Olhar e Passividade Na Pintura Segundo Merleau-Ponty

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

OLHAR E PASSIVIDADE NA PINTURA SEGUNDO MERLEAU-


MERLEAU
PONTY

AMAURI CARBONI BITENCOURT

FLORIANÓPOLIS – SC
2015
Amauri Carboni Bitencourt

OLHAR E PASSIVIDADE NA PINTURA


SEGUNDO MERLEAU-PONTY

Tese submetida ao Programa de


Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Santa
Catarina, na área de Ontologia,
para a obtenção do Grau de doutor
em Filosofia.

Orientador: Prof. Marcos José


Müller, Dr.

Florianópolis
2015
Esta tese é dedicada a todos os artistas que em seus processos
criativos
e tentativas de falar sobre sua arte
não foram compreendidos.....
AGRADECIMENTOS

Creio que uma das principais virtudes que o ser humano possa
manifestar é o sentimento de gratidão! Afinal, sozinhos conseguimos
fazer muito pouco. Mesmo aos que se consideram autodidatas, seus
aprendizados, criações e trajetórias são ampliados quando há a inserção
do outro em seu caminho. Bem sabemos que algumas vezes dificultando
o processo e em outras facilitando-o.
Em primeiro lugar minha gratidão é pela Energia que me
mantém vivo e me impele a prosseguir adiante.
Em segundo lugar gostaria de agradecer aos meus pais –
Custódio Bitencourt (in memoriam) e Selvina Carboni Bitencourt – pela
vida e por me incentivarem a estudar, desde tenra idade.
Aos meus familiares e amigos, especialmente meus irmãos,
irmãs, cunhados, cunhadas, sobrinhos(as), por entenderem (às vezes
nem tanto) a minha ausência/presença em datas especiais e importantes
para os encontros, pessoas cujos enlaces fazem com que a vida tenha um
pouco mais de sabor e sentido. Não tenho como citar os nomes, pois
correria o risco de esquecer algum deles, levando-me a uma situação
delicada e indesejada. Cada um sabe a importância que tem em minha
existência.
Um agradecimento especial aos parceiros de baralho,
jogo/brincadeira que me deixa mais tranquilo e mais gordo (comidas!),
bem como partícipe de muitas risadas e disputas!
Manifesto um agradecimento especial aos que participaram mais
efetivamente durante a elaboração desta tese. Cito alguns: Reinaldo
Valmor Marcelino, Yuri Jean Fabris, Patrícia Mônica Moretti, Evandro
Jair Duarte, Marcelo Cesar da Cunha, APAE de Rio do Sul, Greice M.
Fontanive, Elizia Cristina Ferreira, Geane Kantovitz, José Carlos
Mendonça, Astrobilda e Godofredo1.
Aos amigos Luiza Helena Hilgert, Juliano Tomasel e Vitória
Hilgert Tomasel (pequena deusa Tiburça) por me acompanharem em
alguns locais importantes em Paris/França.
Agradeço aos gestores, colegas de trabalho e alunos das
instituições em que trabalho e trabalhei durante este período: Instituto

1
Caso eu tenha esquecido de algum nome sinta-se homenageada (o) por
Astrobilda e Godofredo (obviamente, a lista não se restringe a essa que fiz:
há muitos outros nomes!).
Federal de catarinense (IFC – Campus de Rio do Sul), Uniasselvi de
Indaial e Famesul de Rio do Sul.
Tenho um carinho especial por Ferena Loch, por ter acreditado
em meu trabalho como artista, cujo incentivo e ajuda considero
essencial para a minha chegada até aqui.
A leitura cuidadosa e atenciosa de Elisabete Olinda Guerra
deixou a tese livre de alguns vícios e distorções de escrita, os quais
cometemos quase imperceptivelmente, mas percebidos aos olhos atentos
do outro. Obrigado Bete pela leitura!
Agradeço ao Departamento de Pós-Graduação em Filosofia da
UFSC: Ângela Maria Rachadel Gasparini e Irma Iaczinski, servidoras
técnico-administrativas.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia e a todos
os professores que batalham por um ensino de qualidade e por uma
educação digna e virtuosa.
Meu muitíssimo obrigado pelos professores doutores (as):
Ida Mara Freire: especialmente por me incentivar a tornar a
tese mais singular em termos de arte e criação.
Maria Aparecida Leite: pela participação da banca de
qualificação e pelas dicas sobre o enlace entre Merleau-Ponty e Lacan.
Claudinei A. de Freitas da Silva: pela “correção” cuidadosa do
texto de qualificação, possibilitando uma melhora considerável na
elaboração da tese. Professor em que a educação e o carinho ficam
evidentes à medida em que nos aproximamos dele.
Faço, aqui, também, um agradecimento aos demais membros da
banca que aceitaram o convite de ler e dar suas contribuições para o
aprimoramento desta tese.

Agradecimento especial:
Ao orientador Marcos José Müller, que me acompanha desde a
Graduação em Filosofia na UFSC (Trabalho de Conclusão de Curso),
Mestrado (Dissertação) e Doutorado (tese). Presença e ausência
importantes para o meu aprendizado de escrita e de leitura, mas de cujo
contato sempre saio mais “amplo”. Foram mais de 10 anos de uma
frutífera convivência que renderam escritos e telas muito mais além do
que eu imaginara inicialmente. Seus preciosos ensinamentos, que
recolhi qual flores plantadas em um caminho, levarei para a vida toda.
“Os frutos são mais constantes.
Gostam de ser pintados.
Parecem sentar-se ali e pedir desculpa por estarem cansados.
Transmitem o pensamento através dos seus aromas.
Apresentam-se com todas as fragrâncias, falam dos campos que
deixaram,
da chuva que os nutriu, dos alvoreceres que viram.”
(Cézanne, citado por Joachim, Gasquet)

“[...] as coisas chamam meu olhar, meu olhar acaricia as


coisas, sente seus contornos e seus relevos, entre ele e elas
vislumbramos uma cumplicidade.”
(Merleau-Ponty, O visível e o invisível)

“A carne nos abre para uma fundamental passividade na qual


atividade e passividade, sujeito e objeto, não mais mantêm seu sentido
tradicional”.
(Shepherdson, Uma libra de Carne)
RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo mostrar a articulação entre atividade e


passividade, seja do artista, seja do espectador, na experiência artística.
Imerso nesta atividade-passividade, o pintor transmuta para a tela o
enigma que percebe em seu contato com a natureza. Aprendendo com
saberes culturais que lidam com o mundo sensível, Merleau-Ponty
pretende fazer uma filosofia tal como uma obra de arte. A pintura, que
constitui um desses saberes, instala-se no mundo sensível e, com isso,
revela a Merleau-Ponty a tarefa de aprofundar a temática do olhar. O
olhar exprime, de acordo com o filósofo, um “quiasma” entre o visível e
o invisível. Nesse sentido, contra o “pensamento de ver”, tipicamente
cartesiano, o olhar é tratado como um enigma. Mais além de querer
representar a natureza na tela, o pintor quer imprimir o todo indivisível,
a natureza em seu estado de origem. É a partir deste ponto de vista que o
filósofo não recorre à história da filosofia ou ao mundo científico para
constituir a sua ontologia, mas à história da arte. Mais do que isso, é na
frequentação às obras de arte que Merleau-Ponty opera uma verdadeira
escuta às diferentes camadas de Ser reveladas pela experiência sensível
em sentido amplo. Entendida como Ser Bruto, a experiência sensível é
primeiramente a imbricação (empiètement) recíproca das imagens
visíveis, bem como o salto (enjambement) para este domínio invisível,
que são as criações (do espírito selvagem) mais além de cada imagem,
até o limite daquilo que se doa não como imagem, mas como precessão
(précession) de um estranho como outrem. Ademais, este trabalho
reafirma a importância do espectador na retomada da obra de arte, tarefa
que faz empregando o seu corpo, que é um correlato do mundo, em que
o olhar, além de contemplar, pode fornecer substratos para uma criação,
até o limite em que é surpreendido por algo que se impõe como
alteridade. A pintura, assim, mostrará que o espectador experimenta
uma dupla passividade: ao quadro e ao olhar do estranho, que se
assemelha aquela vivida pelo próprio pintor, em parte, passivo à
imagens que lhe vem do mundo e da história; mas também passivo a sua
própria intimidade que se revela como estilo. Essa dupla passividade
tem uma relação com a dupla falta do sujeito do desejo, salientada por
Jacques Lacan no Seminário XI.

Palavras-Chave: Ontologia; Atividade-passividade; Pintura; Maurice


Merleau-Ponty.
RÉSUMÉ

Cette recherche vise à montrer la articulation entre activité et passivité,


soit de l'artiste soit du spectateur, dans l'expérience artistique. Submergé
par cette activité-passivité, l'artiste transpose sur la toile l'énigme qu'il
perçoit en contact avec la nature. En apprenant avec les savoirs culturels
dans le rapport avec le monde sensible, Merleau-Ponty a l'intention de
faire de la philosophie une œuvre d'art. La peinture, caractérisée comme
l'un de ces savoirs, s´installe dans le monde sensible et, par conséquent,
révèle à Merleau-Ponty la tâche d'approfondir la thématique du regard.
Selon le philosophe, le regard exprime un "chiasme" entre le visible et
l'invisible. En ce sens, par opposition à la "pensée de voir", typiquement
cartésienne, le regard est traité comme une énigme. Au-delà de
représenter la nature sur la toile, le peintre veut imprimer le tout
indivisible, la nature dans son état d'origine. En partant de ce point de
vue, le philosophe ne fait pas appel à l'histoire de la philosophie ou au
monde scientifique pour construire son ontologie, mais à l'histoire de
l'art. Plus que cela, en fréquentant les œuvres d'art, Merleau-Ponty opère
une véritable écoute aux différentes couches de l'Être dévoilées par
l'expérience sensorielle dans un sens large. Entendue comme Être Brute,
l'expérience sensible est d´abord l'empiètement réciproque d'images
visibles, ainsi que l'enjambement dans ce domaine invisible qui
comprend les créations (de l'esprit sauvage) au-delà de chaque image,
jusqu'à la limite de ce qui ne se présente pas comme image, mais comme
la précession d'un étranger caractérisé par l'autrui. En outre, cette étude
réaffirme l'importance du spectateur dans la reprise de l'œuvre d'art par
la médiation de son corps, celui-ci étant une institution du monde (en
corrélation avec le monde). Dans cette relation, le regard, au-delà de la
contemplation, peut fournir des substrats pour une création jusqu'à ce
qu'il soit surpris par quelque chose qui lui est imposée : l'altérité. La
peinture montrera donc que le spectateur éprouve une double passivité:
l'une en rapport au tableau, l´autre liée au regard de l'étranger. Cette
expérience ressemble à celle vécue par le peintre lui-même, en partie,
passif à des images qui viennent du monde et de l'histoire, mais aussi
passif à sa propre intimité qui se révèle comme style. Cette double
passivité a une relation avec la double absence de l'objet (le double
manque du sujet) du désir, mise en évidence par Jacques Lacan dans le
Séminaire XI.

Mots-clés : Ontologie. Activité-Passivité. Peinture. Merleau-Ponty.


LISTA DE ABREVIATURAS

C Causeries (1948)
EP Éloge de la Philosophie et autres essais
IP L’instituition/ la passivité
NC Notes de Cours
OE L’Oeil et l’Esprit
Parc1 Parcours
Parc2 Parcous deux
PM La prose du monde
PhP Phénoménologie de la Perception
PPE Psicologia e pedagogia da criança
PrP Le Primat de la perception
RCF Résumés de cours
RCS Merleau-Ponty na Sorbonne
S Signes
SC La struture du comportement
SnS Sens et non-sens
UAC L‘union de l’ame et du corps chez Malebranche, Biran et
Bergson
VI Le visible et l’Invisible
SUMÁRIO

SUMÁRIO ..............................................................................................19
PRÓLOGO: VER-SE VENDO .............................................................21
1 INTRODUÇÃO: UMA FILOSOFIA TAL QUAL UMA OBRA
DE ARTE ................................................................................................29
2 ONTOLOGIA E PINTURA: O VISÍVEL ........................................47
2.1 De Cézanne à busca pela expressão da gênese do ser ...................50
2.2 Mais além das essências: pintura e transcendência .......................66
2.3 Cor, linha e movimento como desdobramentos do visível ...........80
3 ONTOLOGIA E OLHAR: O INVISÍVEL .....................................105
3.1 Do pensamento de ver ao olhar como enigma ............................108
3.2 A profundidade como idealidade de horizonte ...........................126
3.3 A formação das imagens e a idealidade pura.............................. 143
4 ONTOLOGIA E OUTREM: A PASSIVIDADE ............................163
4.1 Reversibilidade do olhar ....... ......................................................165
4.2 A esquize do olho e do olhar na pintura..... .................................184
4.3 Por uma reabilitação ontológica do sensível............................... 213
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ..........................................................237
REFERÊNCIAS ...................................................................................249
ANEXOS ...............................................................................................263
PRÓLOGO: VER-SE VENDO

Paris, 2015. É inverno. A chuva cai banhando os corpos retraídos,


cujos movimentos buscam pela experiência inaugural. A cidade em
penumbra, num acinzentado que não permite o olhar distinguir bem um
objeto de outro. Os prédios antigos saltam ao olhar, fazendo uma
reverência fúnebre ao turista deslocado. As pessoas falam, gesticulam,
conversam... Linguagem que não o consegue agarrar. São palavras
soltas ao entendimento, quase-compreensíveis, esparsas, intercaladas,
parecem arrastar-se vagarosamente até sumirem ao sabor das ruas
ensopadas. Surge um palácio antigo: é menor do que aquele que se
impõe em frente, suntuoso, majestoso! As portas são pesadas. As
paredes são altas, espaçosas, e abrigam objetos de arte. Há esculturas,
pinturas, desenhos... São tantos que embaralham a visão atenta por
encontrar alguma que lhe é familiar. Descobre novos visíveis,
expressões ainda não sentidas, artistas em seus anonimatos ante o
espectador em curso. Algumas o surpreende; outras, frustram-no.
Algumas impressionam pelo tamanho, outras pela expressividade
reduzida a pequenas pinceladas. Há aquelas que brilham, que querem
se mostrar, aparecer, chamar a atenção do vidente, e outras que
procuram se esconder. Ao girar seu corpo por entre as obras é
arrebatado por uma que se destaca. Mais do que isso: ao mirá-la,
agiganta-se. Cala o vidente. Seus sentidos, de súbito, são ampliados.
Sente sensações que não consegue definir ao certo. Seu corpo vai sendo
inundado por sabores, sensações, lembranças... A imagem transpassa o
seu corpo e seu espírito, fazendo adormecer a razão instituída. Já não
possui mais pensamento, apenas mergulha no interior da imagem. Vê
Vollard que aparece deprimido, olhando para baixo, sem paciência,
inquieto, tedioso... Nas mãos há dois pontos deixados em branco que o
incomodara tempos antes, fazendo-o interrogar o pintor. O corpo é
iluminado por uma janela posicionada no lado esquerdo. Parece estar
sentado e em pé ao mesmo tempo. O pintor demora-se no quadro. Os
traços do contorno dão a sensação de que quererem ir-se embora.
Estão cansados de ficar ali posando. As coisas se mexem, imbricam-se,
deslocam-se. Precisam grudar nas bordas para não se desprenderem da
obra. Vollard se movimenta: um movimento que é intermitente, em
fluxo, meio que em câmera-lenta, devagar... Uma mão é visível, a outra
quase-visível. Se entrecruzam como a encruzilhada das pernas. A
expressão mostra um desconforto. Um lado é iluminado e aparente; o
outro, obscuro e ausente. Dos dois pontos sinalados na mão é possível
reiniciar toda a obra. Personagem
onagem apreensivo, aflito. O artista também.
Espectador que experimenta um paradoxo de encantamento e
estranheza. Encanto por estar diante do mestre; estranho por ser um
quadro pesado. Encanto pela profundidade que o quadro faz ver;
estranheza pelos tons escuros
scuros e sombrios. A relação parece inverte-se:
inverte
o vidente coloca-sese no lugar do modelo. É ele, ali, que está sentado em
pose. Cansa-se.se. Por horas e horas ficou sentado. Quer levantar-se,
levantar
porém hesita. Quer ir embora, mas detém-se. Inquieta-se se com o outro
que
ue pinta. Não sabe exatamente o que o aborrece: se é a ação do outro
ou sua reação diante do outro. O pintor espera, pensa, reflete. Mistura-
Mistura
se com ela. Emerge na cena, tentando ressurgir. Sonha em trazer para o
fora a experiência do dentro. Outro este que mancha a sua paciência.
Outro que também provoca rachadura em sua vontade. Outro ainda que
perfura o seu corpo, e que fende o seu olho. Quando vê o outro,
percebe-se visto. Agora ele pinta. Sente que o mundo todo quer entrar
na tela. Mundo que atravessa seu ser, subtraindo-se se do visível. Mundo
que o esconde, jogando-o o numa caverna em que precisa varrer o pincel
no branco para se libertar. Consegue ver raios esparsos de
luminosidade. Segue em direção à luz até atingir o exterior da caverna.
Não consegue
dizer
zer tudo o que
viu. Tampouco
entende a
verdade que lhe
aparece numa
configuração
para além
daquilo que
consegue
explicar. Seu
olhar foi
contaminado
pelas coisas
temporais e
espaciais. Olhar
que também foi
iluminado pelo sol. Seu corpo foi manchado pelas cores res e traços que se
desprendem das paredes. Emerge. Observa a tela. Olha o modelo.
Inquieta-se.
se. Há dois pontos ainda que precisa colocar o tom certo. Ou
terá que recomeçar toda a obra. Experimenta a frustração da tarefa
inacabada, inalcançada. Por outro lado,
do, sente a emoção de algo sendo
dito - a partir dele, por ele, com ele – promovendo novas significações...
Vê coisas que não dá conta em imprimir na tela. Também não sabe, ao
menos, dizê-lo o que seja. Todavia, precisa ser dito novamente... Dúvida
que aparece. Incerteza. Estranhamento. Aflição. Indagação: pintor?
Modelo? Espectador? Ou apenas alguém tentando fazer uma filosofia
tal qual uma obra de arte...
“Um pintor como Cézanne,
um artista, um filósofo
devem não apenas criar
e exprimir uma ideia,
mas ainda despertar as experiências
que a enraizarão nas outras consciências.
Se a obra é bem-sucedida, ela tem
o estranho poder de ensinar-se ela mesma.
Seguindo as indicações do quadro ou do livro,
fazendo comparações,
esbarrando de um lado e de outro,
guiados pela clareza confusa de um estilo,
o leitor ou espectador acabam por redescobrir
o que lhes quiseram comunicar.
O pintor pôde apenas construir uma imagem.
Cabe esperar que esta imagem
se anime para os outros.
Então a obra de arte
terá juntado vidas separadas,
não existirá mais apenas numa delas
como um sonho tenaz
ou um delírio persistente,
ou no espaço como uma tela colorida:
ela habitará indivisa em vários espíritos,
presumivelmente
em todo espírito possível,
como uma aquisição para sempre”.

(Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne)


29

1 INTRODUÇÃO: UMA FILOSOFIA TAL QUAL UMA OBRA


DE ARTE

“A filosofia não é serva nem senhora da história”.


(Merleau-Ponty, Signos)

Propomo-nos continuar uma hipótese de trabalho circunscrita


em nossa dissertação de Mestrado – Merleau-Ponty acerca da pintura –
em que investigamos as contribuições das artes na elaboração de uma
filosofia ontológica, mais precisamente, no momento em que Merleau-
Ponty recorre à pintura e aprende com ela. Adentrando no mesmo
universo misterioso que persegue o pintor no momento da criação, o
filósofo se instala num mundo pré-reflexivo e nos faz ver com palavras
poéticas, – quase plásticas - sobretudo em O olho e o espírito,
elaborando textos que seguem o processo criativo tal qual uma obra de
arte. O que ele faz não é analisar obras artísticas, tampouco ilustrar
teorias a partir delas. Nesse sentido, é necessário, assim, “um filosofar
que aceite a autonomia da arte e do artístico, e que aceite a pensar com a
arte, e não sobre a arte” (BRAIDA, 2014, p. 25). Não se trata, desse
modo, de seguir a tradição na qual se espera que a filosofia emita suas
opiniões e conselhos sobre a vida e o mundo, numa tomada de posição,
elaborando teses e conceitos, retomando sistemas filosóficos que, ao
contrário de vivificar e acender o fogo do espanto – base de todo
filosofar – cai, por consequência, num jogo de retórica e dialética que
muito pouco contribuem para pensar os problemas da
contemporaneidade. Ora, o que Merleau-Ponty quer é justamente o
contrário: recuperando o poder de interrogação a partir da inserção do
homem no mundo, num caminho aquém do mundo pensado e
cristalizado pelo saber humano, reencontrar, pois, o espanto original, o
mistério da percepção que o pintor experimenta em seu trabalho ao
atentar para o fato de que não consegue separar a visão2 do visível. Esta

2
Em nosso estudo tomaremos o conceito de olhar de forma semelhante ao de
visão, exceto quando abordarmos o olhar lacaniano como sendo objeto da
pulsão escópica. Esta diferenciação se fará com maior ênfase no tópico 4.2 A
esquize do olho e do olhar na pintura.
30

interrogação interminável entre quem vê e quem é visto, também é


experimentada como uma espontaneidade que habita o momento
criativo, fazendo com que o artista não tenha poder absoluto sobre seu
procedimento. Isso também é coextensivo ao espectador na retomada da
obra. É nesse ponto que pretendemos retomar e ampliar nosso trabalho.
Nossa tese parte do pressuposto merleau-pontyano de fazer
“uma filosofia como uma obra de arte, um objeto que pode suscitar mais
pensamentos que os que nela estão contidos” (VI, 250, 1883). Esta
filosofia deverá também conservar “um sentido fora do seu contexto
histórico, que não tem mesmo sentido a não ser fora desse contexto”
(VI, 250, 188-189). Se para arquitetar este projeto de maneira diferente
devemos sair do seu contexto histórico então teremos, pois, que
investigar outras áreas do conhecimento humano e reaprender novas
maneiras de ver e pensar. Assim, propomo-nos adentrar no mistério da
experiência artística, sobretudo o da pintura, para erigirmos uma
ontologia que nos permita um acesso – indireto – ao Ser. Mergulhamos
neste oceano de cores e texturas para em, determinado momento,
ressurgirmos com uma obra que possa ocasionar novas experiências nos
leitores. Mais além de uma tese do saber filosófico, procuramos escrever
de forma a entrarmos – ao menos em partes – no fluxo do pensamento:
uma linguagem conquistadora, no seu surgimento, em sua gênese,
semelhantemente a um artista em seu processo criativo. Almejamos por
escrever tal como Clarice Lispector (1998, p. 14) “como quem aprende”,
como se fotografássemos “cada instante”, aprofundando as palavras
como se pintássemos “mais do que um objeto, a sua sombra”, ou
melhor, o seu “entre”. É desse modo, à luz de Merleau-Ponty, que
procuramos desenvolver um texto como se estivéssemos experienciando
o ato de pintar: retomando a tradição, mas sem nos atermos a ela,
traçando palavras, colorindo signos e silêncios, iremos experimentando
e mostrando que o olhar é muito mais do que o simples ato de ver um
objeto. Diante disso, temos um pedido para fazer ao leitor: esta tese não
deve ser lida de forma analítica e linear. Afinal, ela também não foi
escrita desta maneira: muitos do temas são retomados por algumas vezes
com o objetivo de mostrar que as coisas, tal como uma Gestalt, não se
mostram uma após a outra, mas aparecem em conjunto: um todo que vai

3
As referências das citações seguem respectivamente: abreviações
costumeiramente utilizadas pelos pesquisadores e comentadores da obra de
Merleau-Ponty, paginação da obra original e paginação da obra traduzida para a
língua portuguesa. Para uma melhor compreensão, ver nota nas referências.
31

se mostrando ao mesmo tempo, tal como o verde que Cézanne imprime


na relva e que constitui a base da montanha Sainte-Victoire, que também
aparece na própria montanha e na imensidão do céu: é como se a
imagem fosse brotando de um lugar “pré-espacial”, rompendo a barreira
do visível. Por isso, este estudo precisa ser lido com o corpo inteiro e
não apenas racionalmente. Analisar cada parte ou frase em separado
seria perder a lógica do todo.
Observamos que em seus escritos, especialmente nos últimos,
Merleau-Ponty recorre a outros tipos de saberes, não se restringindo à
história da reflexão científica ou filosófica, pois estas, a seu ver,
“deixam intacto o enigma do mundo bruto” (VI, 205, 153). As
“verdades estabelecidas” (VI, 205, 153) tanto pela ciência quanto pela
filosofia dos últimos séculos, que ambicionavam o domínio pleno do
mundo, não nos acrescentam nada de novo: se apenas nos atermos a
elas, corremos o risco de continuar a elaborar teses às quais Merleau-
Ponty quis se afastar. Por onde devemos seguir então? Torna-se
necessário, indica-nos o filósofo, na abertura do manuscrito O
entrelaçamento – o quiasma, de O visível e o invisível, “recomeçar tudo
de novo, rejeitar os instrumentos adotados pela reflexão e pela intuição,
instalar-se num local em que estas ainda não se distinguem, em
experiências que não foram ainda ‘trabalhadas’” (VI, 170, 127). Ora,
não nos cabe voltar nossos olhos para a ciência e a filosofia tradicional.
Ademais, “se pudéssemos reencontrar”, prossegue Merleau-Ponty (VI,
170-171, 128), “no exercício do ver e do falar algumas das referências
vivas que lhe designam na língua tal destino, talvez elas nos ensinassem
a formar nossos novos instrumentos e a compreender de início nossa
investigação e nossa interrogação”.
É nesse sentido que recorremos aos testemunhos das
experiências artísticas. Sobretudo as dos pintores e dos poetas. Aqueles
não falam tanto de seus processos criativos quanto estes. Afinal, os
poetas trabalham com palavras enquanto que os pintores se expressam
com tintas e pinceis. Os poetas, em muitas ocasiões, mostraram que a
operação de expressão situa-se “atrás do pensamento”, conforme nos
assinala Clarice Lispector (1998, p. 29) em seu texto de prosa-poema
Água viva; ou quem sabe devemos ir até a “infância das palavras4”, tal

4
Em outro poema Manoel de Barros (2013, p. 381) descreve sobre o “lugar” em
que o artista deve se “instalar” para que a operação de expressão aconteça: “Lá
onde a gente pode ver o próprio feto do verbo -/ ainda em movimento./ Aonde a
gente pode enxergar o feto dos nomes –/ ainda sem penugens./ Por que não
32

como queria Manoel de Barros (2013, p. 423). Assim, juntamente com a


vivência da pintura, tanto em sua aplicação prática quanto na observação
das obras, procuramos também adentrar no universo da palavra escrita.
Balizamos, aqui, que este é “um mundo emaranhado de cipós, sílabas,
madressilvas, cores e palavras – limiar de entrada de ancestral caverna
que é o útero do mundo” (LISPECTOR, 1998, p. 15). É neste “lugar”
que nos instalamos para elaborar nosso texto. Nossa tarefa é meio
paradoxal: de um lado elaboramos uma tese, com saberes filosóficos à
luz de Merleau-Ponty, de outro, queremos nos afastar da maneira como
se edificam esses estudos convencionais. Assim, mais do que as de
dicionário, queremos redigir com palavras que provoquem ecos, que vão
se fazendo no próprio ato de criação, provocando no leitor novas
experiências do pensar, do dizer e do fazer. Miramos o signo, mas
queremos também o silêncio entre eles. Ambicionamos a pintura, mas
almejamos também a profundidade que ela faz ver. Nosso desejo é
mostrar, ao menos em parte, a vivência antes de qualquer reflexão,
considerando que esta também “sustenta” nossa tese.
É dentro deste contexto que Merleau-Ponty aspira por elaborar
uma filosofia que seja uma “reabilitação ontológica do sensível” (S,
271, 1845). Sua ontologia não parte da história da filosofia, como se esta
abarcasse todo o saber que o pensador necessitaria para repensar as
questões do Ser. Para reconquistar a energia do espanto, teremos que ir
até as palavras em sua infância, em sua origem, embrenharmo-nos na
animação interna do mundo que faz com que o pintor se aventure na
tarefa de querer expressar na tela aquilo que vê na natureza. Desta
forma, a tarefa é árdua: dando cidadania aos sentidos - coisa que a
tradição considerou em demasia como sendo instrumentos enganadores
– e “acolhendo o enigma que persegue o pintor, [...] fazendo ver com
palavras” (LEFORT, 2004, p. 12), mostrar que o conhecimento (tese) e
o mistério do olhar (expressão), são obtidos indiretamente, cuja
interrogação é insolúvel e interminável. “Essa filosofia por se fazer é a

voltar a apalpar as primeiras formas da/ pedra. A escutar/ Os primeiros pios dos
pássaros. A ver/ As primeiras cores do amanhecer./ Como não voltar para onde
a invenção está virgem?”.
5
Especificamente no texto A linguagem indireta e as vozes do silêncio, de
Merleau-Ponty, originariamente inserida na obra Signos, utilizamos a tradução
feita por Maria E. G. G. Pereira, e editada pela Cosac & Naify no volume cujo
título é “O olho e o espírito”. Os demais textos de Signos seguimos a paginação
editada pela Martins Fontes (cuja tradução é feita também por Maria E. G. G.
Pereira).
33

que anima o pintor”, afirma Merleau-Ponty (OE, 60, 33), “não quando
exprime opiniões sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se
faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele ‘pensa por meio da pintura’”.
Partimos então, tal qual Merleau-Ponty em O olho e o espírito, da
meditação sobre o universo da pintura que nos fornece, de certo modo,
uma linguagem nova e conquistadora, “muito próxima da linguagem
literária e poética, uma linguagem que argumenta, por certo, mas
consegue se subtrair a todos os artifícios da técnica que uma tradição
acadêmica fizera crer inseparável do discurso filosófico” (LEFORT,
2004, p. 112).
Nosso objetivo central é mostrar a questão do olhar a da
atividade-passividade na pintura à luz de Merleau-Ponty. Em linhas
gerais, assegura Merleau-Ponty: “meu ‘olhar’ é um desses dados do
‘sensível’, do mundo bruto e primordial, que desafia a analítica do ser e
do nada, da existência como consciência e da existência como coisa”,
faz-nos atentar para uma passividade-atividade de nossa criação, e mais
do que isso: “exige uma reconstrução completa da filosofia” (VI, 243,
183-141). Afinal, a filosofia não pode mais querer ingenuamente
desvendar os segredos do mundo, como se houvesse a possibilidade de
um pensamento puro que veria os fenômenos do exterior, querer falar
das questões centrais que move a sua reflexão, sem se instalar no
mundo, sem se ater ao fato de que não podemos nos afastar do mundo e
da própria experiência. Nosso ponto de partida não é o pensamento
reflexionante: é o mundo sensível. Ademais, “não é só a filosofia, no
início é o olhar que interroga as coisas” (VI, 137, 103).
O que procuraremos sustentar em nossa tese, primeiramente, é
que o artista experimenta uma passividade diante do seu ato criativo.
Imbricado com esta atividade-passividade, ele transmuta para a tela o
enigma que percebe em seu contato com a natureza. Desse modo, a arte
faz ver que o fundante não está na consciência reflexiva frente a um
mundo habitado por homens pensantes, mas, trata-se, antes, de suprimir
a clivagem entre os opostos binários que os pensadores - a priori -
tomavam posição para construir suas teses. Merleau-Ponty quer algo
diferente: ultrapassando as concepções empiristas e racionalistas, que
procuravam afastar o homem do mundo, busca reinserir este, pois,
novamente no mundo, inovando, assim, a maneira de fazer filosofia. É
no próprio mundo que estamos imersos e o habitamos desde que
nascemos. É nele que atuamos e existimos. Logo, para Merleau-Ponty,
não há mais sentido em interrogar nossa vida e as coisas sem levar em
conta nossa mundaneidade. Ele almeja por uma filosofia que pensa a
relação entre o nosso corpo e as coisas visíveis, “que mergulha no
34

sensível, no tempo, na história, na direção de suas articulações, não as


supera por forças exclusivamente suas, supera-as apenas no sentido
delas” (S, 39, 22). Ademais, “o Ser não se mantém senão em
movimento” - está em fluxo contínuo -, mas é no próprio movimento
que “todas as coisas podem ser juntas” (S, 39, 22). Isso significa dizer
que não podemos objetivar o mundo, a fim de estudá-lo ou analisá-lo. É
por esta razão que Cézanne concebeu uma nova maneira de expressar a
coexistência das coisas tremulando ante seu olhar: criou uma
perspectiva do mundo vivido, deixando de seguir a representação
pictural utilizada por seus antecessores.
Aprendendo com saberes que lidam com o mundo sensível –
como a pintura, a música, a psicanálise, a literatura6, ... –, a filosofia que
Merleau-Ponty (S, 40, 22) tem em mente

não mantém o mundo deitado a seus pés, não é


um “ponto de vista superior” de onde se abarquem
todas as perspectivas locais, busca o contato do
ser bruto, e instrui-se da mesma forma junto
daqueles que nunca se separaram dele.
Simplesmente enquanto a literatura, a arte e o
exercício da vida, fazendo-se com as próprias
coisas, com o próprio sensível, com os próprios
seres, podem, exceto em seus limites extremos, ter
e dar a ilusão de permanecer no habitual e no
constituído, a filosofia, que pinta sem cores, em
preto e branco, como os talhos-doces, não nos
deixa ignorar a estranheza do mundo, que os
homens afrontam tão bem e melhor do que ela,
mas como que num meio-silêncio.

6
Em Notes de cours [notas de cursos] realizados entre 1959-1961, mais
especificamente em um realizado entre 1958 e 1959 cujo título é La philosophie
aujourd’hui [a filosofia hoje], Merleau-Ponty explora quatro áreas do
conhecimento humano que, a seu ver, mostram a relação do homem com o
mundo, numa tarefa que é renovadora e expressiva, trazendo novas formas de
pensar a ontologia. É dentro deste contexto – e aprendendo com elas – que
Merleau-Ponty adentra no mundo da pintura, da literatura, da música e da
psicanálise.
35

A pintura constitui um desses saberes que se faz nas próprias


coisas, habitando o mundo sensível e, com isso, abrindo a Merleau-
Ponty a tarefa de investigar o enigma do olhar. Mais do que querer
representar a natureza na tela, o pintor quer exprimir o todo indivisível,
a natureza em seu estado de origem. É claro, que o filósofo não está se
referindo à arte rupestre ou à clássica, tampouco aquela que se contenta
em representar uma cena onde as coisas estão escalonadas uma atrás da
outra, mas aquela em que questiona a relação do olhar com as coisas
visíveis, que percebe a não divergência entre o visível e o vidente, bem
como a que faz perceber uma invisibilidade no visível. O que a pintura
faz ver é uma inatualidade que se estabelece entre as dobras do visível,
aquilo que não se deixa apreender em absoluto, que não se mostrou
ainda. Assim, mais do que um quadro, a pintura é um processo, é uma
maneira de olhar. Ela, para além de uma representação do mundo,
permite-nos ver a nossa inserção no mundo da vida. A “atividade” do
pintor, por sua vez, mostra nossa corporeidade: afinal, para pintar, ele
precisa “empregar o seu corpo”, que é atual e operante, isto é, “um
trançado de visão e movimento” (OE, 16, 16).
O pintor, no momento que pinta, imerso no afazer expressivo,
questiona o visível, sente a agitação do mundo em seu olhar e a
restabelece ao visível pelo trabalho de sua mão. Nesse sentido, o pintor
é passivo também a um estilo que vai aparecendo em sua experiência
criativa. “Toda a questão é compreender”, afirma Merleau-Ponty, “que
nossos olhos são muito mais que receptores para as luzes, as cores e as
linhas: computadores para o mundo que têm o dom do visível, como se
diz que o homem inspirado tem o dom das línguas” (OE, 25, 19). Entre
seu olhar que interroga o mundo e os traços e cores que estampa na tela,
o artista prepara imagens, cujo processo é atravessado por um estranho
que ele não domina inteiramente. A tela, pálida de luz, pede pinceladas
de cor; e o pintor banha-a de cores, deixando a linha contornar
tenuamente invisíveis redes, acolhendo o olhar do estrangeiro que pousa
na tela, borbulhando fragmentos de visíveis, compondo um grande
painel inédito sobre a superfície.
O olhar é mais do que uma função fisiológica que suscitaria o
mistério do mundo humano. Ele é vasto e apreende o universo
aparentemente carregado de sentido. Podemos perceber no olhar do
outro uma ameaça, quando este nos atinge com cólera ou raiva. Mas o
contrário também é verdadeiro: pode nos envolver e cativar, se o outro
nos olha com afeto. Seguindo por esta trilha, constatamos no olhar do
outro, muitas vezes, algo de compreensivo, generoso, mesquinho,
intolerante, maldoso, amoroso... Parece, à primeira vista, que o olhar do
36

outro é agente e que, por outro lado, somos passivos, sofrendo os efeitos
deste mesmo gesto.
Fomos condicionados a crer que a visão se origina em nossos
órgãos ópticos, numa relação em que os objetos vistos estão situados do
lado de fora, como se fôssemos os únicos atuantes do ato perceptivo,
sem, contudo, levar em conta a relação inversa: no espetáculo do mundo
também somos vistos por todos os lados. Assim, a reversibilidade do
olhar é um dos aspectos fundamentais na teoria merleau-pontyana. Será
que existe uma maneira correta de olhar?
O poeta Manoel de Barros (2013, p. 278) escreve que:

Talvez, Fernando Pessoa (2013, p. 62) possa nos dar uma pista
de como olhar dessa maneira:

O meu olhar azul como o céu


É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...

Ou olhar o quadro Os grandes cavalos azuis, de Franz Marc, e


perceber que os objetos podem ser tomados a partir de qualquer cor, que
depende tanto do sujeito que observa, quanto da coisa observada. Ou
eram os próprios cavalos que queriam ser assim pintados?
Também há a “fase azul” de Pablo Picasso, em que segundo
Carol Strickland (2002, p. 136),

A fase azul, de 1901-1904, e assim chamada em


razão das nuances frias de azul índigo e cobalto
que ele usava. Os quadros, obcecados com
esqueléticos mendigos cegos e frangalhos
humanos, projetam a melancolia azul de Picasso
naquela época, quando ele precisa queimar
37

desenhos para fazer fogo. Trabalhando sem


reconhecimento, ele alongava os membros de suas
figuras ossudas até parecerem El Greco frenéticos.

Sobre olhar uma pintura e ver nela as intenções do pintor, como


se a obra fosse uma extensão da vida do autor, já discutimos em nossa
pesquisa do Mestrado. Em síntese, podemos afirmar que a obra está para
além da vida de seu criador, apesar de haver uma estreita relação entre a
vida e a obra. Claro que todos os dados da vida dele estarão presentes no
momento da expressão, contudo, a obra segue um caminho que lhe é
próprio: o autor não tem domínio absoluto sobre a sua criação. Tomar os
cavalos de Franz Marc como exemplos de como as coisas devem ser
vistas a partir do fragmento de poema de Manoel de Barros, ou
compará-los com o olhar azul de que fala Pessoa, também é sacrificar
uma criação pela outra. Afinal, cada obra é um mundo e produz
diferentes significações para cada observador. Mesmo a fase em que
Picasso pinta suas telas de azul, ou Franz Marc colore os cavalos de
azul, ou Fernando Pessoa fala de um olhar azul, esses dados não nos
levam a conceber uma relação direta entre as diversas falas e obras. Por
outro lado, não podemos dizer também que elas não tenham alguma
correspondência entre si. Olhando os cavalos pintados de azul, nosso
olhar pode nos levar a crer que as coisas possam desejar ser vistas desta
cor. O olhar azul de Pessoa não almeja se espantar e interrogar as coisas,
já as coisas de Barros possuem um querer quase determinístico, como se
elas exigissem um observador diferente: alguém não mais viciado com o
olhar tradicional, reflexivo e acomodado, mas, ao contrário, alguém que
adentra na raiz do mundo e emerge junto com as coisas.
38

Imagem 1: Pintura Os grandes cavalos azuis (1911), Franz Marc

Fonte: Disponível em: <http://jchistory.webnode.pt/images/200005074-


0982c0a7c9-public/Os+Grandes+Cavalos+Azuis+-+Franz+Marc.jpg> acesso
em 20 de jun 2015.

Imagem 2: Pintura A refeição do cego (1903), Pablo Picasso.

Fonte: STRICKLAND, Carol. Arte comentada. Trad. Ângela Lobo de Andrade.


Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 136.
39

O olhar do observador teria, consequentemente, um “poder” de


criação semelhante ao do criador da obra. Sendo ativo-passivo, faria tal
qual Fernando Pessoa (2013, p. 84) na expressão poética:

Vou escrevendo os meus versos sem querer,


Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Como o pintor ou o poeta, o espectador diante de uma pintura, a


olha, interage com ela, mantendo uma relação de mútua imbricação
(empiètement). Ao entrelaçar-se com a obra, ele participa do ato como
co-criador. Contudo, no ato de ver, algo acontece, e ele começa a sentir
uma espécie de estranhamento: a obra na qual ele supostamente
dominava passa a dominá-lo e, percebe-se, outrossim, também visto por
ela. Resulta daí, pois, dizer que ele é atravessado pelas intenções do
artista e pelas significações advindas da obra. Então, atividade e
passividade acontecem de maneira simultânea na visão do espectador.
Partindo desse contexto principal, nosso estudo se centrará nos
escritos merleau-pontyanos, especialmente nos textos O visível e o
invisível (com as notas de trabalhos feitas pelo autor), O olho e o
espírito, A dúvida de Cézanne e A linguagem indireta e as vozes do
silêncio. Também nos acercaremos de outros livros7 importantes como a
Fenomenologia da Percepção e A prosa do mundo. Com o objetivo de
esclarecer melhor alguns pormenores das concepções merleau-
pontyanas sobre o tema, recorremos a alguns de seus comentadores, tais
como: Marcos José Müller (ou Marcos José Müller-Granzotto),
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, Stéphanie Ménasé, Iraquitan
Caminha, José Bettencourt da Câmara, Marcos Sacrini A. Ferraz,
Claude Lefort e Marilena Chauí. A fim de aprofundar a questão do
estranhamento que acontece na reversibilidade do olhar, e este sob um
novo prisma, recorremos ao Seminário XI, de Lacan, bem como seus
comentadores Charles Shepherdson e Jacques-Alain Miller. Além disso,

7
Tentamos investigar os escritos de Merleau-Ponty que abordam a questão do
olhar e da passividade na pintura, mas nos centramos em alguns textos que
consideramos relevantes e que norteará nossa escrita. Notamos, aqui, que o
texto L’instituicion – la passivité não será um dos livros que procuraremos
aprofundar, pois iria nos remeter a um outro tipo de estudo, o qual não é nossa
intenção por hora.
40

o que constitui o “coração” desta obra, apresentamos o testemunho das


vivências artísticas de diversos pintores (Max Ernst, Pablo Picasso,
Henri Matisse, Paul Cézanne, Roberto Delaunay, Paul Klee, etc.) e as
experiências de escritas inaugurais de alguns escritores e poetas (Clarice
Lispector, Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade, Fernando
Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Mário Quintana, etc.). É a partir
desse universo filosófico e artístico que nossa tese foi construída.
Para o tratamento das questões ontológicas, a partir da pintura e
proposta por Merleau-Ponty, dividimos nosso estudo em três capítulos:
o primeiro será centralizado na investigação do mundo visível do ponto
de vista da arte, mais especificamente, da pintura. Esta, fazendo-se
vidente, é “partícipe do mundo sensível” (MÜLLER, 2015, p. 411) por
imbricação - empiètement - com outras pinturas e outros visíveis. Desta
forma, o outro me faz vidente, vejo o outro, imbrico-me com ele e com
o mundo. O segundo, por sua vez, concentrar-se-á no estudo do olhar e
sua relação com o invisível. Em nossa inserção no mundo visível
podemos “adentrar” ao invisível, por transposição – enjambement - no
qual o olhar do outro descobre minha invisibilidade. Por fim, no terceiro
capítulo trataremos de pesquisar a implicação do olhar com a
passividade a outrem8. Assim, o olhar aparece como doação de algo que
se antecipa (precessão – précession): o outro que olha a partir de um si
que é tomado como outrem, como rastro.
No primeiro capítulo, buscaremos mostrar que a pintura faz
Merleau-Ponty perceber uma expressão da gênese do Ser. Recorrendo à
arte e às concepções artísticas, especialmente de Cézanne, o filósofo
encontra, neste, um apoio para pensar o mundo da percepção. De
alguma forma, Merleau-Ponty viu que Cézanne fazia na prática o que
ele aspirava fazer na filosofia: ao tentar pintar o “todo indivisível” o
pintor permitiu ao filósofo conceber uma filosofia tal qual uma obra de
arte, cuja característica é o primado do Ser de Indivisão. O pintor pinta

8
Alguns tradutores das obras merleau-pontyanas para a língua portuguesa não
atentam para as distinções entre outro (autre) e outrem (autrui), como é o caso
mais específico de A prosa do mundo e O visível e o invisível. Nossa proposta é,
a partir das obras originais, fazer uma adequação dos termos na tradução por
nós retomada, o qual inserimos entre colchetes, buscando utilizar o que
Merleau-Ponty empregou originariamente, e que, a nosso ver, tem uma grande
importância na compreensão de seus escritos. Ressaltamos também que, em
alguns momentos, as noções de outro e outrem se entrelaçam a tal ponto de não
sabermos distinguir claramente um de outro, mas tentaremos, no que for
possível, estabelecer esta diferenciação.
41

com seu corpo e metamorfoseia o mundo em uma nova experiência da


visibilidade. Um dos nossos objetivos é investigar a relação do corpo
com a pintura. Também abordaremos que, diversamente de nos
apresentar verdades ou essências, as “noções” de linha, cor e
movimento, exprimem “ramos do Ser”; nas palavras de Merleau-Ponty:
“estilos de diferenciações”, uma vez que ilustram o mistério da
visibilidade na experiência humana.
No segundo capítulo, nosso foco será o de “desvelar” a
invisibilidade que há em todo visível. Não sendo contraditórios, visível
e invisível coexistem no mesmo ser. O olhar exprime, portanto, um
quiasma entre o visível e o invisível. Nesse sentido, contra o
“pensamento de ver”, tipicamente cartesiano, Merleau-Ponty trata o
olhar como um enigma. Para pensar essa questão, além de trazer a
concepção de olhar de alguns pensadores da tradição, avançaremos em
dois aspectos centrais: de um lado, exploraremos a profundidade como
idealidade de horizonte e todo o fenômeno da expressão, e, de outro, a
formação das imagens e a idealidade pura. Aqui, a discussão se dará
principalmente entre a linguagem criativa, expressiva, desejante e a
cristalização do vivido através daquilo que o filósofo chama de
“instituição”. Procuraremos também investigar a questão: em que
momento um quadro se torna um pensamento?
Fazendo uma retomada dos temas tratados nos capítulos
anteriores, o terceiro se concentrará no aprofundamento do projeto
merleau-pontyano de uma reabilitação ontológica do sensível.
Começaremos, portanto, por aprofundar a lógica da reversibilidade do
olhar: afinal, o vidente, ao olhar para as coisas, também se sente visto
por elas. A partir desta reversibilidade, o nosso passo seguinte consiste
em examinar a esquize entre o olho e o olhar indicado pelo psicanalista
Jacques Lacan, tese que elabora a partir da leitura de O visível e o
invisível no Seminário XI, dedicado a tratar dos quatro conceitos
fundamentais da psicanálise.
Por fim, mostraremos que a pintura, através do olhar pré-
humano do pintor, é uma expressão ao qual somos passivos. O olhar
dele também é passivo diante da natureza. Neste contexto, procuraremos
explicitar que o espectador, diante de uma pintura, sofre uma dupla
passividade: ao visível instituído pelo olhar do pintor e a outrem que se
dá na obra. Se há uma passividade em toda atividade do olhar, então, de
fato, o espectador experimenta essas duas passividades. Tentaremos
estabelecer uma relação entre esta dupla passividade com a dupla falta
enunciada por Lacan no Seminário XI.
42

Apontando para as considerações finais, buscaremos retomar


algumas das ideias principais da nova filosofia descrita a partir dos três
capítulos, procurando destacar a relação do olhar e da passividade;
relação que aparece na forma de imbricação (empiètement) entre
videntes e imagens, de transposição (enjambement), ou travessia para o
invisível, e de precessão (précession), como doação de algo que se
antecipa e que nunca poderá ser realizada ou acabada inteiramente. Por
isso, nossas considerações finais, tais como gestos inacabados, articulam
para uma obra aberta e por se fazer continuamente.
“Para fazer progressos,
só através da natureza,
e o olho se educa no contato com ela.
Torna-se concêntrico à custa de observar
e trabalhar.
Quero dizer que, em uma laranja,
uma maçã, uma bola, uma cabeça,
há um ponto culminante;
e esse ponto –
apesar do efeito terrível:
luz e sombra, sensações colorantes –
é o mais próximo do nosso olho.
As bordas dos objetos fogem em direção
a um centro localizado
no nosso horizonte.
Com um pouco de temperamento
é possível ser muito pintor.
É possível fazer coisas
sem ser muito harmonista
ou colorista.
Basta ter senso de arte –
e esse senso é, sem dúvida,
o horror do burgueses.
Portanto, os institutos,
as bolsas e as honras
só podem ser feitos por cretinos,
os farsantes e os patifes.
Não seja crítico de arte, faça pintura.
Essa é a salvação”.

(Paul Cézanne, Carta a Emile Bernard,


de 25 de julho de 1904).
47

2 ONTOLOGIA E PINTURA: O VISÍVEL

“Há uma grande diferença entre ver uma coisa


sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a”.
(Paul Valéry, Degas Dança Desenho)

A possibilidade de descrever o mundo da percepção foi o que


Merleau-Ponty encontrou primeiramente nas obras de Cézanne. Aliás,
parece que o filósofo recorre à arte sempre que tem que se decidir por
algo importante e nos momentos cruciais de seu itinerário filosófico.
Próximo ao texto da Fenomenologia da Percepção, de 1945, ele
escreveu A dúvida de Cézanne em 1942. No período intermediário, em
1952, escreveu A linguagem indireta e as vozes do silêncio. A pintura
com sua linguagem silenciosa e as diversas formas de expressão é o
tema deste artigo dedicado a Jean-Paul Sartre. Por fim, aquele que pode
ser considerado o seu “testamento filosófico” (TASSINARI, 2004, p.
157), O olho e o espírito, mais do que um ensaio sobre a pintura, seu
objetivo principal é interrogar a visão “como que pela primeira vez”
(LEFORT, 2004, p. 9). Em todos esses três textos, Cézanne está
presente. Vale lembrar que em maior incidência e em profundidade, no
primeiro texto9.
Merleau-Ponty, ao fazer da pintura um dos temas de estudo, diz
que ela “jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade” (OE, 26,
20). Quando fala do visível, ele não está se referindo a uma visibilidade
propriamente empírica, mas uma visibilidade ontológica10. Para pensar
esta questão, parte do pressuposto de que é preciso “partir de uma
análise do erro filosófico total que é acreditar que o visível é presença
objetiva11 (ou ideia dessa presença) [...]” (VI, 306, 233). Uma presença
que nos permite ver uma ausência e, por consequência, uma espécie de
“deiscência do Ser”12. Afinal, o Ser se mostra em perfis, em partes,

9
Vemos citações de Cézanne em outros textos merleau-pontyanos como
Fenomenologia da Percepção, Conversas – 1948 e A Prosa do Mundo.
10
Isso quer dizer que ele estaria ampliando a passagem do naturalismo para uma
leitura temporal dos fenômenos – isso Merleau-Ponty chama de Ontologia.
11
Itálico do autor.
12
A noção de deiscência “(que, em botânica, designa habitualmente a abertura
de um órgão que atingiu a maturidade), faz parte do dispositivo conceitual que
48

aparecendo sempre de maneira indireta e transversal. Ao falar dos


binômios visível e invisível, presença e ausência, bem como em outros
pares de conceitos (ou metáforas), como atividade e passividade,
Merleau-Ponty não os toma como contraditórios: funcionam como o
verso e o reverso de uma moeda. Isto é, coabitam o Ser13.
Em uma nota de trabalho da obra O visível e o invisível (278,
210-211), Merleau-Ponty reflete:

Princípio: não considerar o invisível como outro


visível “possível”, ou um “possível” visível para
outro: isso seria destruir a membrura que nos une
a ele. Além disso, como esse “outro” que o
“veria”, – ou esse “outro mundo” que ele
constituiria ligar-se-ia necessariamente ao nosso, a
verdadeira possibilidade reapareceria
necessariamente nessa ligação – o invisível reside
aí sem ser objeto14, é a pura transcendência, sem
máscara ôntica. E os próprios “visíveis” no final
também estão apenas centrados sobre um núcleo
de ausência.

Merleau-Ponty estabelece em seus últimos textos para subtrair o campo


transcendental do primado da consciência, da subjetividade ou da imanência.
Contra a Fenomenologia da percepção, que ainda pensava o transcendental em
termos de existência ou de transcendência ativa, os últimos textos pensam o
transcendental como o evento da abertura de meu corpo para ele mesmo e para
o mundo por fissão e imbricação do corpo vidente e do corpo visível, da massa
sensível do corpo vidente e da massa sensível do mundo visível. [...] Pensar
nossa relação com o Ser como deiscência é recusar a posição (solidária da
ontologia do objeto) segundo a qual toda relação com o ser estaria submetida à
alternativa entre ou ser fusão e coincidência, ou então sobrançaria e
exterioridade, logo, é pensar a relação do ser vidente com o ser visível como
identidade na diferença: distância interior à identidade ou então proximidade
interior à diferença” (DUPOND, 2010, p. 14).
13
Veremos ao longo deste estudo que o visível já contém em si uma
invisibilidade, bem como a presença a sua ausência, e essas noções que a
princípio seriam contraditórias fazem parte de um mesmo tecido carnal que
“sustenta” o Ser.
14
Itálico do autor.
49

Não sendo uma coisa material objetiva (coisa-em-si), o visível


nos traz uma questão importante, qual seja, o da percepção15. Veremos
que Cézanne percebe e quer expressar a visão do percebido tal qual
encontra na natureza. Contudo, entre o olho que vê e percebe e as mãos
que pintam há uma grande distância. Não apenas isso: diante do
fenômeno expressivo, aquilo que parece sair de seu controle ativo, vem,
de alguma forma, instalar-se no ato, como uma espontaneidade que ele
não consegue dominar. Diante de tal acontecimento, Cézanne enfrenta a
tela como um demiurgo que tenta criar um novo mundo.
Criando a partir do mundo em que está submerso – afinal, não
saímos do mundo para poder expressá-lo – o pintor mostra ao filósofo,
por meio da criação artística, a dificuldade que consiste em tentar
expressar uma ordem de experiência como a gênese do Ser. Isto porque
o Ser não pode ser demonstrado ou expresso absolutamente. Contudo,
Cézanne nos insere num mundo ambíguo, um “meio termo” entre sentir
e pensar, onde a percepção nos abre para aquilo que não podemos ver ou
falar. Como uma “ferida aberta”, a percepção nos mostra que o Ser, de
maneira análoga à arte, é aquele que se dobra sobre si mesmo e produz
um vazio, uma ausência, uma falta. É por isso que Cézanne
obstinadamente deseja pintar todos os dias.
Assim, o pintor se volta para o visível em busca de um
invisível. Por meio desse ato, ele cria um novo visível a partir da sua
inserção na natureza16. Nosso primeiro objetivo neste capítulo é
investigar em que sentido as concepções artísticas de Cézanne mostram
a Merleau-Ponty uma maneira de pensar uma ontologia, cuja
característica é o primado do Ser de indivisão.

15
“A percepção como encontro das coisas naturais está no primeiro plano de
nossa pesquisa, não como função sensorial simples que explicaria as outras, mas
como arquétipo do encontro originário, imitado e renovado no encontro do
passado, do imaginário, da ideia” (VI, 208, 155).
16
A natureza “não corresponde mais ao mundo verificado do cientista,
tampouco se exprime como o mundo idealizado do metafísico. Ela é o ‘campo
sensível pré-objetivo’ por meio do qual a percepção de outrem se transfigura
como um enigma inalienável e jamais como um absurdo ilusório da razão. É
essa estrutura, genuinamente primordial que a Natureza encerra. É esse núcleo
de significação que ela exprime a título de uma experiência sempre reiniciante”
(SILVA, C., 2010, p. 193). Para um aprofundamento sobre esta questão
indicamos a leitura do livro A Natureza primordial: Merleau-Ponty e o logos do
mundo estético, do professor Claudinei Aparecido de Freitas da Silva.
50

No segundo momento, propomos pensar a pintura como gesto


de transcendência, que se projeta para além das essências a partir de dois
aspectos relevantes: primeiramente, investigaremos a importância do
corpo próprio como forma de encarnação de essências e, posteriormente,
trataremos da descrição de essências como sistema de diferenciação.
Nesse sentido, procuraremos responder a pergunta: o que está para além
das essências? Outro aspecto abordado neste item será a mudança da
ideia do corpo, no percurso merleau-pontyano, e sua relação com a
pintura.
No terceiro momento deste capítulo, queremos mostrar que cor,
linha e movimento, não são apenas conceitos, questionamentos e
aspectos picturais, mas elementos que nos permitem perceber,
metaforicamente, “ramos do Ser”. Ao contrário de inferir verdades ou
essências, como se tivéssemos o controle de nossa vida, e por
consequência, de nossas criações, a pintura nos insere na ambiguidade
do mundo visível ao qual estamos imersos. Assim, cor, linha e
movimento nós dão um meio de adentrarmos no universo ontológico do
qual nós, de fato, só temos acesso indiretamente. É por imbricação
(empiètement) com o visível que o pintor transforma o mundo em
pintura.

2.1 De Cézanne à busca pela expressão da gênese do ser

Cézanne foi um pintor excêntrico, tanto pela vida que levou


quanto pela maneira como se dirigia à natureza e a metamorfoseava em
pintura. Por isso dedicava sua vida a essa arte. Não fez grandes viagens,
sua vida não foi de aventuras extraordinárias. Teve uma mulher e um
filho que raramente lhe faziam companhia. “Ao envelhecer, ele
[Cézanne] se pergunta se a novidade de sua pintura17 não vinha de um

17
“Não admira que, frequentemente, ficasse à beira do desespero, trabalhasse
como um escravo em sua tela e jamais deixasse de realizar experimentos. O
verdadeiro motivo de espanto é que Cézanne conseguiu realizar em suas obras o
que era aparentemente impossível. [...] Todas as espécies de explicações já
foram sugeridas sobre o que ele queria realizar e o que realizou. Mas essas
explicações parecem rudimentares e até, algumas vezes, soam contraditórias.
Contudo, ainda que nos impacientemos com as críticas, aí estão sempre os
51

distúrbio dos olhos, se toda a sua vida não se apoiara sobre um acidente
do corpo” (SnS, 13, 12318). Contudo, olhar hoje suas obras, faz-nos
perceber a natureza primordial, o mundo em sua origem.
As obras de Cézanne tiveram grande relevância para a
construção de uma nova forma de expressão. De fato, os artistas
modernos se inspiraram no modo como o pintor de Aix explorava a
natureza e a transformara em pintura. Olhando a natureza atentamente, o
pintor pode perceber que a pintura deveria ser muito mais do que a
representação19 da realidade em um quadro. A esse respeito, Merleau-
Ponty traz à tona uma citação de Cézanne ao ser indagado por Émile
Bernard sobre a elaboração de uma tela à maneira clássica: “eles faziam
o quadro e nós tentamos um fragmento da natureza20” (SnS, 17, 127).
Diante da natureza, a prioridade de Cézanne não era pintar sob a
insígnia da sensação ou do pensamento, dos sentidos ou da inteligência,
mas seguir em uma trilha que superasse a dicotomia entre o caos e a
ordem, situando sua obra num mundo pré-espacial. “Foi esse mundo
primordial que Cézanne quis pintar, e por isso seus quadros dão a
impressão da natureza em sua origem [...]” (SnS, 18, 128). Não queria
pintar como um bruto, nem seguir seus antecessores, mas pesquisar
aquilo que considerava verdade em termos de arte. Mesmo sendo
rejeitado, nunca abandonou o seu trabalho. Considerava-se alguém que
nascera fora de seu próprio tempo. Sobre isso, lamenta-se: “cheguei
talvez cedo demais” (CÉZANNE, 1992, p. 208).
Cézanne sentia-se insatisfeito21 com os resultados obtidos,
mesmo no final da sua vida. Chegou a declarar ao amigo Émile Bernard,
um mês antes de morrer:

quadros para nos convencerem. E o melhor conselho, aqui e sempre, é ‘vá ver
os quadros no original’” (GOMBRICH, 1993, p. 539-540).
18
Em A dúvida de Cézanne optamos por seguir a paginação em português da
obra editada pela Cosac & Naify, inserida no livro cujo título é “O olho e o
espírito”.
19
“A pintura seria, portanto, não uma imitação do mundo, mas um mundo por si
mesmo” (C, 55-56, 58).
20
“Pintar ou qualquer outra atividade criadora significa produzir ‘um pedaço de
mundo’, ‘abrir um campo, deslocar ou modificar uma configuração, uma
percepção, transformar um pouco o mundo’, assim como ser transformado por
ele” (MÉNASÉ, 2008, 242).
21
“A natureza, que Cézanne constantemente reclama como seu único modelo, a
quem deve fidelidade absoluta, ele bem sabe que jamais será passível de
redução às pinceladas” (DUARTE, 1994, p. 312).
52

Encontro-me em tal estado de perturbações


cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo
que num dado momento minha frágil razão venha
a romper-se. Depois do terrível calor que
acabamos de sofrer, uma temperatura mais
clemente restituiu um pouco de calma aos nossos
espíritos, e já não era tempo; agora parece-me que
estou enxergando melhor e pensando com mais
precisão na orientação dos meus estudos
(CÉZANNE, 1992, p. 266).

