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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

RAY RENAN SILVA SANTOS

A FISIOLOGIA DA INTERPRETAÇÃO NO PENSAMENTO DE


NIETZSCHE

João Pessoa – PB
Março / 2017
RAY RENAN SILVA SANTOS
A FISIOLOGIA DA INTERPRETAÇÃO NO PENSAMENTO DE
NIETZSCHE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade
Federal da Paraíba – UFPB – em cumprimento
às exigências para o título de mestre em
Filosofia, linha de pesquisa: Fenomenologia e
Hermenêutica Filosófica.

Orientador: Prof. Dr. Miguel Antonio do


Nascimento

João Pessoa – PB
Março/ 2017
Aos mistérios inauditos da existência,
por vigorarem em toda a constituição da
história, em tudo aquilo que é dito e em
toda e qualquer interpretação do que foi,
do que está sendo e do que ainda será.
6

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Miguel Antonio do Nascimento, por intermediar sempre, de


maneira séria e comprometida, o conteúdo do saber filosófico. Ao professor Sérgio Luís
Persch, pelas contribuições sempre pontuais e significativas, tanto na qualificação como
também na defesa. Ao professor Jelson Roberto de Oliveira, por ter dado a honra de sua
presença na banca. Ao professor Robson Costa Cordeiro, que assim como o professor
Miguel, desempenhou um papel importante em minha carreira acadêmica. E também
aos demais professores do curso de Filosofia.

Aos amigos do curso de Filosofia, em especial André Correia (pelos instantes


singulares de “adivinhações” e interpretações filosóficas), Wesley Renyer (pelos
estudos, juntamente com André Correia, sobre ceticismo grego) e Giordano Bruno (meu
caro “Protoplasma” e parceiro musical!). A André Egito, Renan Maia, Matheus e Carlos
Bezerra, sinceros amigos com quem pude compartilhar reflexões filosóficas. E também
aos demais colegas e amigos.

À minha amada companheira Manuh Junkes, por estar em minha vida dividindo
uma singularíssima caminhada.

Aos meus pais, Raimundo Nonato e Leônia Nunes.

À música, por exprimir, de modo exuberante, τέχνη e ποιησης em uma


linguagem transcendente. Por conseguinte, ao meu irmão Renato Renan, por doar-se ao
espírito da música, para que possamos servir de intermediários ao destino das
harmonias, melodias e ritmos que invadem nossas almas.

À CAPES, por ter financiado esta pesquisa, pois sem tal financiamento não seria
possível a sua realização.
7

Sócrates. Mas, então, vós os rapsodos,


por sua vez, interpretais os versos dos
poetas?
Íon. Também em relação a isso dizes a
verdade.
Sócrates. Mas, então, vós vos tornais
intérpretes de intérpretes?
Íon. Sim, completamente. (PLATÃO,
2011, 535a, p. 41).
8

RESUMO

Este trabalho tem por escopo analisar as noções de fisiologia e interpretação na filosofia
de Nietzsche. Para tanto, visto que Nietzsche não se propôs a escrever nenhum estudo
sistêmico referente a tais noções, a nossa tarefa consiste em exercer a atividade da
interpretação. Ao investigarmos o que é interpretação, a própria interpretação se faz,
assim, presente, realizando-se no percurso de nosso texto. Toda intepretação está situada
em um “lugar” a partir do qual sua efetivação é possível, e todo lugar exprime uma
diferença, uma singularidade. Essa diferença é referente à constituição fisiológica do
mundo como vontade de poder. Na medida em que o mundo se realiza a partir e
enquanto pluralidade de vontades, cada vontade diz respeito a uma configuração
específica e complexa que visa o domínio, domínio este que tem a ver com ponto
óptico, isto é, perspectivismo, interpretação a partir da qual aquele que interpreta não o
faz senão por meio de sua própria percepção. Contudo, quem interpreta? Haveríamos de
pressupor um “aquele” ou “quem”, como se houvesse um agente que interpretasse?
Visto que o mundo é pluralidade de vontades, a perspectiva lógico-metafísica da
unidade, no sentido quantitativo, já se mostra como uma atribuição de valor, como um
meio pelo qual vontades intensificam seu poder interpretativamente. É a partir do
desenvolvimento de tais pressupostos que toda a nossa pesquisa terá seus
desdobramentos.

Palavras-chave: Fisiologia. Interpretação. Vontade de poder. Nietzsche.


9

ABSTRACT

This work aims at analizing the notions of physiology and interpretation in Nietzsche’s
philosophy. To this purpose, since Nietzsche did not propose a systematic study
concerning such notions, our task consists in exercising the activity of interpretation. As
we investigate about what interpretation really is, interpretation itself is thus made
present, showing itself in the course of our text. All interpretation is located in a “place”
from which its effectuation is possible, and every place expresses a difference, a
singularity. This difference is related to the physiological constituition of the world as
will to power. Given that the world realizes itself from and while a plurality of wills,
each will is regarded as a specific and complex configuration that aims to domain,
which has to do with optical point, this is, perspectivism, interpretation from which who
interprets does it through his own perception. However, who interprets? Should we
presuppose a “that” or a “who” as if there was an interpreting agent? Since the world is
a plurality of wills, the logical-metaphysical perspective is shown as value assignment,
as a means by which wills intensify their power interpretively. It is from the
development of such assumptions that all our research will have its unfoldings.

Keywords: Physiology. Interpretation. Will to power. Nietzsche.


10

Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 10
1. FISIOLOGIA E INTERPRETAÇÃO À LUZ DO CONCEITO DE VONTADE DE
PODER ....................................................................................................................................... 15
1.1 Vontade de poder enquanto interpretação do mundo como unidade ................................ 15
1.2 Diferença e hierarquia como condição do interpretar ....................................................... 18
1.3 A relação entre fisiologia e interpretação .......................................................................... 21
1.4 O conceito de fisiologia à luz de uma fisio-psicologia ..................................................... 23
1.5 A concepção de erro no fisiológico ................................................................................... 26
1.6 Semiótica dos afetos enquanto linguagem e interpretação ................................................ 30
2. A FILOSOFIA DE NIETZSCHE ENTENDIDA A PARTIR DE UM CONFLITO
ORIGINÁRIO-INTERPRETATIVO...................................................................................... 33
2.1 Metáfora, dissimulação e conhecimento a partir da obra Sobre verdade e mentira no
sentido extra-moral ................................................................................................................. 34
2.2 O histórico e o a-histórico do ponto de vista da força plástica: uma reflexão a partir da
Segunda Consideração Intempestiva ...................................................................................... 41
2.3 O Übermensch e a superação do homem .......................................................................... 47
2.4 O Übermensch em contraposição ao letzte Mensch .......................................................... 50
2.5 Das três transformações .................................................................................................... 52
2.6 Os valores suprassensíveis como obras-homem ............................................................... 56
2.7 O corpo como grande razão e a pequena razão a serviço do corpo ................................... 59
3. FISIOLOGIA E INTERPRETAÇÃO SOB A ÓTICA DOS VALORES MORAIS ....... 66
3.1 Fenômeno e interpretação moral dos fenômenos .............................................................. 66
3.2 A interpretação do homem como sujeito e a ilusão da causalidade .................................. 73
3.3 A inevitável permanência na tensão .................................................................................. 77
3.4 A confusão entre meio e fim como condição de conservação da espécie e os conceitos de
nobre e escravo ........................................................................................................................ 79
3.5 A criação de valores a partir do conflito-vida ................................................................... 82
3.6 Anseio e insatisfação como aumento do poder ................................................................. 85
3.7 O conceito de egoísmo interpretado por Nietzsche como força propulsora ...................... 88
3.8 Abismo e perspectiva: o fundamento a partir do não-fundamento.................................... 91
3.9 Acerca da aparência lógica do mundo ............................................................................... 95
3.10 Esgotamento fisiológico .................................................................................................. 98
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 103
REFERÊNCIAS: ..................................................................................................................... 105
10

INTRODUÇÃO

A tarefa do pensamento filosófico se exprime por meio de um empenho para se


trazer à luz o que há de originário. Quando nos propomos a investigar o pensamento de
um filósofo, estamos a exercer essa atividade. A característica dessa atividade pode ser
definida como uma interpretação. Interpretar significa fazer mediação entre algo. Neste
caso, entre o real e o pensamento. Não mais o pensamento de um filósofo, mas o
pensamento que vem à presença por meio de um filósofo. Isso significa que numa
interpretação do real, o próprio real é o que possibilita o interpretar. Na interpretação, o
real se consuma, se realiza e se renova em um movimento que lhe é próprio. Se é assim,
isto é, se a atividade do pensamento consiste em uma efetivação do real, então a
propositura de Parmênides condiria com uma interpretação originária do real: “Ser e
pensar é o mesmo”. Pensar é deixar-se conduzir pelo Ser. Esse deixar-se conduzir já
implica no próprio envio do Ser apropriando-se do homem. “Apropriar”, contudo, no
sentido de dar-lhe o lugar próprio, realizá-lo e constituí-lo enquanto tal. Por isso
Heidegger (1995, p. 24) diz que “a linguagem é a casa do Ser”. Linguagem, aqui, é a
condição primacial a partir e na qual o homem se faz homem. No dizer de Nietzsche,
essa condição de possibilidade para que haja linguagem e interpretação é vontade de
poder. É em um contínuo empenho, em uma ânsia por intensificar poder, que o homem
vem a ser o que ele é. Nisso se mostra a constituição fisiológica do mundo em sua
totalidade. Toda interpretação, assim, é proveniente de determinadas pressuposições
fisiológicas, de uma multiplicidade de vontades em conflito, interação e vigor.
Interpretação diz respeito, antes de tudo, ao não-verbal, pois tudo o que é verbo,
por ser definição, é também consequência, resultado, relação entre um sujeito e um
predicado. Essa relação entre sujeito e predicado, quando vista apenas enquanto uma
aparição quantitativa, falseia o múltiplo-originário sob a ótica da lógica e da metafísica.
Visto que o mundo é vontade de poder e nada além disso, toda e qualquer interpretação
exprime uma vontade de assenhorear-se do real, de apoderar-se dele a partir de sua
própria ótica, isto é, perspectivamente. A metafísica exprime essa vontade de poder. Em
sua origem, trata-se de uma vontade de tornar unidade aquilo que é múltiplo. Com
efeito, na medida em que o mundo se efetiva a partir de múltiplas vontades, todas elas
sendo pulsões interpretantes e perspectivistas, a metafísica se mostra como um
problema. Por quê? Porque, ao determinar o que é o mundo sob sua própria perspectiva,
11

ela não permite a possibilidade de outras perspectivas. Trata-se, assim, de encobrir e


falsear a dinâmica do real a partir de um ponto óptico. Vontade de poder, neste caso, se
consuma em uma desarmonia, em uma hýbris da natureza em relação a si própria. Por
isso, na concepção de Nietzsche, faz-se necessária uma crítica dos valores morais, pois
estes, por estarem em uma relação com o real, tanto podem dizê-lo mostrando a
dinâmica própria donde eles provêm, como também podem dissimular, ocultar, falsear
tal dinâmica mediante determinadas configurações de domínio.
No primeiro capítulo deste trabalho, procuramos mostrar a relação entre
fisiologia e interpretação, com o intuito de que chegássemos ao entendimento de que
toda interpretação parte de um determinado estado ou processo fisiológico. Para
compreendermos isso, analisamos de que modo Nietzsche concebe uma fisiologia a
partir de sua teoria fundamental da vontade de poder. Enquanto um conceito que
exprime multiplicidade, demonstramos como surge uma interpretação lógica do mundo
a partir da ideia de “unidade”. Tendo em vista que cada vontade de poder diz respeito a
uma configuração complexa e específica, desenvolvemos uma análise sobre diferença e
hierarquia como a própria condição fisiológica por meio da qual se torna possível uma
interpretação. Ao desenvolvermos essa relação entre fisiologia e interpretação, tornou-
se possível aprofundarmos tais noções a partir do que Nietzsche entende por fisio-
psicologia atrelada à teoria da vontade de poder. Na medida em que nos foi possível
construir um caminho para alcançarmos uma compreensão sobre o significado de
interpretação e fisiologia, desenvolvemos a concepção de erro no fisiológico,
compreensão esta que nos possibilitou um aprofundamento da teoria da vontade de
poder. Esse percurso nos levou a uma investigação do que seria a “moral” do ponto de
vista do que Nietzsche entende por “semiótica”, sendo a compreensão desta associada à
noção de “afeto”. Por sua natureza remeter aos afetos, a moral é entendida aqui como
uma atividade a partir da qual o homem se torna homem. Ela diz respeito, portanto, à
atividade do simbolizar e do interpretar o real.
O segundo capítulo diz respeito a uma análise acerca de duas fases da filosofia
de Nietzsche, a saber, a que concerne aos escritos de juventude e a que se refere aos
escritos de maturidade. São tomados por base os seguintes escritos: Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral, Segunda consideração intempestiva e Assim falou
Zaratustra. Essa análise pretende demonstrar uma intrínseca relação entre conceitos que
se encontram na obra de juventude e conceitos referentes à obra de maturidade, isso
para que possamos ampliar as noções de fisiologia e interpretação por meio de conceitos
12

tais como metáfora, valor, histórico e a-histórico, força plástica, além de Übermensch,
lezte Mensch e corpo.
Toda interpretação se constitui por meio de uma metáfora, pois evoca o real
enquanto atribuição de valor e, portanto, não pode ser tomada como em si. O
desenvolvimento dessa compreensão de metáfora nos permite uma crítica à metafísica
que também estará presente em outros escritos de Nietzsche. Toda interpretação se faz
presente, também, na constituição da história, de modo que quando interpretamos algo
no instante presente, o fazemos à medida que carregamos uma herança histórica.
Entretanto, quando essa herança histórica não nos permite mais criar, quando tal
herança nos faz repetir erros de outrora, faz-se necessária uma força plástica, força que
tanto é condutora da própria história, como também é a proveniência de uma ruptura, de
um salto, de uma possibilidade para que se possa criar o novo. Mas esse novo – o que é?
Se a história vem repetindo os mesmos erros advindos da metafísica, apenas o
Übermensch pode anunciar a superação da metafísica. Esse anúncio nos vem por meio
das palavras de Zaratustra. Este nos ensina que o corpo é a “grande razão”. Se a tradição
da filosofia determinou a primazia da alma ou do intelecto em relação ao corpo, na
concepção de Zaratustra o corpo exprime a constituição própria do real, de modo que o
“eu” ou o “espírito” são apenas consequências, resultados de um conflito que se dá no e
partir de corpo. Por dizer respeito a essa dimensão do originário, o corpo é “grande
razão” sobretudo porque é vontade e, sendo vontade, é também interpretação,
linguagem, afeto.
No terceiro capítulo, analisamos as noções de fisiologia e interpretação sob a
ótica dos valores morais. Para tanto, expusemos a compreensão de fenômeno e
interpretação moral dos fenômenos. Na medida em que o mundo, sendo vontade de
poder, se manifesta no homem como poder-de-interpretar e valorar, todo fenômeno que
lhe chega à percepção já é um fenômeno interpretativo. Aí reside o significado próprio
de “moral” para Nietzsche: moral é interpretação sem a qual o homem não vem a ser
homem. Moral, portanto, é o ser-afetado-por, é uma condição na qual o homem se
encontra sempre, pois enquanto ser que interpreta, o homem o faz moralmente, ao
atribuir valor ao que foi, ao que está sendo e ao que ainda será. Nesse ínterim, a
concepção moderna do homem como sujeito nos vem à tona como uma interpretação
moral. Enquanto tal, ela diz respeito a um falseamento, a uma dissimulação de uma
multiplicidade de vontades de poder. O homem, ao interpretar a si mesmo como
unidade subjetiva, o faz tentando eliminar a tensão originária que condiz com ser
13

múltiplo. Apesar de querer se livrar dessa condição, o homem ainda permanece nela,
pois não é detentor nem de si mesmo nem do mundo. O mundo, aliás, o detém na
própria interpretação de si enquanto unidade, pois toda interpretação é condicionada a
partir de um contexto e de um mundo de vivências.
Todavia, na medida em que o homem se concebe como sujeito de suas ações,
ocorre aí uma falsificação do real por meio de uma confusão entre meio e fim: o mundo
só lhe aparece a partir de uma causalidade. Mas a causalidade é um valor, e todo valor é
meio para intensificar o poder; porém, o homem, ao intensificar o poder por meio de
valor, superestima tal valor como em si, de tal modo que o que é meio vem a ser
interpretado tanto como princípio quanto como fim de suas motivações. A criação de
valores, contudo, somente se dá no conflito, embora determinados valores sejam criados
como forma de se apartar dessa constante luta originária. Na motivação de todo agir
vige um anseio, e todo anseio é proveniente de uma insatisfação. Essa insatisfação é a
condição do mundo como vontade de poder; é, assim, simultaneamente, motivação para
poder mais. Visto que vontades de poder são pulsões específicas, diferentes e
perspectivistas, cada vontade diz respeito a um egoísmo, a uma força propulsora que
visa alimentar, antes de tudo, a si mesma. Vontade de poder é de tal modo egoísta, que
até mesmo por trás de toda motivação altruísta, vigoram pressupostos fisiológicos
originariamente egoísticos. O “ego”, aqui, não significa nenhuma unidade, coisa ou
substrato, mas tão somente um centro de poder, no qual vige uma pluralidade de afetos.
É essa pluralidade de afetos que origina interpretação. Na medida em que o mundo
continuamente se transforma, toda interpretação advém de abismo, de nada; é esse nada
que é “fundamento”, porém sem fundo, pois não é coisa, não é nada acabado. É esse
nada, esse processo fisiológico de constituição do real, que possibilita a própria aparição
da lógica e do mundo interpretado logicamente. A aparência lógica do mundo é, assim,
uma aparência perspectivista e interpretativa, na qual e a partir da qual um ponto óptico
desponta, desabrocha como vontade de poder, como vontade de submeter o real à sua
perspectiva. Mas, donde provém essa vontade? O que a origina? Considerando a
concepção de fisiologia, trata-se de um esgotamento fisiológico, de um cansaço e
fraqueza de determinadas vontades que somente se conservam à medida que lutam
contra a dinâmica do real. Vontade de poder é, neste caso, vontade de permanecer numa
desarmonia em relação à tensão originária do mundo.
Nietzsche não deixou nenhum escrito sistemático sobre o que seria interpretação
e fisiologia. Todavia, sua forma aforística de escrever nos possibilita um empenho por
14

interpretar sua interpretação do real. Isso porque na interpretação de um aforismo, não


se trata apenas de ler e decifrar o seu significado. Segundo o próprio Nietzsche no
prólogo de Para a genealogia da moral, a compreensão de um aforismo requer uma
arte da interpretação (“Kunst der Auslegung”). É a essa arte que nos propomos no
presente trabalho.
15

1. FISIOLOGIA E INTERPRETAÇÃO À LUZ DO CONCEITO DE VONTADE


DE PODER

1.1 Vontade de poder enquanto interpretação do mundo como unidade

O percurso que deve nos guiar para o entendimento das noções de fisiologia e
interpretação requer uma análise prévia do conceito de vontade de poder. De fato, é
somente à medida que temos em vista que tal conceito exprime, para Nietzsche, o
mundo em sua totalidade, que se torna possível nos propormos a uma interpretação de
outras noções que permeiam sua obra, principalmente a de maturidade. Dizer o real em
sua totalidade implica, ainda, em uma outra tarefa: a de dizer o que é o homem. Essas
questões são tão inseparáveis, que poder-se-ia dizer que não se pode responder a uma
sem também responder à outra. O que é o mundo? – Já a natureza dessa pergunta se
mostra a partir de uma condição humana, pois nela aparece a humanidade do homem
enquanto ser que pensa racionalmente. O que é o homem? – Seria impossível
respondermos a essa pergunta sem situarmos a própria pergunta e o homem em um
determinado lugar, isto é, em um determinado mundo a partir do qual é possível fazê-la.
Tendo em vista essa relação entre mundo e homem, veremos que o conceito de
vontade de poder abarca essas duas perguntas essenciais sobre a natureza de ambos.
Enquanto fundamento e princípio, vontade de poder não pode ser reduzida ao conceito
de “unidade”, nem no âmbito da totalidade do mundo, nem no âmbito da natureza do
homem. Aqui, ao proferirmos a palavra “totalidade”, já podemos incorrer em uma falsa
relação de “totalidade” e “unidade”. No âmbito da metafísica, a totalidade exprime
justamente uma unidade a partir da qual o todo vem a ser o que é. Para nos
distanciarmos dessa perspectiva, devemos analisar o que Nietzsche entende por
“unidade”:

Toda unidade só é unidade como organização e combinação: em nada


diferente de como uma comunidade humana é uma unidade: o
contrário, portanto, da anarquia atomística; por conseguinte, uma
configuração de domínio, que significa um, mas não é um.
se toda unidade só fosse unidade como organização? Mas a “coisa”,
na qual acreditamos, é tão somente inventada de acréscimo como
fermento para diferentes predicados. Quando a coisa “atua”, isso
significa que concebemos todas as demais propriedades, que de resto
ainda existem aqui, e momentaneamente estão latentes, como causa de
que agora uma única propriedade sobressaia: isto é, tomamos a soma
16

de suas propriedades – x – como causa da propriedade x: o que é


inteiramente tolo e aloprado! (NIETZSCHE, 2008, § 561, p. 292).

A ideia de unidade diz respeito ao âmbito do significado, não do que é. Assim


como a ideia de comunidade não diz uma unidade de fato, também a concepção de
unidade como totalidade somente traz à tona uma “configuração de domínio”. Em uma
comunidade reside, assim, uma pluralidade e, portanto, uma diferença que, enquanto tal,
quer se encobrir e não aparecer em sua diferença. Essa compreensão pressupõe que por
trás de toda quantidade reside uma qualidade, e toda qualidade exprime uma
multiplicidade que não se pode reduzir a quantidades. Quando concebemos, porém,
uma “coisa”, esta já aparece reduzida a uma quantidade. Não somente ela se reduz a
uma quantidade, como também o(s) seu(s) predicado(s). Todo predicado remete a uma
coisa a qual ela predica, e toda coisa pressupõe um predicado que a predique. Mas toda
“coisa”, na medida em que é unidade, somente o é enquanto significado, e todo
predicado, na medida em que é unidade predicativa, somente o é enquanto significado.
Coisa e predicado são, assim, multiplicidade, pluralidade, profusão e abundância do
real. As quantidades podem, com isso, ser concebidas como sinais de qualidades, pois
estas dizem o múltiplo, o real em sua dinâmica de eclosão e irrupção contínua por meio
da qual a própria quantidade vem a ser significada enquanto tal. Ao que pergunta
Nietzsche (2008, p. 293, 564): “Não deveriam ser todas as quantidades sinais de
qualidades?” Isso nos leva à compreensão de que o mundo, sendo vontade de poder, é
poder em vista de intensificação. Essa intensificação gera quantidades, aumentos
graduais e contínuos de poder, porém “o crescimento é ansiar ser mais; a partir de um
quale cresce o ansiar por um mais de quantum”. Quantidades são, assim, consequências
da vontade de poder. Mas como e em que está a atividade própria da vontade de poder a
partir da qual ela atribui significados que vêm à luz como coisa quantificada? No ansiar
pelo poder e pela intensificação, simultaneamente se dá interpretação:

A vontade de poder interpreta: na formação de um órgão trata-se de


uma interpretação; ele delimita, define graus, diferenças de poder.
Meras diferenças de poder ainda não poderiam sentir a si mesmas
como tais: há de existir um algo que quer crescer, que interpreta cada
outro algo que quer crescer a partir de seu valor. Nisso são iguais – Na
verdade, interpretação é um meio próprio de assenhorar-se de algo.
(O processo [Prozess] orgânico pressupõe um ininterrupto
interpretar.) (NIETZSCHE, 2008, § 643, p. 328).
17

Na interpretação vige o movimento originário de cada vontade: o avaliar outras


vontades a partir de si, o intensificar seu poder mediante a apropriação e subjugação do
outro. A interpretação, portanto, se assenhoreia, se apropria de algo à medida que, em
sua essência, ela é vontade de poder, movimento contínuo para poder mais. Sendo esse
movimento para sempre poder mais, a característica do processo orgânico das vontades
pressupõe e implica em um “ininterrupto interpretar”. Esse processo, quando remetido à
ideia de “unidade”, aparece como uma interpretação que não se deixa enfraquecer em
sua vontade, ou seja, aqui as vontades de poder exercem o seu vigor no que tange às
configurações de domínio. Todavia, esse domínio não é algo de estável, não é algo que
permanece continuamente o mesmo, pois as vontades oscilam entre crescimento e
diminuição do poder, na medida em que se constituem por meio de um jogo de mando e
obediência. É isso o que nos faz refletir as palavras de Zaratustra:

Como se dá isto? – assim me interroguei. Que induz o vivente a


obedecer e a mandar e, ao mandar, praticar, ainda, a obediência?
Ouvi a minha palavra, agora, ó os mais sábios dentre os sábios!
Verificai seriamente se não me insinuei no coração da própria vida e
até às raízes do seu coração!
Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade
do servo encontrei vontade de ser senhor. (NIETZSCHE, 1987, p.
127).

Dessa forma, vontades de poder se manifestam a partir e em um jogo no qual


interpretação aparece como processo. Na medida em que vontades de poder são
originariamente mutáveis, as interpretações advindas dessas vontades também o são.
Como poderíamos, então, falar acerca de determinadas unidades, tendo em vista esse
caráter efêmero do mundo? Müller-Lauter (1975, p. 75) diz que “só se pode falar de
unidades continuamente mutáveis, não, porém, da unidade. Unidade é sempre apenas
organização, sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de poder dominantes.”.
Entendemos, assim, o sentido da proposição de Nietzsche, quando diz que unidade
“significa” algo, mas não o “é”. Significar diz interpretar. Toda interpretação se renova,
se atualiza no espaço e no tempo para dar vazão à vontade de poder. Embora vontade
vise uma determinada permanência de uma perspectiva, ela o faz sem se dar conta de
que a cada instante vem a se alterar devido à sua própria dinâmica de crescimento e
intensificação do poder. É em um jogo entre mande e obediência, entre crescimento e
diminuição que vontade vem a se constituir em relação com outras vontades. Por ser
18

assim, isto é, por cada vontade dizer respeito a uma força querendo se intensificar, as
diversas vontades, pela sua própria natureza específica, se encontram em uma relação de
conflito. Esse conflito exprime, pois, a dinâmica de eclosão e irrupção contínua do
mundo como vontade de poder.

1.2 Diferença e hierarquia como condição do interpretar

Cada vontade se consuma e se realiza essencialmente na diferença. “Diferença”


entendida aqui como a constituição fisiológica própria de cada ser. É dessa diferença,
pois, que advém conflito, guerra, combate. Não somente o combate entre vontades
advém da diferença, como também a própria diferença já é, nela mesma, o combate. Ao
partirmos dessa compreensão, veremos que a diferença-combate é o que proporciona
relação entre vontades, relação esta que se mostra como hierárquica. Relações de poder
se efetivam enquanto relações hierárquicas. Contudo, faz-se necessário que
compreendamos o sentido de “hierarquia” aqui exposto.
Falamos antes que o conflito entre vontades, sendo o que exprime diferença,
demonstra uma hierarquia. O que é essa hierarquia? Para respondermos a essa pergunta,
antes questionemos: O que significa conflito? Pois dissemos que tal conflito é
hierárquico. Ao mencionarmos a palavra “conflito”, podemos incorrer em uma
compreensão metafísica do real. Isso porque a ideia de conflito é entendida a partir da
concepção de “oposição”. Todavia, se dissermos que algo é oposto a outro algo,
estaremos exprimindo um juízo ontológico falseador do real. Como? À medida que
fixamos um juízo em si, um valor determinante do mundo. Na origem dessa
determinação de valor está uma perspectiva, isto é, uma interpretação de mundo. Por
isso, ao se referir à metafísica enquanto visão de mundo que parte de oposições,
Nietzsche traz à tona sua concepção de “hierarquia” justamente para não se situar no
âmbito da metafísica: “Oposições postas no lugar das graduações e das hierarquias
naturais. Ódio à ordenação hierárquica.” (NIETZSCHE, 2008, § 37, p. 42). A expressão
“hierarquias naturais” traz à luz a interpretação nietzschiana da natureza do mundo
como vontade de poder. A constituição dessa hierarquia é, assim, entendida como a
própria natureza, como o próprio fluir das vontades de poder.
Uma questão agora se nos impõe como reflexão do conteúdo filosófico do
pensamento de Nietzsche: Qual seria a legitimidade do diagnóstico nietzschiano de que
o mundo não possui um sentido em si, mas sim, interpretações, pontos ópticos que
19

despontam a partir de determinadas pressuposições fisiológicas? Visto que tal


concepção já se mostra como interpretação, em que estaria a importância de trazê-la à
tona? Tal questão diz respeito à história do homem, não somente ocidental, mas do
homem em sua humanidade. No fragmento 590 de A vontade de poder é dito que
“Nossos valores são introduzidos nas coisas pela interpretação”. A relação entre “valor”
e “interpretação” se mostra aqui como intrínseca. O modo próprio a partir do qual o
homem intensifica o poder é no e a partir de valor, na e a partir de interpretação, sendo
ambos perspectivismo. Nisso encontramos a origem da interpretação metafísica de
“oposição” e “sentido em si”:

O ponto de vista do “valor” é o ponto de vista das condições de


conservação e incremento com referência à complexa configuração da
relativa duração da vida no interior do devir:
– não há unidades últimas duradouras, átomos, mônadas: também aqui
“o que é” [“das Seiende”] é antes introduzido por nós (por motivos
práticos, utilmente perspectivos). (NIETZSCHE, 2008, § 715, p. 360).

No que se refere ao devir, o valor, enquanto meio de conservação e incremento,


se apresenta como possibilidade de uma “relativa duração”. O que é essa relativa
duração do valor? É a sua efetivação enquanto tal, pois valorar significa precisamente
isso: dar sentido ao que é complexo, efêmero, múltiplo e destituído de sentido. Ao se
deparar com essa complexidade da vida, ao lidar com essa multiplicidade de sensações
– ato do qual o homem não se dá conta –, valor já se efetiva enquanto essência do
homem em seu agir, isto é, em seu incremento do poder. Na medida em que valor é
meio para poder-mais, este se mostra como poder-dizer-o-que-é, ou seja, poder evocar o
real. Tal atividade, porém, como o próprio Nietzsche diz, advém de “motivos práticos”,
“utilmente perspectivos”. Prática e utilidade, por sua vez, têm a ver com simplificar o
que é complexo, nomear o inominável. Ao entendermos dessa maneira, a resposta à
nossa questão anterior sobre qual seria a legitimidade da crítica de Nietzsche se nos
apresenta por si só: Ao trazer à tona o mundo como vontades de poder interpretantes, tal
interpretação se mostra em seu reconhecimento enquanto tal, isto é, em sua
proveniência posta como fundamento de tudo, e tal fundamento como não sendo coisa
alguma, pois não se trata de uma coisa, de um sentido, de uma verdade, mas, antes, de
múltiplas relações entre vontades que estão a se constituir constantemente.
É em seu esforço para ser, em sua busca incessante para poder mais, para
intensificação do poder, que vontades de poder se realizam. Essa concepção, vista de
20

outro modo, apresenta a totalidade da vida em sua dinâmica. Vida é, então, isso:
vontade para poder; e uma vez que vontade não é nada substancial, nada previamente
constituído, vida se mostra como nada, como abismo, como jogo gratuito das vontades
pura e simplesmente com vistas a se consumarem no, para e partir do poder, sem
finalidade alguma, sem nenhum sentido previamente dado. Na perspectiva da
metafísica, essa gratuidade, esse desabrochar espontâneo e sem finalidade da vida é
concebido a partir de uma interpretação teleológica. Com isso, os acontecimentos da
natureza e os atos humanos são vistos como tendo um fim, uma meta que cumpre com a
realidade em seu ser. Entretanto, “A vida mesma não é nenhum meio para algo; ela é a
expressão de formas de crescimento do poder.” (NIETZSCHE, 2008, § 706, p. 353). Se a
vida não é nenhum meio para uma finalidade, não possui nenhum sentido por si mesma,
isso significa que a metafísica, ao concedê-la um sentido, uma unidade e uma verdade
fixas, o faz travando uma guerra contra a vida. Não se trata apenas de falsificar o real,
mas de falsificá-lo pelo fato de não suportá-lo. As oposições de valor, dessa forma, são
oposições em relação ao nada, ao sem fundo que é vida. Enquanto opostos, tais valores
são também o que mantêm o crescimento, o aumento do poder:

“Belo e feio”, “verdadeiro e falso”, “bem e mal ” – essas separações e


antagonismos traem as condições de existência e de crescimento não
do homem em geral, mas antes de certos complexos firmes e
duradouros, os quais cortam de si seus detratores. A guerra que assim
se produz é qualquer coisa de essencial: como meio de separação, que
fortalece o isolamento... (NIETZSCHE, 2008, § 298, p. 170-71).

