, p. 62) possa nos dar uma pista
de como olhar dessa maneira:
7
Tentamos investigar os escritos de Merleau-Ponty que abordam a questão do
olhar e da passividade na pintura, mas nos centramos em alguns textos que
consideramos relevantes e que norteará nossa escrita. Notamos, aqui, que o
texto L’instituicion – la passivité não será um dos livros que procuraremos
aprofundar, pois iria nos remeter a um outro tipo de estudo, o qual não é nossa
intenção por hora.
40
8
Alguns tradutores das obras merleau-pontyanas para a língua portuguesa não
atentam para as distinções entre outro (autre) e outrem (autrui), como é o caso
mais específico de A prosa do mundo e O visível e o invisível. Nossa proposta é,
a partir das obras originais, fazer uma adequação dos termos na tradução por
nós retomada, o qual inserimos entre colchetes, buscando utilizar o que
Merleau-Ponty empregou originariamente, e que, a nosso ver, tem uma grande
importância na compreensão de seus escritos. Ressaltamos também que, em
alguns momentos, as noções de outro e outrem se entrelaçam a tal ponto de não
sabermos distinguir claramente um de outro, mas tentaremos, no que for
possível, estabelecer esta diferenciação.
41
9
Vemos citações de Cézanne em outros textos merleau-pontyanos como
Fenomenologia da Percepção, Conversas – 1948 e A Prosa do Mundo.
10
Isso quer dizer que ele estaria ampliando a passagem do naturalismo para uma
leitura temporal dos fenômenos – isso Merleau-Ponty chama de Ontologia.
11
Itálico do autor.
12
A noção de deiscência “(que, em botânica, designa habitualmente a abertura
de um órgão que atingiu a maturidade), faz parte do dispositivo conceitual que
48
15
“A percepção como encontro das coisas naturais está no primeiro plano de
nossa pesquisa, não como função sensorial simples que explicaria as outras, mas
como arquétipo do encontro originário, imitado e renovado no encontro do
passado, do imaginário, da ideia” (VI, 208, 155).
16
A natureza “não corresponde mais ao mundo verificado do cientista,
tampouco se exprime como o mundo idealizado do metafísico. Ela é o ‘campo
sensível pré-objetivo’ por meio do qual a percepção de outrem se transfigura
como um enigma inalienável e jamais como um absurdo ilusório da razão. É
essa estrutura, genuinamente primordial que a Natureza encerra. É esse núcleo
de significação que ela exprime a título de uma experiência sempre reiniciante”
(SILVA, C., 2010, p. 193). Para um aprofundamento sobre esta questão
indicamos a leitura do livro A Natureza primordial: Merleau-Ponty e o logos do
mundo estético, do professor Claudinei Aparecido de Freitas da Silva.
50
17
“Não admira que, frequentemente, ficasse à beira do desespero, trabalhasse
como um escravo em sua tela e jamais deixasse de realizar experimentos. O
verdadeiro motivo de espanto é que Cézanne conseguiu realizar em suas obras o
que era aparentemente impossível. [...] Todas as espécies de explicações já
foram sugeridas sobre o que ele queria realizar e o que realizou. Mas essas
explicações parecem rudimentares e até, algumas vezes, soam contraditórias.
Contudo, ainda que nos impacientemos com as críticas, aí estão sempre os
51
distúrbio dos olhos, se toda a sua vida não se apoiara sobre um acidente
do corpo” (SnS, 13, 12318). Contudo, olhar hoje suas obras, faz-nos
perceber a natureza primordial, o mundo em sua origem.
As obras de Cézanne tiveram grande relevância para a
construção de uma nova forma de expressão. De fato, os artistas
modernos se inspiraram no modo como o pintor de Aix explorava a
natureza e a transformara em pintura. Olhando a natureza atentamente, o
pintor pode perceber que a pintura deveria ser muito mais do que a
representação19 da realidade em um quadro. A esse respeito, Merleau-
Ponty traz à tona uma citação de Cézanne ao ser indagado por Émile
Bernard sobre a elaboração de uma tela à maneira clássica: “eles faziam
o quadro e nós tentamos um fragmento da natureza20” (SnS, 17, 127).
Diante da natureza, a prioridade de Cézanne não era pintar sob a
insígnia da sensação ou do pensamento, dos sentidos ou da inteligência,
mas seguir em uma trilha que superasse a dicotomia entre o caos e a
ordem, situando sua obra num mundo pré-espacial. “Foi esse mundo
primordial que Cézanne quis pintar, e por isso seus quadros dão a
impressão da natureza em sua origem [...]” (SnS, 18, 128). Não queria
pintar como um bruto, nem seguir seus antecessores, mas pesquisar
aquilo que considerava verdade em termos de arte. Mesmo sendo
rejeitado, nunca abandonou o seu trabalho. Considerava-se alguém que
nascera fora de seu próprio tempo. Sobre isso, lamenta-se: “cheguei
talvez cedo demais” (CÉZANNE, 1992, p. 208).
Cézanne sentia-se insatisfeito21 com os resultados obtidos,
mesmo no final da sua vida. Chegou a declarar ao amigo Émile Bernard,
um mês antes de morrer:
quadros para nos convencerem. E o melhor conselho, aqui e sempre, é ‘vá ver
os quadros no original’” (GOMBRICH, 1993, p. 539-540).
18
Em A dúvida de Cézanne optamos por seguir a paginação em português da
obra editada pela Cosac & Naify, inserida no livro cujo título é “O olho e o
espírito”.
19
“A pintura seria, portanto, não uma imitação do mundo, mas um mundo por si
mesmo” (C, 55-56, 58).
20
“Pintar ou qualquer outra atividade criadora significa produzir ‘um pedaço de
mundo’, ‘abrir um campo, deslocar ou modificar uma configuração, uma
percepção, transformar um pouco o mundo’, assim como ser transformado por
ele” (MÉNASÉ, 2008, 242).
21
“A natureza, que Cézanne constantemente reclama como seu único modelo, a
quem deve fidelidade absoluta, ele bem sabe que jamais será passível de
redução às pinceladas” (DUARTE, 1994, p. 312).
52
22
“Cézanne donne l’impression d’un ouvrier puissamment doué mais de vision
trouble, d’exécution nos pas gauche, mais gauchie par quelque infirmité
manuelle” (VOLLARD, 1938, p. 129). Resolvemos inserir, aqui, as citações no
original, pois há algumas expressões que são atípicas do contexto normal, como
por exemplo, doença manual (infirmité manuelle), o que poderíamos pressupor
que pudesse tratar-se de uma doença mental.
23
“Il prefere répandre des couleurs sur une toile et les y étaler ensuite avec un
peigne ou une brosse à dents […] le procédé rapelle un peu ces dessins que les
écoliers exécutent em écrasant des têtes de mouche dans le pli d’une feuille de
papier” (VOLLARD, 1938, p. 128).
24
“Paysages et personnages, toute une nature qui parît en bois grossièrement
découpé et peinturluré de ces couleurs pauvres et criades qu’ont certains
humbles jouets de bazar” (VOLLARD, 1938, p. 133).
25
“Não há dúvida, porém, de que a principal influência revelada em Les
demoiselles é de Cézanne. Picasso, como a maioria dos prodígios artísticos, era
um eclético errante nas primeiras fases do seu desenvolvimento. São muitas as
fontes de influência que se mostram em sua obra: arte romântica de sua
Catalunha nativa, arte gótica em geral, pintura espanhola do século XVI
(particularmente a obra de El Greco) e finalmente a obra de seus predecessores
imediatos, como Toulouse-Lautrec, e dos fauves que ele conheceu quando de
sua primeira estada em Paris. Mas essas influências eram relativamente
esporádicas e superficiais, ao passo que a de Cézanne era profunda e
permanente” (READ, 2000, p. 68).
54
II
26
A artista e escritora Fayga Ostrower (2003, p. 111) menciona uma carta
escrita por Gauguin no momento em que passa por uma crise econômica: “Esse
quadro de Cézanne é extraordinário, por ele recusei uma oferta de trezentos
francos. Guardo-o como a pupila de meus olhos e prefiro vender minha última
camisa antes de me desfazer desse quadro”.
27
“O pintor [clássico] só conseguiu dominar uma série de visões e delas tirar
uma única paisagem eterna porque interrompeu o modo natural de ver”,
construindo na tela “uma representação da paisagem que não corresponde a
nenhuma das visões livres, domina seu desenvolvimento movimentado, mas
também suprime sua vibração e sua vida” (C, 21, 14).
55
Ele acreditava que “as coisas mesmas e os rostos mesmos tais como ele
os via é que pediam para serem pintados assim, e Cézanne apenas disse
o que eles queriam dizer” (SnS, 27, 137). Ele também “não acreditou ter
de escolher entre a sensação e o pensamento, como entre o caos e a
ordem” (SnS, 27, 137).
Segundo Bernard, Cézanne estaria se distanciando dos
impressionistas, pois buscava a realidade sem abandonar a sensação.
Não delimitava os contornos, não enquadrava a cor pelo desenho,
tampouco usava os recursos da perspectiva clássica. Esse paradoxo era
visto por Bernard como o suicídio de Cézanne: “ele visa a realidade e
proíbe-se os meios de alcançá-la” (SnS, 17, 127). Observamos essas
deformações nas pinturas feitas entre 1870 e 1890. O julgamento do
amigo é severo: “Cézanne teria, diz Bernard, mergulhado ‘a pintura na
ignorância e o espírito nas trevas’” (SnS, 18, 127).
Cézanne, mergulhado na natureza, cujo olhar tentava reproduzir
na tela o paradoxo da expressão, possibilita ao espectador uma
experiência original do mundo. Trata-se de um mundo ambíguo onde a
pintura brota na dobra entre o visível e o invisível. Tateando entre
pinceladas e percepções, ele “‘germinava’ com a paisagem” (SnS, 23,
132). Cézanne chegou a dizer certa vez:
28
Muito do que sabemos a respeito do método de Cézanne originou-se a partir
das relações de confiança entre ele e Émile Bernard. Este sempre escutava o
mestre de Aix, guardou suas cartas, em que trocavam confidências sobre
declarações acerca da pintura. Mesmo que, na maioria das vezes, não gostasse
de falar desse assunto com outros interlocutores, com Bernard era diferente.
Jantava com frequência na casa dos Bernard, brincava com as crianças e
“manifestava jovialidade a que renunciava assim que a conversa derivava para a
pintura. Então animava-se, subia de tom, acompanhava as palavras batendo com
os dedos na mesa” (ELGAR, 1987, p. 208).
57
amarelos, três azuis, três verdes e um negro. Com isso, não quer pintar
objetos cujos tons apareçam na tela ofuscados pela luminosidade do ar,
tampouco de outros objetos próximos, mas, sim, de enfatizar zonas de
transição entre os diversos tons. É nesse ponto que ele se separa dos
impressionistas. Mais especificamente, ele os ultrapassa. Assim, “ele
renuncia à divisão do tom e a substitui por misturas graduadas, por uma
sucessão de matizes cromáticas sobre o objeto, por uma modulação de
cores que acompanha a forma e a luz recebida” (SnS, 16-7, 126). Dessa
forma, o pintor “quis voltar ao objeto sem abandonar a estética
impressionista, que toma por modelo a natureza” (SnS, 17, 127).
É nessa perspectiva que Merleau-Ponty (SnS, 20, 130) falará do
contorno dos objetos observados nos quadros do artista:
III
29
“Pintou 122 vezes a montanha Sainte-Victoire. E cada vez era uma nova
aventura, um novo começo, uma nova visão” (OSTROWER, 2003, p. 126).
61
30
O itálico é nosso para chamarmos atenção quanto o fato de que o espectador
também co-cria com o autor-feitor.
31
De um modo geral, Cézanne aprende diretamente com os mestres dos
museus, especialmente os do Louvre, e também com Pissarro. “Escolas”, aqui,
tem mais o sentido de tradição em termos técnicos do que com uma instituição
“formadora” de artistas.