E faz uma colocação fundamental: “Conseguirei chegar ao


objetivo tão procurado e tão longamente perseguido?” (CÉZANNE,
1992, p. 266). Essa dúvida é interessante, mas, difícil de contornar, uma
vez que gera um mal-estar no artista. Sua busca era por encontrar um
“porto seguro” em algum momento da sua vida artística, no entanto,
segundo Merleau-Ponty, Cézanne nunca encontraria tal “local”. Não
alcançaria o objetivo por que

[...] sua pintura seria um paradoxo: buscar a


realidade sem abandonar a sensação, sem tomar
outro guia senão a natureza na impressão
imediata, sem abandonar os contornos, sem
enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a
perspectiva nem o quadro (SnS, 17, 127).

Esse objetivo, perseguido pelo pintor, fez com que se afastasse


paulatinamente da família, dos amigos e da sociedade. De temperamento
difícil e obcecado pela pintura, Cézanne foi mal interpretado por seus
contemporâneos, particularmente os de sua terra natal: Aix-en-Provence.
Ambroise Vollard, amigo e um dos que tinha paciência para
servir de modelo para o Mestre de Aix, traz em seu livro Ouvindo
Cézanne, Degas, Renoir um farto material de extratos de jornais e
recortes de artigos de revistas que tratam de Cézanne. Alguns deles
fazem elogios ao pintor e até o consideram inovador e revolucionário.
Contudo, foi profundamente desprezado e ridicularizado, tendo recebido
críticas severas e desprezíveis. “Cézanne dá a impressão de um operário
fortemente dotado, mas de visão turva” - diria um crítico em 1904 -, “de
execução não propriamente desajeitada, mas desajeitada por alguma
53

doença manual22” (VOLLARD, 1999, p. 100). Outro, no mesmo ano,


afirma que Cézanne “prefere dispor cores numa tela e, em seguida,
espalhá-las com um pente ou uma escova de dentes”, construindo
quadros cujos motivos são executados “num método que, de certa
forma, evoca esses desenhos que os escolares executam esmagando
cabeças de mosca na dobra de uma folha de papel23” (VOLLARD, 1999,
p. 99). Quando participou do salão de outono de 1905, o Journal des
Arts fez um comentário um tanto quanto zombeteiro da obra dele:
“paisagens e personagens, toda uma Natureza que parece de madeira
grosseiramente recortada, e lambuzada dessas cores pobres e gritantes
típicas de certos humildes brinquedos de bazar24” (VOLLARD, 1999, p.
104).
O reconhecimento do público começou a acontecer no mesmo ano da
inauguração da Torre Eiffel, em 1889. Neste ano, no Campo de Marte,
Cézanne expôs a obra A casa do enforcado, na Exposição Universal de
Paris. Entre críticas e elogios, a sua obra tornou-se uma “matriz de
ideias” para outros artistas subsequentes. Dentre os artistas que lhe
deram crédito, citamos como exemplo, Pablo Picasso25, Henri Matisse,

22
“Cézanne donne l’impression d’un ouvrier puissamment doué mais de vision
trouble, d’exécution nos pas gauche, mais gauchie par quelque infirmité
manuelle” (VOLLARD, 1938, p. 129). Resolvemos inserir, aqui, as citações no
original, pois há algumas expressões que são atípicas do contexto normal, como
por exemplo, doença manual (infirmité manuelle), o que poderíamos pressupor
que pudesse tratar-se de uma doença mental.
23
“Il prefere répandre des couleurs sur une toile et les y étaler ensuite avec un
peigne ou une brosse à dents […] le procédé rapelle un peu ces dessins que les
écoliers exécutent em écrasant des têtes de mouche dans le pli d’une feuille de
papier” (VOLLARD, 1938, p. 128).
24
“Paysages et personnages, toute une nature qui parît en bois grossièrement
découpé et peinturluré de ces couleurs pauvres et criades qu’ont certains
humbles jouets de bazar” (VOLLARD, 1938, p. 133).
25
“Não há dúvida, porém, de que a principal influência revelada em Les
demoiselles é de Cézanne. Picasso, como a maioria dos prodígios artísticos, era
um eclético errante nas primeiras fases do seu desenvolvimento. São muitas as
fontes de influência que se mostram em sua obra: arte romântica de sua
Catalunha nativa, arte gótica em geral, pintura espanhola do século XVI
(particularmente a obra de El Greco) e finalmente a obra de seus predecessores
imediatos, como Toulouse-Lautrec, e dos fauves que ele conheceu quando de
sua primeira estada em Paris. Mas essas influências eram relativamente
esporádicas e superficiais, ao passo que a de Cézanne era profunda e
permanente” (READ, 2000, p. 68).
54

Paul Klee, Paul Gauguin26 e Georges Braque. Ademais: “[...] não há


artista importante do século XX que não tenha sido influenciado por
algum aspecto da obra de Cézanne” (READ, 2000, p. 20). Merleau-
Ponty nos apresenta um artista que, superando as dificuldades da vida e
de criação, expressa um mundo de maneira tão singular, cujo talento fez
frutificar inúmeras obras e movimentos artísticos.
Para entendermos melhor o entrelaçamento entre arte e
filosofia, levantamos algumas questões que nortearão o andamento do
texto. Como a arte de um pintor que duvidava constantemente da sua
criação pode inspirar uma ontologia? Que considerações pictóricas de
Cézanne serviram a Merleau-Ponty para pensar uma nova filosofia tal
como uma obra de arte? Em outras palavras: em que, precisamente, a
arte de Cézanne inspira Merleau-Ponty?

II

Acreditando que tanto a arte clássica27 quanto seus


contemporâneos – impressionistas – cometiam erros, Cézanne almejava
fazer da pintura “algo de sólido como a arte dos museus” (SnS, 17, 127).
Para ele, os problemas da pintura ainda não tinham sido resolvidos. Era
necessário, entrementes, um outro tipo de arte. Para ser fiel à sua
percepção criou um novo jeito de pintar e, assim, procurou expressar a
própria ordem nascente da natureza. O pintor francês se declara a Émile
Bernard: “devemos criar uma ótica, devemos ver a natureza como
ninguém a viu antes”. Sua arte seria, então, uma “percepção pessoal”,
cuja técnica baseava-se em pôr a percepção na sensação, além de pedir,
ao mesmo tempo, que “a inteligência a organizasse numa obra”
(CÉZANNE, 1999, p. 11). Essa maneira de pintar de forma ambígua,
em que não escolhe o pensar ou o sentir, fez com que Cézanne
concebesse uma arte como um “fragmento de natureza” (SnS, 17, 127).

26
A artista e escritora Fayga Ostrower (2003, p. 111) menciona uma carta
escrita por Gauguin no momento em que passa por uma crise econômica: “Esse
quadro de Cézanne é extraordinário, por ele recusei uma oferta de trezentos
francos. Guardo-o como a pupila de meus olhos e prefiro vender minha última
camisa antes de me desfazer desse quadro”.
27
“O pintor [clássico] só conseguiu dominar uma série de visões e delas tirar
uma única paisagem eterna porque interrompeu o modo natural de ver”,
construindo na tela “uma representação da paisagem que não corresponde a
nenhuma das visões livres, domina seu desenvolvimento movimentado, mas
também suprime sua vibração e sua vida” (C, 21, 14).
55

Ele acreditava que “as coisas mesmas e os rostos mesmos tais como ele
os via é que pediam para serem pintados assim, e Cézanne apenas disse
o que eles queriam dizer” (SnS, 27, 137). Ele também “não acreditou ter
de escolher entre a sensação e o pensamento, como entre o caos e a
ordem” (SnS, 27, 137).
Segundo Bernard, Cézanne estaria se distanciando dos
impressionistas, pois buscava a realidade sem abandonar a sensação.
Não delimitava os contornos, não enquadrava a cor pelo desenho,
tampouco usava os recursos da perspectiva clássica. Esse paradoxo era
visto por Bernard como o suicídio de Cézanne: “ele visa a realidade e
proíbe-se os meios de alcançá-la” (SnS, 17, 127). Observamos essas
deformações nas pinturas feitas entre 1870 e 1890. O julgamento do
amigo é severo: “Cézanne teria, diz Bernard, mergulhado ‘a pintura na
ignorância e o espírito nas trevas’” (SnS, 18, 127).
Cézanne, mergulhado na natureza, cujo olhar tentava reproduzir
na tela o paradoxo da expressão, possibilita ao espectador uma
experiência original do mundo. Trata-se de um mundo ambíguo onde a
pintura brota na dobra entre o visível e o invisível. Tateando entre
pinceladas e percepções, ele “‘germinava’ com a paisagem” (SnS, 23,
132). Cézanne chegou a dizer certa vez:

Respiro a virgindade do mundo. Atormenta-me


um sentido agudo dos cambiantes. Sinto-me
colorido por todos os cambiantes do infinito... Eu
e meu quadro fazemos um só. Somos o caos
irisado. Ponho-me diante do meu motivo, perco-
me nele. Sonho, aéreo. O sol penetra-me
surdamente, como um amigo longínquo que
aquece a minha preguiça, a fecunda. Germinamos
(CÉZANNE apud ELGAR, 1987, p. 215).

Cézanne dizia que “a paisagem pensa-se em mim e eu sou sua


consciência” (SnS, 23, 133). Trazer à tona esta natureza em sua origem
foi seu grande propósito. Afinal, não foi isso que ele quis ressaltar ao
dizer à Gasquet que “o que tento lhe traduzir é mais misterioso, se
enreda nas raízes mesmas do ser, na fonte impalpável das sensações”?
(OE, 7, 13).
56

Mas em que consiste o seu método28 pictórico? De que forma o


pintor expressava aquilo que detectava na natureza e o organizava na
tela? Sobre isso, Frank Elgar (1987, p. 239) lembra uma interessante
afirmação de Cézanne:

O método surge no contato da Natureza,


desenvolve-se por força das circunstâncias.
Consiste em procurar a expressão do que se sente,
em organizar a sensação de uma maneira estética
pessoal. Vou ao desenvolvimento lógico do que
vemos e sentimos pelo estudo sobre a Natureza,
só com o inconveniente de me preocupar, em
seguida, com os processos, não sendo os
processos para nós mais do que simples meios
para conseguirmos fazer sentir ao público o que
nós próprios sentimos, e para agradarmos.

Quando Cézanne pinta o Lago de Annecy e Vista do Château


Noir, em 1896, ocorre uma mudança [ou uma reviravolta] na sua visão
e, por consequência, na sua técnica. Nessa fase, o que faz é imprimir na
tela uma

Intuição sintética do real, homogeneidade da


construção espacial, essa continuidade orgânica
que ele tentava estabelecer, nem sempre com o
mesmo êxito, à força de inteligência e de vontade,
obtém-na daqui em diante deixando agir de
preferência os seus impulsos (ELGAR, 1987, p.
177).

Cézanne, ao invés de usar as sete cores do prisma em sua


palheta, começa a utilizar dezoito, ou seja, seis vermelhos, cinco

28
Muito do que sabemos a respeito do método de Cézanne originou-se a partir
das relações de confiança entre ele e Émile Bernard. Este sempre escutava o
mestre de Aix, guardou suas cartas, em que trocavam confidências sobre
declarações acerca da pintura. Mesmo que, na maioria das vezes, não gostasse
de falar desse assunto com outros interlocutores, com Bernard era diferente.
Jantava com frequência na casa dos Bernard, brincava com as crianças e
“manifestava jovialidade a que renunciava assim que a conversa derivava para a
pintura. Então animava-se, subia de tom, acompanhava as palavras batendo com
os dedos na mesa” (ELGAR, 1987, p. 208).
57

amarelos, três azuis, três verdes e um negro. Com isso, não quer pintar
objetos cujos tons apareçam na tela ofuscados pela luminosidade do ar,
tampouco de outros objetos próximos, mas, sim, de enfatizar zonas de
transição entre os diversos tons. É nesse ponto que ele se separa dos
impressionistas. Mais especificamente, ele os ultrapassa. Assim, “ele
renuncia à divisão do tom e a substitui por misturas graduadas, por uma
sucessão de matizes cromáticas sobre o objeto, por uma modulação de
cores que acompanha a forma e a luz recebida” (SnS, 16-7, 126). Dessa
forma, o pintor “quis voltar ao objeto sem abandonar a estética
impressionista, que toma por modelo a natureza” (SnS, 17, 127).
É nessa perspectiva que Merleau-Ponty (SnS, 20, 130) falará do
contorno dos objetos observados nos quadros do artista:

O contorno dos objetos, concebido como uma


linha que os delimita, não pertence ao mundo
visível, mas à geometria. Se marcamos com um
traço o contorno de uma maçã, fazemos dela uma
coisa, quando ele é o limite ideal em cuja direção
os lados da maçã fogem em profundidade. Não
marcar nenhum contorno seria retirar aos objetos
sua identidade. Marcar um só seria sacrificar a
profundidade, isto é, a dimensão que nos oferece a
coisa, não como exposta diante de nós, mas como
cheia de reservas e como uma realidade
inesgotável. Eis por que Cézanne acompanhará,
numa modulação de cores, a intumescência do
objeto e marcará com traços azuis vários
contornos.

O contorno dos objetos proposto por Cézanne é o que permite


que o olhar vaze; é uma passagem. Não percebemos as coisas como elas
são, percebemos perfis delas. É a partir dessa dobra, dessa segregação,
que podemos perceber a profundidade do mundo. Ora, o que torna essa
retomada merleau-pontyana da obra de Cézanne realmente importante é
que, quando o pintor de Aix busca a profundidade, ele próprio volta-se à
realidade da experiência humana, ao tentar diariamente apreendê-la e
expressá-la de forma artística. Trata-se de uma tentativa sempre
frustrada, pois jamais conseguia atingi-la num todo. É por isso que
Merleau-Ponty pode citar a frase de Giacometti: “penso que Cézanne
buscou a profundidade durante toda a sua vida” (OE, 64, 35).
58

Imagem 3: Pintura Lago de Annecy Imagem 4: Pintura Vista de


(1896), de Paul cézanne Château Noir (1894-1896), de Paul
Cézanne

Fonte: BECKS-MALORNY, Ulrike. Fonte: BECKS-MALORNY,


Paul Cézanne. Trad. Fernando Tomaz. Ulrike. Paul Cézanne. Trad. F.
Korea. Paisagem, 2005, p. 68. Tomaz. Korea. Paisagem, 2005, p.
71.
Imagem 5: Pintura A casa do enforcado em Auvers (1872-1873), de Paul
Cézanne.

Fonte: BECKS-MALORNY, Ulrike. Paul Cézanne. Trad. Fernando Tomaz.


Korea. Paisagem, 2005, p. 29.
59

Imagem 6: Recorte de esboço em aquarela para a pintura Os jogadores de


cartas, de Paul Cézanne.

Fonte: Disponível em:


<http://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2012/03/27/esboco-de-cezanne-
vai-a-leilao-em-nova-york.jhtm#5224645019043237> Acesso em 16 jun 2014.

Imagem 7: Pintura Vista de Gardanne (1885-1886), de Paul Cézanne.

Fonte: Disponível em: < http://www.artehistoria. jcyl.es/v2/


obras/6080.htm> Acesso em 16 set 2014.
60

Acerca do seu método pictórico, afirma o artista: “o desenho


puro é uma abstração. O desenho e a cor não são distintos, tudo na
natureza é colorido”; e declara a espinha dorsal de sua técnica pictural:
“ao mesmo tempo que se pinta, desenha-se” (CÉZANNE, 1993, p. 24).
Cézanne, sem abandonar o desenho, acreditava que “quanto maior for a
harmonia da cor maior será a precisão do desenho”; assim, “o desenho e
a cor não são mais distintos, tudo na natureza é colorido” (CÉZANNE,
1993, p. 24).
Ao tratar do contorno e da cor como intercambiáveis, Cézanne
desencadeia uma “expressividade semelhante a que vivemos em nossa
experiência perceptiva” – conforme nos apresenta Müller (2001, p. 232)
lendo Merleau-Ponty. Isso porque sua pintura simula “para nós uma
situação de natureza” (MÜLLER, 2001, p. 234). Em suma, “Cézanne
faz de seus quadros significações ainda em formação, faz das diversas
imagens pintadas objetos ainda não consumados. Por conseguinte,
Cézanne motiva em nós a experiência expressiva que vivemos na
natureza” (MÜLLER, 2001, p. 234).

III

O que esse estilo de pintar tem a ver com a filosofia de


Merleau-Ponty? Ora, para este, o objetivo “é reconstituir o mundo como
sentido de ser absolutamente diferente do ‘representado’, a saber, como
ser vertical que nenhuma das ‘representações’ esgota e que todas
‘atingem’, o Ser selvagem” (VI, 301, 229). Era isso que Cézanne fazia,
aliás, na prática. A sua tentativa era contínua e sem fim. Chegou a
duvidar de tal feito, conseguindo, contudo, mostrar como ver a natureza
primordial e como ela pode ser transformada em linguagem na cultura.
Não é por mero elogio que Gombrich (1999, p. 539) afirmaria: “o
verdadeiro motivo de espanto é que Cézanne conseguiu realizar em suas
obras o que era aparentemente impossível”.
Nos últimos trabalhos feitos, Cézanne entrega-se ao “jogo livre”
das sensações e deixa vários pontos brancos na tela. Nessa fase, ele já
não se preocupa mais em preencher, com tinta, toda a extensão da tela.
Seu motivo mais caro, sem dúvida, foi a montanha Sainte-
Victoire – a qual pintara 122 vezes29-. Interrogando essa montanha
tantas vezes, mas como se fosse pintá-la pela primeira vez - como se

29
“Pintou 122 vezes a montanha Sainte-Victoire. E cada vez era uma nova
aventura, um novo começo, uma nova visão” (OSTROWER, 2003, p. 126).
61

todas as suas tentativas anteriores de alguma forma tivessem fracassado,


como se tudo o que tivesse dito a respeito dela fosse incompleto, ela, no
entanto, aparecia novamente ante seu olhar pedindo-lhe que a pintasse
de um “ponto de vista” sempre diferente. “É a própria montanha que, lá
distante, se mostra ao pintor, é a ela que ele interroga com o olhar” (OE,
28, 21). O que ele então pede a ela? Pede-a que lhe revele os “meios, tão
somente visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos”
(OE, 29, 21). Não apenas montanha como substância dura, maciça e
rochosa, mas também como pintura a partir da maneira como Cézanne a
apresenta a nós. Passado mais de um século, as telas cezannianas
continuam a nos mostrar que a montanha “se faz e se refaz de uma a
outra ponta do mundo, de outro modo30, mas não mais energicamente,
tal como na rocha dura acima de Aix” (OE, 35, 23).
Observemos dois momentos da percepção de Cézanne ao pintar
a montanha: na obra de meados da década 80, do século XIX, fica
evidente a atenção para a vegetação e demais detalhes que se projetam
no primeiro plano. A montanha se distancia do olhar do pintor. Nessas
pinturas, vemos que ele ainda se “apoia” nas leis da perspectiva
tradicional. Não as segue fielmente; entretanto, o seu olhar ainda está
“contaminado” pelos ensinamentos aprendidos nas escolas31 de arte. Nas
obras posteriores, as do início do século XX, a montanha aparece
soberana, de modo como se imporia no espaço da tela. Vemos na tela,
verdes que fazem parecer a presença de ramagens e florestas no céu: o
verde, que está no plano baixo do quadro, também aparece impresso no
alto, dando a entender que o conjunto está em movimento, ou seja, em
fluxo. O mato passeia no céu tanto quanto o azul do céu passeia por
entre as ramagens. Olhando essas paisagens, nosso olhar infiltra-se na
tela até o ponto em que sentimos que a obra está em nós, fazendo parte
de nosso mundo sensível. Assim, as ramagens passeiam em nosso corpo,
habitam nossa vida, e nós, também, adentramos na tela, sentindo-nos
integrar natureza e vida num mesmo golpe. O quadro gruda em nossa
retina, mostra nossas faltas, nossos dilemas e frustrações. E se o
entrelaçamento for profundo, chegamos a sentir o cheiro da montanha,

30
O itálico é nosso para chamarmos atenção quanto o fato de que o espectador
também co-cria com o autor-feitor.
31
De um modo geral, Cézanne aprende diretamente com os mestres dos
museus, especialmente os do Louvre, e também com Pissarro. “Escolas”, aqui,
tem mais o sentido de tradição em termos técnicos do que com uma instituição
“formadora” de artistas.
62

suas nuances, rachaduras e veios. Nosso olhar se instala nela da mesma


forma que ela faz vibrar nosso mundo vivido e atual.
Dentro deste contexto, vemos o quanto Cézanne deseja
expressar a perspectiva do mundo vivido, isto é, aquela que a percepção
livre comunga na natureza. Isto já o descrevemos. O mundo vivido é
permeado de coisas fervilhantes e vibrantes que disputam nosso olhar.
Nosso olhar, porém, apesar de ser parte de nosso corpo, abre-se e se
expande para além dele. A pintura de Cézanne mostra a Merleau-Ponty
que “nossos olhares não são atos de consciência, de que cada qual
reivindicaria uma indeclinável prioridade, mas, sim abertura de nossa
carne imediatamente preenchida pela carne universal32 do mundo” (S,
30, 16) .
Ao olhar para a montanha, nosso olhar encontra o “estranho” ao
qual ele é, entrementes, passivo. É certo, de acordo com o filósofo, que
a pintura não é criada pelo próprio pintor, conforme se costuma
acreditar. Este, numa imbricação (empiètement) com o mundo, precisa
estar aberto a uma dimensão passiva para que a obra possa ser feita. De
fato, Cézanne, imerso na natureza numa atividade em que precisa
“deixar acontecer” para que possa libertar-se33, entre as cores
complementares – que aprendeu com os impressionistas – percebe um
cinza de transição. Trata-se de um cinza que permite ver o real, ver que
além do verso e do reverso, uma deriva se abre, uma lacuna aparece, um
invisível se insinua. Em uma das cartas endereçadas ao amigo pintor
Pissarro, Cézanne (1992, p. 94) dá a fórmula mestra: “Você tem toda a
razão ao falar do cinza, só ele reina na natureza, mas é terrivelmente
difícil de captar”. Eis a definição do que pretende captar: esse cinza é a
mistura de duas cores complementares e, por conta disso, permite
perceber o “real34”. Porém, não basta pintar a tela toda de cinza. Isto
seria perder a identidade do mundo visível, mas pintar segundo uma
gradação de cores onde a cinza (real) aparece “timidamente”, se insinua,
se esconde, pede a presença de outra cor complementar, abrindo poros
dentro da imagem criada. Este cinza nos insere na natureza primordial,

32
Sobre a noção merleau-pontyana de carne e carne universal do mundo iremos
tratar mais demoradamente no capítulo três.
33
Para um esclarecimento melhor sobre a necessidade que Cézanne tem de
pintar para se libertar, recomendamos ler nossa dissertação de mestrado:
(BITENCOURT, Amauri Carboni. Merleau-Ponty acerca da pintura. 2008. 117
f. – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis).
34
Real, aqui, tem a ver com a noção merleau-pontyana de carne.
63

que é mais um ir além, como queria Van Gogh ao pintar os corvos, do


que voltar a algum lugar.

Imagens 8, 9, 10 e 11: Respectivamente: Fotografia da montanha Sainte-


Victoire; Pintura da montanha Sainte-Victoire de Auguste Renoir; Pintura A
montanha Sainte-Victoire (1882-1885), de Paul Cézanne; Pintura A montanha
Sainte-Victoire (1904-1906), de Paul Cézanne.

Fonte: 8- Disponível em: <http://dicasdefrances.blogspot.com.br/2011/09/franca-


imortalizada-na-pintura.html> 9 – Disponível em:
<http://pt.wahooart.com/a55a04/w.nsf/Opra/BRUE-8EWQ2W>; 10 – Disponível
em: <http://www.riototal.com.br/coojornal/reporter006.htm> Acesso em 16 set
2014; 11- BECKS-MALORNY, Ulrike. Paul Cézanne. Trad. Fernando Tomaz.
Korea. Paisagem, 2005, p. 75.

Imagem 12: Pintura A montanha Sainte-Victoire (1890-1894), de Paul Cézanne.

Fonte: BECKS-MALORNY, Ulrike. Paul Cézanne. Trad. Fernando Tomaz.


Korea. Paisagem, 2005, p. 79.
64

IV

Esse olhar atento do artista ultrapassa a realidade representada,


abrindo para algo além do material, do visível, abrindo ainda para um
invisível, para uma profundidade, para a “deflagração do Ser”, para o
Ser indivisível. É essa a lição “de fundo” que Cézanne deixa a Merleau-
Ponty.
Apesar de ser um tema tratado mais especificamente na obras
tardias de Merleau-Ponty, o Ser de indivisão35 já está em germe no texto
A dúvida de Cézanne, de 1942. O filósofo escrevia nessa obra que o
mestre de Aix queria pintar o “Todo Indivisível”, soldando “umas nas
outras todas as vistas parciais que o olhar tomava, reunir o que se
dispersa pela versatilidade dos olhos [...]” (SnS, 23, 132). Desta forma,
criando uma arte a partir de um olhar que abarcava a paisagem em sua
totalidade (plena) – o qual Cézanne chamava de “motivo” -. Diante da
natureza, descobrindo as bases geológicas, mergulhando nela, imóvel
por alguns momentos – às vezes horas, e até dias! - com os olhos
dilatados, abraçando a ordem nascente das coisas, só então poderia
germinar com a paisagem e exprimir esse mundo ainda humanamente
não cultivado.
É da natureza que o pintor tira seus motivos e cria suas obras.
Ela própria visível permite a retomada do artista para transferi-la para a
tela. Essa maneira de lidar com o mundo, com a natureza, fez com que
Merleau-Ponty percebesse que havia naquele estilo de pintar uma
filosofia da percepção36. Assim,

35
Não aprofundaremos, aqui, a noção de Ser de indivisão, pois esta será
retomada algumas vezes neste presente estudo, especialmente no terceiro
capítulo.
36
“[...] justamente porque a pintura traz à expressão o mundo visível, é o nosso
acesso ao ser que ela ajuda a definir, e no mesmo sentido em que fizera o
filósofo ao refletir sobre a percepção: a significação metafísica da pintura vai de
par com a significação metafísica da percepção. Daí o privilégio concedido por
Merleau-Ponty à pintura” (MOUTINHO, 2006, p. 343). Luiz Damon Moutinho
diz haver um privilégio da pintura em Merleau-Ponty, porém cremos que isso
não seja de todo verdadeiro, apesar de citá-la em diferentes textos. Em O olho e
o espírito, a reflexão de Merleau-Ponty versa sobre diferentes modos de arte: a
escultura de Rodin e Giacometti, por exemplo, também são tomadas com
tamanha força expressiva tal qual a pintura. Em A prosa do mundo, Merleau-
Ponty (PM, 124, 116) esclarece que “[é] preciso admitir que a linguagem, na
65

[...] a filosofia de Merleau-Ponty encontra-se com


a pintura porque ambas põem o problema do
visível, recorrendo ao porvir visível do mundo
para aquele que vê. Da mesma maneira que o
“sentido da filosofia é o sentido de uma gênese”, a
pintura está também orientada para o sentido de
uma gênese, visto que é considerada como o
esforço de instauração do visível (CAMINHA,
2008, p. 204).

Iraquitan Caminha nos mostra um termo chave ao tratarmos da


pintura de Cézanne: o “sentido de gênese”. A constituição ou a
formação do visível aparece como um dobrar-se sobre si mesmo: é a
partir dele que criamos outro visível, além de nos permitir, através do
olhar, perceber o próprio devir do mundo, que é poroso e cheio de
lacunas; que por uma espécie de invaginação e deiscência, torna
acessível, mesmo que de forma precária e anevoada, uma relação
fundamental com o Ser. O sentido de gênese é, portanto, o sentido de
nascimento. Nascer é vir a ser; é tornar-se para as coisas e para o
mundo; é uma promessa. A pintura faz isso: “arrebentando a ‘pele das
coisas’, para mostrar como as coisas se fazem coisas e o mundo,
mundo” (OE, 69, 37).
A criação do artista, sempre em curso e por se fazer, refazendo-
se continuamente, dia após dia, faz com que reencontremos a gênese
interminável do Ser. A obra suscita novas obras, exige o trabalho do
pintor, numa espécie de deiscência contínua, inesgotável e porosa do
visível, originando um sentido novo e singular do mundo. Assim o
pintor faz surgir um visível jamais visto.
Criar, a partir disso, passa a ser algo muito mais amplo e complexo.
Começamos a perceber que a pintura, outrossim, mostra-nos outras
possibilidades visíveis. A obra de arte busca a experiência originária do
mundo; insere-nos na ambiguidade visível-invisível, colocando-nos
ainda no ponto onde o filósofo chama de “raiz do mundo”, solo de toda
atividade humana.

maioria dos casos, não procede de um modo diferente que a pintura. Um


romance exprime como um quadro”. Isso tudo sem falar das reflexões de
Merleau-Ponty sobre o cinema!
66

2.2 Mais além das essências: pintura e transcendência

A pintura não é pura objetividade, mas transcendência, que


desvela o invisível em sua dobra, latência e abertura dos pretensos
visíveis. Mais que isso, de acordo com Merleau-Ponty, este invisível
exprime nossa participação no Ser Bruto37, nossa inserção na raiz do
mundo. Porém, não devemos confundir o Ser Bruto com a ideia clássica
de essência, como nos diz Merleau-Ponty: “Basta mostrar, por ora, que
o Ser único, a dimensionalidade à qual pertencem estes momentos, estas
folhas e dimensões, está além da essência e da existência clássicas,
tornando compreensível suas relações” (VI, 155, 116). A que momentos
Merleau-Ponty está se reportando? Seria o de um entrelaçamento do
tempo e do espaço, do ser de duas faces que é meu corpo, cujas
dimensões do Ser Bruto estão além das essências?
Num primeiro momento, ateremo-nos a uma questão central na
argumentação de Merleau-Ponty, qual seja, o tema da encarnação38 da
essência, que já aparece na Fenomenologia da Percepção. Neste texto, a
ideia de essência está vinculada fundamentalmente à noção de
existência. Inerente ao mundo, meu corpo é um sensível exemplar.
Aqui, especificamente, a investigação centra-se na relação entre o corpo
do pintor e o seu processo criativo.
No segundo momento, examinaremos a obra O visível e o
invisível em que Merleau-Ponty não fala mais das essências como sendo
“estruturadas” num corpo (encarnadas), mas como sistema de
diferenciação. O que resulta disso é uma criação bruta, tanto na arte em
geral quanto na filosofia. Vale lembrar que o filósofo almejava fazer
uma filosofia tal como uma obra de arte: uma filosofia que se
“instalasse” num lugar “pré-espacial” e que não fosse ainda cristalizada
pelo pensamento reflexivo, ou sedimentada culturalmente como
“instituição”.

37
A noção de Ser Bruto e Espírito Selvagem será retomada no terceiro capítulo.
38
O professor Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, no livro A carnalidade
da reflexão, apresenta três versões da carnalidade, as quais já podemos notar no
título do primeiro capítulo: A percepção encarnada: o corpo, o cogito e o
tempo. Nós trataremos, mais especificamente em nossa pesquisa, da questão do
corpo próprio.
67

Nesse sentido, o corpo, sendo aberto e fecundo, imbrica-se com


as coisas e com o mundo, mantendo uma relação de entrelaçamento,
estando, pois, imerso no visível, mergulhando no “solo do mundo
sensível” (OE, 16, 16), assistindo, por dentro, a deiscência do ser,
transformando o mundo em pintura. Assim, “ele próprio visível, o
vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar,
se abre ao mundo (OE, 18, 16).

II

Merleau-Ponty, no Prefácio da Fenomenologia da Percepção,


descreve que “[a]s essências de Husserl devem trazer consigo todas as
relações vivas da experiência, assim como a rede traz do fundo do mar
os peixes e as algas palpitantes” (PhP, x39, 12). Deste modo, as essências
não estão fora do mundo da vida, mas, pelo contrário, a fenomenologia
recoloca a essência na existência. A comentadora Creusa Capalbo
(2004, p. 11) assegura esse pensamento ao dizer que, para Merleau-
Ponty, “a essência [...] não é um campo transcendental separado da
existência: ela está no campo fenomenal inerente ao mundo”. A filosofia
deve lidar com o mundo antes da reflexão, mundo que está sempre “ali”,
“como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em
reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um
estatuto filosófico” (PhP, I, 1). A ciência, por sua vez, tenta operar com
as coisas na tentativa de uma explicação racional dos fenômenos que
circundam nossa vida.
Tratando a ciência como uma “expressão segunda”, uma vez
que o universo científico é construído sobre o mundo vivido, Merleau-
Ponty afirma que “a ciência não têm e não terá jamais o mesmo sentido
de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma
determinação ou uma explicação dele” (PhP, iii, 3). Afinal, o mundo
está sempre ali e estamos imersos nele, de modo que é a partir dele que
a ciência cria suas hipóteses. Contudo, os cientistas elaboram suas teses
pressupondo uma base comum, manipulando as coisas e renunciando
“habitá-las” (OE, 9, 13). “Estabelece modelos internos delas”, alega
Merleau-Ponty em O olho e o espírito, “e, operando sobre esses índices
ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, é que só de
longe em longe se confronta com o mundo real” (OE, 9, 13). Esta

39
A paginação da introdução da Fenomenologia da Percepção é feita em
algarismos romanos.
68

retomada do pensamento operatório, científico, por definição, tanto na


Fenomenologia da Percepção quanto em O olho e o espírito, mostra
que o filósofo não credita a prática científica como absoluta e autônoma
na tentativa de traduzir a verdade do mundo objetivo40. Um dos
problemas levantados por Merleau-Ponty é o fato de este tipo de
procedimento ser “a estreita ramificação sobre a qual se farão
cristalizações imprevisíveis” (OE, 11, 14). O que vale destacar é que no
primeiro texto, Merleau-Ponty ainda acredita que há essências
“encarnadas”, e se temos encarnações então temos como fazer ciência.
Isto ainda pressupõe que há possibilidades de encontrar “verdades” a
partir de experimentos sistematizados. Ora, justamente o que ele quer é
sair desse pensamento de sobrevoo, operativo, reflexivo e cristalizado,
que nega o enraizamento do homem no mundo, distanciado, como se
vivesse em algum lugar além ou aquém do universo vivido. No intuito
de resolver esse problema, Merleau-Ponty propõe, em O olho e o
espírito: “[é] preciso que o pensamento de ciência – pensamento de
sobrevoo, pensamento do objeto em geral – torne a se colocar num “há”
prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado
tais como são em nossa vida, por nosso corpo” (OE, 12-13, 15). Assim
como a arte o fez, e somente desta forma é que “o pensamento alegre e
improvisador da ciência aprenderá a ponderar sobre as coisas e sobre si
mesmo, voltará a ser filosofia...” (OE, 13, 15). Obviamente que ele não
está falando do pensamento filosófico concebido como aquele
“embalsamado” pela tradição, mas de um que quer experimentar o
mundo pela raiz. Nesse sentido, Merleau-Ponty declara que “a arte, e
especialmente a pintura, abeberam-se nesse lençol de sentido bruto do
qual o ativismo nada quer saber” (OE, 13, 15).
Participando do mundo, nosso corpo atual, como fenômeno ou
essência, está sempre “ali”, mais aquém ou além das outras coisas, como
presença marcante, vibrante e inalienável. Só sei do mundo através das
minhas experiências, da minha inserção na história, do meu corpo que
vê e sente, corpo este que, nos primeiros escritos de Merleau-Ponty,

40
“O verdadeiro, para a ciência, é o objetivo realizado pelas operações em busca
de uma ordem de fatos. Assim, a ciência exclui aquilo que ela chama de
subjetivo, para realizar em torno de si mesma um projeto imparcial que nos
habita e nos faz acreditar num Grande objeto, capaz de edificar o mundo
existente através de uma série indefinida de operações suas, pressupondo-as e
sustentando-as, elas mesmas, e não acreditar nas obscuridades da fé, perceptiva
ou ingênua, que temos do mundo” (SILVA, A., 2010, p. 105).
69

evocara o sentido ontológico de uma experiência com o mundo. O que


chamamos corpo41, mais do que estar no espaço objetivo, “ele é no
espaço” (PhP, 173, 205). É uma maneira geral de participar do mundo,
sendo parte dele e não apenas habitando-o como um substrato a mais.
“[...] não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo; eu
sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca” (PhP,
164, 195). O corpo faz parte do espaço e do tempo; contudo não é um
fragmento do espaço, um bloco de ser maciço, um em si ou matéria. O
corpo do qual falamos está além ou aquém do mundo sedimentado pela
filosofia reflexiva ou pela biologia moderna: o corpo habita o mundo,
está imerso nele como a neblina que deixa uma paisagem indefinida
num dia de inverno. Há, nesta situação, uma relação de imbricação e
entrecruzamento, de modo que mal se consegue diferenciar o que seja
paisagem e o que seja neblina. Dessa mesclagem não podemos
distinguir uma da outra. Os psicólogos clássicos afirmam, por sua vez,
que os objetos não são ambíguos, não são confusos. Acreditam que “há
muitos espetáculos confusos, como uma paisagem em um dia de névoa,
mas justamente nós sempre admitimos que nenhuma paisagem real é em
si confusa” (PhP, 12, 27). Ela só nos aparece confusa e ambígua por
“desatenção”, ou seja, por não estarmos “situados”. Isso os psicólogos
de outrora tentavam fazer com que nós acreditássemos. Merleau-Ponty,
entretanto, esclarece-nos que não há uma linha divisória que separa o
corpo e o mundo, bem como o pintor e a sua obra.
Os pintores emprestam sua visão e suas mãos ao mundo, e, por
consequência, à arte. Metamorfoseiam, portanto, os elementos picturais
na tela fazendo surgir uma nova forma de visibilidade. Ou, tal como o
poeta Rilke afirma: “arte significa não saber que o mundo já existe, e
fazer um” (2007, p. 192). Quiçá possamos criar um mundo novo tal
como as palavras sugeridas por Manoel de Barros (2013, p. 318): “Eu
fiz o nada aparecer”.
O corpo próprio não é somente aquele constituído por órgãos e
funções que a ciência tenta analisar e explicar, mas aquele que participa
do “movimento de expressão” (PhP, 171, 202). Não sendo separado do
mundo “[...] o corpo42 humano se exprime, ele próprio, em tudo o que

41
“Pensar o corpo equivale a reencontrar, sob a experiência objetiva do corpo,
essa evidência ambígua que é o corpo próprio em sua relação originária com o
mundo e com outrem (CARDIM, 2009, p. 90).
42
O corpo “é a origem de todos os fenômenos de expressão no espaço, o
próprio movimento de expressão” (MÜLLER, 2001, p. 199).
70

faz” (PM, 113, 108). É nesse sentido que Merleau-Ponty afirma que o
corpo não deve ser comparado a um objeto físico, a uma máquina ou
sistema funcional. Ele deve ser, antes, comparado a uma obra de arte43,
na direção em que, como toda arte - seja um romance, um poema, um
quadro ou uma peça musical - “não se pode distinguir a expressão do
expresso, cujo sentido, só é acessível por um contato direto, e que
irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial”
(PhP, 209-10). Ademais, “é um nó de significações vivas e não a lei de
um certo número de termos co-variantes” (PhP, 177, 210).
Nesse contexto, “nosso corpo não é apenas um espaço
expressivo entre todos os outros” (PhP, 171, 202). Ademais, ele “é a
origem de todos os outros, o próprio movimento de expressão, aquilo
que projeta as significações no exterior dando-lhes um lugar, aquilo que
faz com que elas comecem a existir como coisas, sob nossas mãos, sob
nossos olhos” (PhP, 171, 202). É através de meu corpo que experencio
um mundo. Por habitar o mundo, o corpo se engendra no espaço. “A
espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a
maneira pela qual ele se realiza como corpo” (PhP, 174, 206).
Pensemos na relação entre o cego e sua bengala: a bengala, para
ele, mais do que um instrumento de lidar com o mundo, passa a fazer
parte do seu corpo. Afirma Merleau-Ponty: “A bengala do cego deixou
de ser para ele um objeto, ela não mais é percebida por si mesma, sua
extremidade transformou-se em zona sensível, ela aumenta a amplitude
e o raio de ação do tocar, tornou-se o análogo de um olhar” (PhP, 167,
198). Sendo extensão do seu corpo, o cego não precisa ficar analisando
o comprimento dela toda vez que tiver que sair de casa. “Na exploração
dos objetos”, nos diz o filósofo, “o comprimento da bengala não
intervém expressamente e como meio-termo: o cego o conhece pela
posição dos objetos, antes que a posição dos objetos por ele” (PhP, 167,
198). O hábito de utilizar a bengala é semelhante ao hábito de tocar as
coisas com seu braço. “Habituar-se a um chapéu, a um automóvel ou a
uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los participar do
caráter volumoso do nosso corpo próprio” (PhP, 167, 198). Esse
dilatamento de nosso corpo, anexando a ele instrumentos, só é possível

43
“A unidade do corpo próprio é comparável à da obra de arte. Pois na arte é
bastante claro o fato de que forma e conteúdo não podem se separar, ou melhor,
a expressão e aquilo que foi expresso são indissociáveis, pois formam um ‘nó de
significações vivas’” (CARDIM, 2009, p. 112).
71

por meio da repetição. É através da repetição que dilato o meu mundo,


incorporando elementos que o tornam mais alargado.
Quando estou dirigindo um veículo, por exemplo, meu corpo
não é apenas um corpo psico-físico-biológico. Ele se alarga de modo
que os limites externos do carro “transformam” o próprio limite do
corpo. Assim, tomo todos os cuidados para não sofrer acidente. Colidir
alguma parte do carro seria como que ferir alguma parte do corpo. Ao
pensar em fazer uma curva, faço-a pensando na extensão toda do “meu
corpo expandido”. Meus olhos também se ampliam: eles já não são mais
simples funções orgânicas faciais. Com ele, aderem-se o retrovisor, a
janela, o para-brisa e, se acaso estou dirigindo à noite, os faróis.
O pincel, para o pintor, funciona como a bengala para o cego:
“Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo dos
objetos táteis recua e não mais começa na epiderme da mão, mas na
extremidade da bengala” (PhP, 177, 210). No momento da criação há
uma expansão do corpo do pintor para além daquilo que a ciência chama
de corpo, onde o pincel não é mais um simples instrumento para
depositar a tinta e varrer a superfície da tela: é uma extensão do próprio
corpo. Sendo extensão do braço do pintor, o pincel interage com a tela,
cujo gesto, através das mais variadas técnicas, traduz e promove o
encontro da natureza com o olhar “pré-humano”, conferindo “existência
visível ao que a visão profana crê invisível [...]” (OE, 27, 20).
Parafraseando Merleau-Ponty: o pincel “é um apêndice do corpo, uma
extensão da síntese corporal” (PhP, 178, 211). Esta analogia entre o
pincel e corpo, ou entre a bengala e o corpo, é comparável à interação
entre o olhar e o corpo. Afinal, ambos são feitos do mesmo “estofo”. O
filósofo assim esclarece esse entrelaçamento: “Com o olhar, dispomos
de um instrumento natural comparável à bengala do cego. O olhar
obtém mais ou menos das coisas segundo a maneira pela qual ele as
interroga, pela qual ele desliza ou se apoia nelas” (PhP, 179, 212).
O pintor pensa com o olho e com a mão – ou o braço44 –, e por
extensão, com o pincel. Merleau-Ponty nos lembra que Cézanne “pensa
por meio da pintura” (OE, 60, 33). É emprestando o seu corpo operante
e atual que o pintor cria as condições para a pintura germinar. Por meio

44
Há artistas que pintam mais com as mãos e outros que pintam com os braços.
Um trabalho meticuloso, como é o de Ingres, por exemplo, requer do artista
uma extraordinária habilidade manual, ao passo que Picasso, por sua vez, faz
muito mais o movimento com o braço do que com a mão: o gesto do braço é
que anima a matéria pictural e traz à vida o fundo de natureza primordial.
72

destas transubstanciações, entre seu corpo e o mundo, é que a pintura


surge como “segunda potência”, isto é, como “essência carnal ou ícone
do primeiro” (OE, 22, 18). A primeira potência do perceber acontece
quando o pintor olha o mundo45: ele observa, capta o seu “motivo” (ou é
capturado por ele), retoma-o e “converte justamente em objeto visível o
que, sem ele, permanece encerrado na vida separada de cada
consciência” (SnS, 23, 133). O olho do pintor “é aquilo que foi
sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível
pelos traços da mão” (OE, 26, 20). A segunda potência é o visível criado
na tela.
O entrelaçamento entre Cézanne e sua arte é tão forte e íntimo
que o levou a confessar: “em cada uma das minhas pinceladas há algo
do meu sangue” (CÉZANNE, 1993, p. 66). Desejando pintar até os
odores das coisas, o artista celebra o mistério da visibilidade. Quando
ele pinta a montanha Sainte-Victoire, na tentativa de apreender o real –
ou a verdade em pintura – pinta-a inúmeras vezes porque, de alguma
forma, não consegue expressar totalmente o que vê. Mais do que
interrogar a montanha, seu olhar nasce em meio à percepção dela, ou
melhor: transubstanciando a pedra dura no alto de Aix em dados visuais
pictóricos, Cézanne se abre a ela e, por consequência, ao mundo. Aqui,
não se trata mais de um corpo abstraído e desfigurado, mas
transfigurado, um corpo que está rodeado pelo visível, que é rodeado e
circundado. Isto quer dizer que: “Vê-se, é um visível, mas vê-se vendo”,
e se ele “é posto de pé diante do mundo e o mundo de pé diante dele”,
podemos reconhecer que “há entre ambos uma relação de abraço. E
entre esses dois seres verticais não há fronteira, mas superfície de
contato [...]” (VI, 318, 242). Cumpre-nos, então prosseguir na
investigação desse corpo ampliado, aqui figurado nas últimas reflexões
ontológicas de Merleau-Ponty.

45
“Qualquer percepção, qualquer ação que a suponha, em suma qualquer uso
humano do corpo já é expressão primordial [...]” (S, 108, 99). [itálico do autor].
73

Imagem 13: Pintura Banhistas, de Paul Cézanne.

Fonte: Disponível em: <http://latinorium.blogspot.com.br/


2006_02_01_archive.html> Acesso 16 set 2014.

Imagem 14: Pintura As grandes banhistas (1898-1905), de Paul Cézanne.

Fonte: BECKS-MALORNY, Ulrike. Paul Cézanne. Trad. Fernando Tomaz.


Korea. Paisagem, 2005, p. 89.
74

III

Se até os textos escritos em 1945 Merleau-Ponty admitia que


existia no mundo uma ciência em nascimento como se a verdade já
estivesse em curso, nO visível e o invisível, o filósofo assume uma
postura menos romântica e vai dizer que, ao invés de essências, o que há
são sistemas de diferenciação. A partir disso, Merleau-Ponty começa a
pensar algo que está aquém e além da essência, qual seja, uma “criação
bruta”. Esta criação não dispensa a participação do corpo – afinal, é
empregando o seu corpo que o artista pinta -, porém, não é mais uma
expressão por meio do “corpo próprio” (este que ele pensara na
Fenomenologia da percepção), mas um corpo que se amplia de maneira
que ambos, expressão e corporeidade, façam parte de uma única
aventura.
Repensando o universo científico, afirma Merleau-Ponty (VI,
144, 108):

A questão permanece indecisa no saber científico


porque nele verdades de fato e verdades de razão
se imbricam umas nas outras, sendo a
circunscrição dos fatos, como a elaboração das
essências, conduzidas por pressupostos que cabe
interrogar, se se pretende saber plenamente o que
a ciência quer dizer.

Não podemos mais distinguir fato de essência, porque o mundo


não está mais diante de nós, a nossa frente – ou alhures - mas nos
envolve e, de alguma forma, atravessa-nos. Não conseguimos
circunscrever o que seja fato e o que seja essência, pois teríamos que
sair do campo da experiência. Ademais, para nós “não há visão positiva
que [nos46] dê definitivamente a essencialidade da essência” (VI, 149,
111). O que Merleau-Ponty faz é retomar e a aprofundar o princípio de
que

Não há mais essências acima de nós, objetos


positivos, oferecidos a um olho espiritual, há,
porém, uma essência sob nós, nervura comum do
significante e do significado, aderência e
reversibilidade de um a outro, como as coisas

46
Adaptamos o texto para a primeira pessoa do plural.
75

visíveis são as dobras secretas de nossa carne e de


nosso corpo, embora este também seja uma das
coisas visíveis (VI, 156, 117).

Nosso corpo, sendo uma das coisas visíveis, não está no espaço
e no tempo conforme pensara Merleau-Ponty nos primeiros escritos,
tampouco está fora deles: “nada há antes dele, em torno dele que possa
rivalizar com sua visibilidade” (VI, 150, 113). Aqui, o espaço e o tempo
não são vistos como medidas e numericamente contados, mas se
estendem ou se encolhem, numa “espécie de enrolamento ou
redobramento, profundamente homogêneo em relação a eles” (VI, 150,
113) e que o filósofo caracteriza como o presente visível. Nesse ponto,
Merleau-Ponty apresenta o cerne da questão:

O espaço, o tempo das coisas são farrapos dele


próprio, de sua espacialização, de sua
temporalização, não mais uma multiplicidade de
indivíduos distribuídos sincrônica e
diacronicamente, mas um relevo do simultâneo e
do sucessivo, polpa espacial e temporal onde os
indivíduos se formam por diferenciação (VI, 151,
113).

O que Merleau-Ponty entende então por diferenciação?


É por diferenciação que conseguimos distinguir uma cor de
outra, assim como podemos perceber o sistema de equivalências
impresso nas obras de um pintor. Essas pequenas deformações coerentes
consolidam aquilo que chamamos de estilo de um artista. É por
diferenciação que sentimos a presença de outrem na medida em que ele
é para nós, ao mesmo tempo, um familiar e um amigo. “Diferenciação
é”, segundo Chauí (2002, p. 100), “sobretudo, transcendência e distância
a si, reflexão iminente e eminente que jamais termina em coincidência
[...]”. Só conseguimos saber dos traços feitos por Cézanne colocando-os
em comparação, ora identificando-o, ora diferenciando-o com traços de
outros artistas. Esse é o enigma que nos permite alcançar uma coisa a
partir de outra, bem como uma “individuação por segregação” (CHAUÍ,
2002, p. 110), ou esse duplo acontecer num mesmo fenômeno. É assim
que ao ler os textos merleau-pontyanos, percebe-se, a todo momento, a
importância estratégica do tema da ambiguidade. É uma diferenciação
que não é apenas separação, mas que traz consigo também a identidade.
A isso Müller-Granzotto (2007, p. 295) faz um comentário explicativo:
76

No coração do ser carnal, encontramos uma


ambiguidade que consiste no fato de a percepção
ser, ao mesmo tempo, familiaridade e
estranhamento, identificação e diferença. Tal
permite compreender qual é, enfim, a indivisão de
que fala Merleau-Ponty, precisamente: a indivisão
entre o idêntico e o diferente, entre o sensível e
não sensível, entre o presente e o ausente, enfim,
entre o “visível e o invisível”.

É a partir do entendimento desta ambiguidade que podemos


compreender o princípio ontológico de Ser de Indivisão. Mais do que
isso: “não existe identidade e não-identidade nem não-coincidência,
existe o fora e o dentro girando um torno do outro” (VI, 312, 237). Por
isso, sua proposta de filosofia não é de construção, mas de “centro”47.
De acordo com ele, descrever alguma coisa - ou fato - é mais
circunscrever um campo de presença do que defini-la ou analisá-la;
fazendo isso (definir/analisar), estaríamos fixando-a, petrificando-a,
interrompendo seu próprio movimento no fluxo dos acontecimentos. É
nesse sentido que ele aproxima a filosofia da arte. Afirma Merleau-
Ponty (VI, 248, 187): “a arte e a filosofia em conjunto, são justamente
não fabricações arbitrárias no universo do espiritual (da ‘cultura’), mas
contato com o Ser na medida em que são criações”.
Eis então que ele traz à luz uma elocução que parece traduzir o
seu pensamento: “O Ser48 é o que exige de nós criação para que dele

47
Sobre fazer uma filosofia como “centro” Merleau-Ponty (VI, 218, 164)
propõe nO visível e o invisível: “[...] o que dizemos sobre a alma ou sobre o
sujeito psicofísico antecipa o que diremos sobre a reflexão, a consciência, a
razão e o absoluto. – Essa circularidade não é uma objeção - Seguimos a ordem
das matérias, não há ordem das razões – a ordem das razões não nos daria a
convicção que a ordem das matérias dá – a filosofia como centro, não como
construção”.
48
O professor Pascal Dupont (2008, p. 105-106) assim comenta esta passagem:
“[...] o logos do ser de cultura ou ‘proferido’ (prophorikos) é o caminho
obrigatório para que tenhamos experiência dos seres e do ser. Mas o logos
proferido não é vivo senão por ser sempre contestado, sempre retornado pelo
Ser bruto e pelo logos interior (endiathetos), que é sua armadura. E é por isso
que nossas obras de cultura jamais poderão se fechar nelas mesmas ou constituir
uma totalidade concluída e separada. Elas são sempre testemunhas de um
mundo inesgotável”.
77

tenhamos experiência”49 (VI, 248, 187). Essa fórmula merleau-pontyana


vai na contramão de toda a tradição filosófica. Ao invés de pensar a
experiência, ele propõe uma experiência do próprio pensar. E para que
possamos ter experiência precisamos criar. Fazer literatura, pintura,
filosofia ou música seria como uma “inscrição no Ser”, como se o Ser se
falasse em nós, como “reintegração no Ser” ou como que
“reencontrando a sua origem”. “É, portanto”, diz Merleau-Ponty,
“criação em seu sentido radical: criação que ao mesmo tempo que é
adequação se constitui na única maneira de obter uma adequação” (VI,
248, 187).
Sem um modelo pré-dado que lhe garanta acesso ao Ser, o
artista vai tateando ao redor de uma intenção, “pois é sua ação que abre
a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser”
(CHAUÍ, 2002, p. 152). Ação que é feita com o pintor empregando o
seu corpo, não o corpo próprio, mas um corpo que “é um todo que não
se reduz à soma das partes”: é uma Gestalt. O que Merleau-Ponty quer
dizer com isso? De modo semelhante a uma pintura em que não
podemos analisar cada elemento pictural em separado – traço, linha, cor,
etc. – o corpo não se resume a um montante de órgãos, funções e
membros. “Ele é uma Gestalt, também ele e eminentemente é
significação prenhe, ele é carne” (VI, 255, 193).

IV

Vimos que, na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty


(PhP, 216, 252-253) descreve um corpo que se engaja com as coisas de
modo que elas coexistem com ele “enquanto sujeito encarnado”.
Também aprendemos que “é por [nosso50] corpo que [compreendemos]
o outro, assim como é por [nosso] corpo que [percebemos] as coisas”.
(PhP, 216, 253). Não sendo um autômato ou uma máquina, tampouco
um conjunto de órgãos, funções e membros, o corpo, mais do que a sede
de onde experimento todas as experiências, mantém com o mundo
relações de comércio, há uma relação de quiasma, de reversibilidade.

49
Especialmente nesta citação, seguimos a tradução de Marilena Chauí (2002,
p. 151) – no original: “L’Être est cequi exige de nous création pour que nous em
ayons l’expérience” (VI, 248).
50
Adaptamos o texto para a primeira pessoa do plural.
78

Ele participa do mundo, é feito do mesmo tecido51; é um Gestalt,


estando, pois, circundado e entrelaçado com o visível.
Como Gestalt, “implica a relação de um corpo perceptivo com
um mundo sensível” (VI, 256, 193); o corpo é carne. Diz-nos Merleau-
Ponty: “É preciso pensar a carne, não a partir das substâncias, corpo e
espírito, pois seria então a união dos contraditórios, mas como elemento,
emblema concreto de uma maneira de ser geral” (VI, 191, 143). O que
ele chama de carne não tem relação com o sentido dado ao nome
habitual: mas, sim, de uma “matéria comum”, elemento (no sentido pré-
socrático do termo), reversibilidade do vidente e do mundo visível e do
visível em vidente. A carne é “abertura sempre a se refazer” ou
“diferenciação nunca acabada”. Ela é a “noção última”, o “enrolamento
do visível no visível” que “atravessa e anima tanto os outros corpos
como o meu”. Nessa perspectiva, escreve Chauí (2002, p. 156): a
“deiscência da Carne significa que a Carne – do mundo e nossa é o
originário e este é gênese interminável que pede, exige nossa criação
para que possamos experimentá-lo”.
É dessa forma que o corpo é capaz de criar, ou seja, de ir à raiz
das coisas, aquém do mundo cultural e cultivado dos homens, a fim de
reabilitar o estado original da criação, o Ser Bruto, onde conseguimos
captar a vibração das coisas em seu nascimento contínuo.
Na Prosa do mundo, Merleau-Ponty diz que

Não faríamos nada se não tivéssemos, com nosso


corpo, o meio de saltar por cima de todos os
meios nervosos e musculares do movimento para
nos conduzir à meta antecipada. É da mesma
maneira, imperiosa e breve, que o artista, sem
transições nem preparações, nos lança num
mundo novo (PM, 127, 119).

De toda sorte, “o pintor, qualquer que seja, enquanto pinta,


pratica uma teoria mágica da visão.” (OE, 27-8 20). Ele busca exprimir
o mundo: que as coisas, de alguma forma, entram nele e ele as esboça na
tela. “O mundo não está mais diante dele por representação: é antes o
pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do

51
“O tecido comum de que são feitas todas as estruturas é o visível, que, ele
próprio, não é, de modo algum, objetividade, em si, mas transcendência [...] não
como nada, não como algo, mas como unidade de transgressão, ou de
imbricação correlativa de ‘coisa’ e ‘mundo’’” (VI, 250, 189).
79

visível[...]” (OE, 69, 37). Desta maneira, a pintura, ao entrelaçar-se com


o mundo, busca o inatual, o Ser de indivisão: busca expressar o mundo
primordial, a gênese mesma do Ser.
Não há uma constituição da arte, como se pensa
tradicionalmente – em que o pintor tem uma ideia em mente52 e a
expressa na tela –, ou seja, o processo criativo não é governado pelo
pensamento, mas acontece quando o pintor se abre ao mundo, se
lançando, pois, nele tal qual uma criança que se atira nos braços do pai.
Esta analogia não é de toda bem-sucedida: a criança que se atira nos
braços do pai sabe que o pai a segurará, já o pintor que se lança no
mundo, munido de tintas e pincéis, não tem certeza se a obra está
resguardada ou se ainda nascerá. Ele mergulha na natureza, germinando
com a obra. Nem sempre a relação é de toda fecunda: algumas vezes são
apenas tentativas e a obra perece no mesmo instante em que nasce.
Ao germinar com a obra, o pintor, ao mesmo tempo em que
imprime as técnicas aprendidas, começa a perceber que algo acontece na
criação, algo que foge do seu entendimento: o ato criativo vai mais além
do que ele pretendia a priori. A obra faz-se quase que espontaneamente.
A questão é que no momento da expressão – na atividade-passividade
do pintor – há um estilo que é expresso na obra, perpassando e como
que se repetindo em todo o seu percurso artístico. Este estilo não é uma
escolha consciente do artista. É neste sentido que Merleau-Ponty
observa:

Do mesmo modo que a nervura sustém a folha por


dentro, do fundo de sua carne, as ideias são a
textura da experiência; seu estilo, primeiramente
mudo, em seguida proferido. Como todo estilo,
elas se elaboram na espessura do ser, e não apenas
de fato mas de direito não poderiam ser separadas
para serem expostas ao olhar. (VI, 157, 118).

Posto nestes termos, as ideias nascem quando o pintor está


imerso na expressão, no instante em que seu olhar percebe a vibração
das coisas querendo aparecer, brotar do solo bruto e selvagem, onde não

52
Apesar da proposição de Merleau-Ponty acerca do fazer artístico e de toda a
questão da percepção, Paul Valéry (2003, p. 29) diz o contrário: “É verdade que
uma coisa é ainda mais instrutiva: a espantosa inexatidão provável da
observação imediata, a falsificação que é obra de nossos olhos. Observar é, em
grande parte, imaginar o que queremos ver.”
80

temos ainda a cisão entre o que é vidente e o que é visível, pois ambos
imbricam-se mutuamente, mesclando-se, entrelaçando-se,
possibilitando, a esse modo, que um novo visível venha à tona. Como
nota Merleau-Ponty:

[...] isso se faz porque uma espécie de deiscência


fende meu corpo em dois e, entre ele olhando e
ele olhado, ele tocando e ele tocado, há
recobrimento e imbricação, sendo, pois, mister
dizer que as coisas passam por dentro de nós,
assim como nós por dentro das coisas (VI, 162,
121).