Por um lado, há uma separação e um dualismo no que diz respeito às condições


originariamente atadas da existência; por outro, é precisamente essa interpretação que
separa e opõe que possibilita o fortalecimento e manutenção do poder. A guerra que se
faz contra o real exprime uma necessidade fisiológica, uma condição sem a qual esse
tipo-homem não se mantém vivo. Mas essa oposição de valores se mostra como
empenho para eliminar tensão e diferença, logo, para eliminar a natureza própria do
homem: “Que somos todos diferentes, é um axioma de nossa naturalidade. Só nos
parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós.” (PESSOA, 2011,
p. 469).
21

1.3 A relação entre fisiologia e interpretação

Para que possamos compreender a caracterização do que vem a ser


interpretação, uma exigência se impõe como fundamental, a saber, a pergunta pelo que é
fisiologia. Tal conceito certamente não poderá ser encontrado na obra de Nietzsche
como um conceito sistemático o qual ele tenha desenvolvido. O mesmo também ocorre
com o conceito de interpretação. Por meio de fragmentos e associações de tais
fragmentos a outros, podemos desenvolver esses conceitos. Para tanto, nosso empenho
por interpretar o significado da interpretação e da fisiologia de Nietzsche já é, nele
mesmo, uma interpretação, um modo de, ao dizer o que é interpretação, trazê-la como o
que possibilita uma reflexão sobre sua proveniência. A relação entre interpretação e
fisiologia pode ser fundamentada tomando por base a seguinte passagem:

[...] o estimar moralmente é uma interpretação [Auslegung], um modo


de interpretar [eine Art zu interpretieren]. A interpretação, ela mesma,
é um sintoma de um determinado estado fisiológico, tanto quanto de
um determinado nível espiritual de juízos dominantes: Quem
interpreta? – Nossos afetos. (NIETZSCHE, 2008, § 254, p. 152).

Qual o sentido de “sintoma” empregado para se referir a um “determinado


estado fisiológico”? Sabemos que a palavra sintoma é utilizada para indicar um estado
peculiar referente a um indivíduo. Nesse caso, tal estado aparece aqui designado a partir
de um determinado estado fisiológico. Donde provém, então, esse estado fisiológico?
Das relações entre vontades de poder. A pergunta pelo que é fisiologia somente pode ser
respondida a partir do conceito de vontade de poder. Estado fisiológico é estado da
vontade, isto é, condição por meio da qual vontade interpreta. Ao mesmo tempo em que
a interpretação advém de determinado estado fisiológico, ela pertence também a um
“determinado nível espiritual de juízos dominantes”. Aqui reside a relação entre o
fisiológico e o histórico: o homem, ao interpretar, somente o faz à medida do
pressuposto fisiológico que o perpassa, mas também a partir de um pressuposto
histórico de “juízos dominantes”. O homem pertence ao instante presente que exprime a
diferença (condição fisiológica que se atualiza sempre) e a repetição (condição
fisiológica por meio da qual ele herda valores). A interpretação, assim, diz respeito a
essa complexa configuração fisiológica. Ao fim da passagem, eis a pergunta essencial:
“Quem interpreta?” A resposta é plural: “Nossos afetos”. O que são, pois, esses afetos?
22

Vontades1. Vontade de poder não se manifesta no homem como uma força (no sentido
quantitativo). Isso nos leva ao entendimento de que o homem não é um indivíduo, no
sentido de ser uma unidade, portanto, vontade, aqui, tem a ver com uma complexa
pluralidade de afetos que constituem o homem.
Por esse motivo, a pergunta pelo que é interpretação não pode ser fundamentada
a partir de um “quem”, pois o “quem” aponta para o sentido de um indivíduo, ora
entendido como senhor de seus próprios atos, ora entendido como uma unidade
subjetivo-quantitativa. Müller-Lauter (1997, p. 150) diz: “O próprio interpretar tem
existência. É errôneo, portanto, compreender o perspectivismo de Nietzsche como
subjetivismo”. Quando Müller-Lauter diz que “O próprio interpretar tem existência”, é
possível relacionar o que ele diz com a seguinte passagem de uma obra de Nietzsche
(2008, § 556, p. 291): "Não cabe perguntar: ‘quem interpreta?’, mas sim se o interpretar
mesmo tem existência (mas não como um ‘ser’: como um processo, um devir) como
uma forma da vontade de poder, como um afeto”. Note-se que no primeiro momento da
frase é descartada a possibilidade de se colocar em questão um agente que interpreta,
isto é, um sujeito que é causa de seu interpretar. Entre parênteses, Nietzsche diz de que
modo “existência” deve ser compreendida, a saber, “não como um ser”, pois dessa
forma remeteria à concepção metafísica de unidade e verdade, mas sim, “como um
processo, um devir”, estes, por sua vez, caracterizando a existência como um constante
vir-a-ser. Em seguida, Nietzsche nos conduz a perguntar sobre a existência do
interpretar como vontade de poder relacionada a “afeto”. Em suma, interpretação é
afeto. Afeto, por sua vez, exprime vontade de poder. Disso podemos extrair uma
compreensão do conceito de fisiologia no pensamento de Nietzsche. Mas ainda não nos
foi suficiente responder à pergunta pelo que é fisiologia. Devemos ainda nos empenhar
por essa busca não para desenvolver esse conceito de modo tão sistemático ao ponto de
não nos restar mais nenhum questionamento, não de modo a esgotar as possibilidades
de se trazer à tona outras reflexões, mas tão somente para que possamos, no decorrer de
nossa reflexão, filosofar acerca de tal conteúdo.

1
A relação entre o conceito de “afeto” e o de “vontade de poder” pode ser constatada a partir da seguinte
passagem: “[Minha teoria seria: -] a vontade de poder é a forma de afeto primitiva” (NIETZSCHE, 2008,
§ 688, p. 348).
23

1.4 O conceito de fisiologia à luz de uma fisio-psicologia

Para que possamos aprofundar o nosso entendimento sobre a fisiologia de


Nietzsche, faz-se necessário que nos perguntemos sobre qual o lugar desse conceito no
que tange à sua própria filosofia. Tal pergunta nos leva a analisar o seguinte fragmento:
“O que faltou aos filósofos? a) sentido histórico, b) conhecimento da fisiologia, c) um
alvo voltado para o futuro. – Para fazer uma crítica sem qualquer ironia e condenação
moral.” (NIETZSCHE, 2008, § 408, p. 217). A apresentação do “conhecimento da
fisiologia” como uma “falta” dos filósofos não apenas nos revela sobre o que diferencia
Nietzsche da tradição, mas também acerca do que constitui o conteúdo filosófico de seu
pensamento. Se o filósofo apresenta o conhecimento da fisiologia como algo que faltou
aos filósofos é porque, para ele, a filosofia não pode ser pensada sem a fisiologia 2. Vale
salientar, contudo, que essa fisiologia à qual Nietzsche se refere está fundamentada em
sua teoria da vontade de poder. Assim, é sob essa ótica que devemos caracterizar a
compreensão aqui exposta de fisiologia.

2
Aqui é importante termos em vista a nota escrita por Nietzsche ao final da primeira dissertação de Para
a genealogia da moral, na qual encontramos o seguinte: “Aproveito a oportunidade que me oferece esta
dissertação para expressar pública e formalmente um desejo, desejo que até o momento revelei apenas em
conversas ocasionais com estudiosos: que alguma faculdade de filosofia tome para si o mérito de
promover os estudos histórico-morais, instituindo uma série de prêmios acadêmicos — talvez este livro
possa dar um impulso vigoroso nesta direção. Tendo em vista tal possibilidade, propõe-se a questão
seguinte; ela merece a atenção dos filólogos e historiadores, tanto quanto a dos profissionais da filosofia.
‘Que indicações fornece a ciência da linguagem, em especial a pesquisa etimológica, para a história da
evolução dos conceitos morais?’
— É igualmente necessário, por outro lado, fazer com que fisiólogos e médicos se interessem por este
problema (o do valor das valorações até agora existentes): no que pode ser deixado aos filósofos de ofício
representarem os porta-vozes e mediadores também neste caso particular, após terem conseguido
transformar a relação entre filosofia, fisiologia e medicina, originalmente tão seca e desconfiada, num
intercâmbio dos mais amistosos e frutíferos. De fato, toda tábua de valor, todo ‘tu deves’ conhecido na
história ou na pesquisa etnológica, necessita primeiro uma clarificação e interpretação fisiológica, ainda
mais que psicológica; e cada uma delas aguarda uma crítica por parte da ciência médica. A questão: que
vale esta ou aquela tábua de valores, esta ou aquela ‘moral’? deve ser colocada das mais diversas
perspectivas; pois ‘vale para quê?’ jamais pode ser analisado de maneira suficientemente sutil. Algo, por
exemplo, que tivesse valor evidente com relação à maior capacidade de duração possível de uma raça (ou
ao acréscimo do seu poder de adaptação a um determinado clima, ou à conservação do maior número)
não teria em absoluto o mesmo valor, caso se tratasse, digamos, de formar um tipo de homem mais forte.
O bem da maioria e o bem dos raros são considerações de valor opostas: tomar o primeiro como de valor
mais elevado em si, eis algo que deixamos para a ingenuidade dos biólogos ingleses... Todas as ciências
devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim
compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos valores.”
(NIETZSCHE, 2009, p. 28). Fica claro, portanto, a intenção de Nietzsche quanto a uma indissociável
relação entre filosofia e fisiologia, de maneira que, como o próprio filósofo diz, uma “interpretação
fisiológica” proceda as reflexões sobre os valores morais.
24

Um outro caminho por meio do qual podemos trilhar para entender o conceito de
fisiologia situa-se no aforismo 23 de Além do bem e do mal. Nele Nietzsche apresenta o
enigmático conceito de “fisio-psicologia” (Physio-Psychologie):

Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e


temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la
como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como
faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na
medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um
sintoma do que foi até aqui silenciado. A força dos preconceitos
morais penetrou profundamente no mundo mais espiritual,
aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos – de maneira
inevitavelmente nociva, inibidora, ofuscante, deturpadora. Uma
autêntica fisiopsicologia tem de lutar com resistências inconscientes
no coração do investigador, tem “o coração” contra si: já uma teoria
do condicionamento mútuo dos impulsos “bons” e “maus” desperta,
como uma mais sutil imoralidade, aversão e desgosto numa
consciência ainda forte e animada – e mais ainda uma teoria na qual
os impulsos bons derivem dos maus. (NIETZSCHE, 2005, p. 27-28, §
23).

O que aí é caracterizado como “psicologia”? Certamente não se refere à nossa


psicologia atual. Que vem a ser, pois, essa psicologia? Ainda mais, por que deveríamos
compreendê-la como “morfologia” (Morphologie) e “teoria da evolução da vontade de
poder” (Entwicklungslehre des Willens zur Macht)? A psicologia de que Nietzsche fala
está vinculada à tentativa de dizer o que é o homem a partir de valores morais. Para
Nietzsche, todavia, tais valores são na verdade preconceitos morais, pois ao invés de
dizerem o que o homem é em sua origem, expressam muito mais um ofuscamento e um
falseamento do real e do homem. Se nos deixarmos conduzir pela palavra
“Psychologie”, veremos que ela advém do grego Ψυχή + λόγος – o que poderíamos
definir como o discurso (originário) da alma, ou ainda, o lógos (ou seja, a razão, o
estudo) da alma3. Alma, por sua vez, como o que anima, ou, como define Aristóteles,
como o que atualiza o corpo, isto é, o que o constitui enquanto tal em suas ações4.

3
Apesar de Nietzsche não estar tratando exatamente da “alma” – no sentido conceitual –, o conceito de
“psicologia” é utilizado por ele com uma conotação que remete a um conteúdo originário. Isso se
evidencia mediante o final do fragmento 23 em questão, onde podemos ler: “Jamais um mundo tão
profundo de conhecimento se revelou para navegantes e aventureiros audazes: e o psicólogo, que desse
modo ‘traz um sacrifício’ – que não é o sacrifizio dell’intelletto, pelo contrário! –, poderá ao menos
25

A psicologia, pensada a partir desse sentido originário, seria a ciência dos atos e
das afecções do homem. Daí a sua proximidade com uma “Morphologie”, palavra que
deriva de μορφῇ (“forma”) e λόγος (“razão”, “estudo”, etc.), ou seja, uma ciência da
forma referente aos corpos e aos organismos. Na concepção de Nietzsche, contudo, a
psicologia não cumpriu com a tarefa de pensar o originário, mas, antes, se vinculou a
uma série de preconceitos morais que estão associados à história do homem. Para pensar
o homem em sua origem, faz-se necessário pensá-lo a partir da phýsis, pois é somente
pensando a totalidade da natureza que podemos encontrar o lugar próprio do homem,
lugar este a partir do qual ele vem a ser o que é. Portanto, é partindo desse sentido de
natureza que emerge o conceito de “fisio-psicologia”5. Mas do que exatamente trata a
fisio-psicologia? O que dela advém? Ao remetermos à passagem, veremos que a fisio-
psicologia implica em uma “teoria do condicionamento mútuo dos impulsos ‘bons’ e
‘maus’”. Na medida em que há um condicionamento mútuo das ações, torna-se
impossível direcionar um impulso como essencialmente distinto de outro, no sentido de
carregar consigo uma distinção moral de sua origem. Assim, os impulsos “bons” estão
em uma concomitância com os impulsos “maus”, visto que ambos exprimem
originariamente meios da vontade de poder se manifestar. Essas atribuições de valor e,
por conseguinte, categorizações que separam um valor do outro, são resultados de uma
interpretação moral do real. Mas justamente pelo fato dessa interpretação moral se
efetivar, que aqui se impõe a tarefa de pensarmos tal atividade a partir de uma fisio-
psicologia.

A fisio-psicologia seria uma espécie de fisiologia atrelada ao âmbito do


inconsciente. De fato, se pensarmos a fisio-psicologia sob a ótica da vontade de poder,
veremos que o modo como se relacionam as múltiplas vontades é essencialmente do
âmbito do inconsciente. Não é à toa que no aforismo 11 do livro I de A Gaia Ciência
lemos que a consciência “é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico”. Na
Modernidade, contudo, especificamente a partir de Descartes, a consciência adquire
lugar de fundamento não apenas do homem, mas também da realidade. Aqui a

reivindicar, em troca, que a psicologia seja novamente reconhecida como rainha das ciências. Pois a
psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais.” (NIETZSCHE, 2005, p. 27-28,
§ 23).
4
“A alma é a primeira atualidade de um corpo natural que tem em potência vida” (ARISTÓTELES, 2006,
p. 72).
5
Tal palavra é composta pelo radical “Physio”, derivado do grego Φύσις (“natureza”) + o substantivo
“Phycologie” que, em sua origem, comporta dois substantivos gregos, a saber, Ψυχή (“alma”) e λόγος
(“discurso”, “razão”, “palavra”, etc.).
26

consciência é pensada como autônoma de si, cindida e independente do corpo. Sob a


ótica da vontade de poder, porém, não há essa separação, muito menos uma
sobreposição do homem em relação a si próprio e ao mundo. Uma vez que o mundo é
vontade de poder, o homem é também esse mundo, coparticipa dele, isto é, se manifesta
sempre em uma relação, ou, mais precisamente, em múltiplas relações com outras
vontades. O homem, sendo vontade que somente se efetiva a partir e por meio de
relações, se mostra sempre como um complexo resultado inacabado dessas relações. Ele
não é, pois, coisa alguma, e somente se realiza não sendo, ao mesmo tempo em que luta
para poder ser. É nesse paradoxo entre ser e não-ser que se dá a efetivação do mundo e
do homem. Mas é somente por nunca ser algo dado, constituído e acabado, que o
homem é vontade para poder. Todo esse esforço para ser e para poder, ao passo que
nunca ser e nunca poder o suficiente – eis algo que exprime a constituição originária do
homem e, no entanto, ele não se dá conta. Esse não se dar conta não se trata de um tipo
de ignorância acerca de algo que se poderia, por meio de reflexão, vir a saber; trata-se
de um não se dar conta que é inerente à sua condição de ser um animal essencialmente
inconsciente. É a partir dessa condição, que se torna possível interpretação, atribuição
de valor, isto é, vida. Fisio-psicologia: fisiologia da interpretação. Ao dizermos assim,
parece que a fisiologia poderia, por alguma circunstância, estar separada da
interpretação. Todavia, não pode haver fisiologia sem que haja uma interpretação do
que ela seja, pois é o próprio interpretar que evoca e traz à luz sua presença; ao passo
que não pode haver interpretação sem que haja uma determinada constituição
fisiológica que a possibilite vir à tona. Ao interpretarmos, exercemos o fisiológico de
nossa constituição que, por sua vez, exprime vida, vontade de poder. Ao sermos vontade
de poder, exercemos interpretação, de modo que a interpretação aparece como uma
atividade constante de nossa condição orgânica, isto é, da nossa condição fisiológica.

1.5 A concepção de erro no fisiológico

Uma vez que construímos essa compreensão dos conceitos de fisiologia e


interpretação, e tendo também compreendido a sua intrínseca relação, cabe-nos ainda
uma breve análise do significado do valor metafísico à luz do que chamamos aqui de
uma fisiologia da interpretação. Sendo assim, o que seria a verdade do ponto de vista da
fisiologia? Como seria possível a concepção de verdade em meio a essa condição
27

originária do mundo e do homem, a saber, a de não ser coisa alguma, mas, antes,
esforço para ser, isto é, vontade de poder? Tais questões nos levam a uma análise do
fragmento 454 da obra Der Wille zur Macht:

O erro é o luxo mais custoso que o homem pode permitir-se; e quando


o erro é um erro fisiológico, então se torna perigoso para a vida.
Consequentemente, qual foi o erro mais caro para a humanidade até
agora, qual ela expiou da pior maneira? Foram suas “verdades”: pois
as mesmas eram erros in physiologicis... (NIETZSCHE, 2008, § 454,
p. 244).

A concepção da verdade está aí associada a um erro. Mas tal erro se refere a um


erro in physiologicis (“no fisiológico”). Qual o significado dessa proposição? Por que
tal erro seria um perigo para a vida? Tendo em vista que o fisiológico remete à condição
originária da vida como vontade de poder, a verdade surge aí como necessidade de
contrapor essa condição. Fisiologia diz respeito a processos fisiológicos. Aqui não se
tem uma determinação do conceito como se, ao definirmo-lo, disséssemos segura e
definitivamente o que ele é. Ao contrário disso, por se tratar do conteúdo originário da
vida, toda fala expressa, também, um silêncio que nela está contido; em toda definição
permanece o indefinido. Essa contradição é, assim, a própria vida, pois vida é processo
e, portanto, é transformação. Toda transformação dá lugar a algo de novo, de inaugural,
ao passo que suprime algo que já não está mais na possibilidade de vigorar. Tão logo o
inaugural vem à presença, logo seu curso é transformado, alterado e reconstituído no e
por meio de conflito. É o que nos ensina Ájax, na tragédia de Sófocles, ao enunciar as
seguintes palavras:

O longo inverno acompanhado pela neve

dá lugar ao verão portador de colheitas.

O carro soturno da noite se recolhe

quando aparecem os alvos corcéis do dia,

deixando-o brilhar com todo o seu fulgor.

O sopro dos ventos temíveis adormece


28

o mar sem fim cheio de vagas estrondosas.

O sono onipotente, finda a noite escura,

liberta os seres que fizera adormecer,

pois não pode manter indefinidamente

o seu domínio benfazejo sobre eles.

(SÓFOCLES, 2009, p. 107, linhas 913-923).

O dizer de Ájax exprime movimento e alteração, logo também luta e combate.


Inverno e verão, noite e dia, adormecimento e estrondo, sono e vigília. Ambos mantêm-
se a si mesmos apenas a partir do encontro de um em direção ao outro, isto é, apenas a
partir do conflito entre os opostos. Do mesmo modo ocorre com relação à constituição
do homem, pois ele não é acabado; encontra-se sempre por se fazer à medida do fluxo
temporal. Contudo, ele pode se voltar contra o tempo, ao esquecer-se do que é
necessário para a manutenção da vida, a saber, do conflito que permeia todo acontecer.
É o esquecimento que leva Ájax a desonrar e confrontar Agamêmnon e Menelau. Mas o
que tem a ver tal esquecimento com o que estávamos a tratar? Qual seria a relação entre
tal esquecimento e um erro na fisiologia? Visto que o conflito originário se trata de um
conflito fisiológico, errar na fisiologia significa esquecer-se da constituição própria do
viver como transformação constante. A concepção da verdade como atemporal ou
apodítica implica em um esquecimento da fisiologia, pois o que se busca com e partir
dela é o inalterável, o inabalável, o idêntico a si mesmo em todo e qualquer lugar, tempo
e circunstância. Errar na fisiologia é errar a proveniência do homem, ou seja, é falsear o
originário que lhe possibilita ser o que é. É nisso onde reside o perigo de que Nietzsche
falara, ao se referir ao erro fisiológico.
Entendemos, com isso, que a concepção metafísica de “verdade” pretende
abarcar, por meio de um conceito “uno”, o “múltiplo”, isto é, estabelecer o “imutável”
na tentativa de eliminar o “mutável”. Entrementes, multiplicidade e mutabilidade são
condições a partir das quais vida se mantém em vigor. Podemos extrair tal compreensão
quando Anfítrion, personagem do Héracles de Eurípides, profere a seguinte alocução:
29

A dita de um ditoso é desditosa,

pois a unidade cinde-se no múltiplo.6

O que é “dito” se refere ao que na perspectiva corriqueira do homem é tomado


como inabalável. Precisamente esse dito, que não vê no que é dito a possibilidade que
lhe é contrária, tornar-se “desditoso”, pois o que é “uno” se esvai no que é “multíplice”.
A concepção de “unidade” que nos expõe Eurípides se enquadra na concepção
metafísica da “verdade”. Nos versos, unidade se refere ao que é dito. Se algo fora dito,
nos vem à tona como concretizado, como realizado, acabado. Contudo, nada se finda
plenamente, pois uma vez que o “findado” é condição de possibilidade para um ato
inaugural, ele faz-se também presente no próprio ato e em sua eclosão posterior. O
homem vive no horizonte desse mistério originário, sob a condição de se transformar
inevitavelmente no curso de tudo o que há, foi e ainda será. Ele é, assim, um “entre”,
pois nunca o que foi deixa totalmente de ser, nunca o que é permanece sendo e tudo o
que haverá de ser não se desvincula do que foi e do que está sendo. Homem é transição,
é possibilidade sempre eminente de criar e de se criar em meio e entre o que foi, o que
está sendo e o que será. Visto que sua realização se consuma em uma transição
permanente, suas convicções e certezas se abalam no decorrer do fluxo do destino. Tal é
o reconhecimento de Ájax, ao se dar conta de sua própria hýbris:

O tempo, em seu constante, inexorável curso,

mostra o que estava ainda escondido nas sombras

enquanto nos impede de ver claramente

o que fulgura à luz do dia. Nada existe

digno de fato do nome de inesperado

e todos vemos que falham da mesma forma

o juramento mais solene e mais sagrado

e o mais inabalável de nossos propósitos.

(SÓFOCLES, 2009, p. 106, linhas 872-879).

6
(EURÍPIDES, 2014, p. 21, linhas 103-04)
30

É através do contínuo curso do tempo que o homem vem a criar propósitos para
a sua existência. Mas, por criar e pretender tornar fixo o que se dilui e se transforma, o
homem se agarra ao que é por ele criado e fecha os olhos para tudo o mais. Dar-se conta
disso requer a experiência do conflito, a qual faz com que mergulhemos em um abismo
para só então vermos uma luz. Essa é a experiência de Ájax que o tempo lhe mostrou. O
tempo significa aí o curso existencial por meio do qual ocorre uma luta entre luz-trevas
e criação-destruição. Se o tempo é o que abarca essa luta constante, ver luz e trevas é
algo que somente nos é concedido através do próprio tempo em sua destinação. Após ter
afundado na terrível experiência do delírio que o fez saquear os animais pensando ser
homens, Ájax se dá conta do quanto se alvoroçou não apenas nesse ato, mas também
antes, quando e onde toda a sua desmedida se originou.
Mas o que a hýbris trágica nos traz à tona enquanto conteúdo filosófico de nossa
reflexão? Que relação teria com o “erro na fisiologia” associado por Nietzsche à
“verdade”? É que em ambos os casos está em questão o homem enquanto ser que, ao se
deter em suas convicções, se esquece de sua condição originária, a saber, a de estar
sempre lançado no mundo sem convicção e garantia alguma. Em ambos os casos,
portanto, o homem é perpassado, assolado por desmedida. Por conseguinte, entendemos
por que Nietzsche, ao se referir ao erro no fisiológico como perigo para a vida, o associa
às nossas “verdades”: o fisiológico do real diz respeito a uma dinâmica conflituosa, a
uma tensão originária, de modo que a verdade se mostra como uma vontade de poder
que almeja cessá-lo. Por ser assim, por estar numa relação de desarmonia com a vida, a
verdade se caracteriza como um erro no fisiológico.

1.6 Semiótica dos afetos enquanto linguagem e interpretação

No aforismo 187 de Além do bem e do mal, Nietzsche discorre brevemente


acerca de uma relação entre “moral” e “justificativa pessoal” a partir da qual uma moral
vem a ser concebida por um autor. No seu entendimento, toda moral enunciada como
concepção de um autor possui um vínculo com as suas experiências pessoais. Essa
referência às experiências pessoais surge como forma de remeter à figura de Kant e o
imperativo categórico. Diz Nietzsche (2005, p. 76), ao se referir, de forma caricata, à
maneira como Kant possivelmente concebia o imperativo categórico: “‘o que merece
respeito em mim é que sou capaz de obedecer – e com vocês não será diferente!’”.
31

Nietzsche se utiliza de um determinado tom cômico para se referir ao imperativo


categórico associado à vida de Kant. Se o imperativo diz respeito à capacidade de
obedecer e agir segundo os preceitos morais, ao conduzir sua vida de acordo com tais
preceitos, Kant, na condição de defensor de uma moral universal, está vinculado a tal
princípio. A parte mais importante da fala de Nietzsche vem logo após essa caricatura
de Kant, momento em que ele conclui o parágrafo do seguinte modo: “ – em suma,
também as morais não passam de uma semiótica dos afetos.”
A palavra para “semiótica” é “Zeichensprache”, constituída pelos substantivos
“Zeichen”, que quer dizer “sinal” ou “símbolo”, e “Sprache”, significando “linguagem”
– o que também nos possibilitaria traduzir como “linguagem de sinais”. Mas essa
linguagem de sinais, o que ela é? Ela é tão somente a força criadora proveniente dos
afetos. O âmbito “pessoal” é aqui diluído diante dos afetos que perpassam o homem.
Assim, a relação exposta anteriormente entre as vivências pessoais e uma determinada
moral designa, na verdade, uma pluralidade de afetos apropriadores. Que isto significa?
Significa que o homem não escolhe, por meio de deliberações pessoais e subjetivas, os
princípios que deve seguir; o próprio princípio, enquanto criação de afetos, se determina
em sua proveniência. Não significa que o homem não tome decisões ou que não tenha
participação na própria criação de um princípio. A própria ideia de princípio somente
vem à tona mediante uma interpretação, uma moral, ou, para remetermos à expressão, a
uma linguagem de sinais. Suas decisões e participações, porém, se dão sempre a partir
de condições nas quais ele já se encontra, isto é, afetos, perspectivas e vivências que
permeiam a sua existência.
Tomando por base essa concepção, o imperativo categórico é entendido não
mais como um princípio universal, mas como uma linguagem de sinais originada por
afetos. Afeto, aqui, diz interpretação, ponto óptico a partir do qual um mundo vem à
presença por meio de linguagem. O sentido de “sinal” ou “símbolo” (Zeichen)
caracteriza a atividade própria do homem: a interpretação. Pois toda interpretação é
simbólica, na medida em que remete ao silêncio e ao não-verbal dos afetos. Aqui reside
o sentido originário de linguagem. A linguagem não deve ser reduzida ao conjunto de
fonemas e grafemas no âmbito verbal. Em sua origem, a linguagem é silêncio, por isso
ela simboliza, interpretativamente, os afetos.
Em seu tratado Da interpretação, Aristóteles nos dá uma caracterização de como
ocorreria o processo por meio do qual a linguagem viria a surgir. Para tanto, ele nos diz
o seguinte: “Há os sons pronunciados que são símbolos das afecções na alma, e as
32

coisas que se escrevem que são os símbolos dos sons pronunciados.” (ARISTÓTELES,
2013, p. 3). A caracterização da linguagem possui um pressuposto não-verbal, a saber,
as “afecções na alma” (ψυχή παθημάτων). Os sons pronunciados são “símbolos’
(σύμβολα) que se constituem na e partir da alma; alma, por sua vez, entendida a partir
de παθημάτων, isto é, a partir de um conjunto, de uma pluralidade de afetos. As
palavras escritas, por seu turno, remetem aos sons pronunciados, de modo que os sons
pronunciados estão para as afecções, assim como as palavras escritas estão para os sons
pronunciados. O elemento fundamental entre ambos – afecções na alma, sons
pronunciados e palavras escritas – é a atividade de simbolizar, de tornar símbolo o que é
afecção. Esse tornar símbolo só é possível à medida que afecção impele o homem a
fazê-lo. Símbolos das afecções, em outras palavras, significam: afecções que
simbolizam, que vêm à presença a partir de si mesmas. A proveniência da voz, assim,
não reside no homem enquanto agente que emite sons; a voz exprime aqui as originárias
afecções da alma. Em um sentido semelhante, Zaratustra profere as seguintes palavras:
“Abrem-se aqui, diante de mim, todas as palavras e o escrínio de palavras do ser: todo o
ser quer tornar-se, aqui, palavra, todo o devir quer que eu lhe ensine a falar”
(NIETZSCHE, 1987, p. 191)7. Qual o sentido que possui em o ser “querer” tornar-se
palavra? Não se trata de um querer consciente, determinado a partir de uma vontade-
agente querente. Querer significa: poder. Na condição de sempre poder, o ser se efetiva
enquanto palavra no e partir do homem. O homem, assim, vem a se realizar enquanto
homem, pois o elemento da “palavra” é o que diferencia dos outros entes. Sob a
proveniência do ser – que não é o “ser” imutável da metafísica –, o homem vem a
“ensinar” ao devir a “falar”. Que isto significa? Significa que o que advém enquanto
destino e envio do ser, torna-se interpretação, linguagem, palavra a partir da qual o
homem traz à luz o real em sua dinâmica. É apenas sob essa condição que o homem
consuma sua natureza para retornar ao empenho de realizar-se no pensamento.
Pensamento e linguagem dizem aqui o mesmo, na medida em que “Pensar e falar é
articular o destino do Ser.” (HEIDEGGER, 1995, p. 15). Articular, portanto, no sentido
de interpretar, significar o que desponta enquanto afeto.

