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João Pessoa – PB
Março / 2017
RAY RENAN SILVA SANTOS
A FISIOLOGIA DA INTERPRETAÇÃO NO PENSAMENTO DE
NIETZSCHE
João Pessoa – PB
Março/ 2017
Aos mistérios inauditos da existência,
por vigorarem em toda a constituição da
história, em tudo aquilo que é dito e em
toda e qualquer interpretação do que foi,
do que está sendo e do que ainda será.
6
AGRADECIMENTOS
À minha amada companheira Manuh Junkes, por estar em minha vida dividindo
uma singularíssima caminhada.
À CAPES, por ter financiado esta pesquisa, pois sem tal financiamento não seria
possível a sua realização.
7
RESUMO
Este trabalho tem por escopo analisar as noções de fisiologia e interpretação na filosofia
de Nietzsche. Para tanto, visto que Nietzsche não se propôs a escrever nenhum estudo
sistêmico referente a tais noções, a nossa tarefa consiste em exercer a atividade da
interpretação. Ao investigarmos o que é interpretação, a própria interpretação se faz,
assim, presente, realizando-se no percurso de nosso texto. Toda intepretação está situada
em um “lugar” a partir do qual sua efetivação é possível, e todo lugar exprime uma
diferença, uma singularidade. Essa diferença é referente à constituição fisiológica do
mundo como vontade de poder. Na medida em que o mundo se realiza a partir e
enquanto pluralidade de vontades, cada vontade diz respeito a uma configuração
específica e complexa que visa o domínio, domínio este que tem a ver com ponto
óptico, isto é, perspectivismo, interpretação a partir da qual aquele que interpreta não o
faz senão por meio de sua própria percepção. Contudo, quem interpreta? Haveríamos de
pressupor um “aquele” ou “quem”, como se houvesse um agente que interpretasse?
Visto que o mundo é pluralidade de vontades, a perspectiva lógico-metafísica da
unidade, no sentido quantitativo, já se mostra como uma atribuição de valor, como um
meio pelo qual vontades intensificam seu poder interpretativamente. É a partir do
desenvolvimento de tais pressupostos que toda a nossa pesquisa terá seus
desdobramentos.
ABSTRACT
This work aims at analizing the notions of physiology and interpretation in Nietzsche’s
philosophy. To this purpose, since Nietzsche did not propose a systematic study
concerning such notions, our task consists in exercising the activity of interpretation. As
we investigate about what interpretation really is, interpretation itself is thus made
present, showing itself in the course of our text. All interpretation is located in a “place”
from which its effectuation is possible, and every place expresses a difference, a
singularity. This difference is related to the physiological constituition of the world as
will to power. Given that the world realizes itself from and while a plurality of wills,
each will is regarded as a specific and complex configuration that aims to domain,
which has to do with optical point, this is, perspectivism, interpretation from which who
interprets does it through his own perception. However, who interprets? Should we
presuppose a “that” or a “who” as if there was an interpreting agent? Since the world is
a plurality of wills, the logical-metaphysical perspective is shown as value assignment,
as a means by which wills intensify their power interpretively. It is from the
development of such assumptions that all our research will have its unfoldings.
Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 10
1. FISIOLOGIA E INTERPRETAÇÃO À LUZ DO CONCEITO DE VONTADE DE
PODER ....................................................................................................................................... 15
1.1 Vontade de poder enquanto interpretação do mundo como unidade ................................ 15
1.2 Diferença e hierarquia como condição do interpretar ....................................................... 18
1.3 A relação entre fisiologia e interpretação .......................................................................... 21
1.4 O conceito de fisiologia à luz de uma fisio-psicologia ..................................................... 23
1.5 A concepção de erro no fisiológico ................................................................................... 26
1.6 Semiótica dos afetos enquanto linguagem e interpretação ................................................ 30
2. A FILOSOFIA DE NIETZSCHE ENTENDIDA A PARTIR DE UM CONFLITO
ORIGINÁRIO-INTERPRETATIVO...................................................................................... 33
2.1 Metáfora, dissimulação e conhecimento a partir da obra Sobre verdade e mentira no
sentido extra-moral ................................................................................................................. 34
2.2 O histórico e o a-histórico do ponto de vista da força plástica: uma reflexão a partir da
Segunda Consideração Intempestiva ...................................................................................... 41
2.3 O Übermensch e a superação do homem .......................................................................... 47
2.4 O Übermensch em contraposição ao letzte Mensch .......................................................... 50
2.5 Das três transformações .................................................................................................... 52
2.6 Os valores suprassensíveis como obras-homem ............................................................... 56
2.7 O corpo como grande razão e a pequena razão a serviço do corpo ................................... 59
3. FISIOLOGIA E INTERPRETAÇÃO SOB A ÓTICA DOS VALORES MORAIS ....... 66
3.1 Fenômeno e interpretação moral dos fenômenos .............................................................. 66
3.2 A interpretação do homem como sujeito e a ilusão da causalidade .................................. 73
3.3 A inevitável permanência na tensão .................................................................................. 77
3.4 A confusão entre meio e fim como condição de conservação da espécie e os conceitos de
nobre e escravo ........................................................................................................................ 79
3.5 A criação de valores a partir do conflito-vida ................................................................... 82
3.6 Anseio e insatisfação como aumento do poder ................................................................. 85
3.7 O conceito de egoísmo interpretado por Nietzsche como força propulsora ...................... 88
3.8 Abismo e perspectiva: o fundamento a partir do não-fundamento.................................... 91
3.9 Acerca da aparência lógica do mundo ............................................................................... 95
3.10 Esgotamento fisiológico .................................................................................................. 98
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 103
REFERÊNCIAS: ..................................................................................................................... 105
10
INTRODUÇÃO
tais como metáfora, valor, histórico e a-histórico, força plástica, além de Übermensch,
lezte Mensch e corpo.
Toda interpretação se constitui por meio de uma metáfora, pois evoca o real
enquanto atribuição de valor e, portanto, não pode ser tomada como em si. O
desenvolvimento dessa compreensão de metáfora nos permite uma crítica à metafísica
que também estará presente em outros escritos de Nietzsche. Toda interpretação se faz
presente, também, na constituição da história, de modo que quando interpretamos algo
no instante presente, o fazemos à medida que carregamos uma herança histórica.
Entretanto, quando essa herança histórica não nos permite mais criar, quando tal
herança nos faz repetir erros de outrora, faz-se necessária uma força plástica, força que
tanto é condutora da própria história, como também é a proveniência de uma ruptura, de
um salto, de uma possibilidade para que se possa criar o novo. Mas esse novo – o que é?
Se a história vem repetindo os mesmos erros advindos da metafísica, apenas o
Übermensch pode anunciar a superação da metafísica. Esse anúncio nos vem por meio
das palavras de Zaratustra. Este nos ensina que o corpo é a “grande razão”. Se a tradição
da filosofia determinou a primazia da alma ou do intelecto em relação ao corpo, na
concepção de Zaratustra o corpo exprime a constituição própria do real, de modo que o
“eu” ou o “espírito” são apenas consequências, resultados de um conflito que se dá no e
partir de corpo. Por dizer respeito a essa dimensão do originário, o corpo é “grande
razão” sobretudo porque é vontade e, sendo vontade, é também interpretação,
linguagem, afeto.