Ilustrando e justificando esse enigma do corpo que é vidente-visível


e que funciona como uma espécie de espelho, porque traduz e duplica
uma “reflexibilidade do sensível” (OE, 33, 22), a pintura – através do
olhar artístico – é aquilo que foi afetado por um certo impulso corporal
com o mundo; e as mãos o restitui criando um visível à segunda
potência. Assim, “qualidade, luz, cor, profundidade, que estão a uma
certa distância diante de nós, só estão aí porque despertam um eco em
nosso corpo, porque este as acolhe” (OE, 22, 18).

2.3 Cor, linha e movimento como desdobramentos do visível

I
O pintor tem a tarefa de captar na natureza o seu motivo,
transformando-o em pintura. Em sua visão atual, há “o encontro, como
numa encruzilhada”, nos diz Merleau-Ponty, “de todos os aspectos do
Ser” (OE, 86, 44) em que estes lhe aparecem misturados e
embaralhados. Esta percepção primordial, atual, em que o “Ser mudo”
vem, “ele próprio, manifestar seu sentido” (OE, 87, 44) é expresso na
tela como uma segunda visão. Em função disso, podemos reconhecer
que há duas expressões: a do olhar do pintor que vê o mundo e aquela
que ele imprime no quadro. Nesse sentido, perguntamo-nos: podemos
dizer que o ato de pintar é decidido apenas pela individualidade53 do
pintor?

53
Malraux afirma que o pintor moderno pinta a sua subjetividade. Para uma
melhor leitura sobre o tema veja o item 2.4 da presente tese.
81

Sob este aspecto, Merleau-Ponty observa que o pintor


experimenta, no ato criativo, uma reversibilidade do olhar. Ele que olha
a natureza também se sente olhado por ela. Esse tema, que será melhor
desenvolvido no capítulo três da presente tese, retrata, em síntese, que o
pintor é ativo e passivo diante da natureza e da obra. Havendo, pois o
entrelaçamento do pintor com o mundo, Merleau-Ponty diz que ele não
é o único agente do seu feito, mas “no fundo imemorial do visível algo
se mexeu, se acendeu, algo que invade o seu corpo, e tudo o que ele
pinta é uma suscitação” de uma “longínqua vontade” (OE, 86, 44) e, por
consequência, a obra emerge de um fundo “pré-espacial”. Sob esse
prisma, num ensaio em que avalia a questão da passividade e criação
artística, a partir dos escritos de Merleau-Ponty, Ménasé (2008, p. 245)
afirma que
Assim como a coisa é o resultado de uma
deiscência do ser, da mesma forma a prática
artística dá a ver algo na relação carnal da
atividade e da passividade. A criação não poderia
ser execução. Porque não se trata somente de
colocar em forma nem de reproduzir uma forma
tal como aprendi a ver sob o modo da identidade.

Seguindo este mesmo argumento, diz ela:

A arte tal como a definimos, a saber, prática


criadora – integrando a experiência como abertura
à passividade – exprime uma dimensão da
realidade que é o escapamento, que não se deixa
apreender, um indomável, um ser selvagem. A
criação seria o movimento que inscreve uma
fratura, uma brecha, uma abertura (MÉNASÉ,
2008, p. 245).

Apesar de a arte estar a serviço da visibilidade, Ménasé


compreende que ela também faz ver o invisível. De alguma forma, o
pintor sabe e experimenta em meio à percepção da natureza,
expressando-a como obra. O que ele percebe não é um visível como
algo positivo e sólido, mas algo poroso, que ultrapassa sua visão, que
fura seu corpo; algo que não se deixa dominar, numa palavra, selvagem.
É nesse lugar ambíguo que o artista “se instala” para poder se expressar.
Não como uma decisão sua – individual -, mas como se isso se fizesse
necessário pela própria solicitação do mundo; como ainda “uma certa
centelha, um impulso de transformar, de modo que “algo” se acende,
82

transmitindo-se através da mão”, imprimindo cores, linhas e


movimentos, “espalhando-se sobre a tela e sobre ela salta de volta, como
brasa, fechando o círculo de onde se originou”; mais do que isso: volta
aos olhos e “para além deles” (KLEE, 2004, p. 129). Essa é a
circularidade do ato expressivo: uma faísca nasce e com ela a
reversibilidade do mundo visível e sensível.
Não poderíamos conceber uma pintura se nela não tivéssemos
impressos cores, linhas e movimentos. Vale lembrar que a soma deles
não constitui o todo da obra, mas sem eles ela perderia seu sentido e sua
“grandeza”. A obra contém esses elementos, mas quando colocadas em
conjunto, permite-nos, semelhante a Cézanne no tocante a profundidade,
buscar a “deflagração do Ser”, o invisível. A profundidade, contudo, não
“está em todos os modos do espaço, assim como na forma” (OE, 65,
35).
Onde estaria então? Mais do que uma representação do mundo,
uma espécie de “animação interna”, uma “irradiação do visível”, a
pintura nos insere mais além ou aquém da natureza, isto é, no próprio
“coração” do visível, no mundo bruto e primordial. Esta profundidade,
esta reversibilidade entre o visível e o invisível, o pintor procura sob os
nomes de cor, linha e movimento. Esse mistério da expressão é notado
por Merleau-Ponty – no tocante a Cézanne – como o artista que se
esforça em pintar a natureza em sua origem. Afirma-nos o filósofo:
“profundidade, cor, forma, linha, movimento, contorno, fisionomia, são
ramos do Ser, e cada um deles pode trazer consigo toda a ramagem”
(OE, 88, 45).
Linha, cor e movimento, dão a ideia de estilos de diferenciação,
ou seja, em vez de nos apresentar verdades ou essências, percebermos
diferenciações. Essas diferenciações podem ser descritas por intermédio
de suas marcas, traços, pinceladas, estilos... com isso, a pintura,
mediante esses elementos picturais, permite-nos um acesso metafórico
ao Ser. Afinal, por meio deles que conseguimos observar a perspectiva
do mundo vivido. Aprofundemos, pois, cada um desses elementos.

II

“Há uma lógica da cor, por Deus! O pintor deve ser leal para
com ela” (CÉZANNE, 1993, p. 72). Com essas palavras, Cézanne
pontua o quanto considerava importante esse elemento pictórico, quiçá
83

fundamental, para a consecução de uma obra54. Corroborando com esta


questão, o poeta Rainer Maria Rilke (2006, p. 81) lembra-nos a
importância que a cor exercia nos trabalhos de Cézanne:

[...] antes dele, nunca foi tão evidente o quanto o


pintar depende das cores, e como é preciso deixá-
las sozinhas, para que elas discutam uma com as
outras. O seu intercâmbio mútuo: é nisto que
consiste toda a pintura. Quem se intromete, quem
faz arranjos, quem deixa intervir sua concepção
humana, seu engenho, sua destreza, sua agilidade
intelectual, este perturba e obscurece sua
atividade.

Rilke exprime o papel primordial que a cor exerce no trabalho


criativo do pintor. Contudo, cabe-nos investigar melhor este elemento
pictural. Seguimos, pois, a questão formulada por Merleau-Ponty, em O
visível e o invisível: qual é o talismã da cor?
“É preciso compreender, antes de tudo”, nos diz o filósofo, “que
este vermelho sob meus olhos não é, como se diz sempre, um quale,
uma película de ser sem espessura (VI, 172, 128). Estamos habituados a
acreditar que há um vermelho e que ele existe por si, que é “um pedaço
de ser absolutamente duro, indivisível”, mas, pontuando o campo das
coisas vermelhas, é “uma concreção da visibilidade, não um átomo”,
que nos faz pensar numa caixa vermelha, num livro vermelho, nas telhas
de determinadas casas ou no círculo impresso na bandeira japonesa. O
vermelho existe para si – não é um em si - pois sem uma coisa para
qualificá-lo não podemos dizer que haja essa cor nua, visível de fato,
mas “antes uma espécie entre horizontes exteriores e horizontes
interiores sempre abertos” e que possibilita uma “cristalização
momentânea do ser colorido, ou da visibilidade” (VI, 173, 129).

54
Um artista que se esmerava na aplicação da cor era Van Gogh (1999, p. 32); -
disse ele certa vez - “Tentei expressar as terríveis paixões humanas com o
vermelho e o verde”. Inúmeros foram os artistas que se referiram ao uso
fundamental da cor. Citamos também Max Beckmann (1999, p, 192): “A cor,
como expressão estranha e magnífica do aspecto inescrutável da Eternidade, é
bela e importante para mim, como pintor. Uso-a para enriquecer a tela e
mergulhar mais profundamente no objeto. A cor também decidiu, até certo
ponto, minha perspectiva espiritual, mas está subordinada à luz e, acima de
tudo, ao tratamento da forma”.
84

Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty já escrevera:


“Eu me perco neste vermelho que está diante de mim, sem qualificá-lo
de maneira alguma, parece que essa experiência me faz entrar em
contato com um sujeito pré-humano” (PhP, 514, 604). Ademais, “a
espessura do vermelho, sua ecceidade, o poder que ele tem de me
preencher e de me atingir provêm do fato de que ele solicita e obtém de
meu olhar uma certa vibração”, em maior ou menor frequência,
dependendo da sua tonalidade local, “supõem que eu seja familiar a um
mundo de cores do qual ele é uma vibração particular” (PhP, 514, 605).
Mesmo entre os diversos tons de vermelho, posso diferenciá-lo de outras
cores. Assim, se algo é vermelho, não poderá ser, por exemplo, azul ao
mesmo tempo. Mas só iremos saber diferenciar ou identificar o
vermelho se o compararmos com outras cores.
“Claudel diz aproximadamente”, aponta Merleau-Ponty, “que certo azul
do mar é tão azul que somente o sangue é mais vermelho” (VI, 172,
129). Nessa descrição, percebemos a intensidade do azul do mar, sua
modulação visível, se a compararmos com uma relação de vizinhança,
cujo parentesco liga-se a outras cores e outros tons. Em contrapartida, “o
negrume secreto do leite, de que falou Valéry, só é acessível por meio
da sua brancura” (VI, 195, 145). Essas observações no tocante à
problemática da cor, podemos afirmar, na esteira de Merleau-Ponty, que
isso acontece porque há um tecido que duplica e sustenta os visíveis
numa mesma comunidade, e que só podemos observar por meio da
diferenciação. Diferença que não é oposto da identidade, mas sua outra
face, seu dorso, sua lateralidade; e que percebemos também nas palavras
do poeta Carlos Drummond de Andrade (2006, p. 155): “esse
amanhecer mais noite do que a noite”.
Em geral, uma cor

[...] faz ressoar, à distância, diversas regiões do


mundo colorido ou visível, certa diferenciação,
uma modulação efêmera desse mundo, sendo,
portanto, menos cor ou coisa do que diferença
entre as coisas e as cores [...]. Entre as cores e os
pretensos visíveis, encontra-se o tecido que os
duplica, sustenta, alimenta, e que não é coisa mas
possibilidade, latência e carne das coisas (VI, 173,
129-130).
85

É por conta disso que Renoir pôde pintar o riacho das


Lavadeiras55 olhando o Mediterrâneo: “[...] pintava, interrogava o
visível e produzia algo visível. Era ao mundo, à água do mar que pedia
de volta o segredo da água das Lavadeiras, abrindo passagem de uma à
outra para aqueles que, com ele, estavam presos no mundo” (S, 102,
9556). Desta forma, Merleau-Ponty nos certifica que para que Renoir
possa pintar as Lavadeiras não necessariamente precisava estar diante
de um riacho em específico, mas a própria substância aquosa – como um
tecido que habita todas as águas do planeta – venha manifestar seu
sentido e revelar o segredo das águas na obra. Trata-se antes, da
expressão da cor como “transmutação do azul do mediterrâneo na água
das Lavadeiras” do que de certo azul de um riacho em particular.
“Não se trata, portanto, das cores ‘simulacro das cores da
natureza’”, lemos em O olho e o espírito, mas “da dimensão da cor, a
que cria espontaneamente nela mesma identidades, diferenças, uma
textura, uma materialidade, um algo” (OE, 67, 36). O que a pintura quer
com o tratamento da cor não é mais o preenchimento de espaços
previamente estabelecidos pelo desenho57, mas com o “mérito de
aproximar um pouco mais do “coração das coisas”” (OE, 67, 36),
explorar o mundo ambíguo, o Ser Bruto e indivisível.
Os artistas do final do século XIX e início do Século XX58
começaram a trilhar esse caminho inaugural da arte, possibilitando, com
isso, observar obras que fossem mais além do que uma representação
clássica. Isso significa dizer que eles propunham expressar o mistério da

55
Imagem em anexo.
56
Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio optamos por seguir a
paginação em português da obra editada pela Cosac & Naify, inserida no livro
cujo título é O olho e o espírito.
57
Muitos artistas clássicos tinham em suas oficinas e ateliês alunos e/ou
discípulos que o ajudavam a elaborar obras preenchendo de cor o desenho a
priori feito pelo mestre.
58
Um dos artistas que se esmerou no uso da cor foi o fauvista francês Henri
Matisse. Em 1905, ele envia uma obra na qual retratara sua mulher usando um
enorme chapéu para o Salão de Outono de Paris. O público e a crítica a
julgaram como sendo de mau gosto, além de manifestar um repúdio caricato da
feminilidade. Atualmente, aceitamos de bom grado, uma pintura feita com cores
tão expressivas e “exageradas”, mas, se voltarmos ao início do século XX, onde
as obras dos pintores inovadores eram rejeitadas e ridicularizadas – como foram
os impressionistas – havemos de perceber o quão chocado ficou o público
diante de tal tratamento.
86

visão, criando quadros em que as cores tivessem um tratamento como


que expressando um pedaço de mundo e não apenas um papel
secundário, como fora tratada até então.
Observemos, por exemplo, o quadro Homenagem à Blériot59, de
Robert Delaunay60. Nesta obra, a própria cor faz o contorno das figuras.
O que uma cor faz é “por função modelar, recortar um ser mais geral
que o ser-amarelo ou o ser-verde ou o ser azul” (OE, 68, 36), mas,
entrementes, “irradia em torno de planos que não se encontram em
nenhum lugar designável” do mundo objetivo. Nesse sentido, ela faz ver
o invisível, faz perceber a “animação interna”, ou então, através do
“movimento flutuante de planos de cor que recobrem, que avançam e
que recuam”, insere-nos numa profundidade que é antes “a
reversibilidade das dimensões, de uma ‘localidade’ global onde tudo é,
ao mesmo tempo, cuja altura, largura e distância são abstratas” (OE, 65,
35).
Semelhantemente à cor, a linha é uma inspiração em que o
pintor faz vislumbrar nuances de “Ser”, mostrando-nos que “ver é
sempre ver mais do que se vê” (VI, 295, 224), e que, de alguma forma,
há algo na visão que ultrapassa nossa compreensão do visível.

III

Os artistas modernos mostram que “o começo do traçado


estabelece, instala um certo nível ou modo do linear, uma certa maneira,
para a linha, de se fazer linha, ‘de continuar linha’” (OE, 74, 39). Assim,
a obra de arte vindoura não mais terá de utilizar o traçado dos objetos
com o objetivo de fazer um decalque do mundo: a pintura se liberta
desses cânones e a linha torna-se um visível por si, tendo, a partir disso,
um revivamento de seu poder constituinte, fazendo nascer novas
histórias, novas aventuras, conforme declinarmos mais ou menos,
sutilmente, devagar ou depressa.

59
Imagem em anexo.
60
A frase de Cézanne “os bordos dos objetos fogem para um centro colocado no
nosso horizonte” viria a revelar a Robert Delaunay o sentido das suas buscas.
Delaunay foi ainda um dos que, segundo o preceito de Cézanne, tentaram
exprimir a terceira dimensão através da cor. (ELGAR, 1987, p. 266).
87

Klee é um dos artistas que faz uso das linhas para construir
obras que são uma “épura de uma gênese das coisas” (OE, 74, 39). Mais
do que banir o recurso deste elemento pictural, como fizeram os
impressionistas, a arte moderna a resgata, dando-lhe novas significações
plásticas. Dessa maneira, “a linha não é mais, como na geometria
clássica, o aparecimento de um ser sobre um vazio do fundo”, mas, ao
contrário, “ela é, como nas geometrias modernas, restrição, segregação,
modulação de uma espacialidade prévia” (OE, 76-77, 40).
Merleau-Ponty nos apresenta, em O olho e o espírito (OE, 74,
39), uma passagem onde H. Michaux faz alguns comentários sobre a
concepção da linha nos desenhos de Paul Klee: “talvez jamais antes de
Klee”, diz o filósofo, “se houvesse ‘deixado sonhar uma linha’”. Vale,
aqui, mencionar a interessante nota de rodapé que aparece nas notas dos
cursos ministrados no Collège de France entre 1959-196161:

As linhas:
Aquelas que passeiam – as primeiras que se viu
passear no ocidente.
As viajantes, aquelas que não fazem tanto objetos
quanto trajetos, percursos.
As penetrantes, aquelas que ao inverso das
possuídas, ávidas de envolver, de cercar,
construtoras de formas (e então?), são linhas para
o embaixo.
As alusivas...
As loucas de enumeração, de justaposição a
perder de vista...
Uma linha encontra uma linha. Uma linha evita
uma linha. Aventuras de linhas.
Uma linha pelo prazer de ser linha, de ir, linha.
Pontos. Poeira de pontos. Uma linha sonha. Nunca
antes deixamos sonhar uma linha.
Uma linha espera. Uma linha esperançosa. Uma
linha repensa um rosto [...]
Eis uma linha que pensa. Uma outra executa um
pensamento. Linha de risco. Linha de decisão [...]
Uma linha renuncia. Uma linha repousa. Parada.
Uma parada a três pontos: um habitat.

61
Ao que parece, para escrever O olho e o espírito, Merleau-Ponty se serve
muito dessas notas dos cursos realizados no Collège de France, nesse período.
88

Uma linha se isola. Meditação. Fios que derivam


ainda lentamente. (NC, 52)62

A forma clássica de conceber a linha – “é contestada por toda a


pintura moderna, provavelmente por toda a pintura” (OE, 72, 38). De
toda sorte, “os pintores sempre o souberam”, afirma o filósofo. E
Leonardo Da Vinci, no tratado da pintura teria afirmado em ter que:
“descobrir em cada objeto [...] a maneira particular pela qual se dirige
através de toda a sua extensão [...] uma certa linha flexuosa que é como
seu eixo gerador” (OE, 72, 38). Da Vinci, sendo um pintor do
Renascimento, de cinco séculos atrás, já concebia o traçado do contorno
não apenas como um invólucro, mas pensava em “uma certa linha
flexuosa”, isto porque, todavia, “não há figuras visíveis em si”. (OE, 73,
38). Sendo uma tarefa deveras difícil, para apresentar “o eixo gerador de
um homem” - na esteira de Klee - o pintor “necessitaria um
entrelaçamento tão enredado que não poderia mais se tratar de uma
representação verdadeiramente elementar” (OE, 75, 39).
Merleau-Ponty cita uma das obras em que Klee teria pintado
“duas folhas de azevinho”, que são identificáveis quando a vemos de
primeiro contato, mas “que permanecem até o fim monstruosas,
inacreditáveis, fantasmáticas, à força ‘de exatidão’” (OE, 76, 40). No
entanto, a partir da leitura de Merleau-Ponty, temos dificuldades de

62
“Les lignes:
Celles qui se promènent – les premières qu’on vit ainsi, em Occident, se
promener.
Les voyageuses, celles qui font non pas tant des objets que des trajets, des
parcours...
Les pénétrantes, celles qui au rebours des possesseuses, avides d’envelopper, de
cerner, faiseuses de formes (et après?), sont lignes pour l’em dessous (...)
Les alussives (...)
Les folles d’énumération, de juxtapositions à perte de vue (…)
Une ligne rencontre une ligne.Une ligne évite une ligne.Aventures de lignes.
Une ligne pour le plaisir d’être ligne, d’aller, ligne. Points. Poudre de points.
Une ligne rêve. On n’avait jusque-là jamais laissé rêver une ligne.
Une ligne attend. Une ligne espère.Une ligne repense un visage (...)
Voici une ligne qui pense.Une autre accomplit une pensée. Lignes d’enjeu.
Ligne de décision (…)
Une ligne renonce.Une ligne repose. Halte. Une halte à trois crampons: un
habitat.
Une ligne s’enferme. Méditation. Des fils en partent encore, lentement...”
[tradução nossa].
89

observar esses detalhes na obra63, já que o filósofo não cita o título da


mesma. Para uma visualização melhor da questão da linha moderna na
pintura, trazemos outra obra de Klee cujo título é cabeça alemão com
bigode64, de 1920. Em toda a extensão da obra conseguimos observar
linhas que cortam o rosto, restringem seu espaço, arrebentam volumes e
distorcem a composição. O mais marcante dessa pintura no que tange ao
aspecto da linha é a maneira como foi usada para construir a boca da
imagem: remete-nos mais a outros elementos, se a observarmos
isoladamente, do que ao formato “boca”. Entretanto, numa visão global,
num sobrevoo, as linhas da boca, mesmo que desfiguradas, modulam
seu espaço e conteúdo, numa construção que é muito mais gênese do
que representação do visível.
José Bettencourt da Câmara (2005, p. 91), ao pensar os
emblemas do real, fala da imagem como um “visível à segunda
potência”. Neste vir a ser do visível, a linha é aplicada pelos artistas
modernos não como “representação das coisas, repetindo-lhes na tela,
no papel, o contorno físico”, mas evidencia “a dimensão de espaço
vivido, habitado pelos corpos que somos” (CÂMARA, 2005, p. 91).
O limite espacial dos objetos “estão aqui ou ali, estando sempre
aquém ou além do ponto onde se olha, sempre entre ou atrás daquilo que
se fixa, indicados, implicados, e mesmo muito imperiosamente exigidos
pelas coisas, sem serem coisas eles próprios” (OE, 73, 38-9).
No ensaio As pinturas de Giacometti, o filósofo Jean-Paul
Sartre (2012, p. 47-48) questiona como o escultor que também pinta,
deveria representar o vazio na pintura. Ao investigar as obras de Alberto
Giacometti afirma que ele “enxerga o vazio em toda parte”; e por que é
escultor “carrega seu vazio, como um caracol a sua concha”. Diz Sartre
(2012, p. 58):

63
Apesar de a editora Cosac & Naif ter inserido a obra Park bei Lu (Parque em
Lu) no livro O olho e o espírito, não conseguimos identificar as duas folhas de
azevinho em seu conteúdo. Em contrapartida, para embaralhar ainda mais nossa
investigação sobre o assunto, o português José Bettencourt da Câmara, em sua
tese de doutorado Expressão e contemporaneidade – a arte moderna segundo
Merleau-Ponty, apresenta a obra Teatro Botânico, de 1924-1934, citando a
passagem do texto em que o filósofo discorre sobre as folhas de azevinho
pintados por Paul Klee.
64
Imagem em anexo.
90

Em cada um dos seus quadros Giacometti nos leva


de volta ao momento da criação ex-nihilo; cada
um deles reaviva a velha interrogação metafísica:
por que há alguma coisa, e não o nada? E no
entanto há algo: há a aparição teimosa,
injustificável e supérflua. O personagem pintado é
alucinante porque se apresenta sob a forma de
uma aparição interrogativa.

Imagem 15: Pintura Diego (1953), de Giacometti.

Fonte: Disponível em: <http:// constancalucas.blog.uol.com.br/arch2004-08-


01_2004-08-31.html> Acesso 16 set 2014.
91

Imagem 16: Pintura Cifras e constelações apaixonadas por uma mulher, de


Juan Miró.

Fonte: Disponível em:<http://janela-de-miro.blogspot.com.br/ 2008/03/ cifras-


e-constelaes-amorosas-de-uma.html> Acesso em 16 set 2014.

Como, todavia, imprimir esse vazio na tela? Como pintar um


personagem sem ter que circundá-lo por um contorno que o delimitaria?
Certamente, que para pintá-lo, teria que usar uma linha que figurasse
“uma fuga interrompida”, que representasse “um equilíbrio entre o
exterior e o interior”, que se “enlaçasse em volta da forma que o objeto
adota sob a pressão de forças externas” (SARTRE, 2012, p. 58-59).
Em um determinado dia em que Giacometti o desenha, Sartre
afirma que o artista o expressa com densidade e “linhas de força”. Foi
uma surpresa para o filósofo, já que considerava seu rosto como flácido,
como qualquer outra pessoa. Então de que forma Giacometti via os
objetos? Sartre nos mostra o caminho:

Mas é porque ele enxergava cada traço como uma


força centrípeta. O rosto se volta para si, é um
círculo que se fecha. Circundem-no: vocês nunca
encontrarão contorno, só o dentro. A linha é um
92

começo de negação, a passagem do ser ao não ser.


Mas Giacometti considera o real positividade
pura; há ser e, depois, de súbito, já não há. Mas,
do ser ao nada, nenhuma transição é concebível.
Observem como os múltiplos traços que ele faz
são interiores à forma que descreve; vejam como
representam relações íntimas do ser consigo
mesmo, a prega de um paletó, a ruga de um rosto,
a saliência de um músculo, a direção de um
movimento (SARTRE, 2012, p. 60).

Nessa descrição, sobre a maneira de Giacometti se expressar,


aparece o conteúdo da filosofia sartriana. Nas frases: “mas Giacometti
considera o real positividade pura”, “do ser e ao nada, nenhuma
transição é concebível”, percebemos que, de acordo com Sartre, o Ser
não é de profundidade, mas é, ao contrário, absolutamente positividade
pura. No entanto, Sartre “parece” se aproximar de Merleau-Ponty ao
dizer que “vocês nunca encontrarão contorno, só o dentro”. Ora, o
dentro sartriano não é o mesmo que merleau-pontyano. O primeiro,
diferentemente do segundo, não tem uma teoria gestáltica. Se para
Merleau-Ponty o ser e o nada se mostram como um único registro
ontológico65, para Sartre, há apenas o Ser. Continua o filósofo

65
“Nosso ponto de partida não será: o ser é e o nada não é – nem mesmo: só há
o ser – fórmula de um pensamento totalizante, de um pensamento de sobrevoo –
mas há o ser, há o mundo, há alguma coisa, [...] há coesão, há sentido. Não se
faz surgir o ser a partir do nada ex nihilo (contra Giacometti e Sartre), parte-se
de um relevo ontológico onde nunca se pode dizer que o fundo não seja nada. O
que é primeiro não é o ser pleno e positivo sobre o fundo do nada, é um campo
de aparências em que uma delas, tomada à parte, talvez se estilhace ou seja
riscada a seguir (é o papel do nada), mas de que somente sei que será substituída
por outra, a verdade da primeira, porque há mundo, porque há alguma coisa,
que, para ser, não precisam, antes, anular o nada.” (VI, 119, 90). Por outro lado,
pensando o ser e o nada como unidades opostas e, consequentemente pensando
outrem como oposto de mim, ou quando Giacometti percebia a figura e fundo
que tentava expressar, Sartre tenta mostrar um Ser que não permite ver a
profundidade do mundo da vida. “A relação com [outrem], diz Sartre, é
[evidentemente?] um fato, sem o qual eu não seria eu mesmo e ele não seria
outro; [outrem] existe de fato e só existe, para mim como fato” (VI, 99, 76).
Para melhor esclarecermos esta questão, afirma Merleau-Ponty: “é graças a essa
intuição do Ser como plenitude absoluta positividade, graças a uma visão do
nada purificado de tudo o que nele metemos de ser que Sartre pensa explicar o
nosso acesso primordial às coisas, sempre subentendido nas filosofias
93

existencialista: “mas, se olho melhor, desfiam, desaparecem em bruma


luminosa, já não sei onde começa o vazio66 e onde termina o corpo”.
Basta olharmos para a obra de Giacometti e percebermos o emaranhado
de linhas que Sartre descreve. O artista imprime linhas tão fortes e
expressivas, como se elas fossem criar algo visível, o que deixa o
filósofo impressionado.
Em contrapartida, Miró utiliza as linhas como se elas
dançassem, como se elas contornassem os objetos e fossem mais além.
Observemos a obra Cifras e constelações apaixonadas por uma mulher
desse artista espanhol. A linha negra, ora sutil, ora marcante, parece
fazer da obra um jogo infantil. Não vemos mais a cópia do mundo, mas
imagens que nos fazem mergulhar num universo lúdico e fantasioso.
Para que Miró pudesse “atingir a expressão Fontana”, afirma Manuel de
Barros (2013, p. 356) num poema inspirado no artista, “precisava de
esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros”. Ao
contrário: “Desejava atingir a pureza de não saber mais nada”
(BARROS, 2013, p. 356). Desta forma, para que a linha possa sair dos
cânones cerrados da concepção clássica, o artista precisa esquecer para
aprender de novo.
João Cabral de Melo Neto elabora um texto elogioso sobre a
obra de Miró67. São algumas páginas onde o autor descreve nuances do
processo criativo do artista espanhol. No tocante à linha escreve:

reflexionantes e sempre compreendido no realismo como uma ação impensável


das coisas sobre nós. A partir do momento em que me concebo como
negatividade e o mundo como positividade, não há mais interação, caminho eu
próprio diante de um mundo maciço; entre ele e mim não há encontro nem
fricção, porquanto ele é o Ser e eu nada sou. Somos e permanecemos
estritamente opostos e confundidos, precisamente porque não somos da mesma
ordem. Permaneço no centro de mim mesmo absolutamente estranho ao ser das
coisas – e justamente por isso destinado a elas, feito para elas. Aqui o que se diz
do ser e o que se diz do nada se identificam, é o direito e o avesso do mesmo
pensamento; a clara visão do ser, tal como é sob nossos olhos –como o ser da
coisa que é pacífica e obstinadamente ela mesma, assente sobre si, não-eu
absoluto -, é complementar ou mesmo sinônima de uma concepção de si como
ausência e elusão” (VI, 77, 59-60).
66
“Já não se trata de separar o cheio do vazio, mas de pintar a própria
plenitude” (SARTRE, 2012, p. 64).
67
“A obra de Miró significa, para a pintura, muito mais do que a aportação de
um estilo pessoal; muito mais do que o enriquecimento – afinal relativo, por
estagnado – que pode advir, à pintura, da invenção de um formalismo a mais.
94

Miró parece haver compreendido perfeitamente a


força de sua linha. [...] Assistimos, temos a ilusão
de assistir, ao nascimento dessa linha, que parece
estar crescendo a nossos olhos, acabada de nascer
com mil reservas de surpresas (MELO NETO,
2007, p. 684-685).

O que Klee, Giacometti, Miró e tantos outros artistas modernos


fizeram foi construir a linha [ou a cor] que não tivesse existência como
coisa ou como imitação de uma coisa: sendo figurativa ou abstrata, a
linha é “um certo desequilíbrio disposto na indiferença do papel branco,
é uma certa perfuração praticada no em-si” – não é um em-si - é “um
certo vazio constituinte, vazio que as estátuas de Moore mostram
peremptoriamente sustentar a pretensa positividade das coisas” (OE, 76,
40). Tal pensamento reflete que a linha tanto pode mostrar algo na obra
– um excesso, um eixo gerador, um relevo -, bem como uma ausência,
uma segregação, uma lacuna, um vazio, o nada.

III

A cor e a linha formam planos e cenas cujas significações só


permitem serem percebidas por um movimento interno da obra, que
opera por “vibração” ou por “irradiação”. Desse modo, tanto a cor
quanto a linha, constituindo a obra, mesmo aparentemente como algo
estático que está à frente do espectador, fornece, por sua vez, “visões
instantâneas em série, convenientemente baralhadas, mostrando [...] as
aparências da mudança de lugar que o espectador leria no seu rastro”
(OE, 77-78, 40). É nesse sentido que a pintura faz ver a perspectiva do
mundo vivido.

Ela é também isso; e, infelizmente, é isso, é o que nela existe de estilo


individual, que tem levado os críticos a valorizá-la. Entretanto, ela é também
outra coisa. Por debaixo do conjunto de maneiras pessoais que constituem a
fórmula-Miró, há uma luta que transcende o limitado alcance de uma exclusiva
busca de expressão original. Há uma luta contra todo um conjunto de leis
rígidas que vem estruturando a pintura posterior ao Renascimento e que está
presente, sem exceção, por debaixo das fórmulas individuais mais
contraditórias, exploradas por pintores de hoje” (MELO NETO, 2007, p. 684-
685).
95

O que Cézanne ensina a nós – e aos outros pintores a partir dele


– é que a pintura deve exprimir o mesmo movimento que o olhar capta
na natureza. É um olhar em fluxo, dinâmico e contínuo. De toda sorte,
parece que vemos o quadro como uma determinada cena congelada, em
que o pintor escolheu um pedaço do visível e o retratou como sendo o
seu motivo. Contudo, nos assegura Merleau-Ponty: há na pintura um
“movimento sem deslocamento, por vibração ou irradiação” (OE, 77,
40). Ademais, “o quadro faz ver um movimento por sua discordância
interna” (OE, 79, 41). Através dos traços e das cores, o pintor sugere
“uma mudança de lugar assim como o rastro da estrela cadente em
minha retina sugere uma transição, um mover que ela não contém” (OE,
77, 40). Esse movimento sem deslocamento proposto pela obra,
apresenta-nos um movimento semelhante àquele que vemos no mundo
real, tal como observa Merleau-Ponty (S, 80, 79): coisas disputarem
“entre si meu olhar e, ancorado numa delas, eu sentia nele a solicitação
das outras que as fazia coexistir com a primeira, a exigência de um
horizonte e a sua pretensão às coisas [...]”.
Merleau-Ponty nos lembra que a fotografia68 petrifica o
movimento, congelando e cristalizando a cena retratada, como se cada
coisa pudesse estar rigorosamente escalonada uma atrás da outra.
Afirma ele: “A fotografia mantém abertos os instantes que o avanço do
tempo torna a fechar em seguida, ela destrói a ultrapassagem, a
imbricação (empiètement), a ‘metamorfose’ do tempo” (OE, 80, 42).
Ora, esta maneira de lidar com movimento fora inspirada na pintura
clássica. Esta “distingue o desenho da cor. Desenha-se o esquema
corporal do objeto, depois este é preenchido por cores” (C, 19, 12).
Assim, Cézanne não lida com os objetos como se eles fossem separados
um do outro, sem relação de imbricação (empiètement), – eles
ultrapassam seus limites corporais e entrecruzam-se uns com os outros –
. Para ele, não há uma separação entre o que seja figura e o que seja
fundo: estão mesclados e entrelaçados. Por exemplo, uma “maçã que ele
pinta, estudada com uma paciência infinita em sua textura colorida,
acaba de inflar-se, por romper os limites que o desenho bem comportado
lhe imporia” (C, 19, 12). É pelo arranjo das cores que Cézanne pinta os
objetos da mesma forma como a natureza o faz nascer diante dos nossos
olhos, permitindo-nos ver o mundo tal como o sentimos em nossa

68
Obviamente que ao falar que a fotografia petrifica o movimento, Merleau-
Ponty estava se referindo aquela de sua época e não a contemporânea, cujos
emblemas, dificuldades e expressões se assemelham ao da pintura.
96

experiência vivida. O movimento, ou o comércio dos objetos na tela,


conduz o nosso olhar a viajar através do espetáculo que a experiência
perceptiva vivencia cotidianamente.
Para o nosso olhar atual, os objetos parecem embaralhados e se
mostram num momento presente, como se passado e futuro coexistissem
ao mesmo tempo, tal qual um homem que caminha e que foi “captado
no momento em que seus dois pés tocam o chão: pois, então, temos
quase a ubiquidade temporal do corpo que faz o homem cavalgar o
espaço” (OE, 79, 41). O movimento69 da pintura faz ver esse
deslocamento sem ação efetiva, como vemos, a propósito de a Noiva de
Duchamp, que não se mexe: ela oferece “um devaneio zenoniano sobre
o movimento” (OE, 78, 40). Ao contrário de ir ali e voltar aqui, ou saltar
daqui para lá, percebemos na pintura, não um caminhar como fazemos
na vida prática, mas “vemos um corpo rígido como uma armadura que
faz funcionar suas articulações” (OE, 78, 41).

Imagem 17: Pintura Derby de Epsom, de Géricault.

Fonte: Disponível em: <http://fr.wahooart.com/a55a04/w.nsf/Opra/BRUE-


7YNCCE> Acesso em 18 set 2014.

69
“A arte não existe sem a vida. Se um escultor quisesse interpretar a alegria, a
dor, uma paixão qualquer, ele só poderia comover-se se, de início, soubesse
fazer viver os seres que ele evoca. Pois, o que seria para nós a alegria e a dor de
um objeto inerte... de um bloco de pedra? Ora, a ilusão da vida é obtida em
nossa arte pelo bom modelado e pelo movimento. Essas duas qualidades são
como o sangue e o espírito de todas as belas artes” (RODIN, 2015, p. 46).
97

Imagem 18: Pintura Cervos na floresta II, de Franz Marc.

Fonte: Disponível em: <http://olhomagico-


analuci.blogspot.com.br/2010/03/foto-daqui-pintura-pelo-expressionista.html>
Acesso em 18 set 2014.

Uma das obras de arte que Merleau-Ponty recorre para retratar o


movimento “por vibração e irradiação” é Derby de Epsom, de Géricault.
Nesta, os cavalos parecem não tocar o chão. Por que “os cavalos de
Géricoult correm sobre a tela [...] numa postura que cavalo algum a
galope jamais assumiu?” (OE, 80, 41). Seguimos sua resposta: “é que os
cavalos do Derby de Epsom me dão a ver a ação do corpo sobre o chão,
e, segundo uma lógica do corpo e do mundo que conheço bem, essas
ações sobre o espaço são também ações sobre a duração” (OE, 80, 41).
A pintura faz ver o movimento dos cavalos porque “os cavalos têm
dentro deles o ‘deixar aqui, ir ali’, porque têm um pé em cada instante”;
cuja síntese pode ser posta numa frase: “a pintura não busca o exterior
do movimento, mas suas cifras secretas” (OE, 81, 42). Tentando
desvelar o mistério interior do visível, a pintura “metamorfoseia o tempo
para que ele possa durar. Não o imita. Recria-o, inventando o
movimento a partir de sua existência secretamente cifrada” (CHAUÍ,
2002, p. 184).
98

Ao olharmos a pintura Cervos na Floresta II, de Fraz Marc,


observamos cores e linhas que se cruzam e interpõem-se, produzindo
um movimento quase que estático da cena. Vemos tons de azuis, verdes,
amarelos, vermelhos e negros, os quais não possuem um limite
determinado, bem como linhas que ultrapassam o limite dos objetos,
fazem da obra não uma soma de partes, mas um todo cujo movimento
permite ao observador experienciar a coexistência das coisas disputando
seu olhar.
Sob esse prisma, Pareyson (1993, p. 119) afirma que “[...] se na
obra completa cada ‘parte’ contém e revela o ‘todo’, isto é possível
justamente porque cada ‘momento’ do processo de sua formação lhe
condensa em si todo o ‘movimento’”. Ora, isso, acreditamos, tem a ver
com a ideia de Merleau-Ponty acerca da Gestalt.

IV

Ao falar de Gestalt, Merleau-Ponty relaciona-o com a pintura e


questiona: “O que é uma Gestalt? O que é um contorno, o que é uma
segregação, o que é um círculo ou uma linha? Ou uma organização em
profundidade, um relevo?” (VI, 255, 192).
Eis sua resposta: “É um princípio de distribuição, o pivô de um
sistema de equivalências, é o Etwas [algo] de que os fenômenos
parcelares serão a manifestação”. Se de uma parte a ideia é livre,
intemporal e a-espacial, de outra, a “Gestalt não é um indivíduo espaço-
temporal, presta-se a ser integrada numa constelação a cavaleiro do
espaço e do tempo” (VI, 255, 193). Assim, em relação ao espaço e ao
tempo,

[...] não é a-espacial, a-temporal, só escapa ao


espaço e ao tempo concebidos como uma série de
acontecimentos em si”, possui certo peso que a
fixa não, sem dúvida, num lugar objetivo e num
ponto do tempo objetivo, mas numa região,
domínio que ela domina onde reina, onde é
onipresente sem que se possa jamais dizer: está
aqui. É transcendência. É o que exprimimos
mesmo falando da sua generalidade, de sua
Transponierbarkeit [transponibilidade] – É um
fundo falso do vivido (VI, 255, 193).

O que a pintura faz ver é a “fixação” de uma coisa, não num


tempo ou num lugar objetivo, mas numa região de “transcendência”,
99

que está mais além ou aquém daquilo que foi estabelecido pela ciência
ou pelo pensamento clássico. Basta observarmos o entrelaçamento de
cores, traços e planos da obra Barcos à vela70, de Lyonel Feininger71,
para atestarmos a direção de nossa investigação. O que a obra nos faz
ver, na esteira de Merleau-Ponty (VI, 261, 197) discorrendo sobre o ato
de pintar, é que:

O traço, a pincelada e a obra visível não são senão


o vestígio de um movimento total da Fala, que
conduz ao Ser na sua totalidade e que este
movimento abarca tanto a expressão pelos traços
quanto a expressão pelas cores, tanto a minha
expressão como a dos outros pintores. Sonhamos
com sistemas de equivalências e eles, com efeito,
funcionam. Mas a sua lógica, como a de um
sistema fonemático, está resumida no mesmo tufo,
numa só gama, são animados por um só
movimento, são todos e cada um um só turbilhão,
uma única retratação do Ser.

Em síntese, cor, linha e movimento, como estilos de


diferenciações, recriam, metaforicamente, a tarefa de uma nova
ontologia. Esses estilos de diferenciações devem nos fornecer ideias:
paisagens, corpos, naturezas-mortas, retratos, etc. Nesse sentido, a
pintura moderna ganha significância nas análises merleau-pontyanas.
Ao recusarem a categoria de representação em que buscavam pintar,
como Chardin, “o aveludado dos pêssegos” (S, 82, 80), os pintores
prosseguiam “às escuras”, tateando em técnicas e meios para refazer e
refundar uma nova realidade pictural. Essa capacidade criadora, presente

70
Imagem em anexo.
71
Feininger “desenvolveu um engenhoso recurso de sua própria autoria, o qual
consistiu na construção de suas imagens a partir de triângulos sobrepostos que
parecem transparentes e assim sugerem uma sucessão de camadas – à
semelhança das cortinas transparentes que são usadas, às vezes, no palco de um
teatro. Como essas formas parecem situar-se uma atrás da outra, elas
transmitem a ideia de profundidade e permitem ao artista simplificar os
contornos dos seus objetos sem que a pintura pareça plana” (GOMBRICH,
1993, p. 463). A técnica desenvolvida por este pintor possibilitou-lhe produzir
obras em que a profundidade, o traçado e as cores se apresentavam ao mesmo
tempo: ao sobrepor os triângulos, a imagem ia sendo construída, sem haver a
necessidade de marcar o contorno dos objetos.
100

em todos aqueles que se propõem a ver além do visível, está entrelaçado


com a carne das coisas e do mundo; e, por consequência, estão “ligados
a uma mesma e única rede de Ser” (OE, 89, 45). Criando “obras que
existem no visível à maneira das coisas naturais” (OE, 82, 42), o artista,
através de seu estilo, marcando identidades e diferenças, torções e
pequenas deformações coerentes, “avança no labirinto por desvios,
transgressão, imbricação e arrancadas súbitas” (OE, 90, 46). Isso nos
permite dizer que mais do que apresentar um novo visível ao espectador,
a pintura provoca nele a percepção de um invisível que se insinua,
parecendo se impor através dos elementos picturais impressos na obra.
“O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como um malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...”
(Fernando Pessoa, O guardador de rebanhos)
105

3 ONTOLOGIA E OLHAR: O INVISÍVEL

“Na medida mesmo em que vejo, não sei aquilo que vejo”.
(Merleau-Ponty, O visível e o invisível)

Merleau-Ponty encontrou na pintura de Cézanne substratos para


pensar o mundo da percepção. Segundo o filósofo, esse pintor, de modo
geral, sempre soube que sua obra existe “no visível à maneira das coisas
naturais” (OE, 82, 42), e que, antes de figurar o mundo, ela se
transfigura em si mesma. Essa visibilidade do qual Merleau-Ponty
descreve no texto O olho e o espírito – ontológica por definição - que
não coloca o visível e o invisível como opostos - abre passagem para
acedermos a uma profundidade. Salientamos, aqui, que ele não está se
reportando a uma profundidade geométrica, mas, sim, àquela que
presenciamos na nossa experiência perceptiva no mundo da vida. Isto
porque as próprias coisas não são seres-em-si, mas se entrelaçam com
outras coisas, não são corpos-fechados: imbricam-se mutuamente, e
entre elas há algo que as liga e que ele chama de carne, solo comum ou
tecido fundamental que enlaça todos os seres. Mais precisamente:
“existe aí o tecido comum de que somos feitos. O Ser selvagem” (VI,
253, 192). Às coisas ele as chama também de “coisa[s] pré-analítica[s]”
(VI, 253, 192), pois surgem antes da reflexão, num a priori da análise.
A carne é a “deiscência do vidente em visível e do visível em vidente”
(VI, 199, 148). É nesse solo comum que percebemos a profundidade.
Cumpre-nos compreender que a visibilidade, embora mostre os
perfis das coisas, comporta ainda uma invisibilidade. Não é o que não é
visível, mas aquilo que não se mostra integralmente. O invisível não se
revela como “oposto do visível, mas seu encolhimento, seu estar em
visíveis outros que não se domina de uma só vez (TASSINARI, 2004, p.
154)”. “O invisível não é uma ausência72 objetiva [...] é uma ausência
que conta no mundo, uma lacuna que não é vazio, mas ponto de
passagem” (CHAUÍ, 2002, p. 116). Dentro desta mesma perspectiva,
Carlos Drummond de Andrade (2014, p. 464) escreve em um de seus

72
Ausência:
106

poemas73: “Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim”.


Ora, para Merleau-Ponty, a expressão artística se faz a partir deste
silêncio, desta “fissura”, deste “negativo fecundo”, que o visível faz ver,
que vislumbramos, mas não conseguimos apreendê-lo, ou capturá-lo
plenamente. É buscando expressar essa reversibilidade do
visível/invisível que o artista cria suas obras.
De acordo com Merleau-Ponty (VI, 177-178, 133), “o que se
chama de visível é, dizíamos, uma qualidade prenhe de uma textura, a
superfície de uma profundidade, corte de um ser maciço, grão ou
corpúsculo levado por uma onda do Ser”. Essa profundidade é percebida
como um invisível que habita o visível, razão por que vai dizer que o
visível está “prenhe” de invisibilidade. Ademais, não só o visível
comporta uma invisibilidade como também há uma visibilidade no
invisível. Segundo ele, “o invisível é o relevo e a profundidade do
visível, e, assim como ele, o visível não comporta positividade pura” (S,
38, 21). Vale lembrar que, para o filósofo, o invisível como
profundidade também pode cristalizar-se como “instituição”.
Tratar da percepção do visível e do invisível como reversíveis é
uma das grandes questões propostas por Merleau-Ponty. Ao voltar a
investigar o enigma da visão nas primeiras páginas de O olho e o
espírito, Merleau-Ponty inicia o terceiro tópico afirmando que a
Dióptrica de Descartes é uma tentativa de “exorcizar” os espectros do
mundo vivido, ou seja, de “fazer deles ilusões ou percepções sem
objeto, à margem de um mundo sem equívoco” (OE, 36, 24). Dessa
forma, não mais participaríamos do mundo da vida, mas o
reconstruiríamos de acordo com um modelo pré-definido, mesmo que,
para isso, precisássemos inventar alguns “órgãos artificiais” que
corrigiriam a visão. É desse pensamento de sobrevoo – fora do mundo –
que Merleau-Ponty quer se afastar.
Na obra Signos, em que todo o seu percurso filosófico é
criticamente retomado, Merleau-Ponty assevera que a filosofia, ao
contrário, mergulhando no sensível, deve ser feita no próprio mundo da

73
Segue o poema Ausência de Carlos Drummond de Andrade (2014, p. 464):
“Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./
Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência./ A ausência é um estar em mim./
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e
invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/
ninguém a rouba mais de mim”.
107

vida, desvelando o quiasma do visível e do invisível. É nesse sentido


que o “olhar”, muito mais do que o simples ato de ver – ou, como
instituíra Descartes, “pensamento de ver” – é retratado nos textos
merleau-pontyanos como “enigma”.
De acordo com as análises de Merleau-Ponty, a tradição
filosófica desqualifica a experiência sensível como um conteúdo
desprovido de valor metafísico. Tratar-se-ia, então, de restituir um tipo
de visão tal qual aquela em que o pintor se faz gesto, metamorfoseando
a tela em um outro visível. Para pensar esta questão precisamos
percorrer alguns escritos filosóficos que tratam do tema da visão, tais
como Heráclito, Platão, Aristóteles e Agostinho. Também as concepções
de Malebranche e Descartes, pensadores que Merleau-Ponty se acerca
mais profundamente para retratar, num quadro mais amplo, a
experiência do sensível. E, posteriormente, investigaremos os escritos
merleau-pontyanos, especialmente o capítulo dois de O olho e o
espírito, em que o olhar é interrogado como enigma.
Avançaremos, então, para outros dois pontos essenciais no que
tange à discussão aqui apresentada, quais sejam, primeiramente,
estudaremos a profundidade como idealidade de horizonte e, em
segundo lugar, abordaremos a formação das imagens e a idealidade
pura. O primeiro requer um percurso sobre a representação da terceira
dimensão feita pelos artistas, recolhidos pela história da arte, mostrando,
sobretudo que o ato criativo é uma expressão conquistadora e
espontânea, que se faz no tempo. De maneira semelhante à escrita, a
pintura também possui, por sua vez, uma linguagem. Em nosso segundo
ponto exploraremos a concepção merleau-pontyana acerca do estilo – ao
qual o artista é passivo –, da formação das imagens e que se, por um
lado, a pintura pode nos fazer perceber a profundidade do mundo da
vida, por outro, é “cristalizada” nas paredes dos museus. Sob este
aspecto, pesquisaremos o momento em que um quadro se torna um
pensamento. Nesse sentido, será que Merleau-Ponty considera o
pensamento uma idealidade de horizonte ou uma idealidade pura?
108

3.1 Do pensamento de ver ao olhar como enigma

Questionar a importância e a relação entre os diferentes


aspectos do sensível74 tem sido uma das ocupações dos filósofos, desde
o surgimento da história do pensamento ocidental. Neste mote, a visão
sempre ocupou um lugar de destaque. Vemos, há mais de 2.500 anos,
Heráclito de Éfeso (200, p. 98), falando especificamente do sentido da
visão: “[p]ois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos”.
Não é de se estranhar que, apesar de seus pensamentos demonstrarem
situações e ações ambíguas, ele tenha também falado que “[más]
testemunhas para os homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras eles
têm” (HERÁCLITO, 200, p. 99). Lembramos que ele não estava se
referindo apenas aos sentidos isoladamente, como no caso da visão e da
audição, mas do quanto tais funções são influenciadas e até comandadas
pela alma. Este tipo de concepção atinge o apogeu na Modernidade com
Descartes, que considera que a alma é quem vê e não o corpo.
Trataremos, pois, de retomar brevemente essa questão na História da
Filosofia para, no próximo capítulo, atermo-nos ao projeto de Merleau-
Ponty nos termos de uma “reabilitação ontológica do sensível” (S, 271,
184), tendo como fio condutor dessa investigação a questão da
percepção visual.
No diálogo Timeu, Platão (1977, p. 61), por meio de seu
personagem que confere título ao texto, fala da criação do homem e
também de seus órgãos corporais. Diz ele: “Os olhos portadores de luz75

74
Na introdução do livro sobre ensaios sobre a questão do olhar (escritos por
diversos autores), Adauto Novaes mostra o quanto o conhecimento sensível é
tomado como algo negativo em diferentes pensadores da filosofia ocidental. Diz
ele: “Lemos em alguns autores que o conhecimento sensível é vago, confuso e
inadequado porque no mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia. A
realidade sensível jamais pode produzir um saber porque as coisas sensíveis são
ao mesmo tempo dissemelhantes, muitas e múltiplas nelas mesmas. Aquele que
se deixa seduzir apenas pelos sentidos deve assumir os riscos da incerteza ou
perder-se naquilo que vê” (NOVAES, 1995, p. 10).
75
Não é apenas em Platão que vemos a preocupação com a questão da luz. De
acordo com Ricardo Barthem (2005, p. 19-20): “Especulações sobre a natureza
da luz surgiram muito cedo na história da humanidade. Demócrito, filósofo
grego, [...] fez numerosas viagens pelo Egito, entre outros lugares, antes de se
fixar na Grécia. [...] A teoria atomista pregava que toda a matéria era constituída
109

foram os primeiros órgãos por eles [deuses] fabricados”. Sobre a


importância da visão, assegura que “a vista é para nós a causa do maior
benefício imaginável, porque nenhuma palavra da presente dissertação
acerca do universo jamais poderia ter sido enunciada, se nunca
tivéssemos contemplado os astros nem o sol nem o céu”76 (PLATÃO,
1977, p. 63).
Em A República, diálogo que contém diversos temas
filosóficos, políticos e sociais, Platão tece comentários a respeito do
conhecimento das coisas e da visão. Neste texto, ele relaciona a questão
da visão com a luz e o saber. Mais especificamente nos capítulos VI e
VII. No capítulo VI, a luz é tomada como a que caracteriza a visão, pois
sem a luz não há como vermos as coisas ao nosso redor. Na teoria de
Platão, é a luz que possibilita a existência das coisas visíveis, as quais
percebemos através da visão sensível. Salientamos que não é somente ao
olhar sensível que Platão se refere: há, para ele, uma outra visão, a visão
da alma, da contemplação, que de alguma maneira “vê” o Sol, o Bem, o
mundo inteligível77, descrito na alegoria da caverna, no livro VII. De
acordo com Antonio Quinet (2002, p. 24),

de minúsculas partículas, quase infinitamente pequenas, tão pequenas que nada


poderia se conceber que fosse menor que elas”. Chegando ao conceito de
átomo, este sendo eterno, indestrutível, imutável e indivisível, Demócrito o
diferenciou por características físicas. Por sua vez, “a luz, que era associada ao
fogo, seria constituída de átomos pontiagudos (tetraédricos) de forma a
provocar queimaduras dolorosas” (BARTHEM, 2005, p. 19-20). Aristóteles
revolucionou este conceito de luz: baseou-se nos órgãos sensoriais e propôs,
“para a luz, uma explicação similar à que ele havia dado às vibrações sonoras,
percebidas tanto pelos ouvidos como pelo tato. Segundo ele, um objeto
luminoso vibra e, desta forma, coloca em vibração um meio indefinido, que o
filósofo chamou de ‘diáfono’, o qual, por sua vez, provoca o movimento de
‘humores’ que entram na composição do olho” (BARTHEM, 2005, p. 19-20).
76
Prossegue Platão (1977, p. 63-64): “Realmente, foi a vista do dia e da noite,
dos meses e das revoluções dos anos, dos equinócios e dos solstícios que nos
levou a descobrir o número, deu-nos a noção do tempo e os meios de estudar a
natureza do todo. Dela é que derivamos a filosofia, o mais precioso bem que o
gênero humano em algum tempo recebeu ou que venha a receber da
munificência dos deuses. Esse é, a meu ver, o maior benefício da visão”.
77
“O mundo sensível é descrito por sua visibilidade. Se o mundo inteligível é
invisível aos olhos do corpo, isto não quer dizer, no entanto, que ele permaneça
nas trevas. Ao contrário, no mundo inteligível brilha o Bem que ilumina todas
as ideias e que permanece causa de saber dos dois mundos. O sol causa a visão
110

O mito da caverna é uma pedagogia do olhar.


Trata-se da alegoria platônica do processo de
conhecimento, do percurso do desconhecimento
ao conhecimento, do não-saber ao saber. Este
processo não se dá sem a impulsão ao saber para
se sair das trevas e caminhar para a luz. A paideia
é comandada pelo desejo de saber.

Assim, a formação do homem grego tem a ver, essencialmente,


com o olhar. Ao sair das trevas e olhar para o Sol, o habitante da
caverna entra em contato com o conhecimento verdadeiro. Seu passo
seguinte é fazer com que aqueles que vivem na caverna caminhem,
também, em direção à luz.
No início da Metafísica, Aristóteles (1973, p. 211) – muito mais
atento ao mundo físico que seu mestre Platão – privilegia o sentido da
visão: “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma
prova disso é o prazer das sensações, pois fora até da sua utilidade, elas
nos agradam por si mesmas e, mais do que todas as outras, as visuais”.
Não apenas no que tange à ação, “mas até quando não nos propomos
operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais”
(ARISTÓTELES, 1973, p. 211). Apesar de mostrar em seus escritos que
o conhecimento se opera por diversas vias, Aristóteles reconhece na
visão o foco central no que diz respeito às sensações. Assim, temos
contato com o conhecimento por outras vias sensíveis, como o olfato, o
paladar e o tato, por exemplo, mas a visão constitui, para nós, o meio
mais direto e imediato de um acesso à “ciência”78. Na sequência do
texto ele complementa o seu pensamento: “A razão é que ela é, de todos
os sentidos79, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças
nos descobre” (ARISTÓTELES, 1973, p. 211).

dos objetos do mundo sensível e o Bem causa o saber das ideias do mundo
inteligível” (QUINET, 2002, p. 22).
78
Numa nota de rodapé da Metafísica, Joaquim de Carvalho (1973, p. 211)
observa sobre o capítulo I: “Este capítulo tem por fim mostrar que o desejo de
saber é natural; que há graus diversos de conhecimento – sensação, memória,
experiência, arte, ciência – e que a verdadeira ciência é a que resulta do
conhecimento teorético, especulativo, não-prático, cujo objeto é o saber das
causas ou a razão de ser. A ciência deste saber constitui a sabedoria ou
filosofia”.
79
Marilena Chauí (1995, p. 48), no ensaio Janela da alma, espelho do mundo,
apresenta uma passagem da obra Sobre a alma, de Aristóteles: “dos dois
111

Agostinho – na época medieval – em suas Confissões, no livro


X, narra a sua experiência do encontro com Deus. Ele fala dos sentidos
como sendo as portas por onde entram as misérias e por onde os homens
sofrem “tentações”. Um dos tópicos deste capítulo é dedicado à sedução
pelos olhos. Afirma ele: “os olhos amam a beleza e a variedade das
formas, o brilho e a amenidade das cores. Oxalá que tais atrativos não
me acorrentassem a alma!80” (AGOSTINHO, 1996, p. 294). Ora, o olhar
é capaz de adultério, que despe a outra pessoa, que atravessa seu corpo e
fura sua alma. É também com o olhar que o amante seduz sua amada.
Por outro lado, o olhar pode ser fraterno e bondoso, que acaricia a alma
de outrem, tornando seu viver mais suave. O olhar pode matar, mas
também fazer renascer. Dentro deste panorama - ao sabor de Agostinho
– podemos dizer que o olhar é ambíguo, ou melhor, o olhar pode nos
levar para a prática do mal ou para o caminho do bem.
Em outra passagem subsequente, Agostinho (1996, p. 296)
pensa a concupiscência dos olhos, e, por eles serem os sentidos mais
prodigiosos para se alcançar o conhecimento, disserta acerca do curioso
desejo de conhecer:

últimos sentidos mencionados [vista e audição] a vista, considerada como


suplemento para as necessidades primeiras da vida e nos seus efeitos diretos, é o
sentido superior. Mas para o desenvolvimento da inteligência e suas
consequências indiretas, a audição tem procedência. A faculdade da vista,
graças ao fato de que todos os corpos são coloridos, traz novidades de multidões
de qualidades distintivas de todo tipo, motivo pelo qual é através desse sentido,
especialmente, que percebemos os sensíveis comuns, isto é, figura, movimento,
grandeza e número. Em contrapartida, a audição anuncia apenas as qualidades
distintivas do som e, para alguns animais, também as da voz. Indiretamente,
porém é a audição que mais contribui para o crescimento da inteligência, pois o
discurso racional é a causa da instrução porque esta é audível, mas não
diretamente e sim indiretamente, pois é composta de palavras e cada palavra é
um símbolo-pensamento. Consequentemente, das pessoas destituídas de
nascença de um desses sentidos, o cego é mais inteligente do que o surdo-
mudo”.
80
“A própria rainha das cores, esta luz que se derrama por tudo o que vemos e
por todos os lugares em que me encontro no decorrer do dia, investe contra mim
de mil maneiras e acaricia-me, até mesmo quando me ocupo de outra coisa que
dela me abstrai. Insinua-se com tal veemência que, se de repente me for
arrebatada, procuro-a com vivo desejo. Se se ausenta por muito tempo, a minha
alma cobre-se de tristeza” (AGOSTINHO, 1996, p. 294).
112

É aos olhos que propriamente pertence o ver.