62
32
Sobre a noção merleau-pontyana de carne e carne universal do mundo iremos
tratar mais demoradamente no capítulo três.
33
Para um esclarecimento melhor sobre a necessidade que Cézanne tem de
pintar para se libertar, recomendamos ler nossa dissertação de mestrado:
(BITENCOURT, Amauri Carboni. Merleau-Ponty acerca da pintura. 2008. 117
f. – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis).
34
Real, aqui, tem a ver com a noção merleau-pontyana de carne.
63
IV
35
Não aprofundaremos, aqui, a noção de Ser de indivisão, pois esta será
retomada algumas vezes neste presente estudo, especialmente no terceiro
capítulo.
36
“[...] justamente porque a pintura traz à expressão o mundo visível, é o nosso
acesso ao ser que ela ajuda a definir, e no mesmo sentido em que fizera o
filósofo ao refletir sobre a percepção: a significação metafísica da pintura vai de
par com a significação metafísica da percepção. Daí o privilégio concedido por
Merleau-Ponty à pintura” (MOUTINHO, 2006, p. 343). Luiz Damon Moutinho
diz haver um privilégio da pintura em Merleau-Ponty, porém cremos que isso
não seja de todo verdadeiro, apesar de citá-la em diferentes textos. Em O olho e
o espírito, a reflexão de Merleau-Ponty versa sobre diferentes modos de arte: a
escultura de Rodin e Giacometti, por exemplo, também são tomadas com
tamanha força expressiva tal qual a pintura. Em A prosa do mundo, Merleau-
Ponty (PM, 124, 116) esclarece que “[é] preciso admitir que a linguagem, na
65
37
A noção de Ser Bruto e Espírito Selvagem será retomada no terceiro capítulo.
38
O professor Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, no livro A carnalidade
da reflexão, apresenta três versões da carnalidade, as quais já podemos notar no
título do primeiro capítulo: A percepção encarnada: o corpo, o cogito e o
tempo. Nós trataremos, mais especificamente em nossa pesquisa, da questão do
corpo próprio.
67
II
39
A paginação da introdução da Fenomenologia da Percepção é feita em
algarismos romanos.
68
40
“O verdadeiro, para a ciência, é o objetivo realizado pelas operações em busca
de uma ordem de fatos. Assim, a ciência exclui aquilo que ela chama de
subjetivo, para realizar em torno de si mesma um projeto imparcial que nos
habita e nos faz acreditar num Grande objeto, capaz de edificar o mundo
existente através de uma série indefinida de operações suas, pressupondo-as e
sustentando-as, elas mesmas, e não acreditar nas obscuridades da fé, perceptiva
ou ingênua, que temos do mundo” (SILVA, A., 2010, p. 105).
69
41
“Pensar o corpo equivale a reencontrar, sob a experiência objetiva do corpo,
essa evidência ambígua que é o corpo próprio em sua relação originária com o
mundo e com outrem (CARDIM, 2009, p. 90).
42
O corpo “é a origem de todos os fenômenos de expressão no espaço, o
próprio movimento de expressão” (MÜLLER, 2001, p. 199).
70
faz” (PM, 113, 108). É nesse sentido que Merleau-Ponty afirma que o
corpo não deve ser comparado a um objeto físico, a uma máquina ou
sistema funcional. Ele deve ser, antes, comparado a uma obra de arte43,
na direção em que, como toda arte - seja um romance, um poema, um
quadro ou uma peça musical - “não se pode distinguir a expressão do
expresso, cujo sentido, só é acessível por um contato direto, e que
irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial”
(PhP, 209-10). Ademais, “é um nó de significações vivas e não a lei de
um certo número de termos co-variantes” (PhP, 177, 210).
Nesse contexto, “nosso corpo não é apenas um espaço
expressivo entre todos os outros” (PhP, 171, 202). Ademais, ele “é a
origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão, aquilo
que projeta as significações no exterior dando-lhes um lugar, aquilo que
faz com que elas comecem a existir como coisas, sob nossas mãos, sob
nossos olhos” (PhP, 171, 202). É através de meu corpo que experencio
um mundo. Por habitar o mundo, o corpo se engendra no espaço. “A
espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a
maneira pela qual ele se realiza como corpo” (PhP, 174, 206).
Pensemos na relação entre o cego e sua bengala: a bengala, para
ele, mais do que um instrumento de lidar com o mundo, passa a fazer
parte do seu corpo. Afirma Merleau-Ponty: “A bengala do cego deixou
de ser para ele um objeto, ela não mais é percebida por si mesma, sua
extremidade transformou-se em zona sensível, ela aumenta a amplitude
e o raio de ação do tocar, tornou-se o análogo de um olhar” (PhP, 167,
198). Sendo extensão do seu corpo, o cego não precisa ficar analisando
o comprimento dela toda vez que tiver que sair de casa. “Na exploração
dos objetos”, nos diz o filósofo, “o comprimento da bengala não
intervém expressamente e como meio-termo: o cego o conhece pela
posição dos objetos, antes que a posição dos objetos por ele” (PhP, 167,
198). O hábito de utilizar a bengala é semelhante ao hábito de tocar as
coisas com seu braço. “Habituar-se a um chapéu, a um automóvel ou a
uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los participar do
caráter volumoso do nosso corpo próprio” (PhP, 167, 198). Esse
dilatamento de nosso corpo, anexando a ele instrumentos, só é possível
43
“A unidade do corpo próprio é comparável à da obra de arte. Pois na arte é
bastante claro o fato de que forma e conteúdo não podem se separar, ou melhor,
a expressão e aquilo que foi expresso são indissociáveis, pois formam um ‘nó de
significações vivas’” (CARDIM, 2009, p. 112).
71
44
Há artistas que pintam mais com as mãos e outros que pintam com os braços.
Um trabalho meticuloso, como é o de Ingres, por exemplo, requer do artista
uma extraordinária habilidade manual, ao passo que Picasso, por sua vez, faz
muito mais o movimento com o braço do que com a mão: o gesto do braço é
que anima a matéria pictural e traz à vida o fundo de natureza primordial.
72
45
“Qualquer percepção, qualquer ação que a suponha, em suma qualquer uso
humano do corpo já é expressão primordial [...]” (S, 108, 99). [itálico do autor].
73
III
46
Adaptamos o texto para a primeira pessoa do plural.
75
Nosso corpo, sendo uma das coisas visíveis, não está no espaço
e no tempo conforme pensara Merleau-Ponty nos primeiros escritos,
tampouco está fora deles: “nada há antes dele, em torno dele que possa
rivalizar com sua visibilidade” (VI, 150, 113). Aqui, o espaço e o tempo
não são vistos como medidas e numericamente contados, mas se
estendem ou se encolhem, numa “espécie de enrolamento ou
redobramento, profundamente homogêneo em relação a eles” (VI, 150,
113) e que o filósofo caracteriza como o presente visível. Nesse ponto,
Merleau-Ponty apresenta o cerne da questão:
47
Sobre fazer uma filosofia como “centro” Merleau-Ponty (VI, 218, 164)
propõe nO visível e o invisível: “[...] o que dizemos sobre a alma ou sobre o
sujeito psicofísico antecipa o que diremos sobre a reflexão, a consciência, a
razão e o absoluto. – Essa circularidade não é uma objeção - Seguimos a ordem
das matérias, não há ordem das razões – a ordem das razões não nos daria a
convicção que a ordem das matérias dá – a filosofia como centro, não como
construção”.
48
O professor Pascal Dupont (2008, p. 105-106) assim comenta esta passagem:
“[...] o logos do ser de cultura ou ‘proferido’ (prophorikos) é o caminho
obrigatório para que tenhamos experiência dos seres e do ser. Mas o logos
proferido não é vivo senão por ser sempre contestado, sempre retornado pelo
Ser bruto e pelo logos interior (endiathetos), que é sua armadura. E é por isso
que nossas obras de cultura jamais poderão se fechar nelas mesmas ou constituir
uma totalidade concluída e separada. Elas são sempre testemunhas de um
mundo inesgotável”.
77
IV
49
Especialmente nesta citação, seguimos a tradução de Marilena Chauí (2002,
p. 151) – no original: “L’Être est cequi exige de nous création pour que nous em
ayons l’expérience” (VI, 248).
50
Adaptamos o texto para a primeira pessoa do plural.
78
51
“O tecido comum de que são feitas todas as estruturas é o visível, que, ele
próprio, não é, de modo algum, objetividade, em si, mas transcendência [...] não
como nada, não como algo, mas como unidade de transgressão, ou de
imbricação correlativa de ‘coisa’ e ‘mundo’’” (VI, 250, 189).
79
52
Apesar da proposição de Merleau-Ponty acerca do fazer artístico e de toda a
questão da percepção, Paul Valéry (2003, p. 29) diz o contrário: “É verdade que
uma coisa é ainda mais instrutiva: a espantosa inexatidão provável da
observação imediata, a falsificação que é obra de nossos olhos. Observar é, em
grande parte, imaginar o que queremos ver.”
80
temos ainda a cisão entre o que é vidente e o que é visível, pois ambos
imbricam-se mutuamente, mesclando-se, entrelaçando-se,
possibilitando, a esse modo, que um novo visível venha à tona. Como
nota Merleau-Ponty:
I
O pintor tem a tarefa de captar na natureza o seu motivo,
transformando-o em pintura. Em sua visão atual, há “o encontro, como
numa encruzilhada”, nos diz Merleau-Ponty, “de todos os aspectos do
Ser” (OE, 86, 44) em que estes lhe aparecem misturados e
embaralhados. Esta percepção primordial, atual, em que o “Ser mudo”
vem, “ele próprio, manifestar seu sentido” (OE, 87, 44) é expresso na
tela como uma segunda visão. Em função disso, podemos reconhecer
que há duas expressões: a do olhar do pintor que vê o mundo e aquela
que ele imprime no quadro. Nesse sentido, perguntamo-nos: podemos
dizer que o ato de pintar é decidido apenas pela individualidade53 do
pintor?
53
Malraux afirma que o pintor moderno pinta a sua subjetividade. Para uma
melhor leitura sobre o tema veja o item 2.4 da presente tese.
81
II
“Há uma lógica da cor, por Deus! O pintor deve ser leal para
com ela” (CÉZANNE, 1993, p. 72). Com essas palavras, Cézanne
pontua o quanto considerava importante esse elemento pictórico, quiçá
83
54
Um artista que se esmerava na aplicação da cor era Van Gogh (1999, p. 32); -
disse ele certa vez - “Tentei expressar as terríveis paixões humanas com o
vermelho e o verde”. Inúmeros foram os artistas que se referiram ao uso
fundamental da cor. Citamos também Max Beckmann (1999, p, 192): “A cor,
como expressão estranha e magnífica do aspecto inescrutável da Eternidade, é
bela e importante para mim, como pintor. Uso-a para enriquecer a tela e
mergulhar mais profundamente no objeto. A cor também decidiu, até certo
ponto, minha perspectiva espiritual, mas está subordinada à luz e, acima de
tudo, ao tratamento da forma”.
84
55
Imagem em anexo.
56
Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio optamos por seguir a
paginação em português da obra editada pela Cosac & Naify, inserida no livro
cujo título é O olho e o espírito.
57
Muitos artistas clássicos tinham em suas oficinas e ateliês alunos e/ou
discípulos que o ajudavam a elaborar obras preenchendo de cor o desenho a
priori feito pelo mestre.
58
Um dos artistas que se esmerou no uso da cor foi o fauvista francês Henri
Matisse. Em 1905, ele envia uma obra na qual retratara sua mulher usando um
enorme chapéu para o Salão de Outono de Paris. O público e a crítica a
julgaram como sendo de mau gosto, além de manifestar um repúdio caricato da
feminilidade. Atualmente, aceitamos de bom grado, uma pintura feita com cores
tão expressivas e “exageradas”, mas, se voltarmos ao início do século XX, onde
as obras dos pintores inovadores eram rejeitadas e ridicularizadas – como foram
os impressionistas – havemos de perceber o quão chocado ficou o público
diante de tal tratamento.