No terceiro capítulo, analisamos as noções de fisiologia e interpretação sob a
ótica dos valores morais. Para tanto, expusemos a compreensão de fenômeno e
interpretação moral dos fenômenos. Na medida em que o mundo, sendo vontade de
poder, se manifesta no homem como poder-de-interpretar e valorar, todo fenômeno que
lhe chega à percepção já é um fenômeno interpretativo. Aí reside o significado próprio
de “moral” para Nietzsche: moral é interpretação sem a qual o homem não vem a ser
homem. Moral, portanto, é o ser-afetado-por, é uma condição na qual o homem se
encontra sempre, pois enquanto ser que interpreta, o homem o faz moralmente, ao
atribuir valor ao que foi, ao que está sendo e ao que ainda será. Nesse ínterim, a
concepção moderna do homem como sujeito nos vem à tona como uma interpretação
moral. Enquanto tal, ela diz respeito a um falseamento, a uma dissimulação de uma
multiplicidade de vontades de poder. O homem, ao interpretar a si mesmo como
unidade subjetiva, o faz tentando eliminar a tensão originária que condiz com ser
13
múltiplo. Apesar de querer se livrar dessa condição, o homem ainda permanece nela,
pois não é detentor nem de si mesmo nem do mundo. O mundo, aliás, o detém na
própria interpretação de si enquanto unidade, pois toda interpretação é condicionada a
partir de um contexto e de um mundo de vivências.
Todavia, na medida em que o homem se concebe como sujeito de suas ações,
ocorre aí uma falsificação do real por meio de uma confusão entre meio e fim: o mundo
só lhe aparece a partir de uma causalidade. Mas a causalidade é um valor, e todo valor é
meio para intensificar o poder; porém, o homem, ao intensificar o poder por meio de
valor, superestima tal valor como em si, de tal modo que o que é meio vem a ser
interpretado tanto como princípio quanto como fim de suas motivações. A criação de
valores, contudo, somente se dá no conflito, embora determinados valores sejam criados
como forma de se apartar dessa constante luta originária. Na motivação de todo agir
vige um anseio, e todo anseio é proveniente de uma insatisfação. Essa insatisfação é a
condição do mundo como vontade de poder; é, assim, simultaneamente, motivação para
poder mais. Visto que vontades de poder são pulsões específicas, diferentes e
perspectivistas, cada vontade diz respeito a um egoísmo, a uma força propulsora que
visa alimentar, antes de tudo, a si mesma. Vontade de poder é de tal modo egoísta, que
até mesmo por trás de toda motivação altruísta, vigoram pressupostos fisiológicos
originariamente egoísticos. O “ego”, aqui, não significa nenhuma unidade, coisa ou
substrato, mas tão somente um centro de poder, no qual vige uma pluralidade de afetos.
É essa pluralidade de afetos que origina interpretação. Na medida em que o mundo
continuamente se transforma, toda interpretação advém de abismo, de nada; é esse nada
que é “fundamento”, porém sem fundo, pois não é coisa, não é nada acabado. É esse
nada, esse processo fisiológico de constituição do real, que possibilita a própria aparição
da lógica e do mundo interpretado logicamente. A aparência lógica do mundo é, assim,
uma aparência perspectivista e interpretativa, na qual e a partir da qual um ponto óptico
desponta, desabrocha como vontade de poder, como vontade de submeter o real à sua
perspectiva. Mas, donde provém essa vontade? O que a origina? Considerando a
concepção de fisiologia, trata-se de um esgotamento fisiológico, de um cansaço e
fraqueza de determinadas vontades que somente se conservam à medida que lutam
contra a dinâmica do real. Vontade de poder é, neste caso, vontade de permanecer numa
desarmonia em relação à tensão originária do mundo.
Nietzsche não deixou nenhum escrito sistemático sobre o que seria interpretação
e fisiologia. Todavia, sua forma aforística de escrever nos possibilita um empenho por
14
O percurso que deve nos guiar para o entendimento das noções de fisiologia e
interpretação requer uma análise prévia do conceito de vontade de poder. De fato, é
somente à medida que temos em vista que tal conceito exprime, para Nietzsche, o
mundo em sua totalidade, que se torna possível nos propormos a uma interpretação de
outras noções que permeiam sua obra, principalmente a de maturidade. Dizer o real em
sua totalidade implica, ainda, em uma outra tarefa: a de dizer o que é o homem. Essas
questões são tão inseparáveis, que poder-se-ia dizer que não se pode responder a uma
sem também responder à outra. O que é o mundo? – Já a natureza dessa pergunta se
mostra a partir de uma condição humana, pois nela aparece a humanidade do homem
enquanto ser que pensa racionalmente. O que é o homem? – Seria impossível
respondermos a essa pergunta sem situarmos a própria pergunta e o homem em um
determinado lugar, isto é, em um determinado mundo a partir do qual é possível fazê-la.
Tendo em vista essa relação entre mundo e homem, veremos que o conceito de
vontade de poder abarca essas duas perguntas essenciais sobre a natureza de ambos.
Enquanto fundamento e princípio, vontade de poder não pode ser reduzida ao conceito
de “unidade”, nem no âmbito da totalidade do mundo, nem no âmbito da natureza do
homem. Aqui, ao proferirmos a palavra “totalidade”, já podemos incorrer em uma falsa
relação de “totalidade” e “unidade”. No âmbito da metafísica, a totalidade exprime
justamente uma unidade a partir da qual o todo vem a ser o que é. Para nos
distanciarmos dessa perspectiva, devemos analisar o que Nietzsche entende por
“unidade”:
assim, isto é, por cada vontade dizer respeito a uma força querendo se intensificar, as
diversas vontades, pela sua própria natureza específica, se encontram em uma relação de
conflito. Esse conflito exprime, pois, a dinâmica de eclosão e irrupção contínua do
mundo como vontade de poder.
outro modo, apresenta a totalidade da vida em sua dinâmica. Vida é, então, isso:
vontade para poder; e uma vez que vontade não é nada substancial, nada previamente
constituído, vida se mostra como nada, como abismo, como jogo gratuito das vontades
pura e simplesmente com vistas a se consumarem no, para e partir do poder, sem
finalidade alguma, sem nenhum sentido previamente dado. Na perspectiva da
metafísica, essa gratuidade, esse desabrochar espontâneo e sem finalidade da vida é
concebido a partir de uma interpretação teleológica. Com isso, os acontecimentos da
natureza e os atos humanos são vistos como tendo um fim, uma meta que cumpre com a
realidade em seu ser. Entretanto, “A vida mesma não é nenhum meio para algo; ela é a
expressão de formas de crescimento do poder.” (NIETZSCHE, 2008, § 706, p. 353). Se a
vida não é nenhum meio para uma finalidade, não possui nenhum sentido por si mesma,
isso significa que a metafísica, ao concedê-la um sentido, uma unidade e uma verdade
fixas, o faz travando uma guerra contra a vida. Não se trata apenas de falsificar o real,
mas de falsificá-lo pelo fato de não suportá-lo. As oposições de valor, dessa forma, são
oposições em relação ao nada, ao sem fundo que é vida. Enquanto opostos, tais valores
são também o que mantêm o crescimento, o aumento do poder:
Vontades1. Vontade de poder não se manifesta no homem como uma força (no sentido
quantitativo). Isso nos leva ao entendimento de que o homem não é um indivíduo, no
sentido de ser uma unidade, portanto, vontade, aqui, tem a ver com uma complexa
pluralidade de afetos que constituem o homem.