Empregamos, contudo, este termo mesmo em
relação aos outros sentidos, quando os usamos
para obter qualquer conhecimento. Assim, não
dizemos: “ouve como brilha”, “cheira como
resplandece”, “saboreia como reluz”, “apalpa
como cintila”. Mas já podemos dizer que todas
essas coisas se vêem. Por isso, não só dizemos:
“vê como isto brilha” – pois só os olhos o podem
sentir -, mas também: “vê como ressoa, vê como
cheira, vê como sabe bem, vê como é duro”.

Prossegue Agostinho (1996, p. 296):

É por isso, como já disse, que se chama


concupiscência dos olhos à total experiência que
nos vem pelos sentidos. Apesar de o ofício da
vista pertencer primariamente aos olhos, contudo,
os restantes sentidos usurpam-no por analogia,
quando procuram um conhecimento qualquer.

Com isso, o pensador mais proeminente da Patrística já aponta


para uma certa promiscuidade entre os sentidos, apesar de colocar o
sentido da visão como sendo o convergente de todos os outros.
Outro filósofo medieval, Giordano Bruno (apud NOVAES,
1995, p. 17), fala do sentido da visão: “os olhares são as razões pelas
quais o objeto (como se ele nos olhasse) se faz presente em nós”. Esse
filósofo acredita que o olhar deve levar ao Bem Supremo (proposta de
Platão). Segundo Giordano Bruno, “a vista é o mais espiritual de todos
os sentidos” (apud NOVAES, 1995, p. 17).
De uma maneira geral, vimos que os pensadores até o período
medieval priorizaram a visão como sendo o mais fecundo, nobre e
espiritual de todos os sentidos.
Com o Renascimento e o progresso da investigação científica, os olhos
passaram a ser tratados com maior profundidade. É importante notar que
numa época em que a ideia de dignidade humana ganha destaque, na
tentativa de se desvincular o conhecimento da Igreja, o olhar retratado
pelos pintores, ainda possui cunho espiritual. Desta maneira, o olhar
caminha em direção ao inteligível, à iluminação. Aliás, mesmo no início
da Modernidade, percebemos que o olhar não rompe completamente
com o divino ou com a alma.
113

Dois pensadores franceses entre os séculos XVI e XVII voltam


a tratar do tema da visão: o primeiro é Descartes81; o segundo,
Malebranche82. Primeiramente, ocuparemo-nos de Malebranche, para,
em seguida, podermos aprofundar a temática da visão, tendo como
referência, especialmente, o terceiro tópico de O olho e o espírito, texto
ao qual Merleau-Ponty debate a Dióptrica de Descartes.

II

Malebranche – que tratara do tema da visão semelhantemente a


Descartes – é também constantemente lembrado por Merleau-Ponty.
Nos escritos Em busca da verdade, Malebranche (2004, p. 95) diz que
“A visão é o primeiro, o mais nobre e o mais extenso de todos os
sentidos, de modo que, se os sentidos nos tivessem sido dados para
descobrir a verdade, ela sozinha teria nessa descoberta uma parte maior
do que todos os outros juntos”. Seguindo seu pensamento, os olhos não
são os órgãos por onde possamos perceber a realidade, mas, ao
contrário, “eles não nos são dados para que julguemos a verdade das
coisas”, servem “para nos fazer conhecer aquelas que podem nos
incomodar ou nos ser útil em alguma coisa” (MALEBRANCHE, 2004,
p.104).
Apesar de tratar desse sentido como o mais nobre e mais
extenso, Malebranche (2004, 95-6) afirma que

81
De maneira geral, Merleau-Ponty, mesmo citando Malebranche várias vezes
em seus escritos, se serve de Descartes para pensar, com mais ênfase, a questão
da visão. Claude Lefort, na ocasião da morte de Merleau-Ponty, no Prefácio de
Notes de cours (1959-1961) afirma que a Dióptrica de Descartes estava aberta
em sua mesa de trabalho: “Sur as table de travail, à proximité du divan où il
s’était installé avec ses papiers, dans l’attente de la visite d’un proche, un livre
était grand ouvert: la Dioptrique de Descartes” (NC, 7). Testemunho que
também é registrado no primeiro parágrafo do capítulo Qu’est-ce que voir?, do
livro Sur une colonne absente: “Dans la chambre où il s’affaisse soudain un soir
de mai 1961, un livre ouvert, auquel il n’avait jamais fini de se repórter,
témoigne de son dernier travail: la Dioptrique” (LEFORT, 1978, p. 140)
82
Vemos em vários textos merleau-pontyanos, referências às ideias de
Malebranche, tais como: O olho e o espírito (OE, 28, 20): “segundo o dilema
sarcástico de Malebranche, o espírito sai pelos olhos para passear pelas coisas”;
Elogio da Filosofia (EP, 33): “como diz Malebranche, o nada não tem
propriedades.” Porém, o mais notório registro do autor faz parte da obra:
L’union de l’ame et du corps chez Malebranche, Biran e Bergson.
114

[...] não devemos nos apoiar sobre o testemunho


de nossa visão para julgar a verdade das coisas em
si mesmas, mas somente para descobrir a relação
que elas têm com a conservação de nosso corpo;
que nossos olhos nos enganam geralmente em
tudo o que nos representam, na grandeza dos
corpos, em suas figuras e em seus movimentos, na
luz nas cores, que são as únicas coisas que vemos;
que todas as coisas não são tais como elas nos
parecem; que todo o mundo se engana nisso, e que
isso nos leva a outros erros, cujo número é
infinito.

Aqui, já percebemos que a teoria de Malebranche se assemelha


à cartesiana. Veremos no próximo tópico o quanto Descartes insistia em
dizer que os sentidos nos enganam repetidamente. Por ora, seguimos as
considerações de Malebranche acerca da visão. De acordo com este, não
é somente através do sentidos que a alma percebe as coisas. Ela “pode
perceber as coisas de três maneiras, pelo entendimento puro, pela
imaginação e pelos sentidos” (MALEBRANCHE, 2004, p. 92). Em
primeiro lugar, a alma percebe pelo entendimento as coisas espirituais,
universais e perfeitas. Também percebe a ideia de um ser infinitamente
perfeito. E quando a alma faz uma reflexão sobre si, conhece, pois,
todos os pensamentos. Não somente as coisas espirituais, mas também
algumas coisas materiais, tais como, um círculo perfeito e uma figura de
mil lados. Em segundo lugar, a alma percebe pela imaginação. Sobre
isso, escreve Malebranche (2004, p. 93): “A alma percebe somente os
seres materiais quando, estando estes ausentes, ela os torna presentes ao
formar, [por assim dizer] imagens deles no cérebro”. Vale lembrar que a
alma não consegue formar imagens de coisas espirituais, mas somente
coisas materiais. Em terceiro lugar, o que constitui o objeto de nosso
estudo, a alma percebe pelos sentidos. Sendo objetos sensíveis e
grosseiros, os sentidos comunicam as impressões advindas do mundo
exterior ao cérebro. É através da ação dos sentidos enviando
informações ao cérebro, diz o filósofo, que temos sensações e
sentimentos.
Vemos através dos olhos, mas também utilizamos instrumentos
para aperfeiçoá-los, como é o caso, exemplifica Malebranche, das lupas
e de óculos. A olho nu, vemos algo que se assemelha a um ponto,
porém, ao olharmos com a ajuda de um microscópio vermos, pois, um
animal. Ora, o animal nos parece tão infinitamente pequeno quando
115

olhamos ao natural que se torna difícil identificá-lo. É esse auxílio para


ampliar nosso sentido visual que o torna acessível ao nosso
entendimento. Assim, podemos perceber que nossos olhos não nos
fazem ver as coisas tais como elas se apresentam na extensão.
Um detalhe importante na teoria de Malebranche é que as
pessoas não possuem olhos exatamente iguais, portanto, dois homens
não terão a mesma sensação ao ver, por exemplo, uma parece verde.
Tampouco um saberá ou experimentará a mesma sensação que o outro
está tendo ao ver a mesma parede verde. O filósofo diz que “não
podemos afirmar que existam dois homens no mundo que os vejam
precisamente com a mesma grandeza, ou compostos de partes
semelhantes, visto que não podemos afirmar que seus olhos sejam
exatamente similares” (MALEBRANCHE, 2004, p. 99).
Sendo uma das maneiras de a alma perceber as coisas, os
sentidos apenas nos enganarão se as julgarmos com muita precipitação.
Em todo caso, “não devemos imaginar que nossos sentidos nos ensinam
à risca a relação que os outros corpos têm com o nosso: pois a exatidão e
a justeza não são essenciais para os conhecimentos sensíveis, que devem
servir somente à conservação da vida” (MALEBRANCHE, 2004, p.
104).
Normalmente, conhecemos melhor os objetos próximos ao
nosso corpo e que conseguimos enxergá-los bem a olho nu. “À
proporção que eles se distanciam”, afirma Malebranche (2004, p. 105),
“nós os conhecemos menos, porque, então, tem menos relação com o
nosso corpo”. Ao olharmos para um objeto distante de nós “não
devemos jamais crer que eles sejam da grandeza com que nos
aparecem” (MALEBRANCHE, 2004, p. 105). Mesmo os objetos que
estão ao alcance de nossas mãos já temos muita dificuldade de avaliá-los
e julgá-los. Nesse sentido, “nossos olhos não nos enganam, portanto,
somente acerca da grandeza dos corpos em si mesmos, mas também
acerca das relações que os corpos tem entre si” (MALEBRANCHE,
2004, p. 106).
“Se olharmos um homem a grande distância”, explica Merleau-
Ponty (PPE, 54083), “não poderemos dizer que esse homem é do
tamanho de uma mosca, mas a distância não é homogênea à altura e à
largura: ela é a dimensão da inatualidade”. Afinal, “esse homem é uma
presença que, por enquanto, está longe, mas que, acolá, é tal qual eu o
sentiria se o visse de perto. (PPE, 540). Como Malebranche lida com

83
A paginação desta obra de Merleau-Ponty refere-se a edição brasileira.
116

essa relação de distância dos objetos ante meu olhar? Tomemos o


exemplo da lua que aparece no horizonte. Disserta Malebranche (2004,
p. 105):

A mesma lua aparece para a nossa visão muito


maior do que as maiores estrelas e, contudo, não
duvidamos de que ela seja incomparavelmente
menor. Do mesmo modo, vemos todos os dias
sobre a terra duas ou três coisas, das quais não
saberíamos descobrir a grandeza ou a relação
exata, o que é muito difícil de saber.

Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, Merleau-Ponty


(S, 79, 78) diz que “a grandeza84 da lua no horizonte não é mensurável
por um certo número de partes alíquotas da moeda que tenho na mão”,
como fazem os mestres da perspectiva pictórica, “trata-se de uma
‘grandeza à distância’, de uma espécie de qualidade que adere à lua
como o quente e o frio a outros objetos”. Sendo difícil de lidar com a
relação-distância das coisas diante de nós, a perspectiva do
Renascimento inventou uma maneira de lidar com a coexistência das
coisas no espaço da tela ou papel. Sobre isso nos ateremos no próximo
tópico. O que importa ressaltar, aqui, é que se olhando a lua no
horizonte eu desejasse expressá-la através da perspectiva, precisaria
“deixar de perceber o todo livremente”, afirma Merleau-Ponty (S, 79,
78-79), necessitaria, pois, “circunscrever a minha visão, determinar,
num padrão de medida que tenho, aquilo a que chamo a ‘grandeza
aparente’ da lua e da moeda e afinal transportar essas medidas para o
papel”. Desta forma, o mundo percebido desaparece e, com ele, “a
simultaneidade verdadeira dos objetos, que não é uma inclusão pacífica
numa única escala de grandeza” (S, 79, 79). Afinal, nossos olhos estão
em constante movimento e observam o mundo em seu nascimento bruto

84
Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty retoma a relação entre o próximo e
o distante: “Quando olho uma estrada que se distancia de mim em direção ao
horizonte, posso relacionar o que chamo a “largura aparente” da estrada a tal
distância – isto é, a que eu meço olhando com um só olho e em relação ao lápis
que seguro diante de mim -, com outros elementos do campo determinados
também por algum processo de medida, estabelecendo, assim, que a
“constância” da grandeza aparente depende de tais e tais variáveis, segundo o
esquema de dependência funcional que define o objeto da ciência clássica “(VI,
39, 31).
117

e indivisível. Não era isso que Cézanne tentava fazer ao atacar a tela por
todos os lados, a tal ponto de a pintura ser “construída” toda em
conjunto ao mesmo tempo? Se, de fato, queria expressar o todo
indivisível, a ordem nascente da natureza, então caberia pintar a tela
como se a pintura (a imagem) surgisse de um mundo pré-espacial. Em
Cézanne, o desenho e a cor nasciam ao mesmo tempo. Era essa
“simultaneidade verdadeira dos objetos” (S, 79, 79) que ele tentava
conduzir para a tela. Para fixá-las no plano, tal como os renascentistas
faziam, temos que decidir tornar os objetos “co-possíveis em um mesmo
plano, e [conseguimos85] isso imobilizando no papel uma série de visões
locais e monoculares, sendo que nenhuma delas é sobreponível aos
momentos do campo perceptivo vivo86” (S, 80, 79).
Só conhecemos as coisas, bem como a relação entre elas,
porque temos nossa corporeidade. Ora, é isso que crê Merleau-Ponty, na
contramão de Malebranche que acredita que é a alma quem conhece as
coisas e, como vimos, através de três formas. Sobre isso, o primeiro
afirma que nosso corpo

[...] é capaz de tocar ou de ver alguma coisa, isto


é, de estar aberto a coisas nas quais (Malebranche)
lê as suas modificações (porque não temos ideia
da alma, porque a alma é um ser de que não há
ideia, um ser que nós somos e que não vemos). O
tocar-se, ver-se, “conhecimento por sentimento”
(VI, 297, 226).

Plínio J. Smith (2004, p. 20), comentando Malebranche, afirma


que “quando percebemos um objeto, por exemplo, uma árvore, olhamos
para ela, isto é, nossos olhos estão voltados para um certo objeto
extenso, a árvore, e vemos, com os ‘olhos’ de nossa alma, uma árvore
espiritual”. Continua Smith (2004, p. 21): “Malebranche traça aí uma

85
Adaptamos o verbo para a primeira pessoa do singular.
86
Ao contrário da concepção renascentista, Merleau-Ponty afirma que: “Para o
olhar natural que me dá a paisagem, a estrada ao longe, não possui “largura”
alguma que se possa, ainda que idealmente, determinar numericamente – ela é
tão larga como a curta distância –, já que é a mesma estrada, mas também não o
é, já que não posso negar que haja uma espécie de encolhimento perceptivo”
(VI, 39, 32).
118

importante distinção entre olhar, um evento puramente físico, e ver, um


ato puramente espiritual”. Como ele distingue a árvore como objeto
extenso e a árvore espiritual? Esta não está em nós, não habita a nossa
consciência, mas “estará em Deus como aquilo que está o mais próximo
de nós, isto é, de nossa alma” (2004, p. 21). Aceitando o dualismo entre
alma e corpo, o filósofo moderno sustenta que a nossa percepção das
coisas materiais, objetos percebidos pelos olhos, pelo corpo, é mediado
por outros, os olhos da alma, que está presente em Deus.

III

A concepção cartesiana do sentido da visão não é muito


diferente da de Malebranche. Ao escrever A Dióptrica, Descartes fez
uma tentativa de reconstrução de um mundo a partir do pensamento,
segundo um modelo racional predeterminado e calculado. Assim, o olho
não frequenta mais o mundo visível, mas é “um pensamento que decifra
estritamente os signos dados no corpo” (OE, 41, 26). “A ordem do
visível é excluída e, ao mesmo tempo, tudo se torna ‘visível’ pela razão”
(QUINET, 2002, p. 28). Descartes (1999, p. 266) expressa esta ideia na
Segunda Meditação: “assim compreendo, apenas pelo poder de julgar
que se localiza em meu espírito, aquilo que cria ver com meus olhos”.
Em outras palavras: não é mais o olho quem vê, mas o pensamento.
Sobre isso, esclarece Merleau-Ponty (OE, 39-40, 25):

Um cartesiano não se vê no espelho: vê um


manequim, um “exterior” do qual tudo faz supor
que os outros o vejam do mesmo modo, mas que,
para ele próprio como para os outros, não é uma
carne. Sua “imagem” no espelho é um efeito da
mecânica das coisas; se nela se reconhece, se a
considera “semelhante”, é seu pensamento que
tece essa ligação, a imagem especular nada é dele.

Criticando o pressuposto cartesiano de que é o pensamento a


sede do conhecimento, Merleau-Ponty descreve o corpo que vê as
coisas, mas que também é visto por elas. Ao me olhar no espelho, por
exemplo, vejo coisas que eu não sabia de mim. Não é surpreendente que
nele eu perceba que, ao mesmo tempo em que sou vidente, sou também
visível? Tampouco o objeto que está à minha frente é “puro-para-mim”,
pois está imbricado com outros objetos e comigo mesmo. Descartes,
contudo, não pensa desta forma. Segundo Merleau-Ponty, a Dióptrica é
119

“o breviário de um pensamento que não quer mais frequentar o visível e


decide reconstruí-lo segundo o modelo que dele se oferece” (OE, 36,
24). É analisando a tentativa e o fracasso cartesiano acerca disso que
Merleau-Ponty tece o terceiro tópico de O olho e o espírito.
Ao referir-se à questão da visão, Descartes não centra seu
pensamento na pintura. Esta é vista só de passagem. “É significativo”,
diz-nos Merleau-Ponty (OE, 42, 26), “que, devendo falar dos ‘quadros’,
ele tome como típico o desenho”. A linha que dá forma aos objetos, tal
como é erigida pelos clássicos, não mostra o fluxo do mundo da vida,
tampouco a complexidade ontológica como “abertura ao coração do
Ser” (OE, 41, 26), como as artes modernas nos apresentam, mas fixa os
objetos em lugares determinados, previamente calculados e projetados.
Assim, os objetos apresentam-se um atrás do outro, escalonados, como
se a espacialidade estivesse toda a nossa frente. Este tipo de
representação permite uma “solidariedade do observador e do
observado” (OE, 57, 32), conferindo uma ilusão de volume na cena
retratada, colocando nossa visão numa espacialidade segura, não
necessitando uma interação maior do observador com o quadro, tal qual
o crente que tem em Deus o seu deleite paradisíaco eterno. Desta forma,
a pintura clássica nos apresenta um mundo pronto e acabado, embora
grande parte dos pintores sabiam que a perspectiva do Renascimento é
uma das maneiras de criar a terceira dimensão num espaço
bidimensional.
Descartes não privilegia a pintura em sua pesquisa; antes,
prefere o desenho. De onde se segue que “é óbvio que, para ele, que a
cor é ornamento, coloração, que toda a força da pintura repousa sobre o
desenho, e a do desenho sobre a relação regulada que existe entre ele e o
espaço em si tal como o ensina a projeção em perspectiva” (OE, 43-44,
27).
Merleau-Ponty, ao contrário, afirma que

A pintura não é mais um artifício que apresenta a


nossos olhos uma projeção semelhante àquela que
as coisas neles inscreveriam e neles inscrevem na
percepção comum, ela nos faz ver na ausência do
objeto verdadeiro como se vê o objeto verdadeiro
na vida, e sobretudo nos faz ver espaço onde não
há espaço (OE, 44, 27).

Entre as concepções cartesianas sobre o espaço e as de Merleau-


Ponty há uma grande diferença. É por conta disso que o primeiro recorre
120

ao desenho e o segundo à pintura. De qualquer forma, é examinando os


sentidos que ambos tecem comentários acerca desses modos de
expressão.
Pensando a problemática dos sentidos, Descartes (1999, p. 269)
observa no início da Terceira Meditação:

Fecharei os olhos, tamparei os ouvidos, afastar-


me-ei de todos os sentidos, apagarei de meu
pensamento todas as imagens de coisas corporais,
ou, ao menos, já que é muito difícil fazê-lo,
considerá-las-ei insignificantes e enganosas; e,
desta maneira, ocupando-me somente comigo
mesmo e considerando meu interior, procurarei
tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa
[...].

Esse privilégio da razão em relação aos sentidos, outorgado por


Descartes, faz do corpo um objeto, desfigurando-o de uma existência
expressiva. Em oposição a esta teoria, Merleau-Ponty falará de um
corpo em sentido amplo, de um corpo que faz parte do visível. Isso não
quer dizer que ele seja simplesmente um fragmento do espaço, como se
lá existisse o visível e aqui um corpo como “variante do lá”. Sobre a
concepção merleau-pontyana do corpo já abordaremos no capítulo
anterior. O que nos interessa, aqui, é observar que, em Descartes, a ideia
de profundidade não é examinada com a devida atenção, tal qual aquela
desejada por Merleau-Ponty. É nesse sentido que Iraquitan Caminha
(2010, p. 248) comenta que

[p]ara Descartes, mesmo que a profundeza


pudesse se inscrever sobre nossos olhos, a
impressão sensorial ofereceria apenas uma
multiplicidade de coisas em si para ser percorrida
e, assim, a distância, como todas as outras
relações espaciais, existe apenas para um sujeito
que faz a síntese e que a pensa.

Ora, se Descartes não examina a questão da profundidade a tal


ponto de falar do Ser como sendo para além de uma positividade pura,
Merleau-Ponty, por sua vez, diz que a pintura é uma das maneiras de
termos acesso ao Ser, mesmo que de forma parcial e indireta.
121

Em sua investigação da teoria cartesiana, Merleau-Ponty mostra


que a pintura implica numa compreensão do Ser, não apenas na
totalidade do quadro, mas a partir da singularidade dos elementos
picturais. Com isso, a pintura, e a sua própria história, com todo “seu
esforço para se livrar do ilusionismo e para adquirir suas próprias
dimensões tem uma significação metafísica” (OE, 61, 34). O que
realmente interessa nas análises sobre a Dióptrica “é que elas tornam
sensível que toda teoria da pintura é uma metafísica” (OE, 42, 26).
Descartes crê num fundamento do Ser como plena positividade, objeto
uniforme, homogêneo, algo acabado e que se oferece à visão, não como
uma sucessão de imagens que a percepção espontânea detecta na
natureza, mas algo fixo e determinado. É isso que a construção da
perspectiva clássica mostra: para Descartes, que vê a partir dos
renascentistas, a profundidade é “uma terceira dimensão derivada das
outras duas” (OE, 45, 27). Seguindo o argumento cartesiano, o quadro é
para ele, “uma coisa plana que nos oferece artificialmente o que
veríamos em presença de coisas ‘diversamente reveladas’ porque nos
oferece segundo a altura e a largura sinais diacríticos suficientes da
dimensão que lhe falta” (OE, 44-45, 27).
Contrapondo a pintura como uma representação da extensão,
Merleau-Ponty (OE, 46, 28) afirma que “a imbricação e a latência das
coisas não entram em sua definição”. Segundo as regras da
representação, calculada e previamente estabelecida pelo próprio pintor
- se este seguir este tipo de pintura -, a promiscuidade das coisas
exprime “minha incompreensível solidariedade com uma delas” (OE,
46, 28). Apresenta, assim, as coisas postadas uma atrás da outra,
perdendo, pois, o seu fluxo natural de se arranjarem espacialmente. Esse
sistema produz um tipo de espaço em si, como algo que formamos e
estabelecemos, e não como atributos que as coisas possuem em sua
existência. Comentando Descartes, “o espaço é em si”, afirma-nos
Merleau-Ponty (OE, 47, 28), “é o em si por excelência, sua definição é
ser em si. Cada ponto do espaço existe e é pensado ali onde ele está, um
aqui, outro ali, o espaço é evidência do onde”. Essa entidade que contém
duas dimensões, e que permite ver a ilusão de uma terceira, “repousa
absolutamente em si, por toda parte é igual a si, homogêneo, e suas
dimensões, por exemplo, são por definição substituíveis”. Se observo
esta profundidade situada, este “espaço sem esconderijo” (OE, 45, 28), é
porque a rivalidade das coisas que estão disputando o meu olhar foi
deixada de lado.
Mesmo não apresentando a promiscuidade e o entrelaçamento
das coisas, as investigações de Descartes não eliminam o enigma da
122

visão. Esse filósofo moderno concebe a visão como um pensamento


corporificado, não sendo, assim, apenas pensamento puro. De acordo
com Merleau-Ponty:

Somos o composto de alma e de corpo, portanto é


preciso que haja um pensamento dele: é a esse
saber de posição ou de situação que Descartes
deve o que diz desse pensamento, ou o que diz às
vezes da presença do corpo “contra a alma”, ou da
do mundo exterior “na ponta” de nossas mãos.
Aqui o corpo não é mais meio da visão e do tato,
mas seu depositário (OE, 58, 33).

Em síntese, para Descartes, não são os órgãos sensíveis que


identificam as coisas do mundo, tampouco são eles que possuem
experiências, mas é o pensamento que possui um corpo e, assim, vê,
ouve, tateia, cheira e degusta as coisas do mundo visível.
Se há uma ontologia em Descartes, só pode ser a partir do
pensamento e não do sensível. Em todo caso, a ontologia que se
depreende da pintura (desenho) a partir de Descartes é de um Ser que
deve ser plano, positivo e uniforme. Se ele tivesse feito um exame mais
detalhado do tema, tê-lo-ia levado, talvez, a conceber outra filosofia.
Sobre isso afirma Merleau-Ponty (OE, 43, 26):

Se tivesse examinado essa outra e mais profunda


abertura às coisas que as qualidades segundas
oferecem, especialmente a cor, como não há
relação regulada ou projetiva entre elas e as
propriedades verdadeiras das coisas, e como no
entanto sua mensagem é por nós compreendida,
Descartes teria se visto diante do problema de
uma universalidade e de uma abertura às coisas
sem conceito, obrigado a investigar de que
maneira o murmúrio indeciso das cores pode nos
apresentar coisas, florestas, tempestades, enfim o
mundo, e talvez a integrar a perspectiva como
caso particular de um poder ontológico mais
amplo.

É observando e pensando a partir da teoria cartesiana da visão


que Merleau-Ponty considera que o olhar está mais além da nossa
compreensão total: mais do que um acesso imediato às coisas, é um
enigma.
123

IV

De modo geral, o pintor, em seu ato expressivo, pratica “uma


teoria mágica da visão” (OE,27-28, 20). Ele reconhece cada vez mais
que o mundo quer ser expresso; que as coisas perpassam seu corpo87 e
ele as imprime como obra. O pintor, diz Merleau-Ponty (OE, 28, 20),
“precisa admitir que as coisas entram nele ou que, segundo o dilema
sarcástico de Malebranche, o espírito sai pelos olhos para passear pelas
coisas, uma vez que não cessa de ajustar sobre elas sua vidência”.
Assim, “o mundo não está mais diante dele por representação: é antes o
pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do
visível” (OE, 69, 37). Ele germina com a obra: para poder imprimir na
tela o todo indivisível, há uma “necessidade” – no sentido de ser quase
obrigatório – de uma imersão no mundo visível. Sem essa imbricação
(empiètement) do vidente e do visível a expressão se torna vazia e
infrutífera. O visível, não sendo algo maciço e opaco, permite a sua
infiltração: o artista tateando, meio que cegamente, nuances de perfis
que desaparecem no momento seguinte do seu campo visual, é que
permite vir ao mundo um novo ser. De fato, acontece algo estranho em
sua visão: o escamoteamento das coisas visíveis são sentidas
abruptamente sem ao menos o artista conseguir controlar a percepção. É
nesse momento que um invisível se apresenta como uma ausência de
outros perfis possíveis.
Fazendo parte do mundo visível, o corpo vidente mantém uma
relação de interdependência com o movimento. Afinal, indaga Merleau-
Ponty (OE, 17, 16): “que seria a visão sem nenhum movimento dos
olhos, e como esse movimento não confundiria as coisas se ele próprio
fosse reflexo ou cego, se não tivesse suas antenas, sua clarividência, se a
visão não se antecipasse nele?”. Sobre esse prisma, descreve Merleau-
Ponty:

Todos os meus deslocamentos por princípio


figuram num canto de minha paisagem, estão
reportados ao mapa do visível. Tudo o que vejo
por princípio está ao meu alcance, pelo menos ao
alcance do meu olhar, assinalado no mapa do “eu
posso”. Cada um dos dois mapas é completo. O

87
“Não vos enganeis. Não penseis que ‘recebeis’ a pintura apenas pelo olho.
Não. Sem que o saibais, vós a recebeis pelos cinco sentidos” (KANDINSKY,
1999, p. 352).
124

mundo visível e de meus projetos motores são


partes totais do mesmo Ser (OE, 17, 16).

Esse movimento do corpo e do mundo não é uma decisão do


espírito conforme postulara Descartes. O corpo mantém uma relação de
quiasma com o mundo visível: sendo uma coisa, mantém com outras
coisas uma “extraordinária imbricação” (OE, 17, 16), e “está preso no
tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa” (OE, 19, 17). Sendo ao
mesmo tempo vidente-visível, movendo-se, “ele mantém as coisas em
círculo ao seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele
mesmo, estão incrustadas em sua carne” (OE, 19, 17). Esse enigma do
corpo é coextensivo à visão. Afirma Merleau-Ponty (OE, 19-20, 17):
“Essas inversões, essas antinomias são maneiras diversas de dizer que a
visão é tomada ou se faz no meio das coisas, lá onde persiste, como a
água-mãe no cristal, a indivisão do senciente e do sentido”.
Ao circunscrever essa noção de “indivisão do sensciente e do
sentido” o filósofo diz que não há coincidência entre ambos, mas
cruzam-se, invade ou toma do outro, estão em “quiasma88”. É por isso
que podemos ver a profundidade na obra por meio de linhas, cores e
movimentos. A pintura permite ver o outro lado do visível, suas
margens e dimensões, as outras faces de um cubo (que na percepção
tradicional se apresentaria como um quadrado e dois losangos
distorcidos).
“Toda a questão está em compreender”, esclarece-nos Merleau-
Ponty, “que nossos olhos já são muito mais que receptores para as luzes,
as cores e as linhas [...]” (OE, 25, 19). Eles possuem o dom do visível,
conquistado pelo exercício, porque só aprendeu vendo. É ainda vendo as
coisas que o olho adquire o dom da vidência. E se, por acaso, somos
pintores, pintamos porque, de alguma forma, nosso olho “foi
sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível
pelos traços da mão” (OE, 26, 19-20).
Na experiência da expressão,

88
“A noção de ‘quiasma’ cumpre um importante propósito: ela visa retificar a
ideia de síntese herdada pela metafísica clássica. Alma e corpo, fato e essência,
coisa e consciência, signo e significado não se explicam mais pela mistura ou
união enquanto termos positivos: o ser não é um positivo lógico, mas ambos se
entrelaçam mutuamente sem absolutizar, em suas relações, qualquer ordem
hierárquica. A metáfora do quiasma sugere apenas que tais termos relacionados
estavam desde já intrinsecamente ligados” (SILVA, C., 2010, p. 172).
125

[...] o olho vê o mundo, e o que falta ao mundo


para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser
ele próprio, e, na paleta, a cor que o quadro
espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde
a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as
respostas outras a outras faltas (OE, 25-26, 19).

O pintor imprime no quadro o paradoxo da expressão: visão


como gênese e metamorfose do Ser. No Primado da Percepção (PrP,
40-41, 48) Merleau-Ponty esclarece que “[h]á, pois, na percepção, um
paradoxo da imanência e da transcendência. Imanência, posto que o
percebido não poderia ser estranho àquele que percebe; transcendência,
posto que comporta sempre um além do que está imediatamente dado”.
Não sendo elementos contraditórios, na experiência perceptiva, “a
aparição de ‘alguma coisa’, exige indivisivelmente essa presença e essa
ausência” (PrP, 41, 48).
Mais do que imitar ou representar o visível, o pintor “dá
existência visível ao que a visão profana crê invisível”, inserindo-nos na
própria “voluminosidade do mundo” (OE, 27, 20). Essa “visão
devoradora” do artista, “para além dos ‘dados visuais’, dá acesso a uma
textura do Ser da qual as mensagens sensoriais discretas são apenas as
pontuações ou as cesuras, textura que o olho habita como o homem sua
casa” (OE, 27, 20). Ademais, “não perscrutando o exterior do
movimento, mas suas cifras secretas, a pintura não se lança fora do
tempo, mas se radica na carne própria das coisas” (SILVA, 2006, p.
182). “A pintura”, diz Merleau-Ponty (OE, 26-27, 20), “desperta, leva à
última potência um delírio que é a visão mesma, pois ver é ‘ter à
distância’, e a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do
Ser, que devem de algum modo se fazer visíveis para entrar nela”. E,
“para dar a fórmula ontológica da pintura, quase nem é preciso forçar as
palavras do pintor, já que Klee escrevia aos trinta e sete anos estas
palavras que foram gravadas em seu túmulo: ‘sou inapreensível na
imanência [...]’” (OE, 87, 44).
Merleau-Ponty faz uma interessante citação de Klee (OE, 86,
44): “um certo fogo faz viver, ele desperta; guiando-se ao longo da mão
condutora, atinge o suporte e o invade, depois fecha, faísca saltadora, o
círculo que devia traçar: retorna ao olho e mais além”. Nesse ato criativo
do pintor, onde há uma atividade-passividade, não conseguimos
identificar o limite que se instala entre a pintura e a natureza, ou entre o
homem e a expressão. Nesta dimensão passiva, é o próprio “Ser mudo”
(OE, 87, 44) que vem manifestar seu sentido na obra. De que maneira
126

isso se dá no pintor? Diz-nos Merleau-Ponty (OE, 86, 44): “No fundo


imemorial do visível algo se mexeu, se acendeu, algo que invade seu
corpo, e tudo o que ele pinta é uma resposta a essa solicitação, sua mão
‘não é senão o instrumento de uma longínqua vontade’”.

3.2 A profundidade como idealidade de horizonte

No capítulo anterior, vimos que Cézanne, por exemplo,


procurava expressar a profundidade diferentemente dos artistas
clássicos, sem o uso das leis da perspectiva, mas através do emprego das
cores. Trata-se, de fato, de uma busca contínua, pois a profundidade não
deve ser buscada apenas uma vez na vida, mas durante toda a vida.
Fazendo dela, pois, mais do que um simples jogo de ilusão em pintura,
algo assim como uma “deflagração do Ser”, em que almejamos acessar
para além do mundo visível: o próprio “coração” do invisível. Escreve
então Merleau-Ponty (VI, 268, 203): “a profundidade é o meio que têm
as coisas de permanecerem nítidas, ficarem coisas”, possibilitando com
que elas mostrem suas diferentes faces, ora como presença, ora como
ausência. É nesse sentido que a profundidade “é a dimensão por
excelência do simultâneo”; ademais: “o olhar não vence a profundidade,
contorna-a”89 (VI, 268, 203). O olhar contorna a profundidade porque
nos apresenta um mundo ambíguo, de reversibilidades, de implicações
mútuas. Mostra-nos também a gênese interminável do Ser, e que, de
alguma forma, exige a nossa criação para que possamos experienciá-lo.
Vimos com Descartes que os sentidos nos enganam
continuamente. Basta, para verificar isso, observar um lápis em um copo
d’água: a parte submersa se mostrará quebrada em reação a outra.

89
Cabe citar, aqui, o parágrafo na íntegra: “a profundidade é o meio que têm as
coisas de permanecerem nítidas, ficarem coisas, embora não sendo aquilo que
olho atualmente. É a dimensão por excelência do simultâneo. Sem ela, não
existiria um mundo, ou Ser, mas só uma zona móvel de nitidez que não poderia
apresentar-se sem abandonar o resto, - e uma ‘síntese’ destes ‘pontos de vista’.
Ao passo que, através da profundidade, as coisas coexistem cada vez mais
intimamente, deslizam umas nas outras e se integram. É então ela quem faz com
que as coisas tenham uma carne: isto é, que oponham obstáculos à minha
inspeção, uma resistência que é precisamente a sua realidade, sua ‘abertura’, o
seu totum simul. O olhar não vence a profundidade, contorna-a” (VI, 268, 203).
127

Assim, parece que os sentidos realmente não traduzem a verdade


observada por eles. Ao contrário do pensamento cartesiano que coloca a
verdade no plano racional, Merleau-Ponty, ao dar cidadania aos
sentidos, quer resgatá-los do limbo em que foram colocados ao longo da
História da Filosofia, também torná-los integrantes, de fato, do mundo
percebido, e com eles procurar entender melhor a profundidade.
Se os clássicos inventaram uma maneira de lidar com a terceira
dimensão, Cézanne procura expressá-la toda vez que se coloca diante da
natureza e da tela. Mesmo após as soluções encontradas pelos
renascentistas, e por Descartes, a questão da profundidade teve
desdobramentos diferentes ao longo da história da arte: vemos isso ao
investigarmos as experiências feitas por alguns artistas, tais como,
Matisse, Moore, Giacometti e Picasso. Sendo trabalhada pelo escultor,
pelo pintor, ou por outra vivência artística, a profundidade deve
apresentar a co-relação entre o espaço e o conteúdo, que metamorfoseia
o visível, exprimindo as relações do homem com o Ser. Também a
promiscuidade das coisas se dá no mundo, e, por consequência, adentra
o enigma que se insere na reversibilidade do visível e invisível. Mistério
que exige uma nova retomada: por isso que frequentemente nos
deparamos com várias versões de uma mesma obra. Van Gogh, por
exemplo, fez dezenas90 de autorretratos91. De qualquer forma, pintando
o mesmo motivo92, ou outro, a obra inaugura um “campo onde se mostra
sob uma outra luz” (OE, 62, 34), como se cada passo que o artista desse
abrisse um tênue caminho a ser percorrido. Por isso que, para muitos, o
motivo não era a principal preocupação. Nesse sentido, o que importa,
de fato, são inquietações93 que levam o artista a se lançar numa nova
experiência criativa.

90
Imagem em anexo (três autorretratos de Van Gogh).
91
O poema Auto-retrato, de Mário Quintana (1997, p. 47), parece ir nessa
mesma direção: “No retrato que faço/ - traço a traço -/ às vezes me pinto
nuvem/ às vezes me pinto árvore.../ às vezes me pinto coisas/ de que nem há
mais lembrança.../ ou coisas que não existem/ mas que um dia existirão.../ e,
desta lida, em que busco/ - pouco a pouco -/ minha eterna semelhança,/ no final,
que restará?/ um desenho de criança.../ corrigido por um louco!”.
92
Em anexo estão inseridos três diferentes pinturas feitas (por mim) a partir de
um mesmo motivo, cujo objetivo é mostrar que não há duas obras de arte
idênticas: cada uma das imagens (bailarinas) foram elaboradas em momentos
distintos e com técnicas diferenciadas.
93
“O que conta não é o que o artista faz, mas o que ele é. Cézanne nunca teria
me interessado se tivesse vivido e pensado como Jacques-Émile Blanche,
128

Toda nova aventura criativa conduz o pintor a expressar-se de


maneira cada vez mais fecunda. São suas inquietações que o levam a
pintar através de uma linguagem que lhe é própria. De fato, o artista
“constrói” um estilo ao longo de sua carreira. Sobre isso nos ateremos
mais especificamente no tópico 3.3 do presente capítulo.
Se, além do estilo de cada pintor, há, também, na pintura uma
linguagem, esta possui características que lhe são próprias. No texto A
linguagem indireta e as vozes do silêncio, Merleau-Ponty dialoga com
os escritos de André Malraux para pensar o tema da linguagem e da
expressão. Se, para os clássicos, fazer pintura era representar a natureza,
para os pintores do final do século XIX, e início do século XX, pintar
passa a ser uma maneira de recriar o mundo. Assim, a pintura não existe
antes da pintura. Nas reflexões de Malraux, a pintura moderna, ao
privilegiar a subjetividade do pintor, estaria regredindo, pois ele estaria
pintando a si próprio e as suas ideias. Discordando do escritor francês,
Merleau-Ponty afirma que “não se pode [então] definir a pintura clássica
pela representação da natureza ou pela referência a ‘nossos sentidos’,
nem portanto a pintura moderna pela referência ao subjetivo” (S, 78,
78). Nessa perspectiva, “não se deve abandonar o mundo visível às
receitas clássicas, nem encerrar a pintura moderna no reduto do
indivíduo: não temos que escolher entre o mundo e a arte, entre os
‘nossos sentidos’ e a pintura absoluta: estão todos entrelaçados” (S, 78,
78). Os pintores clássicos não transportavam para a tela a “coexistência
das coisas percebidas, a rivalidade delas diante de seu olhar”, mas
encontraram “um meio de arbitrar o seu conflito que faz a
profundidade” (S, 79-80, 79).
Investiguemos, pois, a questão da profundidade retratada por
alguns artistas, para, em seguida, aprofundarmos a noção da pintura
como uma linguagem expressiva conquistadora.

II

A história da pintura nos mostra que os clássicos


desenvolveram várias técnicas importantes para tentar representar

mesmo se a maçã que ele pintara fosse dez vezes mais bela. O que nos interessa
é a inquietação de Cézanne, o ensino de Cézanne, são os tormentos de Van
Gogh, isto é, o drama do homem. O resto é falso” (PICASSO, 1999, p. 276).
129

melhor a realidade94. A perspectiva95, por exemplo, permite-nos


observar uma maneira estática de ver o mundo, representando os objetos
escalonados, como se estivessem um atrás do outro. O cuidadoso
enquadrinhamento dos objetos na tela, que em proporções precisas e
rigorosas, devidamente calculadas, produz, junto à cena pintada, um
efeito de profundidade espacial. Essas técnicas estabelecidas pelos
pintores renascentistas, que objetivavam à perfeita representação do
mundo, deveriam, no limite, atingir “a própria coisa, o próprio homem,
que se imagina não poderem conter acaso ou indecisão” (PM, 77, 76).
Procurava-se tal qual Chardin, por exemplo, figurar na pintura de um
pêssego o seu aveludado.
Na esteira de Panofsky96, Merleau-Ponty (PPE, 542) adverte
que “a perspectiva não é natural, é uma decisão. Vários sistemas são
possíveis para resolver esse problema (a pintura grega empregava, a
título de exemplo, a perspectiva angular)”. De toda sorte, uma vez que
se adquire a imagem do mundo formada via esse sistema, tem-se a
impressão de que é uma linguagem natural. Assim, ao empregar a
perspectiva pela primeira vez, os pintores acreditaram ter descoberto a
verdade da coexistência das coisas e não, ao contrário, ter inventado
uma forma de ver o mundo. Há de se admitir, contudo, que ela é uma
forma simbólica de expressar a realidade.
No caso da pintura grega, a atenção é voltada para o corpo, cuja
espacialidade é tratada como a relação-distância entre dois corpos. “O
espaço é um agregado”, afirma Merleau-Ponty (PPE 543), “não há

94
Vejamos Matthews (2010, p. 174-175): “Considera-se que a pintura clássica
apresenta uma visão muito mais ‘realista’ das coisas. Ela as mostra em
perspectiva, essa grande descoberta da pintura renascentista. Seus objetos têm
linhas firmes e cores definidas, as cores que as coisas têm ‘naturalmente’ – a
neve é branca, o capim é verde etc. -, a disposição espacial dos objetos como
normalmente esperamos, e assim por diante”. Continua ele: “A primeira coisa
que deve ser dita é que qualquer obra de arte é, enquanto tal, uma criação do
artista, não uma mera reflexão de alguma realidade preexistente. [...] O que
chamamos ‘realismo’ em pintura, portanto, não é uma similitude com o que
pensamos ver na natureza, mas uma certa maneira de constituir o mundo da
própria pintura” (MATTHEWS, 2010, p. 174-5).
95
“Assim como o mapa, serve para orientar o intelecto: a perspectiva não nos dá
nenhum vislumbre da realidade” (READ, 2000, p. 14).
96
Apesar de pensar de maneira um tanto quanto diferente de Panofsky,
Merleau-Ponty busca nele uma iconografia, ou seja, uma maneira de abordar a
história da arte.
130

nesses quadros um único ponto de fuga, mas vários eixos de fuga


divergentes”. Vivendo no mundo e mantendo um sentimento de
coexistência com este, os artistas “buscam alguma coisa que viesse
completar seu sistema
ema de expressão do espaço; é o conjunto das tensões
interiores e seu sentimento que os orienta” (PPE, 543).

Imagem 19: Pintura grega helenística (Século IV a.C.).

> Acesso em
Fonte: Disponível em: <http://telasmb.com.br/site/conteudo/blog>
03 de jun. 2015.

Não tendo apenas que representar uma visão do mundo, já que


está a serviço do sagrado, a pintura na época medieval,, por sua vez,
busca preencher os quadros com cores que se relacionam para produzir
uma “metafísica da luz” (PPE, 543). Nessa época, temos exemplos de
pinturas cuja pretensão era fazer com que o espectador tivesse uma
experiência mais profunda da fé97. Mais do que tentar resolver o

97
Em Representações da imagem de Cristo e das figuras bíblicas, Guillaume
Durand de Mende fala das diferentes formas de pintar o Salvador, cujo objetivo
é provocar um determinado sentimento no espectador. Afirma ele: “pintá-lo
“pintá na
manjedoura significa sua natividade; pintá-lo lo no colo materno, sua condição
infantil; pintá-lo ou esculpi-lo na cruz, sua paixão – às vezes, na própria cruz se
pintam o Sol e a Lua formando um eclipse; pintá-lo lo subindo degraus significa a
131

problema da realidade espacial, os medievais procuravam criar imagens


que produzissem um efeito sagrado no vidente. Assim, a obra existia
para “despertar” e aprofundar a fé do povo.
Prosseguindo nas observações que Panofsky faz acerca da
história da arte, mais precisamente no que tange a questão da
problemática da profundidade, Merleau-Ponty (PPE, 543) aponta para
outros dois movimentos artísticos: a pintura bizantina e a arte romântica.
A primeira, sendo fiel à pintura grega, “descobre o valor expressivo da
linha” (PPE, 543); a segunda, de um lado, conserva a antiguidade ao
unir “espacialidade e corporeidade pela superfície e, de outro, “supera-a
ao afirmar a possibilidade de expressão gráfica pela linha” (PPE, 543).
O artista que amplia nossa noção de perspectiva98 é Albert
99
Dürer . Com ele, o quadro não mais é tido apenas como um elemento
do mundo, um objeto, mas “deve significar o mundo” (PPE, 544).
Tratando-o como um ser cultural, “veremos que ele já não se situa em
sua superfície, seus objetos estão escalonados em diferentes
profundidades. Isso implica toda uma concepção do mundo; o quadro é
feito para converter o mundo em sua significação” (PPE, 544). É nesse
momento que a terceira dimensão começa a ser tratada com mais
propriedade. Um dos grandes feitos desse autor, especialista em
trabalhos gráficos, foi o desenvolvimento da técnica de “quadriculado”

ascensão; pintá-lo num trono ou numa cadeira elevada sugere a majestade e o


poder que ele possui” (MENDE, 2004, p. 32).
98
Embora Merleau-Ponty afirme que Dürer tenha ampliado a nossa noção de
perspectiva, foi Brunelleschi quem desenvolveu o método de representação da
profundidade: “Arquiteto e escultor florentino, Brunelleschi foi um dos
arquitetos mais famosos de todos os tempos – um herói florentino, devido ao
célebre domo (1420-36) que projetou para a catedral da cidade – e membro
integrante do grupo de artistas (entre os quais Alberti, Donatello e Mosaccio)
que criou o estilo renascentista. [...] Embora não tenha sido pintor, Brunelleschi
foi um pioneiro na perspectiva: em seu tratado sobre a pintura, Alberti descreve
um método, desenvolvido por Brunelleschi, de representação de objetos em
profundidade sobre superfícies planas utilizando-se um único ponto de fuga”
(CHILVERS, 2001, p. 84).
99
Jacques Lacan (2008, p. 89) acentua que “[f]oi o próprio Dürer que inventou
o aparelho de estabelecer a perspectiva”. Sobre esse artista e seus feitos, lemos
em Arte comentada: “Considerando sua missão levar a sus pares nórdicos as
descobertas do sul, Dürer publicou tratados de perspectiva e proporções ideais.
Além disso, assumiu a posição de artista como cavalheiro e erudito, elevando o
status da profissão, até então comparável à de mero artesão, a uma importância
digna de um príncipe” (STRICKLAND, 2002, p. 42).
132

(observado na imagem Draughtsman Drawing a Recumbent Woman), Woman


cujo objetivo era ampliar ou diminuir uma cena em proporções corretas,
tornando o ato de representar algo mais fácil e simples.
Leonardo da Vinci, juntamente com outros renascentistas,
sonharam em construir
truir uma linguagem universal. Desta forma, “o pintor
não tem necessidade de uma arte de expressão; ao se conformar às leis
da perspectiva, ele pode construir o belo” (PPE, 544). Não sendo uma
técnica infalível, mas uma maneira datada de lidar com a espacialidade,
espaci
as técnicas da perspectiva do Renascimento “encorajaram a pintura a
produzir livremente experiências de profundidade e, e em geral,
apresentações do Ser” (OE, 49, 29).

Imagem 20 e 21: estudos de perspectiva de Brunelleschi100.

Fonte: Disponível em: <


http://www.sergioprata.com.br/cursosweb/anato/evolucao.html>
> Acesso em 05
de mai. 2015.

100
“Nos estudos da Igreja do Espírito Santo, ‘Brunelleschi’, artista italiano do
renascimento considerado o pai da perspectiva, constrói o espaço com um ponto
de fuga na linha do horizonte” (Fonte: Disponível em:
<http://www.sergioprata.com.br/cursosweb/anato/evolucao.html> > acesso em 23
de março de 2015.).
133

Imagem 22: Draughtsman Drawing a Recumbent Woman (1525), Albert Dürer

Fonte: Disponível em:


<http://www.wga.hu/html_m/d/durer/2/12/9_1528/5draught.html> Acesso em
05 mai.2015.

Imagem 23: Pintura A última ceia (1495), Leonardo da Vinci.

FONTE: GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC editora,


1999, p. 299.

O problema da profundidade também aparece em Rembrandt.


Este, “não emprega nem planos ortogonais nem paralelos ao plano
frontal; seus quadros dão então a impressão de girar em torno de si
mesmos” (PPE, 544). A pintura, aos poucos, vai saindo dessa técnica
que parece bastar-se a si mesma, compondo-a juntamente com outros
elementos da criação. Em função disso, não se trata apenas de
representar formas e linhas para criar a ilusão da terceira dimensão, mas
134

de dar cidadania também à cor e ao movimento, como bem vimos no


capítulo anterior. De qualquer forma, a perspectiva não oferece
condições adequadas de expressar o mundo percebido.

III

A reciprocidade da visão é deixada de lado de acordo com as


leis da perspectiva da Renascença, pois esta “centraliza tudo no olho de
quem vê” (BERGER, 1999, p. 18). Na pintura moderna, ao contrário,
assinala Merleau-Ponty, “os objetos [...] ‘sangram’”, e mais do que isso,
“espalham sob nossos olhos sua substância, interrogam diretamente
nosso olhar, põem à prova o pacto de coexistência que fizemos com o
mundo por todo o nosso corpo” (PM, 211, 188). Assim, não é mais
possível acreditar que o pintor imita o visível a partir de leis pré-
estabelecidas.
“A perspectiva”, assegura Merleau-Ponty (S, 81, 80), “é muito
mais do que um segredo técnico para imitar uma realidade que se
ofereceria tal e qual a todos os homens”; ela “é a invenção de um mundo
dominado”, construído, seguro de sí, e “possuído de parte a parte numa
síntese instantânea da qual o olhar espontâneo nos dá, quando muito, o
esboço ao tentar em vão manter juntas todas essas coisas que,
individualmente, querem-no por inteiro” (S, 81, 80).
Ao contrário de uma representação do mundo, em que as obras
são pensadas para que o espectador as contemple, sem a necessidade de
uma interação para com elas, a expressão artística deve, ao contrário,
abarcar a experiência do mundo vivido. Ora, essa maneira de lidar com
a coexistência dos objetos, que “disputam meu olhar”, que considera o
aparelho da percepção – ou os dados dos sentidos – como sendo comum
a todos os homens, como se eles não tivessem sofrido modificação
alguma ao longo dos séculos, como se todos enxergassem o mundo da
mesma maneira, é uma forma inventada de tratar da representação da
realidade. “É uma interpretação facultativa da visão espontânea” (S, 78,
78). É nesse ponto que o filósofo nos chama a atenção para a percepção
livre e espontânea, para uma perspectiva do mundo natural, para uma
perspectiva, portanto, vivida. Afinal, “na percepção livre, os objetos
escalonados em profundidade não possuem nenhuma ‘grandeza
aparente’ definida” (S, 78, 78). Tudo aparece aos olhos de forma bruta.
Não temos como definir, ao certo, a medida exata dos objetos que estão
a nossa frente, tampouco a relação de distância que mantem entre si.
Imaginemos, pois, nosso reflexo num espelho d’água.
Lentamente, no sentido transversal, façamos um traço na imagem
135

refletida. O que aconteceu? Vemos que a imagem sofreu distorções: o


que antes parecia algo estático e plano, agora toma movimento. Toda a
nossa imagem está ali, porém não na forma linear, organizada e nítida,
tal qual imaginávamos ver. É isto que a pintura moderna fez com a
clássica: embaralhou nossas categorias visuais, tão acomodada pela
tradição. Os elementos da imagem espelhada na água estão ali, mas não
da mesma forma que antes. Ingênuos, acreditávamos que a imagem
refletida anteriormente era a imagem correta. Ora, no mundo não há
apenas duas dimensões: há também a profundidade. O movimento da
água “trouxe” aos nossos olhos a terceira dimensão. Entre o que se
mostra visível, agora, é correlativo à experiência do olhar no mundo
vivido. Antes, ao contrário, parecia que estávamos observando uma cena
estática e fixa. Começamos a perceber que há uma espessura, uma
invisibilidade que se insinua no movimento: algo de uma cor alaranjada
se aproxima. À medida que vai surgindo, começamos a reconhecer sua
forma. Esta identificação nos deixa mais tranquilos. A nossa imagem,
contudo, vai sendo atravessada por outra. Já não nos vemos mais direito:
o movimento da água aumenta com a aproximação do peixe. No mesmo
instante em que começamos a reconhecê-lo, ele se esvai pelo interior do
lago. E outras formas vão surgindo e se agitando no interior da água.
Vemo-nos, mas não nos reconhecemos inteiramente. Reconhecer
significa petrificar o movimento. Isto a ciência e a filosofia clássicas
faziam... No mundo natural, a água está em constante movimento, por
isso, os objetos se apresentam e se ausentam continuamente. Desse
modo, o olhar não é racional e objetivo: é um enigma.
Contrapondo o pensamento cartesiano de que o olhar é racional
e objetivo, Merleau-Ponty (PPE, 540) observa que “em percepção livre,
não há medida comum entre o objeto próximo e o objeto distante porque
eles se situam em duas dimensões diferentes”. De fato, os objetos estão
“vibrando” no mundo natural e, ao contrário do que supunha a
perspectiva planimétrica, não estão situados um atrás do outro.
Sobre isso, o comentador Iraquitan Caminha (2010, p. 248)
ressalta que “podemos ver a profundidade”, na esteira de Merleau-
Ponty, “quando observamos um quadro na medida em que os percebidos
não são objetos sólidos dispostos um atrás do outro, mas manifestações
visíveis em um horizonte que permite que um possa se abrir sobre o
outro”.
Dessa forma, tal proposta de criação, em que o pintor tenta se expressar
de acordo com a perspectiva do mundo vivido, na qual ele é ativo-
passivo, faz-nos pensar numa expressão inovadora. Afinal, a obra não é
mais como aquela tal qual praticada pelos renascentistas, imitação ou
136

representação da natureza, mas criação no sentido em que nos mostra


mais além do visível, também o seu avesso – o invisível – e, nesse
sentido, instalando-se em ambos os lados.
Assim, “já não se procura atingir o objeto em todos os seus
detalhes por meio de uma correspondência entre todos os elementos da
coisa e todos os elementos do desenho”, tal como os clássicos, “mas
desenhar certo número de traços, movimentos nos quais não se
reconhecerá o aspecto visível da coisa, mas seu movimento interno”
(PPE, 516). Neste caso, observamos quadros acabados que se parecem
com esboços101. O pintor “transporta para a tela não uma imitação da
coisa, mas uma espécie de gráfico da relação que vivenciamos com a
coisa, um registro do eco que o objeto desperta em nós” (PPE, 516). O
que resulta em dizer que a pintura é uma maneira de ser, de lidar com o
mundo, de reagir às coisas sempre de forma diferente102. Por isso, os
quadros, a partir dos impressionistas, passam a ser datados.
À pintura resta “marcar no papel um traço de nosso contato com
esse objeto e esse espetáculo, na medida em que fazem vibrar nosso
olhar, virtualmente nosso tato, nossos ouvidos, nosso sentimento do
acaso ou do destino ou da liberdade” (PM, 208, 186). Correlativamente,
a arte da escrita não deve basear-se mais em fornecer informações, ou
em querer abarcar o mundo em sua dimensão espacial, “tornada prosa
sob o olhar de um deus”, mas, ao contrário, trata-se em “dar um
testemunho”, e, deve-nos dar “a ressonância secreta pela qual nossa
finitude se abre ao ser do mundo e se faz poesia” (PM, 209, 186). Sobre
este parentesco entre os meios expressivos plásticos e os literários,

101
“E quanto àqueles dentre os modernos que apresentam esboços como
quadros, e de que cada tela, assinatura de um momento da vida, exige ser vista,
em ‘exposição’, na série das sucessivas telas, essa tolerância com o inacabado
pode significar duas coisas: ou que renunciaram de fato à obra e agora só
procuram o imediato, o sentido, o individual, ‘a expressão bruta’, como diz
Malraux, ou então que o acabamento, a apresentação objetiva e convincente
para os sentidos, deixou de ser o meio e o sinal da obra verdadeiramente feita,
porque doravante a expressão vai do homem para o homem através do mundo
comum que vivem, sem passar pelo canto anônimo dos sentidos ou da Natureza”
(S, 82-83, 81).
102
Para uma melhor compreensão disso, basta observar a maneira como os
impressionistas pintavam: ao ar livre, tentando imprimir na tela a sensação
visual que observava na natureza. Um dos exemplos é as várias versões da
Catedral de Rouen pintadas por Monet.
137

Merleau-Ponty o estabelecerá em vários momentos, pois ambos, sendo


formas de expressão criadora, permite-nos um acesso indireto ao Ser.
Se compararmos os meios de expressão infantil com os do
adulto havemos de ilustrar a diferença dos meios expressivos acerca da
representação da realidade. “O desenho da criança”, afirma Merleau-
Ponty (PPE, 518-519), “é contato com o mundo visível e com os
outros”, e essa dupla relação “precede de muito a atitude de espetáculo”
(PPE, 519). Ademais, a criança mantém uma atitude de contemplação
indiferente entre ela e o espetáculo. O adulto se guia pela razão e
persegue a reprodução sistemática, projetada e achatada do mundo, que
crê que desenhar seja a elaboração de “um sistema de signos tal que a
cada elemento do significado corresponda um elemento do significante,
isto é, em representar” (PM, 205, 184). Ao analisar um desenho infantil,
acreditará que ele tende para a perspectiva, como se a criança
mantivesse uma distância com o mundo real. Ora, o vivido vem antes, o
desenho, depois. Ao menos, isso é escancarado no desenho do adulto:
ele colocará o pensamento antes da expressão. Na contramão, “a criança
não tem ideia do que é visão”, retrata Merleau-Ponty (PPE, 518), mas
sabe o que são as coisas, pois ela vive no mundo. Seu desenho será,
portanto, destituído de uma análise racional.
Sendo o desenho infantil ou o de um adulto, a expressão não
deve ser apenas uma construção em projeção, mas, é mister que o
traçado sobre o papel deva expressar a nossa comunicação com o
mundo. De toda sorte, “o desenho infantil recoloca o desenho ‘objetivo’
na série das operações expressivas que buscam, sem nenhuma garantia,
recuperar o ser no mundo, e nos faz vê-lo como caso particular dessa
operação” (PM, 210, 187). Assim, o pintor, de maneira semelhante ao
desenhista103, tem como tarefa encontrar um caminho no qual o esforço
de expressão “despertará em nós o profundo arranjo que nos instalou em
nosso corpo e através dele no mundo, terá a marca de nossa finitude”, e
mais do que isso, “nos conduzirá à substância secreta do objeto do qual
só tínhamos, há pouco, o invólucro” (PM, 209, 186).
Ao imprimir sua marca num plano bidimensional, o pintor
produz uma significação, cuja linguagem “comporta uma parte
inevitável de silêncio, de tácito e de alusão” (LACOSTE, 1986, p. 103).