86
III
59
Imagem em anexo.
60
A frase de Cézanne “os bordos dos objetos fogem para um centro colocado no
nosso horizonte” viria a revelar a Robert Delaunay o sentido das suas buscas.
Delaunay foi ainda um dos que, segundo o preceito de Cézanne, tentaram
exprimir a terceira dimensão através da cor. (ELGAR, 1987, p. 266).
87
Klee é um dos artistas que faz uso das linhas para construir
obras que são uma “épura de uma gênese das coisas” (OE, 74, 39). Mais
do que banir o recurso deste elemento pictural, como fizeram os
impressionistas, a arte moderna a resgata, dando-lhe novas significações
plásticas. Dessa maneira, “a linha não é mais, como na geometria
clássica, o aparecimento de um ser sobre um vazio do fundo”, mas, ao
contrário, “ela é, como nas geometrias modernas, restrição, segregação,
modulação de uma espacialidade prévia” (OE, 76-77, 40).
Merleau-Ponty nos apresenta, em O olho e o espírito (OE, 74,
39), uma passagem onde H. Michaux faz alguns comentários sobre a
concepção da linha nos desenhos de Paul Klee: “talvez jamais antes de
Klee”, diz o filósofo, “se houvesse ‘deixado sonhar uma linha’”. Vale,
aqui, mencionar a interessante nota de rodapé que aparece nas notas dos
cursos ministrados no Collège de France entre 1959-196161:
As linhas:
Aquelas que passeiam – as primeiras que se viu
passear no ocidente.
As viajantes, aquelas que não fazem tanto objetos
quanto trajetos, percursos.
As penetrantes, aquelas que ao inverso das
possuídas, ávidas de envolver, de cercar,
construtoras de formas (e então?), são linhas para
o embaixo.
As alusivas...
As loucas de enumeração, de justaposição a
perder de vista...
Uma linha encontra uma linha. Uma linha evita
uma linha. Aventuras de linhas.
Uma linha pelo prazer de ser linha, de ir, linha.
Pontos. Poeira de pontos. Uma linha sonha. Nunca
antes deixamos sonhar uma linha.
Uma linha espera. Uma linha esperançosa. Uma
linha repensa um rosto [...]
Eis uma linha que pensa. Uma outra executa um
pensamento. Linha de risco. Linha de decisão [...]
Uma linha renuncia. Uma linha repousa. Parada.
Uma parada a três pontos: um habitat.
61
Ao que parece, para escrever O olho e o espírito, Merleau-Ponty se serve
muito dessas notas dos cursos realizados no Collège de France, nesse período.
88
62
“Les lignes:
Celles qui se promènent – les premières qu’on vit ainsi, em Occident, se
promener.
Les voyageuses, celles qui font non pas tant des objets que des trajets, des
parcours...
Les pénétrantes, celles qui au rebours des possesseuses, avides d’envelopper, de
cerner, faiseuses de formes (et après?), sont lignes pour l’em dessous (...)
Les alussives (...)
Les folles d’énumération, de juxtapositions à perte de vue (…)
Une ligne rencontre une ligne.Une ligne évite une ligne.Aventures de lignes.
Une ligne pour le plaisir d’être ligne, d’aller, ligne. Points. Poudre de points.
Une ligne rêve. On n’avait jusque-là jamais laissé rêver une ligne.
Une ligne attend. Une ligne espère.Une ligne repense un visage (...)
Voici une ligne qui pense.Une autre accomplit une pensée. Lignes d’enjeu.
Ligne de décision (…)
Une ligne renonce.Une ligne repose. Halte. Une halte à trois crampons: un
habitat.
Une ligne s’enferme. Méditation. Des fils en partent encore, lentement...”
[tradução nossa].
89
63
Apesar de a editora Cosac & Naif ter inserido a obra Park bei Lu (Parque em
Lu) no livro O olho e o espírito, não conseguimos identificar as duas folhas de
azevinho em seu conteúdo. Em contrapartida, para embaralhar ainda mais nossa
investigação sobre o assunto, o português José Bettencourt da Câmara, em sua
tese de doutorado Expressão e contemporaneidade – a arte moderna segundo
Merleau-Ponty, apresenta a obra Teatro Botânico, de 1924-1934, citando a
passagem do texto em que o filósofo discorre sobre as folhas de azevinho
pintados por Paul Klee.
64
Imagem em anexo.
90
65
“Nosso ponto de partida não será: o ser é e o nada não é – nem mesmo: só há
o ser – fórmula de um pensamento totalizante, de um pensamento de sobrevoo –
mas há o ser, há o mundo, há alguma coisa, [...] há coesão, há sentido. Não se
faz surgir o ser a partir do nada ex nihilo (contra Giacometti e Sartre), parte-se
de um relevo ontológico onde nunca se pode dizer que o fundo não seja nada. O
que é primeiro não é o ser pleno e positivo sobre o fundo do nada, é um campo
de aparências em que uma delas, tomada à parte, talvez se estilhace ou seja
riscada a seguir (é o papel do nada), mas de que somente sei que será substituída
por outra, a verdade da primeira, porque há mundo, porque há alguma coisa,
que, para ser, não precisam, antes, anular o nada.” (VI, 119, 90). Por outro lado,
pensando o ser e o nada como unidades opostas e, consequentemente pensando
outrem como oposto de mim, ou quando Giacometti percebia a figura e fundo
que tentava expressar, Sartre tenta mostrar um Ser que não permite ver a
profundidade do mundo da vida. “A relação com [outrem], diz Sartre, é
[evidentemente?] um fato, sem o qual eu não seria eu mesmo e ele não seria
outro; [outrem] existe de fato e só existe, para mim como fato” (VI, 99, 76).
Para melhor esclarecermos esta questão, afirma Merleau-Ponty: “é graças a essa
intuição do Ser como plenitude absoluta positividade, graças a uma visão do
nada purificado de tudo o que nele metemos de ser que Sartre pensa explicar o
nosso acesso primordial às coisas, sempre subentendido nas filosofias
93
III
68
Obviamente que ao falar que a fotografia petrifica o movimento, Merleau-
Ponty estava se referindo aquela de sua época e não a contemporânea, cujos
emblemas, dificuldades e expressões se assemelham ao da pintura.
96
69
“A arte não existe sem a vida. Se um escultor quisesse interpretar a alegria, a
dor, uma paixão qualquer, ele só poderia comover-se se, de início, soubesse
fazer viver os seres que ele evoca. Pois, o que seria para nós a alegria e a dor de
um objeto inerte... de um bloco de pedra? Ora, a ilusão da vida é obtida em
nossa arte pelo bom modelado e pelo movimento. Essas duas qualidades são
como o sangue e o espírito de todas as belas artes” (RODIN, 2015, p. 46).
97
IV
que está mais além ou aquém daquilo que foi estabelecido pela ciência
ou pelo pensamento clássico. Basta observarmos o entrelaçamento de
cores, traços e planos da obra Barcos à vela70, de Lyonel Feininger71,
para atestarmos a direção de nossa investigação. O que a obra nos faz
ver, na esteira de Merleau-Ponty (VI, 261, 197) discorrendo sobre o ato
de pintar, é que:
70
Imagem em anexo.
71
Feininger “desenvolveu um engenhoso recurso de sua própria autoria, o qual
consistiu na construção de suas imagens a partir de triângulos sobrepostos que
parecem transparentes e assim sugerem uma sucessão de camadas – à
semelhança das cortinas transparentes que são usadas, às vezes, no palco de um
teatro. Como essas formas parecem situar-se uma atrás da outra, elas
transmitem a ideia de profundidade e permitem ao artista simplificar os
contornos dos seus objetos sem que a pintura pareça plana” (GOMBRICH,
1993, p. 463). A técnica desenvolvida por este pintor possibilitou-lhe produzir
obras em que a profundidade, o traçado e as cores se apresentavam ao mesmo
tempo: ao sobrepor os triângulos, a imagem ia sendo construída, sem haver a
necessidade de marcar o contorno dos objetos.
100
“Na medida mesmo em que vejo, não sei aquilo que vejo”.
(Merleau-Ponty, O visível e o invisível)
72
Ausência:
106
73
Segue o poema Ausência de Carlos Drummond de Andrade (2014, p. 464):
“Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./
Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência./ A ausência é um estar em mim./
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e
invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/
ninguém a rouba mais de mim”.
107
74
Na introdução do livro sobre ensaios sobre a questão do olhar (escritos por
diversos autores), Adauto Novaes mostra o quanto o conhecimento sensível é
tomado como algo negativo em diferentes pensadores da filosofia ocidental. Diz
ele: “Lemos em alguns autores que o conhecimento sensível é vago, confuso e
inadequado porque no mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia. A
realidade sensível jamais pode produzir um saber porque as coisas sensíveis são
ao mesmo tempo dissemelhantes, muitas e múltiplas nelas mesmas. Aquele que
se deixa seduzir apenas pelos sentidos deve assumir os riscos da incerteza ou
perder-se naquilo que vê” (NOVAES, 1995, p. 10).
75
Não é apenas em Platão que vemos a preocupação com a questão da luz. De
acordo com Ricardo Barthem (2005, p. 19-20): “Especulações sobre a natureza
da luz surgiram muito cedo na história da humanidade. Demócrito, filósofo
grego, [...] fez numerosas viagens pelo Egito, entre outros lugares, antes de se
fixar na Grécia. [...] A teoria atomista pregava que toda a matéria era constituída
109
dos objetos do mundo sensível e o Bem causa o saber das ideias do mundo
inteligível” (QUINET, 2002, p. 22).
78
Numa nota de rodapé da Metafísica, Joaquim de Carvalho (1973, p. 211)
observa sobre o capítulo I: “Este capítulo tem por fim mostrar que o desejo de
saber é natural; que há graus diversos de conhecimento – sensação, memória,
experiência, arte, ciência – e que a verdadeira ciência é a que resulta do
conhecimento teorético, especulativo, não-prático, cujo objeto é o saber das
causas ou a razão de ser. A ciência deste saber constitui a sabedoria ou
filosofia”.
79
Marilena Chauí (1995, p. 48), no ensaio Janela da alma, espelho do mundo,
apresenta uma passagem da obra Sobre a alma, de Aristóteles: “dos dois
111
II
81
De maneira geral, Merleau-Ponty, mesmo citando Malebranche várias vezes
em seus escritos, se serve de Descartes para pensar, com mais ênfase, a questão
da visão. Claude Lefort, na ocasião da morte de Merleau-Ponty, no Prefácio de
Notes de cours (1959-1961) afirma que a Dióptrica de Descartes estava aberta
em sua mesa de trabalho: “Sur as table de travail, à proximité du divan où il
s’était installé avec ses papiers, dans l’attente de la visite d’un proche, un livre
était grand ouvert: la Dioptrique de Descartes” (NC, 7). Testemunho que
também é registrado no primeiro parágrafo do capítulo Qu’est-ce que voir?, do
livro Sur une colonne absente: “Dans la chambre où il s’affaisse soudain un soir
de mai 1961, un livre ouvert, auquel il n’avait jamais fini de se repórter,
témoigne de son dernier travail: la Dioptrique” (LEFORT, 1978, p. 140)
82
Vemos em vários textos merleau-pontyanos, referências às ideias de
Malebranche, tais como: O olho e o espírito (OE, 28, 20): “segundo o dilema
sarcástico de Malebranche, o espírito sai pelos olhos para passear pelas coisas”;
Elogio da Filosofia (EP, 33): “como diz Malebranche, o nada não tem
propriedades.” Porém, o mais notório registro do autor faz parte da obra:
L’union de l’ame et du corps chez Malebranche, Biran e Bergson.
114
83
A paginação desta obra de Merleau-Ponty refere-se a edição brasileira.