Por esse motivo, a pergunta pelo que é interpretação não pode ser fundamentada
a partir de um “quem”, pois o “quem” aponta para o sentido de um indivíduo, ora
entendido como senhor de seus próprios atos, ora entendido como uma unidade
subjetivo-quantitativa. Müller-Lauter (1997, p. 150) diz: “O próprio interpretar tem
existência. É errôneo, portanto, compreender o perspectivismo de Nietzsche como
subjetivismo”. Quando Müller-Lauter diz que “O próprio interpretar tem existência”, é
possível relacionar o que ele diz com a seguinte passagem de uma obra de Nietzsche
(2008, § 556, p. 291): "Não cabe perguntar: ‘quem interpreta?’, mas sim se o interpretar
mesmo tem existência (mas não como um ‘ser’: como um processo, um devir) como
uma forma da vontade de poder, como um afeto”. Note-se que no primeiro momento da
frase é descartada a possibilidade de se colocar em questão um agente que interpreta,
isto é, um sujeito que é causa de seu interpretar. Entre parênteses, Nietzsche diz de que
modo “existência” deve ser compreendida, a saber, “não como um ser”, pois dessa
forma remeteria à concepção metafísica de unidade e verdade, mas sim, “como um
processo, um devir”, estes, por sua vez, caracterizando a existência como um constante
vir-a-ser. Em seguida, Nietzsche nos conduz a perguntar sobre a existência do
interpretar como vontade de poder relacionada a “afeto”. Em suma, interpretação é
afeto. Afeto, por sua vez, exprime vontade de poder. Disso podemos extrair uma
compreensão do conceito de fisiologia no pensamento de Nietzsche. Mas ainda não nos
foi suficiente responder à pergunta pelo que é fisiologia. Devemos ainda nos empenhar
por essa busca não para desenvolver esse conceito de modo tão sistemático ao ponto de
não nos restar mais nenhum questionamento, não de modo a esgotar as possibilidades
de se trazer à tona outras reflexões, mas tão somente para que possamos, no decorrer de
nossa reflexão, filosofar acerca de tal conteúdo.
1
A relação entre o conceito de “afeto” e o de “vontade de poder” pode ser constatada a partir da seguinte
passagem: “[Minha teoria seria: -] a vontade de poder é a forma de afeto primitiva” (NIETZSCHE, 2008,
§ 688, p. 348).
23
2
Aqui é importante termos em vista a nota escrita por Nietzsche ao final da primeira dissertação de Para
a genealogia da moral, na qual encontramos o seguinte: “Aproveito a oportunidade que me oferece esta
dissertação para expressar pública e formalmente um desejo, desejo que até o momento revelei apenas em
conversas ocasionais com estudiosos: que alguma faculdade de filosofia tome para si o mérito de
promover os estudos histórico-morais, instituindo uma série de prêmios acadêmicos — talvez este livro
possa dar um impulso vigoroso nesta direção. Tendo em vista tal possibilidade, propõe-se a questão
seguinte; ela merece a atenção dos filólogos e historiadores, tanto quanto a dos profissionais da filosofia.
‘Que indicações fornece a ciência da linguagem, em especial a pesquisa etimológica, para a história da
evolução dos conceitos morais?’
— É igualmente necessário, por outro lado, fazer com que fisiólogos e médicos se interessem por este
problema (o do valor das valorações até agora existentes): no que pode ser deixado aos filósofos de ofício
representarem os porta-vozes e mediadores também neste caso particular, após terem conseguido
transformar a relação entre filosofia, fisiologia e medicina, originalmente tão seca e desconfiada, num
intercâmbio dos mais amistosos e frutíferos. De fato, toda tábua de valor, todo ‘tu deves’ conhecido na
história ou na pesquisa etnológica, necessita primeiro uma clarificação e interpretação fisiológica, ainda
mais que psicológica; e cada uma delas aguarda uma crítica por parte da ciência médica. A questão: que
vale esta ou aquela tábua de valores, esta ou aquela ‘moral’? deve ser colocada das mais diversas
perspectivas; pois ‘vale para quê?’ jamais pode ser analisado de maneira suficientemente sutil. Algo, por
exemplo, que tivesse valor evidente com relação à maior capacidade de duração possível de uma raça (ou
ao acréscimo do seu poder de adaptação a um determinado clima, ou à conservação do maior número)
não teria em absoluto o mesmo valor, caso se tratasse, digamos, de formar um tipo de homem mais forte.
O bem da maioria e o bem dos raros são considerações de valor opostas: tomar o primeiro como de valor
mais elevado em si, eis algo que deixamos para a ingenuidade dos biólogos ingleses... Todas as ciências
devem doravante preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim
compreendida: o filósofo deve resolver o problema do valor, deve determinar a hierarquia dos valores.”
(NIETZSCHE, 2009, p. 28). Fica claro, portanto, a intenção de Nietzsche quanto a uma indissociável
relação entre filosofia e fisiologia, de maneira que, como o próprio filósofo diz, uma “interpretação
fisiológica” proceda as reflexões sobre os valores morais.
24
Um outro caminho por meio do qual podemos trilhar para entender o conceito de
fisiologia situa-se no aforismo 23 de Além do bem e do mal. Nele Nietzsche apresenta o
enigmático conceito de “fisio-psicologia” (Physio-Psychologie):
3
Apesar de Nietzsche não estar tratando exatamente da “alma” – no sentido conceitual –, o conceito de
“psicologia” é utilizado por ele com uma conotação que remete a um conteúdo originário. Isso se
evidencia mediante o final do fragmento 23 em questão, onde podemos ler: “Jamais um mundo tão
profundo de conhecimento se revelou para navegantes e aventureiros audazes: e o psicólogo, que desse
modo ‘traz um sacrifício’ – que não é o sacrifizio dell’intelletto, pelo contrário! –, poderá ao menos
25
A psicologia, pensada a partir desse sentido originário, seria a ciência dos atos e
das afecções do homem. Daí a sua proximidade com uma “Morphologie”, palavra que
deriva de μορφῇ (“forma”) e λόγος (“razão”, “estudo”, etc.), ou seja, uma ciência da
forma referente aos corpos e aos organismos. Na concepção de Nietzsche, contudo, a
psicologia não cumpriu com a tarefa de pensar o originário, mas, antes, se vinculou a
uma série de preconceitos morais que estão associados à história do homem. Para pensar
o homem em sua origem, faz-se necessário pensá-lo a partir da phýsis, pois é somente
pensando a totalidade da natureza que podemos encontrar o lugar próprio do homem,
lugar este a partir do qual ele vem a ser o que é. Portanto, é partindo desse sentido de
natureza que emerge o conceito de “fisio-psicologia”5. Mas do que exatamente trata a
fisio-psicologia? O que dela advém? Ao remetermos à passagem, veremos que a fisio-
psicologia implica em uma “teoria do condicionamento mútuo dos impulsos ‘bons’ e
‘maus’”. Na medida em que há um condicionamento mútuo das ações, torna-se
impossível direcionar um impulso como essencialmente distinto de outro, no sentido de
carregar consigo uma distinção moral de sua origem. Assim, os impulsos “bons” estão
em uma concomitância com os impulsos “maus”, visto que ambos exprimem
originariamente meios da vontade de poder se manifestar. Essas atribuições de valor e,
por conseguinte, categorizações que separam um valor do outro, são resultados de uma
interpretação moral do real. Mas justamente pelo fato dessa interpretação moral se
efetivar, que aqui se impõe a tarefa de pensarmos tal atividade a partir de uma fisio-
psicologia.
reivindicar, em troca, que a psicologia seja novamente reconhecida como rainha das ciências. Pois a
psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais.” (NIETZSCHE, 2005, p. 27-28,
§ 23).
4
“A alma é a primeira atualidade de um corpo natural que tem em potência vida” (ARISTÓTELES, 2006,
p. 72).
5
Tal palavra é composta pelo radical “Physio”, derivado do grego Φύσις (“natureza”) + o substantivo
“Phycologie” que, em sua origem, comporta dois substantivos gregos, a saber, Ψυχή (“alma”) e λόγος
(“discurso”, “razão”, “palavra”, etc.).
26
originária do mundo e do homem, a saber, a de não ser coisa alguma, mas, antes,
esforço para ser, isto é, vontade de poder? Tais questões nos levam a uma análise do
fragmento 454 da obra Der Wille zur Macht:
6
(EURÍPIDES, 2014, p. 21, linhas 103-04)
30
É através do contínuo curso do tempo que o homem vem a criar propósitos para
a sua existência. Mas, por criar e pretender tornar fixo o que se dilui e se transforma, o
homem se agarra ao que é por ele criado e fecha os olhos para tudo o mais. Dar-se conta
disso requer a experiência do conflito, a qual faz com que mergulhemos em um abismo
para só então vermos uma luz. Essa é a experiência de Ájax que o tempo lhe mostrou. O
tempo significa aí o curso existencial por meio do qual ocorre uma luta entre luz-trevas
e criação-destruição. Se o tempo é o que abarca essa luta constante, ver luz e trevas é
algo que somente nos é concedido através do próprio tempo em sua destinação. Após ter
afundado na terrível experiência do delírio que o fez saquear os animais pensando ser
homens, Ájax se dá conta do quanto se alvoroçou não apenas nesse ato, mas também
antes, quando e onde toda a sua desmedida se originou.