7
O regresso, terceira parte.
33

2. A FILOSOFIA DE NIETZSCHE ENTENDIDA A PARTIR DE UM


CONFLITO ORIGINÁRIO-INTERPRETATIVO

Este capítulo pretende analisar aspectos de duas fases da filosofia de Nietzsche:


a fase de dois escritos de juventude, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral e
Segunda consideração intempestiva, e a fase madura relativa à obra Assim falou
Zaratustra. O nosso intuito é mostrar de que maneira a proposta de uma filosofia crítica
ou de superação da metafísica pode ser lida em ambas as fases dos escritos de Nietsche
Entendemos, com isso, que essa crítica ou superação da metafísica se dá no âmbito de
uma resolução que Nietzsche fornece como conteúdo filosófico de seu pensamento.
Tendo em vista que o nosso tema diz respeito à fisiologia da interpretação, embora os
termos “fisiologia” e “interpretação” ainda não se encontrem enquanto conceitos nas
obras de juventude do autor, a nossa ideia é exercer a atividade mesma da interpretação,
para que possamos alcançar uma relação e uma determinada unidade dos escritos de
Nietzsche. Dessa forma, “fisiologia” e “interpretação” estarão associadas às concepções
de natureza que o jovem Nietzsche já esboçara em seus escritos. Compreendemos que a
noção de uma tensão originária como constituição fisiológica do mundo pode ser lida à
luz dos conceitos de “impulso” (Trieb), enquanto força relativa a cada indivíduo, e
“força plástica” (plastische Kraft), enquanto força que rege e conduz o curso da história
do homem.
O conceito de impulso já exprime uma determinada perspectividade, na medida
em que Nietzsche atribui a “verdade” à proveniência de um “impulso à verdade” (Trieb
zur Wahrheit). É reconhecido aqui o caráter de todo conhecimento como uma
“metáfora” que não atinge a natureza em si das coisas, mas sempre interpreta a partir de
uma dissimulação, de uma falsificação de um mundo que não pode ser alcançado como
em si. Posto que toda verdade é uma metáfora interpretativa, todo conceito exprime uma
unidade que não condiz propriamente com a realidade, pois no conceito há uma
tentativa de igualar o que por si mesmo é dessemelhante. Embora a metáfora não
exprima um conteúdo “puro”, ela pode trazer à tona a proveniência de si mesma – o que
faz com ela, neste caso, apareça como atividade por meio da qual o homem se efetiva no
movimento originário do real. Se, por um lado, já temos aqui a concepção de verdade
como interpretação e valoração, doravante nos depararemos com a concepção de
“história” a partir do fenômeno “a-histórico”. Aqui Nietzsche compreende a história a
partir de uma tensão proveniente da “força plástica”. O homem, contudo, na tentativa de
34

eliminar uma tensão entre “memória” e “esquecimento”, congela a história no tempo e


repete os fatos de outrora concebendo-os como uma norma a ser seguida. Nisso de dá
uma impossibilidade de criação do novo, pois a repetição constante do antigo surge
como uma força inexorável em uma oposição às forças que querem dar vazão ao novo.
Ademais, quando o homem interpreta o antigo, o faz sempre sob as condições de seu
tempo. Isso significa que ele não pode atingir uma verdade unívoca acerca do passado,
pois a interpretação se apropria do homem em sua diferença fisiológica que, por sua
vez, exprime um lugar e uma condição própria a partir da qual a interpretação é
possível.
Diante desse quadro, tratamos a seguir de alguns aspectos do Zaratustra, com o
intuito de mostrar qual seria, afinal, a concepção de Nietzsche referente a um tipo de
resolução ou proposta de uma filosofia perspectivista do mundo. A relevância de
trazermos à tona esse posicionamento de Nietzsche frente à tradição da filosofia se deve
ao fato de que a sua filosofia, na medida em que quer exprimir um conflito inesgotável
do mundo, compreende que esse conflito deve ser levado às últimas consequências. O
que é esse conflito? É um conflito tanto do mundo, como também de interpretações
referentes ao mundo. Para Nietzsche, contudo, esse conflito interpretativo foi
desprezado pela tradição, pois os postulados de conceitos unívocos e verdades
apodíticas demonstram uma tentativa de eliminar o conflito incessante que é vida.
Zaratustra é precisamente aquele que traz ao lume uma nova interpretação, uma
proposta de superação da metafísica. O homem, tal como foi constituído e normatizado,
é algo que deve ser superado. Essa superação somente é possível à medida que há uma
superestima do conflito e da condição originária na qual o homem se encontra. Para
tanto, será preciso criar novos valores.

2.1 Metáfora, dissimulação e conhecimento a partir da obra Sobre verdade e


mentira no sentido extra-moral

Em sua obra Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre


verdade e mentira no sentido extramoral), Nietzsche já se debruçara sobre uma questão
fundamental que estará presente em toda a sua obra madura: a questão acerca do valor.
De fato, a questão referente ao valor implica, na filosofia de Nietzsche, em uma
compreensão a partir da qual o que é gerado como conhecimento e percepção vêm à
tona do ponto de vista das vontades que avaliam a natureza. Para que possamos
35

entender o sentido de “natureza”, faz-se necessário um entendimento do que vem a ser


“conhecimento”, pois este diz respeito a um valor atribuído à natureza, tal como
constatamos nesta passagem: “Na natureza, não há nada de tão ignóbil e insignificante
que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não inflasse, de súbito,
como um saco”. (NIETZSCHE, 2007, p. 26). O caráter “ignóbil e insignificante” da
natureza faz alusão ao seu irromper violento e indiferente. Do ponto de vista da “força
do conhecimento”, a natureza não aparece dessa forma; ao contrário, ela é escondida e
disfarçada mediante valores que a fazem aparecer com um sentido e uma verdade.
Entende-se, assim, que a natureza não tem, por si mesma, tais valores os quais o homem
a atribui. O valor é constituído à medida que o homem, ao se encontrar no mundo, é
afetado e perpassado por um sentido, por uma perspectiva – uma condição na qual ele
originariamente se encontra. Por esse motivo, ao se referir a essa condição do homem
enquanto ser que valora, diz Nietzsche:

Aquela audácia ligada ao conhecer e sentir, que se acomoda sobre os


olhos e sentidos dos homens qual uma névoa ofuscante, ilude-os
quanto ao valor da existência, na medida em que traz em si a mais
envaidecedora das apreciações valorativas sobre o próprio conhecer.
Seu efeito mais universal é engano – todavia, os efeitos mais
particulares também trazem consigo algo do mesmo caráter.
(NIETZSCHE, 2007, p. 27).

O homem, por ter como condição de sua existência a capacidade de valorar o


mundo, na medida em que o faz, toma o valor para si como condizente com a própria
existência, seja no âmbito do universal como também no particular. Nisso, ocorre uma
ilusão do homem no tocante ao seu conhecimento, pois ele acredita estar conhecendo de
fato a realidade, quando na verdade está valorando-a a partir de sua própria maneira
peculiar na qual ele se encontra no mundo. Essa maneira peculiar diz respeito à
condição de valorar.

Enquanto um indivíduo, num estado natural das coisas, quer


preservar-se contra outros indivíduos, ele geralmente se vale do
intelecto apenas para a dissimulação: mas, porque o homem quer, ao
mesmo tempo, existir socialmente e em rebanho, por necessidade e
tédio, ele necessita de um acordo de paz e empenha-se então para que
a mais cruel bellum omnium contra omnes ao menos desapareça de
seu mundo. (NIETZSCHE, 2007, p. 29).
36

Nessa passagem, Nietzsche parece conceber a multiplicidade de indivíduos a


partir de uma tensão originária. Mais tarde, isso será tratado em sua obra mediante o
conceito de vontade de poder. Nesse sentido, todo indivíduo, por carregar consigo uma
diferença com relação aos demais, está naturalmente em um conflito natural com outros
indivíduos. O intelecto, nesse caso, serve para dissimular esse conflito, na medida em
que estabelece, a partir de um consenso entre o rebanho, uma sociedade na qual a paz
prevaleça. Essa necessidade do rebanho surge a partir da necessidade de mantê-lo em
vigor, isto é, preservando-se como unidade em meio ao que é diferente. Como o que há
é originariamente uma “bellum omnium contra omnes” (“guerra de todos contra
todos”), aqui se apresenta o constante perigo da diferença entre cada indivíduo ou
vontade. Assim, para cessar esse perigo, o homem cria valores no âmbito da
comunidade e da sociedade, de modo a garantir a preservação dos que fazem parte.
Contudo, ao estabelecer esses valores, ele não se dá conta de que se trata de um artifício
que pretende dissimular o conflito, passando, assim, a concebê-los como uma “verdade”
através da qual se deve conduzir a vida. Esse empenho criador é o que Nietzsche
nomeia de “impulso à verdade” (Trieb zur Wahrheit)8. O que ele vem a ser? O impulso
à verdade pode ser entendido a partir da concepção do conflito originário entre os
indivíduos: posto que originariamente cada indivíduo diz respeito a uma óptica e uma
perspectiva própria de sua especificidade pulsante, nisso reside uma multiplicidade de
perspectivas. Contudo, a criação de uma verdade unitária tenta eliminar esse conflito
entre pulsões e, por conseguinte, dissimula o que é múltiplo através da unidade.
À parte da perspectiva de uma verdade apodítica como condutora de um
rebanho, o homem se constitui a partir da criação de valores que dissimulam a natureza.
Note-se, porém, que esse dissimular é um dissimular próprio de sua natureza, pois
exprime seu meio de se conservar: “Como um meio para a conservação do indivíduo, o
intelecto desenrola suas principais forças na dissimulação.” (NIETZSCHE, 2007, p. 27).
Todavia, a dissimulação originária de sua constituição é diferente da dissimulação da
verdade. Tendo em vista que a condição de cada indivíduo apresenta uma pluralidade, a
diversidade relativa aos modos de vivência “constitui a tal ponto a regra e a lei que

8
Nessa fase, Nietzsche ainda não havia elaborado sua teoria da vontade de poder, o que faz com que ele
se utilize da palavra “Trieb” (“impulso”), ao invés de “Wille” (“vontade”). Posteriormente, conforme em
seus escritos de maturidade o conceito de vontade de poder for desenvolvido, a expressão que aqui é
designada por “Trieb zur Wahrheit” aparecerá como “Wille zur Wahrheit” (“vontade de verdade”).
37

quase nada é mais incompreensível do que como pôde vir à luz entre os homens um
legítimo e puro impulso à verdade.” (NIETZSCHE, 2007, p. 28). Percebe-se, assim, que
o impulso à verdade aparece como uma contraposição aos instintos primitivos do
homem e às forças da natureza.
Na medida em que o homem cria para si uma verdade, ciará também uma
“mentira” que, por sua vez, servirá de conceito oposto à verdade, para determinar o que
não condiz com os valores do ponto de vista da verdade. A linguagem, nesse ponto,
serve também para garantir o conceito, pois as palavras exprimem afetos. Por isso,
pergunta Nietzsche (2007, p. 31): “O que é uma palavra?”, ao que responde: “A
reprodução de um estímulo nervoso em sons. Mas deduzir do estímulo nervoso uma
causa fora de nós já é o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da
razão.”. O que quer dizer aí “estímulo nervoso”? Refere-se à origem da linguagem
como afeto e impulso primeiros. A palavra, antes de ser um conjunto de fonemas e
grafemas, é estímulo. A verdade, na medida em que pressupõe uma anterioridade com
relação à linguagem, somente poder vir à luz a partir da própria linguagem. Nesse caso,
a linguagem exerce a função mais originária, pois remete aos estímulos e afetos que
perpassam o homem. São esses estímulos e afetos que constituem linguagem e,
portanto, eles devem ser concebidos como criadores da verdade. Segundo Nietzsche, a
diferença entre diversas línguas demonstra a não apoditicidade da verdade, pois caso o
sentido da verdade fosse unívoco, “não haveria tantas línguas”9. Entende-se, dessa
forma, que a existência de diversas línguas, por dizerem respeito a povos diferentes,
partem também de outras pressuposições fisiológicas. Posto que as vivências são outras,
os estímulos são outros e, em consequência disso, as interpretações também serão
diferentes. É apenas através de uma convenção advinda de um conceito de verdade
unívoco que essa distinção entre interpretações vem a ser dissimulada.
Para se referir à linguagem em sua origem, Nietzsche diz que o processo por
meio do qual a linguagem vem a se constituir se dá através de uma “metáfora”
(“Metapher”)10. A ideia de metáfora possui o sentido de transpor, através de imagens,

9
(NIETZSCHE, 2007, p. 31).
10
Segundo o dicionário etimológico da língua alemã Duden Das Herkunftswörterbuch, a palavra
“Metapher” se refere a uma expressão figurada que, por sua vez, possui também o sentido de “imagem”
(“Bild”). Deriva da palavra grega μεταφορά, que é composta por μετά (entre) mais φέρω
(carregar/transportar), possuindo, assim, o sentido de “carregar para outro lugar”, “transferir”. O conceito
de metáfora pode ser encontrado em vários momentos da obra de Nietzsche e serve, inclusive, para
exprimir o sentido mesmo de sua filosofia enquanto interpretação metafórica da realidade. Uma vez que a
pretensão de Nietzsche não é estabelecer uma verdade em si acerca do mundo, mas, antes, fornecer uma
interpretação perspectivista que se reconhece enquanto tal, entendemos que o conceito de metáfora pode
38

aquilo que é estímulo; o estímulo que é transposto em imagem vem ser som:
“De antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem. Primeira metáfora. A
imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. E, a cada vez, um
completo sobressalto de esferas em direção a uma outra totalmente diferente e nova.”
(NIETZSCHE, 2007, p. 32). A linguagem é, então, entendida aqui a partir do silêncio
originário dos estímulos. Com isso, Nietzsche quer chamar a atenção para o fato de que
não podemos saber acerca das essencialidades das coisas. Todo o nosso conhecimento é
pautado em metáforas. Tais metáforas não exprimem como a realidade é em si mesma,
mas, antes, trazem-na à luz ou a partir de uma interpretação que a mostre como
multiplicidade, ou que a dissimule a partir de uma concepção unívoca. Considerando o
seu sentido de transportar ou carregar, a metáfora desempenha o papel justamente de
transpor o que é afeto em imagem e som, em palavra e conceito. O conceito possui aqui
um peso maior no que se refere à sua univocidade, pois “Todo conceito surge pela
igualação do não igual”. Que isso significa? É que a diferença específica relativa a cada
coisa exprime uma pluralidade de fenômenos. Contudo, o intelecto organiza essa
pluralidade através da igualação, da equiparação entre coisas diversas. Assim, por
exemplo, nos referimos a um leão e acreditamos abarcar, mediante o conceito de leão,
todo o conjunto de leões em sua distinção11. Essa distinção, porém, é eliminada através
da dissimulação ou organização do intelecto, quando este vem a formar um conceito
unívoco. Mas, por outro lado, a organização que o intelecto realiza diz respeito à própria
condição de ser homem, uma vez que sua percepção não apreende o real em sua
magnitude, pluralidade e efemeridade.
No que implica essa univocidade do conceito, veremos que a análise de
Nietzsche atinge o âmbito dos valores concebidos como em si. Assim, se tomarmos
como exemplo a ideia de “virtude”, esta estará aludindo à virtude “em si”, isto é, a uma
ideia a partir da qual toda prática denominada de virtude deve se conduzir. No livro
Crátilo, de Platão, ao se contrapor à concepção de Protágoras, que afirmava que as

ser lido à luz de sua filosofia madura. Isso também pode ser constatado a partir do fragmento 866 da obra
A vontade de poder. Em tal fragmento ele está a tratar do tipo-homem forte, o qual condiz com o seu
conceito de Übermensch, e nos diz o seguinte: “Meu conceito, minha metáfora para esse tipo é, como se
sabe, a palavra “super-homem”. (NIETZSCHE, 2008, p. 436).
11
O exemplo que Nietzsche dá é o seguinte: “Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma
outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas
diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando então a representação, como se
na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma forma primordial de acordo
com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e pintadas,
mas por mãos ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiável como cópia autêntica
da forma primordial.” (NIETZSCHE, 2007, p. 35-36).
39

coisas são tal como aparecem singularmente para cada ser que percebe, Sócrates
estabelece a noção de essência das coisas12. Nesse caso, Sócrates quer chegar à
conclusão de que há uma forma ou ideia em si a partir da qual as ações provêm. Diz ele:

Logo, se nem todas as coisas são semelhantemente para todos, ao


mesmo tempo e sempre, e nem cada um dos seres é para cada um em
particular, é evidente que as coisas possuem em si uma certa essência
estável, que não nos é relativa nem depende de nós, deixando-se levar
acima e abaixo por nossa imaginação, mas elas possuem em si
mesmas uma relação com a sua própria essência, que é por natureza.
(PLATÃOa, 2010, 386e).

Na concepção de Sócrates, não há espaço para a ideia de significados plurívocos


relativos às diversas percepções, tal qual afirmou Protágoras. Assim, uma vez que para
ele as formas são as essências das ações, tais essências exprimem o modo como essas
ações serão. Na ideia, por exemplo, de sensatez, não cabe a insensatez, pois a sensatez
possui, para Sócrates, valor por si mesma. Tal ideia se relaciona com a concepção de
“coisa em si”, a qual foi postulada por meio de alguns pensadores da tradição. Em
referência à “coisa em si” (Ding an sich), diz Nietzsche (2007, p. 31): “A 'coisa em si'
(ela seria precisamente a pura verdade em quaisquer circunstâncias) também é, para o
criador da linguagem, totalmente inapreensível e pelo qual nem de longe vale a pena
esforçar-se.”13 Embora a coisa em si seja um postulado apodítico, para Nietzsche ela
não poderia ser condição de possibilidade para o conhecimento, uma vez que
circunscreve o conceito tornando-o universal. Disso advém um “imperativo categórico”,
que consiste em determinar as ações humanas a partir de um princípio moralizador do
mundo. Tal é a forma como Kant o concebe: “O imperativo categórico, que declara a

12
É importante salientar que há, na perspectiva de Sócrates, uma diferença entre “ideia” e “conceito”.
Neste caso, é a ideia que é tomada aqui como essência das coisas, não o conceito. Ideia é condição de
possibilidade para que o próprio conceito venha a surgir. Contudo, o nosso intuito é mostrar até que ponto
a crítica de Nietzsche pode alcançar uma validade. Trata-se, portanto, de uma demonstração, ao nosso
ver, de amplitude de sua crítica. Se, por um lado, ideia não pode ser concebida como conceito, por outro,
ela é o que determina se o conceito será ou não unívoco – o que parece ser o caso da exposição de
Sócrates.
13
O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) concebeu a coisa em si como postulado e condição de
possibilidade para a apreensão dos fenômenos. Apesar de a coisa em si ser tomada como pressuposto,
assim como Nietzsche, o próprio Kant reconhecia a inapreensibilidade da coisa em si, tal como podemos
conferir em sua obra Crítica da razão pura: “... não possuímos conceitos do entendimento e, portanto,
tão-pouco elementos para o conhecimento das coisas, senão quando nos pode ser dada a intuição
correspondente a esses conceitos; daí não podermos ter conhecimento de nenhum objeto, enquanto coisa
em si, mas tão-somente como objeto da intuição sensível, ou seja, como fenômeno” (KANT, 2001, passo
B XXVI).
40

acção como objectivamente necessária por si, independentemente de qualquer intenção,


quer dizer sem qualquer outra finalidade, vale como princípio apodíctico (prático).”
(KANT, 2007, p. 50-51). Uma ação objetivamente necessária por si diz respeito a uma
ação na qual a vontade se submete a um princípio universal. Aqui, o que se subentende
por “princípio universal” condiz com “razão”. Nesse caso, à medida que a vontade não
se encontra de acordo com tal princípio, ela vem a ser concebida como oposta à razão.
Na medida em que a “vontade”, quando não coincide com a “razão”, vem a ser
concebida como oposta, vigora aqui o “a priori” como oposto ao âmbito do “empírico”,
já que o princípio universal independe da experiência. Essa independência com relação
à experiência é uma forma de determinar a primazia do princípio universal ainda que
este não coincida com as ações humanas14.
A pergunta que devemos fazer, tendo em vista isso, seria: o que, afinal, faz com
que o homem seja impelido à verdade? Como vimos, a necessidade de se organizar em
rebanho advém de uma necessidade da preservação da espécie. Na medida em que em
sua condição natural os homens são pulsões individuais, tais pulsões se apresentam
como conflito. A unidade do conceito serve, assim, para apaziguar esse conflito.
Entretanto, os homens já vivem sob a condição de uma organização coletiva. O que
ainda o faz querer a verdade? Enquanto metáfora, a verdade foi esquecida de seu
surgimento enquanto tal e foi transmitida de geração em geração:

O homem decerto se esquece que as coisas se lhe apresentam; ele


mente, pois, da maneira indicada, inconscientemente e conforme
hábitos seculares - e precisamente por meio dessa inconsciência,
justamente mediante esse esquecer-se, atinge o sentido da verdade.
(NIETZSCHE, 2007, p. 37).

O que, pois, determina essa inconsciência e esquecimento enquanto


impossibilidade de desencobrir a verdade como uma metáfora? É a história em seu
curso. A perspectiva da verdade deve ser, portanto, analisada também do ponto de vista
da história, pois o esquecimento ao qual Nietzsche se refere diz respeito à força do
tempo, isto é, ao modo como os hábitos e costumes são transmitidos através do decorrer

14
Daí o exemplo lapidar de Kant nesse sentido: “... por exemplo, a pura lealdade na amizade não pode
exigir-se menos de todo o homem pelo facto de até agora talvez não ter existido nenhum amigo leal,
porque este dever, como dever em geral, anteriormente a toda a experiência, reside na ideia de uma razão
que determina a vontade por motivos a priori.” (KANT, 2007, p. 41).
41

do tempo. Analisaremos, de modo mais aprofundado, a concepção nietzscheana de


“história” no próximo subitem.

2.2 O histórico e o a-histórico do ponto de vista da força plástica: uma reflexão a


partir da Segunda Consideração Intempestiva

Já nos escritos da década de 1870, ainda como professor de filologia clássica da


Universität Basel, Nietzsche se deparara com uma questão fundamental acerca do que
constitui o homem enquanto ser de história. É o caso de sua obra intitulada de
“Unzeitgemässe Betrachtungen” (“Considerações Intempestivas”), especificamente na
segunda consideração15. A compreensão do que é o histórico é aqui desenvolvida
paralelamente à noção de a-histórico. Originariamente, o histórico é a condição a partir
da qual o homem se lança e se constitui no mundo; diz respeito, portanto, aos processos
por meio dos quais o homem cria para si uma cultura e se identifica enquanto indivíduo
em uma comunidade. Inserido na esfera cultural, o homem vem a se comportar de
acordo com os parâmetros da cultura na qual se encontra. Se ele foge a esses
parâmetros, trata-se uma reação aos próprios parâmetros.
No interior desse entendimento, percebemos como a história exerce a função de
trazer, através de si mesma, os desígnios e as realizações do homem enquanto homem.
O que aparece como ponto da crítica de Nietzsche referente à história é o seu excesso
como impossibilidade para criar o novo. Preso ao que foi cravado no passado e se
efetiva ainda no presente, o homem perdeu a dimensão do esquecimento e atua sob a
determinação de uma memória histórica, isto é, de uma moral que perpassa a história e
se estabelece como dominante. A partir do domínio dessa forma ideal de conduzir a
história, o homem é também inconscientemente tomado por um objetivo ideal, a saber,
o de alcançar a felicidade. Contudo, almejar a felicidade quando se tem uma memória
excessivamente ativa implica em uma constante interrupção desse escopo – o que faz
com a felicidade, tal como é projetada em seu fim, nunca seja de fato alcançada.
Nietzsche se utiliza da imagem do animal para compará-lo opostamente ao homem:
enquanto o animal vive sempre o instante presente se esquecendo do passado, o homem
não consegue se desprender do passado por possuir uma memória excessiva. O animal
é, assim, a-histórico, pois não constitui para si uma história mediante a qual possa se

15
Consideração esta que recebe o subtítulo de “Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben”
(“Da utilidade e desvantagem da história para a vida.”).
42

projetar no presente recordando-se e dando continuidade à medida que há uma repetição


das ações de outrora. O homem, ao contrário, se encontra submetido ao preceito do
dever moral, além de não poder esquecer de suas recordações dolorosas. Tal é a sua
condição, de modo que ele é levado a perguntar ao animal, como consta na seguinte
passagem:

Der Mensch fragt wohl einmal das Thier: warum redest du mir nicht
von deinem Glücke und siehst mich nur an? Das Thier will auch
antworten und sagen, das kommt daher dass ich immer gleich
vergesse, was ich sagen wollte — da vergass es aber auch schon diese
Antwort und schwieg: so dass der Mensch sich darob verwunderte.

[O homem certamente pergunta alguma vez ao animal: por que você


não me diz sobre sua felicidade e apenas me observa? O animal quer
também responder e falar: “isso é porque eu sempre esqueço o que eu
queria falar” – mas também aí já esqueceu essa resposta e se calou: de
tal maneira que o homem se admirou disso.]16

Tal metáfora compreende uma distinção fundamental entre o homem e o animal


no que tange à “felicidade”. A felicidade do animal está em sua abertura para o instante.
Isso o possibilita não se prender àquilo que foi criado, pois o criar é afirmado
constantemente. Na medida em que ele cria, simultaneamente destrói, dando
continuidade ao fluxo natural do devir. Esse destruir como abertura para um novo criar
não se apropria do homem quando este, além de carregar o passado para se constituir no
presente, o mantém em meio ao fluxo. Essa memória do homem deve ser entendida
como uma moral à qual ele está submetido, moral esta que é concebida como princípio
regulador e constitutivo da vida.
A conservação de valores que perpassam a história e circunscrevem o homem a
tal ponto de conduzi-lo rumo a um retorno dos mesmos valores é, na concepção de
Nietzsche, o que interrompe a condição natural do homem pertencente ao âmbito do

16
O fato de no texto original não haver aspas para distinguir a fala do “homem” da do “animal”, torna-se
difícil a compreensão das três falas: a de Nietzsche enquanto narrador, a do homem a respeito do qual
Nietzsche fala e a do animal. Marco Antônio Casanova não faz essa distinção, desconsiderando, assim, o
pronome “ich” (referente à fala do animal) – o que faz com que sua tradução fique: “O animal quer
também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer” (traduz-se,
então, pela terceira pessoa do singular do presente do indicativo). A tradução dele, apesar de não ser tão
“fiel”, facilita a compreensão do texto, uma vez que, partindo do texto original que, por sua vez, não
utiliza aspas para distinguir as falas, ele torna a fluência do texto melhor. A nossa tradução, porém, ao
manter as falas de acordo com o original, introduz aspas e dois pontos para demarcar a narrativa da fala
do animal.
43

processo orgânico da vida. Nesse sentido, o que ele entende por esquecimento diz
respeito a um processo próprio da fisiologia dos seres, incluindo-se aí o homem: “A
todo agir pertence um esquecer: tal como a vida de todo o orgânico não pertence apenas
à luz, mas também ao obscuro.”17 O que vem à tona como aspecto crítico não é o fato de
o homem construir para si uma memória, mas sim, a sua perduração como interrupção
do desenvolvimento do orgânico. Logo, não se trata também de prescindir da história,
mas de saber lembrá-la à medida que se sabe, também, esquecê-la. Esse esquecer não se
refere a um esvanecimento pleno do que foi construído; refere-se, antes, à dimensão do
conflito em meio ao qual algo de novo é gerado. Esse conflito é entendido por Nietzsche
a partir do conceito de força plástica (plastische Kraft)18. A força plástica é o que
irrompe como instante criador à medida que se apropria do passado. Na concepção de
Nietzsche, essa força perdeu o seu vigor conforme o homem passou a conceber a
história como mais importante que a vida. Para entendermos o que isso significa,
devemos analisar os três tipos de história designadas pelo autor:

A história é pertinente ao vivente em três aspectos: ela lhe é pertinente


conforme ele age e aspira, preserva e venera, sofre e carece de
libertação. A esta tripla ligação correspondem três espécies de
história, uma vez que é permitido diferenciar entre uma espécie
monumental, uma espécie antiquária e uma espécie crítica de história.
(NIETZSCHE, 2003, p. 18).

A espécie monumental de história está relacionada ao modo como o homem se


utiliza do passado para poder se constituir no presente. Ela serve como inspiração para
que os grandes feitos de outrora sejam repetidos. Subentende-se, a partir desse ponto de
vista, uma compreensão unitária de humanidade, pois uma vez que o passado é tomado
como base para a construção do presente e do futuro, há aí uma pressuposição de que,
independente dos diversos contextos culturais, a ideia de humanidade deve ser mantida.
É sob a determinação da história monumental que os valores são cravados numa cultura
a ponto de perpassarem séculos, tal qual os valores judaico-cristãos na cultura do
Ocidente. Com a expressão “monumental”, Nietzsche quer se referir justamente ao que

17
No original: “Zu allem Handeln gehört Vergessen: wie zum Leben alles Organischen nicht nur Licht,
sondern auch Dunkel gehört.”. (eKGWB). Tradução nossa.
18
Nietzsche ainda não havia, nessa fase, desenvolvido o conceito de vontade de poder. Entretanto, ao
analisarmos o que ele entende por “força plástica”, não fica tão difícil a compreensão de que, mais tarde,
força plástica estará querendo dizer justamente vontade de poder.
44

é grandioso do ponto de vista dos valores. E como esses valores dizem respeito ao
modo como o homem concebe e percebe o mundo, por serem monumentais, são
também o que impossibilitam a percepção de que a conservação da história monumental
implica em uma interrupção da alteridade necessária para a vida. Na medida em que a
intenção é repetir, e não criar, o homem fecha os olhos para o fato de que “jamais
poderia acontecer algo inteiramente igual em meio ao jogo de dados do futuro e do
acaso.” (NIETZSCHE, 2003, p. 22).
A sobreposição da história monumental caracteriza, por exemplo, o que
Nietzsche mais tarde irá diagnosticar como a tirania do homem bom. Tal homem é
tirânico porque tem para si sua forma ideal do que é o bom e, com isso, submete todas
as vontades a esse princípio, na tentativa de eliminar a distinção entre ambas e torná-las
iguais. O elemento monumental deve concernir a todo e qualquer âmbito de uma moral
que se pretenda universal. Que perigo representa, no entanto, esse ideal? A resposta é
dada por Nietzsche:

Imaginem-se as naturezas não-artísticas e as artisticamente fracas,


blindadas e armadas pela história monumental dos artistas: contra
quem elas agora vão apontar suas armas? Contra seus arquiinimigos,
os espíritos artísticos fortes, ou seja, contra os únicos realmente
capazes de aprender de uma forma verdadeira a partir daquela história,
isto é, em nome da vida, e de transformar o que foi aprendido em uma
práxis elevada. (NIETZSCHE, 2003, p. 23).