116
84
Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty retoma a relação entre o próximo e
o distante: “Quando olho uma estrada que se distancia de mim em direção ao
horizonte, posso relacionar o que chamo a “largura aparente” da estrada a tal
distância – isto é, a que eu meço olhando com um só olho e em relação ao lápis
que seguro diante de mim -, com outros elementos do campo determinados
também por algum processo de medida, estabelecendo, assim, que a
“constância” da grandeza aparente depende de tais e tais variáveis, segundo o
esquema de dependência funcional que define o objeto da ciência clássica “(VI,
39, 31).
117
e indivisível. Não era isso que Cézanne tentava fazer ao atacar a tela por
todos os lados, a tal ponto de a pintura ser “construída” toda em
conjunto ao mesmo tempo? Se, de fato, queria expressar o todo
indivisível, a ordem nascente da natureza, então caberia pintar a tela
como se a pintura (a imagem) surgisse de um mundo pré-espacial. Em
Cézanne, o desenho e a cor nasciam ao mesmo tempo. Era essa
“simultaneidade verdadeira dos objetos” (S, 79, 79) que ele tentava
conduzir para a tela. Para fixá-las no plano, tal como os renascentistas
faziam, temos que decidir tornar os objetos “co-possíveis em um mesmo
plano, e [conseguimos85] isso imobilizando no papel uma série de visões
locais e monoculares, sendo que nenhuma delas é sobreponível aos
momentos do campo perceptivo vivo86” (S, 80, 79).
Só conhecemos as coisas, bem como a relação entre elas,
porque temos nossa corporeidade. Ora, é isso que crê Merleau-Ponty, na
contramão de Malebranche que acredita que é a alma quem conhece as
coisas e, como vimos, através de três formas. Sobre isso, o primeiro
afirma que nosso corpo
85
Adaptamos o verbo para a primeira pessoa do singular.
86
Ao contrário da concepção renascentista, Merleau-Ponty afirma que: “Para o
olhar natural que me dá a paisagem, a estrada ao longe, não possui “largura”
alguma que se possa, ainda que idealmente, determinar numericamente – ela é
tão larga como a curta distância –, já que é a mesma estrada, mas também não o
é, já que não posso negar que haja uma espécie de encolhimento perceptivo”
(VI, 39, 32).
118
III
IV
87
“Não vos enganeis. Não penseis que ‘recebeis’ a pintura apenas pelo olho.
Não. Sem que o saibais, vós a recebeis pelos cinco sentidos” (KANDINSKY,
1999, p. 352).
124
88
“A noção de ‘quiasma’ cumpre um importante propósito: ela visa retificar a
ideia de síntese herdada pela metafísica clássica. Alma e corpo, fato e essência,
coisa e consciência, signo e significado não se explicam mais pela mistura ou
união enquanto termos positivos: o ser não é um positivo lógico, mas ambos se
entrelaçam mutuamente sem absolutizar, em suas relações, qualquer ordem
hierárquica. A metáfora do quiasma sugere apenas que tais termos relacionados
estavam desde já intrinsecamente ligados” (SILVA, C., 2010, p. 172).
125
89
Cabe citar, aqui, o parágrafo na íntegra: “a profundidade é o meio que têm as
coisas de permanecerem nítidas, ficarem coisas, embora não sendo aquilo que
olho atualmente. É a dimensão por excelência do simultâneo. Sem ela, não
existiria um mundo, ou Ser, mas só uma zona móvel de nitidez que não poderia
apresentar-se sem abandonar o resto, - e uma ‘síntese’ destes ‘pontos de vista’.
Ao passo que, através da profundidade, as coisas coexistem cada vez mais
intimamente, deslizam umas nas outras e se integram. É então ela quem faz com
que as coisas tenham uma carne: isto é, que oponham obstáculos à minha
inspeção, uma resistência que é precisamente a sua realidade, sua ‘abertura’, o
seu totum simul. O olhar não vence a profundidade, contorna-a” (VI, 268, 203).
127
90
Imagem em anexo (três autorretratos de Van Gogh).
91
O poema Auto-retrato, de Mário Quintana (1997, p. 47), parece ir nessa
mesma direção: “No retrato que faço/ - traço a traço -/ às vezes me pinto
nuvem/ às vezes me pinto árvore.../ às vezes me pinto coisas/ de que nem há
mais lembrança.../ ou coisas que não existem/ mas que um dia existirão.../ e,
desta lida, em que busco/ - pouco a pouco -/ minha eterna semelhança,/ no final,
que restará?/ um desenho de criança.../ corrigido por um louco!”.
92
Em anexo estão inseridos três diferentes pinturas feitas (por mim) a partir de
um mesmo motivo, cujo objetivo é mostrar que não há duas obras de arte
idênticas: cada uma das imagens (bailarinas) foram elaboradas em momentos
distintos e com técnicas diferenciadas.
93
“O que conta não é o que o artista faz, mas o que ele é. Cézanne nunca teria
me interessado se tivesse vivido e pensado como Jacques-Émile Blanche,
128
II
mesmo se a maçã que ele pintara fosse dez vezes mais bela. O que nos interessa
é a inquietação de Cézanne, o ensino de Cézanne, são os tormentos de Van
Gogh, isto é, o drama do homem. O resto é falso” (PICASSO, 1999, p. 276).
129
94
Vejamos Matthews (2010, p. 174-175): “Considera-se que a pintura clássica
apresenta uma visão muito mais ‘realista’ das coisas. Ela as mostra em
perspectiva, essa grande descoberta da pintura renascentista. Seus objetos têm
linhas firmes e cores definidas, as cores que as coisas têm ‘naturalmente’ – a
neve é branca, o capim é verde etc. -, a disposição espacial dos objetos como
normalmente esperamos, e assim por diante”. Continua ele: “A primeira coisa
que deve ser dita é que qualquer obra de arte é, enquanto tal, uma criação do
artista, não uma mera reflexão de alguma realidade preexistente. [...] O que
chamamos ‘realismo’ em pintura, portanto, não é uma similitude com o que
pensamos ver na natureza, mas uma certa maneira de constituir o mundo da
própria pintura” (MATTHEWS, 2010, p. 174-5).
95
“Assim como o mapa, serve para orientar o intelecto: a perspectiva não nos dá
nenhum vislumbre da realidade” (READ, 2000, p. 14).
96
Apesar de pensar de maneira um tanto quanto diferente de Panofsky,
Merleau-Ponty busca nele uma iconografia, ou seja, uma maneira de abordar a
história da arte.
130
> Acesso em
Fonte: Disponível em: <http://telasmb.com.br/site/conteudo/blog>
03 de jun. 2015.
97
Em Representações da imagem de Cristo e das figuras bíblicas, Guillaume
Durand de Mende fala das diferentes formas de pintar o Salvador, cujo objetivo
é provocar um determinado sentimento no espectador. Afirma ele: “pintá-lo
“pintá na
manjedoura significa sua natividade; pintá-lo lo no colo materno, sua condição
infantil; pintá-lo ou esculpi-lo na cruz, sua paixão – às vezes, na própria cruz se
pintam o Sol e a Lua formando um eclipse; pintá-lo lo subindo degraus significa a
131
100
“Nos estudos da Igreja do Espírito Santo, ‘Brunelleschi’, artista italiano do
renascimento considerado o pai da perspectiva, constrói o espaço com um ponto
de fuga na linha do horizonte” (Fonte: Disponível em:
<http://www.sergioprata.com.br/cursosweb/anato/evolucao.html> > acesso em 23
de março de 2015.).
133
III
101
“E quanto àqueles dentre os modernos que apresentam esboços como
quadros, e de que cada tela, assinatura de um momento da vida, exige ser vista,
em ‘exposição’, na série das sucessivas telas, essa tolerância com o inacabado
pode significar duas coisas: ou que renunciaram de fato à obra e agora só
procuram o imediato, o sentido, o individual, ‘a expressão bruta’, como diz
Malraux, ou então que o acabamento, a apresentação objetiva e convincente
para os sentidos, deixou de ser o meio e o sinal da obra verdadeiramente feita,
porque doravante a expressão vai do homem para o homem através do mundo
comum que vivem, sem passar pelo canto anônimo dos sentidos ou da Natureza”
(S, 82-83, 81).
102
Para uma melhor compreensão disso, basta observar a maneira como os
impressionistas pintavam: ao ar livre, tentando imprimir na tela a sensação
visual que observava na natureza. Um dos exemplos é as várias versões da
Catedral de Rouen pintadas por Monet.
137
103
Merleau-Ponty (VI, 261, 197) afirma que “do mesmo modo, pode-se
perguntar por que aquele que sabe manejar com as cores também sabe usar o
‘crayon’ ou às vezes esculpir – Que há de comum”.
138
IV
104
Cf. Fenomenologia da Percepção, Cap. VI, Primeira parte.
141
105
“Como excesso aos próprios instrumentos teóricos de um autor, o
impensado não é obviamente analisado por quem o cria; no entanto, sugere uma
direção a ser explorada pelos leitores” (FERRAZ, 2009, p. 200).
106
“Não é o passado que empurra o presente nem o presente que empurra o
futuro para o ser; o porvir não é preparado atrás do observador, ele se premedita
em frente dele, como a tempestade no horizonte. Se o observador, situado em
um barco, segue a corrente, pode-se dizer que com a corrente ele desce em
direção ao seu porvir, mas o porvir são as paisagens novas que o esperam no
estuário, e o curso do tempo não é mais o próprio riacho: ele é o desenrolar das
paisagens para o observador em movimento. Portanto, o tempo não é um
processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de
minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em
uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas; a água que passará
amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba de passar está
agora um pouco mais embaixo, no vale” (PhP, 470-471, 551-552).
142
107
Cecília Meireles (2001, p. 99): “Eu canto porque o instante existe”.
143
108
Vale salientar que em seus primeiro escritos, como na Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty utiliza os termos fala falante e fala falada.
Posteriormente, como em O visível e o invisível, a terminologia passa, então,
para linguagem falante e linguagem falada.
109
Escreveu Mário Quintana (2007, p. 824): “Se um poema consegue explicar o
que quis dizer com um poema, o poema não presta”.
145
II
110
Malraux chama este homem comum de “não-artista”.
111
Na edição que utilizamos não constava o ano de publicação da obra de
Malraux.
146
112
Na verdade, todas as experiências de alguém já estão impregnadas em seu
corpo. A todo momento estão se atualizando e, por isso, não temos como
separar passado, presente e futuro.
113
Em A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty discute a relação entre a vida e a
obra de Cézanne. Em alguns momentos, como cita Merleau-Ponty, o pintor
parecia ter consciência do que sua vida transpassasse, de alguma forma, em seu
processo criativo: “Ao envelhecer, ele se pergunta se a novidade de sua pintura
não vinha de um distúrbio dos olhos, se toda a sua vida não se apoiara sobre um
acidente do corpo” (SnS, 13, 123). Noutra passagem, no mesmo texto, Merleau-
Ponty fala sobre a mútua implicação da vida e da obra: “evitemos imaginar
alguma força abstrata que sobreporia seus efeitos aos ‘dados’ da vida, ou que
introduziria cortes no desenvolvimento. É certo que a vida não explica a obra,
mas é certo também que elas se comunicam. A verdade é que essa obra por
fazer exigia essa vida. Desde seu início, a vida de Cézanne só encontrava
equilíbrio apoiando-se na obra ainda futura, era o projeto dela, e a obra nela se
anunciava por sinais premonitórios que seria um erro tomar por causas, mas que
fazem da obra e da vida uma única aventura” (SnS, 26, 136). Se a esquizoidia
aparecia nas obras do pintor, a doença só aparecia “como redução do mundo à
totalidade das aparências imobilizadoras e suspensão dos valores expressivos”,
isto “porque a doença cessa então de ser um fato absurdo e um destino para
tornar-se uma possibilidade geral da existência humana quando enfrenta de
forma consequente um dos seus paradoxos – o fenômeno da expressão -, e,
148
III
enfim, porque é a mesma coisa, nesse sentido particular, ser Cézanne e ser
esquizóide” (SnS, 26-27, 136-137).