Mas o que a hýbris trágica nos traz à tona enquanto conteúdo filosófico de nossa
reflexão? Que relação teria com o “erro na fisiologia” associado por Nietzsche à
“verdade”? É que em ambos os casos está em questão o homem enquanto ser que, ao se
deter em suas convicções, se esquece de sua condição originária, a saber, a de estar
sempre lançado no mundo sem convicção e garantia alguma. Em ambos os casos,
portanto, o homem é perpassado, assolado por desmedida. Por conseguinte, entendemos
por que Nietzsche, ao se referir ao erro no fisiológico como perigo para a vida, o associa
às nossas “verdades”: o fisiológico do real diz respeito a uma dinâmica conflituosa, a
uma tensão originária, de modo que a verdade se mostra como uma vontade de poder
que almeja cessá-lo. Por ser assim, por estar numa relação de desarmonia com a vida, a
verdade se caracteriza como um erro no fisiológico.
coisas que se escrevem que são os símbolos dos sons pronunciados.” (ARISTÓTELES,
2013, p. 3). A caracterização da linguagem possui um pressuposto não-verbal, a saber,
as “afecções na alma” (ψυχή παθημάτων). Os sons pronunciados são “símbolos’
(σύμβολα) que se constituem na e partir da alma; alma, por sua vez, entendida a partir
de παθημάτων, isto é, a partir de um conjunto, de uma pluralidade de afetos. As
palavras escritas, por seu turno, remetem aos sons pronunciados, de modo que os sons
pronunciados estão para as afecções, assim como as palavras escritas estão para os sons
pronunciados. O elemento fundamental entre ambos – afecções na alma, sons
pronunciados e palavras escritas – é a atividade de simbolizar, de tornar símbolo o que é
afecção. Esse tornar símbolo só é possível à medida que afecção impele o homem a
fazê-lo. Símbolos das afecções, em outras palavras, significam: afecções que
simbolizam, que vêm à presença a partir de si mesmas. A proveniência da voz, assim,
não reside no homem enquanto agente que emite sons; a voz exprime aqui as originárias
afecções da alma. Em um sentido semelhante, Zaratustra profere as seguintes palavras:
“Abrem-se aqui, diante de mim, todas as palavras e o escrínio de palavras do ser: todo o
ser quer tornar-se, aqui, palavra, todo o devir quer que eu lhe ensine a falar”
(NIETZSCHE, 1987, p. 191)7. Qual o sentido que possui em o ser “querer” tornar-se
palavra? Não se trata de um querer consciente, determinado a partir de uma vontade-
agente querente. Querer significa: poder. Na condição de sempre poder, o ser se efetiva
enquanto palavra no e partir do homem. O homem, assim, vem a se realizar enquanto
homem, pois o elemento da “palavra” é o que diferencia dos outros entes. Sob a
proveniência do ser – que não é o “ser” imutável da metafísica –, o homem vem a
“ensinar” ao devir a “falar”. Que isto significa? Significa que o que advém enquanto
destino e envio do ser, torna-se interpretação, linguagem, palavra a partir da qual o
homem traz à luz o real em sua dinâmica. É apenas sob essa condição que o homem
consuma sua natureza para retornar ao empenho de realizar-se no pensamento.
Pensamento e linguagem dizem aqui o mesmo, na medida em que “Pensar e falar é
articular o destino do Ser.” (HEIDEGGER, 1995, p. 15). Articular, portanto, no sentido
de interpretar, significar o que desponta enquanto afeto.
7
O regresso, terceira parte.
33
8
Nessa fase, Nietzsche ainda não havia elaborado sua teoria da vontade de poder, o que faz com que ele
se utilize da palavra “Trieb” (“impulso”), ao invés de “Wille” (“vontade”). Posteriormente, conforme em
seus escritos de maturidade o conceito de vontade de poder for desenvolvido, a expressão que aqui é
designada por “Trieb zur Wahrheit” aparecerá como “Wille zur Wahrheit” (“vontade de verdade”).
37
quase nada é mais incompreensível do que como pôde vir à luz entre os homens um
legítimo e puro impulso à verdade.” (NIETZSCHE, 2007, p. 28). Percebe-se, assim, que
o impulso à verdade aparece como uma contraposição aos instintos primitivos do
homem e às forças da natureza.
Na medida em que o homem cria para si uma verdade, ciará também uma
“mentira” que, por sua vez, servirá de conceito oposto à verdade, para determinar o que
não condiz com os valores do ponto de vista da verdade. A linguagem, nesse ponto,
serve também para garantir o conceito, pois as palavras exprimem afetos. Por isso,
pergunta Nietzsche (2007, p. 31): “O que é uma palavra?”, ao que responde: “A
reprodução de um estímulo nervoso em sons. Mas deduzir do estímulo nervoso uma
causa fora de nós já é o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da
razão.”. O que quer dizer aí “estímulo nervoso”? Refere-se à origem da linguagem
como afeto e impulso primeiros. A palavra, antes de ser um conjunto de fonemas e
grafemas, é estímulo. A verdade, na medida em que pressupõe uma anterioridade com
relação à linguagem, somente poder vir à luz a partir da própria linguagem. Nesse caso,
a linguagem exerce a função mais originária, pois remete aos estímulos e afetos que
perpassam o homem. São esses estímulos e afetos que constituem linguagem e,
portanto, eles devem ser concebidos como criadores da verdade. Segundo Nietzsche, a
diferença entre diversas línguas demonstra a não apoditicidade da verdade, pois caso o
sentido da verdade fosse unívoco, “não haveria tantas línguas”9. Entende-se, dessa
forma, que a existência de diversas línguas, por dizerem respeito a povos diferentes,
partem também de outras pressuposições fisiológicas. Posto que as vivências são outras,
os estímulos são outros e, em consequência disso, as interpretações também serão
diferentes. É apenas através de uma convenção advinda de um conceito de verdade
unívoco que essa distinção entre interpretações vem a ser dissimulada.
Para se referir à linguagem em sua origem, Nietzsche diz que o processo por
meio do qual a linguagem vem a se constituir se dá através de uma “metáfora”
(“Metapher”)10. A ideia de metáfora possui o sentido de transpor, através de imagens,
9
(NIETZSCHE, 2007, p. 31).
10
Segundo o dicionário etimológico da língua alemã Duden Das Herkunftswörterbuch, a palavra
“Metapher” se refere a uma expressão figurada que, por sua vez, possui também o sentido de “imagem”
(“Bild”). Deriva da palavra grega μεταφορά, que é composta por μετά (entre) mais φέρω
(carregar/transportar), possuindo, assim, o sentido de “carregar para outro lugar”, “transferir”. O conceito
de metáfora pode ser encontrado em vários momentos da obra de Nietzsche e serve, inclusive, para
exprimir o sentido mesmo de sua filosofia enquanto interpretação metafórica da realidade. Uma vez que a
pretensão de Nietzsche não é estabelecer uma verdade em si acerca do mundo, mas, antes, fornecer uma
interpretação perspectivista que se reconhece enquanto tal, entendemos que o conceito de metáfora pode
38
aquilo que é estímulo; o estímulo que é transposto em imagem vem ser som:
“De antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem. Primeira metáfora. A
imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. E, a cada vez, um
completo sobressalto de esferas em direção a uma outra totalmente diferente e nova.”