Quando um ideal do que deve ser a vida se sobrepõe à própria vida, isso
demonstra uma fraqueza do ponto de vista da criação artística; mas não somente isso: ao
se colocar como dominante, ele se volta contra as naturezas fortes que superestimam
mais a vida do que a história. Ao querer agir dessa forma, os espíritos fortes estão em
uma relação mais íntima com o processo criador da vida. A história é consequência da
vida, e para que ela possa vir à luz, ela própria se utiliza da condição primordial da
criação: o esquecimento. Na medida, porém, em que se constitui a partir do
esquecimento, o homem, através da memória, possui a pretensão de mantê-la viva,
repetindo-se no presente e no futuro.
A história antiquária se relaciona, em certa medida, com a monumental, pois ela
pode ser o suporte para que o monumento dos valores seja preservado. Seu papel é dado
aos historiadores que zelam pelos fatos do passado. É verdade que nem sempre a
história monumental necessitará dos historiadores, precisamente nos casos em que a
45

força dos valores monumentais é tão grande, que sua repetição se dá conforme o grau de
retidão das gerações. Contudo, a história antiquária não serve apenas para conservar o
que é antigo do ponto de vista monumental, mas também, em alguns casos, para
conservar fatos e experiências que não se sobressaíram tal como ocorre com os valores
monumentais19. O problema residente na história antiquária diz respeito ao fato de que o
homem, ao recorrer a ela, pensa estar reconstituindo-a tal como ela foi no passado. Ou
ainda, na pretensão de conhecer uma coisa em sua origem, o homem recorre, então, aos
processos históricos por meio dos quais tal coisa veio a ser o que ela é, na intenção de
obter um “puro conhecimento”:

No entanto, esta não é com certeza a situação em que o homem estaria


maximamente capacitado a dissolver o passado em um puro
conhecimento; também aqui já percebemos o que havíamos
apreendido com a história monumental, o fato de que o próprio
passado sofre enquanto serve à vida e é dominada por pulsões vitais.
(NIETZSCHE, 2003, p. 27).

O puro conhecimento se refere ao desdobramento dos processos por meio dos


quais uma coisa vem a se tornar o que ela é. Nietzsche se contrapõe a essa concepção,
na medida em que concebe as pulsões vitais da vida como elemento primordial e ao
qual a história está a serviço. Vem à luz, nesse caso, o caráter interpretativo no tocante
ao instante em que se interpreta. Visto que as vontades de poder interpretam singular e
perspectivamente, o decorrer do tempo implica em uma mudança do mundo em seu vir
a ser, o que significa dizer que há uma mudança das vontades. Conforme há essa
mudança do mundo e, portanto, dos possíveis contextos, o homem vem também a
mudar e a sentir de maneira totalmente diversa da maneira relativa a outro contexto.
Assim, retroceder a um passado remoto na intenção de conhecer uma coisa em sua
origem e em sua puridade configura uma tentativa de eliminar o caráter de perspectivo
das pulsões que interpretam20. Com isso, ao nos referirmos a essas pulsões que
interpretam, estamos a falar de uma cultura, um povo e uma sociedade totalmente outra
em relação às culturas, povos e sociedades de uma época remota. O que se tenta, a partir

19
A exemplo disso, temos as filosofias mais “periféricas”, como, por exemplo, as de filósofos tais como
Pirro, Sexto Empírico, Górgias, Protágoras, etc., que não se sobressaíram na história tal como as filosofias
de Platão e Aristóteles, mas que, apesar disso, foram conservadas através da história antiquária.
20
“Aqui se está sempre bem próximo de um perigo: enfim, tudo torna-se antigo e passado, mas continua
no interior do campo de visão, é assumido por fim como igualmente venerável, enquanto tudo o que não
vem ao encontro deste antigo com veneração, ou seja, o que é novo e o que devém, é recusado e
hostilizado. (NIETZSCHE, 2003, p. 28).
46

da concepção de que recorrer ao passado é conhecer a coisa em si mesma, não é nada


mais que buscar um sentido único e atemporal, que independa dos diversos contextos,
das diversas vontades e das diversas interpretações. A crítica de Nietzsche não se trata,
no entanto, de propor ao homem uma total ruptura com o passado a ponto de não haver
qualquer recorrência ao mesmo. Trata-se de reconhecer no passado uma fonte que gera
novos contextos e novas interpretações às quais o homem inevitavelmente está
submetido. Para dar-se conta disso, faz-se necessário a história crítica.
A história crítica diz respeito à força das naturezas artísticas fortes, tal como já
as vimos em uma contraposição às naturezas artísticas fracas. Sua realização se dá no
âmbito de uma necessidade de se voltar contra o que já foi criado e preservado durante
muito tempo. Aqui é onde aparece não apenas o sentido da crítica de Nietzsche, como
também a proposta de sua filosofia. É somente através da história crítica que se torna
possível uma reflexão referente aos valores implementados e cravados na história
monumental como em si e verdadeiros. Aqui o horizonte criador se mostra como a-
histórico, pois já não se tem aquela veneração pelos valores antigos tal como é o caso da
história monumental. Para exercer a história crítica, faz-se necessário, do ponto de vista
do próprio decorrer da história geral, um conhecimento das histórias monumental e
antiquária, uma vez que o empenho crítico diz respeito também a um empenho que
remete ao passado21: “Essa é a ligação natural que uma época, uma cultura, um povo
deve ter com a história – evocada pela fome, regulada pelo grau de suas necessidades,
mantida sob limites pela força plástica que lhe é própria” (NIETZSCHE, 2003, p. 32). O
sentido de história crítica, assim como o de história monumental e antiquária, se
relaciona com o conceito de força plástica. Sendo a força plástica a dimensão própria da
vida, a histórica crítica, na medida em que exprime o vigor da criação, se mostra como
força plástica a partir da qual é possível romper com o passado para dar lugar ao
instante presente e ao novo.
Por querer exprimir a totalidade da existência em força plástica, Nietzsche, já
nessa época, se preocupara com a questão referente ao valor, embora isso ainda não
estivesse de forma explícita. Isso fica claro quando nos debruçamos sobre o conceito de
força plástica no que concerne à história crítica, quando Nietzsche nos diz que “Não é a

21
“... todo homem e todo povo precisa de um certo conhecimento do passado, ora sob a forma da história
monumental, ora da antiquária, ora da crítica”. (NIETZSCHE, 2003, p. 31). O sentido de “conhecimento”
aqui empregado não se reduz ao saber estritamente intelectual; antes, quer chamar a atenção para o fato
de que, independentemente dessa forma de saber, o homem carrega consigo, sem se dar conta, o
conhecimento de outras épocas.
47

justiça que se acha aqui em julgamento, nem tampouco a misericórdia que anuncia aqui
o veredicto: mas apenas a vida, aquele poder obscuro, impulsionador, inesgotável que
deseja a si mesmo.” (NIETZSCHE, 2003, p. 30). A história crítica não evoca,
originariamente, nenhum valor, se a concebermos do ponto de vista da força plástica.
Trata-se de um poder inexaurível que “deseja a si mesmo”. Enquanto tal, a força
plástica se destina tão somente com a finalidade de se consumar.

2.3 O Übermensch e a superação do homem

Para que possamos compreender o conceito de “Übermensch”22, faz-se


necessário que entendamos primeiramente o seu contraposto, a saber, o “Mensch”
(homem), no sentido em que concebe Nietzsche. Isso porque o Übermensch, como o
próprio nome nos indica, diz respeito a um tipo-homem que está “além” ou “sobre”, isto
é, acima do homem que até então vigorou. Que vem a ser, entretanto, esse homem
comum? Ele tem a ver com o homem metafísico. “Metafísico” aqui abrange a
generalidade do homem ocidental no decorrer de sua história. Mas o que representa esse
homem? Após seu período de dez anos na montanha, totalmente apartado da civilização,
Zaratustra desce e chega a uma cidade mais próxima, proferindo as seguintes palavras
para o povo: “Eu vos ensino o Übermensch. O homem é algo que deve ser superado. O
que fizestes vós para superá-lo?”23.A necessidade de ensinar o Übermensch se deve ao
fato de que o homem precisa ser superado. Mas por que se deve superar o homem? A
resposta é dada na sequência da fala de Zaratustra, quando este diz: “Todos os seres até
agora criaram algo acima de si mesmos”24. O que caracteriza, dessa forma, “metafísica”
é precisamente o caráter de suprassensível que transcende a condição do homem.
Contudo, esse suprassensível está relacionado à criação humana. A especificidade dessa
criação contraria a condição finita na qual o homem está imerso, pois está além, fora e
acima de sua constituição. Esse diagnóstico não aponta apenas para o caráter metafísico
estritamente filosófico; em verdade, o que é metafísico no homem é a própria natureza
fisiológico-interpretativa a partir da qual ele se voltou contra a totalidade da natureza
para criar valores, isto é, para interpretar o mundo a partir de uma dicotomia metafísica:
mundo suprassensível e mundo sensível. Essa interpretação se mostra como proveniente

22
Preferimos manter a grafia da palavra em sua forma original. Em algumas traduções, lê-se “super-
homem”; noutras, “além-homem”.
23
(NIETZSCHE, 1994, p. 20). Tradução nossa.
24
Ibid., p. 20. Tradução nossa.
48

da vontade de poder, pois “...a dualidade aparece como consequência da vontade de


poder” (NIETZSCHE, 2008, § 656, p. 438).
Se os valores metafísicos estão relacionados a um mundo suprassensível, este
mundo no qual vivemos somente possui sentido a partir daquele. Trata-se de uma
instância atemporal concebida como o que determina a imanência e o acontecer mesmo
deste mundo. Mas ao conceber tais valores como determinantes, o homem não se dá
conta de que são atemporais e estão para além deste mundo – o que faz com que essa
atemporalidade apareça propriamente como temporalidade, ou seja, como vida, ou, para
falar melhor, como o que deve ser a vida. Isso indica que em todo e qualquer âmbito de
sentido e valor metafísicos encontramos um “fora” e um “além”. Assim, o ensinamento
de Zaratustra acerca do Übermensch traz à luz um retorno ao “sentido da Terra” e da
finitude do homem, tal como diz Zaratustra: “O Übermensch é o sentido da Terra. Que
vossa vontade diga: que o Übermensch seja o sentido da Terra!”25. Como devemos
interpretar a expressão “sentido da Terra”? Sentido tem a ver com valor, pois todo valor
é atribuição de sentido à medida que é criação de mundo. Valor, por sua vez, está
atrelado à condição fisiológica na qual vontade se manifesta no homem. A conotação de
“Terra” exprime o que é terreno, logo, também, o que não “transcende” a Terra e que
diz respeito ao que é efêmero e temporal. Também evoca o significado da atividade
humana em seu lugar próprio, isto é, em sua condição trágica, desprotegida e finita. Por
esse motivo, para que o Übermensch seja o sentido da Terra, faz-se necessário que a
vontade do homem já esteja perpassada por esse sentido, para só então afirmar sua
própria condição finita.
Estar sob a condição de uma vontade afirmadora da Terra requer uma
confrontação com as estruturas lógico-metafísicas que possibilitam a perspectividade do
homem. Ora, essa perspectividade exprime as próprias percepções às quais o homem
está submetido e que, portanto, são o seu próprio mundo. A exemplo disso, temos a
concepção dicotômica de corpo e alma: o corpo possui aí um valor inferior ao da alma,
visto que é concebido como destituído de “razão”, ao passo que a alma, sendo o que
possibilita o saber, é valorada como superior. Contudo, no Übermensch não há essa
cisão, pois a “razão” é proveniente do “corpo”. De que modo isso é possível? É que a
alma, na medida em que coincidia com a razão e a sabedoria, e esta, por sua vez, estava
relacionada a uma proveniência para além deste mundo, detinha uma superioridade

25
Ibid., p. 21. Tradução nossa.
49

justamente pela sua categorização de além como sinônimo de elevado em grau de valor.
Quando, porém, o homem é atravessado pelo sentido da Terra, o que há é apenas o que
se mostra como condição de sua finitude. Por conseguinte, tanto alma quanto corpo
fazem parte de uma mesma condição fisiológica, de maneira que “razão” e “instinto” se
confundem. Se tudo é vontade de poder, instinto e razão são vontades em graus
distintos. Essa distinção é uma distinção da vontade de poder que se manifesta sempre
diferente em seu devir e em seu retorno.
Entendemos, com isso, que o conceito de Übermensch serve para Nietzsche
como forma de exprimir o lugar próprio do homem, a saber, mergulhado em sua própria
finitude, junto à totalidade múltipla. Esquecer-se desse lugar próprio não diz respeito
apenas a um esquecimento de si mesmo, mas, sobretudo, a um esquecimento e desprezo
pela vida. Na medida em que o homem se desloca de seu lugar próprio, ele se volta
contra a vida desprezando-a. Superar esse homem exige um empenho interpretativo com
relação ao que é a essência do homem. Essa “essência”, por condizer com o devir, não é
coisa alguma, não fornece nenhuma segurança; ao contrário, ela evoca o abismo da
existência que está por trás de toda atribuição de valor ao mundo. Tais valores se
destituem à medida que são reconhecidos como provenientes de um abismo, de um
nada. A aparente unidade do mundo se esvai perante a multiplicidade oca e sem direção
sob a qual o homem é conduzido. O Übermensch não é apenas esse que interpreta o
mundo a partir de seu próprio abismo, mas também o que, ao se deparar com abismo, o
afirma como a única condição existencial e que deve ser louvada como o que há de mais
pleno. Para que o homem possa experimentar isso que há de mais excelso, analisemos o
que profere Zaratustra como instante decisivo: “Que podeis vivenciar de maior? Essa é
a hora do grande desprezo. A hora em que também a vossa felicidade se torna asco e
também vossa razão e vossa virtude.”26.
A plenitude proveniente do abismo da existência somente é possível quando há o
grande desprezo. Desprezo pelo quê? Pelo que despreza e apequena a vida. Isso que
despreza e apequena a vida coincide com a própria felicidade, razão e virtude do
homem. Para superar esse desprezo e asco pela vida é também necessário desprezo e
asco, mas agora referentes ao que nega a vida, ao que torna a vida um erro que deve ser
reparado através de um além. Esse embate já é por si um conflito de interpretações
advindo de uma tensão fisiológica do mundo enquanto uma variedade de vontades que

26
Ibid., p. 21. Tradução nossa.
50

interpreta. Sob a condição desse conflito, surge para o homem a possibilidade de


permanecer nele afirmando-o pura e simplesmente, por reconhecer que não há nada fora
desse movimento. Essa possibilidade de superação advém de uma tensão que já não se
mostra como negativa, pois a continuidade de seu irromper já traz consigo
simultaneamente uma harmonia e uma paz que exprime o que de fato ela é: além do
bem e do mal. Para tanto, o Übermensch deverá, como propõe Zaratustra, exclamar da
seguinte maneira: “Como estou cansado de meu bem e de meu mal! Tudo isso é
indigência e sujidade e uma deplorável satisfação!”27.

2.4 O Übermensch em contraposição ao letzte Mensch

Quando Zaratustra prenuncia o Übermensch aos homens, estes simplesmente


riem e zombam de Zaratustra, pois não se encontram na possibilidade para compreender
o que a eles é proferido. Poder compreender esse tipo-homem, distinto de todos os
demais, requereria uma experiência de se opor a si mesmo para que viesse a lume um
outro, um novo horizonte. Ao se dar conta disso, Zaratustra altera o direcionamento de
seu discurso28: não se trata de dizer aos homens o que é o Übermench, mas de deixá-los
cientes do que eles são e do que é feito por eles em seu desprezo pelo que é terreno.
Para tal, Zaratustra agora irá discursar sobre “o último homem” (der letzte Mensch): “A
Terra, então, tornou-se pequena e sobre ela pula o último homem, que tudo apequena.
Sua espécie é inextirpável, como o pulgão; o último homem vive longamente.”29
De que maneira a Terra se torna “pequena” através desse “último homem”?
Como podemos interpretá-lo como uma espécie que vive longamente? O último homem

27
Ibid. p. 22. Tradução nossa.
28
Nesse momento do discurso, diz Zaratustra: “... sie verstehen mich nicht, ich bin nicht der Mund für
diese Ohren.” [“... eles não me compreendem, eu não sou a boca para esses ouvidos.”]. Percebe-se aqui o
caráter retórico do discurso: para compreender um determinado pensamento, faz-se necessário já estar sob
a condição desse pensamento; caso contrário, o discurso sobre o mesmo não pode sequer ser alcançado.
Essa relação entre o que discursa e o interlocutor exprime um “τόπος” (“lugar”, “localidade” comum) a
partir do qual torna-se possível uma compreensão. Em não partindo de um lugar comum, o interlocutor
não pode compreender o que discursa, ao passo que aquele que discursa não atinge êxito com o seu
discurso. Nisso, compreendemos, inclusive, a atividade do interpretar, visto que esta somente ocorre a
partir de relações mútuas entre vontades. As relações entre vontades, uma vez que estas são todas
distintas, apresentam inicialmente um conflito de interpretações; a partir desse conflito pode surgir uma
harmonia, ou seja, um entendimento mútuo entre ambas. Isso apenas é possível quando ambas partem de
um lugar comum.
29
Ibid., p. 26. Tradução nossa.
51

ao qual alude Zaratustra coincide com o tipo-homem esgotado30. Por não suportar a
tensão propriamente do mundo terrestre, o homem cria para si um ideal de mundo e de
homem que fuja dessa tensão. A tentativa de fugir e de se abrigar em um lugar seguro
resulta em uma valoração negativa do que vem a ser o mundo em sua condição de devir
– daí um apequenamento dessa condição em detrimento de uma superestima em relação
aos valores metafísicos. Conforme o homem tem para si um além-mundo no qual possa
se abrigar, o ideal desse mundo implica em um ideal de homem. Em meio a um conflito
incessante entre vontades, uma vontade se quer dominante e senhora de todas as outras
– é a vontade do último homem! “Último”, então, porque quando se postula um ideal do
que deva ser o homem, não há mais espaço para outros tipos de homem; o que há é o
homem, isto é, uma vontade a partir da qual todas as outras devam se submeter. A
caracterização desse homem como o que vive longamente está em sua forma de
expansão no mundo. Como o que há um ideal de homem a ser seguido, esse ideal é
perpetuado de épocas em épocas, pois a sua força de domínio permanece em vigor, já
que não há nenhum contra-movimento quantitativamente considerável para se expandir
tanto quanto ele. Esse terreno totalmente protegido pela força da moral possibilita
apenas a expansão de uma forma de vida que esteja sob a determinação de tais
preceitos.
Partindo dessa compreensão, veremos que as concepções de “verdade”,
“virtude”, “felicidade”, etc. estarão relacionadas a uma norma segundo a qual todas as
vontades devem venerar. Sob esse direcionamento das vontades, há uma falsificação da
fisiologia a partir de um ponto óptico-interpretativo tomado como o único possível. E
visto que toda interpretação advém de condições fisiológicas, essa falsificação se utiliza
da própria condição que nega. Isso ocorre porque, considerando a totalidade do mundo
como vontade de poder, toda e qualquer pulsão interpretativa exprime uma pulsão pelo
aumento do poder. O último homem aumenta seu poder à medida que há uma
diminuição da tensão, e essa diminuição só se torna possível quando uma grande
quantidade de vontades também caminha rumo a essa diminuição. No homem, a
diminuição ou aumento do poder se exprime através da criação de valores. Dessa forma,
o homem que concebe a si mesmo como modelo de homem ideal deve dizer para si:
“Wir haben das Glück erfunden!” [“Nós inventamos a felicidade!”]31. O significado de

30
Falaremos mais sobre “esgotamento” no próximo capítulo, especificamente no subitem intitulado de
“Esgotamento fisiológico”.
31
Ibid., p. 26. Tradução nossa.
52

“inventar” tem a ver precisamente com a atividade de criar valores. Arrogar-se o direito
de ter criado um valor não apenas diz sobre o valor criado, mas também sobre os
valores que estão em sua contraposição. O último homem determina, assim, o valor
último do mundo.
Há de se perceber que, quando mencionamos que há uma vontade que submete
todas as outras à sua norma, isso não significa que é a partir de uma vontade – no
sentido quantitativo – que ocorra esse processo. Subentende-se por “uma vontade” uma
determinada “unidade” que abarca múltiplas vontades; unidade apenas enquanto
caminho semelhante por onde essas vontades se conduzem e se relacionam, isto é,
apenas pelos valores aos quais todas se submetem como um rebanho, tal como diz
Zaratustra: “Nenhum pastor e um rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual:
quem sente diferente, vai, voluntariamente, para o hospício.”32 A ausência de um
“pastor” exprime uma não-unidade regente e condutora do rebanho. Apesar de não se
ter esse pastor regente, todo o rebanho caminha rumo a uma mesma direção, uma vez
que cada qual quer o mesmo. No âmbito desse direcionamento das vontades, as
diferentes vontades adquirem poder conforme exercem seu modo de se igualar às
outras. Pressupõe-se, com isso, que nem todas as vontades se conduzem para essa
direção. Mas fugir desse ciclo implica contrariar a vontade em maior número, que é o
rebanho. Isso quer dizer que, embora haja vontades distintas, ocorre que, sob a
determinação do rebanho, essas vontades se excluem e vão para o “hospício”, no
sentido de que são forçadas a se remediarem, para só então acharam-se inseridas dentro
do rebanho.

2.5 Das três transformações

Compreender o Übermench requer uma imersão na imagética proposta por


Nietzsche em seu Zaratustra. Há de se perceber que o artifício das imagens exprime o
conteúdo propriamente filosófico da filosofia de Nietzsche. Isso porque a imagem evoca
o real, e por ser imagem, não pretende dar conta dele objetivamente. Visto que o real só
se mostra perspectivamente, sua aparição é uma “linguagem de símbolos dos afetos”

32
Ibid., p. 26-27. Tradução nossa.
53

(Zeichensprache der Affekte33) que ocorre através da atividade da interpretação. Sendo


assim, a simbologia nos permite também o entendimento de um determinado conceito
atrelado a outro que está de forma implícita. É o que pretendemos mostrar a partir do
discurso Das três transformações, de Zaratustra. Tal é o que lemos no início do
discurso: “Três transformações, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna
camelo, e como o camelo se torna leão, e como o leão, por fim, se torna criança.”34
De que modo podemos interpretar essas imagens? Tais transformações dizem
respeito ao “espírito”. O que é esse espírito? A conotação de espírito não possui aí
nenhuma relação com subjetividade ou alma separada do corpo. Onde se lê espírito,
subentendemos como vida; esta, por sua vez, compreendida como vontade de poder. As
três transformações, ademais, se referem ao homem e sua condição no mundo. Surge-
nos, assim, uma reflexão primeira sobre o que simboliza o “camelo” – o que nos leva a
uma análise da seguinte passagem: “O que é pesado?, pergunta o espírito de suportação,
e ajoelha como um camelo e quer estar bem carregado.”35 O “ajoelhar-se” do camelo
pode ser interpretado a partir da figura do “último homem”: este, por estar sempre
fatigado da vida, cria valores “em si”, na tentativa de cessar a tensão. A submissão a
esses valores, porém, diz respeito a um “peso”, pois coincide com o cumprimento de
leis morais que estão sempre a corroer na consciência, para que só assim o homem
esteja em conformidade com tais leis. Tendo em vista que a natureza do homem
enquanto vontade de poder tende a se manifestar em seu irromper “egoístico” – pois
cada vontade anseia, antes de tudo, aumentar seu próprio poder –, ainda que o homem
esteja sob a determinação de valores que exprimam fraqueza e esgotamento, essa
natureza mais violenta ainda se faz nele presente. A moral, todavia, por exercer uma
função inexoravelmente impetuosa no homem, exige que este reaja de um tal modo que
para ele a cumprimento da moral diz respeito à sua própria natureza, uma natureza à
qual ele está submetido enquanto princípio condutor da vida. A força desses valores é
tão impetuosa, que exige que o homem se convença de que o peso que ele carrega não é
nada de pesado, fazendo com que ele se ajoelhe como um camelo e queira “estar bem
carregado”. O que propriamente se “carrega” são os valores tais como os de
“humildade”, “não egoísmo”, “bondade”, etc.

33
Tal como consta no aforismo 187 de Além do bem e do mal. Embora na passagem se trate das
“morais”, entendemos que “moral” equivale a “valor-interpretação”, como já nos ficou claro no decorrer
do texto.
34
Ibid., p. 35. Tradução nossa.
35
Ibid., p. 35. Tradução nossa.
54

Em um segundo momento, aparece-nos então a figura do “leão” para


interpretarmos. Nesse estado, ocorre um distanciamento com relação à condição de
camelo. Se, enquanto camelo, o homem afirma a condição do próprio peso que carrega
como imperativo do que deve ser a vida, enquanto leão, o homem já não mais se
conforma com esse dever. Verifiquemos isso quando Zaratustra diz: “Qual é o grande
dragão, ao qual o espírito não mais quer chamar de senhor e deus? ‘Tu-deves’, chama-se
o grande dragão. Mas o espírito do leão diz ‘eu quero’.”36. A imagem do leão nos vem
atrelada a um “grande dragão” que, por seu turno, exprime o princípio do “tu-deves”.
Contrapondo-se a esse imperativo, o leão diz “eu quero” – o que implica, portanto, em
um querer algo diverso do que ordena o imperativo. O leão, contudo, apenas quer algo
que fuja à norma do “tu-deves”; não significa que a sua vontade se efetiva enquanto
criação de valores que de fato rompam com a norma. Se o leão não foge ao “tu-deves”,
para que ele serve? Responde Zaratustra: “Criar novos valores – disso o leão também
ainda não é capaz: mas criar para si a liberdade de novas criações – disso a vontade do
leão é capaz.”37. Na condição de leão há, assim, uma travessia, uma caminhada sob um
horizonte que quer se expandir em sua diferença. A vontade de poder do leão já se
mostra como um salto, como uma pulsão que anseia por uma nova condição fisiológica
e uma nova interpretação de mundo. A possibilidade de novas criações só é possível a
partir dessa abertura na qual o leão se encontra. Contudo, “é necessária uma terceira
metamorfose, a da criança, que cria sem esforço, em uma espécie de harmoniosa
identificação com o próprio ser do mundo” (VATTIMO, 2010, p. 316).
Em um terceiro momento e, por fim, temos de nos deter ao que se refere à
imagem da “criança”. A criança se insurge a partir da ponte que criara o leão. Ela exerce
agora uma vontade que somente ela é capaz. Aqui não há apenas a inconformidade do
leão frente aos imperativos da moral; trata-se da uma confrontação de uma vontade de
poder que cria novos valores. Para criar novos valores é necessário trilhar um percurso
no qual ocorre transformação. Essa transformação diz respeito a uma superação da
metafísica. Para tanto, Nietzsche se utiliza da imagem da criança. Por quê? Vejamos o
que Zaratustra diz a esse respeito: “Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo
começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, um
sagrado dizer-sim”38. O ideal do homem ocidental apresentado anteriormente por

36
Ibid., p. 36. Tradução nossa.
37
Ibid., p. 37. Tradução nossa.
38
Ibid., p. 37. Tradução nossa.
55

Zaratustra mediante a figura do “último homem” carrega consigo ressentimento contra a


vida. Esse ressentimento tem a ver com “culpa” e “memória”, visto que exprime uma
contínua tentativa de reparação do que seja a vida através de uma consciência que acusa
e aponta o “tu-deves”. Ao querer reparar a vida, faz-se necessário que esse desejo por
reparação se perdure, pois o que esse tipo-homem almeja não pode ser alcançado em
meio ao devir. A constatação do que é vida se apresenta, então, como um erro; erro este
que só se mostra a partir de uma culpabilidade e de uma memória moral. A criança,
dessa forma, traz consigo o contrário disso: ela é inocência e esquecimento. Inocência
porque em seu agir não há as artimanhas determinadas pelo crivo da consciência moral;
esquecimento porque ela não possui essa memória pertencente a um mundo no qual o
que vige é um sistema de normas morais; em não havendo essa memória, também não
há ressentimento, pois tão logo a criança mergulhe em sua criação de mundo, este se
torna ponte para um novo mundo, por isso ela é sempre um “novo começo”. Um novo
começo, por sua vez, é um “jogo” e uma “roda que gira por si mesma”. Com a palavra
“jogo”, subentende-se algo que não é propriamente sério, logo, que não carrega a
dimensão de peso que carrega o camelo. Essa dinâmica possibilita a criança ser uma
roda que gira por si mesma, pois ela não é determinada a partir de um “outro” e de um
“fora”, tal como o é o homem de ressentimento. Sob a condição de inocência e
esquecimento, a criança pertence a um “primeiro movimento”, visto que exprime a
dimensão primordial da vida, a saber, um eterno movimento que retorna à sua condição
primeira: vontade para poder sempre mais. Tendo em vista que que esse retorno ao
poder-mais não se esgota, a criança é conduzida por uma vontade insaciável, um eterno
“dizer-sim” à vida. A criança, dessa forma, simboliza a constituição do mundo enquanto
um eterno e incessante movimento de criação-destruição: na medida em que a criança
cria um mundo para si, logo ela o destrói para construir um novo mundo. Vige aí a
inocência de uma vontade de poder que é conduzida pelo devir em seu rio. A criança se
encontra nesse rio e é arrastada por ele, querendo novamente esse jogo para saciar sua
vontade.
Na medida em que o Übermensch foi aqui compreendido como o tipo-homem
que supera o “último homem”, isto é, o homem metafísico, uma relação entre o último
homem e o espírito de camelo também é possível. O espírito de camelo diz respeito
justamente à dimensão de peso carregada pelo homem do ressentimento. O Übermensch
é aquele que supera o homem metafísico e traz novamente o “sentido da Terra”. Ao
pensarmos sob a perspectiva das três transformações, a que transformação aludiria o
56

Übermensch? À transformação do espírito de leão para o espírito de criança39. A


criança, por não carregar consigo o peso do ressentimento e da culpa (camelo) e por não
haver nela nenhuma impossibilidade de criar novos valores (leão), achar-se-á vinculada
ao Übermensch. Este é o que traz o sentido da terra. O que é esse sentido? É o sentido
de não haver sentido algum, mas que a partir dessa abertura de um não-sentido, torna-se
possível a criação de sentidos que coincidem com a condição trágica da vida. Esses
valores não transcendem a vida na intenção de repará-la; ao contrário, eles têm a função
de plenificar a vida, de torná-la mais bela a partir de um ponto óptico e de uma
interpretação que remete à fisiologia das pulsões rumo ao aumento do poder e, por
conseguinte, da conservação e da permanência do homem nessa condição e nesse
conflito que é afirmado. A constituição fisiológica do Übermensch quer dizer “sim” ao
jogo que é vida, tal como a criança o faz. O Übermensch, assim, remete a um novo
começo e a um primeiro movimento de uma roda que gira por si mesma, de uma
vontade que não é conduzida sob a determinação imperativa de uma moral cristalizada a
partir de um além e concebida como a única. “Novo começo” e “primeiro movimento”
exprimem possibilidade para criação de novos valores que se dá a partir de uma imersão
no poder que não cessa de retornar ao conflito originário.