149
Ora, o pintor sente que uma pintura, bem como o mundo, não
está acabada, pois, de alguma forma, a expressão está sempre em
andamento, isto é, ela abre um “espaço” que precisará de novas obras.
150
Nem sempre ele consegue ter a inspiração de expressar aquilo que vê. É
por isso que muitos artistas passam longos períodos sem criar sequer
uma obra. Em todo caso, ele precisa pôr-se a trabalhar para que a faísca
aconteça e o fogo pegue e se alastre. É deste modo que ele pode apreciar
o florescer da linha e da cor, dançando ao ritmo delas até amadurecerem
e caírem exaustas na tela.
A percepção do pintor lhe permite dar “existência visível o que
a visão profana crê invisível” (OE, 27, 20). Nem mesmo se pode dizer,
como fez Malraux, que o pintor moderno pinta somente a partir de si,
mas se faz arte a partir de sua relação com o mundo. Para Merleau-
Ponty (S, 87, 84), a obra moderna não é feita em um “laboratório
íntimo” longe das coisas, “cuja chave só o pintor e mais ninguém
possuiria”, tampouco é uma identidade subjetiva do pintor, como crê
Malraux, mas ela nasce de uma imbricação com o mundo, de uma “certa
relação com o ser”, ou seja, o que o artista pinta é mais um emblema de
“habitar o mundo, de tratá-lo, de interpretá-lo”. Nas palavras de
Merleau-Ponty (S, 88, 85): “o estilo é em cada pintor o sistema de
equivalências que ele se constitui para essa obra de manifestação, o
índice universal da ‘deformação coerente’ pela qual concentra o sentido
ainda esparso em sua percepção e o faz existir expressamente”.
Esse “sistema de equivalências” é a capacidade que o artista
tem de exprimir certas torções, ou certas “deformações coerentes” (S,
88, 85). Ou seja, ele tenta imprimir aquilo que percebe. Ao encontrar o
“motivo”, e com uma linguagem própria, o pintor começa por fazer
emergir “certas concavidades, certas fissuras, figuras e fundos, um alto e
um baixo, uma norma e um desvio, assim que certos elementos do
mundo assumem valor de dimensões” (S, 88, 85) às quais possibilita a
expressão. Desse modo, não importa tanto se um quadro seja feio ou
belo, “acabado” ou apenas iniciado, mas o que faz com que o pintor se
aventure na criação é procurar imprimir na tela o mistério do próprio
movimento das coisas que atingem seu olhar. Parafraseando Malraux (v.
2, p. 101): se perguntássemos a um pintor: Por que pinta dessa maneira?
A única resposta que possa considerar justa é: “Porque assim é que está
bem”. Sua arte é sempre uma tentativa de exprimir aquilo que não pode
ser expresso absolutamente, por isso é um trabalho que sempre tem de
ser recomeçado.
O que faz, por exemplo, um “Vermmer” ter uma linguagem
própria, tornando-se, por isso, uma pintura significativa perante a
história da arte? Para Merleau-Ponty (S, 98, 92),
151
III
114
Imagem em anexo.
152
115
Aqui Merleau-Ponty aponta para um pensamento semelhante ao de Sartre
(1989, p. 24). “Deus sabe quanto os cemitérios são tranquilos: não existem mais
ridentes que uma biblioteca. Os mortos estão lá: nada mais fizeram senão
escrever, há muito tempo estão lavados do pecado de viver, e, de resto, só
conhecemos as suas vidas através de outros livros que outros mortos escreveram
a seu respeito”.
116
“O Museu torna os pintores tão misteriosos para nós como os polvos e as
lagostas. Obras que nasceram no calor de uma vida são por ele transformadas
em prodígios de um outro mundo, e o alento que as mantinha não é mais, na
atmosfera pensativa dos Museus e sob os vidros protetores, do que uma fraca
palpitação em superfície” (S, 101, 94).
117
“O pintor passa por estados de plenitude e de vazio. Nisso reside todo o
segredo da arte. Estou passeando na floresta de Fontainebleau. Tenho uma
indigestão do verde. É preciso esvaziar essa sensação num quadro. O verde aí
predomina. O pintor pinta para descarregar suas sensações e visões. Os homens
apoderam-se de sua pintura para cobrir um pouco sua nudez. Pegam o que
podem e como podem. Creio que afinal não pegam nada; simplesmente
talharam uma roupa na medida de sua incompreensão. Fazem tudo à sua
imagem, desde Deus até o quadro. Eis por que o prego onde se pendura o
quadro é a ruína da pintura. Esta tem sempre alguma importância, pelo menos a
do homem que a fez. No dia em que é comprada e pendurada na parede, ela
assume uma importância totalmente diversa e a pintura está perdida”
(PICASSO, 1999, p. 275).
154
118
“A partir de 1825, viu-se aparecer como reação [ao] imperativo da linha [que
teve como autoridade nesse domínio o neoclássico Jean Auguste Dominique
Ingres] um movimento romântico cujo chefe de fila se chamava Eugène
Delacroix (1798-1863). Este movimento, ao dar mais valor à cor que ao
desenho, estimava mais os sentimentos e a individualidade do artista que as
convenções artísticas. Na França, o mundo da arte ficou desde então dividido
em dois campos. A luta de Ingres e Delacroix, entre o neoclassicismo e o
romantismo, entre a linha e a cor dominava todas as discussões e tornou-se no
tema favorito dos caricaturistas” (BECKS-MALORNY, 2005, p. 12).
155
IV
119
“O advento é uma promessa de eventos” (S, 112, 102).
120
Adaptamos a citação para a primeira pessoal do plural.
121
O pensamento racional-moderno nos mostrou que é nosso pensamento quem
vê: “para uma filosofia que se instala na visão pura, no sobrevoo do panorama,
não pode haver encontro com [outrem]: pois o olhar domina e não pode
dominar a não ser coisas, se cai sobre homens, transforma-os em manequins
movidos unicamente por molas” (VI, 107, 81).
158
“Não temos que escolher entre uma filosofia
que se instala no mundo mesmo
ou em outrem e uma filosofia que se instala “em nós”,
entre uma filosofia que
toma a experiência “de dentro” e
uma filosofia que, se possível for,
a julgue do exterior, por exemplo,
em nome de critérios lógicos:
estas alternativas não se impõem,
pois que talvez o si e o não-si
sejam como o avesso e o direito,
e a nossa experiência é talvez esta reviravolta
que nos instala bem longe de nós e no outro,
no ponto onde,
por uma espécie de quiasma,
tornamo-nos os outros e tornamo-nos mundo.
A filosofia só será ela própria
se recusar as facilidades
de um mundo com entrada única,
tanto como as facilidades de um mundo
com entrada múltiplas,
todas acessíveis ao filósofo.
A filosofia ergue-se como o homem natural
no ponto em que
se passa de si para o mundo e para o outro,
no cruzamento das avenidas”.
122
Discordamos da tradução estabelecida por Paulo Neves do termo
autre/autrui. Ele elegeu como título A percepção do outro e o diálogo. Sendo
que no original está escrito: La perception d’autrui et le dialogue, isso é que nos
faz discordar e estabelecer como novo título: A percepção de outrem e o
diálogo. E que, a nosso ver, causa uma mudança significativa na abordagem
desse tema.
123
No prefácio de A prosa do mundo, Claude Lefort (2002, p.10) fala da
provável data de escrita deste projeto inacabado: “É verdade que esses poucos
elementos não permitem fixar a data exata na qual o manuscrito foi
interrompido. Autorizam-nos, contudo, a pensar que ela não foi posterior ao
começo de 1952. Talvez se situe alguns meses antes. Por outro lado, como
sabemos, através de uma carta endereçada a sua mulher no verão precedente,
que o autor dedicava a maior parte de suas férias ao trabalho em A prosa do
mundo, é legítimo supor que a interrupção ocorreu no outono de 1951 ou, no
mais tardar, no começo do inverno de 1951-1952.”
164
124
Este tema central já aparece na Fenomenologia da Percepção.
167
125
“A carne do mundo não é explicada pela carne do corpo, ou esta pela
negatividade ou pelo si que a habita – os três fenômenos são simultâneos” (VI,
298, 227). Contudo, “é através da carne do mundo que se pode, enfim,
compreender o próprio corpo” (VI, 299, 227).
168
ser geral”. A carne é o Ser de indivisão, não pensado como algo maciço,
sólido e fechado, mas um Ser de porosidade, esburacado, que contém o
dentro e o fora, o direito e o avesso, zonas claras e opacas126...
II
126
Escreve Manoel de Barros (2013, p. 278): “Há frases que se iluminam pelo
opaco”.
127
Em Água viva, Clarice Lispector (1998, p. 74) escreve que “vou te dizer uma
coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um ‘isto’. E
escrevo um ‘isto’”. Em outro trecho afirma: “o que te escrevo é um ‘isto’. Não
vai parar: continua” (LISPECTOR, 1998, p, 95). O “isto” é utilizado pela autora
para designar algo que não pode ser dito plenamente, mas que se insinua no
próprio movimento criativo. De alguma forma, tanto o autor quanto o leitor
percebem a existência deste algo que escapa à objetivação.
169
128
Ao falar do seu processo criativo e do observador, o pintor Francis Bacon
enuncia: “gostaria que meus quadros dessem a impressão de que um ser humano
passou entre eles, como uma lesma, deixando um rastro da presença humana e
um traço dos acontecimentos passados, tal como a lesma deixa seu sulco. Creio
que todo o processo desse tipo de forma elíptica depende da execução do
detalhe e de como as formas são refeitas ou colocadas levemente fora de foco
para introduzir os traços da memória”. (BACON, 1999, p. 633). Em certo
sentido, Bacon já aponta para a importância do espectador na retomada da obra
de arte.
129
Isso nos faz lembrar da inquietação de Agostinho em relação ao tempo,
comentada, aliás, por Merleau-Ponty no início do primeiro capítulo de O visível
e o invisível (VI, 17, 15): “Agostinho dizia do tempo, que este é perfeitamente
familiar a cada um, mas que nenhum de nós é capaz de explicar aos outros.”
170
O poeta Mário Quintana (2007, p. 735), por sua vez, falou sobre
a obra de Balzac:
Balzac inicia as histórias de um jeito que já no seu
tempo devia ser sovadíssimo e, lá pelas tantas,
dava-lhe de fazer umas digressões que ninguém
130
“Ao mergulhar no mundo percebido, longe de termos estreitado nosso
horizonte e de nos termos limitado ao pedregulho ou à água, encontramos os
meios de contemplar as obras de arte da palavra e da cultura em sua autonomia
e em sua riqueza originais” (C, 61, 65-6).
131
“Alto lá, meu livrinho! Devagar! Calma agora! Chegamos ao fim da jornada,
e você ainda quer galopar adiante, sem controle, transpor a página derradeira,
como se o seu serviço já não estivesse feito” (MARCIAL apud GIANNETTI,
2008, p. 358). Em sua obra Epigrammaton, século I d.C., Marcus Valério
Marcial já apontava para autonomia do texto ao ser escrito. Paulo Leminski, em
um poema chamado Desencontrários, escreve sobre a “autonomia” da escrita:
“Mandei a palavra rimar,/ ela não me obedeceu./ Falou em mar, em céu, em
rosa,/ em grego, em silêncio, em prosa./ Parecia fora de si,/ a sílaba silenciosa”
(WEINTRAUB, 2006, P. 35).
172
132
Imagem em anexo.
133
“Não há que escolher entre o que vemos (com sua consequência exclusiva
num discurso que o fixa, a saber, a tautologia) e o que nos olha (com seu
embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se
inquietar com o entre” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 77).