(NIETZSCHE, 2007, p. 32). A linguagem é, então, entendida aqui a partir do silêncio
originário dos estímulos. Com isso, Nietzsche quer chamar a atenção para o fato de que
não podemos saber acerca das essencialidades das coisas. Todo o nosso conhecimento é
pautado em metáforas. Tais metáforas não exprimem como a realidade é em si mesma,
mas, antes, trazem-na à luz ou a partir de uma interpretação que a mostre como
multiplicidade, ou que a dissimule a partir de uma concepção unívoca. Considerando o
seu sentido de transportar ou carregar, a metáfora desempenha o papel justamente de
transpor o que é afeto em imagem e som, em palavra e conceito. O conceito possui aqui
um peso maior no que se refere à sua univocidade, pois “Todo conceito surge pela
igualação do não igual”. Que isso significa? É que a diferença específica relativa a cada
coisa exprime uma pluralidade de fenômenos. Contudo, o intelecto organiza essa
pluralidade através da igualação, da equiparação entre coisas diversas. Assim, por
exemplo, nos referimos a um leão e acreditamos abarcar, mediante o conceito de leão,
todo o conjunto de leões em sua distinção11. Essa distinção, porém, é eliminada através
da dissimulação ou organização do intelecto, quando este vem a formar um conceito
unívoco. Mas, por outro lado, a organização que o intelecto realiza diz respeito à própria
condição de ser homem, uma vez que sua percepção não apreende o real em sua
magnitude, pluralidade e efemeridade.
No que implica essa univocidade do conceito, veremos que a análise de
Nietzsche atinge o âmbito dos valores concebidos como em si. Assim, se tomarmos
como exemplo a ideia de “virtude”, esta estará aludindo à virtude “em si”, isto é, a uma
ideia a partir da qual toda prática denominada de virtude deve se conduzir. No livro
Crátilo, de Platão, ao se contrapor à concepção de Protágoras, que afirmava que as
ser lido à luz de sua filosofia madura. Isso também pode ser constatado a partir do fragmento 866 da obra
A vontade de poder. Em tal fragmento ele está a tratar do tipo-homem forte, o qual condiz com o seu
conceito de Übermensch, e nos diz o seguinte: “Meu conceito, minha metáfora para esse tipo é, como se
sabe, a palavra “super-homem”. (NIETZSCHE, 2008, p. 436).
11
O exemplo que Nietzsche dá é o seguinte: “Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma
outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas
diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável, despertando então a representação, como se
na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal como uma forma primordial de acordo
com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e pintadas,
mas por mãos ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiável como cópia autêntica
da forma primordial.” (NIETZSCHE, 2007, p. 35-36).
39
coisas são tal como aparecem singularmente para cada ser que percebe, Sócrates
estabelece a noção de essência das coisas12. Nesse caso, Sócrates quer chegar à
conclusão de que há uma forma ou ideia em si a partir da qual as ações provêm. Diz ele:
12
É importante salientar que há, na perspectiva de Sócrates, uma diferença entre “ideia” e “conceito”.
Neste caso, é a ideia que é tomada aqui como essência das coisas, não o conceito. Ideia é condição de
possibilidade para que o próprio conceito venha a surgir. Contudo, o nosso intuito é mostrar até que ponto
a crítica de Nietzsche pode alcançar uma validade. Trata-se, portanto, de uma demonstração, ao nosso
ver, de amplitude de sua crítica. Se, por um lado, ideia não pode ser concebida como conceito, por outro,
ela é o que determina se o conceito será ou não unívoco – o que parece ser o caso da exposição de
Sócrates.
13
O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) concebeu a coisa em si como postulado e condição de
possibilidade para a apreensão dos fenômenos. Apesar de a coisa em si ser tomada como pressuposto,
assim como Nietzsche, o próprio Kant reconhecia a inapreensibilidade da coisa em si, tal como podemos
conferir em sua obra Crítica da razão pura: “... não possuímos conceitos do entendimento e, portanto,
tão-pouco elementos para o conhecimento das coisas, senão quando nos pode ser dada a intuição
correspondente a esses conceitos; daí não podermos ter conhecimento de nenhum objeto, enquanto coisa
em si, mas tão-somente como objeto da intuição sensível, ou seja, como fenômeno” (KANT, 2001, passo
B XXVI).
40
14
Daí o exemplo lapidar de Kant nesse sentido: “... por exemplo, a pura lealdade na amizade não pode
exigir-se menos de todo o homem pelo facto de até agora talvez não ter existido nenhum amigo leal,
porque este dever, como dever em geral, anteriormente a toda a experiência, reside na ideia de uma razão
que determina a vontade por motivos a priori.” (KANT, 2007, p. 41).
41
15
Consideração esta que recebe o subtítulo de “Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben”
(“Da utilidade e desvantagem da história para a vida.”).
42
Der Mensch fragt wohl einmal das Thier: warum redest du mir nicht
von deinem Glücke und siehst mich nur an? Das Thier will auch
antworten und sagen, das kommt daher dass ich immer gleich
vergesse, was ich sagen wollte — da vergass es aber auch schon diese
Antwort und schwieg: so dass der Mensch sich darob verwunderte.
16
O fato de no texto original não haver aspas para distinguir a fala do “homem” da do “animal”, torna-se
difícil a compreensão das três falas: a de Nietzsche enquanto narrador, a do homem a respeito do qual
Nietzsche fala e a do animal. Marco Antônio Casanova não faz essa distinção, desconsiderando, assim, o
pronome “ich” (referente à fala do animal) – o que faz com que sua tradução fique: “O animal quer
também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer” (traduz-se,
então, pela terceira pessoa do singular do presente do indicativo). A tradução dele, apesar de não ser tão
“fiel”, facilita a compreensão do texto, uma vez que, partindo do texto original que, por sua vez, não
utiliza aspas para distinguir as falas, ele torna a fluência do texto melhor. A nossa tradução, porém, ao
manter as falas de acordo com o original, introduz aspas e dois pontos para demarcar a narrativa da fala
do animal.
43
processo orgânico da vida. Nesse sentido, o que ele entende por esquecimento diz
respeito a um processo próprio da fisiologia dos seres, incluindo-se aí o homem: “A
todo agir pertence um esquecer: tal como a vida de todo o orgânico não pertence apenas
à luz, mas também ao obscuro.”17 O que vem à tona como aspecto crítico não é o fato de
o homem construir para si uma memória, mas sim, a sua perduração como interrupção
do desenvolvimento do orgânico. Logo, não se trata também de prescindir da história,
mas de saber lembrá-la à medida que se sabe, também, esquecê-la. Esse esquecer não se
refere a um esvanecimento pleno do que foi construído; refere-se, antes, à dimensão do
conflito em meio ao qual algo de novo é gerado. Esse conflito é entendido por Nietzsche
a partir do conceito de força plástica (plastische Kraft)18. A força plástica é o que
irrompe como instante criador à medida que se apropria do passado. Na concepção de
Nietzsche, essa força perdeu o seu vigor conforme o homem passou a conceber a
história como mais importante que a vida. Para entendermos o que isso significa,
devemos analisar os três tipos de história designadas pelo autor:
17
No original: “Zu allem Handeln gehört Vergessen: wie zum Leben alles Organischen nicht nur Licht,
sondern auch Dunkel gehört.”. (eKGWB). Tradução nossa.
18
Nietzsche ainda não havia, nessa fase, desenvolvido o conceito de vontade de poder. Entretanto, ao
analisarmos o que ele entende por “força plástica”, não fica tão difícil a compreensão de que, mais tarde,
força plástica estará querendo dizer justamente vontade de poder.
44
é grandioso do ponto de vista dos valores. E como esses valores dizem respeito ao
modo como o homem concebe e percebe o mundo, por serem monumentais, são
também o que impossibilitam a percepção de que a conservação da história monumental
implica em uma interrupção da alteridade necessária para a vida. Na medida em que a
intenção é repetir, e não criar, o homem fecha os olhos para o fato de que “jamais
poderia acontecer algo inteiramente igual em meio ao jogo de dados do futuro e do
acaso.” (NIETZSCHE, 2003, p. 22).