103
Merleau-Ponty (VI, 261, 197) afirma que “do mesmo modo, pode-se
perguntar por que aquele que sabe manejar com as cores também sabe usar o
‘crayon’ ou às vezes esculpir – Que há de comum”.
138

IV

Em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, Merleau-Ponty


enuncia que devemos “compreender que há uma linguagem tácita e que
a pintura fala a seu modo” (S, 75, 76). A pintura nos comunica através
da linguagem tácita das cores, das linhas e do movimento, cuja
significação atribuímos à medida em que nos envolvemos com a obra.
Nosso contato inicial é quase de forma cega, como se estivéssemos
tateando no escuro. Isto se nos desprendermos da ilusão que a
racionalidade cartesiana nos outorgou desde o início da modernidade, ao
considerar a linguagem como uma tradução do pensamento, e
operarmos na retomada da obra, tal qual o espírito em que pintor
mergulha em seu trabalho. No tocante à linguagem pictural, “basta que
nos deixemos envolver por sua vida, por seu movimento de
diferenciação e de articulação, por sua gesticulação eloquente” (S, 69,
71), que havemos de considerar a linguagem não apenas como um meio,
mas “algo como um ser” (S, 69, 71). Não um ser inteiramente positivo
que se mostra ao nosso olhar – objetivado -, mas um ser de porosidade,
de generalidade e promiscuidade, e que permite, ao pintor, recomeçar
diariamente o seu fazer criativo, como se tudo o que tenha dito
anteriormente, não passasse de pequenos gestos no imenso tecido da
linguagem expressiva. Afinal, “a pintura inteira apresenta-se portanto
como um esforço abortado para dizer algo que permanece sempre por
dizer” (S, 128, 114).

A novidade das artes de expressão é que elas


fazem a cultura tácita sair do seu círculo mortal. O
artista já não se contenta em continuar o passado
pela veneração ou pela revolta. Recomeça de alto
a baixo a sua tentativa. Se o pintor pega o pincel,
é porque num sentido a pintura ainda está por
fazer (S, 127-128, 113).

Cada pintor fala a seu modo, e as pequenas “deformações


coerentes” que ele imprime no quadro, geralmente, não são dados que
ele possui a priori. Mesmo munido das diversas técnicas que adquiriu,
passando da categoria do conhecimento para a da expressão, “não se
muda de mundo: os mesmos dados a que se estava submetido tornam-se
sistema significante” (S, 103, 96). É desta forma que o pintor prossegue
em sua tarefa infindável.
139

As observações merleau-pontyanas acerca do pintor também se


estendem ao escritor, com apenas uma diferença fundamental: “o
escritor, ao contrário”, afirma o filósofo, “instala-se em signos já
elaborados, num mundo já falante, e requer de nós apenas um poder de
reordenar as nossas significações de acordo com a indicação dos signos
que nos propõe” (S, 72, 74). Obviamente que a criação não está apenas
no escritor, mas também no leitor, cuja retomada da obra é necessária
para que possa dar-lhe sentido.
Primeiramente, alguém se propõe a ler um livro. Começa a leitura de
maneira branda, emprestando suas palavras, suas ideias, e algo começa a
acontecer: uma chama começa a se alastrar a partir da faísca produzida
pela relação entre o leitor e a obra. De alguma forma, a leitura começa a
envolver o corpo do leitor, aumentando e ampliando o inter-
relacionamento de ambos, até que o contrário acontece. “O momento da
expressão”, descreve Merleau-Ponty (PM, 20, 34), “é aquele em que a
relação se inverte, em que o livro toma posse do leitor”. Ao “dominar” a
leitura, o livro transforma o leitor em um ser passivo. Se o provoca, se
mostra suas falhas e faltas, então é um texto de desejo, fazendo com que
ele queira seguir adiante.
A leitura, desse modo, não é construtivista, não vai se fazendo
em estado de crescimento – evoluindo –, mas é uma criação, é
linguagem falante. Para ser falante não pode nos mostrar apenas aquilo
que já sabemos, mas, ao contrário, a leitura tem que nos surpreender; ela
precisa fazer com que queiramos ir mais além, tem que nos provocar um
desejo, tem que nos deslocar de nosso “centro de equilíbrio”, como se,
de alguma forma, tivéssemos que nascer com ela. Se acaso vamos
escrever, um autor vai se apresentando a nós à medida em que
avançamos na escrita. É como se o corpo, ao atuar, sofresse a ação de
algo que atua sem que o próprio autor saiba direito o que é – ele não
domina a ação –. É algo espontâneo, e como que se impõe no instante
do agora criativo. Nesse sentido, a criação, ao invés de sintetizar uma
ideia e cristalizá-la, desdobra-se, provocando novos desejos.
Se a obra for verdadeira, tem o dom de ser um “movimento que
descentraliza, distende”, solicitando nossa participação no mundo. Ela
se torna uma “linguagem conquistadora, que nos introduza em
perspectivas alheias, em vez de confirmar as nossas” (S, 126, 112). Essa
linguagem conquistadora e espontânea faz com que o pintor se instale
num abismo: o espaço, necessário para dar o passo seguinte, precisa ser
criado ou descoberto, não se apresenta de maneira clara a sua frente. Ele
mais vive na escuridão do que na clareza. Por isso, suas tentativas quase
sempre são angustiantes, porém, são também inovadoras.
140

Comparando a linguagem da pintura e da escrita, Merleau-


Ponty (S, 130, 115) afirma que “o texto de Heráclito lança para nós
lampejos como nenhuma estátua aos pedaços poderia lançar, porque
nele a significação está colocada de modo diferente do delas, e porque
nada iguala a ductibilidade da palavra”. Resumindo-as, ele diz que “a
linguagem diz e a vozes da pintura são vozes do silêncio” (S, 130, 115).
Partindo das investigações feitas até aqui, podemos dizer, que a
pintura é uma linguagem conquistadora, cujo esforço baseia-se em
exprimir a “existência em ato” (S, 127, 113) do pintor, e que se faz no
momento da expressão. O fato é que, para Merleau-Ponty, a pintura não
apenas nos apresenta este tipo de linguagem: também há “a linguagem
de depois, a que é adquirida e que desaparece diante do sentido do qual
se tornou portadora” (PM, 17, 32). Assim, podemos inferir que há duas
linguagens: respectivamente, a falante e a falada104.
Sobre esta linguagem conquistadora e espontânea, observa o
comentador Müller-Granzotto (2012b, p. 85): “A fala falante e todas as
fantasias semânticas que ela formula constituem uma genuína
apresentação do que Merleau-Ponty denomina de espírito selvagem,
esse protagonista do tempo como idealidade de horizonte”.
Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty (VI, 197, 146-147)
afirma que “teremos, pois, que reconhecer uma idealidade não estranha
à carne, que lhe dá seus eixos, profundidade, dimensões”. Fazendo parte
do nosso mundo, a idealidade produzirá “eixos”, “profundidade” e
“dimensões” quando for expressiva, cujo desenrolar ocorre à medida em
que nos abre para o universal. Assim, é linguagem falante quando nos
permite adentrar o invisível da própria obra e, correlativamente, de
nossa vida. Nesse sentido, afirma Merleau-Ponty (VI, 156, 117):

Se há uma idealidade, um pensamento que possui


em mim um futuro, que até mesmo perfura meu
espaço de consciência e possui um futuro entre os
outros e, por fim, transformada em escrita [ou em
pintura], possui um futuro em todo leitor possível,
só pode ser este pensamento que não sacia nem a
mim nem a eles, indicando uma deformação geral
de minha paisagem, abrindo-a para o universal,
precisamente porque é antes de tudo um
impensado.

104
Cf. Fenomenologia da Percepção, Cap. VI, Primeira parte.
141

A idealidade de horizonte que se faz no tempo é a linguagem


conquistadora. Mais do que me mostrar o que eu já sei, a obra me
surpreende, e por consequência disto, faz com que eu crie a partir dela.
Por isso, podemos afirmar que é através da linguagem falante que
podemos “pensar” aquilo que ainda não foi pensado. A leitura nos
conduz, desta forma, a um mundo novo e inaugural. O impensado105 de
um texto é aquilo que o autor “deixou” para o leitor pensar.

A profundidade abarca o presente, o passado e o futuro. Na


verdade, não há presente, passado ou futuro, há “circularidade”.
“Circularidade: tudo o que é dito em cada ‘nível’ antecipa e será
retomado [...]” (VI, 229, 172). De forma semelhante, toda pintura vai até
um fundo de passado e se projeta para um horizonte de futuro e,
também, está no presente: ultrapassa, assim, a ideia de tempo como algo
linear e progressivo106. Com isso, “é preciso que o tempo se constitua, –
seja sempre visto do ponto de vista de alguém que está nele” (VI, 235,
177).
O pintor explora o visível, entra no ainda não conhecido do
mundo, toca o “estranho”, para mostrar aos homens que o gesto
expressivo da pintura é feito num instante que se constitui no fazer
artístico, em que tanto ele quanto o espectador já estão imersos no
tempo. O ato expressivo vai sendo feito numa passagem do tempo que
tem “a força de trazer para o presente todo o resto” (S, 121, 108). Se o

105
“Como excesso aos próprios instrumentos teóricos de um autor, o
impensado não é obviamente analisado por quem o cria; no entanto, sugere uma
direção a ser explorada pelos leitores” (FERRAZ, 2009, p. 200).
106
“Não é o passado que empurra o presente nem o presente que empurra o
futuro para o ser; o porvir não é preparado atrás do observador, ele se premedita
em frente dele, como a tempestade no horizonte. Se o observador, situado em
um barco, segue a corrente, pode-se dizer que com a corrente ele desce em
direção ao seu porvir, mas o porvir são as paisagens novas que o esperam no
estuário, e o curso do tempo não é mais o próprio riacho: ele é o desenrolar das
paisagens para o observador em movimento. Portanto, o tempo não é um
processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de
minha relação com as coisas. Nas próprias coisas, o porvir e o passado estão em
uma espécie de preexistência e de sobrevivência eternas; a água que passará
amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba de passar está
agora um pouco mais embaixo, no vale” (PhP, 470-471, 551-552).
142

pintor consegue se inserir na expressão é porque retoma um passado de


cultura, não o imitando, mas a partir das técnicas desenvolvidas por ele
próprio – e pelos antecessores –, funda a história da pintura novamente,
abrindo “um outro campo em que tudo o que pôde exprimir antes
precisa ser dito de outro modo” (OE, 89, 45). Por outro lado,

O próprio presente não é coincidência absoluta em


transcendência, até o Urelebnis [vivência
originária] comporta não-coincidência total, mas
coincidência parcial, porque tem horizontes e não
existiria sem eles – também o presente é
inapreensível de perto, nas pinças da atenção, e
um englobante (VI, 246, 185-186).

Sendo aberto e poroso, o momento presente – o instante107, a


passagem de algo já feito para algo a se fazer – aparece como um
horizonte de possibilidade ao artista, para que este possa manifestar a
liberdade. Se há um mundo a ser expresso, pois nunca está acabado,
tampouco o cercaremos plenamente com nossas intenções racionais,
então o pintor retoma e se entrelaça com o mundo, numa relação em que
o tempo e o espaço não possam mais ser tomados como a tradição
filosófica e artística o fez. Assim,

O espaço, o tempo das coisas são farrapos dele


próprio, de sua espacialização, de sua
temporalização, não mais uma multiplicidade de
indivíduos distribuídos sincrônica e
diacronicamente, mas um relevo no simultâneo e
do sucessivo, polpa carnal e temporal onde os
indivíduos se formam por diferenciação (VI, 151,
113).

É por diferenciação que a pintura vai abrindo espaço e se


constituindo no tempo. Quando a olhamos com olhos reflexivos ela se
torna uma idealidade pura. A institucionalização da arte através dos
museus e das bibliotecas faz da linguagem, antes espontânea e criadora,
um amontoado de obras cristalizadas e petrificadas. O artista ao pôr-se a
trabalhar, com seu estilo e peculiaridades que lhes são próprias, forma
imagens que serão recebidas pela humanidade como se fossem feitas por

107
Cecília Meireles (2001, p. 99): “Eu canto porque o instante existe”.
143

“super-artistas”, sendo colocadas em locais cujo objetivo maior será a


ostentação e veneração. Desse modo, ela não será mais uma “matriz de
ideias”.
É necessário, portanto, um novo espectador: aquele que tem por
objetivo ir aos museus e olhar as obras com o mesmo interesse e
inquietação tal qual os pintores ao postar-se diante do motivo.

3.3 A formação das imagens e a idealidade pura

O testemunho de muitos artistas modernos acerca do processo


criativo nos leva a entender que a arte não é realizada num laboratório
íntimo, como se somente o artista tivesse a chave e desse conta de toda a
elaboração da mesma. Ela é realizada no instante em que o pintor capta
um fragmento da natureza e o transforma em pintura, numa ação que é,
a um só golpe, atividade e passividade, cujo enigma ele tenta produzir
como um novo visível, realizando o encontro de seu olhar “com as
coisas que o solicitam” (S, 92, 88), fazendo, deste ato expressivo, uma
“idealidade de horizonte”. Assim, formam-se as imagens que ganham
significância quando retomadas pelo espectador. Quando, porém, as
obras de arte são “cristalizadas” nas paredes de um museu, ou nos
compêndios dos livros de história da arte e das bibliotecas, elas
transformam-se em “instituições”.
Em Estética – teoria da formatividade, Luigi Pareyson (1993, p.
78) discute que o processo artístico possui um paradoxo: “a obra de arte
se faz por si mesma, e no entanto é o artista quem a faz”. Noutra
passagem, diz ele:

O artista não tem outra lei a não ser a regra


individual da obra que vai se fazendo, nem outro
guia a não ser o presságio do que vai obter, de tal
sorte que a obra é, ao mesmo tempo, lei e
resultado de um processo de formação. Só assim é
que se pode compreender como na arte a tentativa
e a organização não só se harmonizam, mas até
mesmo se reclamam mutuamente e se aliam, pois
a obra atua como formante antes ainda de existir
como formada (PAREYSON, 1993, p. 13).
144

Na concepção de Pareyson a arte pode ser formante ou formada.


Ela é formante quando se entrelaça com o autor ou com o espectador-
leitor/vidente. Isso parece ir ao encontro do pensamento merleau-
pontyano que ao invés de formante utiliza o termo fala falante ou
linguagem falante108.
Ao falar sobre a vida do artista em seu processo criativo,
Merleau-Ponty diz que é um homem em serviço, que retoma
diariamente sua difícil tarefa de expressar o visível. Trabalho
angustiante, sendo impossível expressá-lo absolutamente. Ele percebe
que pode ir mais além, que há algo mais a dizer109 e a expressar. É nesse
sentido que a obra criada abre espaço para a construção de outra. É uma
linguagem que está sempre por se fazer e refazer. “Se nenhuma pintura
completa a pintura”, afirma Merleau-Ponty (OE, 92, 46), “se mesmo
nenhuma obra se completa absolutamente, cada criação modifica, altera,
esclarece, aprofunda, confirma, exalta recria ou cria antecipadamente
todas as outras”.
O artista percebe que algo lhe escapa, que não se deixa apanhar,
que foge da expressão, e, por isso, uma nova obra precisa ser feita, na
tentativa de dizer de modo diferente, quiçá, melhor... Numa frase: é um
processo ad infinitum. Isso porque “a verdade” que o artista quer
alcançar está mais além, ou mais aquém, do que aquilo que se mostra ou
que se deixa objetivar. De qualquer forma, “queremos sempre significar,
há sempre alguma coisa para dizer, e aproximamo-nos mais ou menos
dela” (S, 92, 87-88). Mesmo aquilo que o pintor percebe na natureza,
não consegue, em certo sentido, expressá-lo na tela. Há uma grande
distância entre o que vê e o que suas mãos conseguem traduzir como
obra.
O que conseguimos identificar é que, a partir de Descartes,
somos fascinados pela ideia de uma universalidade da pintura, de tal
modo que houvesse uma progressão de sua história, e que ao resolver
algum dos problemas detectados por algum sucessor, não houvesse mais
necessidade de aprofundar o assunto. Nas palavras de Merleau-Ponty

108
Vale salientar que em seus primeiro escritos, como na Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty utiliza os termos fala falante e fala falada.
Posteriormente, como em O visível e o invisível, a terminologia passa, então,
para linguagem falante e linguagem falada.
109
Escreveu Mário Quintana (2007, p. 824): “Se um poema consegue explicar o
que quis dizer com um poema, o poema não presta”.
145

(OE, 90, 45): “A ideia de uma pintura universal, de uma totalização da


pintura, de uma pintura inteiramente realizada, é desprovida de sentido”.
Os problemas da pintura, como o da representação da
profundidade, são frequentemente resolvidos de forma indireta e
transversalmente. Os artistas parecem esquecer das dificuldades
encontradas durante a expressão, e no fundo enigmático da criação as
“reencontram e transpõem o obstáculo” (OE, 90, 45-46). De toda sorte,
“ao ‘trabalhar’ um dos seus problemas prediletos, ainda que o de veludo
ou da lã. O verdadeiro pintor subverte sem o saber os dados de todos os
outros. Mesmo que pareça parcial, sua investigação é sempre total” (OE,
89, 45). Assim, cedo ou tarde, o pintor recomeça seu trabalho como se
tudo o que um dia dissera tivesse que ser dito novamente.
É sob esse prisma que avançaremos nosso estudo. Procurando mostrar o
estilo que o artista, ao longo dos anos, “desenvolve” em seu
procedimento expressivo, produzindo obras que serão penduradas nas
paredes dos museus.

II

Um aspecto importante, apontado por Merleau-Ponty, é que, se


acaso formos verificar o artista em sua vida ordinária, longe de seu
trabalho, na certa iremos nos decepcionar. O que veríamos é um homem
com as mesmas interrogações de outro ser humano comum110. André
Malraux, por sua vez, crê na genialidade do pintor. Em seu livro As
vozes do silêncio, por exemplo, distingue Cézanne-pintor do Cézanne-
homem. Segundo ele, o pintor era alguém que criava obras-primas
dignas dos grandes mestres da pintura, enquanto que o homem era um
ser humano medíocre. Foi dentro desta perspectiva que enunciou: “das
cartas de Cézanne não resta senão a lembrança do homem que não teria
pintado os seus quadros” (MALRAUX, v. 2111, p. 81). Merleau-Ponty
discorda desta maneira de analisar o artista e a sua obra. Não refuta
inteiramente, contudo, a análise de Malraux. De fato, este elabora
observações sobre a história da arte e sobre alguns artistas, bem como
sobre a importância dos museus do início do século XX, o que constitui
um importante material para todo aquele que se propõe a estudar a arte e
aprender com ela. Sendo assim, é mister retomarmos a discussão que

110
Malraux chama este homem comum de “não-artista”.
111
Na edição que utilizamos não constava o ano de publicação da obra de
Malraux.
146

Merleau-Ponty faz a partir de Malraux, em A linguagem indireta e as


vozes do silêncio, para refletirmos sobre os pormenores do processo
criativo, do estilo e dos museus, bem como acerca da relação destes com
aquilo que o filósofo chama de idealidade pura.
Malraux diz que o artista escuta sua própria voz – seu estilo –
após um longo período de intenso trabalho. O exercício da pintura acaba
criando uma marca singular, uma maneira de lidar com traços e cores,
na qual o pintor só se torna consciente depois. Na verdade, é a história
da arte – por meio dos museus – que descobre o estilo de um artista e
dita o de uma época. É desta forma que podemos falar, por exemplo, em
estilo bizantino, estilo romântico, impressionista ou abstrato.
Para Merleau-Ponty, o artista não está interessado em criar um
estilo. Suas preocupações são de outro mote. Malraux, por sua vez, em
suas análises, bem como o público em geral, não se situam devidamente
na operação do estilo, pois, observam-na apenas do exterior. Seguindo
as reflexões de Malraux, o estilo possui três concepções diferentes.
Primeiramente, é “o meio de recriar o mundo segundo os valores do
homem que o descobre” (S, 86, 83); em segundo lugar, é “a expressão
de uma significação atribuída ao mundo, chamamento, e não
consequência de uma visão” (S, 86, 84); e, por fim, é “redução a uma
frágil perspectiva humana do mundo eterno que nos arrasta numa
derivada de astros conforme um ritmo misterioso” (S, 86, 84). Sendo a
linguagem que um artista constrói ao longo dos anos, o estilo só é
“estabelecido”, a posteriori.
Por estar muito ocupado em pintar suas relações com o mundo,
o pintor não se atém ao que seja estilo, nem à “antítese do homem e do
mundo”, nem à “representação”, tampouco à “significação” e ao
“absurdo” (S, 86, 84). A gênese do estilo se dá “à revelia”, quando o
pintor se propõe a exprimir o mundo. Se há no pintor alguma falha,
vício ou virtude, provavelmente, perceberemos impressos em sua obra.
A partir disso podemos afirmar que o estilo emerge ao longo do trabalho
do pintor, quando ele mantém relações de imbricação (empiètement)
com o mundo.
Diante de uma tela, esperamos que algo novo se estabeleça
quando o pintor se propõe a trabalhar. Ao varrer o espaço em branco da
tela, o primeiro traço do pincel entrecruza aquilo que o pintor conhece,
toda a sua vida ordinária, suas preocupações, inquietações, expectativas,
alegrias e esperanças – todos os seus “vividos” –, com o novo que vai se
formando pela primeira vez. Estes vividos “emergem do seu
147

passado112”, co-habitam o ato criativo e intercomunicam-se com o


mundo que, por sua vez, clama por expressão. É dentro desta
perspectiva que Dufrenne (1981, p. 57) afirma: “talvez o artista não seja
sensível a essa necessidade que o mundo tem dele para se verificar;
então ele mesmo se procura, procura seu estilo sem saber que ele mesmo
é procurado; crê realizar-se enquanto realiza o mundo”. É como se ele,
para libertar-se, tivesse que pintar continuamente.
Merleau-Ponty (S, 84, 82), lendo Malraux, observa que “o que o
pintor põe no quadro não é o si-mesmo imediato, o próprio matizar do
sentir, mas seu estilo, e tem de conquistá-lo, não só em suas próprias
tentativas como também na pintura dos outros e no mundo”. O artista
não tem acesso a tudo que transcorre no determinado instante que o
mundo da vida faz emergir; não obstante, é ele quem está pintando –
tem seu estilo, sua linguagem própria que adquire ao sabor do trabalho,
e usa seus conhecimentos e vontades, bem como suas técnicas. Como é
um ser intersubjetivo, pois se comunica com “outros”, então, ao mesmo
tempo em que pinta, é o mundo que o faz através dele. Por isso é que a
doença de Cézanne aparecia em suas obras. Não podemos afirmar que
Cézanne tinha consciência113 deste fato, mas, sim, porque fazia parte de

112
Na verdade, todas as experiências de alguém já estão impregnadas em seu
corpo. A todo momento estão se atualizando e, por isso, não temos como
separar passado, presente e futuro.
113
Em A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty discute a relação entre a vida e a
obra de Cézanne. Em alguns momentos, como cita Merleau-Ponty, o pintor
parecia ter consciência do que sua vida transpassasse, de alguma forma, em seu
processo criativo: “Ao envelhecer, ele se pergunta se a novidade de sua pintura
não vinha de um distúrbio dos olhos, se toda a sua vida não se apoiara sobre um
acidente do corpo” (SnS, 13, 123). Noutra passagem, no mesmo texto, Merleau-
Ponty fala sobre a mútua implicação da vida e da obra: “evitemos imaginar
alguma força abstrata que sobreporia seus efeitos aos ‘dados’ da vida, ou que
introduziria cortes no desenvolvimento. É certo que a vida não explica a obra,
mas é certo também que elas se comunicam. A verdade é que essa obra por
fazer exigia essa vida. Desde seu início, a vida de Cézanne só encontrava
equilíbrio apoiando-se na obra ainda futura, era o projeto dela, e a obra nela se
anunciava por sinais premonitórios que seria um erro tomar por causas, mas que
fazem da obra e da vida uma única aventura” (SnS, 26, 136). Se a esquizoidia
aparecia nas obras do pintor, a doença só aparecia “como redução do mundo à
totalidade das aparências imobilizadoras e suspensão dos valores expressivos”,
isto “porque a doença cessa então de ser um fato absurdo e um destino para
tornar-se uma possibilidade geral da existência humana quando enfrenta de
forma consequente um dos seus paradoxos – o fenômeno da expressão -, e,
148

seus vividos. Assim era Cézanne. Outro artista se expressaria de modo


diferente.
Não existe mais uma técnica e um modelo exterior, tal como
acreditaram seus antecessores, e sim uma percepção do mundo. Cézanne
mostrou que, no momento da criação, acontece um “intercâmbio com o
mundo”, e que o artista, de alguma forma, sente o apelo das coisas
querendo se manifestar. É por este motivo que ele precisa “se abrir” ao
mundo; e imbricando-se, habitando-o, interpretando-o, é que traduz o
mundo em obra. De onde se segue que, como cita Merleau-Ponty: “a
interrogação da pintura visa, em todo caso, essa gênese secreta e febril
das coisas em nosso corpo” (OE, 30, 21).
Não há um saber que carregamos e que amarra nossas
essências, mas este se faz arte a partir do “mundo da vida”: que é essa
aderência impessoal das coisas e de nossas vivências à nossa atualidade
de coexistência com os outros. Essa aderência estará co-presente no
momento da criação, todavia, não é algo já elaborado, isto é, não há
uma verdade estabelecida a priori que comanda as mãos do artista e o
faz criar, mas a arte surge quando o artista deixa o inédito acontecer.
Em outras palavras, ele cria quando deixa o Ser selvagem “conduzir” o
seu corpo. Selvagem, aqui, no sentido de ser algo que está se
transformando continuamente, não permitindo “ser domado”. É com
esse espírito que os modernos passaram a criar obras que solicitam a
retomada do espectador.

III

Se os clássicos acreditavam possuir o “segredo de uma


representação suficiente” (S, 78, 78), os modernos, por sua vez,
perceberam que a paisagem não possui um aspecto tranquilo e decente,
de tal forma que “o olhar desliza com facilidade” sobre a cena “sem
asperezas que nada opõe à sua facilidade soberana” (C, 20, 13). O
pintor, então, “só conseguiu dominar uma série de visões e delas tirar
uma única paisagem eterna porque interrompeu o modo natural de ver”
(C, 21, 14). Nesta visão analítica, ele constrói uma representação em
que não há a expressão da gênese da paisagem diante de seus olhos.
Assim, a experiência perceptiva é suprimida, como se houvesse um

enfim, porque é a mesma coisa, nesse sentido particular, ser Cézanne e ser
esquizóide” (SnS, 26-27, 136-137).
149

observador absoluto que dominasse a cena e a fixasse no plano


bidimensional.
Com a pintura moderna “reaprendemos a ver o mundo ao nosso
redor do qual nos havíamos desviado” (C, 33, 29) – como fieis herdeiros
do cartesianismo –, e também, “redescobrimos em cada coisa um certo
estilo de ser que a torna um espelho das condutas humanas”. Em síntese,
afirma-nos Merleau-Ponty (C, 33-34, 29-30),

entre nós e as coisas estabelecem-se, não mais


puras relações entre um pensamento dominador e
um objeto ou um espaço completamente expostos
a esse pensamento, mas a relação ambígua de um
ser encarnado e limitado com um mundo
enigmático que ele entrevê, que ele nem mesmo
para de frequentar, mas sempre por meio de
perspectivas que lhe escondem tanto quanto lhe
revelam, por meio do aspecto humano que
qualquer coisa adquire perante o olhar humano.

Esse mundo enigmático e ambíguo do qual discorre Merleau-


Ponty – que também é sentido por nós, seres encarnados – é expresso
pela pintura moderna ao desejar atingir a própria coisa e não mais um
decalque do mundo. Resulta daí, porém, que é a partir dos
impressionistas que os artistas começaram a se ocupar mais com o
processo criativo do que com a obra acabada. De onde se segue que,
para os modernos, “a percepção já estiliza” (S, 87, 84). Segundo
Merleau-Ponty (S, 94, 89):

O próprio pintor é um homem que trabalha e


reencontra todas as manhãs a mesma interrogação
na figura das coisas, o mesmo apelo ao qual nunca
terminou de responder. A seus olhos, sua obra
nunca está feita, está sempre em andamento, de
modo que ninguém pode valer-se dela contra o
mundo. Um dia, a vida se esquiva, o corpo se
subtrai; outras vezes, e mais tristemente, é a
pergunta espalhada pelo espetáculo do mundo que
cessa de se pronunciar.

Ora, o pintor sente que uma pintura, bem como o mundo, não
está acabada, pois, de alguma forma, a expressão está sempre em
andamento, isto é, ela abre um “espaço” que precisará de novas obras.
150

Nem sempre ele consegue ter a inspiração de expressar aquilo que vê. É
por isso que muitos artistas passam longos períodos sem criar sequer
uma obra. Em todo caso, ele precisa pôr-se a trabalhar para que a faísca
aconteça e o fogo pegue e se alastre. É deste modo que ele pode apreciar
o florescer da linha e da cor, dançando ao ritmo delas até amadurecerem
e caírem exaustas na tela.
A percepção do pintor lhe permite dar “existência visível o que
a visão profana crê invisível” (OE, 27, 20). Nem mesmo se pode dizer,
como fez Malraux, que o pintor moderno pinta somente a partir de si,
mas se faz arte a partir de sua relação com o mundo. Para Merleau-
Ponty (S, 87, 84), a obra moderna não é feita em um “laboratório
íntimo” longe das coisas, “cuja chave só o pintor e mais ninguém
possuiria”, tampouco é uma identidade subjetiva do pintor, como crê
Malraux, mas ela nasce de uma imbricação com o mundo, de uma “certa
relação com o ser”, ou seja, o que o artista pinta é mais um emblema de
“habitar o mundo, de tratá-lo, de interpretá-lo”. Nas palavras de
Merleau-Ponty (S, 88, 85): “o estilo é em cada pintor o sistema de
equivalências que ele se constitui para essa obra de manifestação, o
índice universal da ‘deformação coerente’ pela qual concentra o sentido
ainda esparso em sua percepção e o faz existir expressamente”.
Esse “sistema de equivalências” é a capacidade que o artista
tem de exprimir certas torções, ou certas “deformações coerentes” (S,
88, 85). Ou seja, ele tenta imprimir aquilo que percebe. Ao encontrar o
“motivo”, e com uma linguagem própria, o pintor começa por fazer
emergir “certas concavidades, certas fissuras, figuras e fundos, um alto e
um baixo, uma norma e um desvio, assim que certos elementos do
mundo assumem valor de dimensões” (S, 88, 85) às quais possibilita a
expressão. Desse modo, não importa tanto se um quadro seja feio ou
belo, “acabado” ou apenas iniciado, mas o que faz com que o pintor se
aventure na criação é procurar imprimir na tela o mistério do próprio
movimento das coisas que atingem seu olhar. Parafraseando Malraux (v.
2, p. 101): se perguntássemos a um pintor: Por que pinta dessa maneira?
A única resposta que possa considerar justa é: “Porque assim é que está
bem”. Sua arte é sempre uma tentativa de exprimir aquilo que não pode
ser expresso absolutamente, por isso é um trabalho que sempre tem de
ser recomeçado.
O que faz, por exemplo, um “Vermmer” ter uma linguagem
própria, tornando-se, por isso, uma pintura significativa perante a
história da arte? Para Merleau-Ponty (S, 98, 92),
151

O que faz para nós um Vermmer – Malraux


mostra-o perfeitamente - não é o fato de essa tela
pintada ter saído um dia das mãos do homem
Vermmer, é o fato de o quadro observar o sistema
de equivalências segundo o qual um dos seus
elementos, como cem ponteiros em cem
mostradores, marca o mesmo desvio, é o fato de
falar a língua Vermmer.

“A vista de Delft114 instala relações entre partes que ganham


identidade fulgurante”, afirma Giannnotti (2005, p. 94), “na medida em
que essas mesmas relações vibram numa visibilidade que se oculta”.
Afinal, Vermmer tem um jeito singular de se expressar, de produzir
certo sistema de equivalências, que lhe são próprias, cuja representação
transfigura a cidade em que morava num ponto de vista em que imprime
as relações que o pintor tem com o mundo. “No momento em que o
mundo do pintor se articula, ele se abre para outros mundos pictóricos
que se diferenciam e se entrelaçam para formar o mundo da pintura”
(GIANNOTTI, 2005, p. 95). De maneira semelhante a outras obras suas,
“a vista de Delft exibe a maneira de Vermmer pensar o tijolo, o muro, a
torre, o bote, o céu, a água, entrelaçados para apresentarem uma cidade”
(GIANNOTTI, 2005, p. 95).
A história da pintura, ao identificar a linguagem de um pintor
ou de uma escola, transforma os pintores em super-artistas. Coloca-os
lado a lado e os compara. Ademais, Merleau-Ponty diz que só há
fraternidade dos pintores na morte, nos museus. Em vida, cada um está
por demais ocupado em resolver seus enigmas; a maioria nem sequer foi
reconhecido ou admirado por seus contemporâneos. Van Gogh (1977, p.
82) chegou a desabafar a seu irmão Theo: “não posso fazer nada se
meus quadros não vendem. Contudo, dia virá em que veremos que eles
valem mais que o preço que nos custaram em cores e minha vida, afinal
bem pobre”. Ele conseguiu vender apenas um quadro em vida e hoje
suas obras estão entre as mais disputadas nos grandes leilões. Se seus
contemporâneos o consideravam um louco, nós, hoje, o consideramos
um gênio.

III

114
Imagem em anexo.
152

Se o esforço de Merleau-Ponty vai no sentido de afirmar que o


artista é um homem em serviço, que não há “super-homens”, que todos
os dias ele retoma seu trabalho como todos os outros homens, que luta
desesperadamente para expressar o que vê, que tem fraquezas, alegrias,
desilusões, paixões e desejos, então, não tem mais porque se considerar
os pintores como super-humanos. Frisa o filósofo:

Só admiramos devidamente depois de


compreender que não há super-homens, algum
homem que não tenha de viver uma vida de
homem, e que o segredo [...] do escritor e do
pintor não se encontra em algum além de sua vida
empírica, e sim tão mesclado em suas medíocres
experiências, tão pudicamente confundido com a
sua percepção do mundo, que seria impossível
encontrá-lo à parte, frente à frente (S, 93, 89).

A partir de sua história humana, o artista reconstrói suas


possibilidades (o que faz dele um homem livre). Nessas reconstruções –
que é a obra – exprime-se um modo de reconstruir um estilo, que é a
participação do artista em seu tempo.
Em suma: as pessoas esquecem do feito do artista, que é a obra,
para olhar apenas uma capacidade genial que ele “adquiriu” através dos
tempos. Sem dúvida, a história da arte já consagrou alguns deles como
geniais, no entanto, o espectador esquece de olhar a obra, de retomá-la e
de aprender com ela. Sobre a relação entre o espectador e a obra, afirma
Merleau-Ponty:
Comunicar o objeto a outrem é marcar no papel
um símbolo de nossa coexistência com a coisa que
se oferece ao olhar do espectador, provocando da
parte deste uma operação de retomada. A pintura
não entra apenas pelos olhos; o espectador deve
também entrar com sua parte; o quadro só indica
um movimento. É preciso transpor o quadro e ir
em busca de um sentido que não está contido
objetivamente nele” (PPE, 517).

O espectador que olha as obras nas paredes dos museus,


geralmente, não se atém ao enigma que persegue o pintor em seu
trabalho diário. Por isso, é necessário um espectador que atravesse a
obra e veja para além dela. E deve achegar-se ao quadro com os mesmos
olhos trêmulos e inquietos que tinham os artistas ao pintarem-nos.
153

Ao analisar a Psychologie de l’art de Malraux, numa


investigação entre a arte clássica e a arte moderna, Merleau-Ponty
aponta para duas historicidades do Museu, a saber: a de morte e a de
vida. A primeira esquece da vida e do gesto do pintor no momento da
criação. É desta forma que “o Museu mata a veemência da pintura como
a Biblioteca, dizia Sartre115, transforma em ‘mensagens’ escritos que
antes foram gestos de um homem”116 (S, 101, 94). O Museu, bem como
a Biblioteca e todas as “instituições”, deixam as obras “embalsamadas”,
arrancando-as dos contextos culturais em que foram feitas; “obras que
nasceram no calor de uma vida” e que “são por ele [Museu]
transformadas em prodígios de um outro mundo”, mundo em que a arte
é transformada em “história oficial e pomposa” (S, 101, 94). É como se
o artista fosse guiado por fatalidades. O que antes era um enigma na
vida do pintor117, ou seja, suas preocupações e inquietações, suas
angústias e o desejo de fazer alguma coisa com os dados de sua vida,
são sedimentados e refletidos “um dia na luz triste do Museu” (S, 100,
94).

115
Aqui Merleau-Ponty aponta para um pensamento semelhante ao de Sartre
(1989, p. 24). “Deus sabe quanto os cemitérios são tranquilos: não existem mais
ridentes que uma biblioteca. Os mortos estão lá: nada mais fizeram senão
escrever, há muito tempo estão lavados do pecado de viver, e, de resto, só
conhecemos as suas vidas através de outros livros que outros mortos escreveram
a seu respeito”.
116
“O Museu torna os pintores tão misteriosos para nós como os polvos e as
lagostas. Obras que nasceram no calor de uma vida são por ele transformadas
em prodígios de um outro mundo, e o alento que as mantinha não é mais, na
atmosfera pensativa dos Museus e sob os vidros protetores, do que uma fraca
palpitação em superfície” (S, 101, 94).
117
“O pintor passa por estados de plenitude e de vazio. Nisso reside todo o
segredo da arte. Estou passeando na floresta de Fontainebleau. Tenho uma
indigestão do verde. É preciso esvaziar essa sensação num quadro. O verde aí
predomina. O pintor pinta para descarregar suas sensações e visões. Os homens
apoderam-se de sua pintura para cobrir um pouco sua nudez. Pegam o que
podem e como podem. Creio que afinal não pegam nada; simplesmente
talharam uma roupa na medida de sua incompreensão. Fazem tudo à sua
imagem, desde Deus até o quadro. Eis por que o prego onde se pendura o
quadro é a ruína da pintura. Esta tem sempre alguma importância, pelo menos a
do homem que a fez. No dia em que é comprada e pendurada na parede, ela
assume uma importância totalmente diversa e a pintura está perdida”
(PICASSO, 1999, p. 275).
154

Aos olhos de Merleau-Ponty, as obras de arte perdem seu


sentido de expressividade, e inter-relação com o mundo exterior e com o
espectador, quando colocadas em um Museu. De fato, as obras são
arrancadas de seus contextos culturais para os quais foram criadas, e são
alinhadas em galerias “onde a obra de arte já não tem outra função do
que a de ser obra de arte” (MALRAUX, v. 1, p. 12). Lugar onde, na
posteridade, pintores opostos como Delacroix e Ingres se tornam
“gêmeos”118. Ora, o Museu tem, pois, a propriedade de aproximar obras
dispersas pelo mundo. Ao contemplarmos, nele, uma obra do passado,
em primeiro lugar, a amputamos de sua época: a obra que foi elaborada
em um determinado contexto, no qual a problemática da pintura era
uma, ao olharmos com olhos de um espectador do século XXI, em que,
evidentemente, a interrogação da pintura passa a ser outra. Em segundo
lugar, temos uma tendência a divinizar os pintores, transformando-os em
“semideuses” e em “super-artistas”. Além disso, comparamo-los,
esquecendo que “o pintor é um homem em serviço” e, portanto, não há
“super-homens” (S, 93, 89).
O escritor Paul Valéry (2003, p. 29), ao falar da obra e do artista
Hilaire-Germain-Edgar Degas, especialista por retratar bailarinas, em
seu ensaio Degas Dança Desenho, relata uma interessante descoberta:
“em minha prefiguração de Degas, nem tudo era fantástico. Como eu
poderia ter previsto, o homem era mais complexo do eu esperava.” Ora,
Degas contou a Valéry (2003, p. 57) uma pequena anedota, verossímil
ou não, que mostra o endeuzamento dos artistas por parte dos
espectadores. Segundo o pintor, um dia “Mallarmé leu um soneto para
alguns discípulos e estes, em sua admiração, quiseram parafrasear o
poema, explicando-o cada um a seu modo” (VALÉRY, 2003, p. 57),
como o fazem tantos espectadores diante de uma obra de arte: “uns viam
um pôr-do-sol, outros o triunfo da aurora; Mallarmé lhes disse: ‘nada
disso... Trata-se da minha cômoda.”

118
“A partir de 1825, viu-se aparecer como reação [ao] imperativo da linha [que
teve como autoridade nesse domínio o neoclássico Jean Auguste Dominique
Ingres] um movimento romântico cujo chefe de fila se chamava Eugène
Delacroix (1798-1863). Este movimento, ao dar mais valor à cor que ao
desenho, estimava mais os sentimentos e a individualidade do artista que as
convenções artísticas. Na França, o mundo da arte ficou desde então dividido
em dois campos. A luta de Ingres e Delacroix, entre o neoclassicismo e o
romantismo, entre a linha e a cor dominava todas as discussões e tornou-se no
tema favorito dos caricaturistas” (BECKS-MALORNY, 2005, p. 12).
155

Tanto Valéry quanto Merleau-Ponty querem mostrar que o


momento do ato criativo do pintor é muito mais importante que a
contemplação da obra “acabada”. Se é que devemos ir ao Museu como o
fazem os artistas, então não nos cabe mais acreditar que há uma Razão
que guia a mão dos pintores e da qual eles nunca tomaram
conhecimento. Assim, de acordo com Merleau-Ponty (S, 101, 94), “o
Museu acrescenta um falso prestígio ao verdadeiro valor das obras ao
separá-las dos acasos em cujo meio nasceram, e ao fazer-nos acreditar
que desde sempre a mão do artista foi guiada por fatalidades”. Ao
recolher obras diversas do mundo todo, “sentimos vagamente que há um
desperdício e que esse recolhimento de solteironas, esse silêncio de
necrópole, esse respeito de pigmeus não é o meio verdadeiro da arte”
(PM, 102, 100). A rigor, observa o filósofo: “tantos esforços, tantas
alegrias e penas, tantas cóleras, tantos trabalhos não estavam destinados
a refletir um dia a triste luz do Museu de Louvre...” (PM, 102, 100).
Em umas de suas cartas endereçadas a Émile Bernard, Cézanne
(1999, p. 16) declara a importância dos museus para a criação artística,
sem deixar, no entanto, de acentuar um interessante argumento: “O
Louvre é um bom livro a ser consultado, mas também não deve ser mais
do que um intermediário. O estudo real e prodigioso a ser empreendido
é a diversidade do quadro na natureza”. Em tal contexto, ele explica:

O Louvre é o livro em que aprendemos a ler. No


entanto, não nos devemos contentar em reter as
belas fórmulas de nossos ilustres predecessores.
Saiamos delas para estudar a bela natureza,
tratemos de libertar delas o nosso espírito,
tentemos exprimir-nos segundo nosso
temperamento pessoal. O tempo e a reflexão, além
disso, pouco a pouco modificam a visão, e
finalmente nos vem a compreensão (CÉZANNE,
1999, p. 18).

IV

Cientes da importância dos Museus como instituições, de cujas


obras foram cristalizadas para serem apreciadas ou divinizadas,
podemos perceber, na esteira de Merleau-Ponty, que a pintura está mais
além, ou aquém, dessas cristalizações: afinal, “há em toda expressão
uma espontaneidade que não se submete a regras, nem mesmo àquelas
que eu gostaria de dar a mim mesmo” (S, 121, 109). Não tendo esse viés
expressivo e atual, a pintura transforma-se em “fala falada” ou em
156

“linguagem falada”. É nesse sentido que podemos afirmar que um


quadro se torna um pensamento quando perde seu poder de “nos
fornecer emblemas cujo sentido nunca terminamos de desenvolver, é
justamente porque se instala e nos instala num mundo cuja chave não
temos”, e de “ensinar-nos a ver e finalmente fazer-nos pensar como
nenhuma obra analítica consegue fazê-lo, porque a análise encontra no
objeto apenas o que nele pusemos” (S, 125, 111).
O esforço de Merleau-Ponty concentra-se na tese de que o
pensamento é o contrário de uma expressão criadora, uma vez que, por
princípio, é analítico, “quebra a transição perceptiva de um momento
para outro, de um lugar para outro” (S, 111, 101). Em linhas gerais,
pensamento é sinônimo de linguagem falada.

A linguagem falada é aquela que o leitor trazia


consigo, é a massa das relações de signos com
significações disponíveis, sem a qual, com efeito,
ele não teria podido começar a ler, que constitui a
língua e o conjunto dos escritos dessa língua [...].
Mas a linguagem falante é a interpelação que o livro
dirige ao leitor desprevenido, é aquela operação
pela qual um certo arranjo dos signos e das
significações já disponíveis passa a alterar e depois
transfigurar cada um deles, até finalmente secretar
uma significação nova [...] (PM, 20, 34-35).

A palavra viva, aquela que não dorme - acordada – que se


levanta e segue adiante ganhando o seu dia, é a fala/linguagem falante.
É esta que possibilita ver nos quadros modernos um vermelho que arde
como fogo, que, ao invés de pousar na pintura, salta para fora da tela e
atravessa o corpo do espectador. É nesse sentido que podemos ver a
volúpia do vermelho desejado pelos vampiros e grudado na boca das
prostitutas. Com isso, quando a palavra dorme, isto é, quando ela não
provoca ecos no espectador, então, ela se torna fala/linguagem falada. O
pensamento, por sua vez, quando guiado pela reflexão e pela análise,
torna-se “petrificado”. Para ser expressivo, deve habitar o berço das
coisas, o “entre” visíveis; deve se instalar na passagem do tempo. Na
reflexão de Merleau-Ponty, “a passagem do presente a um outro
presente, eu não a penso, não sou seu espectador, eu a efetuo, eu já estou
no presente que virá” (PhP, 481, 564).
A linguagem pictórica ao se fazer no tempo, marcando traços
no espaço e inaugurando mundos, praticamente indecifráveis, abre, pois,
o advento para a questão da intersubjetividade. Qual outrem, a pintura
157

mostra aspectos que nós desconhecíamos de nós mesmos, mostra nosso


invisível e nossa passividade a algo que se doa e que se impõe a nós,
sem que precisemos, ao menos, perceber a sua ausência. A pintura é um
olhar estranho que nos faz visita e nos cobre de adventos119.
Já na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (PhP, 418,
488), ao falar da natureza pensante na qual estamos apoiados, mesmo a
partir de um corpo-próprio, em que ausência é o avesso da presença, e o
silêncio o outro lado da camada sonora, somos levados por “um fluxo da
vida inesgotável no qual não [podemos120] pensar nem o começo nem o
fim”, já que enquanto seres viventes somos nós que pensamos, somos
nós que criamos objetos para o mundo cultural. Entretanto, “esta mesma
natureza pensante que [nos] abarrota de ser [nos] abre o mundo através
de uma perspectiva”, uma angústia de ser ultrapassado, superado, de
forma que, se percebermos o “porvir inacessível” é porque não podemos
viver a presença de outrem em si mesmo. Nesse sentido, cada um dos
outros tem existência para nós “a título de estilo ou de meio de
coexistência irrecusável, e [nossa] vida tem uma atmosfera social assim
como tem um sabor mortal” (PhP, 418, 489).
“No objeto cultural, [sentimos], sob um véu de anonimato, a
presença próxima de outrem” (PhP, 400, 466). Desta forma, Merleau-
Ponty nos apresenta a intersubjetividade. A presença de outrem em
nossa existência é, de fato, sentida por “um ato violento” (PhP, 415,
485) da vida perceptiva. Afinal, outrem não pede licença para adentrar
em nosso mundo, simplesmente aparece. Ao aparecer, mostra-nos que,
ao contrário, do que imaginávamos outrora121 – de sermos apenas
sujeitos ativos – somos também arrebatados por uma passividade
criadora.

119
“O advento é uma promessa de eventos” (S, 112, 102).
120
Adaptamos a citação para a primeira pessoal do plural.
121
O pensamento racional-moderno nos mostrou que é nosso pensamento quem
vê: “para uma filosofia que se instala na visão pura, no sobrevoo do panorama,
não pode haver encontro com [outrem]: pois o olhar domina e não pode
dominar a não ser coisas, se cai sobre homens, transforma-os em manequins
movidos unicamente por molas” (VI, 107, 81).
158
“Não temos que escolher entre uma filosofia
que se instala no mundo mesmo
ou em outrem e uma filosofia que se instala “em nós”,
entre uma filosofia que
toma a experiência “de dentro” e
uma filosofia que, se possível for,
a julgue do exterior, por exemplo,
em nome de critérios lógicos:
estas alternativas não se impõem,
pois que talvez o si e o não-si
sejam como o avesso e o direito,
e a nossa experiência é talvez esta reviravolta
que nos instala bem longe de nós e no outro,
no ponto onde,
por uma espécie de quiasma,
tornamo-nos os outros e tornamo-nos mundo.
A filosofia só será ela própria
se recusar as facilidades
de um mundo com entrada única,
tanto como as facilidades de um mundo
com entrada múltiplas,
todas acessíveis ao filósofo.
A filosofia ergue-se como o homem natural
no ponto em que
se passa de si para o mundo e para o outro,
no cruzamento das avenidas”.

(Merleau-Ponty, O visível e o invisível)


163

4 ONTOLOGIA E OUTREM: A PASSIVIDADE

“O que se olha é aquilo que não se pode ver”.


(Lacan, seminário XI)

“A experiência da passividade não se explica por uma passividade


efetiva”.
(Merleau-Ponty, A estrutura do comportamento)

Há, na filosofia de Merleau-Ponty, dois sentidos para designar a


questão do outro: o primeiro é o outro como objeto; o segundo é o outro
como rastro, que está “sempre à margem do que vejo e ouço, está a meu
lado, está a meu lado ou atrás de mim, não está nesse lugar que o meu
olhar esmaga e esvazia do todo ‘interior’” (PM, 186, 168). O primeiro
ele chama de outro (autre) e o segundo de outrem (autrui).
Encontramos o emprego de outrem (autrui) em diferentes
momentos do percurso do filósofo: como no capítulo Outrem e o mundo
humano, na Fenomenologia da Percepção (1945); A percepção de
outrem e o diálogo122, em A prosa do mundo (período intermediário123);
“Outrem”, em uma nota de trabalho de novembro de 1960, de O visível
e o invisível. Como podemos verificar, Merleau-Ponty continuamente
voltava a tratar desse tema.

122
Discordamos da tradução estabelecida por Paulo Neves do termo
autre/autrui. Ele elegeu como título A percepção do outro e o diálogo. Sendo
que no original está escrito: La perception d’autrui et le dialogue, isso é que nos
faz discordar e estabelecer como novo título: A percepção de outrem e o
diálogo. E que, a nosso ver, causa uma mudança significativa na abordagem
desse tema.
123
No prefácio de A prosa do mundo, Claude Lefort (2002, p.10) fala da
provável data de escrita deste projeto inacabado: “É verdade que esses poucos
elementos não permitem fixar a data exata na qual o manuscrito foi
interrompido. Autorizam-nos, contudo, a pensar que ela não foi posterior ao
começo de 1952. Talvez se situe alguns meses antes. Por outro lado, como
sabemos, através de uma carta endereçada a sua mulher no verão precedente,
que o autor dedicava a maior parte de suas férias ao trabalho em A prosa do
mundo, é legítimo supor que a interrupção ocorreu no outono de 1951 ou, no
mais tardar, no começo do inverno de 1951-1952.”
164

Nessa nota de trabalho, citada no parágrafo anterior, Merleau-


Ponty esclarece que “o que interessa, não é um expediente para resolver
o ‘problema de outrem’ – É uma transformação do problema” (VI, 316,
241). Sua proposta é “inteiramente nova”, partindo da subjetividade
visível e da visão, do sensível e do sentir: “não existem mais ‘sínteses’”,
diz ele, “há um contato com o ser através das modulações, ou relevos”
(VI, 316, 241). Sendo um relevo como eu,

Outrem não é tanto uma liberdade vista de fora


como destino e fatalidade, um sujeito rival de
outro sujeito, mas um prisioneiro no circuito que o
liga ao mundo, como nós próprios, e assim
também no circuito que o liga a nós – E este
mundo nos é comum, é intermundo – E há
transitivismo por generalidade – E mesmo a
liberdade tem sua generalidade, é compreendida
como generalidade: atividade não mais o
contrário de passividade (VI, 317, 241).

Nesta passagem, Merleau-Ponty esclarece a noção fundamental


de outrem: “é um prisioneiro no circuito que o liga ao mundo”, que o
liga a nós, que se dá por generalidade e imbricação (empiètement), é um
enigma. Outrem é o rastro do outro. Outrem é o que causa esquize.
Enquanto outrem é passividade; outro é instituição.
A pintura não foi criada apenas pelo pintor. Ela, por si só,
possui uma dimensão passiva. O artista precisa estar aberto a essa
dimensão de passividade, como uma espécie de espontaneidade
criadora. Isso é necessário para que a obra seja feita. Acontece algo
semelhante com o espectador: ao mirar-se diante de uma pintura,
entrelaça-se com ela retomando-a, atravessando-a, passando ainda a
habitar o mundo da obra numa espécie de percepção terciária,
entrelaçando-se, pois, com ela. Por que terciária? Vejamos: se há uma
passividade criadora no momento em que o artista se põe a pintar, e se
há uma passividade do espectador em relação à obra, então, podemos
afirmar que o espectador está em dupla passividade diante da mesma.
Nesse panorama, queremos mostrar a importância do espectador
na retomada da obra de arte, tarefa que faz empregando o seu corpo, que
é um correlato do mundo, em que o olhar, além de contemplar, pode
fornecer substratos para uma criação, até o limite em que é surpreendido
por algo que se impõe como alteridade. A pintura, assim, mostrará que o
espectador experimenta uma dupla passividade: ao quadro e ao olhar do
estranho, que se assemelha aquela vivida pelo próprio pintor, em parte,
165

passivo à imagens que lhe vem do mundo e da história; mas também


passivo a sua própria intimidade que se revela como estilo. Essa dupla
passividade tem uma relação com a dupla falta do sujeito do desejo,
salientada por Jacques Lacan no Seminário XI.
Nosso primeiro ponto consiste investigar a reversibilidade do
olhar, especialmente no que tange ao vidente e ao visível. O que
acontece quando o vidente se percebe olhado pelo visível? É
mergulhando no verso e no reverso do visível que prosseguiremos
retomando a leitura que Lacan elabora a partir da obra O visível e o
invisível, no seminário XI, em que, ao interromper o curso sobre os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, pensa acerca do objeto da
pulsão escópica. Trata-se aí de pensar a esquize que acontece entre o
olho e o olhar na pintura. Outro ponto a ser abordado, por meio das
discussões sobre a reversibilidade e a esquize, é o papel de outrem no
ato criativo
Ademais, trataremos também de elucidar a proposta merleau-
pontyana de uma reabilitação ontológica do sensível. Além da
reversibilidade que acontece entre o vidente e o visível, Merleau-Ponty
reconhece uma promiscuidade entre os sentidos: afinal, o olhar toca, a
mão vê, o ouvido sente... Se de fato o olhar “envolve, apalpa, esposa as
coisas visíveis” (VI, 173, 130) então podemos afirmar que há uma “pré-
posse do visível”, de modo que o espectador experimenta como uma
passividade que perpassa primeiramente à percepção do artista. Por fim,
investigaremos as criações do artista e do espectador, mais além de cada
imagem até o limite daquilo que se doa, não como imagem, mas como
processão (précession) de um estranho como outrem.

4.1 Reversibilidade do olhar

“Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos” (VI,


17, 15). É assim que Merleau-Ponty inicia o primeiro capítulo de seu
livro, inacabado, O visível e o invisível. Parece ser uma fórmula simples,
básica, e que traria a ideia de como o mundo funciona aos olhos do
vidente. Penetraríamos, contudo, “num labirinto de dificuldades e
contradições” (VI, 17, 15) se fôssemos questionar “as coisas”, “o ver” e
“o mundo”. Neste caso, parece haver algo mais complexo e profundo
que o simples fato de vermos, sejam as coisas, seja o mundo. No
segundo parágrafo, ele afirma que “[a]o mesmo tempo é verdade que o
166

mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo” (VI,


18, 16). Mais do que aprender a ver o mundo, precisamos reaprender a
vê-lo124. Isto implica em olhar o mundo como que pela primeira vez,
como se estivéssemos nascendo a todo instante. Ademais, parece que
somos apenas agentes ativos no fato de olhar, mas “[s]ão as próprias
coisas, do fundo do seu silêncio, que deseja conduzir à expressão” (VI,
18, 16). Com isso, Merleau-Ponty nos insere a dinâmica do olhar: mais
do que uma visão unilateral, ocorre nesse ato, algo muito mais
significativo: percebemos que ao olhar para algo, este algo também nos
olha. Reconhecemos, então, que há uma reversibilidade da visão. Ora,
se “é acima da própria percepção que precisamos procurar a garantia e o
sentido de sua função ontológica” (VI, 20, 18), então, cremos ser
necessário investigarmos a questão da reversibilidade do olhar e os
desdobramentos advindos dela.
Ao mover meu corpo, sinto que há uma reorganização das
coisas e do mundo ao meu redor. Movo meu olhar em relação a um
objeto que está a uma distância relativamente pequena de mim para um
outro que está distante, e presencio, assim, uma modificação da
paisagem do meu entorno: “meus movimentos e os de meus olhos fazem
vibrar o mundo [...] sem abalar-lhe a solidez fundamental” (VI, 22, 19).
Isto acontece porque “[o] mundo visível e de meus projetos motores são
partes totais do mesmo Ser” (OE, 17, 16).
Ao falar que há um narcisismo fundamental em toda visão,
Merleau-Ponty afirma que o vidente também sofre, “por parte das
coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí, como disseram muitos
pintores, o sentir-se olhado pelas coisas, daí, minha atividade ser
identicamente passividade [...]” (VI, 181, 135). De fato, todo objeto que
olhamos lança sobre nós um olhar, interroga-nos, nos faz sentir que não
somos os únicos agentes da ação. Assim, ao mesmo tempo em que
agimos sofremos também a ação inversa. Então, correlativamente, entre
olhar e ser visto, a visibilidade se dá entre um vidente e um visível. A
visão não e´ a ação unilateral do olho para o objeto, aquilo que acontece
de dentro para fora, do interior do vidente para o exterior do mundo
visível, mas também ocorre pela conjuntura de “ser visto por ele, existir
nele, emigrar para ele, ser seduzido, capturado, alienado pelo fantasma
de sorte que vidente e visível” – bem como o espectador e a obra, ou o
pintor e as coisas – “se mutuam reciprocamente, e não mais se saiba
quem vê e quem é visto” (VI, 181, 135).

124
Este tema central já aparece na Fenomenologia da Percepção.
167

Isso acontece porque somos carne, porque o mundo inteiro é


carne. “Se pudermos mostrar que a carne é uma noção última”, explica-
nos Merleau-Ponty, “que não é a união ou composição de duas
substâncias”, não é matéria, não é espírito, “mas pensável de per si, se
há uma relação do visível consigo mesmo que me atravessa e me
transforma em vidente, este círculo que não faço mas que me faz, este
enrolamento do visível no visível”, que me leva a pensar que sou um
agente entre tantos outros parecidos, “pode atravessar e animar tanto os
outros corpos como o meu” (VI, 183, 136-137).
Meu corpo e o mundo visível são projetos dessa mesma carne
que não são “corpúsculos de ser que se adicionariam ou se continuariam
para formarem os seres” (VI, 181, 135). Ademais, “a carne (a do
mundo125 e a minha) não é contingência, caos, mas textura que regressa
a si e convém a si mesma” (VI, 190, 142). Se pude compreender como
nasce em mim a abertura, a reversibilidade entre o visível e o invisível,
“como o visível que está acolá é simultaneamente minha paisagem”,
então, “com mais razão posso compreender que alhures ele também se
fecha sobre si mesmo, e que haja outras paisagens além da minha” (VI,
183, 137). Noutra passagem, Merleau-Ponty (VI, 191, 142-143)
aprofunda a questão da carnalidade:

O que chamamos carne, essa massa interiormente


trabalhada, não tem, portanto, nome em filosofia
alguma. Meio formador do objeto e do sujeito,
não é um átomo de ser, o em si duro que reside
num lugar e num momento únicos: pode-se
perfeitamente dizer do meu corpo que ele não está
alhures, mas não dizer que ele esteja aqui e agora,
no sentido dos objetos; no entanto, minha visão
não os sobrevoa, ela não é o ser que é todo saber,
pois tem a sua inércia e seus vínculos, dela.

Em sua descrição sobre a questão da carnalidade, prossegue


Merleau-Ponty (VI, 191, 143): “é preciso pensar a carne, não a partir das
substâncias, corpo e espírito, pois seria então a união dos contraditórios,
mas, dizíamos, como elemento, emblema concreto de uma maneira de

125
“A carne do mundo não é explicada pela carne do corpo, ou esta pela
negatividade ou pelo si que a habita – os três fenômenos são simultâneos” (VI,
298, 227). Contudo, “é através da carne do mundo que se pode, enfim,
compreender o próprio corpo” (VI, 299, 227).
168

ser geral”. A carne é o Ser de indivisão, não pensado como algo maciço,
sólido e fechado, mas um Ser de porosidade, esburacado, que contém o
dentro e o fora, o direito e o avesso, zonas claras e opacas126...