2.6 Os valores suprassensíveis como obras-homem

Conforme compreendemos o percurso pelo qual o Übermensch deve se conduzir


para se constituir enquanto tal, podemos agora analisar de que maneira o espírito de
camelo – que diz respeito ao espírito característico do homem ocidental – estabelece
para si os valores suprassensíveis, isto é, para além do sentido da terra, o qual exprime
valores contrapostos aos da metafísica. Devemos, então, questionar acerca do que se
mostra, para o homem metafísico, como interpretação de mundo. Como esse tipo-
homem concebe os valores metafísicos? Essa questão implica em uma outra:
considerando a sua concepção do que são os valores metafísicos, como o homem aí vem
a conceber a si mesmo? Ambas as questões dizem o mesmo, pois para que possamos
falar de valor metafísico, remetemos necessariamente à determinação do metafísico na
vida do homem. Mas o que é esse metafísico, do ponto de vista do homem como
vontade de poder? Na medida em que o homem anseia pelo poder, este se mostra como

39
Gianni Vattimo (2010, p. 316) diz: “A criança é provavelmente uma figura do além-do-homem
nietzschiano”
57

valor e interpretação. Conduzido pela atividade do interpretar, o homem adquire, com


isso, mais poder. No espírito de camelo, contudo, a intensificação do poder se dá à
medida de uma rejeição da totalidade, daí a figura do camelo remeter à dimensão de
“peso”: as estruturas fisiológicas do camelo lidam com forças que a cada instante se
intensificam. Esse intensificar é o intensificar das múltiplas vontades que constituem
uma totalidade. Em meio a essa totalidade, o espírito de camelo aparece aí justamente
como uma vontade doente, fraca e que não suporta mais carregar o peso referente ao
poder-mais. Contudo, o homem, como cada ser que vive, é vontade de poder, por isso o
tipo-homem que representa o espírito de camelo ainda deve se conduzir para poder-
mais; porém, numa inversão que ocorre através de seus valores, esse poder-mais, ao
invés de se alimentar conjuntamente às forças que constituem o todo, procura se manter
no esgotamento. Poder-mais torna-se, assim, poder cada vez mais permanecer em um
processo de esgotamento das forças.
Ao anunciar a chegada do Übermensch, Zaratustra também diz o que essa
chegada representa: a superação do homem. Essa superação coincide com qualquer tipo
de ideal metafísico ao qual o homem esteve atrelado. Todavia, novamente devemos
perguntar: o que é entendido aí por “metafísica”, e por que é necessária uma superação
do homem? O Übermensch é o tipo-homem que vem trazer o sentido da Terra. Por
“sentido da Terra”, entendemos um sentido que se relacione com a “Terra” onde o
homem vive e que não transcenda esse limite. Não transcender esse “limite” diz respeito
a não ultrapassar o âmbito do sensível e não criar valores suprassensíveis que
determinem o sensível como tendo menor valor. Atentar para o sentido da Terra é
reconhecer aquilo que transcende o sensível como proveniente do próprio sensível, ou,
dito de outro modo, é reconhecer aquilo que transcende o homem como o próprio
homem em seu criar:

Assim, também eu projetei, outrora, minha loucura para além do


homem, tal como todos os trasmundanos. Para além do homem, em
verdade?
Ah, meus irmãos, esse Deus, que eu criava, era obra-homem e
insanidade, tal como todos os deuses!
Homem, era ele, e apenas um indigente pedaço de homem e de mim:
da minha própria cinza e da minha brasa advinha, em verdade, esse
fantasma! Não vinha a mim do além!40

40
Ibid., p. 41. Tradução nossa. Discurso intitulado de “Von Den Hinterweltlern” (“Dos trasmundanos”),
primeira parte..
58

Zaratustra esteve inserido no âmbito da metafísica, pois ele também projetou sua
“loucura para além do homem”. Entretanto, essa loucura que está para além do homem
não é nada de além, pois advém de seu ato criador. Uma interpretação concernente a
esse ato criador deve remeter à expressão “Menschen-Werk”, utilizada por Zaratustra
em seu discurso. Nela, encontramos dois substantivos: “homem” (“Mensch”) e “obra”
(“Werk”); porém, ambos são intermediados por um hífen, dando o sentido de uma
palavra só. A expressão, muito bem empregada por Zaratustra, quer chamar a atenção
para o fato de que não há cisão entre homem e obra, isto é, não há uma separação entre
o valor e aquele que valora. Com isso, a partir da expressão “obra-homem”
compreendemos que a própria obra é o homem, pois ela não vem à tona enquanto tal se
não houver o homem para fazê-lo. A obra é, assim, uma vivência, uma criação que
ocorre através de um ponto óptico, de uma interpretação. Por isso, ao mencionar que
teria criado “Deus”, Zaratustra diz que este era “obra-homem”, como todos os outros
deuses. O sentido da palavra “Deus” coincide aí não somente com o Deus judaico-
cristão, mas sobretudo a tudo aquilo que tem a pretensão de transcender a esfera
criadora do homem, ou seja, de estar para além, em si e independente do perspectivismo
e do âmbito óptico a partir do qual um valor ou um mundo se mostra para o homem.
Nesse sentido, entendemos que as vivências através das quais o homem se constitui são
“obras-homem”. Na medida em que são modos a partir dos quais o homem interpreta
perspectivamente o que se mostra, dizem respeito a uma singularidade de sua vivência.
É esse o sentido que possui a seguinte fala de Zaratustra: “e o ventre do ser não fala de
modo algum para o homem, a não ser como homem”41. A expressão “ventre do ser”
exprime o ponto a partir do qual o homem constitui para si interpretação. Esse ventre do
ser não se comunica em sua “puridade” de modo algum com o homem, isto é, em seu
ser enquanto ser e à parte do desempenho interpretativo do homem. Ele se comunica,
porém, tão somente como homem, visto que para vir à luz faz-se necessário o homem
trazê-lo. Nisso, compreende-se a atividade da interpretação como criação de mundo.
Sob essa perspectiva, surge-nos uma problemática no que concerne ao objeto de
reflexão da tradição filosófica, a saber, a noção de princípio. A necessidade de se
postular um princípio serve como paradigma para explicar a aparente ordem das coisas
e a racionalidade do homem. É assim que Platão concebe o δημιουργός (“demiourgos”)

41
Ibid., p. 42. Tradução nossa.
59

como princípio organizador de todas as coisas. É partindo dessa noção de princípio que
Aristóteles também irá postular o “motor imóvel”42. Embora a noção de princípio seja,
de acordo com o filósofo, diversa, de um modo geral ela serve como postulado para se
referir a uma determinada unidade a partir da qual todas as coisas se constituem. Mais
ainda, a noção de unidade acha-se relacionada à verdade em si das coisas. Para
Nietzsche, na medida em que o conceito de vontade de poder não exprime uma unidade
no sentido de que haveria “a” vontade como força motriz43, mas, ao contrário, traz à
tona uma totalidade disforme em meio à qual uma multiplicidade de vontades a
constituem, segue-se daí que não há uma oposição aquilo que é “princípio” e aquilo que
é propriamente o homem. O princípio ao qual nos referimos é “vontade de poder”. Mas
o homem, assim como toda manifestação da vida, é vontade de poder. Logo, ele é
partícipe e parte constituinte dessa realidade que se mostra em sua diferença. Dizer a
totalidade como vontade de poder implica em dizê-la em sua diferença, isto é, em suas
partes e em sua multiplicidade distinta. Cada parte dessa totalidade não encerra um fim
e nem se determina a partir de um princípio gerador. Essas partes, que são na verdade
vontades, estão em uma relação hierárquica e indeterminada, pois cada vontade se
relaciona com outras vontades em meio ao advir de tudo o que há.

2.7 O corpo como grande razão e a pequena razão a serviço do corpo

A compreensão da doutrina de Zaratustra se dá à medida que interpretamos o


significado do Übermensch. As três transformações, como já vimos, podem ser
interpretadas como uma ponte para esse tipo-homem, uma vez que a “criança”
simboliza a força do esquecimento e da inocência. “Esquecimento” e “inocência”, no
que tange à crítica de Nietzsche à metafisica, significa superação do espírito de
vingança e do ressentimento contra a vida. Vingança e ressentimento condizem com

42
Muitos são os exemplos que poderíamos fornecer concernente à noção de princípio, uma vez que já
com os pré-socráticos encontramos a noção de “ἀρχή” (“arché”) como princípio gerador de todas as
coisas. Platão e Aristóteles servem-nos aqui apenas como exemplos de dois grandes expoentes da
tradição.
43
Faz-se necessário, porém, uma ressalva quanto à compreensão de “unidade”. A crítica de Nietzsche à
noção de “unidade” abrange o conteúdo metafísico que implica em conceitos cristalizados da tradição,
tais como “verdade”, “coisa em si”, “ser” (compreendido em contraposição ao devir), etc. Sendo assim,
não significa que não possamos pensar a totalidade da vida como vontade de poder a partir de uma
“unidade”. A unidade aí não diz respeito a nada de coisificado, cristalizado, paradigmático ou
determinante do mundo.
60

toda dimensão da metafísica, entendo por metafísica as estruturas lógicas do


pensamento ocidental. Essas estruturas lógicas devem ser sempre repensadas, pois
acham-se atreladas e cravadas como páthos a partir do qual o homem ocidental se
constituiu. Percebemos, com isso, a amplitude da crítica de Nietzsche à tradição, não
apenas da filosofia, mas também histórico-cultural. Visto que história e cultura são
objetos de reflexão da própria filosofia, percebemos que determinados pensamentos
filosóficos exprimem justamente o modo de vivência de seu tempo.
Na era Moderna, o princípio ao qual o homem está submetido é do da
subjetividade. Com a palavra “subjetividade”, compreendemos “espírito”, “eu”,
“razão”, “alma” e, portanto, “verdade”. Tais conceitos estarão, na maioria das vezes, em
uma contraposição a “corpo”, “paixões”, “desejos” e tudo o que é concebido a partir
dessa dicotomia metafísica. Com o conceito de vontade de poder, Nietzsche pretende
superar qualquer forma de dicotomia. Isso porque é a partir desse conceito que a própria
dicotomia é explicada em sua proveniência. Trata-se de uma hýbris da vontade de poder
que, em não sabendo lidar com a tensão que consiste em ser vontade de poder junto à
totalidade inesgotável que se conduz sempre para poder mais, o homem falsifica a si
mesmo e ao mundo mediante conceitos que lhe possibilitem um “domínio” frente ao
que é indeterminado. Esse domínio é o domínio da razão que, por sua vez, resultará, na
Modernidade, em uma oposição entre sujeito-objeto ou sujeito-mundo, ou ainda,
espírito-corpo. Sob essa compreensão, objeto, mundo e corpo são hierarquicamente
inferiores às noções de sujeito e espírito44, visto que estes desempenham a função da
representação através do “eu”.
Ao partirmos, entretanto, da concepção que nos apresenta Zaratustra no discurso
intitulado Dos desprezadores do corpo, nos depararemos com uma crítica à dicotomia
metafísica que estabelece uma cisão entre corpo e espírito. Essa crítica pode ser
analisada quando Zaratustra diz: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com
um sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.”45. A noção de corpo já
não é mais apresentada em uma oposição à razão. O corpo é a grande razão. Mas por
que “grande”? Porque a “pequena” razão é aquela que coincide com a razão que
despreza o corpo a partir de um falseamento do que originariamente é o homem. Além

44
Note-se que essa oposição já há nos antigos e nos medievais, tanto no dualismo de Platão, como
também no do Cristianismo – ambos concebendo a alma em uma oposição ao corpo. Na Modernidade
essa oposição persiste, porém com a ideia de que o homem, enquanto sujeito ou substância, age
arbitrariamente de acordo com a autonomia de sua consciência.
45
Ibid., p. 41. Tradução nossa.
61

de ser uma grande razão, o corpo é “uma multiplicidade com um sentido”. Que isso
significa? Multiplicidade evoca uma crítica à noção de “espírito” ou “eu” autônomo. O
corpo é, assim, múltiplo, ao invés de ser substrato ou coisa imutável. Por ser múltiplo,
não há nenhuma “unidade” determinante de sua constituição, daí ele ser também “uma
guerra e uma paz”: ele se encontra no mundo já sempre atravessado por conflito, sendo
este possibilidade para que possa haver harmonia. Como harmonia provém sempre de
um conflito, o corpo é então ambos, pois esses dois polos não são em si mesmos
“opostos”46, mas se confluem. As imagens de “rebanho” e “pastor” são utilizadas para
trazer à tona a noção de corpo como vontade de poder, pois esta, estando no mundo em
meio a uma multiplicidade de vontades distintas, anseia por aumentar o poder; esse
aumento do poder ocorre de dois modos possíveis: sendo rebanho e pastor. A ideia de
rebanho exprime “obediência” e “submissão”, ao passo que a ideia de pastor exprime
“domínio” e “mando”. O corpo, estando sempre em uma relação com uma
multiplicidade de corpos, achar-se-á ora sendo rebanho, ora sendo pastor47, visto que é
próprio de sua condição a oscilação advinda de uma vontade que está sempre a se
constituir e nunca obtém um estado permanente.
Na medida em que compreendemos o corpo a partir de uma condição de
simultaneidade e multiplicidade, podemos interpretar o corpo como criador de valores.
Isso nos faz remeter à criação de valores metafísicos como meios para o corpo se
manter em sua incessante busca pelo poder. Os conceitos que falseiam o mundo servem,
dessa forma, como instrumentos, meios que trabalham a serviço da vontade de poder,
isto é, do corpo, da grande razão. Tal é o que nos faz refletir a seguinte fala de
Zaratustra:

Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão, meu irmão, à


qual nomeias de “espírito”, um pequeno instrumento e brinquedo da
tua grande razão.
“Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. Mas ainda maior – o que
não queres acreditar – é teu corpo e tua grande razão: ela não diz Eu,
mas o faz.48

46
Isto é, não são opostos no sentido em que estabelece a metafísica, a saber, do ponto de vista do valor
que aponta um como bom, outro como mau, um como superior, outro como inferior.
47
Uma passagem, já citada antes (no primeiro capítulo, subitem “Vontade de poder enquanto
interpretação do mundo como unidade”), do discurso Do superar si mesmo serve-nos, nesse sentido, para
reforçarmos a ideia do corpo como sendo tanto mando quanto obediência: “Onde encontrei vida,
encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor.”
(NIETZSCHE, 1987, p. 127).
48
Ibid., p. 45. Tradução nossa.
62

O corpo, enquanto grande razão, é o que constitui a pequena razão. Tal razão é
pequena precisamente porque é apenas resultado, consequência da grande razão, da
vontade de poder. A grande razão se refere à condição originária através da qual o
homem é afetado. A partir dessa condição, o homem vem também a criar valores, e
estes aparecem como consequência de sua vontade de poder. Contudo, no âmbito da
metafísica, a criação de valores se dá mediante uma reação a essa condição, pois os
valores que advêm da metafísica rejeitam tal condição por não suportá-la. Essa rejeição
e essa luta contra o conflito originário que é vida é o que vem a constituir a “pequena
razão”, isto é, um instrumento que trabalha a serviço do corpo em sua condição
primordial. É assim que surge o “eu” querendo se sobrepor ao “corpo”, quando na
verdade em sua origem ele já advém do corpo e se mantém a partir dele – daí ser dito
por Zaratustra que o corpo, sendo a grande razão, não diz “eu”, mas faz o “eu”. O
“dizer” se refere à esfera conceitual que ganha força a partir da linguagem. Mediante o
artifício linguístico, o homem cria para si um mundo no qual as palavras dizem muito
mais que sua condição originária. Todavia, esse mundo criado para se abrigar e se
proteger do sem fundo que é a grande razão – pois esta não garante estabilidade – é
constituído pelo corpo. O corpo é, assim, “o próprio” (das Selbst) da condição precípua
por meio da qual o homem e o mundo se constituem. O homem, contudo, dissimula esse
“próprio” de sua constituição através de um valor posto como essência de tudo. Nisso,
entendemos que os sentidos dissimulam a si mesmos: “O que os sentidos sentem, o que
o espírito conhece, jamais tem em si seu fim. Mas sentidos e espírito gostariam de
convencer-te de que eles são o fim de todas as coisas: quão vaidosos eles são.”49. Note-
se que tanto os “sentidos” como o “espírito” não encerram um fim, isto é, não exprimem
uma interpretação acabada acerca do que é o mundo, pois ambos são afetos, são modos
perspectivos de trazer o mundo à presença. O que eles trazem à presença é o corpo, o
próprio que está por “trás” de cada perspectiva: “Instrumentos e brinquedos são sentidos
e espírito: por trás deles encontra-se ainda o próprio.”50. O próprio é o corpo, mas
“corpo” aí remete ao que é princípio. Sendo princípio, é ele que faz brotar “sentidos” e
espírito”, pois ele é condição de possibilidade para o sentir, o interpretar e o valorar.
A compreensão do que é o “corpo” é aqui ampliada, na medida em que a
palavra corpo não diz respeito nem somente ao aparato instintivo em contraposição ao

49
Ibid., p. 45. Tradução nossa.
50
Ibid., p. 45. Tradução nossa.
63

aparato intelectivo, nem também à ideia de unidade estática e subjetiva a partir da qual o
homem vem a se projetar no mundo. O que Zaratustra entende por corpo deve ser
interpretado por mundo, mundo este que é múltiplo e constituído por corpos distintos
que interagem entre si e são capazes de criar para si mundos. Esses mundos, concebidos
como valores ou pontos ópticos a partir dos quais o homem se constitui, podem dizer
respeito tanto à condição primordial, como também a uma dimensão suprassensível e
falsificadora. A história da metafísica foi construída, na concepção de Nietzsche, a
partir dessa última óptica.
Vimos como a noção de corpo é utilizada por Nietzsche para se referir à “grande
razão” ou ao “ser próprio” do homem. Esse ser próprio evoca a vigência própria do
homem, uma condição da qual o homem não escapa, embora projete para si artifícios
valorativos com essa intenção. Se por trás de todo e qualquer valor o corpo é o que
aparece como força propulsora, na medida em que corpo coincide com vontade, e sendo
vontade essencialmente múltipla, o “ser próprio” do homem estará relacionado a um
modo peculiar de sua vontade, isto é, à sua diferença específica através da qual um
mundo se mostra perspectivamente. A diferença específica relativa a cada vontade
implica em perspectivas de mundo essencialmente distintas. No domínio da metafísica,
essa diferença específica é negada à medida que é postulado um imperativo categórico
de uma moral universal. Aqui, a multiplicidade de vontades que se submete à lei moral
tornar-se “rebanho”. O rebanho serve para conduzir o que é particular, com o objetivo
de eliminar as vontades singulares e abarcá-las em uma unidade determinada e
constituída pela moral. Não significa que ocorra a efetivação dessa unidade do ponto de
vista perspectivo, isto é, da percepção que cada vontade possui. Significa, antes, que a
moral adquire seu poder de domínio na esfera conceitual. O conceito aqui se sobrepõe
ao ser próprio de cada vontade, conforme o ideal moral se mostra como condutor da
vida. Na medida em que esse ideal se expande no mundo, o rebanho obtém mais força,
mais poder. Nesse ponto é onde reside a força do imperativo moral, pois o rebanho tem
o número e a quantidade a seu favor, tal como podemos constatar na obra WM/VP,
fragmento 401: “Compreendemos o que até agora determinou o supremo valor e por
que ele se tornou senhor sobre a valoração oposta –: ele era numericamente mais
forte.”51 O fato de essa moral ter triunfado incrementa o seu sentimento de poder como
à parte de uma valoração, fazendo com que a ideia de “bem” seja concebida como em si

51
(NIETZSCHE, 1964, p. 275). Tradução nossa.
64

e para além do âmbito meramente humano. Mas o que tem em vista Nietzsche, quando
estabelece não apenas um diagnóstico, como também uma crítica?
Certamente a ideia de opor valores não é, na filosofia de Nietzsche, uma
tentativa de estabelecê-los como permanentes, tal como o foi o triunfo dos valores
judaico-cristãos na cultura do Ocidente. Partindo do ponto de vista da teoria da vontade
de poder, que consiste em considerar a singularidade que é cada pulsão de um ser
vivente, veremos que o estabelecimento de uma moral tomada como universal para
conduzir a vida diz respeito a um adoecimento do homem. É somente na medida em que
o homem se encontra em um processo de esgotamento de sua vontade de poder, que se
torna possível uma submissão ao ideal do rebanho. O rebanho, do ponto de vista da
fisiologia constitutiva da vida, é um esforço contrário à saúde e ao vigor da manutenção
do poder relativamente ao novo. Assim, se considerarmos o perspectivismo de
Nietzsche na esfera da moral, mesmo as vontades sujeitas ao ideal do rebanho têm para
si uma maneira própria de conceber a moral e de ver o mundo. Para aqueles que
entendem a doutrina de Zaratustra, o reconhecimento do perspectivismo é fundamental.
Isso pode ficar mais claro no discurso “Von den Freuden- und Leidenschaften” (“Das
amizades e paixões”), onde lemos: “Meu irmão, se tens uma virtude e ela é tua virtude,
então tu não a tens em comum com ninguém.”52 Compreende-se por virtude o que
primeiramente é proveniente das afecções do corpo. Sendo o corpo uma pulsão por
natureza singular, aquilo que o corpo interpreta para si remete ao perspectivo de seu ser
próprio.
A partir do perspectivo referente ao ser próprio de cada vontade é que surgem
valores que pretendem ultrapassar essa condição. Em parte, essa ultrapassagem ocorre,
na medida em que um valor concebido como atemporal e a-histórico tem efeito
diretamente na constituição fisiológica do homem e o faz se conduzir através desse
valor. Por outro lado, é impossível transcender o âmbito do corpo segundo a perspectiva
de que tudo é essencialmente corpo e vontade. No primeiro caso, há de se analisar a
força que as palavras possuem com respeito ao fisiológico: por ser um animal cuja
diferença reside precisamente no lógos, o homem só se constitui a partir do elemento
interpretativo – elemento este que remete necessariamente à linguagem 53. Nesse caso,

52
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, 1994, passim., p. 47. Tradução nossa.
53
Tomando por base a perspectiva de Nietzsche, a linguagem não se reduziria ao conjunto de fonemas e
grafemas. Como originariamente a razão de tudo é “corpo”, e como corpo aqui é entendido como vontade
de poder, então não é difícil a conclusão de que vontade, enquanto direcionada ao poder – poder este que
conjuntamente à totalidade é vazio de valor –, é o que essencialmente irá constituir a linguagem. A
65

os conceitos da metafísica que, por sua vez, exprimem falsificações da realidade, serão
o ponto de partida para a crença em valores apodíticos. No segundo caso, tendo em vista
que o homem, à medida que é corpo, é vontade para criar, todos os valores, sejam eles
condizentes com as vontades que intensificam seu poder na tensão originária, sejam
condizentes com as vontades que pretendem uma fuga dessa tensão, irão exprimir, em
última instância, corpo. Isso significa, dito de outro modo, que em todo e qualquer
âmbito da criação de valor o homem permanece em sua condição de ser vontade de
poder.

linguagem é, em sua origem, afeto e vontade, para só então se tornar palavra do ponto de vista, por
exemplo, da gramática ou de qualquer forma de comunicação oral. Contudo, sob a óptica da crítica à
metafísica, o que pretendemos aqui expor é o fato de que as palavras, enquanto conceitos valorados a
partir de um processo de esgotamento fisiológico, serão concebidas como a própria realidade.
66

3. FISIOLOGIA E INTERPRETAÇÃO SOB A ÓTICA DOS VALORES


MORAIS

3.1 Fenômeno e interpretação moral dos fenômenos

Ao analisar a constituição fisiológica do homem como vontade de poder,


Nietzsche o interpreta a partir de uma totalidade cuja dinâmica consiste em uma
multiplicidade de forças em conflito. É que essa totalidade também é vontade de poder,
tal como podemos constatar na seguinte passagem: “Este mundo é a vontade de poder –
e nada além disso! E também vós mesmos sois essa vontade de poder – e nada além
disso!” (NIETZSCHE, 2008, § 1067, p. 513). Contudo, essa dinâmica de forças não
traz, em si mesma, uma determinação moral ou valorativa das próprias forças ou
fenômenos; ela depende, do ponto de vista regulador da vida, de um intérprete que a
atribua valor, pois “... uma ação, em si, é totalmente vazia de valor: tudo depende de
quem a faz” (NIETZSCHE, 2008, § 292, p. 168). Dito assim, entendemos que aquilo
que se nos mostra como mundo no qual estamos inseridos é uma criação humana, no
sentido de que não podemos ir além dos limites da valoração. Isso não quer dizer que
seja o homem o criador autônomo por excelência, mas, antes, suscita o caráter relativo à
percepção como resultado de um mundo que se apropria do homem. Todavia, dissemos
antes que esse mundo no qual o homem está inserido é uma criação. Como, uma vez
sendo criação, ele se apropria do homem? Dizer que ele se apropria não contradiz o fato
de ser uma criação, visto que para se apropriar, é necessário que ele já exista?
Essa pergunta põe em questão, também, se o homem é ou não criador autônomo
e independente do mundo. Para respondermo-la, remetamos ao conceito de vontade de
poder enquanto totalidade múltipla de vontades. Partindo da concepção de que essa
totalidade abarca toda manifestação de vida, o homem se encontra nela como parte
mínima. Por ser uma parte mínima, ele não percebe o todo em suas particularidades, ou
seja, ele não percebe o todo das vontades em sua luta para intensificar poder. Embora
não venhamos a perceber esse caráter efêmero e mutável das coisas, dizemos por
hipótese que há movimentos, vidas, forças, energias e processos fisiológicos através dos
quais o todo se mantém à medida de seu constante aumento do poder. São esses
processos que, por sua vez, se dão a todo instante sem que o homem comumente não se
dê conta, que dele se apropriam; e são também esses processos aos quais chamamos
67

aqui de “mundo”54. Assim, a valoração como criação ocorre apenas mediante um


sempre já estar-no-mundo e por este atravessado, tal como Heidegger pensa o Dasein
em sua “impessoalidade” advinda de sua condição no mundo: “Todo mundo é outro e
ninguém é si próprio. O impessoal, que responde à pergunta quem da pre-sença
cotidiana, é ninguém, a quem a o Dasein já se encontrou na convivência de um com o
outro.” (HEIDEGGER, 2005, p. 181)55. Essa “impessoalidade” à qual Heidegger se
refere diz respeito à pergunta pelo “quem” é o homem. A pergunta pelo “quem”, porém,
pressupõe um agente, uma unidade subjetiva. Mas visto que mundo e homem dizem
respeito a um fluxo existencial, tanto mundo quanto homem são essencialmente nada,
isto é, não são previamente constituídos nem acabados. Homem, assim, é movimento
por se fazer na e partir de convivência, de relações que o constituem.
Por um lado, concebemos que um fenômeno é em si mesmo destituído de valor e
depende de um mundo no qual se encontre e seja valorado; por outro lado, devemos
refletir sobre o fato de que esse fenômeno ao qual nos referimos se encontra em um
mundo que constantemente se transmuta e se inaugura a cada instante. Com isso, entra
em questão não apenas o fenômeno que nos vem à luz, mas também o próprio ato de ele
vir à luz, isto é, a percepção que temos referente à sua aparição.
Em que medida poderíamos falar de um fenômeno indubitável e já dado, quando
na verdade o que se mostra para nós é uma multiplicidade originária que está em um
contínuo vir-a-ser? O que é um fenômeno? É o que nos aparece, que vem à presença
através de um modo possível de percebermos o mundo. Todavia, esse aparecer
fenomênico nos vem à percepção, ainda que de forma inconsciente, já cheio de
“sentido”. Como? À medida que, ao estarmos sempre perpassados pelo mundo, e tendo
em vista que o nosso mundo é constituído por meio de significados e criações
significativas, quando nos deparamos com um determinado fenômeno, este já se nos

54
Devemos, contudo, atentar para a noção de “mundo”, na intenção de que esta não seja compreendida
como “unidade”. Quando nos referimos ao mundo, apenas por convenção e sob a determinação da
gramática o exprimimos com o artigo definido “o”, como se houvesse o mundo e como se nele
esgotassem-se todas as possibilidades de mundos, vivências e perspectivas diversas das que nos
referimos. Ainda que partamos dessa redução de mundo como apenas o que nos é dado a perceber, o que
há é uma multiplicidade de mundos, visto que há uma multiplicidade de vontades e, portanto, de ópticas.
Na interpretação-valoração, o homem traz consigo essas vontades, essas ópticas e esses mundos, mas a
partir de seu modo perspectivo. Diz Müller-Lauter (1997, p. 147): “O homem carrega em si o múltiplo
que ele interpreta. E ele não poderia tê-lo acolhido em si, não poderia ser o interpretante que ele é, se o
próprio acolhido não fosse da essência do interpretar.” A relação entre “acolhido” e “intérprete” quer
exprimir “mundo” e “homem”. Isso, para dizer de outro modo, evoca a multiplicidade que habita no
interpretar. Na medida em que não ocorre de maneira isolada, o interpretar exprime uma exposição dos
processos nos quais o intérprete se encontra imerso.
55
Tradução da Editora Vozes (de Márcia Sá Cavalcante Schuback), levemente alterada.
68

mostra com sentido. Mas as percepções acerca de um “mesmo” fenômeno são diversas,
de modo que há também a possibilidade de o sentido, ou seja, o significado do objeto da
percepção, ser outro. Nesse caso, o próprio objeto ou fenômeno da percepção torna-se
“outro”, pois, enquanto o que chega à percepção já com um sentido, o fenômeno só se
determina dessa maneira visto a partir de um ponto óptico – o que nos leva ao
entendimento de que, na medida em que sua aparição está relacionada a outra óptica, ele
mesmo se determina de outra forma, com outro significado.
Poder-se-ia objetar que a aparição fenomênica é indubitável, e que apenas as
percepções referentes à aparição é que são distintas. Mas na medida em que a aparição
se mostra de formas distintas, ela própria pode caracterizar uma distinção. Entretanto, o
homem não pode ter acesso aos diversos modos de percepção com relação ao mundo, de
maneira que ele não pode perceber senão através de sua própria percepção: “Nós
podemos ver somente sob nossa perspectiva” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 137).
Assim, em qualquer âmbito que discutamos, sempre o homem estará em questão. O
“homem”, aqui, exprime “mundo”, ou seja, perspectiva de mundo, apropriação e
interpretação que se mostra para e no homem.
No âmbito da existência humana, em que medida poderíamos falar de um
fenômeno que não estivesse atrelado à percepção do homem? Quando o homem fala,
discursa, pensa um fenômeno, ele o faz porque está numa disposição de poder fazê-lo.
Esse poder-fazer caracteriza um poder a partir de um "ver", pois um mundo se abre
diante de seus próprios olhos como possibilidade para se realizar. Partindo desse ponto
de vista, a primeira pergunta se nos coloca novamente: o que pode ser tomado como
fenômeno já dado, se o que há não é “o” fenômeno, mas uma multiplicidade de
fenômenos que se mostra de acordo com os pontos ópticos possíveis? Quando
percebemos “um” fenômeno, não significa necessariamente que haja ali apenas um
fenômeno, no sentido quantitativo. O aspecto quantitativo é como nós percebemos (o
que também caracteriza uma capacidade nossa de sintetizar e organizar o mundo). Em
não havendo um fenômeno ao qual possamos nos referir como único, separado de
outros demais, não pode haver nada dado, nem mesmo uma aparição ausente de valor.
Aliás, quando nos voltamos para dizer que há um fenômeno dado, será que aí já não
haveria valoração? – aquela que se volta para identificar um fenômeno como dado da
certeza sensível? A certeza já parte de uma valoração, de uma interpretação de mundo
que pretende dominá-lo a partir de sua óptica. E assim sendo, como poderia haver
certeza referente a uma aparição fenomênica, se ela não se pautasse em um modo
69

constituído por nós de perceber o mundo? Essas questões devem nos levar a uma
análise do aforismo 114 de A gaia Ciência, onde se lê:

Até onde vai a esfera moral. - Ao vermos uma nova imagem,


imediatamente a construímos com ajuda de todas as experiências que
tivemos, conforme o grau de nossa retidão e equidade. Não existem
vivências que não sejam morais, mesmo no âmbito da percepção
sensível. (NIETZSCHE, 2012, p.132).