A sobreposição da história monumental caracteriza, por exemplo, o que
Nietzsche mais tarde irá diagnosticar como a tirania do homem bom. Tal homem é
tirânico porque tem para si sua forma ideal do que é o bom e, com isso, submete todas
as vontades a esse princípio, na tentativa de eliminar a distinção entre ambas e torná-las
iguais. O elemento monumental deve concernir a todo e qualquer âmbito de uma moral
que se pretenda universal. Que perigo representa, no entanto, esse ideal? A resposta é
dada por Nietzsche:
Quando um ideal do que deve ser a vida se sobrepõe à própria vida, isso
demonstra uma fraqueza do ponto de vista da criação artística; mas não somente isso: ao
se colocar como dominante, ele se volta contra as naturezas fortes que superestimam
mais a vida do que a história. Ao querer agir dessa forma, os espíritos fortes estão em
uma relação mais íntima com o processo criador da vida. A história é consequência da
vida, e para que ela possa vir à luz, ela própria se utiliza da condição primordial da
criação: o esquecimento. Na medida, porém, em que se constitui a partir do
esquecimento, o homem, através da memória, possui a pretensão de mantê-la viva,
repetindo-se no presente e no futuro.
A história antiquária se relaciona, em certa medida, com a monumental, pois ela
pode ser o suporte para que o monumento dos valores seja preservado. Seu papel é dado
aos historiadores que zelam pelos fatos do passado. É verdade que nem sempre a
história monumental necessitará dos historiadores, precisamente nos casos em que a
45
força dos valores monumentais é tão grande, que sua repetição se dá conforme o grau de
retidão das gerações. Contudo, a história antiquária não serve apenas para conservar o
que é antigo do ponto de vista monumental, mas também, em alguns casos, para
conservar fatos e experiências que não se sobressaíram tal como ocorre com os valores
monumentais19. O problema residente na história antiquária diz respeito ao fato de que o
homem, ao recorrer a ela, pensa estar reconstituindo-a tal como ela foi no passado. Ou
ainda, na pretensão de conhecer uma coisa em sua origem, o homem recorre, então, aos
processos históricos por meio dos quais tal coisa veio a ser o que ela é, na intenção de
obter um “puro conhecimento”:
19
A exemplo disso, temos as filosofias mais “periféricas”, como, por exemplo, as de filósofos tais como
Pirro, Sexto Empírico, Górgias, Protágoras, etc., que não se sobressaíram na história tal como as filosofias
de Platão e Aristóteles, mas que, apesar disso, foram conservadas através da história antiquária.
20
“Aqui se está sempre bem próximo de um perigo: enfim, tudo torna-se antigo e passado, mas continua
no interior do campo de visão, é assumido por fim como igualmente venerável, enquanto tudo o que não
vem ao encontro deste antigo com veneração, ou seja, o que é novo e o que devém, é recusado e
hostilizado. (NIETZSCHE, 2003, p. 28).
46
21
“... todo homem e todo povo precisa de um certo conhecimento do passado, ora sob a forma da história
monumental, ora da antiquária, ora da crítica”. (NIETZSCHE, 2003, p. 31). O sentido de “conhecimento”
aqui empregado não se reduz ao saber estritamente intelectual; antes, quer chamar a atenção para o fato
de que, independentemente dessa forma de saber, o homem carrega consigo, sem se dar conta, o
conhecimento de outras épocas.
47
justiça que se acha aqui em julgamento, nem tampouco a misericórdia que anuncia aqui
o veredicto: mas apenas a vida, aquele poder obscuro, impulsionador, inesgotável que
deseja a si mesmo.” (NIETZSCHE, 2003, p. 30). A história crítica não evoca,
originariamente, nenhum valor, se a concebermos do ponto de vista da força plástica.
Trata-se de um poder inexaurível que “deseja a si mesmo”. Enquanto tal, a força
plástica se destina tão somente com a finalidade de se consumar.
22
Preferimos manter a grafia da palavra em sua forma original. Em algumas traduções, lê-se “super-
homem”; noutras, “além-homem”.
23
(NIETZSCHE, 1994, p. 20). Tradução nossa.
24
Ibid., p. 20. Tradução nossa.
48
25
Ibid., p. 21. Tradução nossa.
49
justamente pela sua categorização de além como sinônimo de elevado em grau de valor.
Quando, porém, o homem é atravessado pelo sentido da Terra, o que há é apenas o que
se mostra como condição de sua finitude. Por conseguinte, tanto alma quanto corpo
fazem parte de uma mesma condição fisiológica, de maneira que “razão” e “instinto” se
confundem. Se tudo é vontade de poder, instinto e razão são vontades em graus
distintos. Essa distinção é uma distinção da vontade de poder que se manifesta sempre
diferente em seu devir e em seu retorno.
Entendemos, com isso, que o conceito de Übermensch serve para Nietzsche
como forma de exprimir o lugar próprio do homem, a saber, mergulhado em sua própria
finitude, junto à totalidade múltipla. Esquecer-se desse lugar próprio não diz respeito
apenas a um esquecimento de si mesmo, mas, sobretudo, a um esquecimento e desprezo
pela vida. Na medida em que o homem se desloca de seu lugar próprio, ele se volta
contra a vida desprezando-a. Superar esse homem exige um empenho interpretativo com
relação ao que é a essência do homem. Essa “essência”, por condizer com o devir, não é
coisa alguma, não fornece nenhuma segurança; ao contrário, ela evoca o abismo da
existência que está por trás de toda atribuição de valor ao mundo. Tais valores se
destituem à medida que são reconhecidos como provenientes de um abismo, de um
nada. A aparente unidade do mundo se esvai perante a multiplicidade oca e sem direção
sob a qual o homem é conduzido. O Übermensch não é apenas esse que interpreta o
mundo a partir de seu próprio abismo, mas também o que, ao se deparar com abismo, o
afirma como a única condição existencial e que deve ser louvada como o que há de mais
pleno. Para que o homem possa experimentar isso que há de mais excelso, analisemos o
que profere Zaratustra como instante decisivo: “Que podeis vivenciar de maior? Essa é
a hora do grande desprezo. A hora em que também a vossa felicidade se torna asco e
também vossa razão e vossa virtude.”26.
A plenitude proveniente do abismo da existência somente é possível quando há o
grande desprezo. Desprezo pelo quê? Pelo que despreza e apequena a vida. Isso que
despreza e apequena a vida coincide com a própria felicidade, razão e virtude do
homem. Para superar esse desprezo e asco pela vida é também necessário desprezo e
asco, mas agora referentes ao que nega a vida, ao que torna a vida um erro que deve ser
reparado através de um além. Esse embate já é por si um conflito de interpretações
advindo de uma tensão fisiológica do mundo enquanto uma variedade de vontades que
26
Ibid., p. 21. Tradução nossa.
50
27
Ibid. p. 22. Tradução nossa.
28
Nesse momento do discurso, diz Zaratustra: “... sie verstehen mich nicht, ich bin nicht der Mund für
diese Ohren.” [“... eles não me compreendem, eu não sou a boca para esses ouvidos.”]. Percebe-se aqui o
caráter retórico do discurso: para compreender um determinado pensamento, faz-se necessário já estar sob
a condição desse pensamento; caso contrário, o discurso sobre o mesmo não pode sequer ser alcançado.
Essa relação entre o que discursa e o interlocutor exprime um “τόπος” (“lugar”, “localidade” comum) a
partir do qual torna-se possível uma compreensão. Em não partindo de um lugar comum, o interlocutor
não pode compreender o que discursa, ao passo que aquele que discursa não atinge êxito com o seu
discurso. Nisso, compreendemos, inclusive, a atividade do interpretar, visto que esta somente ocorre a
partir de relações mútuas entre vontades. As relações entre vontades, uma vez que estas são todas
distintas, apresentam inicialmente um conflito de interpretações; a partir desse conflito pode surgir uma
harmonia, ou seja, um entendimento mútuo entre ambas. Isso apenas é possível quando ambas partem de
um lugar comum.