Minha carne e a do mundo comportam, portanto,


zonas claras, focos de luzes em torno dos quais
giram suas zonas opacas; a visibilidade primeira, a
dos quale e das coisas não subsiste sem uma
visibilidade segunda, a das linhas de força e das
dimensões, a carne maciça sem uma carne sutil, o
corpo momentâneo, sem um corpo glorioso. (VI,
192, 144)

A noção essencial para a filosofia que Merleau-Ponty (VI, 307,


234) pretende fazer é a de carne como “sensível no duplo sentido
daquilo que sentimos e daquilo que sente”. A minha própria carne, por
sua vez, “é um dos sensíveis no qual se faz uma inscrição de todos os
outros, sensível pivô do qual participam todos os demais, sensível-
chave, sensível dimensional” (VI, 308, 234). A minha carne, ou o meu
corpo, “é, no mais alto grau, aquilo que qualquer coisa é: um isto
dimensional” (VI, 308, 234). Um “isto127” que não se consegue definir
ou mensurar de fato, cujo entrelaçamento com a carne do mundo e com
a carne de outrem acontece por generalidade e mútua imbricação
(empiètement). Ademais, “meu corpo não é somente um percebido entre
os percebidos, mede-os a todos, Nullpunkt [ponto nulo] de todas as
dimensões do mundo” (VI, 297, 225).

II

De acordo com Merleau-Ponty (OE, 64, 35), quando estou em


um avião e vejo o e clarão que se forma entre as árvores próximas, e as

126
Escreve Manoel de Barros (2013, p. 278): “Há frases que se iluminam pelo
opaco”.
127
Em Água viva, Clarice Lispector (1998, p. 74) escreve que “vou te dizer uma
coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um ‘isto’. E
escrevo um ‘isto’”. Em outro trecho afirma: “o que te escrevo é um ‘isto’. Não
vai parar: continua” (LISPECTOR, 1998, p, 95). O “isto” é utilizado pela autora
para designar algo que não pode ser dito plenamente, mas que se insinua no
próprio movimento criativo. De alguma forma, tanto o autor quanto o leitor
percebem a existência deste algo que escapa à objetivação.
169

distantes, ou quando observo a escamoteação das coisas umas pelas


outras, que a técnica da perspectiva define, considera ele: “essas duas
vistas são muito explícitas e não [me] suscitam questão alguma” (OE,
64, 35). O enigma da visão está na ligação entres suas partes. Ao ver
diferentes coisas disputarem meu olhar, como se todas elas fossem
apenas figuras e não fundo – porque todas aparecem ao mesmo tempo –
vejo algo entre elas que não sei direito o que é, e que esta Gestalt,
entrementes, apresenta-se ainda em formação, de forma selvagem, bruta,
como um todo indivisível, e que ainda não fora refletida. Eu sentiria, no
entanto, dificuldades de dizer onde exatamente cada parte se localiza.
Para representar essa rivalidade na tela, o pintor tem que imprimir uma
cena de tal maneira que estivesse passeando por entre os objetos
pintados128.
A noção de reversibilidade está naquilo que Merleau-Ponty
aponta como enigma, aquilo que liga diferentes partes de um mesmo
mundo, fazem parte da mesma carne, e que ainda não foi cristalizado
pela cultura. Sabemos que há algo entre as diversas coisas, contudo, não
temos como objetivar o mundo percebido em seu momento de
formação: só fazemos isso a posteriori. De toda sorte, a reversibilidade
acontece porque há no próprio visível uma profundidade que permite
ver o invisível. Este emblema nos é familiar e temos dificuldades em
descrevê-lo, tal qual Agostinho ao falar do tempo129. Para entendermos
melhor o tema em questão, a nota de trabalho de O invisível e o invisível
(VI, 311-312, 237) esclarece:

Reversibilidade: o dedo da luva que se põe do


avesso – Não há necessidade de um espectador

128
Ao falar do seu processo criativo e do observador, o pintor Francis Bacon
enuncia: “gostaria que meus quadros dessem a impressão de que um ser humano
passou entre eles, como uma lesma, deixando um rastro da presença humana e
um traço dos acontecimentos passados, tal como a lesma deixa seu sulco. Creio
que todo o processo desse tipo de forma elíptica depende da execução do
detalhe e de como as formas são refeitas ou colocadas levemente fora de foco
para introduzir os traços da memória”. (BACON, 1999, p. 633). Em certo
sentido, Bacon já aponta para a importância do espectador na retomada da obra
de arte.
129
Isso nos faz lembrar da inquietação de Agostinho em relação ao tempo,
comentada, aliás, por Merleau-Ponty no início do primeiro capítulo de O visível
e o invisível (VI, 17, 15): “Agostinho dizia do tempo, que este é perfeitamente
familiar a cada um, mas que nenhum de nós é capaz de explicar aos outros.”
170

que esteja dos dois lados. Basta que, de um lado,


eu veja o avesso da luva que se aplica sobre o
direito, que eu toque um por meio do outro (dupla
‘representação’ de um ponto ou plano do campo)
o quiasma é isto: a reversibilidade –

Prossegue Merleau-Ponty (VI, 312, 237):

É somente através dela que há passagem do ‘Para


Si’ ao Para Outrem – Na realidade, não existimos
nem eu nem o outro como positivos,
subjetividades positivas. São dois antros, duas
aberturas, dois palcos onde algo vai acontecer – e
ambos pertencem ao mesmo mundo, ao palco do
Ser.

O Para Si e o Para Outrem não existem como entidades


autônomas, pois eles são o verso e o reverso um do outro. O que há é
aquilo que margeia, que bordeia o Ser, como uma estrutura que nunca se
mostra frontalmente. Porém, o que conseguimos, de fato, é vislumbrar
algo em formação, meio escondido, que se oferece ao olhar por dentro:
de tal forma que o espectador passa, assim, a ter uma experiência do Ser
Bruto e do Espírito Selvagem. Vale ressaltar que não é uma experiência
que um espectador absoluto teria -plena e absoluta do Ser -, mas um
desdobrar de fenômenos visíveis que traz consigo outros visíveis
latentes (invisíveis). É na fronteira entre o visível e o invisível que o
olhar percebe que há algo ali que ele não consegue compreender
completamente, mas sabe, de alguma forma, que um todo indivisível se
insinua, cuja clareza ainda não está escancarada. O que vale salientar é
que Merleau-Ponty concebe o Ser de indivisão como sendo uma espécie
de “pré-conhecimento, um pré-sentido, um saber silencioso” (VI, 230,
173), uma espécie de “grandeza antes da medida”, que o mundo humano
ainda não cristalizou. Aquilo que se apresenta como Ser de indivisão
tem, na terminologia merleau-pontyana, o correlato de carne, Ser
Vertical, Ser Bruto. O essencial, para Merleau-Ponty (VI, 254, 192) é
descrever a carne como “o Ser vertical ou selvagem como este ambiente
pré-espiritual sem o qual nada é pensável, nem mesmo o espírito, e pelo
qual nos interpenetramos uns nos outros, e nós próprios em nós para
possuirmos o nosso tempo”. Desta forma, por que somos feitos do
mesmo tecido, do mesmo estofo, é que podemos dizer que somos seres
intersubjetivos. Ou seja, não há uma ação nossa que não afete o mundo
de outrem. Ele e nós habitamos um mesmo mundo e sofremos as mútuas
171

interferências, quer de pontos parecidos e harmoniosos, quer de


situações estranhas e obscuras. Há, assim, algo em outrem que não
conseguimos alcançar: outrem está mais além do que aquilo que
projetamos sobre ele.
É no interior do próprio visível que a expressão se mostra bruta
e não lapidada. É criativa no sentido de ir fazendo-se quase por conta
própria: exigindo, entretanto, o trabalho do pintor. Não é, entretanto, um
atividade centrada apenas nas intenções dele próprio, mas é
mergulhando130 no invisível do visível que ele ressurge, liberta-se,
renasce, como se tudo o que tivesse dito antes tivesse que ser dito de
outra forma. Ora, não vemos relatos de escritores e artistas que sentiam
que a arte tomava um curso meio autônomo131 após iniciarem seus
trabalhos?
O escritor brasileiro, João Cabral de Melo Neto (2007, p. 704),
por exemplo, discorre sobre a inspiração e o trabalho criativo:

[...] o ato de escrever o poema, que neles se limita


quase ao ato de registrar a voz que os surpreende,
é um ato mínimo, rápido, em que o poeta se apaga
para melhor ouvir a voz descida, se faz passivo
para que, na captura, não se derrame de todo esse
pássaro fluido.

O poeta Mário Quintana (2007, p. 735), por sua vez, falou sobre
a obra de Balzac:
Balzac inicia as histórias de um jeito que já no seu
tempo devia ser sovadíssimo e, lá pelas tantas,
dava-lhe de fazer umas digressões que ninguém

130
“Ao mergulhar no mundo percebido, longe de termos estreitado nosso
horizonte e de nos termos limitado ao pedregulho ou à água, encontramos os
meios de contemplar as obras de arte da palavra e da cultura em sua autonomia
e em sua riqueza originais” (C, 61, 65-6).
131
“Alto lá, meu livrinho! Devagar! Calma agora! Chegamos ao fim da jornada,
e você ainda quer galopar adiante, sem controle, transpor a página derradeira,
como se o seu serviço já não estivesse feito” (MARCIAL apud GIANNETTI,
2008, p. 358). Em sua obra Epigrammaton, século I d.C., Marcus Valério
Marcial já apontava para autonomia do texto ao ser escrito. Paulo Leminski, em
um poema chamado Desencontrários, escreve sobre a “autonomia” da escrita:
“Mandei a palavra rimar,/ ela não me obedeceu./ Falou em mar, em céu, em
rosa,/ em grego, em silêncio, em prosa./ Parecia fora de si,/ a sílaba silenciosa”
(WEINTRAUB, 2006, P. 35).
172

conseguia acompanhar até o fim, exatamente por


serem infindáveis. Bastava, porém, que o autor
cedesse o papel a seus protagonistas e logo surgia
diante de nossos olhos... um romance? Não. Mas o
próprio mundo dos homens, fremente e palpitando
a vida até hoje.

De fato, o artista precisa estar “em trabalho” para que a criação


vá acontecendo, para que o fogo se acenda - a inspiração surja – e o
procedimento pegue fogo, tornando possível a criação de um novo
visível. No último tópico deste capítulo voltaremos a tratar a questão da
passividade na criação. Por ora, é importante ressaltar que o artista
aprende com a própria arte. De alguma forma, ele se impressiona com o
resultado obtido após emergir do subsolo em que estava ao se aventurar
na elaboração da obra. Afinal, ela torna-se maior que as intenções
prévias dele mesmo.
E se o escritor pretende produzir obras que sejam experiências
que desencadearão nas consciências dos leitores a profundidade do
mundo da vida, que possam fazê-los adentrar em outros lugares que
ainda não eram seus, então, a sua escrita deve mostrar um impensável.
Entende-se por impensado aquilo que ainda não foi pensado pelo
escritor. É assim que ele mostra, entre um signo e outro, o silêncio, o
intervalo entre as palavras, que agarra o leitor, entrelaça-se com este,
envolvendo-o num mundo novo e original. De forma semelhante se dá o
processo criativo do pintor, do músico, do escultor, do dançarino... O
pintor, por exemplo, ao buscar a expressão pela gênese da natureza -
pela raiz do mundo - tenta dar conta do Ser Bruto e do Espírito
Selvagem, que se oferece confusamente ao seu olhar. Por isso, Cézanne
dizia “atacar” por todos os lados a tela: sua pintura ia se fazendo em
todos os pontos da tela, de tal modo que não lhe aparecia bem definido o
que fosse figura e o que fosse fundo. Sobre isso, escreve Chauí (2002, p.
154):

Ser Bruto e Espírito Selvagem estão entrelaçados,


abraçados e enlaçados: o invisível permite o
trabalho de criação do visível, o indizível, o do
dizível, o impensável, o do pensável. Merleau-
Ponty fala numa visão, numa fala e num pensar
instituintes que empregam o instituído – a cultura
– para fazer surgir o jamais visto, jamais dito,
jamais pensado – a obra. O Ser Bruto era o que
Cézanne desejava pintar quando dizia dirigir-se “à
173

fonte impalpável da sensação” porque “a Natureza


está no interior”. “Fonte impalpável”, o Ser Bruto
é o originário, não como algo que se desejaria
repetir ou ao qual se desejaria regressar, mas a
origem como o aqui e agora que sustenta, pelo
avesso, toda forma de expressão.

Junto ao Ser Bruto e Espírito Selvagem, bem como na aventura


do artista ao pintar sua obra, é que percebemos a reversibilidade. Fato
que aparece não só entre o vidente e o visível, mas também entre a mão
que toca e a tocante, ou entre o verso e o reverso do olhar que esposa as
coisas visíveis e tangíveis. A reversibilidade da visão, por exemplo é
observada em A ronda noturna132, de Rembrandt. Vemos nesta obra o
avesso da mão do capitão a partir de sua sombra. Só a vemos porque
somos espectadores de um mesmo mundo visível que possui espessura.
Em todo caso, o espectador, mesmo vendo de um lado – o exterior -,
percebe também o outro lado – o dentro -. Ver apenas do exterior é
apreender apenas um perfil do objeto. Ele deve olhar, todavia, como que
se estivesse também do lado de dentro. Mais do que isso, deve habitar a
dobra entre o visível e o invisível, ou o “entre133”, o dentro e o fora134. É
nessa dobra que podemos perceber a fissão135 e a segregação do Ser.

132
Imagem em anexo.
133
“Não há que escolher entre o que vemos (com sua consequência exclusiva
num discurso que o fixa, a saber, a tautologia) e o que nos olha (com seu
embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se
inquietar com o entre” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 77).
134
Para ajudar a iluminar essa questão, trazemos um poema de Paulo Leminski
(apud SOUZA, 2006, p. 58) Ler pelo não: “Ler pelo não, quem dera!/Em cada
ausência, sentir o cheiro forte/ do corpo que se foi,/ a coisa que se espera./ Ler
pelo não, além da letra,/ ver em cada rima vera, a prima pedra,/ onde a forma
perdida/ procura seus eteceteras./ Desler, tresler, contraler,/ enlear-se nos ritmos
da matéria, / no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, / navegar em direção às
Índias/ e descobrir a América”.
135
“A visão [...] é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de
assistir por dentro à fissão do Ser, ao término da qual somente me fecho sobre
mim” (OE, 81, 42). Sobre isso escreve Chauí (2002, p. 162-3): “Ao fazer falar a
experiência como fissão no Ser, Merleau-Ponty leva-nos de volta ao recinto da
encarnação, abandonando aquela maneira desenvolta com a qual a filosofia
julgava poder explica-la, perdendo-a. Doravante, não se trata, em primeiro
lugar, de explicar a experiência, mas de decifrá-la nela mesma, e não se trata,
em segundo lugar, de separar-se dela para compreendê-la. Somos levados ao
174

Sobre a visão e o tangível, assuntos que serão aprofundarmos


esse assunto no último tópico deste capítulo, podemos, aqui, citar a
passagem de Schilder no espelho136, mostrada por Merleau-Ponty (OE,
33, 22-23) em O olho e o espírito: “Schilder observa que, ao fumar
cachimbo diante do espelho, sinto a superfície lisa e ardente da madeira
não só onde estão meus dedos, mas também naqueles dedos gloriosos,
naqueles dedos apenas visíveis que estão no fundo do espelho”.
Somente posso sentir a imbricação (empiètement) e a
reversibilidade da visão e do visível, com o tangível, porque não há
muita diferença entre o que vejo, o que é visto e o que sinto. Se posso
sentir a textura na visão do espelho é devido ao fato de que “o fantasma
do espelho puxa para fora minha carne, e ao mesmo tempo todo o
invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo” (OE,
33, 23). Se consigo experimentar este fenômeno do espelho é porque
esta ambiguidade também me permite considerar que há um ponto onde
acontece a reversibilidade do visível e o invisível. Para melhor
entenderemos este fato, voltemos nossa atenção para a análise da luva
que Merleau-Ponty faz – e que citamos anteriormente –, do dentro e do
fora, do avesso e do direito. Mais especificamente, afirma Merleau-
Ponty (VI, 311-312, 237):

Dado somente o eixo – a ponta do dedo da luva é


o nada, - mas nada que se pode pôr do avesso e
onde então se veem coisas – O único ‘local’ onde
o negativo pode existir verdadeiramente, é a

recinto da experiência pelas artes, cujo trabalho é a iniciação que nos ensina a
decifrar a fissão no Ser. [...] como divisão no interior da indivisão: a experiência
se efetua como aquele momento no qual um visível (o corpo do pintor) se faz
vidente sem sair da visibilidade [...]”. Enfim, fissão é a experiência que não
separa.
136
Sobre o fenômeno da duplicação do visível através do espelho – ou pela
visão indireta das coisas -, muitos pintores o abordaram em diversas obras
clássicas. Basta ver o Casal Adorfini, de Van Eyck, ou o espelho enigmático da
obra As meninas, de Velásquez. No primeiro exemplo, a pintura mostra bem
que a imagem que o espelho reflete é realmente a do casal sendo pintada. Já nos
segundo caso, não temos como verificar, ao certo, se o casal que está
aparecendo no retângulo retratado no meio da obra é um espelho refletindo o
que está sendo pintado, ou se se trata apenas um quadro pendurado na parede.
Velásquez torna esse detalhe ambíguo ao nosso olhar, dividindo a opinião dos
comentadores da obra.
175

dobra, a aplicação um ao outro do interior e do


exterior, o ponto de virada –

O nada137 aparece como o outro lado do Ser, como o negativo, a


outra face do positivo, que, por uma espécie de quiasma, permite ligar
ambas as partes; mas, um ligar que contém buracos, lacunas, brechas,
cavidades, vazios. O quiasma eu-mundo e eu-outrem, em analogia, é
“realizado pelo desdobramento do meu corpo em fora e dentro, – e o
desdobramento das coisas (seu fora e seu dentro)” (VI, 312, 237).
Ademais, “são estes 2 desdobramentos que possibilitam: a inserção do
mundo entre as duas faces de cada coisa e o mundo” (VI, 312, 237). Não
estamos nos reportando a um antropocentrismo, mas ao estudar os dois
lados da luva – o dentro e o fora, devemos encontrar a “estrutura do ser”
(VI, 312, 237). Merleau-Ponty não vê o Ser como positivo e o nada
como negativo – como fez Sartre –, mas ambos são como os dois lados
de uma mesma moeda: pertencem, portanto, a mesma estrutura do Ser.

III

O quiasma me projeta para um conhecimento para além de


mim, como puro agente, e do outro, como sendo exterior a mim, bem
como me permite perceber o ser e o nada como fazendo parte de uma
única estrutura. Fornece-me, também, a ideia de que pertencemos a um
mesmo mundo: que não é objetivo ou que haja apenas rivalidade de
mim com outrem, mas algo como um “co-funcionamento”, de forma a
percebermos que “funcionamos como um único corpo” (VI, 264, 200).
Merleau-Ponty (VI, 264, 200) mostra que

o quiasma não é somente troca eu-[outrem] (as


mensagens que recebe, é a mim que chegam, as
mensagens que recebo é a ele que chegam), é
também troca de mim e do mundo, do corpo
fenomenal e do corpo “objetivo”, do que percebe
e do percebido: o que começa com uma coisa
termina com consciência da coisa, o que começa
com “estado de consciência” termina como coisa.

137
“Sobre o nada eu tenho profundidades” – escreve Manoel de Barros (2015, p.
125).
176

A reversibilidade é a “animação interna” do visível, é o lugar


onde podemos vivenciar a expressão no momento em que se faz gesto.
Com ela percebemos que a pintura também está no corpo do pintor e do
espectador, como se eles estivessem infiltrados na obra, bem como a
obra neles. “Em todas suas formas e em todas as partes, a expressão é
sempre uma operação criadora e o expresso é sempre inseparável de um
processo de criação” (MÜLLER, 2001, p. 221).
Lendo um texto, pintando, observando a natureza ou um
quadro, a experiência da expressão se dá de maneira semelhante. Nesse
processo expressivo, há uma passividade como um rastro que não pode
ser alcançado, mas que possibilita a criação. Comenta Shepherdson
(2006, p. 121):

[...] na experiência do olhar, minha percepção é


revelada em uma passividade fundamental – não
uma passividade entendida como o familiar
oposto de “atividade”, mantendo um dualismo
simétrico e binário, mas outra, mais fundamental,
uma passividade mais primordial, na base das
quais ambas são possíveis: passividade e
atividade.

O que aprendemos com Shepherdson, na esteira de Lacan e


Merleau-Ponty, é que a passividade, além de estar presente no
procedimento criativo do artista, também aparece no olhar do
espectador. Esta passividade fundamental atravessa toda e qualquer
experiência humana, quer estejamos conscientes dela ou não. Afinal,
somos passivos ao que dizemos, ao que vemos e ao que fazemos. Desta
forma, não há um pensamento anterior que comanda a ação. “Nos atrás
do pensamento está a verdade que é a do mundo”, afirma Clarice
Lispector (1998, p. 85). Não há uma verdade lógica e linear, mas algo
bruto e selvagem que está presente na atividade artística. Não sendo
lógica e linear, a percepção que o artista experimenta na natureza torna-
se, portanto, praticamente impossível dizê-la ou pintá-la objetivamente.
Tampouco é da ordem do pensamento operativo. É de outro mote. Sua
tarefa, por isso, não pode ser feita de maneira direta, mas indiretamente.
É falando, pintando ou escrevendo o mundo em seu movimento
originário, como se tivesse compondo um mosaico de palavras ou de
cores, que transforma o percebido em uma obra. Obviamente que as
dificuldades são imensas e inúmeras, pois não são apenas as palavras e
os aspectos picturais que devem aparecer, mas todos as nuances que se
177

observa na natureza. Tarefa, diríamos, impossível, pois há algo que


sempre escapa à percepção, ficando à margem daquilo que vemos ou
sentimos. Percebemos, contudo, de alguma forma, que no percebido há
muito mais coisas do que conseguimos captar.
É nesse ínterim entre aquilo que se mostra e que se ausenta, que
aparece o quiasma, o verso e o reverso do olhar. “O quiasma, a
reversibilidade”, nos diz Merleau-Ponty (VI, 312, 238), “é a ideia de que
toda percepção é forrada por uma contrapercepção [...] é ato de duas
faces, não mais se sabe quem fala e quem escuta”. Não apenas isso, a
reversibilidade está presente como algo que circula em torno de seu
próprio eixo: “circularidade falar-escutar, ver-se visto, perceber-se
percebido, (é ela que faz com que nos pareça que a percepção se realiza
nas próprias coisas) – Atividade= passividade” (VI, 312, 238). Aqui,
Merleau-Ponty relaciona a atividade como o outro lado, o avesso da
passividade. Ménasé, afirma também que

Se a passividade habita o movimento do


pensamento, como o mundo habita o corpo, torna-
se compreensível que a verdade de adequação, a
verdade congruente com o definitivo, seja
destituída para ser substituída por uma verdade
emergente marcada pela modalidade da
reversibilidade (MÉNASÉ, 2008, p. 237).

Somente podemos afirmar que a passividade está presente no


movimento do pensamento se considerarmos este na fala, na operação
de expressão, quando ele vai se formando como se não tivesse um norte
pré-definido, de forma bruta e selvagem. Então ele faz-se nas coisas e é
feito por elas, no momento presente, como um todo que se inscreve no
mundo. Já a palavra escrita, se ela for refletida e analisada, ao contrário,
torna-se instituição, é linguagem falada. A linguagem falante, criativa,
se dá de maneira espontânea, como nas poesias de Michaux, Drummond
ou nas de Manoel de Barros138, por exemplo, cuja significação está para

138
O poeta Manoel de Barros (2013, p. 276-277), em Uma didática da
invenção, destaca esta maneira de escrever criativa: “No descomeço era o
verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo./ O delírio do verbo estava no
começo, lá onde/ a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos./ A criança não
sabe que o verbo escutar não funciona/ para cor, mas para som./ Então se a
criança muda a função de um verbo, ele/ delira./ E pois./ Em poesia que é a voz
de poeta, que é a voz de fazer/ nascimentos -/ O verbo tem que pegar delírio”.
178

além da própria palavra em sentido apofântico. A poesia elaborada por


eles, e tantos outros, remetem-nos a um mundo inédito e estranho,
inaugura a própria linguagem e inicia o leitor num outro lugar, fazendo
vibrar seu lado de dentro. Parafraseando Merleau-Ponty (VI, 273, 207):
“as palavras [do poeta] fazem-me falar e pensar porque criam em mim
outro diferente de mim, um afastamento em relação a...”.
Há também as escritas em prosa, onde percebemos semelhante
elaboração de um inédito, cuja criação verificamos, também
espontaneidade e passividade. Ao lermos alguns textos de Clarice
Lispector, havemos de verificar essa nossa afirmação. Em uma nota
introdutória ao livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres139, a
autora diz: “este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de
dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu
sou mais forte do que eu” (LISPECTOR, 1999, p. 9).
No conto O ovo e a galinha, Clarice Lispector (1977, p. 81) fala
da experiência da reversibilidade do olhar: “de manhã na cozinha sobre
a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar”. Além desse olhar que
se dirige ao ovo, este também lança o olhar sobre o vidente: “o ovo me
vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê”
(LISPECTOR, 1977, p. 81), considera a autora. Nesse trecho do texto, a
autora chama a atenção para um olhar não analítico, mas que também,
de alguma forma, mostra que somos olhados pelas coisas.
De maneira semelhante ao escritor, o pintor nos apresenta o
todo indivisível, mostrando que a minha carne é similar à carne das
coisas. “O grânulo da cor, o não-se-quê que anima o contorno” (VI, 256,
193) da pintura de Cézanne, por exemplo, para Merleau-Ponty, é a
própria carne. Esta carnalidade também pode ser verificada na ciência,
“como nas experiências de Michotte140” (VI, 256, 193) em que ele faz o
retângulo rastejar.

139
Não é assombroso o fato de Clarice Lispector (1999, p. 11) iniciar um livro
com uma vírgula, como se a narrativa já estive em curso? Parecendo dar
prosseguimento em uma história, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres se
inicia com “, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada
fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para
deixar almoço e jantar prontos, [...]”. Outro aspecto importante é que o livro
termina com dois pontos, como se história não terminasse ali, tal como o mundo
que é inesgotável...
140
Sobre o interesse de Merleau-Ponty por Albert Michotte, recomendamos o
artigo Visão de causalidade: Merleau-Ponty em Michote, de Lester Embree. Em
um dos trechos de seu artigo, Embree (2007, p. 223) escreve: “É uma das
179

IV

“O pintor vive na fascinação” (OE, 31, 22) em exprimir a sua


relação com o mundo. Isso acontece porque o pintor se enlaça com as
coisas, porque “suas ações mais próprias – os gestos, os traços de que só
ele é capaz, e que serão revelação para os outros, porque não têm as
mesmas carências que ele – parecem-lhe emanar das coisas mesmas,
como o desenho das constelações” (OE, 31, 22). Parece que ele detém
um saber e um imaginário e que os colocará na obra. O pensamento
operatório – cristalizado - considera que sua criação seja uma
comunicação de si com os dados do seu mundo vivido e pensado.
Sabemos, contudo, pelo testemunho de vários pintores, que acontece
algo de estranho e enigmático na elaboração da obra. O pintor, no
entanto, é aquele que percebe que o mundo quer ser expresso. Sobre
isso, afirma Merleau-Ponty:

Entre ele e o visível, os papéis inevitavelmente se


invertem. Por isso tantos pintores disseram que as
coisas os olham, e disse André Marchand na
esteira de Klee: “Numa floresta, várias vezes senti
que não era eu que olhava a floresta. Certos dias,
senti que eram as árvores que me olhavam, que
me falavam [...] Eu estava ali, escutando [...]
Penso que o pintor deve ser traspassado pelo
universo e não querer traspassá-lo [...] espero estar

virtudes exemplares de Merleau-Ponty ter procurado aprender com cientistas


experimentais, principalmente dos psicólogos da tendência gestaltista. Esse
exemplo foi seguido, mais tarde, por colegas com respeito à Ciência Cognitiva,
mas algum deles poderia desejar por mais consideração fenomenológica há
algum tempo, como David Katz em relação à cor e ao tato, por exemplo. E,
apenas a respeito de Michotte, existem títulos promissores após La perception
de la causalité como La perception de la fonction outil (1951), Perception et
causation (1955), e Réflexions sur le rôle de langage dans l’analysis des
organizations perceptives (1959) que poderiam ter sido levados em
consideração. Mas Merleau-Ponty parece se referir claramente apenas a La
perception de la causalité e faz muito bem em Structure et conflits de la
conscience infantile, mas se refere novamente mais significativamente em A
Natureza e em O Visível e o Invisível.” [EMBREE, Lester. Visão de
causalidade: Merleau-Ponty em Michotte. Rev. abordagem gestalt. [online].
2007, vol.13, n.2, p. 222-227].
180

interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez


para surgir” (OE, 31, 22).

Assim, Merleau-Ponty nos mostra a reversibilidade do olhar


experienciada pelo artista em seu processo criativo. Também
conseguimos perceber, em muitos momentos da nossa experiência
cotidiana, que os objetos nos comunicam. Alguns parecem estar
cansados, outros riem de nossas ações, outros, ainda, querem dançar ao
sabor do movimento do vento. Um detalhe importante na citação
merleau-pontyana é a afirmação “pinto talvez para surgir”. Não basta
apenas perceber o verso e o reverso do visível: há que se entrelaçar com
ele de tal forma que haja necessidade da criação da obra para que se
experiencie a liberdade.
Cumpre compreender que na ação perceptiva há uma espécie de
reação-percepção da natureza. Os poetas sentiam isso acontecer e por
diversas vezes expressaram-na em versos. Em um dos belos poemas de
literatura brasileira, Mário Quintana (1997, p. 107) escreveu:

Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Manoel de Barros também descreve esta mútua imbricação entre o


homem e a natureza, cuja abertura se dá de maneira a ter uma melhor
compreensão do mundo perceptivo. Escreve o poeta (BARROS, 2013, p 266):

Quando menino encompridava rios.


Andava devagar e escuro – meio formado em
silêncio.
Queria ver a voz em que uma pedra fale.
Paisagens vadiavam no seu olho.
Seus cantos eram cheios de nascentes.
Pregava-se nas coisas quanto aromas.

“O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos


olha”, escreveu Georges Didi-Hubeman (1998, p. 29). Não apenas isso,
“inelutável porém a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo
que nos olha”. O ato de ver, então, para Didi-Huberman (1998, p. 29), é
um paradoxo que “só se manifesta ao abrir-se em dois”. Podemos
experienciar o paradoxo da visão ao olharmos, por exemplo, uma
181

pintura mostrando o horror da guerra, de Kathe Kollwitz. Mortalidade


infantil, de 1925: nesta imagem, os traços expressam uma pessoa em
estado de tristeza profunda, cuja atitude é de impotência perante a
barbárie humana na guerra. Kollwitz explora a tragédia da perda através
de uma mãe que em desespero segura nas mãos um caixão que faz crer
tratar-se da morte de seu filho. Ao olharmos para essa xilogravura em
preto e branco – o que acentua ainda mais os traços fortes e
contundentes da cena -, entramos em contato com a nossa própria morte.
Com e através dessa pintura, somos levados a pensar no sofrimento que
sentimos e presenciamos diante de alguém que passa por esta tragédia
humana. Afinal, sabemos que um dia iremos morrer e que também
presenciaremos muitos dos nossos familiares e amigos passarem por tal
situação. Este é um fato incontestável, mesmo por aqueles que
acreditam existir vida pós-morte. Não é apenas a nossa própria morte e a
morte de outrem que o quadro faz ver. É, sobretudo, a questão social da
degradação da espécie humana que a obra nos escancara. A mãe que
segura a morte parece querer entregar o sofrimento a nós num
movimento que se desdobra em dois: como se, como espécies da raça
humana, tivéssemos participação neste ato ou, por outro lado, querendo
dividir a emoção arrebatadora que a vida lhe impõe. O drástico contraste
das linhas verticais e horizontais, bem como o branco impresso em um
fundo negro acentuam a ambiguidade que a obra faz ver. O quadro me
olha “porque impõe em mim a imagem impossível de ver daquilo que
me fará o igual e o semelhante desse corpo” (DIDI-HUBEMAN, 1998,
p. 38), que em breve passará por uma experiência similar. Assim, diante
da pintura, eu mesmo caio na angústia que a morte me traz. Talvez seja
por conta disso que preferimos, na maior parte das vezes, obras
coloridas e alegres ao invés de sombrias e tristes. Daquilo que nos causa
angústia queremos nos afastar. De qualquer forma, a pintura nos abre
para um vazio existencial. Ela que nos olha, mostra nossa fragilidade
diante da morte e do sofrimento, lançando-nos “à questão de saber (na
verdade, de não saber) o que vem a ser [nosso141] próprio corpo, entre
sua capacidade de fazer volume” (DIDI-HUBEMAN, 1998, p. 38), e
experienciar a finitude como um horizonte possível da nossa existência.

141
Adaptamos para a primeira pessoa do plural.
182

Imagem 24: Xilogravura Mortalidade infantil (1925), Kathe Kollwitz.

Fonte: STRICKLAND, Carol. Arte comentada.. Trad. Ângela Lobo de Andrade.


Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 142.

Poderemos tentar preencher os buracos, “saturar a angústia que


se abre em nós diante da [morte], e por isso mesmo nos abre em dois”
(DIDI-HUBEMAN, 1998,, p. 38). Seria isso possível? Será que podemos
resolver o problema existencial da angústia que nos atravessa
constantemente? “Ora, saturar a angústia não consiste senão em
recalcar”, afirma Didi-Huberman
Huberman (1998, p. 38). De alguma forma, ela se
apresenta escancarada
cancarada na obra. Ou melhor, a obra faz ver a nossa própria
angústia.
Em diferentes épocas, os pintores nos apresentaram objetos
estranhos em suas pinturas, cujos emblemas nos fazem entrar em
contato com a finitude de nossa existência. O objeto, por excelência,
exce
utilizado por eles para ilustrar que um dia também iremos morrer é,
sobretudo, a caveira. Este símbolo nos adverte que tudo o que existe
neste mundo é passageiro e fugaz. Um dos exemplos da utilização da
caveira para mostrar a mortalidade humana é a pintura As vaidades da
vida humana142, de Harmen Steenwyck. Esta pintura do mestre holandês
do século XVII é “cheia de referências à morte ao vazio da vida, e
quanto mais a analisamos, mais ela parece um sermão visual baseado

142
Imagem em anexo.
183

nos ensinamentos do livro do Eclesiastes, do Velho Testamento”


(CUMMING, 2010, p. 52). A pintura de Steenwyck apresenta vários
objetos perturbadores que escancaram que o poder, a riqueza e as
vaidades da vida humana um dia acabarão, pois, de fato, todos iremos
deixar este mundo. Atualmente, pode ser que não olhemos o quadro com
tamanha seriedade e estranheza. Na época, todavia, em que fora pintado,
a sociedade holandesa passava por uma alta mortalidade infantil em que
“morte por males que consideramos triviais e tratamento médico
rudimentar para combater as doenças faziam da caveira de dentes à
mostra uma realidade sempre presente” (DIDI-HUBEMAN, 1998, p.
38).
O que nos interessa, aqui, entretanto, não são as significações
advindas da obra, mas perceber que ao olharmos determinada pintura –
ou a natureza – sentimo-nos olhados por ela também. Entre esse olhar
do vidente e do visível, há algo que escapa da nossa percepção e do
nosso entendimento. Ou seja, não conseguimos abarcar todas as nuances
e situações que permeiam o ato ambíguo do olhar.

Sobre a questão da reversibilidade do olhar e dos


desdobramentos a partir da escrita inacabada de Merleau-Ponty, Jacques
Lacan afirma haver algo de estranho entre ver e ser visto: é como se ao
perceber que o outro me vê, eu me sentisse deslocado do meu centro de
visão, arrebatando-me para um outro lugar, um entre-mundo no qual eu
descubro uma passividade a outrem, “um horizonte de invisibilidade”
(MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 19), uma esquize, uma “falta”.
Para o psicanalista Jacques-Alain Miller (p. 289), “no campo escópico
lacaniano, não se trata apenas de que antes que eu vejo as coisas, elas se
veem a si mesmas, [...] mas sim, que ‘as coisas me olham’. Aqui, em
vez de um acordo, de uma solicitação e de uma resposta, há uma esquize
entre o que vê e o olhado”. Na concepção de Miller (p. 290), Merleau-
Ponty desenvolve uma teoria da percepção de “celebração” como “co-
pertencimento do mundo e do ser no mundo”, que é desdobrada no
visível e no invisível, e, de certo modo, é “uma adaptação ontológica em
que se desdobram todos os temas da reversibilidade entre fora e dentro,
pondo em questão os próprios termos de envelopamento,
entrelaçamento, troca e quiasma” (MILLER, 2005, p. 290).
O comentador Marcos Müller-Granzotto faz uma reflexão que
visa esclarecer o tema da reversibilidade em Merleau-Ponty:
184

[...] a reversibilidade é muito mais (ou muito


menos) que o consórcio entre irmãos. Trata-se da
paradoxal vivência de um negativo, de uma
ausência, de um duplo errante. Não posso
localizar esse negativo em lugar algum, nem
dentro, nem fora, nem à frente ou atrás. Ainda
assim posso experimentá-lo como uma sorte de
descentramento, decaída do meu ser em um
domínio de generalidade onde não há mais
centro” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2008a, p. 12).

Uma das melhores maneiras de percebermos o “negativo”, a


“ausência” ou o “duplo errante”, é olhando uma obra de arte. Se de um
lado não podemos “localizar” essas vivências, de outro, podemos
experimentá-las, entrelaçando-nos com experiências de criação. No seio
da invisibilidade, a partir do quadro, posso perceber, em certo sentido, a
presença de uma esquize. A arte não busca a reflexão em primeira
instância, mas, antes de tudo, experienciar o novo, o inédito, o
inaugural. Também lida com o que é estranho, que não se deixa
objetivar, com o “selvagem”. A obra de arte, mais além de imprimir a
imagem de um mundo percebido e pensado, mostra aquilo que faz
mancha, quebrando, vazando e descentrando o nosso mundo ordenado e
instituído.

4.2 A esquize do olho e do olhar na pintura

Jacques Lacan, no Seminário em que se dedica a discutir os


quatro conceitos fundamentais da psicanálise – o inconsciente, a
repetição, a transferência e a pulsão – interrompe a primeira sessão para
tratar da esquize entre o olho e o olhar. Afirma que como livre
perseguidor do caminho da verdade, o faz por vias que lhe pareçam
melhor, como um tecelão que usa sua “agulha curva através da
tapeçaria” (LACAN, 2008, p. 74). Desse modo, não precisa seguir um
caminho a priori delineado, mas que vai se construindo à medida em
que vai prosseguindo. Trata-se de estilo que se aventura por terras
desconhecidas e inaugurais. Ademais, não poderíamos falar de
progresso e descobertas se lidássemos apenas com saberes já conhecidos
e cristalizados. Viveríamos em círculos tautológicos. Nesse contexto,
admite que não é por mero acaso que o livro O visível e o invisível lhe
185

chegue às mãos. Ao retomar este texto, editado por Claude Lefort, em


1964, alguns anos após a morte de Merleau-Ponty, Lacan (2008, p. 75)
comenta:

Esse O visível e o invisível pode nos indicar o


momento de chegada da tradição filosófica – essa
tradição que começa em Platão com a promoção
da ideia, da qual podemos dizer que, por um ponto
de partida tomado num mundo estético, ela se
determina por um fio dado ao ser como soberano,
bem atingido assim uma beleza que é também seu
limite. E não é nada que Maurice Merleau-Ponty
reconhece no olho o seu reitor.

Prossegue Lacan (2008, p. 75): “Nessa obra, ao mesmo tempo


terminal e inauguradora, vocês descobrirão uma lembrança e um passo à
frente na via do que tinha primeiro formulado na Fenomenologia da
percepção”. Desta forma, observamos que o psicanalista afirma que
Merleau-Ponty em sua obra inacabada – O visível e o invisível –faz uma
recapitulação dos assuntos abordados anteriormente e, mais do que isso,
dá um passo adiante: reformula o conceito de olhar. É forçando os
limites da própria fenomenologia, proposta no livro de Merleau-Ponty
sobre a percepção, que Lacan falará de um olhar mais alargado, não
ficando apenas no campo do visual, tal como pensada pela psicologia ou
biologia tradicional. A fenomenologia mostrou “não apenas os limites
do olho do sujeito, mas toda a sua espera, seu movimento, sua tomada,
sua emoção muscular e também visceral” (LACAN, 2008, p. 75). O
olho, nesse sentido, não apenas vê o visível, ele é “apenas uma metáfora
de algo que melhor chamarei”, diz Lacan, “o empuxo daquele que vê –
algo de anterior ao seu olho [...]” (LACAN, 2008, p. 75). Trata-se, pois,
“de discernir, pelas vias do caminho que ele nos indica” da
“preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em minha
existência sou olhado de toda parte” (LACAN, 2008, p. 75-6). Lacan
acredita que Merleau-Ponty chegou a um ponto original na filosofia,
qual seja: a reviravolta ontológica ao mostrar a reversibilidade do olhar.
Mesmo fazendo um elogio à obra de seu amigo filósofo, Lacan (2008, p.
76) traça seu objetivo:

Mas não é entre o invisível e o visível que nós


temos que passar. A esquize que nos interessa não
é a distância que se prende ao fato de haver
formas impostas pelo mundo e para as quais a
186

intencionalidade da experiência fenomenológica


nos dirige, donde os limites que encontramos na
experiência do visível. O olhar só se nos apresenta
na forma de uma estranha contingência, simbólica
do que encontramos no horizonte e como ponto de
chegada de nossa experiência, isto é, a falta
constitutiva da angústia da “castração” (LACAN,
2008, p. 76).

E em seguida toca no cerne da questão: “O olho e o olhar, esta é


para nós a esquize na qual se manifesta a pulsão ao nível do campo
escópico” (LACAN, 2008, p. 76). Esta esquize apontada por Lacan, e
explicada via o quadro de Holbein – o qual abordaremos na sequência
de nossa investigação – funciona como mancha ou como algo estranho
que vem “habitar” a reversibilidade do olhar. É como se entre ver e ser
visto, alguma coisa arrebatasse o espectador, provocando-lhe uma falta e
causando-lhe desejos.
Shepherdson (2006), em um artigo dedicado a avaliar a leitura
lacaniana de O visível e o invisível, observa três momentos na análise
lacaniana sobre o filósofo: primeiro: a recapitulação dos temas
abordados na Fenomenologia da Percepção; segundo: a introdução da
noção de invisibilidade no visível; e terceiro: Lacan assegura que a obra
de Merleau-Ponty O visível e o invisível é deficiente e que lhe cabe
aprofundar esta teoria acerca do olhar. Observemos o comentário do
psicanalista:

[...] vocês verão que é nesse ponto que ele prefere


recuar para nos propor retornar às fontes da
intuição concernente ao visível e ao invisível, de
voltar ao que está antes de qualquer reflexão,
tética ou não-tética, a fim de discernir o
surgimento da visão em si mesma. Trata-se para
ele de restaurar [...] de reconstituir a via pela qual
pôde surgir, não do corpo, mas de algo que ele
chama a carne do mundo, o ponto original da
visão (LACAN, 2008, p. 84).

O psicanalista afirma que Merleau-Ponty designara o ponto de


onde nasce a visão como sendo a reversibilidade do olhar. Ou seja, entre
o visível e o invisível, designada como carne do mundo, Merleau-Ponty
restabeleceria o ponto original da visão. Sobre isso comenta Müller-
Granzotto (2012c, p. 32): “em momento algum, com a noção de carne
187

como ser de indivisão, Merleau-Ponty propõe um ponto original da


visão, como se toda vidência estivesse aí assegurada enquanto
identidade”143. Tratemos, pois, de investigar a questão dessa esquize
entre o olho e o olhar, mais precisamente por meio do conceito de olhar
proposto pelo psicanalista.
O que seria então o olhar para Lacan?

Em nossa relação às coisas, tal como constituída


pela via da visão e ordenada nas figuras da
representação, algo escorrega, passa, se transmite,
de piso para piso, para ser sempre nisso em certo
grau eludido – é isso que se chama o olhar
(LACAN, 2008, p. 76).

Lacan desloca o olhar que antes estava do lado do sujeito para


passar para o lado do objeto. Assim, o olhar se revela à nossa visão.
Mais do que percebermos, somos atravessados por um olhar que se
mostra. Em nossa habitual interação com o mundo das coisas, algo
sempre escapa ao nosso entendimento. De certa forma, não era essa a
noção merleau-pontyana de quiasma entre o vidente e o visível? O
vidente sabe que o olho não dá conta de tudo que percebe e mais do que
isso, ele próprio é um vidente-visível.

II

Lacan, ao deslocar o olhar do sujeito para o objeto, não quer


dizer que ele seja uma propriedade das coisas, “mas é antes algo
invisível, algo que não pode ser visto, mas que no entanto vem do
mundo das coisas, algo que na linguagem de Lacan, vem do Outro,
precedendo minha visão e solicitando-a a seguir, ‘que me [a mim e a
minha visão] impõe’” (SHEPHERDSON, 2006, p. 115-116). Dessa
forma, em relação ao olhar, somos passivos. “O olhar é algo que eu
estou assujeitado” (SHEPHERDSON, 2006, p. 116). É nesse sentido
que Lacan falará do olhar como objeto a.
Ao tratar da função escópica, Lacan traz à tona uma pintura de
Hans Holbein. Sua obra Os embaixadores, mais do que representar uma

143
Para um aprofundamento no assunto, recomendamos a leitura do artigo
Esquize e pulsão: o olhar segundo Merleau-Ponty: (MÜLLER-GRANZOTTO,
Marcos José. “Esquize e pulsão: o olhar segundo Merleau-Ponty”. In: Merleau-
Ponty em João Pessoa. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2012c.)
188

cena do século XVI, retrata um objeto estranho que se impõe


obliquamente na parte inferior da tela atravessando-a, como se esse
detalhe tivesse sido pintado posteriormente à obra. Em certo sentido,
parece não fazer parte dela. O quadro é construído à maneira clássica:
“os dois personagens estão hirtos, duros dentro de seus ornamentos de
ostentação. Entre eles, toda uma série de objetos que figuram, na pintura
da época, os símbolos da vanitas144” (LACAN, 2008, p. 87). No período
em que a obra foi elaborada – 1533 – a Europa passava por uma grande
turbulência. O rei Henrique VIII apaixonara-se por uma mulher que não
era a sua esposa: Ana Bolena. O rei casou-se com ela sem a permissão
do Papa Clemente VII. O divórcio, na época, era algo proibido pela
Igreja Católica. O Papa então, secretamente, enviou como embaixador o
bispo Georges de Selve, postado à direita, para averiguar a situação em
Londres. À esquerda, está Jean de Dinteville, enviado do rei da França,
Francisco I, para que o mantivesse informado. “A composição é como
que um universo de relações harmoniosas, cores soberbas, figuras
humanas imponentes e agudeza psicológica”; também há “efeitos
trompe l’oeil desconcertantes, objetividade de natureza morta e
referências simbólicas encobertas” (WOLF, 2005, p. 71). De fato,
Holbein pensou nos pequenos detalhes do duplo retrato: a idade de
Georges de selve – 24 anos - está escrita no livro que segura o braço do
embaixador e a de Jean de Dinteville foi impressa no punhal em que sua
mão está repousada – 29 anos. Na estante, há um livro de aritmética
aberto numa página de divisão: provavelmente Holbein fazia referência
a divisão em que a Europa estava passando. O alaúde foi representado
com uma corda partida, mostrando a fragilidade da situação. O hinário
luterano está aberto e permite ver que os dois hinos impressos são
cantados tanto pela Igreja Alemã145, quanto pela Católica. Outros
objetos que aparecem mostram aspectos religiosos e científicos da
época.

144
“Vanitas: (latim: ‘vaidade’). Pintura alegórica, frequentemente representando
um crânio, na qual os objetos representados destinam-se, no todo ou em parte, a
fazer lembrar a efemeridade (‘vaidade’) da vida humana” (BECKETT, 2002, p.
390).
145
Percebemos, com o hinário luterano, que a Igreja Católica já havia tido uma
divisão: luteranos e católicos.
189

Imagem 25: Pintura Os embaixadores (1533), Hans Holbein.

Fonte: Disponível em: <http://ghiorzi.org/anamorfo.htm> Acesso em 21 set


2014.
190

Somente ao prestarmos mais atenção nela – senão este detalhe


nos passaria despercebido – é que vemos o rasgo obscuro que perpassa o
plano inferior do quadro e que rompe a plasticidade da obra. Holbein
parece querer mostrar uma estranha mancha voadora que estraga a
composição renascentista. O que ele queria dizer através deste objeto
pintado no quadro? O pintor fez uso da técnica da anamorfose146, que,
ao olharmos de viés para o quadro, veremos uma caveira147
aterrorizante148. Esta distorção enorme na pintura prefigura algo mais do
que a lembrança da morte. Holbein poderia estar questionando a
realidade: se olharmos o quadro de frente, a caveira parecerá distorcida,
tal qual uma mancha, porém, se o observarmos obliquamente – em
diagonal, postando-nos lateralmente à obra – o que parecerá distorcido
será o restante da imagem, e a caveira parecerá visível. Desta forma, o
que é a realidade? Depende do ponto de vista ao qual olhamos? O que a
mancha representa?
Mesmo que para alguns estudiosos a mancha postada no chão
do quadro seja a lembrança da morte, e para outros uma espécie de
brincadeira com a assinatura149 do pintor, a obra produziu algumas

146
Anamorfose é uma “pintura ou desenho executados de modo a produzir uma
imagem distorcida do objeto representado, o qual porém, quando visto de certo
ângulo ou refletido num espelho curvo, revela-se na sua verdadeira proporção;
tal técnica tem o objetivo de enganar ou divertir. Os primeiros exemplos de
anamorfose figuram nos cadernos de Leonardo da Vinci, e o termo aparece pela
primeira vez no século XVII” (CHILVERS, 2001, p. 18).
147
O que torna esse detalhe interessante e enigmático na obra de Holbein é que
não há registros de pintura de caveiras em outros quadros do pintor.
148
“Na contemplação está portanto em jogo, mais do que o belo ou alguma
satisfação pulsional, a apresentação de algo que abala, provoca, perturba. À
maneia do quadro de Hans Holbein Os Embaixadores, de 1533, que Lacan
apresenta em seu seminário 11: os dois personagens estão devidamente
paramentados, acompanhados dos mais sublimes símbolos da arte e da ciência
de seu tempo, e diante deles surge um estranho objeto alongado de aspecto
fálico. Distancie-se um pouco da obra, saia da posição em que ela certamente
lhe cativou e faça como se estivesse indo embora, dê então uma última olhadela,
de viés, recomenda Lacan – você verá então este objeto vago se transformar em
uma horrenda caveira. É graças à técnica da anamorfose, ou seja, do uso
invertido das leis da perspectiva, que tal fenômeno é possível” (RIVERA, 2005,
p. 44-5).
149
“Alguns autores interpretaram este tema comum uma assinatura enigmática:
Hohles Gebein ou Holbein” (WOLF, 2005, p. 73). “Hohles Gebein”, em alemão
significa “Osso vazio”. No caso, a caveira é, de fato, um osso vazio.
191

significações ao longo dos séculos. Sobre este detalhe, assinala Lacan


(2008, p. 88):

[...] Holbein nos torna aqui visível algo que não é


outra coisa senão o sujeito como nadificado –
nadificado numa forma que é, falando
propriamente, a encarnação imajada do menos-fi
[(- φ)] da castração, a qual centra para nós toda a
organização dos desejos através do quadro das
pulsões fundamentais150.

Holbein nos instala num solo inseguro, que nos abala, que nos
descentraliza, inserindo-nos num “lugar” onde precisamos nos
reelaborar e nos atualizar constantemente. A estranheza nos incomoda.
Ela mostra nossas faltas. Repudiemos todos os corpos estranhos que nos
atacam e que poluem a paisagem em nosso campo visual. Nossa
educação artística, imposta a partir do Renascimento, distorceu todos os
nossos conceitos e experiências, e assim, passamos a rejeitar tudo que
não é belo e bem organizado. Aquilo que é estranho nos faz entrar em
contato com as nossas frustrações, nosso dilemas, nossas angústias.
Queremos, ao contrário, o olhar angelical, amoroso e fraterno. Tememos
o desagradável, o triste, o trágico. Isso nos atemoriza. Eles estão
presentes em expressivas quantidades em nossa vida e deles queremos
nos afastar. O que Lacan nos mostra com o quadro de Holbein, todavia,
é que em nossa vida não há apenas o belo e o agradável, mas também
àquilo que nos causa estranheza e repulsa. Os embaixadores evidencia
nossa relação com o desejo enigmático presente como nadificação,
como algo que se esvai, que escapa de nossa visão ao tentarmos capturar
toda a imagem do quadro, refletindo nossas faltas, nosso própria nada.
Sobre a obra, o psicanalista afirma: “Esse quadro não é nada
mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar. Em qualquer
quadro que seja, é precisamente ao procurar o olhar em cada um de seus
pontos que vocês o verão desaparecer” (LACAN, 2008, p. 91). Assim, o

150
“[...] Lacan nos surpreende com uma inusitada aproximação, entre as
análises merleau-pontyanas sobre o olhar (em sua diferença em relação ao olho)
e as diferentes formas de pulsão tal como Freud as havia descrito nos três
ensaios sobre a sexualidade (1905d), precisamente, pulsões oral, anal e fálica,
agregando a essa lista outras duas formas, a saber, a pulsão da voz e a pulsão
escópica, esta última, por sua vez, justamente ilustrada a partir das descrições
merleau-pontyanas” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 25).
192

que pertence ao olhar escapa do empreendimento daquilo que a visão


ordinária vê. Essa “vitória” do olhar sobre o olho, pois ver é função do
olho e o olhar é tido como objeto da função escópica, “tem uma
estrutura de reviravolta, além de ser considerado como um olhar
fendido, rasurado e manchado em razão da esquize, da fenda entre o
olho e o olhar”, ele “como objeto a151 em lugar do Outro, que é ponto da
falta, da angústia e do estranhamento” (GUIMARÃES, 1995, p. 105).
Desta forma, o olhar deixa de ser uma mera atitude, um ponto de vista,
uma maneira de ler a imagem, para ser um elemento, algo estranho, e
que é objeto da pulsão escópica. Assim, entre o sujeito e a imagem há o
olhar, há o quiasma, há o que não se deixa capturar.
O artista moderno trabalha nos labirintos, no subsolo do mundo
visível e social. É operando com restos, rastros e vestígios, que lhe
possibilita deixar obras inacabadas, permitindo, na contemporaneidade,
mostrar o avesso do mundo. O avesso é o outro lado, o invisível, o
enigmático, a profundidade. É por trabalhar nesse avesso que o olho
pode existir “em estado selvagem”, como afirmou André Breton (1999,
p. 414), em Surrealismo e Pintura. Desse modo, a arte, mais do que
representar os objetos do mundo visual, permite criar obras tal qual um
demiurgo: afinal, “um bom quadro, fiel e idêntico ao sonho que o
engendrou, deve ser produzido como um mundo” (BAUDELAIRE,
2004, p. 121). A arte permite perceber aquilo que a visão profana não
consegue ver, pois há coisas que nos escorregam, nos escapam152. Esse
olhar é o que funciona como rachadura, como mancha, pontos na
imagem que nos incomodam, que perturbam nossa visão, turvando-a.
Diante de uma obra, somos invadidos por um olhar que mostra nossas
“faltas” – mostra nossas brechas, nossos dilemas. Somos tão
acostumados a crer em um mundo em que as coisas se apresentem de
frente e rigorosamente ordenadas, como se houvesse a possibilidade de
um “lugar” em que poderíamos sobrevoá-lo e que dominaríamos todos
os seus aspectos, como se de alguma forma, por exemplo, pudéssemos
olhar todas as faces de um cubo, e bem o sabemos, não conseguimos,
pois algumas faces são subtraídas momentaneamente do nosso campo
visual, que no momento em que alguma coisa nos faz sair de nossa

151
Itálico nosso.
152
“Assim, todos os mestres avançam até ao recinto reservado do Inconhecível.
Alguns deles batem lamentavelmente ali a cabeça; outros cuja imaginação é
mais ridente, creem ouvir por trás do muro os cantos de melodiosos pássaros
que povoam o pomar secreto” (RODIN, 2015, p. 46).
193

situação acomodada e cristalizada, ficamos desnorteados. Se há um


texto em que as margens são centradas, tal como um objeto pintado à
maneira clássica, e se encontrarmos algum parágrafo que fuja ao padrão,
e principalmente, se somos professores, vamos marcando essas partes
como se fossem “erradas”. Obviamente que há padrões e convenções de
como se deve escrever determinado estudo científico e filosófico e
devemos nos guiar por eles se quisermos a aprovação. A linguagem
conquistadora e artística, entretanto, permite ir além: você pode subtrair
uma nota de rodapé, desalinhar um parágrafo, modificar a fonte das
palavras... O leitor atento perceberá que alguns equívocos são realizados
com o objetivo de gerar uma esquize, um incômodo, provocando um
descentramento, instalando uma falta.
A esquize da qual fala Lacan está presente em obras do pintor
El Greco, como Laocoonte153, por exemplo, em que aparece um corpo
de mulher possuindo duas cabeças. Esse detalhe é destoante de todo
quadro, pois as outras figuras são possuidoras de uma única cabeça, dois
braços e duas pernas. Talvez o corpo tenha sido escondido pelo pintor,
como que estando por detrás do outro, mas, mesmo assim, aparece
estranhamente ao olhar do espectador. Num primeiro momento, somos
levados a olhar um ser disforme, tal como aquelas crianças que nascem
com “defeitos congênitos”. Percebemos a esquize, de certa forma,
também nas imagens construídas pelos surrealistas. Estes, ao pintar
objetos, fazem-no sempre a partir do mundo vidente-visível; entretanto,
vão além do que os olhos veem: pintam “sonhos”. “Os sonhos de Goya
equivalem às suas observações” disse o pintor surrealista André Masson
(1999, p. 444). Tanto a pintura dos surrealistas, quanto a afirmação de
Masson, levam-nos a entender que a pintura, mesmo aquelas feitas a
partir da imaginação, são expressões do mundo natural. Tudo aquilo que
vai na contramão do mundo natural, rejeitamos. No entanto, aquilo que
mexe com nossas faltas e desejos também nos aprisiona. Sentimo-nos
atraídos por situações que nos fazem entrar em contato com aquilo que
nos faz falta. A esquize não está na forma ou no conteúdo, mas no que
ultrapassa os limites do visível: que se esconde, que difere, que se
insinua no avesso. Não sendo forma ou conteúdo apenas, o mictório de
Duchamp154, por exemplo, não é a esquize. Afinal, “a arte não é o

153
Imagem no final da subdivisão deste tópico.
154
“Duchamp estabelece uma convenção que nos permite, como espectadores,
fazer coisas com as pinturas que não poderiam ter sido feitas antes”
(NEHAMAS, 1995, p. 350).
194

mictório,
io, é o gesto que o coloca num museu” (COLI, 1988, p. 118). O
gesto de colocar algo que consideramos sujo nos perturba, faz-nos
faz
pensar, possui significações estranhas, embaraça nossa concepção de
arte e enleia nossa visão racional155. Afinal de contas, considerar
consi um
mictório como sendo “fonte” contraria nossas convenções e convicções
do que seja limpo, saudável e aceitável: inverter a sua função causará
nojo e, assim, o repelimos. Isso faz lembrar toda a questão da adoração
de Glauco Mattoso156 pelo pé: para ele o chulé, e todas as “impurezas”
advindas deste membro corporal, não são esquize, só o serão s para
aqueles que este tipo de situação cause mancha, estranhamento e
repulsa.

Imagem 26: “Fonte” (1917), Marchel Duchamp.

Fonte: Fonte: STRICKLAND, Carol. Arte comentada.. Trad. Ângela Lobo de


Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 142.