134
Para ajudar a iluminar essa questão, trazemos um poema de Paulo Leminski
(apud SOUZA, 2006, p. 58) Ler pelo não: “Ler pelo não, quem dera!/Em cada
ausência, sentir o cheiro forte/ do corpo que se foi,/ a coisa que se espera./ Ler
pelo não, além da letra,/ ver em cada rima vera, a prima pedra,/ onde a forma
perdida/ procura seus eteceteras./ Desler, tresler, contraler,/ enlear-se nos ritmos
da matéria, / no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, / navegar em direção às
Índias/ e descobrir a América”.
135
“A visão [...] é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de
assistir por dentro à fissão do Ser, ao término da qual somente me fecho sobre
mim” (OE, 81, 42). Sobre isso escreve Chauí (2002, p. 162-3): “Ao fazer falar a
experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao recinto da
encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia
julgava poder explica-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro
lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata,
em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao
174
recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a
decifrar a fissão no Ser. [...] como divisão no interior da indivisão: a experiência
se efetua como aquele momento no qual um visível (o corpo do pintor) se faz
vidente sem sair da visibilidade [...]”. Enfim, fissão é a experiência que não
separa.
136
Sobre o fenômeno da duplicação do visível através do espelho – ou pela
visão indireta das coisas -, muitos pintores o abordaram em diversas obras
clássicas. Basta ver o Casal Adorfini, de Van Eyck, ou o espelho enigmático da
obra As meninas, de Velásquez. No primeiro exemplo, a pintura mostra bem
que a imagem que o espelho reflete é realmente a do casal sendo pintada. Já nos
segundo caso, não temos como verificar, ao certo, se o casal que está
aparecendo no retângulo retratado no meio da obra é um espelho refletindo o
que está sendo pintado, ou se se trata apenas um quadro pendurado na parede.
Velásquez torna esse detalhe ambíguo ao nosso olhar, dividindo a opinião dos
comentadores da obra.
175
III
137
“Sobre o nada eu tenho profundidades” – escreve Manoel de Barros (2015, p.
125).
176
138
O poeta Manoel de Barros (2013, p. 276-277), em Uma didática da
invenção, destaca esta maneira de escrever criativa: “No descomeço era o
verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo./ O delírio do verbo estava no
começo, lá onde/ a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos./ A criança não
sabe que o verbo escutar não funciona/ para cor, mas para som./ Então se a
criança muda a função de um verbo, ele/ delira./ E pois./ Em poesia que é a voz
de poeta, que é a voz de fazer/ nascimentos -/ O verbo tem que pegar delírio”.
178
139
Não é assombroso o fato de Clarice Lispector (1999, p. 11) iniciar um livro
com uma vírgula, como se a narrativa já estive em curso? Parecendo dar
prosseguimento em uma história, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres se
inicia com “, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada
fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para
deixar almoço e jantar prontos, [...]”. Outro aspecto importante é que o livro
termina com dois pontos, como se história não terminasse ali, tal como o mundo
que é inesgotável...
140
Sobre o interesse de Merleau-Ponty por Albert Michotte, recomendamos o
artigo Visão de causalidade: Merleau-Ponty em Michote, de Lester Embree. Em
um dos trechos de seu artigo, Embree (2007, p. 223) escreve: “É uma das
179
IV
Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.
141
Adaptamos para a primeira pessoa do plural.
182
142
Imagem em anexo.
183
II
143
Para um aprofundamento no assunto, recomendamos a leitura do artigo
Esquize e pulsão: o olhar segundo Merleau-Ponty: (MÜLLER-GRANZOTTO,
Marcos José. “Esquize e pulsão: o olhar segundo Merleau-Ponty”. In: Merleau-
Ponty em João Pessoa. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2012c.)
188
144
“Vanitas: (latim: ‘vaidade’). Pintura alegórica, frequentemente representando
um crânio, na qual os objetos representados destinam-se, no todo ou em parte, a
fazer lembrar a efemeridade (‘vaidade’) da vida humana” (BECKETT, 2002, p.
390).
145
Percebemos, com o hinário luterano, que a Igreja Católica já havia tido uma
divisão: luteranos e católicos.
189
146
Anamorfose é uma “pintura ou desenho executados de modo a produzir uma
imagem distorcida do objeto representado, o qual porém, quando visto de certo
ângulo ou refletido num espelho curvo, revela-se na sua verdadeira proporção;
tal técnica tem o objetivo de enganar ou divertir. Os primeiros exemplos de
anamorfose figuram nos cadernos de Leonardo da Vinci, e o termo aparece pela
primeira vez no século XVII” (CHILVERS, 2001, p. 18).
147
O que torna esse detalhe interessante e enigmático na obra de Holbein é que
não há registros de pintura de caveiras em outros quadros do pintor.
148
“Na contemplação está portanto em jogo, mais do que o belo ou alguma
satisfação pulsional, a apresentação de algo que abala, provoca, perturba. À
maneia do quadro de Hans Holbein Os Embaixadores, de 1533, que Lacan
apresenta em seu seminário 11: os dois personagens estão devidamente
paramentados, acompanhados dos mais sublimes símbolos da arte e da ciência
de seu tempo, e diante deles surge um estranho objeto alongado de aspecto
fálico. Distancie-se um pouco da obra, saia da posição em que ela certamente
lhe cativou e faça como se estivesse indo embora, dê então uma última olhadela,
de viés, recomenda Lacan – você verá então este objeto vago se transformar em
uma horrenda caveira. É graças à técnica da anamorfose, ou seja, do uso
invertido das leis da perspectiva, que tal fenômeno é possível” (RIVERA, 2005,
p. 44-5).
149
“Alguns autores interpretaram este tema comum uma assinatura enigmática:
Hohles Gebein ou Holbein” (WOLF, 2005, p. 73). “Hohles Gebein”, em alemão
significa “Osso vazio”. No caso, a caveira é, de fato, um osso vazio.
191
Holbein nos instala num solo inseguro, que nos abala, que nos
descentraliza, inserindo-nos num “lugar” onde precisamos nos
reelaborar e nos atualizar constantemente. A estranheza nos incomoda.
Ela mostra nossas faltas. Repudiemos todos os corpos estranhos que nos
atacam e que poluem a paisagem em nosso campo visual. Nossa
educação artística, imposta a partir do Renascimento, distorceu todos os
nossos conceitos e experiências, e assim, passamos a rejeitar tudo que
não é belo e bem organizado. Aquilo que é estranho nos faz entrar em
contato com as nossas frustrações, nosso dilemas, nossas angústias.
Queremos, ao contrário, o olhar angelical, amoroso e fraterno. Tememos
o desagradável, o triste, o trágico. Isso nos atemoriza. Eles estão
presentes em expressivas quantidades em nossa vida e deles queremos
nos afastar. O que Lacan nos mostra com o quadro de Holbein, todavia,
é que em nossa vida não há apenas o belo e o agradável, mas também
àquilo que nos causa estranheza e repulsa. Os embaixadores evidencia
nossa relação com o desejo enigmático presente como nadificação,
como algo que se esvai, que escapa de nossa visão ao tentarmos capturar
toda a imagem do quadro, refletindo nossas faltas, nosso própria nada.
Sobre a obra, o psicanalista afirma: “Esse quadro não é nada
mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar. Em qualquer
quadro que seja, é precisamente ao procurar o olhar em cada um de seus
pontos que vocês o verão desaparecer” (LACAN, 2008, p. 91). Assim, o
150
“[...] Lacan nos surpreende com uma inusitada aproximação, entre as
análises merleau-pontyanas sobre o olhar (em sua diferença em relação ao olho)
e as diferentes formas de pulsão tal como Freud as havia descrito nos três
ensaios sobre a sexualidade (1905d), precisamente, pulsões oral, anal e fálica,
agregando a essa lista outras duas formas, a saber, a pulsão da voz e a pulsão
escópica, esta última, por sua vez, justamente ilustrada a partir das descrições
merleau-pontyanas” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 25).
192
151
Itálico nosso.
152
“Assim, todos os mestres avançam até ao recinto reservado do Inconhecível.
Alguns deles batem lamentavelmente ali a cabeça; outros cuja imaginação é
mais ridente, creem ouvir por trás do muro os cantos de melodiosos pássaros
que povoam o pomar secreto” (RODIN, 2015, p. 46).
193
153
Imagem no final da subdivisão deste tópico.
154
“Duchamp estabelece uma convenção que nos permite, como espectadores,
fazer coisas com as pinturas que não poderiam ter sido feitas antes”
(NEHAMAS, 1995, p. 350).
194
mictório,
io, é o gesto que o coloca num museu” (COLI, 1988, p. 118). O
gesto de colocar algo que consideramos sujo nos perturba, faz-nos
faz
pensar, possui significações estranhas, embaraça nossa concepção de
arte e enleia nossa visão racional155. Afinal de contas, considerar
consi um
mictório como sendo “fonte” contraria nossas convenções e convicções
do que seja limpo, saudável e aceitável: inverter a sua função causará
nojo e, assim, o repelimos. Isso faz lembrar toda a questão da adoração
de Glauco Mattoso156 pelo pé: para ele o chulé, e todas as “impurezas”
advindas deste membro corporal, não são esquize, só o serão s para
aqueles que este tipo de situação cause mancha, estranhamento e
repulsa.
155
“Pois o urinol também diria o que, segundo Lacan em seu Seminário 11, o
pintor falaria ao contemplador: ‘Queres olhar? Pois bem, então veja isso!’ Esse
algo que é aí dado ao olho comporta um abandono do olhar como um guerreiro
deporia suas armas. Entre os projetos de Duchamp, em suas notas, está o de d
‘fazer alguma coisa que os olhos não possam suportar’” (RIVERA, 2005, p. 50).
156
Não nos cabe aqui aprofundar o assunto sobre a relação que Glauco Mattoso
tinha com a questão do gosto pelos pés e pelas impurezas advindas destes, mas
mostrar que para a grande
ande parte da sociedade esse fato é tipo como esquize, pois
mostra-nos
nos nossas faltas, nossas convenções, ou quem sabe nossos desejos
profundos e escondidos. Se há um interesse sobre o tema, recomendamos a
leitura da tese de doutorado de SILVA, Maria Aparecida ida Leite Holthausen da:
O des-curso cínico: a poética de Glauco Mattoso.
195
196
157
O médico brasileiro Gilson Barreto verificou que algumas imagens pintadas
por Michelangelo contidas na Capela Sistina tinham semelhanças com os órgãos
do corpo humano. Assim, constatou ele que o autor queria mostrar algo além da
imagem representativa. Para verificar melhor esta ideia ver: (BARRETO, 2004).
158
“Mesmo que o manto de Santa Ana seja um abutre, mesmo que admitamos
que, enquanto Da Vinci o pintava como manto, um segundo Da Vinci dentro de
Da Vinci, de cabeça inclinada, decifrava-o como abutre à moda de um leitor de
charadas (afinal de contas, não é impossível: há na vida de Da Vinci, um gosto
pela mistificação assustadora que bem lhe poderia inspirar o engaste de seus
monstros numa obra de arte) – ninguém falaria mais desse abutre se o quadro
não tivesse um outro sentido” (S, 102-103, 95).
159
Para um esclarecimento melhor sobre a relação entre a vida e a obra de arte,
especialmente a de Leonardo da Vinci e o quadro Santa Ana a virgem e a
criança, recomendamos ler nossa dissertação de mestrado: Merleau-Ponty
acerca da pintura.