Esse aforismo deve ser levado às últimas consequências. O que significa, em


verdade, “moral”? Moral exprime a condição da qual o homem não pode prescindir. A
moral, nesse sentido, não se reduz a um conjunto de ideias e vivências que podem ser
percebidas apenas enquanto o que se manifesta claramente, mas também como o que se
oculta. Aqui entra em questão o vigor histórico, pois o homem é um ser de história. Ele
herda vivências, maneiras de ser, de modo que, mesmo ao se deparar com uma "nova
imagem", esta não lhe aparece como totalmente nova, visto que a interpretação referente
à sua aparição já provém de uma multiplicidade de afetos e vivências: “Eu descobri que
a velha humanidade e animalidade, e mesmo toda a pré-história e o passado de todo ser
que sente, continua inventando, amando, odiando, raciocinando em mim”
(NIETZSCHE, 2012, p. 88). Esse conjunto de afetos diz respeito a uma historicidade, a
uma criação que perdura e que se faz presente a cada instante no homem. Como
mencionado antes, trata-se da relação entre a totalidade e suas partes. Se a totalidade só
o é mediante as partes que a constituem enquanto tal, extraímos daí que a totalidade do
presente instante, na medida em que está relacionada ao passado, se mostra ainda
atrelada aos processos por meio dos quais deixou de ser para vir a ser um novo
movimento.
A moral, assim, caracteriza uma percepção de mundo a partir de uma
perspectiva-interpretação que, por sua vez, se exprime por meio de uma valoração.
Não há como dissociar o fenômeno do aparecer do âmbito da interpretação. Toda
interpretação é apropriação de fenômeno mediante vivências antepassadas e presentes.
Se, por um lado, toda interpretação se apropria de um fenômeno, por outro, o fenômeno
interpretativo é o que possibilita a própria interpretação. Há, então, um paradoxo, e a
interpretação ocorre por meio desse paradoxo. O fenômeno, analisado enquanto
originário, não é moral. Ele é um aparecer, um mostrar-se gratuito que em si mesmo não
abarca finalidade nem sentido. Tão logo se mostra para o homem, ele é interpretado a
70

partir da moral: “Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos
fenômenos...” (NIETZSCHE, 2005, p. 66). Visto que não há nenhum fenômeno
essencialmente moral, “Tudo é fundamentalmente interpretação e não há
concomitantemente nada dado para além de cada empreendimento de uma determinada
interpretação.” (CASANOVA, 2001, p. 31). O mundo sem seu aparecer apenas se
mostra enquanto interpretação. “Tudo” seria interpretação à medida que aquilo que
vivenciamos e que não vivenciamos somente pode ser pensado mediante interpretação.
A moral, sendo interpretação, caracteriza a atividade própria do homem: o
encontrar-se no mundo sempre impelido por vontade de poder, isto é, vontade com
vistas à criação. Enquanto criação que exprime a atividade própria do homem, a moral
não é um atributo que se reduz à sua capacidade. Essa capacidade também existe, mas
ela advém da não-capacidade, isto é, de uma espécie de indiferença da natureza em seu
irromper56. Essa “indiferença” exprime o real sem seu movimento como vontade de
poder, pois vontade almeja, antes de qualquer coisa, intensificar poder. O que surge
desse intensificar está a serviço do poder enquanto meio para expandir ainda mais
poder. Disso advém a compreensão de que os fenômenos não são essencialmente
morais, pois tais fenômenos são vontades de poder, movimento que visa, antes de tudo,
se expor em sua gratuidade.
A interpretação, contudo, ocorre simultaneamente a esse irromper das vontades.
Poder-se-ia dizer, então, que “há e não há fenômeno moral”. Por quê? Porque enquanto
objeto da percepção, o fenômeno só nos chega à tona por meio de moral e interpretação,
ou seja, o fenômeno só é percebido enquanto fenômeno moral. Contudo, ele não pode
ser reduzido à moral, visto que vontades de poder interpretam perspectivisticamente – o
que nos leva ao entendimento de que há morais, isto é, perspectivas plurais. Logo, na
medida em que um fenômeno não se reduz a uma moral, compreendemos que em seu
irromper originário não é uma moral que o determina. Se assim o fosse, não haveria a
possibilidade de outras interpretações, outros pontos de vista referentes à sua aparição.
Mas sua aparição é perspectivista e varia, assim, de acordo com as disposições distintas,
isto é, as constituições fisiológicas relativas às diversas vontades. Além disso, o mundo,
na condição de ser vontade de poder, diz respeito a uma constante alteração, a um
empenho para intensificar poder e, com isso, se atualizar, se transformar, dar vazão ao

56
“...a natureza se mostra como é, em toda a sua magnificência pródiga e indiferente” (NIETZSCHE,
2005, p. 77).
71

inaugural. Uma interpretação que se pretenda a “mesma” referente a um fenômeno já


caracteriza uma redução do múltiplo à ideia de unidade.
Se tudo está continuamente se transformando, isso inclui, obviamente, também o
homem. Assim, quando o homem se volta para interpretar, seja o que for, é referente ao
que passou. Para interpretar o passado no instante presente, o homem o faz com a
contribuição do próprio presente. E é também o presente que tão logo vem a ser
presente, torna-se passado para vir a ser futuro.
Se o mundo se nos mostra através desse caráter conflituoso, o qual, por sua vez,
é indiferente, isto é, não visa finalidade alguma, uma moral que se pretenda
predominante sem que se reconheça enquanto interpretativa caracteriza um falseamento
de uma dinâmica que é inexaurível. Trata-se, pois, de uma moral que, sendo
interpretação, não se reconhece como interpretação57. Se, por um lado, toda moral é
proveniente da natureza, por outro, ela própria se volta contra a natureza, na medida em
que visa a conservação da espécie mediante uma criação que resulta em um modo de
ser, uma vivência que cria sentido e finalidade para uma dinâmica que, em si mesma,
não abarca nem sentido nem finalidade. Contudo, esse voltar-se contra a natureza é um
movimento cuja origem é a própria natureza:

Toda moral é, em contraposição ao laisser aller [“deixar ir”], um


pouco de tirania contra a “natureza”, e também contra a ‘’razão’’: mas
isso ainda não constitui objeção a ela, caso contrário se teria de proibir
sempre, a partir de alguma moral, toda espécie de tirania e desrazão.
(NIETZSCHE, 2005, p.76).

O que significa essa tirania contra a “natureza” e a “razão”? O uso das aspas
quer chamar a atenção para o fato de que tanto a “natureza” como a “razão” não podem
ser concebidas como em si e por si. A natureza, assim como a razão, é inesgotável. Se a
natureza é fluxo incessante, a razão que provém desse fluxo também o é. Tiranizar a
“natureza” e a “razão” consiste em, a partir da própria natureza e da razão, fazer com

57
A filosofia de Nietzsche, dessa forma, enquanto proposta de uma filosofia do perspectivismo, se
distancia da metafísica sobretudo pelo caráter de reconhecimento do saber filosófico em seu modo
perspectivo. A esse respeito, Müller-Lauter (1997, p. 132) diz que “O próprio saber da perspectividade
não deve, porém, ser ‘esquecido’.” Esse exercício de reconhecimento cabe também aos “futuros
filósofos” que Nietzsche anunciara. A interpretação de mundo advinda desses filósofos “tem de explicar a
efetividade em sua totalidade, assim como em suas particularizações, para não permanecer aquém das
explicações globais já dadas e, por isso, submeter-se a elas. Ela tem de desmascarar as outras explicações
do mundo como interpretações, que só podem se mal-entender a si mesmas, porque elas ou não se
compreendem, absolutamente, como interpretações, ou pelo menos não entreveem a essência do
interpretar.” (MÜLLER-LAUTER, 1997, 132).
72

que outra dimensão de ambas venha à presença. Essa outra dimensão exprime um
conflito e, com isso, faz-nos perceber a tensão originária que é o mundo, mundo este
que só se realiza nessa tensão, pois é a partir da própria tensão que se torna possível
duas dimensões, duas forças que são, na verdade, uma mesma em sua diferença. A
tirania contra a natureza constitui, assim, um paradoxo, pois ela não é outra coisa senão
natureza: “De um lado, a moral impõe certas formas à natureza, sendo para com ela uma
tirania, na qual a natureza está limitada apenas a uma de suas possibilidades. De outro
lado, esse traço tirânico aparece como a característica própria da natureza, algo natural”
(TONGEREN, 2012, p. 118). Originariamente, o que há é um conflito de forças.
Todavia, o homem, porque não resiste a esse conflito, tenta se conservar através de uma
força que pretende eliminar o conflito e criar uma “oposição” ao mesmo58. A oposição
constitui uma tentativa de eliminação das possibilidades da natureza, visto que
estabelece um valor tomado como fixo e estático.
Ainda há a questão referente à “qualidade” e à “quantidade”. Do modo como
estamos habituados a perceber as coisas, e partindo do ponto de vista de que essa
percepção é uma “herança”, ou seja, que nós “aprendemos” a perceber de um modo
determinado, entendemos que mesmo a quantidade “um” se mostra como uma
interpretação possível de mundo. O fenômeno que nos chega à percepção pode ser mais
de “um” e, no entanto, o percebemos enquanto um fenômeno. Tendo em vista que todas
as coisas estão interligadas umas às outras, quando designamos um fenômeno em
termos de quantidade, o fazemos perspectivamente, isto é, a partir de um ponto óptico
(uma moral, como vimos). Todo fenômeno é múltiplo em seu mostrar-se, pois é
indissociável de outros demais que estão interligados. É este o sentido da propositura de
Sexto Empírico (1996, p. 117) quando diz que “nenhum dos objetos externos nos afeta
por si mesmo, mas sempre em união com algo a mais”. Disso decorre que podemos, em
um determinado sentido, dizer o objeto que nos afeta em sua multiplicidade, “mas não
poderemos afirmar qual é o objeto externo em sua puridade.” (EMPÍRICO, 1996, p.
117). A questão da quantidade se desfaz, dessa forma.
Resta-nos ainda a “qualidade” da aparição fenomênica. Essa qualidade diz
respeito ao todo, à multiplicidade de acontecimentos interligados que estão inseridos em
uma dinâmica incessante do devir. Uma vez que tudo se transforma a todo instante, o

58
Essa “oposição” diz respeito a uma oposição de valores que, por sua vez, faz-se presente na história da
civilização ocidental e, por conseguinte, na tradição filosófica. Por isso, diz Nietzsche (2005, p. 10): “A
crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores.”
73

próprio fenômeno ao qual fazemos menção como um fenômeno também se transforma.


De maneira semelhante, Heráclito diz que “Em rio não se pode entrar duas vezes no
mesmo”. Assim, um fenômeno possível que nos aparece não pode ter objetividade, pois
ele próprio estaria a se transformar constantemente. Ele não encerra um fim, nem em si
mesmo, nem para a percepção59. Isso significa que quando percebemos algo é porque
uma interpretação de mundo se apropriou de nós. A qualidade de um fenômeno, assim
como a “quantidade”, está em ele ser múltiplo. Não podemos conhecer a natureza das
coisas em si mesma, visto que “por causa das misturas, os sentidos não percebem com
nitidez qual é a natureza dos objetos externos.” (EMPÍRICO, 1996, p. 118).
Contudo, na medida em que concebemos o fenômeno da percepção não reduzido
às noções de quantidade e qualidade tal como comumente concebemos, toda a
percepção muda. Ela não é uma percepção referente a um fenômeno indubitável.
Enquanto fluxo contínuo, podemos lançar tantas dúvidas quanto forem as necessidades
de interpretar e refletir acerca do fenômeno. Essa concepção, obviamente, adentra em
outro problema: o da aparente impossibilidade de se ter uma certeza (esta no sentido de
esgotar as possibilidades de dizer um fenômeno). A certeza é, assim, como que um
“falseamento” da realidade efetiva, pois se a realidade está constantemente mudando e
afirmamos algo a seu respeito que pretende torná-la fixa, o que dizemos a seu respeito
não exprime a sua dinâmica. Em verdade, esse “falseamento” ocorre mesmo quando
trazemos à tona a dinâmica inexaurível do mundo, isto é, mesmo quando a exprimimos
como um contínuo fluxo.

3.2 A interpretação do homem como sujeito e a ilusão da causalidade

O pressuposto geral da Filosofia Moderna condiz com a perspectiva da


subjetividade60. O que advém disso é o que é mencionado por Nietzsche como “fatos da
consciência”. Como a consciência significa aqui princípio, ela é o que garante o modo

59
Tanto percepção quanto objeto da percepção indicam um mesmo processo: percepção só é percepção
de. Ambos exprimem mundo em movimento constante. Se o mundo se consuma em movimento que traz
a todo instante a diferença, a mutabilidade e o novo, compreendemos que assim como o objeto da
percepção vem a mudar, também a percepção se encontra nesse processo, pois se manifesta de acordo
com o lugar onde está situada. Mas não há “lugar” algum, precisamente porque o devir traz consigo o
movimento e, logo, o deslocamento. Entretanto, de acordo com uma determina maneira de avaliar o
mundo, o homem se agarra à ideia de que a percepção, quando aparentemente é referente a um mesmo
objeto, não se altera.
60
Habermas (2002, p. 26) diz que “o princípio da subjetividade determina as manifestações da cultura
moderna”. Isto significa, para falar de modo preciso, que “Os conceitos morais dos tempos modernos são
talhados para reconhecer a liberdade subjetiva dos indivíduos” (HABERMAS, 2002, p. 27).
74

como os fenômenos se determinam no mundo. É a partir desse pressuposto da


consciência como fundante que se chega à concepção de “fato”, na medida em que este
é concebido como unidade estática da percepção. Estabilidade, todavia, provém de uma
intepretação que, antes de tudo, substancializa o homem, tal qual Descartes postulou a
noção de “res cogitans” (coisa pensante)61 e que, por seu turno, concebe o homem como
entre cuja capacidade reside na “interioridade” de sua consciência. Mas o que isso quer
dizer? Quando nos referimos a uma interioridade da consciência, temos como
pressuposto um sujeito que determina o modo como serão suas sensações, pois estas
pertencem à sua autonomia, isto é, ao seu poder de representar algo de dentro para fora.
Com isso, extrai-se a ideia de que não há “nenhum fenomenalismo na auto-observação”,
como se houvesse um purismo do agente da percepção; como se ele, ao se voltar para
observar o mundo, não o fizesse com e no mundo, atravessado por uma multiplicidade
de fenômenos dos quais não se dá conta. Mas precisamente esse não se dar conta é o
que fundamenta a noção de sujeito, pois se o homem percebesse o mundo a partir de
variações mútuas que se interligam, não pressuporia a si mesmo como autônomo.
É com base no ponto de vista de que há um “algo” interior que percebe um
mundo que é pura representação, que Descartes postulará o “cogito, ergo sum” (“penso,
logo existo”): é porque penso acerca dos meus próprios desígnios interiores, que posso
ter a certeza de que há em mim existência. Mas o fato de haver “existência”, não
significa que haja também outras existências, e sim, que meu “eu”, através de um
determinado raciocínio, me garanta tão somente a minha própria, o que me leva à
conclusão de que eu, enquanto coisa pensante, determino a maneira a partir da qual o
mundo me vem à consciência. Entretanto, diz Nietzsche:

[...] aqui, em primeiro lugar, imagina-se um ato que não acontece


absolutamente, o “pensar”, e, em segundo lugar, imagina-se um
sujeito-substrato, no qual, e em nenhuma outra parte, cada ato desse
pensar tem sua origem: isto é, tanto o fazer quanto o que faz são
fictícios. (NIETZSCHE, 2008, § 477, p. 257).

61
Em sua obra Meditações metafísicas, Descartes estabelece uma cisão entre corpo e mente, chegando à
conclusão de que as coisas do espírito (mente, pensamento) são mais fáceis de se conhecer do que as
coisas do corpo: “Não há nada que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito” (DESCARTES,
2000, p. 54-55). Essa conclusão, por sua vez, deriva da primeira certeza de seu método, a saber, a de que
“Eu sou, eu existo”, certeza esta que parte da concepção de que o “eu” é independente e autônomo em
relação ao seu próprio corpo e ao mundo, estes podendo ser meras ficções do espírito.
75

O “pensar” acerca de algo, uma vez que é concebido mediante a ideia de que há
uma coisa pensante que determina a operação do pensamento, se mostra como uma falsa
observação do processo mesmo que ocorre: 1) o pensamento não se dá de forma isolada,
independente e livre do mundo que o impele a brotar; 2) é apenas através da
interpretação de uma falsa causalidade que se pode fazer referência a um acontecimento
que independe dos outros demais; 3) dessa forma, tanto o fazer no que se refere à
concepção da subjetividade para exprimir o pensar, como o que é causa desse fazer (o
sujeito) são ficções advindas de um olhar falseador do mundo.
No tocante a essa falsa percepção de mundo, encontra-se aí uma busca pelo
fenomenalismo em um lugar que não o seu lugar próprio. Ao invés de se buscar indagar
as condições de existência partindo de um mundo no qual se esteja inserido como
partícipe, isto é, como parte de um processo inacabado de um devir cujo fim último é
sempre poder mais, busca-se, ao contrário, sustentar uma “interioridade” que tenta
cessar essa dinâmica conflituosa que é estar no mundo a intensificar suas forças. A
interpretação da causalidade por meio da ideia de interioridade circunscreve a essência
do homem, pois além de pressupor que ele seja senhor de suas próprias ações, implica
em um esquecimento da dinâmica do mundo, da fisiologia originária que possibilita
interpretação. Visto que essa condição originária está presente em todo acontecer, a
própria interpretação do homem como sujeito, como eu, como unidade subjetiva interior
é proveniente não do homem, mas do elemento originário que o constitui. Assim, essa
vontade de individualidade é uma hýbris, uma luta contra si próprio na qual o “próprio”
se dilui na multiplicidade dos acontecimentos. O que há, então, é apenas uma ilusão de
interioridade, individualidade e causalidade. Isso certamente nos leva à compreensão de
que o homem, ao falsear a si mesmo, falseia também o mundo. Essa relação entre
causalidade, homem e mundo pode ser verificada na seguinte passagem:

O que nos dá a extraordinária firmeza da crença na causalidade não é


o grande hábito da sequência de eventos, mas sim a nossa
incapacidade de interpretar um acontecer de outra maneira a não ser
como um acontecer a partir de intenções. Essa é a crença no vivente e
pensante como o único que produz efeitos – a crença na vontade, na
intenção –, essa é a crença em que todo acontecer seja um fazer, em
que todo fazer pressuponha um agente; essa é a crença no “sujeito”.
(NIETZSCHE, 2008, § 550, p. 285).
76

A causalidade é referida como uma “incapacidade de interpretar”


acontecimentos que não a partir da concepção de “intenção”. Isso porque “intenção”
remete a um “agente” que intenciona uma ação, portanto, diz respeito a uma
consciência, a uma interioridade que delibera para assim agir. Essa interpretação,
porém, advém de uma incapacidade de interpretar de outro modo. Mas que outro modo
seria? Como se daria, então, o processo por meio do qual uma ação não derivaria de
outra enquanto determinante ou procedente? Aqui não se trata de uma questão do
âmbito da consciência ou da interioridade que capta ou que percebe algo, pois
justamente consciência e interioridade são incapazes de penetrar nesse mistério. Se a
ilusão da consciência e da interioridade subjetiva se mostram como fenômenos tardios,
o originário é um conflito, é uma guerra incessante das vontades de poder sem
direcionamento algum.
De fato, na medida em que vontade aspira, antes de tudo, à condição de poder
sempre mais, seu curso não possui lugar inabalável nem direção segura. Sua realização
se dá no, a partir e para o conflito, sem que nisso haja propósito e muito menos uma
causa específica. No conflito vige o múltiplo; no múltiplo, vigora o todo, de modo que
todas as partes nele se fazem presentes. Todas as partes se confluem umas com as
outras, e a mais convicta ilusão de causa e efeito é aqui dissolvida. Nas palavras do
homem do subsolo de Dostoiévski (2008, p.26): “Faço uma ginástica mental e, em
consequência, cada motivo original imediatamente arrasta atrás de si outro, ainda mais
original, e vai por aí afora, até o infinito.” Ao observar o modo como o mundo se lhe
aparece, o homem do sobsolo percebe que os múltiplos acontecimentos se dão de uma
forma relacional. Assim, aquilo que nos aparece como causa ou motivo mais original
está, na verdade, em conformidade e relação com tudo o mais. Um efeito proveniente de
uma causa específica e isolada excluiria as múltiplas relações de conflito e harmonia
que todas as partes têm com relação ao todo. Do mesmo modo que há na natureza essa
dinâmica, também no homem ela se dá em todos os âmbitos de suas ações, na medida
em que ele também faz parte da natureza. Sendo assim, esse conflito originário diz
respeito ao que possibilita o homem se efetivar na interpretação. Por isso Dostoiévski
(2008, p. 26), ao se referir à impossibilidade de conhecer o motivo originário por trás
das ações, nos diz que “Essa é precisamente a essência de toda consciência e reflexão.”
Percebe-se, com isso, que “consciência” e “reflexão” não provêm de um sujeito como
causa dessas atividades. Uma vez que o homem se encontra inserido num mundo cujos
acontecimentos ocorrem de um modo multiplamente relacionais, as atividades do
77

pensamento surgem como consequências dessa condição. Essa condição, ademais,


aponta para as circunstâncias a partir das quais cada ser vivo age e interage no mundo,
pois todas as ações trazem as circunstâncias nas quais estão inseridas.
Tal entendimento nos remete à problemática do valor referente aos conceitos
habituais aos quais estamos submetidos. Na medida em que a causalidade se dilui no
conflito originário, a nossa percepção de mundo também é aqui diluída. Isso significa
que, junto à ideia de causa e feito, os objetos que se envolvem nessa ideia são também
suprimidos, tal como nos diz Nietzsche (2008, § 551, p. 286): “A interpretação da
causalidade é uma ilusão... Uma ‘coisa’ é a soma de seus efeitos ligados sinteticamente
por meio de um conceito, de uma imagem...”. Conceito e imagem, enquanto síntese, são
interpretações somáticas de acontecimentos diversos que escapam à percepção. O que
escapa à percepção é interpretado de modo redutivo, devidamente achatado à
manutenção do poder daquele que se utiliza de tal meio para se manter. Essa
interpretação redutiva dos fenômenos somente pode vir à tona através da linguagem,
linguagem tanto como o que originariamente interpreta em seu silêncio, como também
enquanto o que profere e conceitua o interpretado determinando-o e fixando-o no
tempo. Disso advém a percepção da sucessão do tempo em meio ao qual uma coisa
advém de outra. Aqui a linguagem atua dissimulando os acontecimentos e tornando-os
iguais, quando eles não essencialmente diferentes. Tudo isso para que, em meio à
complexa profusão de vontades, possamos enxergá-las como unidades sucessivas no
espaço-tempo. Contudo, no complexo e contínuo movimento das vontades, em sua
transformação constante em meio à qual nada permanece o mesmo por sequer um
instante, percebemos que “Não há causas nem efeitos” e que “Linguisticamente”,
porém, “não sabemos nos libertar deles.” (NIETZSCHE, 2008, § 551, p. 286). Trata-se,
portanto, de fazer com que a linguagem determine a própria experiência do viver,
quando na verdade é o viver que determina o surgimento da linguagem.

3.3 A inevitável permanência na tensão

Compreendemos que a concepção de sujeito enquanto interioridade autônoma se


apresenta como uma forma de cessar o conflito que é vida. Isso porque vida é
essencialmente criação-destruição simultaneamente. Sendo, pois, essa tensão,
entendemos que a pressuposição de um sujeito autônomo é uma tentativa de eliminá-la
78

junto à não-autonomia, isto é, a impossibilidade de se poder ser “livre” justamente


porque o homem já se encontra sempre perpassado pela vida. Mas ainda uma questão
deve ser posta: em que se fundamenta a negação da vida enquanto conflito? Se em todo
e qualquer âmbito da vivência encontra-se vontade de poder, a negação da vida se dá
através de um incremento de poder, de um instinto que resulta em conservação. Como,
porém, podemos falar de um aumento de poder, na medida em que há uma negação da
totalidade em virtude de uma parte?, isto é, como se torna possível o aumento de poder,
se a espécie que nega a tensão originária do todo o faz sendo uma parte deste e se
constituindo através do mesmo?
É somente a partir de um desempenho fisiológico avaliador da vida, que se pode
chegar ao objetivo de que se deve negar a totalidade da vida como luta constante. Para
garantir essa negação da vida com vistas a preservar o próprio modo de avaliar, faz-se
necessário uma resolução, uma resposta ao porquê da negação que é simultaneamente
afirmação, pois para negar é preciso afirmar. Aqui nota-se, embora se parta de uma
tentativa de eliminação da tensão, ainda a tensão em vigor, pois esta permanece
enquanto empenho e esforço para negar a si mesma: “... de que adianta sustentar com
todas as forças a guerra contra o mal, não prejudicar e não dizer não! Faz-se, contudo, a
guerra e não se pode agir de outro modo!” (NIETZSCHE, 2008, § 351, p. 193). Esse
tipo-homem, ao estabelecer a guerra contra a guerra, permanece na guerra, pois todo
sim é simultaneamente não, e como ambos advêm de uma totalidade que não se esgota
em sua luta, esse sim-não já é um conflito que quer se afirmar enquanto tal.
Na medida em que entendemos a negação como simultânea a uma afirmação,
devemos nos debruçar sobre uma questão: o que caracteriza essa afirmação enquanto
tal? Qual o seu fundo mesmo como o que nega a totalidade? Se a totalidade aqui diz
respeito a um movimento de luta constante, e se esse movimento não apresenta um fim
em si entendido como utilidade ou sentido último para a vida, o ato de negar pressupõe
que deveria haver um fim, uma utilidade e um sentido. Entende-se, dessa forma, que
“No conceito de poder, seja o poder de um Deus, seja o poder de um homem, está
sempre computada, ao mesmo tempo, a capacidade de ser útil e a capacidade de
prejudicar. (NIETZSCHE, 2008, § 352, p. 193). O poder de um tipo-homem que nega a
vida está na consequência de sua avaliação do que é útil e prejudicial. Essa é,
novamente, uma avaliação simultânea: dizer o que é útil implica dizer o que não é útil –
o que nesse caso é o que prejudica. O prejudicial é inútil e o é justamente porque
prejudica, pois não garante nada senão oposição e adversidade.
79

A oposição entre valores surge a partir desse enfrentamento ao caos concebido


como contrário à possibilidade de se conservar. Opor valores significa tomar um valor
para si como benéfico em detrimento de outro concebido como maléfico. Aqui é onde
reside, para Nietzsche, a origem do ideal cristão. A ideia de bem simboliza a utilidade
da ação, a garantia de que as ações humanas tenham um propósito; o mal estaria a
condizer com a inutilidade do agir humano, o irromper violento e gratuito da vida.
Devemos investigar, contudo, as implicações com relação a essa utilidade
advinda de uma reação contra o devir. Se o bem pressupõe a utilidade, nele reside um
artifício criador, ou, para dizer de outro modo, uma moral. Mas o problema não está no
fato de haver uma moral, e sim, o tipo de moral, no que ela implica e se ela se reconhece
ou não como uma interpretação, uma óptica através da qual surge uma necessidade de
preservá-la.

3.4 A confusão entre meio e fim como condição de conservação da espécie e os


conceitos de nobre e escravo

A moral da utilidade quer fazer da exceção relativa a uma espécie a sua regra
para se conservar. De fato, o que se pretende com esse tipo de moral não é garantir a
preservação de apenas um tipo-homem. Sua maneira de avaliar a vida, por ser unilateral,
reduz todas os tipos a somente um. Embora se depare no meio de seu caminho com a
diferença, esta é atropelada por uma pulsão fisiológica que pretende sua aniquilação. A
luta e o impulso para se manter vivo corresponde aqui a uma tentativa de transformar o
outro em si mesmo, uma vez que a intenção é eliminar a diferença.
É por esse motivo que Nietzsche compreenderá o homem virtuoso, aquele que
exerce a bondade, como um tirano62. Sua tirania não apenas diz respeito à natureza, mas
também a outros tipos de homem que, por serem diferentes, partem de outras
disposições fisiológicas. A tirania cometida pelo “homem bom” não admite outros
modos de interpretar o mundo. Assim, o que na verdade deveria ser um meio através do
qual uma espécie adquiriria poder e se conservaria, é visto como fim e como regra
segunda a qual todas as espécies devem se submeter. Esse empenho tirânico se tornou o
fio condutor da moralidade ocidental:

62
(NIETZSCHE, 2008, 354)
80

A humanidade repete sempre o mesmo erro: o erro de fazer de um


meio para a vida uma norma para a vida, e de, em vez de encontrar a
medida na suprema intensificação da vida ela mesma, no problema do
crescimento e do esgotamento, empregar os meios de uma vida
inteiramente determinada para a exclusão de todas as outras formas de
vida” (NIETZSCHE, 2008, § 354, p. 194).

Ao se contrapor à perspectiva tirânica do “homem bom”, Nietzsche propõe uma


reflexão, no sentido de nos deslocarmos para outra direção, a saber, a direção a partir da
qual o homem, sendo vontade de poder, encontra sua medida na intensificação da vida.
Isso quer dizer: no crescimento ou no esgotamento. Em qualquer que seja o âmbito, um
dos dois levará à intensificação, pois acrescendo ou esgotando o poder, o homem se
agarra à sua própria condição. Percebemos, com isso, que a crítica de Nietzsche à moral
configura, assim, não uma tentativa de eliminá-la. Se assim o fosse, sua própria filosofia
entraria em contradição, visto que pressupõe uma hierarquia de forças em conflito e,
portanto, um movimento incessante a partir de uma pluralidade. O sentido de sua crítica
encontra-se no fato de que se tentou, no decorrer da história, reduzir os homens a uma
norma que essencialmente é a exceção. Além disso, essa exceção não somente está
relacionada a um meio de conservação concebido como fim, mas também diz respeito a
uma pulsão criadora, pois a natureza mesma não é moral; o homem, porém, não pode
deixar de ser, visto que moral, aqui, quer exprimir precisamente as condições por meio
das quais vontade de poder se realiza no homem.
Para uma compreensão mais apurada da origem da tirania do homem bom,
podemos nos remeter à perspectiva histórico-genealógica de Nietzsche, presente em sua
obra Genealogia da moral. Nesta, encontramos uma análise no tocante a como os
valores judaico-cristãos se implementaram como superiores e predominantes na cultura
ocidental. Para tanto, faz-se necessário que investiguemos sobre os conceitos de “nobre”
e “escravo” elaborados por Nietzsche. Em um primeiro momento, contentemo-nos com
a abordagem do primeiro, quando o filósofo diz que

[...] em toda parte, nobre, aristocrático, no sentido social, é o conceito


básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu ‘bom’, no
sentido de ‘espiritualmente nobre’, ‘aristocrático’, de ‘espiritualmente
bem-nascido’, ‘espiritualmente privilegiado’: um desenvolvimento
que sempre corre paralelo àquele outro que faz ‘plebeu’, ‘comum’,
‘baixo’ transmutar-se finalmente em ‘ruim’. O exemplo mais
eloquente deste último é o próprio termo alemão schlecht [ruim], o
qual é idêntico a schlicht [simples] – confira-se schlechtweg,
81

schlechterdings [ambos ‘simplesmente’] – e originalmente designava


o homem simples, comum, ainda sem olhar depreciativo, apenas em
oposição ao nobre. (NIETZSCHE, 2009, § 4, p. 18).