155
“Pois o urinol também diria o que, segundo Lacan em seu Seminário 11, o
pintor falaria ao contemplador: ‘Queres olhar? Pois bem, então veja isso!’ Esse
algo que é aí dado ao olho comporta um abandono do olhar como um guerreiro
deporia suas armas. Entre os projetos de Duchamp, em suas notas, está o de d
‘fazer alguma coisa que os olhos não possam suportar’” (RIVERA, 2005, p. 50).
156
Não nos cabe aqui aprofundar o assunto sobre a relação que Glauco Mattoso
tinha com a questão do gosto pelos pés e pelas impurezas advindas destes, mas
mostrar que para a grande
ande parte da sociedade esse fato é tipo como esquize, pois
mostra-nos
nos nossas faltas, nossas convenções, ou quem sabe nossos desejos
profundos e escondidos. Se há um interesse sobre o tema, recomendamos a
leitura da tese de doutorado de SILVA, Maria Aparecida ida Leite Holthausen da:
O des-curso cínico: a poética de Glauco Mattoso.
195
196

Pensamos, por outro lado, naquilo que se esconde na obra e que


historiadores e críticos da arte encontram como significações. Eis alguns
exemplos: a pesquisa feita pelo médico brasileiro Gilson Barreto a
respeito da pintura de Michelangelo no teto da Capela
Sistina157: as analogias da obra com os órgãos do corpo humano, se de
fato são verdadeiras, podem ser consideradas uma forma de esquize? As
investigações psicanalistas do manto158 que faz ver um abutre159 no
quadro Santa Ana, A virgem e a criança, de Leonardo da Vinci, também
podem ser analisadas segundo o critério de uma esquize do olho e do
olhar? No primeiro caso, a obra de Michelangelo produziu significações
para além daquilo que o olhar natural pode ver. É somente investigando
e adentrando para o universo pictural, por meio de análises
reflexionantes, que a obra suscitou (ou não?) novas maneiras de ver. Se
Michelangelo pensara nos órgãos humanos para construir suas figuras,
então teve bom êxito. Se esta relação foi estabelecida e
aparece ao acaso na obra, então até mesmo o autor ficaria surpreso com
tamanha engenhosidade. De toda sorte, uma obra pode apresentar signos
além daqueles pensados pelos próprios pintores. Diante da expressão, o
artista é atravessado por uma espontaneidade criadora: há inéditos e
impensados que nem mesmo ele se dá conta que a obra possui ou faz
ver. No segundo caso, todas as análises que fizeram a partir da obra de
Leonardo – como por exemplo, Freud, ao avaliar um fragmento da
infância do pintor, julgou-o como uma relação de felação ou da ausência
do amor materno – só assim o fizeram, por retomar a obra a partir dos
dados da vida do artista. Se isso fosse verdade, teríamos que investigar a

157
O médico brasileiro Gilson Barreto verificou que algumas imagens pintadas
por Michelangelo contidas na Capela Sistina tinham semelhanças com os órgãos
do corpo humano. Assim, constatou ele que o autor queria mostrar algo além da
imagem representativa. Para verificar melhor esta ideia ver: (BARRETO, 2004).
158
“Mesmo que o manto de Santa Ana seja um abutre, mesmo que admitamos
que, enquanto Da Vinci o pintava como manto, um segundo Da Vinci dentro de
Da Vinci, de cabeça inclinada, decifrava-o como abutre à moda de um leitor de
charadas (afinal de contas, não é impossível: há na vida de Da Vinci, um gosto
pela mistificação assustadora que bem lhe poderia inspirar o engaste de seus
monstros numa obra de arte) – ninguém falaria mais desse abutre se o quadro
não tivesse um outro sentido” (S, 102-103, 95).
159
Para um esclarecimento melhor sobre a relação entre a vida e a obra de arte,
especialmente a de Leonardo da Vinci e o quadro Santa Ana a virgem e a
criança, recomendamos ler nossa dissertação de mestrado: Merleau-Ponty
acerca da pintura.
197

vida do artista para podermos entender suas obras. Obviamente, segundo


Merleau-Ponty, que os dados da vida do pintor estão presentes na
pintura, tal como as tintas e as pinceladas, mas a obra não se resume à
vida dele. Tampouco, sua vida se restringe às obras. Uma e outra se
entrelaçam, mas algo sempre escapa a esta relação. De alguma forma,
um inesperado vem “habitar” o processo de expressão, fazendo com que
a obra saia dos limites imaginados pelo autor. Tal como um filme, uma
obra (quadro) não é para ser pensada, mas percebida, pois “a explicação
só leva em conta detalhes, quando muito, materiais. Mesmo admitindo-
se que o pintor gosta de manejar as cores, o escultor a argila, porque é
um ‘anal’ – isso nem sempre nos explica o que é pintar ou esculpir” (S,
103, 96). O que é importante para nós, aqui, é observar que Leonardo
fez dos dados de sua vida uma criação.
A esquize aparece como uma falta e que nos põe a criar. Para
alguns espectadores, as obras de Michelangelo e Leonardo perturbam a
visão e lhes causa uma inquietação. Contudo, a esquize que seus
quadros faz aparecer só se mostra após sabermos dos dados apontados
pelos comentadores.

Imagem 29: Pintura Laocoonte (1610-4), El Greco.

Fonte: Disponível: < http://www.artehistoria.com/v2/obras/1737.htm> Acesso


03 mai.2015.
198

Imagens 30 e 31: Pintura A criação de Adão (1508-12), Michelângelo; Pintura


Santa Ana, a virgem e a criança (1508-13), Leonardo da Vinci.

Fonte: Disponível em: <http://www.zona33.tk/2013/08/10-pinturas-famosas-


com-codigos-ocultos.html> Acesso 03 mai. 2015.

III

Segundo Lacan (2008, p. 86), “De todos os objetos nos quais o


sujeito pode reconhecer a dependência em que está no registro do
desejo, o olhar se especifica como inapreensível”. Sendo inapreensível
também dizemos que é desconhecido. À medida em que se torna
familiar ao nosso mundo, deixa de ser esquize e provocar desejo. Assim,
a pintura, qual outrem, “desorganiza o campo da percepção. É que o
sujeito em causa não é o da consciência reflexiva, mas o do desejo”
(LACAN, 2008, p. 91).
Em seu artigo denominado A trama do olhar, Edilene Freire de
Queiroz discute a função escópica lacaniana, mais precisamente no que
diz respeito à pulsão do olhar como algo que antecipa a organização do
eu. O olhar se põe como o primeiro objeto de desejo e está presente na
relação diária entre a mãe e o bebê. Já no resumo, a autora coloca que
“antes de a criança ser capaz de falar, ela vê e integra as impressões
apreendidas na relação com o Outro” (QUEIROZ, 2005, p. 89). Não
199

apenas isso, o olhar da criança ultrapassa o olhar racional do adulto.


Segue Edilene:

A criança é capaz de olhar para além do


visível. Na obra de Saint-Exupéry, por
exemplo, o pequeno príncipe consegue
ver o elefante na barriga da jiboia,
porque ele olha para além do visível. Do
mesmo modo, no conto de Anderson,
também é a criança que consegue
enxergar a nudez do rei, para além do
dito da roupa nova do rei. A criança, tal
qual um voyeur, foi capaz de ver o que
se escondia por detrás da representação
(QUEIROZ, 2005, p. 91).

Qual seria basicamente a diferença entre o olhar da criança e do


adulto? A nosso ver – bem como o diferenciamos no capítulo anterior –
o olhar do adulto se funda em um “pensamento de ver”. Ele é lógico,
dedutivo e, portanto, não adentra o desconhecido. Tal como a
perspectiva planimétrica que representa uma paisagem em sua
estabilidade formal, o olhar do adulto tenta exorcizar todos os aspectos
sombrios que se põem a sua frente. A criança, ao contrário, joga-se na
experiência, sem medir as consequências. O artista vive a sua vida tal
qual uma criança: vivendo de maneira mais espontânea, pode, mais
facilmente, chegar “à ressonância interior das coisas160” (KANDINSKY,
1999, p. 167).

160
“A criança desconhece a noção de funcionalidade prática, visto que observa
todas as coisas com olhos que não estão habituados a elas e ainda possui a
evidente capacidade de registrar a coisa tal como ela é. A noção de
funcionalidade prática só começa a ser adquirida posterior e gradativamente,
através de muitas experiências, em geral desagradáveis. Assim, no desenho
infantil, a ressonância interior do objeto se revela, sem exceção,
espontaneamente. Os adultos, sobretudo os professores, esforçam-se por impor
à criança o senso de funcionalidade prática e criticam o desenho infantil
exatamente a partir deste ponto de vista superficial: ‘o homem que você
desenhou não pode andar porque só tem uma perna’, ‘não se pode sentar nesta
cadeira porque ela é torta’, etc. A criança ri de si mesma. Mas deveria chorar. A
criança talentosa, porém, além da capacidade de eliminar o que é periférico, tem
ainda o poder de vestir o interior restante com uma forma através da qual ele se
200

“A criança compreende muito além do que sabe dizer”, afirma


Merleau-Ponty (VI, 28-29, 24), “responde muito além do que poderia
definir, e, aliás, com o adulto, as coisas não se passam de modo
diferente”. Se, de fato, o adulto, se colocasse no berço das coisas, de
onde brotam os pensamentos, então saberia compreender muito mais do
que sua vã razão acredita saber. Dizem certos pintores, como Picasso e
Renoir, que desejavam pintar com a espontaneidade da criança, com o
olhar infantil, sem a carga pesada e reflexiva do mundo cultural
cristalizado pelos homens.
Numa obra de arte, devemos olhar aquilo que está por detrás da
própria imagem. Ou seja, ir além da imagem. Por vários momentos161,
Merleau-Ponty fala do enigma da visão em que o olho vê muito mais do
que aquilo que conseguimos expressar em palavras ou qualquer outra
forma de expressão162. Ele percebe o invisível que se anuncia na
visibilidade. De toda sorte, o olhar, tal como objeto a, simboliza uma
falta. Sobre isso, assinala Lacan (2008, p. 80):

Na medida em que o olhar, enquanto objeto a,


pode vir a simbolizar a falta central expressa no
fenômeno da castração, e que ele é objeto a
reduzido, por sua natureza, a uma função
puntiforme, evanescente – ele deixa o sujeito na
ignorância do que há para além da aparência –
essa ignorância tão característica de todo o
progresso do pensamento nessa via constituída
pela pesquisa filosófica.

O objeto a, tal como pulsão escópica, não assegura a possibilidade


da visão, mas perturba o ato de ver. Assim, entre o olho e o olhar, ou
entre o olho a pulsão escópica, algo atravessa essa relação, fazendo com
que a reversibilidade do olhar não seja feita de modo organizado e
límpido. Lacan, ao deslocar o olhar para o lado do objeto, e permitir não
confundi-lo com o olho que vê uma imagem, pois ver é função do olho,
faz da imagem que nos olha um meio de capturar-nos, mostrando,

apresenta com toda a intensidade e, por consequência, atua (ou, como se


costuma dizer, ‘fala’!)” (KANDINSKY, 1999, p. 166).
161
Especialmente nO olho e o espírito e O visível e o invisível.
162
“Ver precede as palavras. A criança olha e reconhece, antes mesmo de poder
falar” (BERGER, 1999, p. 9).
201

assim, nossas faltas e impossibilidades, esse olhar que nos apanha


advém qual “outrem”.
Lacan recorre à pintura de Holbein, pois ela “reflete nosso
próprio nada, na figura do crânio de caveira. Utilização, portanto, da
dimensão geometral da visão para cativar o sujeito, relação evidente ao
desejo que, no entanto, resta enigmático” (LACAN, 2008, p. 94-95). A
esquize do olho e do olhar, aparece como uma mancha que surgiu dentro
de um horizonte invisível que o pintor fez brotar no quadro, e que
suscita nosso estranhamento.

Essa esquize constitui a dimensão característica da


descoberta e da experiência analítica, que nos faz
apreender o real, em sua incidência dialética,
como originalmente mal-vindo. É por isso,
precisamente, que o real é, no sujeito, o maior
cúmplice da pulsão [...] (LACAN, 2008, p. 73).

De alguma forma, somos arrebatados pela


mancha, induzindo-nos a fazer algo com isso: se
somos artistas, propomo-nos a criar. É a partir
daquilo que Lacan chama de real, como algo que não
se deixar apreender ou capturar, que criamos.
Afirma Lacan (2008, p. 98): “não sou simplesmente esse ser
puntiforme que se refere ao ponto geometral desde onde é apreendida a
perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta”. Eis
que o psicanalista adverte para o fato de que não somos o sujeito tal
como a tradição fez pensar, qual seja: o ponto de onde todos os objetos
em perspectiva fazem encontro, mas entre a imagem e nós há uma rede
de relações tão fortemente engendrada a ponto de afirmar que o quadro
se pinta em nosso olho. De forma semelhante ao quadro, o fato de se
pintar em nosso olho, estamos também no quadro. Assim, “eu, se sou
alguma coisa no quadro, é também sob essa forma de anteparo, que
ainda há pouco chamei de mancha” (LACAN, 2008, p. 98). Essa
inversão proposta por Lacan impede-nos de crer que haveria a
possibilidade de um observador absoluto, ao contrário, inserindo-nos no
mundo, no quadro, nessa reversibilidade de não sabermos ao certo quem
vê e quem é visto. Mais do que isto: para além de uma reversibilidade
do visível, o psicanalista mostra que há um estranhamento, uma falta,
uma fissura, que o olhar faz ver e que, de alguma forma, “se especifica
como inapreensível” (LACAN, 2008, p. 87).
202

O olhar, além de não se deixar apreender, tal como um visível


em que Cézanne tentava expressar em obra, mostra-se como algo que
surpreende. É por isso que Cézanne deixa vários espaços em branco nas
pinturas no período da maturidade163, pois, de fato, não conseguia
expressar tudo o que via e também percebia na natureza. Esses pontos,
não pintados na tela, fazem nascer no espectador um estranhamento:
promovendo um incômodo, surgido a partir do encontro inquietante do
pintor com a natureza. A estranheza, portanto, não lhe é de todo
exterior: ela habita o mundo e a expressão.
A pintura de Cézanne permite perceber a esquize do olhar, cuja
experiência deságua em toda a arte moderna. Esta esquize do olho e do
olhar, em que se manifesta a pulsão escópica, que Lacan também chama
de objeto pequeno a164, é causa do desejo, é algo que escapa do domínio
da reflexão. Cézanne, por exemplo, do fundo de visibilidade que
percebia na natureza, o qual tentava projetar no quadro, ele só o
conseguia em partes. Isso que não conseguia expressar, esse resto,
funciona, na linguagem de Lacan, como falta. Que falta é essa? Olhando
o processo expressivo de Cézanne, é a falta de um objeto ideal que a
preencheria. Nessa perspectiva, a montanha Sainte-Victoire deveria
aparecer, para ele, por completo: ela não poderia mostrar um invisível.
Como isso, não pode ser realizado, de fato, integralmente, este resto de
que não dá conta, mas que aparece, torna-se o substrato para que a
vontade de pintar (pulsão) nunca tenha fim, é um processo contínuo: ao

163
Podemos observar esses espaços em branco, não pintados, por exemplo, nas
inúmeras aquarelas que produziu. Os trabalhos em aquarela permitem
demonstrar esse feito, porém, Cézanne deixa várias obras inacabadas, como se
não fosse possível terminá-las. Na arte moderna e contemporânea, tanto os
traços quanto os espaços em branco deixados pelo pintor são constitutivos da
própria obra, tendo importâncias semelhantes. Nas palavras de Merleau-Ponty
(2002, p. 67): “o pintor pinta tanto pelo que traça quanto pelos espaços em
branco que dispõe ou pelos traços de pincel que não efetuou”.
164
“O caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação [seios, voz, olhar,
excrementos, etc.] também estaria ligado à estrutura originariamente
polimórfica da pulsão, ou seja, ao fato de que as moções pulsionais apresentam-
se inicialmente sob a forma de pulsões parciais cujo alvo consiste na satisfação
do prazer específico de cada órgão. Pensemos no bebê que ainda não tem à sua
disposição uma imagem unificada do corpo próprio. Neste caso, cada zona
erógena tem tendência em seguir sua própria economia de gozo. A esses objetos
parciais, Lacan dará o nome de objeto ‘a’” (SAFATLE, 2009, p. 65).
203

preencher determinada lacuna (falha, falta) com um objeto (pintura),


forma-se uma outra lacuna e outro desejo é instaurado.
Nesse sentido, “ao buscar na visibilidade das árvores [ou de
outros objetos] o invisível que depois o espectador poderá habitar o
pintor é surpreendido por um vidente, o qual do fundo dessa
invisibilidade buscada, emerge para fazer do artista seu objeto”
(MÜLLER, 2002, p. 26). Nessa reversibilidade entre o visível e o
invisível, que nunca é realizada de fato, que abre poros no coração do
visível, que o pintor imprime, a cada nova investida na tela, é que ele
tenta expressar em plenitude, torna-se uma tentativa frustrante e
inacabada. Como não pode dar conta de todo esse enigma que perpassa
a sua visão, então seu desejo nunca será saciado. Este rastro, esta sobra
que o pintor “deixa escapar”, aquilo que está à margem de sua pintura e
que o faz gastar seu tempo em novas imersões criativas, tal como um
desejo que não se realiza, Merleau-Ponty chama de “outrem”.

IV

A tradição filosófica consolidou o princípio cartesiano de um


dualismo entre a alma e o corpo, de modo que os objetos são separados
entre si, ou como se entre eles não houvesse qualquer relação. Assim,
fomos levados a pensar em outrem como algo separado de nós; como se
entre eu e ele não existisse alguma correspondência, de tal forma que
um ato meu não influísse na vida dele. A certeza de que outrem faz parte
de meu mundo está no fato de eu não ser transparente para mim mesmo,
de não ser auto-evidente, mas, ao contrário, percebo-me melhor a partir
de outrem. Algo acontece também, de maneira semelhante, com a obra
de arte: ela só encontra significação quando há a participação do
espectador na retomada da própria obra. Uma pintura, muitas vezes, fala
mais de mim mesmo, fala de meus gestos fragmentados, da minha voz
silenciosa; gestos tais que foram interrompidos por alguma ação
corporal minha, voz silenciada devido à ausência de palavras precisas
para expressar fatos que poderiam ficar melhor se encobertos na
obscuridade da penumbra silenciosa. Do contrário, tornar-se-iam frases
soltas e desconectas. Neste sentido, percebo que há em outrem um solo
onde minhas ações encontram pousada e também dilatações, cujos ecos
refletem melhor minhas falas.
Não posso reduzir outrem a seus pensamentos, suas falas ou
seus comportamentos. A maneira como pensa, fala e se comporta dizem
204

um pouco de como ele é, mas não o alcançam na totalidade. Afinal,


porém, quem é outrem? Nas palavras de Merleau-Ponty: outrem165 é
uma “[e]ncarnação inacabada sempre em curso – Para além do corpo
objetivo como o sentido do quadro está para além da tela” (VI, 259,
196).
Em tal contexto, esclarece-nos o filósofo:

[...] é justamente meu corpo que percebe o corpo


de outrem, e ele encontra ali como que um
prolongamento miraculoso de suas próprias
intenções, uma maneira familiar de tratar o
mundo; doravante como as partes de um corpo em
conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e
o meu são um único todo, o verso e o reverso de
um único fenômeno, e a existência anônima da
qual meu corpo é a cada momento o rastro habita
doravante estes dois corpos ao mesmo tempo
(PhP, 406, 474).

O corpo de outrem e o meu, sendo abertos e imbricando-se


mutuamente, participam do mesmo mundo: são feitos da mesma textura.
Merleau-Ponty, entretanto, nos indica que há um “objeto cultural que
vai desempenhar um papel essencial na percepção de outrem: é a
linguagem” (PhP, 407, 474). Aqui podemos abordar diferentes aspectos
da linguagem: a fala, a escrita, a linguagem silenciosa da pintura, a da
música, que figuram “outra coisa senão épuras do Ser” (OE, 14, 15);
também podemos pensar a linguagem produzida pelos olhares que se
cruzam, ou do olhar repreensivo paternal166 (ou maternal) ao
perceberem que o filho praticou determinada travessura.

165
Merleau-Ponty nos diz que outrem é “um segundo eu mesmo e o sei em
primeiro lugar porque este corpo vivo tem a mesma estrutura que o meu” (PhP,
406, 474). Se consigo perceber outrem, se meu corpo alcança o corpo de
outrem, ele o faz através das funções sensoriais. De fato, meus olhos percebem
o corpo de outrem e minhas mãos sentem o toque reversível quando por uma
espécie de quiasma sinto fazer parte do mesmo mundo carnal que ele.
166
Constantemente escutamos que alguns pais, de algum tempo remoto (ou
alguns do interior ainda), repreendiam seus filhos apenas pelo fato de olharem
de determinada forma, e estes já sabiam que o olhar “diferente” (geralmente
pelo canto do olho, sério) significava uma surra ou um sermão mais tarde. Claro
que longe do público (parentes e amigos), pois este o impedia
momentaneamente de uma repreensão severa, adiando-a para mais tarde.
205

Em A prosa do mundo, Merleau-Ponty (PM, 194, 173-174)


disserta acerca da experiência do diálogo:

[...] na experiência do diálogo, a fala do


[outrem]167 vem tocar em nós nossas
significações, e nossa fala vai, como o atestam as
respostas, tocar nele suas significações,
invadindo-nos um ao outro na medida em que
pertencemos ao mesmo mundo cultural, e em
primeiro lugar à mesma língua, e na medida em
que meus atos de expressão e [de outrem]
pertencem à mesma instituição.

No diálogo, eu me ultrapasso, “projeto-me [em outrem],


introduzo-o em mim, de modo que nossa conversação assemelha-se à
luta de dois atletas nas duas pontas de uma única corda” (PM, 28-29,
41). Assim, empresto pensamentos meus a outrem e ele me insere no
mundo da linguagem oral, fazendo-me pensar e falar. Não obstante esta
mútua relação entre o ato de falar e o de ouvir, também depreendo que
“não sou apenas ativo quando falo, mas percebo minha fala no ouvinte;
não sou passivo quando escuto, mas falo de acordo com... o que o outro
diz” (PM, 200, 178). Nessa operação comum em que passa a existir um
“ser a dois [...] outrem não é mais para mim um simples comportamento
em meu campo transcendental, aliás, nem eu no seu, nós somos, um
para o outro, colaboradores em uma reciprocidade perfeita, nossas
perspectivas escorregam uma na outra, nós coexistimos através de um
mesmo mundo” (PhP, 407, 475). Falar e escutar faz parte do universo
falante e sentinte. Não sendo mais um gesto particular de um dos lados
do diálogo, a fala produz algo mais além. Assim, ela

[...] realiza a impossível concordância das duas


totalidades rivais, não que ela nos faça entrar em
nós mesmos e reencontrar algum espírito único do
qual participaríamos, mas porque ela nos
concerne, nos atinge de viés, nos seduz, nos
arrebata, nos transforma no outro, e ele em nós,

167
Apontamos, aqui, dois momentos em que o tradutor da obra em língua
portuguesa, pela editora Cosac & Naify, Paulo Neves, não faz distinção entre os
termos autre e autrui. Ambos, ele traduz como “outro”. Nossa proposta é fazer
adequação do termo, o qual inserimos entre colchetes – nas referências que se
seguem, desta obra, buscando ressaltar essa nossa discordância.
206

porque ela abole os limites do meu e do não-meu,


e faz cessar a alternância do que tem sentido para
mim e do que é não-sentido para mim, de mim
como sujeito e [de outrem] como objeto (PM, 202,
180).

É nesse sentido que os sentimentos de outrem ultrapassam a


fronteira do seu corpo físico, invadem meu espaço, atingem a
porosidade de meu ser, produzindo eco na minha existência. Se por
acaso algum ente querido e familiar seu o é subtraído de sua vida,
também experimento a sua dor do luto. Ou, se um amigo meu está
sentindo cólera por que sofreu algum dano causado por alguém, posso
vivenciar, em partes, sua cólera. Afinal, “o luto de outrem e sua cólera
nunca tem exatamente o mesmo sentido para ele e para mim. Para ele,
trata-se de situações vividas, para mim de situações apresentadas” (PhP,
409, 477). Ademais, “se posso, por um movimento de amizade,
participar desse luto ou dessa cólera, eles continuam a ser o luto e a
cólera de meu amigo” (PhP, 409, 477). Ele viveu a dor da perda ou do
dano, e eu, por perceber que ele está passando por conflitos, participo
dessa experiência de maneira mais branda e suave.
Pelo fato de meu amigo ser meu amigo, e eu ser eu, posso
participar de seu luto ou de sua cólera, mas não posso vivê-las tal qual
ele as vive. Não há como essas vivências me atingirem da mesma forma
que a ele. “Por mais que nossas consciências, através de nossas
situações próprias construam uma situação comum, na qual elas se
comuniquem, é a partir do fundo de sua subjetividade que cada um
projeta este mundo ‘único’” (PhP, 409, 477-8). A subjetividade168, aqui
apontada por Merleau-Ponty, não é aquela que concebemos como sendo

168
A noção de subjetividade é tratada, sobretudo, nos primeiros textos de
Merleau-Ponty “não como ego ou coincidência comigo mesmo, mas como
atitude existencial a partir de um fundo habitual de coexistência com o outro e
com o mundo” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2008b, p. 138-139). Em seus
últimos textos, essa noção é ampliada para uma “intersubjetividade”. Nesse
sentido, “se se parte do visível e da visão, do sensível e do sentir, tem-se da
‘subjetividade’ uma ideia inteiramente nova: não existem mais ‘sínteses’ há um
contato com o ser através das modulações ou relevos” (VI, 316-317, 241).
Assim, eu e o outrem participamos de uma mesma “carne”, somos feitos da
mesma substância, habitamos solos comuns, a tal ponto de não sabermos
distinguir o realmente que seja somente meu, ou o que seja exclusivamente de
outrem.
207

uma representação minha ou de outrem, tampouco aquilo que vivemos


em primeiro pessoa ou terceira do singular, mas como um “fundo
habitual da coexistência” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2008b, p. 141),
que mantenho com outrem e com o mundo.
Ao falar da reversibilidade entre mim e outrem, ou entre o
vidente e o visível, Merleau-Ponty afirma haver uma “estranha
aderência” de um sobre o outro, tal como uma intersubjetividade, de tal
forma que um não tem existência sem o outro. Mais do que isso,

[...] na obra póstuma O visível e o invisível,


Merleau-Ponty descreveu nos termos de uma
diferença entre o olho e o olhar: mais além da
visibilidade do mundo, no seio daquilo que
emerge como horizonte de invisibilidade, um
olhar vem me surpreender, denunciando minha
passividade a uma vidência estranha. (MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012c, p. 19).

Eis aqui um ponto importante: ao ler o texto Uma libra de carne,


de Charles Shepherdson, Marcos José Müller-Granzotto (2012c, p. 19)
ressalta para o fato de que, apesar de ter produzido um “excelente
estudo” da leitura lacaniana de O visível e o invisível, mais
especificamente no que diz respeito à “relevância de certas reflexões de
Maurice Merleau-Ponty”, Shepherdson não atentou para algumas
aproximações entre os dois pensadores franceses. Se em Uma libra de
carne o autor afirma que Lacan se distancia de Merleau-Ponty na
questão do estranhamento e da esquize, Müller-Granzotto, por sua vez,
rediscute esses termos em relação ao olhar.
Ao retomar a noção merleau-pontyana de ser de indivisão – ou
carne –, Müller-Granzotto (2012c, p. 28) afirma que esse todo indiviso
faz com que eu seja “sensível com o mundo e com os outros, mas
também um estranho169, porquanto, onde estou situado, não posso
sentir-me sentindo, assim como não posso sentir aquilo que os

169
“Ao mesmo tempo que participo do mundo visível em que está meu
semelhante, sou dotado de uma invisibilidade que me impede de ser
coincidência comigo mesmo e com o mundo. Não obstante minha generalidade
sensível, subsiste uma impossibilidade de fato, uma alteridade radical, que é a
forma como esse filósofo fala do estranho: invisibilidade de mim e do próximo
como videntes, invisibilidade do mundo como origem”. (MÜLLER-
GRANZOTTO, 2008b, p. 348).
208

semelhantes sentem de mim”. Só posso sentir algo parecido, pois


fazemos parte da mesma carne do mundo, mas não posso sentir o que
ele sente. Assim, há uma ambiguidade no seio do ser de Indivisão:
familiaridade e estranhamento. De fato, não conseguimos coincidir com
outrem, tampouco, radicalizarmos ao ponto de afirmar que não
participamos de seu mundo.
Não havendo na filosofia da carne de Merleau-Ponty um ponto
original da visão170, ou seja, não há em sua filosofia a “figura de um
estrato onde tudo o mais é derivado”, afirma Müller-Granzotto (2012c,
p. 29). Não podemos então afirmar que existe, em Merleau-Ponty, um
vidente universal: a carne possui também uma “visibilidade
anônima171”. “A carne de que se trata (e sua visibilidade anônima) não
corresponde a uma qualidade positiva que eu poderia ver aplicada em
todas as partes qual geometral, uma vez que se trata de algo anônimo”
(MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 30). Essa visibilidade anônima
não é alguma coisa objetiva: percebemo-la como um invisível que se
insinua por entre os traços que faz do contorno nas pinturas de Cézanne,
não um objeto firme e determinado, mas algo poroso, que permite ir
além, que permite nossa transposição (enjambement). Vale lembrar que
esse horizonte de visibilidade anônima eu jamais atinjo: tal como uma
ausência-presença, mostra minha ambiguidade e a de outrem, tornando-
nos partícipes de um mundo visível e invisível ao mesmo tempo. É por
isso que posso habitar a obra de arte da mesma forma que ela pode
participar do meu mundo: qual outrem, ela me mostra coisas que eu não
poderia ver sozinho.

170
“[e]m momento algum, com a noção de carne como ser de indivisão,
Merleau-Ponty propõe um ponto original da visão, como se toda vidência
estivesse aí assegurada enquanto identidade. Trata-se apenas de mostrar como,
na extremidade de meu corpo, se pode haver alguém assim como outro vidente,
é porque a visibilidade do próximo também é a minha, a do meu corpo; assim
como a invisibilidade, ela acomete também a mim, que não posso ver-me
vendo” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p 32).
171
“Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo,
nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão
geral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando
aqui e agora, irradiar por toda a parte e para sempre, de, sendo indivíduo,
também ser dimensão e universal” (VI, 185, 138).
209

Fazendo-nos ver para além do visível e do invisível, a obra de


arte surge como um ser que abre poros em nosso corpo, modifica nossos
pensamentos e ações, a ponto de termos que reelaborar e atualizar
nossos dados, de forma diferente a outros objetos do mundo cultural.
Movemo-nos na pintura como movimentamo-nos no mundo: não se
muda de mundo, entretanto, a vida percebida à maneira dos pintores
acaba sendo mais intensa e profunda. Talvez seja por isso que muitos
pintores testemunharam que a criação artística exige do autor uma
dedicação tão integral quanto a de um sacerdócio. Ao mover meu
mundo, para além de uma significação pura, a obra de arte mostra-me
familiaridade e estranhamento. Esse olhar de fora, esse olhar que me
olha, esse olhar que me percebe e que me arrebata, e que, “não
necessariamente implica a destruição da cultura”, é descrito por Lacan
como sendo registro do Real, “ou o olhar estrangeiro descrito por
Merleau-Ponty” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 26). Esse olhar
que não germina do corpo do pintor, mas que a ele vem surpreender, que
brota do fundo do horizonte invisível, tal como André Marchand relatou
sobre sua experiência criativa – que não era ele que olhava as árvores,
mas elas é que olhavam para ele172 - é inesgotável, inscreve-se173
continuamente, produzindo desejos e incitando o artista a elaborar novas
artes. Qual outrem, o olhar estrangeiro não se deixa apreender, escorrega
e descentra nosso sensível, aparece como equívocos em nossa vida,
como pequenas deformações coerentes na pintura, como uma ausência a
ser preenchida.
Na linguagem de Lacan, essas marcas que perpassam o universo
pictural é da ordem do simbólico, enquanto que o Real é aquilo que não
damos conta de explicar, tampouco se deixa apreender. Este aparece
como um estranho, que “não é algo a ser buscado, como se devêssemos
rasgar as cortinas da realidade simbólico-imaginária para flagrá-lo”
(MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 25). Tal como objeto a, o Real
pulsional, “o olhar estranho do ‘vidente que não sou eu’ vem denunciar

172
Esta descrição consta no segundo capítulo de O olho e o espírito, o qual
inserimos mais detalhamento do tópico sobre a reversibilidade do olhar (item
4.1 da presente tese).
173
Inscrever-se, aqui, não tem o mesmo sentido de elaboração linear e
instituída, mas é entendida como algo que se apresenta como ausente e que
descentra o espectador.
210

– apresenta-se
se por si mesmo, como uma visita inesperada que não
precisou ser chamada” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2012c, p. 25). Desta
forma, a caveira perfilada da pintura de Holbein quebra a harmonia do
quadro,
o, que a princípio não deveria estar ali, mas aparece como mancha
que polui minha visão positivista que almeja por uma representação
espacial clássica e linearmente estruturada. Esta “visita inesperada”, tal
como uma esquize, um estranhamento que a pintura faz ver, apresenta-
apresen
se como um olhar “de fora” pelo qual sou arrebatado. Mostrando, assim,
a dupla falta do sujeito174 do desejo: ao visível instituído pelo pintor e à
outrem, tal como um estranho que não se deixa apreender (da ordem do
Real).

Imagem 32: Desenho Temas e variações (1941), Henri Matisse.

Fonte: MATISSE, Henri. Escritos e reflexões sobre arte.. São Paulo: Cosac &
Naify, 2007, p. 183.

174
“Do ponto de vista do sujeito
eito (que surge como efeito de uma dupla falta,
simbólica e também real), o desejo – desencadeado pelo objeto que falta, que é
o “objeto a” – é sempre um desejo da falta. E isso significa que já não pode
haver relação, amor, pois há sempre ao menos uma falta
ta em jogo” (MÜLLER-
(MÜLLER
GRANZOTTO, 2012c, p. 34).
211

Matisse (2007, p. 182), em uma carta endereçada a Louis


Aragon, de 1942, fala da passividade que sente em seu processo
criativo, tal qual um estranho que se doa como antecipação ao ato:
“quando executo meu desenho variações, a linha que meu lápis traça
sobre a folha de papel faz lembrar um pouco o gesto de um homem
tateando seu caminho no escuro. Quero dizer que o percurso é
imprevisto: não conduzo, sou conduzido”. Não tendo domínio sobre a
ação de desenhar, o artista diz ser guiado apenas por um “impulso
interior”, e que vai, assim, “traduzindo” à medida que o desenho vai
tomando forma, não tanto conforme seu olhar como testemunha do
mundo exterior, mas, de alguma forma, sempre reinventando seu
caminho para chegar até o ponto em que não sabe direito onde o traço
induzirá. Sua tentativa se parece com a de uma aranha que “lança (ou
prende) seu fio à aspereza que lhe parece a mais adequada, e dali a outra
que vê a seguir, e de ponto em ponto vai montando sua teia”
(MATISSE, 2007, p. 182). Esse estranho que habita o trabalho do
pintor, não se deixa interpretar e decifrar completamente.
Mais do que apresentar-se de frente, percebo o traço de outrem
nas pequenas deformações coerentes impressas na obra, como algo que
margeia, borra, se insinua, marcando no visível-simbólico uma criação a
partir de um desejo. Afinal, quando eu desejo não quero saber de
comprometimento ou com resultados estéticos ou financeiros, eu apenas
me jogo no desconhecido, pois quero encontrar meu objeto do desejo,
quero expressar a natureza tal como ela se mostra. Entretanto, aquilo
que vejo está sempre adiante: eu não o alcanço. É nesse sentido que
Merleau-Ponty afirma que “na medida em que vejo, não sei aquilo que
vejo” (VI, 295, 224).
Aquilo que não domino na visão é um invisível, não sendo
oposto do visível, faz parte do mundo sensível que sou. Entre meu corpo
e o visível uma constelação se arma:

Há recíproca inserção e entrelaçamento de um no


outro. Ou melhor, se renunciarmos, como é
preciso ainda uma vez, ao pensamento por planos
e perspectivas, há dois círculos, ou duas esferas
concêntricas quando vivo ingenuamente e, desde
que me interrogue, levemente descentrados um
em relação ao outro... (VI, 180, 135).

Manoel de Barros (2015, p. 26) escreveu um poema, intitulado


Os girassóis de Van Gogh, que nos permite observar o quanto um
212

quadro, qual outrem descentrado em relação a ele, pode suscitar


inúmeras significações para além de um olhar do homem comum:

Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas

Hoje eu vi homens ao crepúsculo


Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.

E, como a dor me abaixasse a cabeça,


Eu vi os girassóis ardentes de Van Goh.

Analisar o conteúdo do poema seria desposar o que de mais


valioso há nas frases que suscitam o impacto que a pintura de Van Gogh
causou no poeta. Talvez, a palavra “ardente” possa nos dar uma pista de
que Os girassóis como obra, impressa, levou Manoel de Barros a pensar
em soldados em batalhas e os desdobramentos a partir de algo que
deslocou seu olhar, que não levava-o a pensar em girassóis, mas em
outros eventos tão fortes quanto a obra suscitou. Ora, isso não é
semelhante ao fato de Renoir pintar um riacho olhando para o mar? Em
todo caso, quando tentamos definir, classificar ou analisar obras de arte,
na certa, tornamo-las menores. Observamos isto em outro poema de
Manoel de Barros (2015, p. 85):

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a


Imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
Rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
Fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Nesse trecho, o poeta nos mostra o quanto uma imagem, sendo


suscitada via a observação da natureza, ou de uma obra de arte, produz
inúmeras significações, instalando-nos num mundo ainda não instituído
pela cultura. Barros (2015, p. 149) usava a linguagem não no sentido
corriqueiro e ordinário, mas dizia: “uso a palavra para compor meus
213

silêncios”. Prossegue mais adiante: “Sou um apanhador de desperdícios:


amo os restos como as moscas” (BARROS, 2015, p. 149). Ora, isso tem
a ver com a teoria lacaniana de criação artística. E parece que o poeta
sabia dessa concepção lacaniana: “aliás”, afirma Barros (2015, p. 123),
“Lacan entregava aos poetas a tarefa de contemplação dos restos”.
Observando o mundo natural e o universo da pintura, com todas
as particularidades que atravessam o processo criativo do artista –
estranhamentos, familiaridades, técnicas, afecções corporais, etc. – bem
como o perceber a articulação entre a atividade e a passividade diante
desse trabalho, que exige a reconstrução contínua de metamorfosear o
visível em outro visível, fez com que Merleau-Ponty empreendesse uma
nova proposta filosófica, qual seja, uma reabilitação ontológica do
sensível.

4.3 Por uma reabilitação ontológica do sensível

Merleau-Ponty abraça o sensível como um modelo para pensar


objetos a partir de três instâncias: 1 – como pensamento: se o
pensamento é aquilo que geralmente concebemos como algo
cristalizado, então estaremos diante da experiência da instituição. É
nessa direção que foram criadas as bibliotecas, os museus, os objetos do
mundo da cultura. A idealidade pura, sendo a linguagem falada o melhor
exemplo desta ideia, é tomada como ponto de chegada de um mundo
que começou na prática perceptiva, e se petrificou como nossa inserção
no mundo humano. 2 – como ações: a idealidade de horizonte, como
uma linguagem falante que se põe no berço das coisas, faz com que nos
situemos na experiência da expressão. É nessa instância que nos
instalamos para lidar com o que podemos fazer com aquilo que aparece
em nossa vida como falta, como desejo, como uma forma criativa de
laborar os dados de nossa existência. É desta forma que temos a
liberdade para criar (ou, ao contrário, criamos para nos libertar). 3 –
como rastros: quando nos propomos a participar do mundo da
percepção e nos aventuramos na atividade-passividade da criação
artística, percebemos que há determinados fenômenos que agem quase
que autonomamente, os quais não dominamos, e que atravessam nossos
pensamentos e ações. Assim, temos a experiência da perda e do
estranhamento. Se o outro se mostra de frente como um objeto, outrem,
214

por sua vez, causa esquize: de alguma forma “este” se impõe em nosso
universo aparecendo como uma passividade não contrária à atividade.
O sensível, então, é tratado por Merleau-Ponty não sendo
apenas aquilo que se concebia anteriormente, como figurações de nosso
corpo psico-físico-biológico. Tampouco está interessado em alguma
instância para além do próprio sensível175. Neste sentido - e na
contramão de Platão - numa nota de trabalho de 27 de outubro de 1959,
de O visível e o Invisível, Merleau-Ponty afirma que “não há mundo
inteligível, há mundo sensível”. Prossegue ele:

O sensível é precisamente o meio em que pode


existir o ser sem que tenha que ser posto; a
aparência sensível do sensível, a persuasão
silenciosa do sensível é o único meio de o Ser
manifestar-se sem tornar-se positividade, sem
cessar de ser ambíguo e transcendente. O próprio
mundo sensível no qual oscilamos, e que constitui
nosso laço com outrem, que faz com que o outro
seja para nós, não é, justamente como sensível,
‘dado’ a não ser por alusão – O sensível é isso:
essa possibilidade de ser evidente em silêncio, de
ser subentendido, e a pretendida positividade do
mundo sensível (quando a perscrutamos até suas
raízes, quando se ultrapassa o sensível empírico, o
sensível segundo de nossa ‘representação’,
quando se desvela o Ser da Natureza) prova ser
justamente um inatingível, só se vê finalmente
num sentido pleno a totalidade onde são
recordados os sensíveis. O pensamento está pouco
mais adiante dos visibilia (VI, 263-264, 199).

Vemos assim, que o tema é concebido por Merleau-Ponty como


algo que se põe a nossa frente e que enxergamos, ouvimos, degustamos,

175
“Foco de irradiação que incide dentro e fora, o sensível traduz a experiência
laboriosa da Carne, em seu embrionário processo de deiscência. Prenhe de
transcendência, o Ser é o que exige nossa criação a afim de experimentá-lo
impedindo a reflexão regressar ao ser berço natal, desde onde, há parto
perpétuo. É nesse sentido que a noção de ‘criação’ radicaliza a própria ideia de
experiência ontológica: o ser nos abre para a Experiência (Erfahrung) como
potência dialética na qual, originariamente, se opera o elo inextinguível entre o
em si e o para si” (SILVA, 2006, p. 179).
215

tocamos e cheiramos através de órgãos sensoriais. De alguma forma, os


diversos sentidos se entrelaçam, fazendo com que o nosso mundo e o de
outrem tenha uma íntima relação.
O projeto filosófico delineado por Merleau-Ponty (S, 271, 184),
e exposto no texto O Filósofo e sua sombra¸ afirma que:

[...] Há uma relação do meu corpo consigo mesmo


que o converte no vinculum entre o eu e as coisas.
Quando minha mão direita toca a minha mão
esquerda, sinto-a como uma “coisa física”, mas no
mesmo momento, se eu quiser, ocorrerá um
acontecimento extraordinário: eis que a mão
esquerda também começará a sentir a mão direita
[...] Logo, toco-me tocante, meu corpo efetua
“uma espécie de reflexão”. Nele, por ele, não há
somente relação em sentido único daquele que
sente com aquilo que sente: a relação inverte-se, a
mão tocada, torna-se tocante, e sou obrigado a
dizer que o tato está espalhado em meu corpo, que
o corpo é “coisa que sente”, “sujeito-objeto”.
Cumpre ver que esta descrição subverte também a
nossa ideia da coisa e do mundo, e conduz a uma
reabilitação ontológica do sensível176.

É necessário, pois, repensar as coisas e o próprio mundo: tomá-


los por meio de nossa inserção corporal como fazendo parte da carne do
mundo. Nesse contexto, Marilena Chauí (2002, p. 146) define a
experiência sensível:

A reversibilidade e transitividade das cores,


superfícies e movimentos – carne das coisas -, dos
nossos sentidos em si – Carne de nosso corpo -,
deles e das coisas como ressonância e
reverberação sem começo e sem fim é
desvendamento do sensível como “o meio onde há
o Ser sem que pareça de ser posto”. É isto a
experiência sensível.

A ontologia esboçada por Merleau-Ponty é feita a partir de


experiências do mundo da percepção, a qual, mais do que a

176
Itálico nosso.
216

reversibilidade do visível e do invisível, revela-nos uma experiência em


que somos passivos em relação à outrem. Se o pintor lida com cores,
superfícies e movimentos, tal como escreve Chauí – observando as artes
plásticas -, então, cabe-nos retomar o procedimento artístico do pintor e
do espectador para podermos entender, ao menos em partes, o seu
projeto ontológico. Começaremos, pois, investigando o entrelaçamento
entre os diferentes sentidos177: afinal, somos capazes de ver com as
mãos e de tatear com os olhos.

II

Ao longo do presente estudo, refletimos acerca do enigma que


“consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível”; o que
resulta em afirmar que “ele, que olha todas as coisas, pode também se
olhar, e reconhecer no que vê então o ‘outro lado’ de seu poder
vidente”; não apenas isso: “ele se vê vidente, ele se toca tocante, é
visível e sensível para si mesmo” (OE, 18, 17). Quando a minha mão
esquerda, por exemplo, toca a mão direita, sinto a textura macia da
minha pele, tanto de uma quanto da outra, e se deixo a análise de lado,
esquecendo que foi a minha mão esquerda que tocou a direita, não
saberei qual delas tocou a outra primeiro. Nesse tocar, há uma
imbricação (empiètement) entre ambas as mãos, de modo que não
consigo localizar, ao certo, a mão tocante e a tocada. “Por meio desse
cruzamento reiterado de quem toca e do tangível, seus próprios
movimentos se incorporam ao universo que interrogam, são reportados
ao mesmo mapa que ele; os dois sistemas se aplicam um sobre o outro
como as duas metades de uma laranja” (VI, 174, 130). Para Merleau-
Ponty, há uma reversibilidade entre os dois lados do meu sentido: afinal,
o olhar vê e se sente visto; de forma semelhante, a mão toca e se sente
tocada. Esse enigma se desdobra: não apenas vê e se sente visto, mas o
olhar também toca178 as coisas; a mão vê as cores e texturas... Há,
portanto, uma estranha imbricação (empiètement) entre os diferentes
sentidos. Merleau-Ponty lembra uma citação de Marlraux: “ouço com
minha garganta” (VI, 187, 140). Normalmente, diríamos o inverso: que
ouvimos com os ouvidos e não com a garganta... Encontramos outro
exemplo parecido no poema Matinal, de Mário Quintana (1997, p. 147):

177
“Os sentidos comunicam-se entre si” (PhP, 265, 308).
178
“Um cego sabe exatamente, pelo tato, o que são galhos e folhas, um braço e
os dedos da mão” (PhP, 259, 303).
217

A tua voz nas minhas veias corre,


e alguns pedaços do meu sonho
devem andar por esse ar, perdidos...”.

Isso só é possível de pensar porque há uma cumplicidade entre


os dois sentidos. Afinal, a voz pode ser sentida nas veias da mesma
forma que podemos pensar com as mãos e os pés, tal como exprimiu
Fernando Pessoa (2013, p. 51-52) em um dos trechos de O guardador
de rebanhos:

Penso com os olhos e com os ouvidos


E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

O pintor pensa com as mãos; a dançarina sorri com o corpo; o


poeta tateia nas palavras. Cada qual a sua maneira, porque “todas as
artes provém da mesma e única raiz” (KANDISNSKY, 1999, p. 351): o
sensível. Em uma entrevista a Georges Duthuit, de 1936, Miró (1999, p.
436) indica um caminho de como se deve proceder: “pintura ou poesia
se fazem como se faz amor; uma troca de sangue, um abraço total, sem
nenhuma prudência, nenhuma proteção...”.
Em O visível e o invisível Merleau-Ponty nos apresenta três
experiências do ato de tocar que não são distintas, tampouco “se
subtendem” (VI, 174, 130). Assim, há “um tocar o liso e o rugoso, um
tocar as coisas – um sentimento passivo do corpo e de seu espaço – e,
enfim, “um verdadeiro tocar o tocar, quando minha mão direita toca
minha mão esquerda apalpando as coisas, pelo qual o ‘sujeito que toca’
passa ao nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz
no meio do mundo e como nelas” (VI, 174, 130).
É interessante notar que além da experiência ativa do tocar, há
também um “tocar” como experiência passiva deste ato. Merleau-Ponty
mostra que essa reversibilidade do corpo é percebida através da
experiência sensível e que, por consequência, “todo visível é moldado
no sensível” (VI, 175, 131. Desta forma, há “imbricação [empiètement]
e cruzamento [enjambement], não apenas entre o que é tocado e quem
toca, mas também entre o tangível e o visível que está nele incrustado
[...]” (VI, 175, 131). Afinal, é o mesmo corpo que possui o dom da
218

vidência e da tangibilidade179, e isso só é possível porque ambos fazem


parte do mesmo mundo. Só há essa imbricação (empiètement) e
cruzamento porque fazem parte do mesmo universo visível e tátil. Se
podemos experienciar a visibilidade no tangível, e a tangivilidade no
visível, é porque “os dois mapas são completos e, no entanto, não se
confundem” (VI, 175, 131). É nesse sentido que Merleau-Ponty fala
sobre um sistema de trocas dos sentidos por meio da “fundamental
fissão” ou “segregação” do sentiente e do sensível, de um corpo no
outro, pois fazemos parte da mesma “carne do mundo”. Assim,

Há um círculo do palpado e do palpante, o


palpado apreende o palpante; há um círculo do
visível e do vidente, o vidente não existe sem
existência visível; há até mesmo inscrição do
palpante no visível, do vidente no tangível e
reciprocamente; há, enfim, propagação dessas
trocas para todos os corpos do mesmo tipo e do
mesmo estilo que vejo e toco – e isso pela
fundamental fissão ou segregação do sentiente e
do sensível, que lateralmente, faz os órgãos do
meu corpo entrarem em comunicação, fundando a
transitividade de um corpo a outro (VI, 185-6,
139).

A visão é “palpação pelo olhar180”, afirma Merleau-Ponty (VI,


175, 131). Isso só é possível se “aquele que olha não seja, ele próprio,
estranho ao mundo que olha” (VI, 175, 131). A visão, mais do que uma
percepção do olho sobre o objeto do exterior, mostra a reversibilidade
do visível. O que acontece, outrossim, é que a visão se desdobra numa
visão complementar ou numa outra visão. Temos então um “eu mesmo
visto de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio visível, no
ato de considerá-lo de certo lugar” (VI, 175, 131). Nessa reversibilidade
do olhar, as coisas não se mostram inteiramente: só vemos e sentimos

179
Ciente deste sistema de trocas – entre o vidente e o visível – Merleau-Ponty
assegura que “[h]á topografia dupla e cruzada do visível no tangível e do
tangível no visível, os dois mapas são completos e, no entanto, não se
confundem. As duas partes são partes totais, e no entanto, não passíveis de
superposição” (VI, 175, 131).
180
“Se, reciprocamente, apalpa e vê, não é porque tenha diante de si os visíveis,
como objetos: eles estão em torno dele, até penetram em seu recinto, estão nele,
atapetam por fora e por dentro seus olhares e suas mãos” (VI, 179, 134).
219

até certo ponto, certos ângulos, certos detalhes, numa massa ainda
confusa e misturada. Sentimos algo ainda em formação que vai se
mostrando ao olhar. E ao ir se revelando uma outra massa disforme vai
se apresentando...
Queremos o primeiro contato com as coisas: a gênese do
mundo, a raiz de onde brotam todos os ramos. Nesse “lugar”, mais do
que seres ativos e pensantes, somos seres passivos e receptivos.
Empregamos nosso corpo, mas somos levados pelo fluxo do mundo da
vida. É nesse sentido que Creusa Capalbo (2004, p. 103-104) explica
que:
No sentir não há uma pura impressão do sensível,
uma pura recepção passiva dos dados; eles já vêm
misturados, a esta passividade, de uma certa
atividade que se exerce apesar da sua latência face
à tomada de consciência desta atividade. Em todo
rigor o que se deve dizer é que não há
receptividade a não ser quando ela é dada pela
espontaneidade, e vice-versa. Há passagem de
uma a outra pela dialética de cruzamento. É
preciso, porém, aprofundar um pouco mais esta
análise descritiva, pois não se trata apenas de
descrição de um processo, mas também de uma
explicação de como coexistem atividade e
passividade.

Como entender esta atividade-passividade, tal como uma


espontaneidade que atravessa nosso sensível? Diversos pintores,
especialmente os modernos, afirmaram que suas criações não se
baseavam tanto em uma intenção inicial que era seguiada fielmente, mas
que algo estranho e inesperado se apresentava como uma marca e que
conduzia a maior parte do processo. Pablo Picasso (1999, p. 272) disse:
“no momento em que faço um quadro, penso num branco e aplico o
branco. Mas não posso continuar a trabalhar, pensar e aplicar um
branco; as cores, como os traços, seguem a mobilidade da emoção”. As
cores que o artista pensou estarão no quadro, só que não do mesmo jeito
que pensara antes de iniciar a pintura, tampouco na quantidade e no
lugar previstos. “Pode-se fazer quadros combinando diferentes partes
deles”, afirma Picasso (1999, p. 274), “mas então lhes faltará o drama”.
A experiência da passividade é sentida e relatada pelos pintores
de maneiras diferentes: “inesperado”, “acaso”, “imprevisto”,
220

“experimentação”, “inconsciente”, “acidente”, “Vontade181”, são alguns


dos nomes dados. Diante disso, como a experiência da passividade pode
nos ensinar que não somos tão detentores de nossos pensamentos e
ações como acreditáramos outrora.

III

A socióloga Sarah Thornton escreveu um livro em que investiga


os bastidores da arte e de artistas contemporâneos182. Uma das que ela se
ocupa é a pintora brasileira Beatriz Milhazes. Acompanhando o
processo criativo desta, Thornton (2015, p. 367-8) observa que

O fato de que as pinturas de Beatriz tomem


emprestado a textura do plástico também faz com
que elas pareçam apropriadas para os nossos dias.
No entanto, muitas vezes a transferência da tinta
para a tela é imperfeita, deixando aparições
fantasmais na camada de baixo. Embora a artista
descreva a si mesma como uma “pessoa
controladora”, ela parece bem resignada com o
fato de que seu método contém elementos do
acaso.

Na contemporaneidade está cada vez mais evidente, entre os


artistas dos mais diferentes seguimentos, o quanto uma obra não segue
as intenções iniciais do seu autor. Se somos pintores, sentimos
constantemente, no processo expressivo, que há algo que escapa ao
nosso controle. É como se uma mão invisível guiasse nossa mão e
conduzisse o restante do processo. Na maior parte das vezes somos
afetados pelo inesperado, frustrando ou superando nossas expectativas e
abrindo nossa visão para outras visões; nosso mundo para outros
mundos, nossa arte para novas possibilidades artísticas. Se o inesperado
não acontecesse, dificilmente teríamos uma arte inovadora. Este

181
“E pode ocorrer que, quando os mestres animam a Natureza de seu ideal, eles
equivocam-se. É possível que ela seja governada por uma Força indiferente ou
por uma Vontade da qual nossa inteligência é incapaz de penetrar os desígnios”
(RODIN, 2015, p. 46).
182
Apesar de tratarmos especialmente da arte do final do século XIX e início do
século XX, optamos por introduzir esta obra contemporânea para mostrar que a
ideia de passividade é testemunhada nos procedimentos artísticos atuais.
221

inesperado tem na filosofia de Merleau-Ponty a denominação de


passividade.
O que é a experiência da passividade? “É reencontrar essa visão
das origens”, afirma-nos Merleau-Ponty (VI, 258, 195), “aquilo que se
vê em nós, como a poesia reencontra o que em nós se articula, sem o
sabermos”. Não sendo sinônimo de inatividade, ociosidade ou mesmo
de inércia, a passividade coabita o momento expressivo do artista, como
uma espontaneidade criadora, fazendo com que a obra saia para além
dos seus limites reflexivos. Manoel de Barros (2015, p. 98) escreve
alguns palavras que mostram a sua ideia de onde deve “se instalar” para
que a escrita criadora aconteça:

Carrego meus primórdios num ardor.


Minha voz tem o vício das fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.

O escritor Ferreira Gullar (2004, p. 397) fala sobre como nasce


um poema:

Affonso Romano de Sant’Anna (2012, p. 118), por sua vez,


relata:

Tenho olhado o céu


Em várias partes do mundo
Com o mesmo pasmo infantil.
Não tenho sequer a sabedoria dos astrônomos astecas
Dos babilônios e egípcios
-mas olho.
Inclusive alguns eclipses. Olho
e escrevo.
No papel
Surgem constelações
Igualmente inexplicáveis.
222

É da atividade-passividade do artista que a obra nasce. Outros


escritores brasileiros descreveram como lhes acontece o processo de
escrita de textos e poemas. Semelhantemente a Manoel de Barros,
Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna, estão João Cabral de
Melo Neto, Mário Quintana183, Carlos Drummond de Andrade184,
Clarice Lispector, só para citarmos alguns nomes. Sobre essa forma de
escrita, afirma Derrida (1971, p. 61):

Escrever é retirar-se. Não para a sua tenda para


escrever, mas da sua própria escritura. Cair longe
da sua linguagem, emancipá-la ou desampará-la,
deixá-la caminhar sozinha e desmunida.
Abandonar a palavra. Ser poeta é saber abandonar
a palavra. Deixá-la falar sozinha, o que ela só
pode fazer escrevendo [...]. Abandonar a escritura
é só lá estar para lhe dar passagem, para ser o
elemento diáfano da sua procissão: tudo e nada.
Em relação à obra, o escritor é ao mesmo tempo
tudo e nada.

Esse sentimento de ser autor e não-autor ao mesmo tempo, faz


do pintor (ou do escritor185) um ser duplo: por uma lado, vê as coisas
tentando traduzir em objeto visível aquilo que vê e, por outro, sente a
“metamorfose do vidente e do visível” (OE, 34, 23) em que os papéis
inevitavelmente se invertem – não se sabe direito “quem pinta e quem é
pintado” (OE, 32, 22).
Merleau-Ponty (VI, 258, 195), ao falar da passividade que
perpassa o procedimento criativo dos artistas, cita uma declaração de

183
“Poesia: Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à primeira vista,
ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é
chata como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma
surpresa, um descobrimento” (QUINTANA, 2007, p. 812).
184
Carlos Drummond de Andrade (2007, p. 574) escreve sobre a arte de
escrever: “Já fatigado de escrever em prosa,/ este vago cronista pede ao verso/
que de mansinho desabroche em rosa/ e a Raquel de Queiroz hoje se oferte/ pelo
muito que amamos em seus livros/ fraternos e pungentes, seres vivos”.
185
É claro que esta atividade-passividade não se restringe apenas ao escritor e
ao pintor. Essa experiência é sentida por artistas dos mais variados segmentos.
Também em nossa vivência diária, seja artista ou não, sentimos que não
dominamos todos os nossos atos e intenções. Somos atravessados por algo que
não dominamos e que se impõe em nossas relações e experiências.
223

Max Ernst186: “Do mesmo que o papel do poeta, desde a célebre carta do
vidente, consiste em escrever sob o ditado do que se pensa, aquilo que
nele se articula, o papel do pintor é circunscrever e projetar o que nele se
vê”.
Stéphanie Ménasé (2008, p. 224-225) também comenta alguns
artistas nos quais encontrou esboçado o tema da passividade:

Ao considerar diferentes formas de passividade


em arte, constatamos que a obra de certos artistas
trabalha esta dimensão da passividade
explorando-a tecnicamente. [...] É o caso de
Michaux187 e a água [...]. Duchamp e os
fenômenos da física como a gravidade ou o
calor188. [...] Encontramos uma outra forma de

186
Transcrevemos essa citação do livro O visível e o invisível, em que Merleau-
Ponty a extrai de um livro de Georges Charbonnier. Encontramos também a
entrevista de Max Ernst (1999, p. 434) no livro Teorias da arte Moderna, a qual
apresentamos, aqui, para uma melhor compreensão do tema: “É como
espectador que o autor assiste, indiferente ou apaixonado, ao nascimento da sua
obra e observa as fases do seu desenvolvimento. Assim como o papel do poeta,
desde a célebre lettre du voyant de Rimbaud, consiste escrever sob o ditado
daquilo que se pensa (se articula) nele, o papel do pintor é o de cercar e projetar
aquilo que se vê a si mesmo nele”. Merleau-Ponty também cita esta mesma
passagem em O olho e o espírito.
187
“O espaço tossiu sobre mim/ e eis que deixei de existir/ os céus rebolam os
olhos/ os olhos que não dizem nada/ e não sabem grande coisa” (MICHAUX,
1999, p. 245). Claude Lefort (1994, p. 91-93) escreve um artigo sobre a criação
em Michaux: “Michaux tem a arte de fazer ressoar as palavras de maneiras
inesperadas. [...] Num certo grau de acuidade da visão, sob o efeito do desejo de
pintar, o visível irrompe com tamanha violência que, sob o choque, o indivíduo
Michaux, ultrapassado, torna a cair abaixo de si mesmo, enfermo. [...] E de
repente a água da aquarela que lhe parecia tão boa, tão mais preferível ao
guache, essa água é dita ‘tão imensa como um lago, água demônio onívoro,
devastador de ilhotas, fazedor de milagres, destruidor de diques, extravasador
de mundos”.
188
“A nota manuscrita para ‘O grande vidro’ nos oferece um exemplo disso: ‘O
regime da gravidade -/ ministério das coincidências. Departamento/ (ou
melhor):/ Regime de coincidência/ ministério da gravidade./ Quadro ou
escultura./ Recipiente plano em vidro – [recebendo]/ todo tipo de líquidos
coloridos, pedaços/ de madeira, de ferro, reações químicas./ Agitar o recipiente
e olhar/ Por transparência –” cita Ménasé (2008, p. 225).
224

passividade nos esgarçamentos de Jean Arp [...],


ou ainda nas decalcomanias de Max Ernst [...].

Em suas experiências de decalcomanias - ou frotagge -, Max


Ernst (1999, p. 433) relata que uma obsessão visual começou a lhe
surgir, em 1925, e que o levou a descobrir novos meios técnicos: “[...]
desempenhara o papel do provocador óptico de uma visão de meio sono,
e encontrando-me,
me, numa noite chuvosa, num albergue à beira-mar,
beira fui
atingido pela obsessão que o soalho exercia
cia sobre meu olhar irritado,
cujas rachaduras haviam sido acentuadas por mil lavagens”. Essa
reversibilidade do vidente e do visível fez com que o artista se
aventurasse em tirar uma série de desenhos, os quais conseguiu
colocando folhas de papel, ao acaso,
so, sobre as tábuas. O resultado era
obtido, pois ele esfregava chumbo grosso no papel.