197
III
160
“A criança desconhece a noção de funcionalidade prática, visto que observa
todas as coisas com olhos que não estão habituados a elas e ainda possui a
evidente capacidade de registrar a coisa tal como ela é. A noção de
funcionalidade prática só começa a ser adquirida posterior e gradativamente,
através de muitas experiências, em geral desagradáveis. Assim, no desenho
infantil, a ressonância interior do objeto se revela, sem exceção,
espontaneamente. Os adultos, sobretudo os professores, esforçam-se por impor
à criança o senso de funcionalidade prática e criticam o desenho infantil
exatamente a partir deste ponto de vista superficial: ‘o homem que você
desenhou não pode andar porque só tem uma perna’, ‘não se pode sentar nesta
cadeira porque ela é torta’, etc. A criança ri de si mesma. Mas deveria chorar. A
criança talentosa, porém, além da capacidade de eliminar o que é periférico, tem
ainda o poder de vestir o interior restante com uma forma através da qual ele se
200
163
Podemos observar esses espaços em branco, não pintados, por exemplo, nas
inúmeras aquarelas que produziu. Os trabalhos em aquarela permitem
demonstrar esse feito, porém, Cézanne deixa várias obras inacabadas, como se
não fosse possível terminá-las. Na arte moderna e contemporânea, tanto os
traços quanto os espaços em branco deixados pelo pintor são constitutivos da
própria obra, tendo importâncias semelhantes. Nas palavras de Merleau-Ponty
(2002, p. 67): “o pintor pinta tanto pelo que traça quanto pelos espaços em
branco que dispõe ou pelos traços de pincel que não efetuou”.
164
“O caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação [seios, voz, olhar,
excrementos, etc.] também estaria ligado à estrutura originariamente
polimórfica da pulsão, ou seja, ao fato de que as moções pulsionais apresentam-
se inicialmente sob a forma de pulsões parciais cujo alvo consiste na satisfação
do prazer específico de cada órgão. Pensemos no bebê que ainda não tem à sua
disposição uma imagem unificada do corpo próprio. Neste caso, cada zona
erógena tem tendência em seguir sua própria economia de gozo. A esses objetos
parciais, Lacan dará o nome de objeto ‘a’” (SAFATLE, 2009, p. 65).
203
IV
165
Merleau-Ponty nos diz que outrem é “um segundo eu mesmo e o sei em
primeiro lugar porque este corpo vivo tem a mesma estrutura que o meu” (PhP,
406, 474). Se consigo perceber outrem, se meu corpo alcança o corpo de
outrem, ele o faz através das funções sensoriais. De fato, meus olhos percebem
o corpo de outrem e minhas mãos sentem o toque reversível quando por uma
espécie de quiasma sinto fazer parte do mesmo mundo carnal que ele.
166
Constantemente escutamos que alguns pais, de algum tempo remoto (ou
alguns do interior ainda), repreendiam seus filhos apenas pelo fato de olharem
de determinada forma, e estes já sabiam que o olhar “diferente” (geralmente
pelo canto do olho, sério) significava uma surra ou um sermão mais tarde. Claro
que longe do público (parentes e amigos), pois este o impedia
momentaneamente de uma repreensão severa, adiando-a para mais tarde.
205
167
Apontamos, aqui, dois momentos em que o tradutor da obra em língua
portuguesa, pela editora Cosac & Naify, Paulo Neves, não faz distinção entre os
termos autre e autrui. Ambos, ele traduz como “outro”. Nossa proposta é fazer
adequação do termo, o qual inserimos entre colchetes – nas referências que se
seguem, desta obra, buscando ressaltar essa nossa discordância.
206
168
A noção de subjetividade é tratada, sobretudo, nos primeiros textos de
Merleau-Ponty “não como ego ou coincidência comigo mesmo, mas como
atitude existencial a partir de um fundo habitual de coexistência com o outro e
com o mundo” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2008b, p. 138-139). Em seus
últimos textos, essa noção é ampliada para uma “intersubjetividade”. Nesse
sentido, “se se parte do visível e da visão, do sensível e do sentir, tem-se da
‘subjetividade’ uma ideia inteiramente nova: não existem mais ‘sínteses’ há um
contato com o ser através das modulações ou relevos” (VI, 316-317, 241).
Assim, eu e o outrem participamos de uma mesma “carne”, somos feitos da
mesma substância, habitamos solos comuns, a tal ponto de não sabermos
distinguir o realmente que seja somente meu, ou o que seja exclusivamente de
outrem.
207
169
“Ao mesmo tempo que participo do mundo visível em que está meu
semelhante, sou dotado de uma invisibilidade que me impede de ser
coincidência comigo mesmo e com o mundo. Não obstante minha generalidade
sensível, subsiste uma impossibilidade de fato, uma alteridade radical, que é a
forma como esse filósofo fala do estranho: invisibilidade de mim e do próximo
como videntes, invisibilidade do mundo como origem”. (MÜLLER-
GRANZOTTO, 2008b, p. 348).
208
170
“[e]m momento algum, com a noção de carne como ser de indivisão,
Merleau-Ponty propõe um ponto original da visão, como se toda vidência
estivesse aí assegurada enquanto identidade. Trata-se apenas de mostrar como,
na extremidade de meu corpo, se pode haver alguém assim como outro vidente,
é porque a visibilidade do próximo também é a minha, a do meu corpo; assim
como a invisibilidade, ela acomete também a mim, que não posso ver-me
vendo” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p 32).
171
“Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo,
nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão
geral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando
aqui e agora, irradiar por toda a parte e para sempre, de, sendo indivíduo,
também ser dimensão e universal” (VI, 185, 138).
209
172
Esta descrição consta no segundo capítulo de O olho e o espírito, o qual
inserimos mais detalhamento do tópico sobre a reversibilidade do olhar (item
4.1 da presente tese).
173
Inscrever-se, aqui, não tem o mesmo sentido de elaboração linear e
instituída, mas é entendida como algo que se apresenta como ausente e que
descentra o espectador.
210
– apresenta-se
se por si mesmo, como uma visita inesperada que não
precisou ser chamada” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 25). Desta
forma, a caveira perfilada da pintura de Holbein quebra a harmonia do
quadro,
o, que a princípio não deveria estar ali, mas aparece como mancha
que polui minha visão positivista que almeja por uma representação
espacial clássica e linearmente estruturada. Esta “visita inesperada”, tal
como uma esquize, um estranhamento que a pintura faz ver, apresenta-
apresen
se como um olhar “de fora” pelo qual sou arrebatado. Mostrando, assim,
a dupla falta do sujeito174 do desejo: ao visível instituído pelo pintor e à
outrem, tal como um estranho que não se deixa apreender (da ordem do
Real).
Fonte: MATISSE, Henri. Escritos e reflexões sobre arte.. São Paulo: Cosac &
Naify, 2007, p. 183.
174
“Do ponto de vista do sujeito
eito (que surge como efeito de uma dupla falta,
simbólica e também real), o desejo – desencadeado pelo objeto que falta, que é
o “objeto a” – é sempre um desejo da falta. E isso significa que já não pode
haver relação, amor, pois há sempre ao menos uma falta
ta em jogo” (MÜLLER-
(MÜLLER
GRANZOTTO, 2012c, p. 34).
211
Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas
por sua vez, causa esquize: de alguma forma “este” se impõe em nosso
universo aparecendo como uma passividade não contrária à atividade.
O sensível, então, é tratado por Merleau-Ponty não sendo
apenas aquilo que se concebia anteriormente, como figurações de nosso
corpo psico-físico-biológico. Tampouco está interessado em alguma
instância para além do próprio sensível175. Neste sentido - e na
contramão de Platão - numa nota de trabalho de 27 de outubro de 1959,
de O visível e o Invisível, Merleau-Ponty afirma que “não há mundo
inteligível, há mundo sensível”. Prossegue ele:
175
“Foco de irradiação que incide dentro e fora, o sensível traduz a experiência
laboriosa da Carne, em seu embrionário processo de deiscência. Prenhe de
transcendência, o Ser é o que exige nossa criação a afim de experimentá-lo
impedindo a reflexão regressar ao ser berço natal, desde onde, há parto
perpétuo. É nesse sentido que a noção de ‘criação’ radicaliza a própria ideia de
experiência ontológica: o ser nos abre para a Experiência (Erfahrung) como
potência dialética na qual, originariamente, se opera o elo inextinguível entre o
em si e o para si” (SILVA, 2006, p. 179).
215
176
Itálico nosso.
216
II
177
“Os sentidos comunicam-se entre si” (PhP, 265, 308).
178
“Um cego sabe exatamente, pelo tato, o que são galhos e folhas, um braço e
os dedos da mão” (PhP, 259, 303).
217
179
Ciente deste sistema de trocas – entre o vidente e o visível – Merleau-Ponty
assegura que “[h]á topografia dupla e cruzada do visível no tangível e do
tangível no visível, os dois mapas são completos e, no entanto, não se
confundem. As duas partes são partes totais, e no entanto, não passíveis de
superposição” (VI, 175, 131).
180
“Se, reciprocamente, apalpa e vê, não é porque tenha diante de si os visíveis,
como objetos: eles estão em torno dele, até penetram em seu recinto, estão nele,
atapetam por fora e por dentro seus olhares e suas mãos” (VI, 179, 134).
219
até certo ponto, certos ângulos, certos detalhes, numa massa ainda
confusa e misturada. Sentimos algo ainda em formação que vai se
mostrando ao olhar. E ao ir se revelando uma outra massa disforme vai
se apresentando...
Queremos o primeiro contato com as coisas: a gênese do
mundo, a raiz de onde brotam todos os ramos. Nesse “lugar”, mais do
que seres ativos e pensantes, somos seres passivos e receptivos.
Empregamos nosso corpo, mas somos levados pelo fluxo do mundo da
vida. É nesse sentido que Creusa Capalbo (2004, p. 103-104) explica
que:
No sentir não há uma pura impressão do sensível,
uma pura recepção passiva dos dados; eles já vêm
misturados, a esta passividade, de uma certa
atividade que se exerce apesar da sua latência face
à tomada de consciência desta atividade. Em todo
rigor o que se deve dizer é que não há
receptividade a não ser quando ela é dada pela
espontaneidade, e vice-versa. Há passagem de
uma a outra pela dialética de cruzamento. É
preciso, porém, aprofundar um pouco mais esta
análise descritiva, pois não se trata apenas de
descrição de um processo, mas também de uma
explicação de como coexistem atividade e
passividade.
III
181
“E pode ocorrer que, quando os mestres animam a Natureza de seu ideal, eles
equivocam-se. É possível que ela seja governada por uma Força indiferente ou
por uma Vontade da qual nossa inteligência é incapaz de penetrar os desígnios”
(RODIN, 2015, p. 46).
182
Apesar de tratarmos especialmente da arte do final do século XIX e início do
século XX, optamos por introduzir esta obra contemporânea para mostrar que a
ideia de passividade é testemunhada nos procedimentos artísticos atuais.
221
183
“Poesia: Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à primeira vista,
ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é
chata como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma
surpresa, um descobrimento” (QUINTANA, 2007, p. 812).
184
Carlos Drummond de Andrade (2007, p. 574) escreve sobre a arte de
escrever: “Já fatigado de escrever em prosa,/ este vago cronista pede ao verso/
que de mansinho desabroche em rosa/ e a Raquel de Queiroz hoje se oferte/ pelo
muito que amamos em seus livros/ fraternos e pungentes, seres vivos”.
185
É claro que esta atividade-passividade não se restringe apenas ao escritor e
ao pintor. Essa experiência é sentida por artistas dos mais variados segmentos.
Também em nossa vivência diária, seja artista ou não, sentimos que não
dominamos todos os nossos atos e intenções. Somos atravessados por algo que
não dominamos e que se impõe em nossas relações e experiências.
223
Max Ernst186: “Do mesmo que o papel do poeta, desde a célebre carta do
vidente, consiste em escrever sob o ditado do que se pensa, aquilo que
nele se articula, o papel do pintor é circunscrever e projetar o que nele se
vê”.
Stéphanie Ménasé (2008, p. 224-225) também comenta alguns
artistas nos quais encontrou esboçado o tema da passividade:
186
Transcrevemos essa citação do livro O visível e o invisível, em que Merleau-
Ponty a extrai de um livro de Georges Charbonnier. Encontramos também a
entrevista de Max Ernst (1999, p. 434) no livro Teorias da arte Moderna, a qual
apresentamos, aqui, para uma melhor compreensão do tema: “É como
espectador que o autor assiste, indiferente ou apaixonado, ao nascimento da sua
obra e observa as fases do seu desenvolvimento. Assim como o papel do poeta,
desde a célebre lettre du voyant de Rimbaud, consiste escrever sob o ditado
daquilo que se pensa (se articula) nele, o papel do pintor é o de cercar e projetar
aquilo que se vê a si mesmo nele”. Merleau-Ponty também cita esta mesma
passagem em O olho e o espírito.