29
Ibid., p. 26. Tradução nossa.
51
ao qual alude Zaratustra coincide com o tipo-homem esgotado30. Por não suportar a
tensão propriamente do mundo terrestre, o homem cria para si um ideal de mundo e de
homem que fuja dessa tensão. A tentativa de fugir e de se abrigar em um lugar seguro
resulta em uma valoração negativa do que vem a ser o mundo em sua condição de devir
– daí um apequenamento dessa condição em detrimento de uma superestima em relação
aos valores metafísicos. Conforme o homem tem para si um além-mundo no qual possa
se abrigar, o ideal desse mundo implica em um ideal de homem. Em meio a um conflito
incessante entre vontades, uma vontade se quer dominante e senhora de todas as outras
– é a vontade do último homem! “Último”, então, porque quando se postula um ideal do
que deva ser o homem, não há mais espaço para outros tipos de homem; o que há é o
homem, isto é, uma vontade a partir da qual todas as outras devam se submeter. A
caracterização desse homem como o que vive longamente está em sua forma de
expansão no mundo. Como o que há um ideal de homem a ser seguido, esse ideal é
perpetuado de épocas em épocas, pois a sua força de domínio permanece em vigor, já
que não há nenhum contra-movimento quantitativamente considerável para se expandir
tanto quanto ele. Esse terreno totalmente protegido pela força da moral possibilita
apenas a expansão de uma forma de vida que esteja sob a determinação de tais
preceitos.
Partindo dessa compreensão, veremos que as concepções de “verdade”,
“virtude”, “felicidade”, etc. estarão relacionadas a uma norma segundo a qual todas as
vontades devem venerar. Sob esse direcionamento das vontades, há uma falsificação da
fisiologia a partir de um ponto óptico-interpretativo tomado como o único possível. E
visto que toda interpretação advém de condições fisiológicas, essa falsificação se utiliza
da própria condição que nega. Isso ocorre porque, considerando a totalidade do mundo
como vontade de poder, toda e qualquer pulsão interpretativa exprime uma pulsão pelo
aumento do poder. O último homem aumenta seu poder à medida que há uma
diminuição da tensão, e essa diminuição só se torna possível quando uma grande
quantidade de vontades também caminha rumo a essa diminuição. No homem, a
diminuição ou aumento do poder se exprime através da criação de valores. Dessa forma,
o homem que concebe a si mesmo como modelo de homem ideal deve dizer para si:
“Wir haben das Glück erfunden!” [“Nós inventamos a felicidade!”]31. O significado de
30
Falaremos mais sobre “esgotamento” no próximo capítulo, especificamente no subitem intitulado de
“Esgotamento fisiológico”.
31
Ibid., p. 26. Tradução nossa.
52
“inventar” tem a ver precisamente com a atividade de criar valores. Arrogar-se o direito
de ter criado um valor não apenas diz sobre o valor criado, mas também sobre os
valores que estão em sua contraposição. O último homem determina, assim, o valor
último do mundo.
Há de se perceber que, quando mencionamos que há uma vontade que submete
todas as outras à sua norma, isso não significa que é a partir de uma vontade – no
sentido quantitativo – que ocorra esse processo. Subentende-se por “uma vontade” uma
determinada “unidade” que abarca múltiplas vontades; unidade apenas enquanto
caminho semelhante por onde essas vontades se conduzem e se relacionam, isto é,
apenas pelos valores aos quais todas se submetem como um rebanho, tal como diz
Zaratustra: “Nenhum pastor e um rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual:
quem sente diferente, vai, voluntariamente, para o hospício.”32 A ausência de um
“pastor” exprime uma não-unidade regente e condutora do rebanho. Apesar de não se
ter esse pastor regente, todo o rebanho caminha rumo a uma mesma direção, uma vez
que cada qual quer o mesmo. No âmbito desse direcionamento das vontades, as
diferentes vontades adquirem poder conforme exercem seu modo de se igualar às
outras. Pressupõe-se, com isso, que nem todas as vontades se conduzem para essa
direção. Mas fugir desse ciclo implica contrariar a vontade em maior número, que é o
rebanho. Isso quer dizer que, embora haja vontades distintas, ocorre que, sob a
determinação do rebanho, essas vontades se excluem e vão para o “hospício”, no
sentido de que são forçadas a se remediarem, para só então acharam-se inseridas dentro
do rebanho.
32
Ibid., p. 26-27. Tradução nossa.
53
33
Tal como consta no aforismo 187 de Além do bem e do mal. Embora na passagem se trate das
“morais”, entendemos que “moral” equivale a “valor-interpretação”, como já nos ficou claro no decorrer
do texto.
34
Ibid., p. 35. Tradução nossa.
35
Ibid., p. 35. Tradução nossa.
54
36
Ibid., p. 36. Tradução nossa.
37
Ibid., p. 37. Tradução nossa.
38
Ibid., p. 37. Tradução nossa.
55
39
Gianni Vattimo (2010, p. 316) diz: “A criança é provavelmente uma figura do além-do-homem
nietzschiano”
57
40
Ibid., p. 41. Tradução nossa. Discurso intitulado de “Von Den Hinterweltlern” (“Dos trasmundanos”),
primeira parte..
58
Zaratustra esteve inserido no âmbito da metafísica, pois ele também projetou sua
“loucura para além do homem”. Entretanto, essa loucura que está para além do homem
não é nada de além, pois advém de seu ato criador. Uma interpretação concernente a
esse ato criador deve remeter à expressão “Menschen-Werk”, utilizada por Zaratustra
em seu discurso. Nela, encontramos dois substantivos: “homem” (“Mensch”) e “obra”
(“Werk”); porém, ambos são intermediados por um hífen, dando o sentido de uma
palavra só. A expressão, muito bem empregada por Zaratustra, quer chamar a atenção
para o fato de que não há cisão entre homem e obra, isto é, não há uma separação entre
o valor e aquele que valora. Com isso, a partir da expressão “obra-homem”
compreendemos que a própria obra é o homem, pois ela não vem à tona enquanto tal se
não houver o homem para fazê-lo. A obra é, assim, uma vivência, uma criação que
ocorre através de um ponto óptico, de uma interpretação. Por isso, ao mencionar que
teria criado “Deus”, Zaratustra diz que este era “obra-homem”, como todos os outros
deuses. O sentido da palavra “Deus” coincide aí não somente com o Deus judaico-
cristão, mas sobretudo a tudo aquilo que tem a pretensão de transcender a esfera
criadora do homem, ou seja, de estar para além, em si e independente do perspectivismo
e do âmbito óptico a partir do qual um valor ou um mundo se mostra para o homem.
Nesse sentido, entendemos que as vivências através das quais o homem se constitui são
“obras-homem”. Na medida em que são modos a partir dos quais o homem interpreta
perspectivamente o que se mostra, dizem respeito a uma singularidade de sua vivência.
É esse o sentido que possui a seguinte fala de Zaratustra: “e o ventre do ser não fala de
modo algum para o homem, a não ser como homem”41. A expressão “ventre do ser”
exprime o ponto a partir do qual o homem constitui para si interpretação. Esse ventre do
ser não se comunica em sua “puridade” de modo algum com o homem, isto é, em seu
ser enquanto ser e à parte do desempenho interpretativo do homem. Ele se comunica,
porém, tão somente como homem, visto que para vir à luz faz-se necessário o homem
trazê-lo. Nisso, compreende-se a atividade da interpretação como criação de mundo.