Insisto no fato de que os desenhos assim obtidos


perdem cada vez mais, através de uma série de
sugestões e transmutações que se oferecem
espontaneamente – à maneira do o que ocorre com
as visões hipnagógicas –,, o caráter do material
interrogado (a madeira, por exemplo) para
assumir o aspecto de imagens de uma precisão
inesperada, provavelmente de um tipo que revela
a causa primeira da obsessão ou produz um
simulacro dessa causa (ERNST, 1999, p. 434).

Imagem 33: “Frotagge” Les Moeurs des feuilles (1926), Max Ernst.

Fonte: Disponível em:< http://www.moma.org/explore/


inside_out/inside_out/wp-content/uploads/2011/10/Max-Ernst-Les-
Moeurs.jpg> Acesso em 05 jun. 2015.
225

Ernst (1999, p. 434) fica surpreso com o resultado obtido: “fui


surpreendido pela intensificação sutil de minhas faculdades visionárias e
pela alucinante sucessão de imagens contraditórias, que se sobrepunham
umas sobre as outras com a persistência e a rapidez das lembranças
amorosas”. Via essa experiência, o pintor começou a interrogar todos os
materiais que se encontravam em seu campo visual: “folhas e suas
nervuras, as bordas desfiadas de um pano de saco, as pinceladas de uma
pintura ‘moderna’, um fio de bobina desenrolado, etc.” (ERNST, 1999,
p. 434). O que até aquela experiência ele considerava como o “autor” da
obra, começa a revelar-se para Ernst como uma atividade-
passividade189, em que o pintor “assiste” o nascimento das próprias
obras.
A passividade pode ser o que Van Gogh (1999, p. 37) relata a
Emile Bernard: “Exagero, por vezes faço modificações num motivo;
mas apesar de tudo, não invento todo o quadro; pelo contrário, encontro-
o pronto na natureza, ele precisa ser apenas extraído”. Em outra carta
endereça a Paul Gauguin relata: “[...] pois não sei, com frequência, o
que estou fazendo, já que trabalho quase como um sonâmbulo” (VAN
GOGH, 1999, p. 39). Ao falar que encontra o quadro pronto na natureza,
ou que trabalha quase como alguém que anda dormindo, numa espécie
de semiconsciência, Van Gogh demonstra o quanto a sua pintura não é
feita somente a partir de si, mas que a obra segue o seu curso meio que
automaticamente.

189
“Entregando-me cada vez mais a essa atividade (passividade), que mais tarde
viria a ser chamada “paranoico-crítica”, e adaptando aos meios técnicos da
pintura (por exemplo: raspagem de pigmentos sobre um fundo preparado em
cores e colocado sobre uma superfície desigual) o procedimento de frottage que
a princípio parecia aplicável apenas ao desenho, e procurando restringir cada
vez mais minha própria participação ativa no desenvolvimento do quadro a fim
de ampliar a parte ativa das faculdades alucinatórias do espírito, vim a assistir
como espectador ao nascimento de todas as minhas obras a partir de 10 de
agosto de 1925, dia memorável da descoberta do frottage. Homem de
“constituição ordinária” (emprego aqui as palavras de Rimbaud), tudo fiz para
tornar minha alma monstruosa. Nadador cego, fiz-me vidente. Vi. E fiquei
surpreendido e apaixonado pelo que eu via, querendo-me identificar-me com
ele” (ERNST, 1999, p. 434-436).
226

Imagem 34: Assemblages d'empreintes et litho (1954), Jean Dubuffet.

Fonte: Disponível em: <http://fragmentaires.canalblog.com/


archives/2011/03/25/20723828.html> Acesso em 06 jun. 2015.

Ou a passividade também pode significar o que Jean Dubuffet


(1999, p. 624) disse em 1957 sobre o seu trabalho: “Muito docilmente a
princípio, numa pressa inadvertida, minhas plantinhas escrevem sua
história nas folhas que lhe são oferecidas”. Esse artista francês tanto
escreveu quanto se envolveu com a pintura, sobretudo dizendo que o
acaso é um fator importante do processo de criação, uma experiência
suprema, num envolvimento com os objetos do mundo físico e natural,
afastando-se daquilo que era raro ou fantástico. Destes, ele desconfiava.
O que é interessante notar, que em seus trabalhos está presente “a
contradição constante, o contraste entre paisagens indefinidas, quase
abstratas, e figuras simétricas claramente articuladas, entre o desenho
preciso e a ausência de linha” (CHIPP, 1999, p. 602), como se aquilo
que percebia do mundo natural lhe aparecesse ao mesmo tempo de
maneira nítida e obscura.
O pintor Francis Bacon, numa entrevista concedida a David
Sylvester, da Sunday Times Magazine, em 1963, comenta o seu
procedimento artístico e o quanto a atividade era atravessada por uma
espontaneidade. Afirma Bacon (1999, p. 634) ao jornalista:
227

Você sabe que no meu caso todo quadro – e


quanto mais velho fico mais assim é – constitui
um acidente. Eu o provejo. Ele se transforma pelo
ato concreto de pintar. Na verdade, com muita
frequência não sei o que a tinta fará, e ela faz
muitas coisas que são melhores do que eu poderia
forçá-la a fazer.

Outros tantos artistas190 experienciaram a questão da


passividade que perpassa a atividade criadora. Na obra Teorias da arte
moderna, de Herschel Chipp, podemos constatar vários relatos191 sobre
este processo, os quais apresentamos alguns exemplos aqui.
Merleau-Ponty também faz alusão à passividade em diferentes
notas de trabalho de O visível e o invisível. Em uma destas, em
novembro de 1959, escreve: “A filosofia nunca falou – não de uma
passividade: não somos efeitos – mas diria antes de uma passividade de
nossa atividade” (VI, 270, 204). Nossas ações e iniciativas “nascem no
âmago do ser, estão engrenadas com o tempo que jorra em nós” (VI,
270, 204). Sendo pivô da ontologia de Merleau-Ponty, já que não somos
os senhores de nossos atos, tal como disseram os racionalistas, a
passividade aparece em frases como “eu não sou nem mesmo o autor
deste vazio que se faz em mim pela passagem do presente à retenção,
não sou eu quem me faz pensar, como não sou eu quem faz meu coração
bater” (VI, 270, 204-5). Desse modo a filosofia, de outrora, que
acreditava que nós tínhamos o controle de nossa vida deve ser
abandonada, e devemos, pois, passar a adotar uma outra que se instale
em “nossa Urstiftung [fundação originária]” (VI, 270, 205). Uma

190
Citamos mais um testemunho: Em uma entrevista a James J. Sweeney, Miró
(1999, p. 439) afirmou: “Eu começava sem qualquer ideia preconcebida. Umas
poucas formas sugeridas aqui provocavam outras formas em outros pontos, para
equilibrá-las. Estas, por sua vez, exigiam outras. Parecia interminável. Foi
necessário pelo menos um mês para produzir cada aquarela, que eu retomava
dia após dia, para cobrir novos pontos minúsculos, estrelas, ondas, pontos
infinitesimais de cor para conseguir finalmente um equilíbrio total e complexo”.
191
Eis mais um exemplo: “Quando estou no meu quadro, não tenho consciência
do que estou fazendo. Só depois de uma espécie de período de ‘conhecimento’ é
que vejo o que estive fazendo. Não tenho medo de fazer modificações, de
destruir a imagem, etc., porque o quadro tem uma vida própria. Procuro deixar
que esse mistério se revele” (POLLOCK, 1999, p. 556).
228

filosofia assim compreendida é tal qual uma obra de arte. Esta ideia de
filosofia, Merleau-Ponty encontrou na pintura de Cézanne.
Ao seu filho, Cézanne (1999, p. 19) lamenta-se: “não tenho a
magnífica riqueza de colorações que anima a natureza”. De alguma
forma, o pintor percebia que a natureza estava para além daquilo que ele
poderia expressar em obra. Também relatou a Gasquet a passividade
que experienciou ao pintar a Velha do rosário: “Este maravilhoso
castanho-azulado apoderou-se de mim, cantava na minha alma. Estava
completamente submerso nele” (CÉZANNE, 1993, p. 56). Não somos
“apanhados”, vez ou outra, por determinada cor? Não há trechos de
músicas que se apoderam de nós, os quais cantarolamos o dia inteiro,
mesmo que não queiramos? De alguma forma, observamos que algumas
substratos do mundo cultural se apoderam do nosso corpo e espírito e
guiam nossos pensamentos e ações.
Como a passividade se dá na obra de arte? Ela aparece na
pintura como pequenas deformações coerentes, como equívocos, como
pequenos erros. Na percepção do mundo há um equívoco, mas ele não
determina a percepção, tampouco é determinado por ela. A percepção
tem rastros, restos, um equívoco que faz com que agimos “sem saber”
qual o próximo passo a ser dado. No equívoco nós não sabemos por que
determinados traços foram impressos na tela de um jeito que não
tínhamos planejado a priori. São as pequenas distorções que aparecem
na pincelada do pintor e que não se deixa apreender – é aquilo que
escapa ao domínio do próprio artista. Em suma, a criação artística tem a
ver com a espontaneidade que atravessa a ação do pintor, que submerso
em seu trabalho, presencia o inédito e inesperado acontecer em sua obra.
Fazendo parte do processo criativo do artista, a passividade
também se estende ao espectador moderno. Ao olharmos para uma
pintura sentiremos que nossa visão também é atravessada por uma
passividade. Assim, nosso olhar que parecia ser o agente único da ação,
juntamente com a teoria merleau-pontyana, passa a ter uma dupla
função: atividade e passividade num único gesto, num mesmo
movimento – o fato de olhar e ser também olhado pela obra –. “É
preciso desacostumar a conceber a criação como uma modalidade da
atividade pura”, comenta Ménasé (2008, p. 243). Desse modo, ao nosso
pequeno mundo, abre-se outras perspectivas para além daquilo que
imaginamos poder existir.

IV
229

Espectador é aquele que é observador de uma obra. Mais do que


se postar diante dela, e admirá-la, o espectador moderno precisa
interagir com ela: é necessário empregar seu corpo, imbricar-se
(s’empièter) e entrecruzar-se com a obra. É desse modo que experimenta
um sentimento semelhante ao do artista-feitor, pois co-cria com ele.
Sobre a “ação” da visão, explica Merleau-Ponty, “ver é, por princípio,
ver mais do que se vê, é ter acesso a um ser de latência. O invisível é o
relevo e a profundidade do visível, e, assim como ele, o invisível não
comporta visibilidade pura” (S, 38, 21). Não apenas um visível é visto
pelo espectador, mas também o invisível. Este é poroso e lacunar. Mais
do que se mostrar, insinua-se no próprio visível. Não sendo visibilidade
pura, tampouco algo sedimentado pelo saber humano, a pintura traduz a
deiscência da carne – aparece na obra como passividade, como desvio,
como lacunar, como espessura sem ter dimensão, ou uma presença em
que está presente sua ausência.
Você vai ao Louvre, por exemplo. Você observa a multidão que
se estabelece em frente ao quadro Monalisa, a fim de fotografá-lo, ou
fotografar-se com ele. Na maioria das vezes, pouco sabem dos detalhes
da obra: apenas que Leonardo da Vinci a pintou, que tem um sorriso
enigmático e que é um dos quadros mais famosos do mundo.
Dificilmente se dão conta que numa sala próxima, num lugar não tão
privilegiado, há um outro quadro Santa Ana, a virgem e a criança, tão
enigmático quanto Monalisa. Raríssimos são os que observarão um
abutre que o manto da Santa Ana faz ver192. Poucos também sabem que
Leonardo pintara poucos quadros. O que querem, sobretudo, é registrar
a imagem: alguns por já terem visto em reproduções, outros por
quererem aparecer perto de uma obra tão famosa. Ao conhecê-la
primeiro em catálogos, quando a olham no museu ficam frustrados por
acharem-na pequena. A expectativa é que fosse um quadro muito maior
do que é. Afinal, o Louvre a destaca das demais obras e vemos
reproduções dela que ocupam paredes inteiras! Aparece nos principais
guias da cidade. Nos corredores do museu, há sinalizações para que o
turista a encontre facilmente. Afinal, não se pode ir ao Louvre, ou a
Paris, sem ver a Monalisa. Podem até não saber que em Paris viveram
grandes nomes da arte mundial: pintores, escultores, músicos,
escritores..., mas a atenção é voltada para essa pintura italiana. O
público em geral quer saber do famoso, da arte reconhecida
mundialmente, cujo valor de venda é incalculável. Para um artista que

192
Obviamente, segundo determinados comentadores, como Sigmund Freud.
230

pintou uma obra de tamanha magnitude – pensam – só pode tratar-se


tratar de
um gênio. Esquecem da vida privada de seu autor, dos seus sofrimentos,
erros e procuras, inquietações e frustrações, para lembrarem apenas
daquilo que se tornou, após alguns séculos, e se guiam por
especuladores, críticos, comentadores da arte, que a divinizaram, cujo
objetivo é torná-la
la o símbolo maior do museu, e assim, atrair o maior
número de pessoas ao seu encontro.

Imagem 35: Visita ao Louvre/ Monalisa.

Fonte: arquivo pessoal.

Não é desse espectador que estamos nos reportando: este só está


inserido na superficialidade. Queremos o espectador que se inquieta
com a obra, que a observa por longos momentos, que a estude, que a
deixa seduzi-lo e enamorar-se dela. É somente desse modo que a obra
pode falar “mais alto” – ir mais além – e participar do mundo do
vidente, ora lhe causando prazeres, ora lhe causando desejos. Afinal,
você pode olhá-lala e sentir uma saudade daqueles dias ensolarados em
que passeava na praça com sua enamorada. A obra pode causar isso. Por
outro lado, pode provocar-lhe
lhe também desejos: abrindo buracos em seu
corpo e seu espírito, causando angústias, fazendo você sentir algo
diferente, levando-oo a seguir adiante. Inundando o seu ser, convida-o
convida –
ou o exige – a entrelaçar-se se com ela, penetrar em suas entranhas,
infiltrar-se
se em seus segredos... Desta forma, o espectador sente uma
espécie de reviravolta e experimenta um sentimento de reversibilidade, e
acaba descobrindo que a obra que lhe chamou tanto a atenção fala muito
mui
do que ele é. Mais do que mostrar o que ele é, a pintura mostra suas
231

faltas. Ao ver-se diante de suas faltas, ele sente que um desejo foi-lhe
provocado. É o desejo de preencher um vazio, uma falta, que a obra lhe
chama a atenção. Porém, é um desejo que nunca pode ser realizado de
fato.
O espectador pinta com os olhos da mesma forma que o pintor
com as mãos. Os órgãos são diferentes, porém, tanto o gesto visual
quanto o gesto manual fazem parte de um mesmo universo carnal. Um
produz algo visível, o outro trabalha com o virtual (exceto naquelas
obras em que há a necessidade de colocar-se como autor, onde a obra
esteja inacabada e precisa da inserção do outro para continuá-la193). Se
realmente meu olhar pode “esposar as coisas”, como nos diz Merleau-
Ponty, então posso também pintar com os olhos. É um gesto virtual que
delineia no horizonte, a partir da retomada da obra, um outro possível
exemplar. A obra, ao se abrir, amplia-se, multiplica suas significações e
possibilidades. De alguma forma, ela fala ao espectador, pede-lhe que a
observe, que lhe empreste substratos carnais; mas ele, meio
timidamente, meio sem jeito, como se não soubesse direito o que fazer,
vai adentrando no obscuro desdobrar-se dela. E tateando por entre
linhas, cores e formas vai produzindo um movimento que se entrelaça
com seu corpo, alcançando o mundo, e arrastando consigo uma série de
desejos, faltas, vontades....
O que nos desconserta não é o convencional e o equilibrado,
mas àquilo que nos faz agir. A “grande Pintura194” equilibrou o olhar do
espectador, fixando-o numa contemplação prazerosa. A pintura
moderna, ao contrário, solicita o trabalho do espectador, deslocando-o
de seu lugar contemplativo, fazendo-o movimentar-se e entrelaçar-se
com o próprio ato criativo. Mais do que vidente, o espectador moderno
da arte é um fazedor: ele retoma a pintura, movimenta o seu corpo, e
com um gesto sensível dá continuidade à cor e ao traçado que o artista
deixara inacabados. Mais do que fornecer-lhe dados do mundo cultural,
a pintura provoca-o, instiga-o a aprender novos modos de ver o mundo,
algo semelhante ao cego que adquire a visão no decorrer da vida. Se a
obra não lhe causa nenhum impacto, então deixa-a num momento
posterior ao olhá-la. Entretanto, se a pintura o capturou, se esta o tocou
profundamente, então atingiu não-sei-o-quê de sua carne – seu “entre” –
, levando o espectador a interagir com ela. Ela o provoca: pede que a

193
Em que o espectador, de fato, precisa pegar o pincel e continuar a pintura.
194
Alguns livros de história da arte denominam a pintura renascentista como a
“Grande Pintura”.
232

retome e se enlace com ela. A pintura A origem do mundo, de Gustave


Courbert, causa-nos ainda, após mais de cinco séculos de sua criação, a
sensação de algo escandaloso e imoral. O realismo do nu feminino é
retratado de forma escancarada, crua, do fragmento corporal, do qual
não conseguimos visualizar sequer o rosto da modelo. Coubert relaciona
o ventre de uma mulher à origem do mundo e, consequentemente, da
vida. Nesta obra, o pintor mostra o dilema ético-moral que nos habita:
desejamos o corpo, mas o escondemos debaixo das roupas. Ao
escancará-lo, Coubert provoca o espectador e defronta-o com a
ambiguidade da qual, na maior parte do tempo, quer se afastar. Se, de
um lado, o corpo é algo que procuramos para satisfazer nossos desejos
mundanos, de outro, especialmente a partir do momento em que
entramos em contato com o título da obra, é também o lugar de onde se
origina a vida. Entre o profano e o sagrado, situa-se nosso desejo de
preencher uma falta. Em síntese, a obra de Coubert funciona qual
outrem em nossa vida.

Com a experiência sensível na pintura, vemos e sentimos um


outro visível, de tal modo como se ele se apresentasse a minha frente.
Por meio da imbricação (empiètement) com obras de arte, inserindo-nos
no mundo visual e sentinte, tornando-nos conscientes de que fazemos
parte do mundo, e mais do que isso, somos feitos do mesmo tecido de
que o mundo é feito. Através dos estilos de diferenciação, sendo pintura,
poema, objeto visual, sonoro ou palpável, como se cada um de nós,
fazendo parte do mundo visível, fôssemos uma espécie de outro do
outro.
No seio da visibilidade, no entre visíveis, instaura-se uma
invisibilidade. Entre uma pintura e outra, ou mesmo entre um traço e
outro, ou ainda entre uma cor e outra, percebemos uma ausência que não
é contrária à presença, mas como algo que estivesse ali, da mesma
forma que a outra visível, como seu anverso, e se impusesse ao nosso
olhar, denunciando nossas faltas. Esse espaçamento entre diferentes
aspectos do visível, produz uma lacuna que precisa ser preenchida. É a
partir dessa fissura, como se de alguma forma pudéssemos alcançar o
outro lado do visível, o seu avesso, a ausência-presença, que nos
propomos a nos aventurar na criação. A arte, de alguma forma, permite
com que exerçamos a liberdade de nossa vida, retomando todos os
dados e rastros “flutuantes” em nosso espaço virtual, reelaborando-os
numa atualidade simbólica. “A falta que nos olha como um vidente
233

outro é um convite à ação, ao deslocamento, à transposição


(enjambement)”, afirma Marcos José Müller (2015, p. 399). Como
horizonte de ideias, constituímos um novo tipo de ser: “um ser de
porosidade, de pregnância ou de generalidade, e aquele diante do qual o
horizonte se abre [...]” (VI, 193, 144). Desse modo, temos duas opções:
ou cristalizamos esse horizonte em instituições ou nos propomos a
entrar no mundo da criação. Afinal, podemos escolher olhar para o
mundo tal como os pensadores reflexivos e não aprender muita coisa de
novo, vivendo como se o mundo estivesse fixado e imóvel. Ou, ao
contrário, podemos mergulhar na própria experiência do pensamento, do
fazer e do falar, e, de maneira semelhante aos pintores e poetas,
participar do mundo ainda por se construir, lançando obras que sejam
matrizes de ideias, produzindo novas significâncias, fazendo com que a
vida dos interlocutores ganhem novas experiências.
Pensamos que diante de uma falta na qual se instala um desejo
que queremos realizar, basta-nos criar, como se tivéssemos a
possibilidade inteiramente em nossas mãos. Se isso fosse de tal modo
fácil e direto, não precisaríamos de tantos tratados, estudos e anos de
análises para tentar entender nossas frustrações e sentimentos advindos
de diferentes lugares e situações, bem como retiradas em nosso corpo
através dos tempos. Algo, porém, parece fugir ao nosso controle: já
lemos no decorrer deste estudo que uma espontaneidade se atravessa em
nossos pensamentos, falas e ações, os quais não dominamos. Assim,
sofremos a ação de algo que se doa por antecipação, não sabemos de
onde, mas que se faz presente em nossos empreendimentos corporais. É
nesse sentido que Marcos José Müller (2015, p 407) considera que:

À diferença da experiência da imbricação


(empiètement) na carne do mundo, qual vivência
de desdobramento sensível no mundo da
percepção e da cultura; à diferença da experiência
simbólica de transposição (enjambement) do
visível em benefício de idealidade de horizonte
que pudesse preencher a lacuna (a falta)
inaugurada pelo olhar do outro; o encontro de que
agora se trata é muito mais o advento de um
“rastro”, o que significa dizer, de algo que se
antecipa, que nos precede (precede), impondo-nos
algo sem que tal necessite ser buscado.

Com meu corpo, sei que vejo. A partir desta visão minha, vejo
que o outro também vê. Quando percebo que o outro vê e me vê
234

também, descubro-me outro. Através do olhar do outro, quando percebo


que sou visto, ocorre a instauração da vidência, de uma esquize, de algo
estranho que vem invadir a relação de reversibilidade do olhar. No meio
da reversibilidade tem uma esquize, uma fissura, uma mancha.
Tanto o pintor quanto o espectador podem experimentar essa
passividade de algo que se antecipa à sua análise e reflexão do quadro.
Mesmo que ele não busque alguma relação ou significação na obra, ela
lhe “ataca”, tornando-o diferente: ao olhar para a obra e sentir-se olhado
por ela, sem querer, ele não sairá o mesmo desta experiência. “Ante este
olhar que se apresenta para mim como rastro de algo que me precede,
que se doa como antecipação com a qual não posso me nivelar, o que
sucede a mim é o descentramento” (MÜLLER, 2015, p. 410). Em
síntese, Merleau-Ponty diz que “[e]ssa precessão do que é sobre o que se
vê e faz ver, do que se vê e faz ver sobre o que é, é a própria visão195”
(OE, 87, 44).
A filosofia que reabilita o Ser no sensível, que aprende com o
universo da pintura a ver além do visível – seu entre –, que nos mostra
que há determinadas coisas que não conseguimos compreender, pois, de
alguma forma, o Ser é inapreensível, faz da vida e da criação uma única
aventura: reaprender e reensinar a ver o mundo. Ver, criar, sentir, estão
ligados a “uma única rede do Ser” (OE, 89, 45). Mesmo que queiramos
retornar ao ponto de partida, agora, não mais poderemos: uma nova
abertura se faz. Não há mais, entrementes, que considerar a busca como
se em algum momento ou lugar do mundo pudéssemos encontrar o ideal
e o estabilizado. Ao contrário, no mundo, cientes do sistema de trocas,
da ambiguidade presente em nossa visão e co-extensiva ao nossos
sentidos, teremos que seguir em frente, avisados de que o mundo está
inacabado e por se fazer.

195
“Essa visão devoradora, para além dos ‘dados visuais’, dá acesso a uma
textura do Ser da qual as mensagens sensoriais discretas são apenas as
pontuações ou as cesuras, textura que o olho habita como o homem sua casa”
(OE, 27, 20).
“Tal é, talvez, a razão da perturbação diante da obra inacabada; é que
ela nos coloca brutalmente em face de uma ambiguidade essencial de
que preferimos, o mais das vezes nos afastar. O que desconcerta não é
que a última parte do discurso nos seja roubada, que o fim que o
escritor almejava seja doravante inacessível, pois que de fato agora
temos a certeza de que nunca será alcançado; é que, no mesmo
momento, devíamos descobrir a necessidade inscrita na obra – o
movimento profundo pelo qual a obra se instala na palavra para abrir-
abrir
se a um inesgotável comentário do mundo, advento a uma ordem da
existência onde parece...”

(Claude Lefort, posfácio a Merleau-Ponty,


Ponty, O visível e o invisível)
invisível
237

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS:

“Você já viu um quadro terminado? Um quadro, ou qualquer


outra coisa?
Ai de você, o dia em que disseram que você terminou!
Terminar uma obra? Terminar um quadro? Que absurdo!
Terminá-lo significa acabar com ele, mata-lo,
lo, livrar-se
livrar de sua
alma,
dar-lhe
lhe o seu golpe final:
uma situação extremamente infeliz,
tanto para o pintor quando para o quadro”.
(Pablo Picasso,, Uma ideia é um ponto de partida e nada mais)
mais

Ao chegar até aqui, sentimo-nos


nos como alguém que estivesse nos
labirintos do subterrâneo de uma cidade – ou num lamaçal – cujo
interior é povoado de seres e situações obscuras, profundas, quase- quase
intocáveis, meio-invisíveis,
invisíveis, pegajosas, inertes, enfadonhas, densas, ...
Obviamente
ente que nessa incursão não aparecem apenas coisas que nos
causem tristeza e que fossem difíceis. Há também um outro lado mais
vivaz e alegre, cuja beleza é quase impossível explicar em palavras. Foi
neste ínterim que presenciamos personagens cuja generosidade
generosi nos
fizeram crer que que vale a pena o investimento. Observamos também
cores e formas que faz com que a vida se torne algo muito mais leve e
simples do que a maioria acredita ser. Ouvimos por diversas vezes “trate
de fazer da sua vida uma obra de arte!”. Nesse sentido, perguntamo-nos:
perguntamo
o que querem realmente dizer com isso? Afinal, cada um tem uma visão
singular de conceber,
er, pensar e fruir a arte e a vida. Para alguns,
alguns pode
parecer algo sombrio e depressivo, para outros, alegre e prazeroso.
“Trata de saborear a vida; e fica sabendo, que a pior filosofia é a do
choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso
incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca [...]” – escreveu
Machado de Assis (2002, p. 158), em um dos seus mais aclamados
romances.
É preciso seguir em frente. É hora de emergir, deixar a obra
tomar outros rumos. Já não sou eu e o orientador
rientador quem a pensa e
elabora. Agora outros devem retomá-la para dar-lhe lhe tantas significações
quanto ela permitirá. O nascimento é necessário. Queremos ir adiante,
buscar novas aventuras expressivas. Outras obras nos aguardam,
238

almejam por nossa imersão e contribuição. Porém, advertimos-lhe: esta


obra não está pronta – está cheia de lacunas e buracos -. Há nela traços e
formas que não foram terminados: estão esperando a sua inserção
corporal para continuá-los. Existem espaços na obra cujas cores só terão
existência se alguém as puser. Estando na estante ou no aparelho virtual,
solicitam o trabalho do espectador-leitor para que ganhem vida – tal
qual o boneco Pinóquio do conto infantil italiano, que desejava se tornar
um menino de verdade –, fazendo parte do grande espetáculo do mundo.
Esperamos que os traços fragmentados, as formas derivadas, a partir
destes, e as cores esburacadas as quais utilizamos para imprimir nossa
obra, possam produzir um movimento em diversas vidas, provocando-as
a perceber que há uma nova filosofia a ser feita, tal qual projetou
Merleau-Ponty – como uma obra de arte –, ensinando-nos a reaprender a
ver o mundo. Mundo cujo enigma do olhar permite-nos experienciar a
atividade-passividade, que todo pintor sente ao criar uma obra e que é
coextensivo a todo espectador que tenha os olhos atentos. Afinal, esse
espetáculo que o mundo da vida apresenta, da mesma forma que o sol
mostra os seus raios todas as manhãs, e que poucos são os homens que o
veem vivamente, é um espetáculo que somente alguns poucos terão a
possibilidade de experimentar. Poucos, pois a maior parte dorme um
sono dogmático.
Ao mergulharmos neste estudo, em seu início, primeiramente
usamos um tom mais imperial, mais evidente, fazendo imagem visível
no mundo que habitamos. Com pinceladas largas, procuramos levá-lo a
perceber que uma montanha pode produzir inúmeras obras, basta que se
mostre ao pintor querendo que a expresse como um novo visível, numa
tela, às vezes mais próxima, outras, mais distante. Seja fragmento, de
um ou outro lado da rocha acima de Aix-en-Provence, seja qual for o
perfil escolhido, ou mesmo a técnica utilizada, para que se possa fazer
montanha no mundo cultural, precisa da inserção de um corpo.
Ressaltamos que não pode ser um corpo psico-físico-biológico; ele deve
ser ampliado, alargado até o ponto de atingir o motivo e ultrapassá-lo,
habitar o seu interior e se fazer montanha. De entrelaçar-se com ela até
atingir a fonte de onde ela nasce. É empregando linhas, cores e
movimentos que procuramos experimentar, por um processo de
diferenciação – de uma cor com outra, de um traço com outro, ou
mesmo de um traço com uma cor -, que a montanha, e todos os demais
“motivos”, vão se mostrando, vão aparecendo ao olhar do vidente, de
maneiras diferentes, tornando-se uma matriz de ideias, permitindo-nos
experienciar a gênese do Ser, através das suas “ramificações”.
239

Num segundo momento, procuramos adentrar para o mistério da


visão, contrapondo esse sensível com as cores que fora pintado pela
tradição filosófica, ora mostrando sua fecundidade e valoração, ora, seu
desprezo e descrença. Descartes foi o filósofo com o qual Merleau-
Ponty dialogou intensamente para pensar sobre o tema. Na esteira de
Panofsky, investigamos a representação da terceira dimensão por alguns
períodos da história da arte e por alguns artistas. Com isso, apendemos
que mais do que observar uma dimensão derivada das outras duas, a
profundidade nos permite ver a perspectiva do mundo vivido e habitado
por nós. É nesse sentido que aparece a expressão criadora, como
idealidade de horizonte, e que o tempo é seu maior correligionário.
Também buscamos compreender que as imagens picturais são formadas
quando o pintor se põe a trabalhar, e cujas inquietações com a vida e
com o mundo ele tenta resolver com pinceis e tintas. Com esta luta, o
pintor é atravessado por um estilo que vai aparecendo ao longo do seu
percurso expressivo. Esse dilema da vida, cujo desenrolar fez surgir uma
obra, é venerado no Museu como se ela se agigantasse, tornando-se uma
espécie de “semideusa”. Situação que permite aos críticos e
historiadores de arte, bem como grande parte do público em geral,
transformar o quadro em um pensamento cristalizado e instituído a tal
ponto de tornar-se “verdade” aquilo que dizem a seu respeito, seja do
artista, seja da obra. Os visitantes dos museus, cujo objetivo é, primeiro
registrar as obras, para depois as verem em casa, sem o contato direto
com elas, sem saber seus pormenores, tampouco saber dos dilemas pelas
quais passou o artista, seguem e se guiam por esses preceitos.
No terceiro e último momento, sentimo-nos atravessados por um
estranho que se instalou no seio da reversibilidade do olhar. Fomos ao
encontro das comunicações de pintores e escritores, para verificarmos o
quanto sentiam-se “guiados” ao “produzirem” suas obras. O início era
feito por eles: entravam no processo expressivo, porém, no decurso da
ação, uma mão alheia vinha guiar a sua, fazendo com que a obra
seguisse por caminhos antes sequer pensados e imaginados. Esta mão
tinha diversos nomes: insight, inconsciente, sussurro, sonho, acaso,
inesperado... apareciam tal como uma espontaneidade, doando-se, não
se sabe de onde partira. Fato que muitas vezes fazia o artista
experimentar o estranho, o inédito, o inaugural. O que o move a iniciar
um trabalho? Um desejo produzido por uma falta. O que faz um
espectador retomar uma obra? Preencher um certo vazio, sentir algo que
somente a arte é capaz de fazê-lo. Também tentar satisfazer um desejo
causado por uma falta. O que ele encontra? A fala do pintor e a do
quadro, e mais do que isso, experimenta uma passividade dupla: aquela
240

que reside no “interior” do quadro e aquela que se mostra como outrem,


como estranho.
Sendo uma obra inacabada, tal como um quadro, a vida precisa
ser retomada todos os dias com o mesmo desejo que o pintor sente ao
iniciar seu trabalho. A lição da pintura apresentada por João Cabral de
Melo Neto (2007, p. 375) vai ao encontro de nosso pensamento:

Quadro nenhum está acabado,


disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além de outro quadro
que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.

Contudo, não devemos nos entristecer: entre uma palavra e


outra, ou entre uma pincelada e outra, há um vazio, o oco, a vida.... e a
vida deve ser saboreada em todas as suas facetas. Até porque não
sabemos direito o que buscamos. Sobre isso escreveu Drummond (2007,
p. 177):

O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo.


É outra coisa.
Se me perguntam que coisa é essa, não respondo, porque não é
da conta de ninguém o que e estou procurando.
Mesmo que quisesse responder, eu não podia. Não sei o que
procuro. Deve ser por isso mesmo que procuro.

Em outro trecho Drummond (2007, p. 1256) parece dar uma


pista do que encontraremos:

Se procurar bem, você acaba encontrando


não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

E a vida, como o Ser, não se mostra inteiramente. Sentimo-la


em partes. Temos apenas pequenas “posses” dela em nossos instantes
vividos. Na maior parte das vezes estamos diante de nossas faltas, cujo
desenrolar é a busca por tentar preencher o vazio advindo destes
“estranhos” que surgem sem, ao menos, serem chamados ou procurados.
Simplesmente aparecem. Diante destes somos desejantes. O que é
241

interessante é que o desejo nunca, de fato, será realizado. Ou seja, nunca


poderemos dizer que chegamos à terra prometida, tal como creem os
cristãos. Afinal, por intermédio da psicanálise, aprendemos que nós
somos seres que nos deparamos constantemente com nossas
impossibilidades. É desta forma que nossa busca é um processo que não
se esgota.
As criações que ultrapassam a barreira do visível,
transportando-nos para o invisível até o limite daquilo que se doa, não
como imagem, mas como processão (precession) de um estranho como
outrem. Este se impõe como uma alteridade que habita minhas
vivências. A bem da verdade, somos atravessados por “esquizes” “as
quais produzem, em nossa vida, estranhamentos, embaralhando nosso
mundo que almeja por “comodidades”, deixando-nos levemente
descentrados.
Ao ler um texto, talvez você encontre uma referência, como
uma nota de rodapé, como ausente; um borrão que não lhe permite ler o
texto em seu desencadeamento argumentativo; um parágrafo não
devidamente formatado; frases com fontes diferentes; uma imagem
deslocada, cujo objetivo é provocar uma esquize... Todos esses artifícios
utilizados pelo escritor, mais do que nos explicar algo, ambicionam por
mostrar o estranho, aquilo que é o inexplicável da vida, que se faz
presente mesmo quando está ausente, mas que somente os atentos
percebem, cujo olhar já aponta para uma criação. Afinal, “o artista é
aquele que fixa e torna acessível aos mais ‘humanos’ dos homens o
espetáculo de que fazem parte sem vê-lo” (SnS, 24, 134).
Quiçá, consigamos fazer algo criativo com os dados de nossa
vida. Imersos no mundo sensível, cujo olhar vai exprimindo o quiasma
do visível e do invisível, diante de presenças-ausentes, possamos
experienciar diferentes camadas de Ser, ora como autores/pintores, ora
como espectadores/leitores. E, desta forma, seguimos adiante em nossa
vivência expressiva infindável.
Nosso desejo inicial foi o de criar uma filosofia tal como uma
obra de arte. Esse também era o desejo de Merleau-Ponty. Cremos que
conseguimos fazê-lo em partes. Ademais, estávamos investidos pela
tarefa de erigir uma tese filosófica. Fica uma questão: como seria criar
uma filosofia como uma obra de arte contemporânea. Ou, como pensar,
à luz de Merleau-Ponty, uma filosofia a partir do “modelo” de arte
contemporânea?
242
243

EPÍLOGO: No bailar do desejo desejante

Procuramos constantemente dar sentido a nossa existência e


nos perguntamos, de fato, o que devemos privilegiar para sermos mais
equilibrados e felizes. Em algumas dessas ocasiões recorremos à
filosofia e ao que a tradição do pensamento racional outorgou até o
momento presente, seu legado, com o objetivo de tentar nos esclarecer
nuances e dar respostas concretas a nossa busca, apaziguando, assim,
nossa angústia perante aquilo que vai se desenhando a nossa frente,
muitas vezes triste, deprimente e sombrio. Sonhamos com um mundo
perfeito em que pudéssemos desfrutar somente de coisas boas, apreciar
os aspectos belos e lidarmos apenas com sentimentos e emoções
positivas. Será este um lugar privilegiado que somente alguns
afortunados conseguem habitar?
Em 1945, Maurice Merleau-Ponty, um filósofo francês
interessado em adentrar nas raízes mais íntimas do ser, escreveu na
introdução de uma de suas obras mais lidas: Fenomenologia da
percepção: “A verdadeira filosofia”, afirma o filósofo, “é reaprender a
ver o mundo”. Mas, nos perguntamos: como devemos aprender a olhar
o mundo de maneira diferente e inovadora? Por onde devemos
começar? A tradição filosófica conseguiu fazer com que a humanidade
caminhasse de maneira melhor? Se conseguiu, de fato, batava ler os
textos clássicos e neles encontraríamos as fórmulas para uma vida feliz
e bem sucedida. Mas não é o que acredita Merleau-Ponty. Segundo ele,
devemos seguir por outros caminhos se quisermos investigar as nossas
questões essenciais. A tradição filosófica foi construindo sistemas que
ao invés de guiar a humanidade para o seu autoconhecimento, foi
petrificando a vida e encaixando-a em frascos onde se pode classificar e
analisar, como se ela fosse uma colcha de diversos retalhos pregados
uma ao lado do outro. Só que uma colcha é muito mais do que a junção
de retalhos: ela cobre leitos ávidos por aquecimento e conforto. Uma
colcha envolve o corpo de forma muito melhor do que se dispuséssemos
todos os retalhos espalhados soltos e desconectos. “O todo é muito
maior do que a soma das partes”, assegura-nos Merleau-Ponty.
Tentando ir além da tradição filosófica, inovar, aprender de
forma diferente, Merleau-Ponty opera uma escuta às obras de arte e às
falas dos artistas, revelando que a experiência sensível pode nos falar
mais da nossa existência do que a própria filosofia, e, assim, contribuir
para uma melhor vivência e convivência nossa neste mundo às vezes tão
cruel e angustiante, mas noutras tão afetuoso e surpreendente.
244

Aprendemos com Merleau-Ponty que estamos no mundo e não


podemos dele nos afastar para que possamos pensar a verdadeira
filosofia. Outro aspecto é que temos um corpo, ou melhor, somos um
corpo. Um corpo que é vibrante, que é forte e potente! Um corpo que é
flácido, retraído e inerte. Um corpo que é quebradiço, perfurado e
manchado. Um corpo que se expande, se dilata e vai além,
conquistando e se envolvendo com o mundo. Um corpo que às vezes é
pesado como uma rocha, tal qual a montanha acima de Aix em
Provence; outras, é leve como uma pluma a bailar ao sabor de uma
brisa matinal.
Também aprendemos com Merleau-Ponty, que este corpo vê, é
visto e, mais do que isso, percebe-se visto. É um corpo que se imbrica
com outros corpos. Essa é a primeira camada do Ser, proposta por
Merleau-Ponty, tomada aqui como “empiètement” (traduzido como
imbricação). Imbricação que permite ao pintor observar o movimento
da dança e transportar para a tela a cena constituindo-se num novo
visível. Nessa relação de imbricação com o visível, ele percebe que o
vermelho que imprime na vestimenta do dançarino é feita do mesmo
tecido carnal daquele que ilumina o horizonte, fazendo-se pôr-do-sol,
ou que habita o sabor das uvas dos vinhedos dos vales europeus ou da
serra catarinense, que produzem o vinho que embriagam a noite dos
boêmios apaixonados. Vermelho do sangue que corre nas veias do
corpo enrijecido. Vermelho da fruta que expulsou Adão e Eva do
Jardim do Éden. Vermelho da luxúria que habita a dança em contraste
com o azul que pousa nos olhos da dançarina. Azul que faz volitar o
vestido em oscilação. Azul do enlace com o infinito que se descortina no
horizonte da imensidão do céu. Azul que, muitas vezes, prefere ser
guiado e seduzido pelo vermelho vibrante. Noutras, prefere seguir seu
curso sozinho, contornando os obstáculos, tal como um pequeno riacho
a descer pelas montanhas. Cinza que une e equilibra como um fundo de
presença-ausência que sustenta os corpos quase-colados. Cinza que é a
união das cores complementares. Enfim, é um imbricar-se com visíveis
e que abre espaço para embrenhar-se num invisível latente, prestes a
mostrar sua face.
A segunda camada do Ser é o “enjambement”, traduzido aqui
como transposição, entrecruzamento, ou mesmo salto para o invisível
mais além da própria dança, seu movimento, suas possibilidades, suas
profundidades...O casal poderia ter permanecido inativo, imóvel, tal
como um livro fechado, empoeirado nas estantes de uma biblioteca, ou
uma obra de arte pendurada nas escuras paredes de um museu. Mas, no
entanto, preferem bailar, preferem jogar-se no delírio frenético da
245

dança, no aconchego do abraço envolvente, na conquista iminente do


amado e da amante. É um deixar-se ir na volúpia da emoção ardente,
no giro sensível do familiar-estrangeiro. A música bate da alma e no
peito ao invés de pousar nos instrumentos. A melodia toma conta dos
corpos molhados pelo embalo da dança. Flexuosamente ela se declina,
inclina-se ante a ação do outro. Afinal de contas, quem é este que a
tirou para dançar? Que é ele que se posta a sua frente e encosta em seu
corpo? Quais serão suas inquietações? Em quais pontos serão
parecidos? Em quais diferem? Será que futuramente brigarão, lavando
roupa suja na presença de familiares e amigos? será que terão filhos?
Esses filhos serão bem-sucedidos? Será, ao menos, que a convidará
para dançar uma outra vez? Será que irá conversar com ela após a
dança? Esse outro teria poder sobre ela? Ele invadirá seu espaço, não
a deixando desenvolver-se? A seduzirá ou deixar-se-ia seduzir? Será
que arrancará sua liberdade? Esse que se posta a sua frente, e se
intercomunica com ela, traz consigo uma série de enigmas e
possibilidades...
A terceira camada do Ser é “précession”, traduzida aqui como
precessão, como algo que aparece sem ser chamado. Simplesmente
aparece. Não bate à porta e pede licença para entrar em seu mundo tal
como uma música alta tocada na casa do vizinho em festa. Desse
estranho que invade seu mundo ela não sabe nada, não tem domínio,
não tem controle. Deve ela deixá-lo entrar? Ela tem esse poder de não
deixar ele entrar? O que pode aprender com ele? Será que o seduzirá
com o olhar ou será também seduzida? Ou seduzirão um ao outro? Será
que suas palavras e gestos encontrarão ecos em sua vida? Será que sua
energia vai entrecruzar-se com a dela, vigorando e tornando a sua
existência muito melhor? Será que um dia cairá bêbado pelas sarjetas
das ruas molhadas da pequena cidade, fazendo com que não
acompanhe o desenvolvimento e a educação de seus filhos? Será que
realizará seus desejos, torcerá por suas conquistas e vibrará com suas
realizações? Desse outro qual outrem, qual um estranho que vem
querer habitar sua vida ela sabe nada, ou quase nada. No entanto, o
bailado da dança, o cruzar dos olhos, o envolvimento dos braços, faz
com que ela o deseje. Mesmo sem saber, o desejo é desejante, e, muitas
vezes, é mais forte que a razão. A dança, desse modo, é a faísca que
poderá acender o fogo do romance e da conquista. O estranho que de
repente aparece está prenhe de probabilidades. Se de um lado pode ser
o inferno, como falou Sartre, de outro, pode também ser o paraíso.
Tal como uma pintura que permite ver seu movimento interno e
ir mais além, a dança, a vida, a obra, pode nos mostrar que precisamos
246

estar abertos para o desconhecido. Precisamos saber que há uma mútua


imbricação entre o visível e o invisível. Entre o “entre” visíveis, na
dobra que permite fazer com que linhas, cores e movimentos mostrem
“ramos de ser”, suas camadas, a pintura provoca nosso olhar, nos
permite ver outra coisa para além daquilo que está posto a nossa frente.
Esburacando o visível, a pintura abre nosso mundo para o
desconhecido e ainda não habitado, mas que, de alguma forma, vai se
mostrando à medida que vamos avançando em nossa jornada. Ela nos
ensina a ver. Ela mostra nossas faltas, falhas e desejos. Diante dela
nosso mundo se descentra. Com ela percebemos que nossa atividade é
atravessada por uma passividade ensinante. Esta atividade-passividade
está presente em todos os setores da nossa vida, em nosso trabalho, em
nossas relações familiares, em nossas vivências sociais.... Nestas
instâncias sabemos que não temos o controle sobre elas, tampouco o
temos do nosso destino. Contudo, é em nossa ação que a reação é
produzida. É através do movimento das nossas mãos que a obra é feita.
É colocando-nos no próprio bailar que a dança acontece. Picasso dizia
que “a inspiração pode até chegar, mas tem que te encontrar
trabalhando”. A musa inspiradora aparecerá se o pintor estiver diante
de sua tela. Tem que ser no aqui e agora! Isto porque passado, presente
e futuro só habitam no “instante do já”, como nos ensina Clarice
Lispector, e todo o espaço de que precisamos está ao nosso redor, em
nossa posse. Essa pintura que se diz linguagem conquistadora e que nos
põe a trabalhar é a que nos ensina a reaprender a ver o mundo.
Talvez devêssemos seguir o conselho de Cézanne deu a seu
amigo Émile Bernard: “Não seja crítico de arte, faça pintura. Esta é a
salvação”.

(Texto de apresentação na defesa da tese de doutorado em


14/08/2015. Imagem “elaborada” juntamente com esta escrita).
247
248
249

REFERÊNCIAS

De Maurice Merleau-Ponty196:

(C) Causeries (1948). Paris: Seuil, 2002. Em português:


Conversas: 1948. Trad. Fábio Landa e Eva Landa. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
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1953. Em português: Elogio da Filosofia. Trad. Antonio
Braz Teixeira. Lisboa: Guimarães Editores, 1998.
(IP) L’instituition/ la passivité: Notes de cours au Collège de
France (1954-1955). Paris: Belin, 2003.
(NC) Notes de Cours (1959-1961). Paris: Gallimard, 1996.
(OE) L’Oeil et l’Esprit. Paris: Gallimard, 1964. Em português: O
olho e o espírito. Trad. Paulo Neves e Maria E. Galvão
Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
(Parc1) Parcours (1935-1951). Lagrasse: Verdier, 1997.
(Parc2) Parcous deux (1951-1961). Lagrasse: Verdier, 2000.
(PM) La prose du monde. Paris: Gallimard, 1969. Em português:
A prosa do mundo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.
(PhP) Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1945.
Em português: Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
(PPE) Psicologia e pedagogia da criança: Curso da Sorbonne
(1949 – 1952). Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
(PrP) O primado da percepção e suas consequências filosóficas.
Trad. Constança. M. Cesar. Campinas/SP: Papirus, 1990.
(RCF) Résumés de cours. Paris: Gallimard. 1968.
(RCS) Merleau-Ponty na Sorbonne: resumo de cursos:
psicossociologia e Filosofia (19491952). Trad. Constança

196
Para uma melhor verificação e compreensão do leitor, dispomos também, em
paralelo às obras originais, as referências das traduções disponíveis em língua
portuguesa utilizadas ao longo do presente estudo. Valemo-nos, quando
necessário, de eventuais correções de tradução, as quais indicaremos em notas
de rodapé. Resolvemos utilizar as abreviaturas costumeiramente usadas nas
obras sobre Merleau-Ponty, dispostas ao lado das respectivas referências.
250

M. Cesar. Campinas: Papirus,1990.


(S) Signes. Paris: Gallimard, 1960. Em português: Signos. Trad.
Maria E. G. Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
(SC) La struture du comportement. Paris: PUF, 1942. Em
português: A estrutura do comportamento. Trad. Márcia V.
M de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
(SnS) Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966.
(UAC) L‘union de l’ame et du corps chez Malebranche, Biran et
Bergson: notes prises au cours de M. Merleau-Ponty à l’E.
N. S. (1947-1948). Paris: Vrin, 1979.
(VI) Le visible et l’Invisible: suivi de notes de travail. Paris:
Gallimard, 1964. Em português: O visível e o invisível. Trad.
José A. Giannotti e Armando Mora d’Oliveira. São Paulo:
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263

ANEXOS

“Ao fim de cento e quinze sessões, Cézanne abandonou meu retrato para
voltar a Aix. ‘Não estou descontente com a frente da camisa’, disse-me
disse
ao partir. [...] ‘Tente compreender, senhor Vollard, o contorno foge-me’.
foge
É difícil imaginar – escreve ainda Vollard – até que ponto, em certos
dias, o seu trabalho era longo e difícil. No meu retrato existem, na mão,
dois pequenos pontos em que a tela não está coberta. Fi-lo Fi notar a
Cézanne. ‘Se a minha sessão desta tarde no Louvre for boa – respondeu-
me -,, talvez encontre amanhã o tom justo para tapar esses espaços.
Compreenda, senhor Vollard, se pusesse aí qualquer
ualquer coisa ao acaso,
seria forçado a recomeçar todo o meu u quadro partindo desse ponto’”
(ELGAR, 1987, p. 130).
(A experiência de ver esta obra no Petit Palais,, em Paris, em janeiro de
2015, inspirou o prólogo desta tese).
264

Imagens que inspiraram os desenhos para a tese, respectivamente:


fotografia das mãos de Ida Mara Freire e a pintura Jardineiro Vallier,
Vallier de
Paul Cézanne.
265

Imagens que inspiraram os desenhos para a tese, respectivamente:


desenho de Rodin e a pintura Anunciação,, de Amauri Carboni
Bitencourt (pintado a partir daa pintura de Bartolome Esteban Murillo).
266

“O que não é substituível na obra de arte, o que a torna muito mais do


que um meio de prazer: um órgão do espírito, cujo análogo se encontra
em todo pensamento filosófico ou político quando positivo, é ela conter,
mais do que ideias, matrizes de ideias, é nos fornecer emblemas cujo
sentido nunca terminamos de desenvolver, é, justamente porque se
instala e nos instala num mundo cuja chave não temos, ensinar-nos a ver
e finalmente fazer-nos pensar como nenhuma obra analítica consegue
fazê-lo, porque a análise encontra no objeto apenas o que nele pusemos”
(S, 125, 111).
(As imagens acima foram criadas, pelo autor da presente tese, no
período intermediário entre o mestrado e o doutorado. Em cada quadro
há um fragmento de frase de Merleau-Ponty. Esta série constitui-se de
12 obras.)
267

Apresentamos três variações de um mesmo motivo: a primeira feita com


tinta acrílica, a segunda com tinta a óleo e a terceira, a óleo, inspirada
nos traços azuis de Cézanne.
268

Imagem 51: Pintura Mesa posta –


harmonia em vermelho (1908), Henri
Matisse.

Imagem 52: Pintura Homenagem à


Bleriot (1914), de Robert
Delaunay.

Imagem 53: Pintura cabeça alemão


com bigode (1920), de Paul Klee.
269

Imagens 54: Pintura Barcos à vela, ( de Lyonel Feininger.

Imagens 55, 56 e 57: Pinturas de Autoretratos de Van Gogh

Imagem59: Pintura Casal Arnolfini


Imagem 58: Johannes Vermmer, A vista (1434), Jan Van Eyck
de Delft, 1665.
270

Imagem 60: Pintura As vaidades da vida Imagem 61: Pintura Lavadeiras,


Lavadeiras (1912).
humana (1640), Harmen Steenwyck Pierre-Auguste Renoir

Imagem 62: Pintura A ronda noturna (1642), Rembrandt

Imagem 64: Pintura Blue dancers


Imagem 63: Pintura Girassois (1893), Edgar Degas.
(1889), Vincent Van Gogh
271

Esquize, descentramento, estranheza, “equívocos”, ...

Com o objetivo de fazer o leitor sair de sua zona de conforto,


decidimos “inserir” (ou extrair) no texto pequenos defeitos,
deslocamentos, certos “equívocos” previamente articulados e
elaborados. Desse modo, apontamos as seguintes articulações por nós
preparadas:
1- Trecho de poema invertido na introdução e no capítulo 4,
fazendo o leitor deslocar o texto ou o olhar para poder realizar a
leitura;
2- Nota de rodapé com explicação ausente (ausência:) na
introdução do capítulo 3;
3- Duas citações, em notas de rodapé, em francês que não foram
traduzidas;
4- Manchas de café e dobra/amasso do papel de
transparência/poema que faz introdução ao capítulo 4;
5- Imagem deslocada do nu feminino e masculino,
respectivamente, as obras A origem do mundo, de Courbert, e A
origem da guerra, de Orlan, no capítulo 4. (Detalhes das obras,
no artigo do psicanalista Sérgio Telles, que inserimos na
sequência, em anexos);
6- Citação longa direta deslocada para a esquerda da subdivisão III
do tópico 4.2;
7- Parágrafo com fonte diferente e com alinhamento à esquerda na
subdivisão III do tópico 4.2;
8- Mancha do último parágrafo da subdivisão V do tópico 4.2,
impedindo a sua leitura na íntegra: Para um melhor
esclarecimento, segue o parágrafo:

“Observando o mundo natural e o universo da pintura, com


todas as particularidades que atravessam o processo criativo do
artista – estranhamentos, familiaridades, técnicas, afecções
corporais, etc. – bem como o perceber a articulação entre a
atividade e a passividade diante desse trabalho, que exige a
reconstrução contínua de metamorfosear o visível em outro
visível, fez com que Merleau-Ponty empreendesse uma nova
proposta filosófica, qual seja, uma reabilitação ontológica do
sensível”.
272
273

A ORIGEM DO MUNDO, russas no final da Segunda


DE COURBET [1] Guerra. Trazido de volta a
Paris, foi comprado por Jacques
Lacan, que o mantinha em sua
SÉRGIO TELLES [2] casa de campo em
Guitrancourt, na qual o exibia
ritualisticamente a seus
convidados. Após a morte de
Lacan, a família cedeu o quadro
ao Museu d’Orsay dentro das
negociações com o Estado
francês em torno de impostos
referentes à transmissão de
herança.

A origem do mundo mostra os


genitais femininos da maneira
mais crua possível. Vê-se
Vê um
torso da mulher, os seios, o
ventre, as pernas afastadas, a
frondosa
osa cobertura pubiana e a
vagina entreaberta. A novidade
O quadro A Origem do recente é que teria sido
mundo tem uma história curiosa encontrada a parte superior do
à qual se acrescentou um novo quadro, que exibe os ombros e
capítulo semana passada. A tela a face da modelo, confirmando
foi pintada em 1866 por hipóteses anteriores que
Courbet, a pedido de Khalil afirmavam ser ela a irlandesa
Bey, diplomata turco-egípcio e Joanna Hiffernan, que posava
colecionador de quadros também para o grande pintor
eróticos, que a possuiu até o Whistler, de quem fora
momento em que, arruinado companheira, e que estaria
pelo jogo, teve sua coleção envolvida afetivamente com
leiloada. Em 1889, o quadro foi Courbet na ocasião em que o
encontrado num antiquário pelo quadro estava sendo pintado.
escritor francês Edmond de
Goncourt e, posteriormente, Supondo a veracidade da
comprado por um nobre descoberta, que ainda está em
húngaro que o levou para discussão entre os especialistas,
Budapeste, onde escapou da podemos
emos conjecturar quem teria
pilhagem realizada pelas tropas seccionado a pintura e por que
274

motivo. O quadro era tido como tempo e no lugar de seu


pornográfico e até muito surgimento.
recentemente mantinha essa
conotação. Não é então difícil Contrariando a representação
imaginar que o próprio pintor idealizada do nu feminino,
tenha resolvido mutilar sua obra Courbet o apresenta de forma
com o intuito de proteger sua realista. Consta que o grande
modelo. Ainda em 2009, livros crítico de arte e ensaísta
cujas capas o reproduziam vitoriano John Ruskin,
foram confiscados pela polícia reverenciado por Proust, jamais
em Portugal e páginas superou o choque ocorrido no
do Facebook que o exibiam leito nupcial, ao se deparar com
foram retiradas do ar em 2011. as características hirsutas de sua
Não deixa de ser surpreendente mulher, tão distantes da lisa e
que, em função do noticiário, glabra estatuária clássica que
sua imagem tenha aparecido lhe era familiar, acontecimento
abertamente em todos os de consequências desastrosas
jornais. para seu casamento, jamais
consumado fisicamente. Mais
recentemente,
emente, no final dos anos
60, o editor da Penthouse,
Penthouse Bob
Guccione, causou furor ao
mostrar esse detalhe da
anatomia feminina, até então
pudicamente evitado até mesmo
por sua rival, a revista Playboy,
de Hugh Hefner.

Atualmente a forma de dispor o


velo pubiano
biano parece estar num
outro estágio, evidenciando
que, a cada época, o erotismo
desenvolve novas estratégias de
A trajetória do quadro, vindo sedução e formas de acicatar o
dos porões da pornografia para desejo. Se Courbet, fiel aos
a consagração definitiva nos costumes de seu tempo, mostra
salões do Museu d’Orsay, o genital feminino envolto em
mostra como a apreciação de sua pilosidade natural, constata-
uma obra está inevitavelmente se como a moda atual é
atrelada aos valores vigentes no diferente, na medida em que a
depilação é a regra para as
275

mulheres e até mesmo para os Estado tem o dever de proteger


homens. Nos dias de hoje, os cidadãos e neste sentido,
Ruskin não teria tido problemas deve exercer a censura (aqui
em sua lua de mel. entendida lato senso, como o
poder de reprimir e punir) para
As transformações na maneira limitar os impulsos agressivos e
como a sociedade acolheu A sexuais que nos são próprios e
origem do mundo mostra como que precisam ser coibidos para
a arte, enfrentando a censura e garantir a vida em sociedade.
os preconceitos da época, luta Mas o exercício da censura é
para representar e expor o que é complicado, pois o Estado tem
considerado inaceitável, seus próprios interesses, que
proibido, não representável. nem sempre coincidem com os
Desta forma ela está da sociedade que deveria
permanentemente ampliando os representar. Por isso esta deve
limites e as fronteiras daquilo estar sempre atenta ao poder do
que é permitido pela moral e os Estado, especialmente no que
costumes. diz respeito às tentativas de
reprimir a livre manifestação de
Trata-se de um serviço opinião.
inestimável que a arte presta ao
conhecimento. Na medida em Pornografia ou arte, o quadro
que simboliza, representa e põe de Courbet mostra como a
em circulação conteúdos até representação explícita dos
então excluídos, torna possível genitais mantém inalterado um
o pensar e o refletir sobre eles. efeito perturbador sobre nós,
Com isso, os aspectos como algo arcaico vindo de
mistificadores, idealizadores, tempos imemoriais que nos
ideológicos – ou seja, a atinge profundamente, sem que
dimensão fantasiosa que possamos evitá-lo. Ela evoca,
acompanha estes conteúdos sim, a “origem do mundo”, o
quando forçados a medrar no mistério da vida, o enigma da
escuro – são expostos à luz, o diferença sexual - cujo impacto
que lhes retira a conotação determinante ocorrido na
assustadora, devolve-lhes a real infância continuará para sempre
dimensão e a possibilidade de repercutindo em nossas
um tratamento objetivo existências.
adequado.
A propósito da diferença
No fundo, estamos falando da sexual, em 1989, a artista
liberdade de expressão. O francesa Orlan, conhecida por
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suas incursões nabody art e


outras vertentes da vanguarda, [1] Versão ampliada de artigo
criou sua versão do quadro de publicado no Caderno 2 do
Courbet, na qual mostra um jornal O Estado de São
torso masculino com o falo em Paulo em 16/02/2013.
ereção, intitulando-o, [2] Psicanalista, membro do
significativamente, como A Departamento de Psicanálise do
origem da guerra. Como tudo Instituto Sedes Sapientiae.
que Orlan faz, o quadro e o
título convidam à polêmica. [Fonte: Disponível em:
Mais uma vez traz à tona a <http://www.sedes.org.br/
/www.sedes.org.br/
questão do que deve ser Departamentos/ Psicanalise/
exposto e do que deve ser index.php?apg=b_
ocultado. Ao atribuir às visor&pub=24&ordem=18>
mulheres o poder criativo e acesso em 30 de junho de
delegar aos homens a carga da 2015].
destrutividade, para tanto
invertendo o significado
convencional do falo enquanto
símbolo de fertilidade, Orlan
toma uma posição política de
denúncia contra a violência
machista ainda vigente mesmo
nas sociedades mais evoluídas.

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