Nietzsche diagnostica que, no que respeita ao “nobre”, há uma primazia que


coincide com as valorações de povos antigos e que, por sua vez, revela um modo a
partir do qual o conceito de “bom” foi constituído. Paralelamente a essa valoração,
ocorre aquela outra que é designada como “ruim”. O bom, em primeira instância, está
associado ao sentido social de superioridade; o ruim, ao sentido mais trivial relativo à
plebe. Apesar do sentido político-social, há um sentido primeiro, o qual é mencionado
por Nietzsche como “traço típico do caráter” (“typichen Charakterzuge”), este sendo o
sentido que mais deve nos ocupar. O traço típico do caráter exprime as condições
fisiológicas a partir das quais o homem é conduzido no mundo, o que tem a ver com a
noção de πάθος (páthos). As circunstâncias sob as quais o homem se encontra dizem
respeito às condições fisiológicas às quais ele está submetido.
Tendo em vista que já abordamos a concepção do “homem bom” como tirânico,
tenhamos em vista agora uma relação entre a figura desse homem e o homem “escravo”,
para entendermos como originalmente ocorre sua avaliação da vida. Analisemos a
seguinte passagem:

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento


se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é
negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança
imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um
triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um
‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato criador.
(NIETZSCHE, 2009, § 10, p. 26).

Nietzsche associa a criação de valores da moral escrava ao que ele subentende


por “ressentimento”. A expressão deve ser aqui analisada de duas formas: ressentimento
tanto relacionado à dinâmica do viver enquanto irrupção que traz consigo criação-
destruição e, portanto, conflito; como também ressentimento com relação ao nobre.
Percebe-se que ambos estão atrelados, pois “nobre” exprime justamente uma
aproximação com “natureza”, uma vez que diz respeito à condição impetuosa,
descomedida e indiferente. Essa “indiferença” já diz o que é o seu criar, pois manifesta
uma relação de pertencimento ao que continuamente irrompe para poder mais. É contra
82

esse desempenho criador, tanto da natureza como um todo quanto do nobre, que o
ressentimento se volta e, a partir disso, ocorre criação de valores. Por esse motivo, seu
ato criador condiz com um dizer “Não” a um “fora”: à medida que se opõe ao nobre
para poder afirmar sua moral, esta é essencialmente “reação”, e não “ação”; ela se gera,
por conseguinte, a partir de um “outro”. Porquanto essa reação concerne aos valores
judaico-cristãos, entendemos por que Nietzsche menciona que somente através de uma
“vingança imaginária” obtém-se uma “reparação”: posto que os valores estabelecidos
como normas coincidem aqui com os preceitos bíblicos do Novo Testamento, a
vingança do escravo não pode ser propriamente efetivada – ela é deixada para uma
instância superior, a saber, o “juízo final”, Deus.
Na medida em que refletimos acerca dessa criação de valores nobre e escrava,
devemos analisar o modo a partir do qual a moral escrava, que se estabelece como
predominante, adquire terreno e se expande. Sua expansão advém da forma como se
impõe e que implicações gera – o que nos leva a remeter à oposição de valores firmada
por essa moral. A avaliação escrava relativa à totalidade da vida e ao nobre exprime
uma reação que despreza e abomina. Com isso, a vida e a maneira nobre de viver são
avaliadas como más; mais ainda, como “más em si” e que devem ser combatidas.
Consequentemente, seu próprio modo de avaliar é concebido como em si mesmo
“bom”. É que o escravo toma para si “‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito
básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele
mesmo!...” (NIETZSCHE, 2009, § 10, p. 28). Tendo em vista que o parâmetro segundo
o qual esse tipo-homem se utiliza é o de si mesmo, e como a realização de si mesmo
parte de um outro que coincide com a totalidade que lhe aflige, segue-se daí que o seu
realizar-se somente é possível à proporção que há um combate referente a tudo o que
lhe é contrário – uma tirania advinda de sua “bondade”.

3.5 A criação de valores a partir do conflito-vida

A manifestação da vontade humana aparece sempre atrelada à condição de


valorar, pois esta exprime um modo através do qual, estando no mundo, o homem é
impelido a criar. A criação, no homem, pressupõe uma interpretação a partir da qual
vida nele se realiza. Concebido assim, entendemos que interpretação somente é possível
conforme o irromper de afetos. Interpretação já é, nela mesma, afeto; exprime, em seu
83

acontecer, as relações multíplices que perpassam aquele que interpreta. No homem, ela
se caracteriza como criação de mundo, atribuição de valor às vivências63. Nesse sentido,
a vivência humana é e não pode deixar de ser isso. Por isso, diz Zaratustra: “sem a
avaliação, seria vazia a noz da existência” (NIETZSCHE, 1987, p. 75). A que remete
esse “vazio”? Ele contraria o que é aí designado como “avaliação”. Na medida em que
avaliação é a atividade por meio da qual o homem se constitui no mundo, este só lhe
aparece a partir daquela. Assim, os postulados metafísicos concebidos como em si e
como unidades a partir das quais se chega à concepção de “verdade” devem ser vistos
como perspectivas, isto é, avaliações que “essencializam” o mundo e não se reconhecem
sob essa determinação avaliativa: “A determinação da essência de tudo o que é essencial
remonta a ‘avaliações’. O essencial é concebido em vista de seu caráter valorativo, e
apenas assim se mostra essencial.” (HEIDEGGER, 2007, p. 419). Esse páthos
avaliador, que exprime a condição propriamente humana, também é encontrado na obra
Rei Épido, de Sófocles, momento em que o sacerdote diz a Édipo: “Se reinarás sobre
essa terra como agora a governas, governá-la povoada de homens é melhor do que
vazia. Pois nem torre, nem nave, nada são privados de homens que lá dentro vivam.”
(SÓFOCLES, 2015 p. 29-31). Aqui o sacerdote faz aparecer em sua fala o elemento
interpretativo no qual o homem está inserido no mundo. O mundo, privado de homens
para nele vivenciar e criá-lo conforme seus afetos e disposições interpretativas, não
pode vir à luz enquanto mundo, pois mundo exprime criação, e esta, por seu turno,
encontra-se relacionada à perspectividade daquele que cria. O criar ocorre por meio de
uma guerra, um conflito tal como a vida se nos mostra. O “vazio” ao qual faz menção
Zaratustra, e que também se encontra de maneira implícita na fala do sacerdote a Édipo,
conota a ausência dos valores humanos e ao mesmo tempo o conflito do mundo em
meio a essa ausência, isto é, ausência porque justamente conflito, pois este expressa
originariamente o acontecer inútil e gratuito. Porém, o acontecer no homem é sempre
um acontecer perspectivo, visto que um horizonte para ele sempre já se mostra a partir
de um valor. Goethe nos mostra essa atividade criadora por meio da significação do
poeta em relação à vida:

63
Aqui um questionamento pode ser válido, do ponto de vista conceitual: se interpretação é atribuição de
valor às vivências, seriam as vivências anteriores à intepretação, no sentido de que somente após viver o
homem interpreta o que viveu? A resposta seria que não, pois o viver é o próprio interpretar: ele já traz
consigo a percepção daquilo que é vivido; e como toda percepção diz respeito à interpretação, o que é
vivido é o que é o que é interpretado.
84

Cada um a vive e dela é ignorante,


E onde a pintais, se torna interessante.
Multíplices visões e pouca claridade,
Cem ilusões e um raio de verdade,
Assim prepara-se a porção perfeita,
Que tudo em torno, anima, atrai, deleita. (GOETHE, 2013, p. 41).

O homem vive a vida e, ao sempre vivê-la, é dela ignorante, devido à própria


grandiosidade da vida em seu irromper múltiplo. O poeta, na condição de intérprete da
vida, a “pinta”, ou seja, dá a ela cores, aparências e, com isso, traz à luz a vida enquanto
mundo, isto é, enquanto criações e relações. Com isso, a vida se torna “interessante”.
Todavia, donde provém essa visão? Donde emerge essa interpretação que faz a vida
adquirir cores e sentidos? A resposta se encontra no terceiro verso do poema:
“Multíplices visões e pouca claridade”. Qual o significado de tais palavras? É que essa
pintura, essa criação artística que dá unidade e sentido à vida advém de “multíplices
visões”, isto é, de múltiplos afetos que perpassam o homem – por isso são multíplices
visões e pouca claridade: a conjunção aditiva “e” exprime o significado dessas visões
múltiplas em consonância com o que tem pouca claridade. Elas têm “pouca claridade”
justamente por serem multíplices, pois a apreensão do que é múltiplo sempre nos escapa
e, por esse motivo, é-nos obscuro. Mas é dessa obscuridade, dessas multíplices visões,
que emergem as referidas “cem ilusões” dos versos da linha quatro, novamente ligadas
com a conjunção aditiva “e” para evocar a “verdade”: “Cem ilusões e um raio de
verdade”, ou seja, a partir do que é multíplice, do que é disforme, sem cor e sem sentido
e, portanto, do que só produz “ilusões”, o poeta evoca, por meio de sua criação, a
“verdade”; esta se dá como um raio que atravessa o múltiplo para vir a ser unidade.
A efetividade do criar é, para Nietzsche, uma consequência da vontade de poder.
O que o homem cria manifesta um contínuo criar em movimento de múltiplas vontades
que constituem um todo, isto é, o seu criar advém de um incessante criar da totalidade.
Por isso no conceito de vontade de poder, a expressão é utilizada para caracterizar a
totalidade múltipla dos acontecimentos e manifestações de vida, abarcando as funções
orgânicas e inorgânicas. Assim, para dizermos o que vem a ser a essência do homem,
devemos nos ater à condição geral e primacial a que está submetido todo ser vivente.
Esse empenho também exige uma questão com relação ao que significa, para Nietzsche,
vida:
85

[...] a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do


que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas
próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração –
mas por que empregar sempre essas palavras, que há muito estão
marcadas de uma intenção difamadora? (NIETZSCHE, 2005, p. 154-
55).

Se, por um lado, o que caracteriza a dinamicidade da vivência é vontade de


poder, ânsia por poder sempre mais, por intensificação de força, por outro – e efetiva e
simultaneamente –, poder mais significa precisamente apropriar-se, ofender, sujeitar o
estranho à condição de mais fraco, oprimir à medida de uma obediência ao que se impõe
como força propulsora. Tudo isso diz respeito ao que essencialmente exprime vida.
Entretanto, no decorrer dos tempos, o homem, em meio à sua imersão nesse caos,
passou a interpretar e a conceber a vida de outro modo, sob um outro olhar: um olhar
que apazigua, que luta contra o conflito e a gratuita exposição do que continuamente
brota. É por esse motivo que as palavras que expressam combate e guerra foram
“marcadas por uma intenção difamadora”.

Mas não podemos nos deixar seduzir pelas palavras, pois assim como a violência
da natureza não é, em si mesma, nem boa nem má, também esse artifício de se voltar
contra a natureza não o é, pois ele é decorrente de um impulso da própria vida querendo
intensificar seu poder. O homem, no entanto, que caracteriza a figura predominante no
Ocidente, o tipo-homem que quer fazer de seu modo de avaliar o de todos os outros
tipos-homens, não vê na violência da natureza senão seu próprio olhar moral que, por
sua vez, imediatamente indica e atribui um valor “negativo” a tudo que contraria sua
óptica com respeito ao que deve ser o mundo. E como o mundo, por se constituir
através de vontades distintas, se mostra sempre em uma tensão, a perspectiva daquele
que o avalia como “mau” diz respeito à totalidade, pois o conflito está presente em
todos os âmbitos da vida.

3.6 Anseio e insatisfação como aumento do poder

Um aprofundamento da crítica aos ideais morais requer uma investigação


concernente às suas implicações para com o modo de se perceber o mundo. E quando
aqui falamos de implicação nesse modo de perceber o mundo queremos suscitar tão
86

somente a ideia de que a moral, sendo um meio de conservação da espécie, direciona e


conduz impulsos de um tal modo, que ela se mostra como um meio que determina
olhares e formas a partir das quais o mundo vem à tona. Vimos, entretanto, que a forma
ideal da moral, à medida que se pretende dominante através de uma tirania que submete
todos os outros viventes à sua vontade, não se dá conta de que é meio, e por isso,
transforma esse meio em fim. Com a palavra “fim” não queremos dizer que haja uma
conclusão ou acabamento no sentido de encerrar-se em sua efetivação. Sendo assim, que
significa esse fim?
Percebe-se, com essa pergunta, já o artifício latente do qual se utiliza essa
espécie de homem para se conservar. Se a moral é um meio e, no entanto, o homem
toma para si como um fim, não significa que ele faça desse meio efetivamente um fim,
mas sim, que ele se utiliza dessa falsificação para manter-se revigorado, intensificado
por meio da continuidade e persistência em seu ideal.
O que mantém essa continuidade, essa ânsia por estabilidade? É o “anseio”
(Begierde). O poder de conservação está na medida do anseio e do anseio por
intensificar o poder. Quanto maior for o anseio, tanto mais se garante a continuidade
desse processo. Conforme deseja-se mais, adquire-se mais poder, mais força. Para que
essa força venha a se intensificar, faz-se necessário insatisfação, isto é, seu oposto, um
movimento que se insurge como barreira, como impedimento, tal como diz Nietzsche
no fragmento 333 da Vontade de poder: “Ética: ou ‘filosofia da desejabilidade’. –
‘Deveria ser de outro modo’, deve vir a ser de outro modo’: a insatisfação seria,
portanto, o germe da ética.” (NIETZSCHE, 2008, § 333, p. 182).
Estar em luta é a condição primordial da espécie que deseja a não-luta, o estar
fora desse conflito. Sem a luta, ou seja, sem uma oposição, qual seria o parâmetro para
deixar-se conduzir em direção a um determinado caminho? Eliminar-se-ia o empenho,
já que não se precisaria lutar para seguir adiante. É por isso que para o cristão a vida
terrestre é uma constante luta para se livrar de seus instintos mais espontâneos e
violentos. O objetivo dessa luta é alcançar um fim que não se alcança aqui na Terra,
pois a finalidade última da vida cristã estaria reservada em um paraíso com Deus, lugar
onde a guerra cessa e prevalece apenas a paz eterna. Daí advém o motivo por que,
estando na luta, o que move é a insatisfação, pois dado o processo no qual o homem se
87

encontra – sua condição natural de estar sempre desejando – tão logo ele obtém o
desejado, se acha novamente desejando64.
Mesmo que na moral cristã o desejo conduza a própria moral, há de se perceber
que se trata de um desejo restrito e que, por sua vez, luta para eliminar os desejos que
lhe são contrários. Essa maneira de conduzir a vida privilegia determinados desejos
concebidos como bons à medida que o que constrange e coincide com a ânsia por poder
mais referente à totalidade cega é desprezada e vista como uma calamidade a ser
combatida. É sob essa perspectiva que a propositura do estoico Cícero ressoa, ao dizer
que “Sem desejo, não há frustração: logo, é preferível não desejar.” (CÍCERO, 2015, p.
42). O que o filósofo toma aqui como “desejo” diz respeito às paixões e instintos mais
espontâneos do homem. Cícero parte de uma dicotomia metafísica, a saber, a de que o
pensamento é contrário aos instintos e que, portanto, detém uma superioridade sobre os
mesmos. Contudo, pensamento é também desejo, pois na medida em que com a palavra
desejo compreendemos vontade de poder, o pensar é uma consequência do desejar e
ansiar pelo poder65.
Para Nietzsche, as consequências desse modo de interpretar o mundo implicam
em uma barreira para o desenvolvimento do saber humano. Quando uma determinada
espécie passa a conduzir o curso de todas as outras, aí reside o perigo de um olhar-para-
o-mundo já condicionado e privado de outros olhares, outras perspectivas, outras
vivências que não são permitidas. As vivências e os saberes não podem ser reduzidos a
uma vivência e um saber, muito menos a uma forma de conhecimento acabada, como se
todas as formas de dizer o mundo tivessem se esgotado. Estando em conjunto, essas
naturezas, todas elas diferentes, tentam se igualar e “divinizam a interrupção do
trabalho, do combate, das paixões, da tensão, das oposições, da ‘realidade’, in summa...

64
De modo bastante semelhante a essa noção aqui exposta de “desejo” é a noção de “Eros” exposta por
Sócrates no Banquete. Eros (Ἔρως) é filho de Póros (Πόρος) e Pênia (Πενία), respectivamente:
abundância/riqueza e carência/pobreza. Eros não é nem somente carência, nem somente saciedade, mas
essencialmente ambos. O conflito entre esses dois polos exprime um movimento simultâneo e incessante,
pois o desejo referente ao que se deseja somente o é à medida que não se tem o desejado, isto é, à medida
que falta o que se deseja. Mas quando se obtém o desejado, este é ainda desejado com vistas ao futuro,
pois uma vez que o futuro é indeterminado, a carência nele já se mostra presente, pois o amor “tanto
floresce e vive, segundo se está senhor dos seus recursos, como morre para voltar à vida.” (PLATÃO,
2012, p. 72).
65
Podemos, contudo, estabelecer uma “diferença” entre pensar e desejar em termos de “grau”: o pensar,
tal como ocorre na atividade relativa aos raciocínios lógico, dialético ou retórico, nos mostra uma
diferença com respeito às atividades “mais” instintivas do organismo vivo, como, por exemplo, o temor
diante de um fenômeno como um furacão, ou um animal feroz correndo em nossa direção. Ao
estabelecermos essa diferença, queremos elucidar a atividade do pensamento como sendo também uma
atividade instintiva, pois parte de disposições fisiológicas que também estão presentes em outras
atividades, porém não ao modo do pensamento.
88

da luta pelo conhecimento, do esforço do conhecimento” (NIETZSCHE, 2008, § 335, p.


184). Divinizar a interrupção concernente à tensão originária do mundo implica
submetê-lo a uma interpretação. Aqui a tensão entre desejo e insatisfação – própria do
movimento das vontades de poder – é suprimida por meio de um valor, pois o desejo
aparece aqui como referente à “interrupção”, e a insatisfação é insatisfação em virtude
dessa interrupção não se efetivar enquanto algo que acaba e que se realiza por
definitivo. Diviniza-se, assim, um combate contra o próprio combate originário da vida.

3.7 O conceito de egoísmo interpretado por Nietzsche como força propulsora

Sob o domínio do ideal que cinde e que estabelece oposição entre valores, bem e
mal são vistos como condutores do impulso de conservação. Na esfera da moral
ascética, o mal, como já vimos, está relacionado às forças mais violentas. Tais forças,
características de uma contrariedade ao ideal moral, são por este combatidas na intenção
de serem eliminadas para que a tensão venha cessar. Mas como o que é combatido diz
respeito à dinâmica originária da existência, trava-se, com isso, uma infindável luta
contra a vida que, paradoxalmente, é ao mesmo tempo meio a partir do qual se pode
conservá-la. Há uma contínua persistência na tentativa de eliminação dos impulsos
vitais e originários. Esses impulsos também são caracterizados por Nietzsche como
“egos”.
Não se trata, como é de se supor dentro da perspectiva cartesiana, de um ego
interior, substancializado e agente das ações. O conceito de ego coincide com o que
discorremos acima como anseio: uma vontade por intensificar cada vez mais o que
nunca se satisfaz, um retorno ao poder-mais de uma vontade sempre outra.
Considerando essa insatisfação da vontade que luta para se manter em vida, e também
não esquecendo de que a vontade que se manifesta em cada ser vivo traz nela mesma
uma distinção com relação aos outros seres, compreender-se-á que cada ser vivo, antes
de tudo, luta para manter a si mesmo enquanto “indivíduo” e pulsão que quer se
intensificar.66 Há aí, portanto, uma espécie de ”interesse” inconsciente com relação a

66
“Indivíduo” serve-nos aqui mais como um elemento linguístico do que para nos referirmos a uma
“unidade quantitativa”. Trata-se de um artifício da linguagem do qual, talvez, não possamos nos livrar.
Por exemplo, dizemos “o cão” ou “aquele cão” (com artigo definido no singular ou pronome
demonstrativo também no singular) para nos referirmos a um determinado animal que vemos, e aqui, por
força do hábito e do costume, percebemos “um cão”, no sentido mesmo da unidade-quantidade. A nossa
linguagem não alcança o múltiplo, pois este parece escapar à percepção pela sua própria natureza efêmera
e misteriosa.
89

cada vontade, interesse esse já proveniente de outras vontades que interagem entre si,
mas querendo dar vazão ao próprio egoísmo primordial. O egoísmo deve aqui ser
compreendido a partir do fenômeno fisiológico. Visto a partir da fisiologia, o egoísmo
diz respeito à perspectividade de cada vontade de poder em um anseio próprio para
aumentar seu poder. Nesse sentido, diz Nietzsche: “... busquei, em primeiro lugar,
provar que não poderia haver nada de outro senão egoísmo.”67. Contudo, na era
Moderna o egoísmo é combatido por via de uma oposição de valores. Seu valor oposto
é o “desinteresse” (Selbstlose) ou as ações não-egoístas (Unegoistischen).
Schopenhauer postulara também o egoísmo como força propulsora de todos os
seres. Para ele, “a motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal,
é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem-estar.” (SCHOPENHAUER,
2001, p. 120). Contudo, o juízo moral de sua filosofia combate o egoísmo como uma
força contrária à moralidade. Assim, o egoísmo é aqui visto como uma força má, e por
ser concebido dessa maneira, “o egoísmo é a primeira e a mais importante potência,
embora não seja a única, que a motivação moral tem de combater”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 124)68. Essa conotação do egoísmo como um fenômeno
mal e que deve ser combatido pressupõe que haja uma aposição entre egoísmo e
desinteresse. Contudo, para Nietzsche essa oposição não existe efetivamente. Uma vez
que o egoísmo corresponde à vontade de poder em sua condição originária, o
desinteresse também é uma forma de egoísmo. Podemos constatar isso no fragmento
373 de WM/VP: “o culto ao altruísmo é uma forma específica do egoísmo, que se
apresenta regularmente sob determinadas pressuposições fisiológicas.”69. Tais
pressuposições fisiológicas resultam em uma interpretação proveniente do próprio
egoísmo. Essa interpretação é a de que o egoísmo deve ser combatido. O egoísmo,
assim, no que se refere à interpretação das ações desinteressadas, atua dissimulando a si
mesmo enquanto tal, isto é, ele atua falsificando o interesse que lhe é próprio. Mas para
combater o egoísmo, tal combate não ocorre senão a partir e com vistas ao próprio
egoísmo, visto que “egoísmo”, aqui, quer dizer “vontade de poder”.

67
(WM/VP, 1964, § 362, p. 249). Tradução nossa.
68
Aqui vemos uma divergência radical com relação às concepções de “moral” na filosofia de ambos os
autores, pois na filosofia de Nietzsche a moral ganha uma conotação mais ampla, uma vez que se refere
às condições a partir das quais o homem percebe o mundo, tal como já vimos no aforismo 114 de A gaia
ciência: “Não existem vivências que não sejam morais, mesmo no âmbito da percepção sensível.”
(NIETZSCHE, 2012, p. 132).
69
Ibid., p. 252. Tradução nossa.
90

Da mesma maneira que o ver perspectivamente não vê senão a si mesmo,


também o que propele as vontades a se conservarem é aquilo de mais distinto e
idiossincrático relativo a cada ser: o egoísmo. O egoísmo ocorre tanto no âmbito da
individualidade ou singularidade de cada vontade, como também no âmbito da
coletividade, isto é, no rebanho. Assim, Nietzsche analisa de que maneira a crítica ao
egoísmo como ação pertencente a uma individualidade subjetiva não condiz com o que
realmente se efetiva como egoísmo originário a partir do qual cada vontade se consuma:
“Não há nenhum egoísmo que se detenha em si e não se propague, – não há, por
consequência, absolutamente aquele egoísmo autorizado e ‘moralmente indiferente’ de
que falais.” (NIETZSCHE, 2008, § 369, p. 198). A partir disso, compreendemos que o
egoísmo ao qual Nietzsche se refere diz respeito à condição fisiológica constituinte da
vida. Na medida em que o homem vem a se constituir por meio do egoísmo, sua ação é,
na verdade, uma interação, uma relação com outros egoísmos, isto é, outras vontades
que visam se expandir.
Mas a palavra egoísmo pode soar estranha, diante de uma época em que
prevalece a noção de “igualdade”, pois o que se busca com a igualdade é precisamente
um combate ao egoísmo, uma tentativa de igualar forças distintas. O parâmetro dessa
igualdade, porém, é o de uma vontade fraca, debilitada e que luta de qualquer modo
para não reverter sua condição. Com isso, o egoísmo, em certa medida, se reprime e
torna-se impotente, incapaz de se expandir em seu modo primordial 70. Com efeito, o
egoísmo não é nem “bom” nem “mau”; enquanto tal, ele diz respeito não apenas à
condição do homem, mas de todo ser que vive.
Ao se referir ao egoísmo, Nietzsche está a examinar a condição na qual o
homem se encontra, embora venha a negá-la. Compreende-se aqui o sentido de
fisiologia utilizado por ele. A primazia da fisiologia exprime modos a partir dos quais
vida se constitui, visto que o fisiológico abarca o agir como afeto, estimação e
perspectiva, estes como um irromper a partir de um ego – entendido como centro de
forças – enquanto pulsão e luta. Essa concepção de ego suscita diferença, peculiaridade
de cada vivente que faz parte de um todo e que tem sua maneira própria de estar,
70
A respeito dessa impotência do egoísmo à qual nos referimos, Fernando Pessoa nos diz algo
interessante: “O homem é um egoísmo mitigado por uma indolência.” (PESSOA, 2006, p. 4). A maneira
como ocorre essa mitigação do egoísmo expressa justamente o diagnóstico moral proposto por Nietzsche:
se a essência do homem se realiza em seu próprio egoísmo, através da moral torna-se possível uma
“indolência”, mas antes de assim ser, o que há é vontade cega. A indolência, assim, se refere ao estado já
normatizado do homem, um estado no qual o egoísmo, que é essencialmente luta para manter-se a si
próprio, é mitigado.
91

perceber e viver nesse todo. Tal é o direcionamento que o seguinte fragmento quer nos
indicar: “Egoísmo! Mas ainda ninguém perguntou: qual ego? Mas sim, cada um
equipara involuntariamente o ego a cada ego como iguais. Essas são as consequências
da teoria-escrava do sufrágio universal e da ‘igualdade’”71.
A consequência da ideia de igualdade, seja em que âmbito for, é que ela tenta
aniquilar o princípio básico das condições de manutenção das espécies. É precisamente
divido a uma diferença fisiológica que se torna possível atração e retração. Visto que
cada ser vivo se encontra numa incessante insatisfação, esta se direciona para o novo,
diferente e ainda não realizado. Cada vontade vem a se consumar na diferença, ainda
que essa consumação seja em uma tentativa de extinguir a diferença. Entretanto, tomar
o diferente como igual é algo que falseia a mudança e a diferenciação do que muda em
seu mover-se instantânea e constantemente. A pergunta pelo que é um ego (“was für ein
ego?”) nos surge como maneira de refletir acerca da singularidade de cada acontecer e
de cada força. Na medida em que ego quer dizer aqui condição fisiológica a partir da
qual cada ser vive, Nietzsche nos traz uma conotação diferente do termo: ego não diz
respeito nem a substrato ou coisa, nem a um impulso mau; ele é tão somente a
particularidade relativa a cada vontade. Por isso, a pergunta deve ressoar: Qual ego? A
própria pergunta nos conduz ao entendimento de que não há “o” ego, mas uma
pluralidade de egos que são, na verdade, vontades de poder.

3.8 Abismo e perspectiva: o fundamento a partir do não-fundamento

Se concebermos um determinado ponto óptico ou perspectiva como resultado de


uma luta entre pluralidades de impulsos, isto é, como afeto apropriador a partir do qual
um pensamento vem à luz, uma questão se nos impõe como exercício de reflexão: o que
há por trás dessa luz à qual nos referimos como pensamento? Poder-se-ia ousar dizer
que o que há é luta de impulsos, já que mencionamos aqui uma perspectiva enquanto
proveniente dessa luta. Todavia, o que significa essa luta?
No percurso que nos foi permitido traçar até aqui elucidamos a concepção de
Nietzsche da vontade de poder dizendo respeito à dinâmica do real como pluralidade de
vontades. Essas vontades, por serem distintas, se encontram em um conflito, no sentido

71
Ibid., p. 249-50, § 364. Tradução nossa.
92

de que são pulsões que se querem dominante a partir de si mesmas. Ainda mais: esse
conflito não apenas se dá no âmbito do “si mesmo” frente ao “outro”, como também na
condição de ser um “si mesmo” enquanto plural. Isso ocorre porque, como já vimos,
não apenas o homem, como também todo ser que vive, não é “substrato”, isto é, não se
encontra no mundo enquanto substância estática, mas, ao contrário, coincide com
múltiplas forças “reunidas” em um ser72. Sob essa condição, cada ser participa do devir
e por este é conduzido em meio à mutabilidade das coisas. Assim, o que subentendemos
por “luta” coincide com esse fluxo através do qual vida se realiza. Realizar-se significa
expor-se. O que é exposto? As afecções são expostas segundo a percepção de cada
pulsão. As percepções, por seu turno, designam interpretação e valoração referente
àquilo que afeta, pois, como nos diz o fragmento 590 da obra WM/VP: “Unsere Werte
sind in die Dinge hineininterpretirt.”73 “Nossos valores são introduzidos nas coisas
interpretativamente.”.
Por um lado, os valores são introduzidos nas coisas; por outro, são as próprias
coisas, ao nos atravessarem, que nos possibilitam a atividade do interpretar. Em suma,
ambos (homem e coisa) não estão separados, visto que o mundo, tal como nos aparece,
é resultado tanto da percepção quanto do objeto da percepção. A percepção é percepção
de algo, ao passo que todo “algo” só vem à luz a partir de uma percepção que o
apreenda. Aqui, portanto, vigora uma inseparável relação “sujeito-objeto”, pois ambos
estão atados em uma tensão como fenômenos originários. Isso significa, por
conseguinte, que nem “sujeito” é aqui entendido como “substrato” (“coisa pensante”,
por exemplo), nem o “objeto” é entendido a partir de uma oposição ou separação em
relação ao sujeito que o apreende. No diálogo Teeteto, Sócrates mostra de que modo
sujeito e objeto só podem ser pensados “separados” em relação a algo; e, por estarem
sempre em uma relação com algo, não se poderia determinar nem um nem outro a partir
de uma unidade em si e por si:

[...] também é pelo encontro de umas com as outras que todas as


coisas de todas as espécies se formam, a partir do movimento. Visto
que um é o agente e outro o paciente, como se diz, não é sem reservas
que se pensa em relação a eles como se fossem um. De facto, nem
nada é agente antes de se encontrar com o paciente, nem paciente
antes de se encontrar com o agente; o que encontrar algo e for agente,
pelo contrário, revela-se paciente, quando tropeça em outro. De modo

72
Com a ressalva de que “um ser” é um modo como nos referimos a como se dá a percepção para nós.
73
Ibid., p. 410. Tradução nossa.
93

que, de tudo isto que dizíamos desde o início, nada é unidade em si e


por si, mas vem a ser sempre em relação a alguma coisa, (PLATÃO.
2010b, p. 214, 157a).