187
“O espaço tossiu sobre mim/ e eis que deixei de existir/ os céus rebolam os
olhos/ os olhos que não dizem nada/ e não sabem grande coisa” (MICHAUX,
1999, p. 245). Claude Lefort (1994, p. 91-93) escreve um artigo sobre a criação
em Michaux: “Michaux tem a arte de fazer ressoar as palavras de maneiras
inesperadas. [...] Num certo grau de acuidade da visão, sob o efeito do desejo de
pintar, o visível irrompe com tamanha violência que, sob o choque, o indivíduo
Michaux, ultrapassado, torna a cair abaixo de si mesmo, enfermo. [...] E de
repente a água da aquarela que lhe parecia tão boa, tão mais preferível ao
guache, essa água é dita ‘tão imensa como um lago, água demônio onívoro,
devastador de ilhotas, fazedor de milagres, destruidor de diques, extravasador
de mundos”.
188
“A nota manuscrita para ‘O grande vidro’ nos oferece um exemplo disso: ‘O
regime da gravidade -/ ministério das coincidências. Departamento/ (ou
melhor):/ Regime de coincidência/ ministério da gravidade./ Quadro ou
escultura./ Recipiente plano em vidro – [recebendo]/ todo tipo de líquidos
coloridos, pedaços/ de madeira, de ferro, reações químicas./ Agitar o recipiente
e olhar/ Por transparência –” cita Ménasé (2008, p. 225).
224
Imagem 33: “Frotagge” Les Moeurs des feuilles (1926), Max Ernst.
189
“Entregando-me cada vez mais a essa atividade (passividade), que mais tarde
viria a ser chamada “paranoico-crítica”, e adaptando aos meios técnicos da
pintura (por exemplo: raspagem de pigmentos sobre um fundo preparado em
cores e colocado sobre uma superfície desigual) o procedimento de frottage que
a princípio parecia aplicável apenas ao desenho, e procurando restringir cada
vez mais minha própria participação ativa no desenvolvimento do quadro a fim
de ampliar a parte ativa das faculdades alucinatórias do espírito, vim a assistir
como espectador ao nascimento de todas as minhas obras a partir de 10 de
agosto de 1925, dia memorável da descoberta do frottage. Homem de
“constituição ordinária” (emprego aqui as palavras de Rimbaud), tudo fiz para
tornar minha alma monstruosa. Nadador cego, fiz-me vidente. Vi. E fiquei
surpreendido e apaixonado pelo que eu via, querendo-me identificar-me com
ele” (ERNST, 1999, p. 434-436).
226
190
Citamos mais um testemunho: Em uma entrevista a James J. Sweeney, Miró
(1999, p. 439) afirmou: “Eu começava sem qualquer ideia preconcebida. Umas
poucas formas sugeridas aqui provocavam outras formas em outros pontos, para
equilibrá-las. Estas, por sua vez, exigiam outras. Parecia interminável. Foi
necessário pelo menos um mês para produzir cada aquarela, que eu retomava
dia após dia, para cobrir novos pontos minúsculos, estrelas, ondas, pontos
infinitesimais de cor para conseguir finalmente um equilíbrio total e complexo”.
191
Eis mais um exemplo: “Quando estou no meu quadro, não tenho consciência
do que estou fazendo. Só depois de uma espécie de período de ‘conhecimento’ é
que vejo o que estive fazendo. Não tenho medo de fazer modificações, de
destruir a imagem, etc., porque o quadro tem uma vida própria. Procuro deixar
que esse mistério se revele” (POLLOCK, 1999, p. 556).
228
filosofia assim compreendida é tal qual uma obra de arte. Esta ideia de
filosofia, Merleau-Ponty encontrou na pintura de Cézanne.
Ao seu filho, Cézanne (1999, p. 19) lamenta-se: “não tenho a
magnífica riqueza de colorações que anima a natureza”. De alguma
forma, o pintor percebia que a natureza estava para além daquilo que ele
poderia expressar em obra. Também relatou a Gasquet a passividade
que experienciou ao pintar a Velha do rosário: “Este maravilhoso
castanho-azulado apoderou-se de mim, cantava na minha alma. Estava
completamente submerso nele” (CÉZANNE, 1993, p. 56). Não somos
“apanhados”, vez ou outra, por determinada cor? Não há trechos de
músicas que se apoderam de nós, os quais cantarolamos o dia inteiro,
mesmo que não queiramos? De alguma forma, observamos que algumas
substratos do mundo cultural se apoderam do nosso corpo e espírito e
guiam nossos pensamentos e ações.
Como a passividade se dá na obra de arte? Ela aparece na
pintura como pequenas deformações coerentes, como equívocos, como
pequenos erros. Na percepção do mundo há um equívoco, mas ele não
determina a percepção, tampouco é determinado por ela. A percepção
tem rastros, restos, um equívoco que faz com que agimos “sem saber”
qual o próximo passo a ser dado. No equívoco nós não sabemos por que
determinados traços foram impressos na tela de um jeito que não
tínhamos planejado a priori. São as pequenas distorções que aparecem
na pincelada do pintor e que não se deixa apreender – é aquilo que
escapa ao domínio do próprio artista. Em suma, a criação artística tem a
ver com a espontaneidade que atravessa a ação do pintor, que submerso
em seu trabalho, presencia o inédito e inesperado acontecer em sua obra.
Fazendo parte do processo criativo do artista, a passividade
também se estende ao espectador moderno. Ao olharmos para uma
pintura sentiremos que nossa visão também é atravessada por uma
passividade. Assim, nosso olhar que parecia ser o agente único da ação,
juntamente com a teoria merleau-pontyana, passa a ter uma dupla
função: atividade e passividade num único gesto, num mesmo
movimento – o fato de olhar e ser também olhado pela obra –. “É
preciso desacostumar a conceber a criação como uma modalidade da
atividade pura”, comenta Ménasé (2008, p. 243). Desse modo, ao nosso
pequeno mundo, abre-se outras perspectivas para além daquilo que
imaginamos poder existir.
IV
229
192
Obviamente, segundo determinados comentadores, como Sigmund Freud.
230
faltas. Ao ver-se diante de suas faltas, ele sente que um desejo foi-lhe
provocado. É o desejo de preencher um vazio, uma falta, que a obra lhe
chama a atenção. Porém, é um desejo que nunca pode ser realizado de
fato.
O espectador pinta com os olhos da mesma forma que o pintor
com as mãos. Os órgãos são diferentes, porém, tanto o gesto visual
quanto o gesto manual fazem parte de um mesmo universo carnal. Um
produz algo visível, o outro trabalha com o virtual (exceto naquelas
obras em que há a necessidade de colocar-se como autor, onde a obra
esteja inacabada e precisa da inserção do outro para continuá-la193). Se
realmente meu olhar pode “esposar as coisas”, como nos diz Merleau-
Ponty, então posso também pintar com os olhos. É um gesto virtual que
delineia no horizonte, a partir da retomada da obra, um outro possível
exemplar. A obra, ao se abrir, amplia-se, multiplica suas significações e
possibilidades. De alguma forma, ela fala ao espectador, pede-lhe que a
observe, que lhe empreste substratos carnais; mas ele, meio
timidamente, meio sem jeito, como se não soubesse direito o que fazer,
vai adentrando no obscuro desdobrar-se dela. E tateando por entre
linhas, cores e formas vai produzindo um movimento que se entrelaça
com seu corpo, alcançando o mundo, e arrastando consigo uma série de
desejos, faltas, vontades....
O que nos desconserta não é o convencional e o equilibrado,
mas àquilo que nos faz agir. A “grande Pintura194” equilibrou o olhar do
espectador, fixando-o numa contemplação prazerosa. A pintura
moderna, ao contrário, solicita o trabalho do espectador, deslocando-o
de seu lugar contemplativo, fazendo-o movimentar-se e entrelaçar-se
com o próprio ato criativo. Mais do que vidente, o espectador moderno
da arte é um fazedor: ele retoma a pintura, movimenta o seu corpo, e
com um gesto sensível dá continuidade à cor e ao traçado que o artista
deixara inacabados. Mais do que fornecer-lhe dados do mundo cultural,
a pintura provoca-o, instiga-o a aprender novos modos de ver o mundo,
algo semelhante ao cego que adquire a visão no decorrer da vida. Se a
obra não lhe causa nenhum impacto, então deixa-a num momento
posterior ao olhá-la. Entretanto, se a pintura o capturou, se esta o tocou
profundamente, então atingiu não-sei-o-quê de sua carne – seu “entre” –
, levando o espectador a interagir com ela. Ela o provoca: pede que a
193
Em que o espectador, de fato, precisa pegar o pincel e continuar a pintura.
194
Alguns livros de história da arte denominam a pintura renascentista como a
“Grande Pintura”.
232
Com meu corpo, sei que vejo. A partir desta visão minha, vejo
que o outro também vê. Quando percebo que o outro vê e me vê
234
195
“Essa visão devoradora, para além dos ‘dados visuais’, dá acesso a uma
textura do Ser da qual as mensagens sensoriais discretas são apenas as
pontuações ou as cesuras, textura que o olho habita como o homem sua casa”
(OE, 27, 20).
“Tal é, talvez, a razão da perturbação diante da obra inacabada; é que
ela nos coloca brutalmente em face de uma ambiguidade essencial de
que preferimos, o mais das vezes nos afastar. O que desconcerta não é
que a última parte do discurso nos seja roubada, que o fim que o
escritor almejava seja doravante inacessível, pois que de fato agora
temos a certeza de que nunca será alcançado; é que, no mesmo
momento, devíamos descobrir a necessidade inscrita na obra – o
movimento profundo pelo qual a obra se instala na palavra para abrir-
abrir
se a um inesgotável comentário do mundo, advento a uma ordem da
existência onde parece...”
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS:
REFERÊNCIAS
De Maurice Merleau-Ponty196:
196
Para uma melhor verificação e compreensão do leitor, dispomos também, em
paralelo às obras originais, as referências das traduções disponíveis em língua
portuguesa utilizadas ao longo do presente estudo. Valemo-nos, quando
necessário, de eventuais correções de tradução, as quais indicaremos em notas
de rodapé. Resolvemos utilizar as abreviaturas costumeiramente usadas nas
obras sobre Merleau-Ponty, dispostas ao lado das respectivas referências.
250
Sobre Merleau-Ponty:
Obras Gerais:
_____. Paul Cézanne. São Paulo, Abril Cultural, 1978 (Coleção Mestres
da Pintura).
_____. Escritos e reflexões sobre arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2007.
ANEXOS
“Ao fim de cento e quinze sessões, Cézanne abandonou meu retrato para
voltar a Aix. ‘Não estou descontente com a frente da camisa’, disse-me
disse
ao partir. [...] ‘Tente compreender, senhor Vollard, o contorno foge-me’.
foge
É difícil imaginar – escreve ainda Vollard – até que ponto, em certos
dias, o seu trabalho era longo e difícil. No meu retrato existem, na mão,
dois pequenos pontos em que a tela não está coberta. Fi-lo Fi notar a
Cézanne. ‘Se a minha sessão desta tarde no Louvre for boa – respondeu-
me -,, talvez encontre amanhã o tom justo para tapar esses espaços.
Compreenda, senhor Vollard, se pusesse aí qualquer
ualquer coisa ao acaso,
seria forçado a recomeçar todo o meu u quadro partindo desse ponto’”
(ELGAR, 1987, p. 130).
(A experiência de ver esta obra no Petit Palais,, em Paris, em janeiro de
2015, inspirou o prólogo desta tese).
264
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