Percebe-se, com isso, uma impossibilidade de se determinar um objeto, coisa ou


sujeito a partir de uma interpretação que “quantifica” e cinde a sua aparição. Visto que o
sujeito só o é enquanto intérprete de afeto, e tendo em vista que afeto é o que condiciona
interpretação, o sujeito está para os afetos assim como os afetos estão para o sujeito.
Entende-se, ainda, que “afetos” dizem, nesse caso, “objetos” dos afetos, pois ser afetado
é ser afetado por. O próprio homem é afeto – o que significa dizer que ele é tanto
sujeito quanto objeto, uma vez que o objeto só vem à presença mediante uma
interpretação.
Tendo em vista que uma percepção está atrelada à capacidade perceptiva de
organizar e atribuir sentido ao que se percebe, como surge e de que modo se dá esse
organizar? Na relação percepção-organização, não podemos fugir do âmbito da
percepção humana, isto é, não podemos ter acesso à maneira tal qual os outros seres
percebem o mundo, por isso não cabe fazer uma asserção no tocante à percepção
geral74. Uma percepção pode se caracterizar não apenas pelo fato de o objeto percebido
se mostrar de acordo com uma determinada unidade sintética, a qual, por seu turno,
exprime uma capacidade humana de organizar, mas também resulta de uma vontade de
poder, de um conflito para intensificar a vida.
No conflito, o que há é, paradoxalmente, “vazio”, pois ele, por si só, parece não
trazer consigo valor e sentido; depende, pois, de uma percepção de mundo que se
apropria do homem, para só então não aparecer somente enquanto vazio. Visto dessa
maneira, podemos nos remeter ao sentido grego antigo de “Χάος” (“Khaos”).
Originariamente a palavra se refere ao espaço vazio infinito e pode significar também
“abismo”. Além disso, Khaos é considerado o primeiro deus ou estado originário a

74
Até mesmo no âmbito estritamente da percepção humana, pode se tornar problemático tomar a
percepção como “a” percepção do conjunto “humanidade”. Um tal juízo tem a pretensão de abarcar todas
as percepções em termos genéricos. Em nossa forma habitual de nos referirmos às coisas, não há nada de
necessariamente problemático na generalização, uma vez que esta tem por objetivo também a
comunicação e interação em meio à diferença. Contudo, filosoficamente a questão se nos apresenta de
outra forma: se todo ser vivente se caracteriza pela sua peculiaridade no tangente à vontade de poder, e se
toda vontade traz consigo uma forma perspectiva de se manifestar no mundo, segue-se daí que cada
vontade tem sua própria maneira de perceber o mundo – o que nos leva à compreensão de que apenas por
convenção e através do artifício gramatical nos referimos à percepção no âmbito geral.
94

partir do qual o Cosmos se constitui, tal como consta em Hesíodo: “Bem no início,
Abismo nasceu” (HESÍODO, 2013, p. 39, linha 116).
Se tomarmos Khaos tanto como o que origina como o que é vazio e abismo,
perceberemos um paradoxo: como o que é vazio pode originar? O vazio remete ao sem
forma, porque enquanto abismo, é também indeterminado. Essa indeterminação é
referente à efemeridade de tudo o que há, pois à medida que nada está completamente
acabado e previamente constituído, segue-se daí que sua “essência” está por se
constituir, isto é, encontra-se sempre sob a condição de ser um nada, um vazio. Mas é a
partir desse vazio que surge a possibilidade da criação:

De Abismo nasceram a Escuridão e a negra Noite;


de noite, então, Eter e Dia nasceram75

Por isso, dele (Khaos) surge não apenas o que é obscuro e sombrio (Escuridão e
Noite), mas também o que é claro e cintilante (Eter e Dia), ou seja, traz consigo o
conflito e a harmonia, pois um depende do outro para irromper e se sobrepor. Khaos,
portanto, sendo força geradora, é o que se faz presente em tudo o que há, e como o que
há é um movimento de forças em conflito/harmonia simultâneos, esse movimento é
essencialmente vazio, pois ainda que do vazio algo brote para a ele se antepor, aquilo
que brota traz, em seu gerar-se, a origem. Isso significa, dito de outro modo: o que se
gera a partir do Khaos é um mundo de vivências e valores a partir dos quais são
possíveis as relações de sentido; porém, as coisas, por estarem continuamente se
transformando, participam e são também a origem, a saber, abismo, vazio não-
substancial e não-coisificado, precisamente pela sua própria natureza mutável. Essa
mutabilidade de tudo o que há é ofuscada frente à perspectiva que vê o mundo e as
coisas como estáveis – o que está atrelado ao ato de interpretar. É próprio da condição
geral da existência humana não perceber a efemeridade presente a todo instante em cada
mínima parte que lhe chega à percepção.
Para Nietzsche, esse caráter abismal no qual o homem se encontra também
exprime o que há de mais originário, pois é o que vem a gerar valorações e, com isso,
criações de mundo. O que na metafísica é concebido como fundamento em si mesmo,
para Nietzsche é consequência e resultado, pois há “um abismo atrás de cada chão, cada

75
(HESÍODO, 2013, p. 39, linhas 123-124)
95

razão, por baixo de toda ‘fundamentação’.” (NIETZSCHE, 2005, § 289, p. 175).


Compreende-se, com isso, que o que “fundamenta” é sem fundo. Mas o que é esse sem
fundo? Se, para Nietzsche, a dinâmica do mundo é vontade de poder, e se vontade de
poder compreende uma multiplicidade de vontades, entendemos que o sentido de
abismo coincide justamente com o sentido de tensão e conflito. Por ser sempre uma
tensão, a existência aparece como inesgotável, como um processo sempre inacabado
que se constitui a todo instante. Abismo é, assim, a condição originária na e partir da
qual todo pensamento e todo mundo de vivências vêm à luz. Abismo é tanto trevas
quanto luz – eis o que ressoa nas palavras de Zaratustra: “Ó céu sobre mim, céu puro,
céu profundo! Ó abismo de luz! Olhando-te, estremeço de divinos desejos.”76. A
imagética paradoxal de abismo como “abismo de luz” dá-nos entender que “luz”,
enquanto criação, só aparece na e partir de abismo, portanto, na e partir de trevas, de
nada. Nisso se dá interpretação; nisso, pois, o mundo se realiza em seu criar-destruir
ininterrupto. É também sob essa condição que o próprio homem se depara a todo
instante em seu existir, ora no empenho para ser o que não é, ora no empenho para não
ser aquilo que está sendo. Seu lugar de ser é, portanto, em lugar algum, visto que não há
lugar estável nem substancial que o acolha em seu existir – daí as seguintes indagações
de Zaratustra: “... e onde o homem não estaria ante abismos? O próprio ver – não é ver
abismos?”77. O lugar próprio do homem é diante de abismos. Sua condição fisiológica é
abismo; o que lhe constitui enquanto ser interpretante é abismo. Abismo é o próprio ver
e, portanto, o ato de interpretar o que é múltiplo e obscuro como unidade límpida; é o
que permite o homem ser homem.

3.9 Acerca da aparência lógica do mundo

Falamos a respeito de como o mundo incute no homem uma óptica a partir da


qual o próprio mundo surge enquanto tal. Isso porque quando mencionamos a palavra
“mundo”, pressupomos uma percepção do que seja o mundo. E como essa percepção
está relacionada à percepção humana, tão logo falemos de mundo, este estará fazendo
alusão às condições segundo as quais o homem vem a percebê-lo. “Perceber”, na
medida em que se refere às disposições do homem, tem o tendido de “ser” mundo. O
homem só percebe sendo o mundo o qual e no qual ele percebe. Assim, perceber um

76
Discurso Antes que o sol desponte. NIETZSCHE, 1987, p. 172.
77
Discurso Da visão e do enigma. NIETZSCHE, 1987, p. 165.
96

mundo é perceber a “si mesmo”, ou seja, é porque os órgãos dos sentidos – que, por sua
vez, se dispõem de modos distintos em cada ser vivente – captam o que lhes afeta, que
um horizonte se abre enquanto interpretação. O que os sentidos captam geralmente é
uma “unidade” em meio a uma multiplicidade que foge à percepção; captam, então,
uma aparência lógica do conflito. Vejamos o que Nietzsche diz acerca dessa aparência
lógica:

Quanto à “aparência lógica” – Os conceitos “indivíduo” e “gênero”


são igualmente falsos e meramente aparentes. “Gênero” só exprime o
fato de que uma quantidade de seres semelhante surge ao mesmo
tempo e que o compasso do contínuo medrar e modificar-se torna-se
mais moroso: de modo que as pequenas progressões e acréscimos, que
de fato ocorram, não são mais levados em consideração (– uma fase
de desenvolvimento na qual o desenvolver-se não é mais visível, de
modo que um equilíbrio parece ter sido alcançado, e é possibilitada a
representação falsa de que aqui é alcançado um fim – de que houve
um fim do desenvolvimento...) (NIETZSCHE, 2008, § 521, p. 273).

Tanto o conceito de indivíduo quanto o de gênero são tentativas de eliminar a


“diferença” na qual ambos estão situados: no conceito de indivíduo, pode-se eliminar a
pluralidade de forças, as quais constituem as condições fisiológicas e os processos
através dos quais cada ser que vive é conduzido; no conceito de gênero, essa pluralidade
que é cada ser é eliminada à medida que se procura abarcar diferentes espécies
pertencendo a uma classe geral e a uma norma que determina como será cada ser que
pertence a um determinado gênero. Essa determinação está relacionada ao fato de que,
dadas as condições de transformações às quais o homem está submetido, na medida em
que uma interpretação lógica do mundo se impõe como instância superior, os processos
que o conduzem às transformações são “interrompidos”. Como ocorre essa interrupção?
Ocorre à medida que permanecer se transformando significa, também, permanecer na
tensão originária que é vida. Assim, para escapar dessa tensão, é necessário um subsídio
que faça com que o homem a interrompa. Isso não significa que o processo mesmo de
alterabilidade seja definitivamente interrompido. Significa, porém, que os mínimos
processos aos quais o homem está sujeito já não são suficientes para eliminar a ilusão
óptica de que haja uma organização, uma unidade e uma verdade imutáveis. Como essa
perspectiva leva o homem a perceber o mundo segundo um “fim”, visto que há uma
aparência de “ordenação” fixa e, portanto, contínua, segue-se a partir dessa
97

interpretação uma incapacidade de perceber o devir em seu ininterrupto brotar, devir


este ao qual é aludido no “Coro de Caçadores” da obra Hipólito, de Eurípides:

Tudo muda, e varia a vida humana


Sempre multívaga.78

A aparência lógica do mundo deve ser analisada, em última instância, do ponto


de vista da vontade de poder no homem, o que implica necessariamente falar do ponto
de vista do valor. Se a aparência lógica do mundo surge como perspectiva tão
impositiva a ponto de o homem vê-la em tudo o que lhe cerca, subentende-se que a
força dessa perspectiva reside em uma “vontade de verdade” (Wille zur Wahrheit). A
expressão já nos dá um direcionamento do sentido de verdade: a verdade como
consequência da vontade de poder. Com a palavra “verdade”, compreendemos todas as
estruturas lógico-metafísicas segundo as quais não somente a história da filosofia, como
também a história do Ocidente fundamentou sua visão de mundo. Mas, como todos os
valores advêm da vontade de poder, devemos analisá-los sob essa concepção, forma
com que Nietzsche analisa no seguinte fragmento: “O olhar filosófico objetivo pode ser
um sinal de pobreza da vontade e da força.” (NIETZSCHE, 2013, p. 302). Atentemos
para a relação que o conteúdo filosófico possui com essa objetividade; esta, alude
precisamente às concepções de unidade, certeza e, em última instância, verdade. Tais
valores são provenientes de uma “pobreza da vontade e da força”, isto é, de um
“cansaço” e um “sono” que quer permanecer enquanto tal. Entretanto, para que
possamos nos referir a uma dada fraqueza da vontade, é preciso que remetamos também
à concepção da vontade de poder no que tange ao valor, pois este se apresenta como
meio a partir do qual o homem pode garantir sua preservação. Nesse sentido, as
avaliações lógicas79 do mundo devem remeter, ainda, às condições fisiológicas através

78
(EURÍPIDES, 2010, p. 95)
79
A palavra “lógica”, especificamente aqui, remete à lógica tradicional, estabelecida como valor apodítico
no decorrer da história da filosofia, mas não somente no âmbito da filosofia, como também no âmbito da
cultura do Ocidente. Assim, vale a pena ressaltar que se trata de uma lógica determinada. Isso significa,
para falar de outro modo, que há outros tipos de lógica. A própria filosofia de Nietzsche, por exemplo,
pode ser entendida a partir de uma determinada lógica, se considerarmos o caráter crítico de seu conteúdo
filosófico. Nisso, subentende-se que quando Nietzsche crítica “lógica”, “razão”, “conhecimento”, etc., se
trata de conceitos cravados na tradição filosófica, sobretudo por serem concebidos como universais e
como em si. Sua obra Assim falou Zaratustra pode ser tomada como um exemplo desse antagonismo, já
que lá encontramos os conceitos de “razão”, “espírito”, etc. se referindo à doutrina de Zaratustra. As
palavras, assim, devem ser lidas no sentido de serem reinterpretadas, estando de acordo com a proposta da
filosofia de Nietzsche.
98

das quais as próprias avaliações vêm à luz: “Por trás de toda lógica e de sua aparente
soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências
fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida.” (NIETZSCHE,
2005, § 3, p. 11). O elemento valorativo está associado às exigências fisiológicas; estas,
implicam em preservação. A preservação, porém, deve ser analisada do ponto de vista
de uma “determinada espécie de vida”, pois a “lógica” diz respeito a uma exigência
fisiológica de uma espécie que necessita desse tipo de valor para se manter viva. Por
dizer respeito a um valor relativo a uma espécie, a lógica é, assim, uma interpretação de
mundo que não encerra as possibilidades de interpretá-lo. No domínio da distinção
referente à espécie, teríamos outra forma de vida, outras exigências fisiológicas e, por
conseguinte, outras avaliações80. A lógica à qual Nietzsche põe em questão coincide,
desse modo, a uma vontade de verdade dissimulada, isto é, que não se reconhece
enquanto vontade, logo, também não reconhece enquanto vontade que valora e
interpreta. É esse não reconhecimento, porém, que faz com que o mundo apareça sob a
ótica de uma unidade.
A vontade de verdade, uma vez que caracteriza uma vontade e um anseio por
unidade, por organização e por finalidade para a vida, ao mesmo tempo é vingança
contra o tempo enquanto transitoriedade e contra a vida em seu eterno movimento de
criar-destruir. A verdade, nesse sentido, significa uma instância que é oposta a toda
multiplicidade conflituosa, o que caracteriza uma impotência da vontade: “Vontade de
verdade – como impotência da vontade de criar.” (NIETZSCHE, 2008, p. 302). Voltar-
se contra o tempo por enxergar nele apenas destruição implica em não estar na condição
de poder criar. A criação exprime justamente a continuidade do processo, do devir. A
oposição ao devir advém de uma vontade impotente, e essa impotência coincide com a
diminuição de força relativa à vontade de poder.

3.10 Esgotamento fisiológico

Vimos que a distinção entre valores é concebida por Nietzsche mediante uma
fisiologia do poder e que “poder”, nesse sentido, se manifesta de modo distinto em cada

80
Vale salientar que quando mencionamos uma espécie distinta no tocante às exigências fisiológicas e
valorativas, queremos nos distanciar da forma de vida predominante do homem ocidental. Nesse caso,
podemos imaginar o exemplo de outra cultura, totalmente distinta, na qual os valores que surgem dela são
totalmente outros, radicalmente distantes comparados aos do Ocidente.
99

vivente, pois cada ser vivo, imerso em uma totalidade que se encontra em luta
constante, diz respeito a uma vontade sempre insatisfeita. Insatisfação, sendo o que
move, o faz para poder mais, para se consumar no e através do poder. Partindo dessa
compreensão, percebemos que o conflito relativo a forças distintas é precisamente o que
gera insatisfação e, por conseguinte, se mostra como necessário para a preservação da
espécie, na medida em que é condição para criar parâmetros entre valores distintos.
Contudo, o homem que idealiza um mundo no qual não haja o conflito nega tudo que
lhe é contrário. Essa negação é, assim, um movimento, um processo, isto é, ela coincide
com o próprio modo de se conservar do homem fraco.
Como vida é essencialmente tensão que não visa utilidade alguma, o valor que o
homem fraco a atribui é negativo, difamador e falsificador no mais elevado grau. O grau
de desprezo pela vida é relativo ao grau de poder que já não se tem para continuar na
tensão. Com isso, o homem tenta reverter não apenas sua constituição fisiológica, mas
também a da vida como um todo. Ao se voltar contra o que lhe aflige como se não
devesse ser dessa forma, a que se deve essa rebeldia? Nietzsche a chama de
“esgotamento fisiológico” (physiologischen Erschöpfung), uma espécie de cansaço da
vida, um fatigar-se, em virtude de um enfraquecimento, do que é sempre possibilidade
iminente para irromper.
Visto que o fisiológico referente à totalidade não há de cansar, por se realizar no
poder-mais em meio à guerra, uma parte é impelida contra a totalidade por já não
suportar mais o peso, isto é, por ter esgotado seu poder. Aqui a vontade de poder impõe
resistências à sua própria condição, pois não se lança em direção àquele81 poder que se
constitui a partir e em uma luta primordial. A luta, ao invés de ser um meio para
manutenção e incremento de poder, é vista aqui como uma barreira para a continuação
da vida. Cultiva-se, com isso, a diminuição do poder, uma vez que a máxima exaustão
não permite afirmá-lo.
Segundo Nietzsche, a necessidade de outro mundo postulado pelas religiões e
pelas filosofias é proveniente desse esgotamento fisiológico. É devido a um cansaço,
uma impotência e, portanto, uma incapacidade de afirmar este mundo tal como ele é,
que se torna necessário reagir com vistas a afirmar outro mundo no qual prevaleça a paz
e o estado de esgotamento como condição de preservação. Entende-se, nesse caso, que

81
O uso do pronome demonstrativo “àquele” faz alusão ao conceito de vontade de poder já exposto, isto
é, ao caráter geral do mundo dizendo respeito a um movimento para poder. Assim, subentende-se que
quando vontade impõe resistência à possibilidade para poder mais em seu modo espontâneo, trata-se de
outro manifestar-se, de uma constituição fisiológica diversa da que se nos mostra em sua totalidade.
100

esse tipo de preservação não é o que origina o esgotamento, mas, ao contrário, este é o
que condiciona o homem, enquanto páthos afetivo, a assim se preservar: “Fizeram-se o
sono e o sonho, a sombra, a noite82 e o sobressalto natural responsáveis pelo surgimento
de segundos mundos: devia-se sobretudo considerar os sintomas do esgotamento
fisiológico, relacionados a isso.” (NIETZSCHE, 2008, § 230, p. 138).
As imagens de “sono” e “sonho” utilizadas por Nietzsche são para designar uma
oposição ao estado de vigor da vontade, que por estar sempre em direção ao poder, se
encontra em “vigília”, isto é, em movimento para retornar. Tendo em vista que o vigor e
o despertar da vida se dá afirmando-a, sono e sonho devem aqui ser interpretados como
forças negadoras. Do mesmo modo, “sombra” e “noite” exprimem escuridão,
ofuscamento da vida que ao mesmo tempo evoca outra vida, além desta e valorada
como superior.
Questionemos essa “superioridade” de um além-vida da seguinte maneira: Se, ao
postular esse valor superior, faz-se necessário negar e falsificar a vida, a afirmação de
outro mundo não seria uma vontade de morte? A morte, concebido sob tal ótica,
coincide com negação do que propriamente é vida em sua origem. Quando ocorre um
esgotamento fisiológico de um tipo-homem, é porque sua vontade coincide com uma
vontade de morte. É isso o que nos faz refletir tal fala de Nietzsche, em seu fragmento
231 da obra WM/VP:

O esgotamento é, nesse caso, um esgotamento da raça; o sono, tomado


psicologicamente, é apenas uma parábola de um ter-de-repousar um
tanto mais profundo e duradouro... In praxi, é a morte que aqui, sob a
imagem de seu irmão, o sono, atua de modo tão provocante...83

82
Curiosamente, na obra Teogonia, de Hesíodo, encontramos a seguinte passagem: “E Noite pariu a
medonha Sina, Perdição negra e Morte, e pariu Sono, e pariu a tribo de Sonhos, sem se deitar com um
deus, pariu a escura Noite. (HESÍODO, 2013, vs. 211-213, p. 45). Sono é narrado aqui como irmão da
Morte e dos Sonhos, e ambos como filhos da Noite. A Noite se caracteriza pelo que há de mais obscuro e
sombrio. Sono e Sonho brotam da Noite porque no anoitecer se dá cansaço, enfraquecimento. Tendo em
vista que no caso da cultura grega antiga tais palavras não dizem respeito a meras “representações”, mas
sobretudo à aparição da physis que possibilita o lógos como discurso que a exprime, podemos
compreender que também se trata de uma fisiologia (fazendo alusão à origem da palavra [physis + lógos]
do Cosmos, no sentido de narrar modos a partir dos quais se nos aparece a constituição da natureza como
uma multiplicidade de forças interligadas que brotam umas das outras.
83
Ibid., p. 164. Tradução nossa.
101

O conceito de esgotamento está intrinsecamente relacionado ao conceito de


vontade de poder. Quando Nietzsche caracteriza uma vontade esgotada e debilitada é
porque seu poder apresenta um grau menor relativo ao grau de uma vontade que se
realiza na tensão, pois esta, por não cessar, intensifica o retorno da vontade. Retorno é,
então, direcionado à tensão. Por isso ele é o próprio consumar-se da vontade nessa
tensão. Esgotar-se é resistir e ir contra essa dinâmica. O esgotamento, assim, deve ser
compreendido como hýbris em relação à totalidade do mundo como vontade de poder.
Essa hýbris culmina em uma cisão, isto é, em uma tentativa de tornar o real um mundo
falso relativamente ao mundo “verdadeiro”: o mundo ideal que, por sua vez, se
apresenta como apartado da tensão que é vida. Esse mundo verdadeiro e ideal deve ser,
contudo, analisado sob o perspectivismo interpretativo: “O mundo verdadeiro,
alcançável para o sábio, o devoto, o virtuoso – ele vive nele, ele é ele. (NIETZSCHE,
2008, p. 44)84. O sentido de “ser” o próprio mundo evoca o elemento interpretativo sem
o qual o próprio mundo concebido como existente não poderia vir à percepção. Nisso se
constitui uma oposição metafísica de valores condizentes com “mundo verdadeiro” e
“mundo falso” ou “mundo aparente”. Quando Nietzsche se volta contra a perspectiva da
oposição metafísica, compreende-se, com isso, que o mundo, enquanto vontade de
poder, não diz respeito a essa oposição. Essa oposição advém, como vimos, de uma
criação referente a um esgotamento fisiológico.
Apesar dessa compreensão de esgotamento, devemos atentar para quando
Nietzsche diz que “Há um conceito que aparentemente não permite nenhuma confusão,
nenhuma ambiguidade: é o do esgotamento.” (NIETZSCHE, 2008, 48, p. 48). Partindo
da compreensão de mundo como vontade de poder, torna-se simples de entender o que
resulta disso como esgotamento e fortalecimento, afirmação e negação. Entrementes, o
que “aparentemente” não nos permitiria um mal-entendido já nos chama atenção para o
fato de que é partindo e estando na concepção do próprio Nietzsche, por isso, para
problematizar o conceito e nos alertar quanto às interpretações contrárias, Nietzsche diz
que o esgotamento “modifica o aspecto das coisas, o valor das coisas”. O que quer dizer
essa modificação dos aspectos e dos valores das coisas? Ela se refere ao esgotamento
concebido uma fortaleza, como meio e fim para se fortificar. Aqui a fraqueza é
transvalorada em seu oposto, única e exclusivamente por fazer parte da condição
fisiológica de um tipo-homem que a afirma porque não tem outra forma de se manter

84
Capítulo IV: “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”.
102

vivo. Afirmar a fraqueza como fortaleza e, sobretudo, como boa: é isso o que
caracteriza negação, empobrecimento e a apequenamento da vida. Uma tal espécie de
homem torna-se escrava dos valores ideais postulados como superiores. O resultado
disso é que “Quando o esgotado apresenta-se com os gestos da suprema atividade e
energia, quando a degeneração reclama como condição em um excesso da descarga
espiritual ou nervosa, então ele se confunde com o afortunado...” (NIETZSCHE, 2008,
48, p. 48). Confundir-se não é outra coisa senão reagir na intenção de valorar – ao
mesmo grau com que o afortunado valora o devir – seus próprios ideais que difamam a
vida.
Questionar-se-ia, aqui neste ponto, da seguinte maneira: vontade, sendo instável
em sua luta constante, também não haveria de se manifestar debilitada mesmo no
homem forte, o que seria o caso do nobre? Para falar de outra forma: se o que
caracteriza a dinâmica própria do mundo é instabilidade e oscilação de vontades, em
que medida a espécie afirmadora, em meio à tensão, não oscilaria rumo ao
esgotamento?
Uma tal pergunta deve ser respondida em termos de grau de forças e de
processos distintos de vontades, obviamente equiparando afirmação e negação. Há o
que Nietzsche chama de dois tipos de “calma” (Ruhe) relacionada às vontades saudáveis
e doentes. Por essa razão ele suscita um alerta para que não se confunda ambas: “A
confusão de dois estados completamente diferentes: por exemplo, a calma da força, que
é essencialmente contenção da reação, o tipo inabalável dos deuses... e a calma do
esgotamento, o estado hirto até a anestesia.” (NIETZSCHE, 2008, 47, p. 47). A calma
da força é uma calma que anseia por poder, portanto, ela não se estabiliza e se conforma
nesse estado, daí a alusão ao “tipo inabalável dos deuses”: os deuses estão sempre em
vigor, pois se mostram como physis que brota em uma guerra constante entre forças.
Nesse caso, quando há uma retração das forças, trata-se de uma retração que atrai e
chama pelo vigor e pelo intensificar do poder. Já a calma do esgotamento é um estado
no qual vontade quer se realizar na debilidade, no cansaço. Esse tipo de calma não é
meio para o vigor, mas fim último a que se quer alcançar com vistas a eliminar a luta
que pede pelo intensificar do poder; um estado de anestesia que quer permanecer
enquanto tal.
103

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos as noções de fisiologia e interpretação na filosofia de Nietzsche,


vimos que esse percurso somente é possível à medida que temos em vista uma
compreensão do que vem a ser vontade de poder. Fisiologia é, pois, fisiologia do poder;
interpretação, por sua vez, é um ato originário que ocorre com vistas ao poder. O mundo
em sua totalidade se realiza nessa dinâmica de poder. Mas esse poder – o que é?
Vontade para poder só surge a partir de uma condição de não-poder, pois não se pode
visar algo que já se tem, e se o fazemos, é com vistas ao futuro. Em todo caso, visa-se,
nesse movimento, a continuidade do poder. A caracterização de fisiologia emerge desse
entendimento. Physiologie remete a Φύσις e também a λόγος. Como é sabido, a palavra
Φύσις, no mundo grego, exprime uma dinâmica de irrupção e brotação contínua; o
λόγος, por sua vez, tem a ver com “palavra”, “discurso”, ou ainda, “estudo”. Este
último, porém, somente é possível a partir de palavra e discurso, pois não pode haver
um estudo sem palavras concatenadas em forma de discurso. Mas o que são palavras?
São estímulos interpretativos que desabrocham da Φύσις, são interpretações originadas
por afetos que sobrevêm no e a partir de corpo. Assim, o λόγος só vem à luz a partir da
Φύσις. – daí a compreensão de uma fisiologia: uma natureza donde provém λόγος, isto
é, interpretação.
Mas, interpretação – o que significa? Significa tornar “audível” o que é
“silêncio”, atribuir valor e, com isso, criar mundos. Essa criação se efetiva no e a partir
de mundo, de maneira que o mundo perpassa, mediante uma vontade criadora, aquele
que interpreta e cria. Aqui, porém, podemos cair nas artimanhas da linguagem, ao
dizermos que há um “aquele” ou “quem” que interpreta. O que há é uma pluralidade de
afetos interpretantes-criadores. Portanto, o interpretar – enquanto verbo no infinitivo – é
o ato criador e ao mesmo tempo a criação; não é coisa, não é substância, mas tão
somente uma força geradora que se efetiva em todo acontecer e se renova a cada
instante; sem causa, sem efeito; apenas enquanto um contínuo acontecer, ou seja, como
um fluxo contínuo no qual vontades de poder se entrelaçam, lutam e se expandem à
medida que se intensificam.
Todo criar é simultaneamente destruir, pois advém de uma tensão, de um
conflito entre vontades que originariamente não visam outra coisa senão permanecer no
conflito, isto é, no criar-destruir. Todavia, determinadas vontades podem entrar em um
processo de esgotamento fisiológico, processo no qual vontades lutam contra a tensão
104

originária do mundo. Como isso se torna possível? No esgotamento que, por sua vez,
advém de uma variação fisiológica referente a vontades enfraquecidas, o homem
interpreta o mundo a partir de cisão, oposição, dualismo. Esse artifício criador serve
como instrumento do poder: na medida em que tais vontades já não suportam mais
permanecer no conflito, elas impõem resistência a partir de um valor “suprassensível”
que determine o valor do mundo “sensível”. Aqui, uma interpretação lógico-metafísica
de mundo vigora enquanto “unidade” que tenta eliminar “multiplicidade”.
O problema, porém, não se refere propriamente à “lógica”, mas tão somente ao
fato de que a lógica, que em sua origem, é meio para intensificar poder – valor –, torna-
se elemento regulativo da própria vida. Mas não somente isso: as vontades que são
assim conduzidas impõem às demais vontades sua própria perspectiva, como tentativa
de eliminar a diferença, isto é, o conflito entre vontades. Eliminar o conflito significa,
neste caso, fazer com que outras interpretações de mundo não vigorem. Tal é o que
ocorreu, na concepção de Nietzsche, com a história do pensamento ocidental. O homem,
por estar na maioria das vezes conduzido por ideias e perspectivas cristalizadas, não se
deu conta de sua própria natureza enquanto dinâmica de criação e interpretação que traz
à luz o inaugural, o novo. Não continua, porém, a ser assim? O homem despertou de seu
sono e de seu esgotamento, ou continua a intensificar sua natureza fisiologicamente
decadente e fraca? O nosso mundo ainda não é conduzido sob as determinações dos
valores lógico-metafísicos?
As próprias questões que aqui se impuseram mostram a necessidade de
refletirmos acerca do tema desta pesquisa. “Refletir” no sentido originário da palavra:
fazer com que algo retroceda desviando-se da direção inicial. O que deve retroceder? E
de qual direção deve-se desviar? Deve-se retroceder ao que já foi pensado e, ao fazê-lo,
redirecionar o pensamento, deslocá-lo para o presente, de modo a inaugurar uma
interpretação. Toda interpretação, porém, advém de outra interpretação, tal como nos
ensina Platão no Íon. Trata-se, assim, de dizer o que não foi dito a partir do dito.
Contudo, “No dito, a fala se consuma, mas não acaba.” (HEIDEGGER 2003, p.11-12).
Consumar diz respeito a trazer ao sumo, à clareira, à luz. Pela própria natureza do real
se efetivar por meio de um jogo entre luz e trevas, criação e destruição, quando
exercemos a interpretação, esta não se esgota, não acaba, visto que a sua proveniência é
inesgotável.
105

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