Sob essa perspectiva, surge-nos uma problemática no que concerne ao objeto de
reflexão da tradição filosófica, a saber, a noção de princípio. A necessidade de se
postular um princípio serve como paradigma para explicar a aparente ordem das coisas
e a racionalidade do homem. É assim que Platão concebe o δημιουργός (“demiourgos”)
41
Ibid., p. 42. Tradução nossa.
59
como princípio organizador de todas as coisas. É partindo dessa noção de princípio que
Aristóteles também irá postular o “motor imóvel”42. Embora a noção de princípio seja,
de acordo com o filósofo, diversa, de um modo geral ela serve como postulado para se
referir a uma determinada unidade a partir da qual todas as coisas se constituem. Mais
ainda, a noção de unidade acha-se relacionada à verdade em si das coisas. Para
Nietzsche, na medida em que o conceito de vontade de poder não exprime uma unidade
no sentido de que haveria “a” vontade como força motriz43, mas, ao contrário, traz à
tona uma totalidade disforme em meio à qual uma multiplicidade de vontades a
constituem, segue-se daí que não há uma oposição aquilo que é “princípio” e aquilo que
é propriamente o homem. O princípio ao qual nos referimos é “vontade de poder”. Mas
o homem, assim como toda manifestação da vida, é vontade de poder. Logo, ele é
partícipe e parte constituinte dessa realidade que se mostra em sua diferença. Dizer a
totalidade como vontade de poder implica em dizê-la em sua diferença, isto é, em suas
partes e em sua multiplicidade distinta. Cada parte dessa totalidade não encerra um fim
e nem se determina a partir de um princípio gerador. Essas partes, que são na verdade
vontades, estão em uma relação hierárquica e indeterminada, pois cada vontade se
relaciona com outras vontades em meio ao advir de tudo o que há.
42
Muitos são os exemplos que poderíamos fornecer concernente à noção de princípio, uma vez que já
com os pré-socráticos encontramos a noção de “ἀρχή” (“arché”) como princípio gerador de todas as
coisas. Platão e Aristóteles servem-nos aqui apenas como exemplos de dois grandes expoentes da
tradição.
43
Faz-se necessário, porém, uma ressalva quanto à compreensão de “unidade”. A crítica de Nietzsche à
noção de “unidade” abrange o conteúdo metafísico que implica em conceitos cristalizados da tradição,
tais como “verdade”, “coisa em si”, “ser” (compreendido em contraposição ao devir), etc. Sendo assim,
não significa que não possamos pensar a totalidade da vida como vontade de poder a partir de uma
“unidade”. A unidade aí não diz respeito a nada de coisificado, cristalizado, paradigmático ou
determinante do mundo.
60
44
Note-se que essa oposição já há nos antigos e nos medievais, tanto no dualismo de Platão, como
também no do Cristianismo – ambos concebendo a alma em uma oposição ao corpo. Na Modernidade
essa oposição persiste, porém com a ideia de que o homem, enquanto sujeito ou substância, age
arbitrariamente de acordo com a autonomia de sua consciência.
45
Ibid., p. 41. Tradução nossa.
61
de ser uma grande razão, o corpo é “uma multiplicidade com um sentido”. Que isso
significa? Multiplicidade evoca uma crítica à noção de “espírito” ou “eu” autônomo. O
corpo é, assim, múltiplo, ao invés de ser substrato ou coisa imutável. Por ser múltiplo,
não há nenhuma “unidade” determinante de sua constituição, daí ele ser também “uma
guerra e uma paz”: ele se encontra no mundo já sempre atravessado por conflito, sendo
este possibilidade para que possa haver harmonia. Como harmonia provém sempre de
um conflito, o corpo é então ambos, pois esses dois polos não são em si mesmos
“opostos”46, mas se confluem. As imagens de “rebanho” e “pastor” são utilizadas para
trazer à tona a noção de corpo como vontade de poder, pois esta, estando no mundo em
meio a uma multiplicidade de vontades distintas, anseia por aumentar o poder; esse
aumento do poder ocorre de dois modos possíveis: sendo rebanho e pastor. A ideia de
rebanho exprime “obediência” e “submissão”, ao passo que a ideia de pastor exprime
“domínio” e “mando”. O corpo, estando sempre em uma relação com uma
multiplicidade de corpos, achar-se-á ora sendo rebanho, ora sendo pastor47, visto que é
próprio de sua condição a oscilação advinda de uma vontade que está sempre a se
constituir e nunca obtém um estado permanente.
Na medida em que compreendemos o corpo a partir de uma condição de
simultaneidade e multiplicidade, podemos interpretar o corpo como criador de valores.
Isso nos faz remeter à criação de valores metafísicos como meios para o corpo se
manter em sua incessante busca pelo poder. Os conceitos que falseiam o mundo servem,
dessa forma, como instrumentos, meios que trabalham a serviço da vontade de poder,
isto é, do corpo, da grande razão. Tal é o que nos faz refletir a seguinte fala de
Zaratustra:
46
Isto é, não são opostos no sentido em que estabelece a metafísica, a saber, do ponto de vista do valor
que aponta um como bom, outro como mau, um como superior, outro como inferior.
47
Uma passagem, já citada antes (no primeiro capítulo, subitem “Vontade de poder enquanto
interpretação do mundo como unidade”), do discurso Do superar si mesmo serve-nos, nesse sentido, para
reforçarmos a ideia do corpo como sendo tanto mando quanto obediência: “Onde encontrei vida,
encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servo encontrei a vontade de ser senhor.”
(NIETZSCHE, 1987, p. 127).
48
Ibid., p. 45. Tradução nossa.
62
O corpo, enquanto grande razão, é o que constitui a pequena razão. Tal razão é
pequena precisamente porque é apenas resultado, consequência da grande razão, da
vontade de poder. A grande razão se refere à condição originária através da qual o
homem é afetado. A partir dessa condição, o homem vem também a criar valores, e
estes aparecem como consequência de sua vontade de poder. Contudo, no âmbito da
metafísica, a criação de valores se dá mediante uma reação a essa condição, pois os
valores que advêm da metafísica rejeitam tal condição por não suportá-la. Essa rejeição
e essa luta contra o conflito originário que é vida é o que vem a constituir a “pequena
razão”, isto é, um instrumento que trabalha a serviço do corpo em sua condição
primordial. É assim que surge o “eu” querendo se sobrepor ao “corpo”, quando na
verdade em sua origem ele já advém do corpo e se mantém a partir dele – daí ser dito
por Zaratustra que o corpo, sendo a grande razão, não diz “eu”, mas faz o “eu”. O
“dizer” se refere à esfera conceitual que ganha força a partir da linguagem. Mediante o
artifício linguístico, o homem cria para si um mundo no qual as palavras dizem muito
mais que sua condição originária. Todavia, esse mundo criado para se abrigar e se
proteger do sem fundo que é a grande razão – pois esta não garante estabilidade – é
constituído pelo corpo. O corpo é, assim, “o próprio” (das Selbst) da condição precípua
por meio da qual o homem e o mundo se constituem. O homem, contudo, dissimula esse
“próprio” de sua constituição através de um valor posto como essência de tudo. Nisso,
entendemos que os sentidos dissimulam a si mesmos: “O que os sentidos sentem, o que
o espírito conhece, jamais tem em si seu fim. Mas sentidos e espírito gostariam de
convencer-te de que eles são o fim de todas as coisas: quão vaidosos eles são.”49. Note-
se que tanto os “sentidos” como o “espírito” não encerram um fim, isto é, não exprimem
uma interpretação acabada acerca do que é o mundo, pois ambos são afetos, são modos
perspectivos de trazer o mundo à presença. O que eles trazem à presença é o corpo, o
próprio que está por “trás” de cada perspectiva: “Instrumentos e brinquedos são sentidos
e espírito: por trás deles encontra-se ainda o próprio.”50. O próprio é o corpo, mas
“corpo” aí remete ao que é princípio. Sendo princípio, é ele que faz brotar “sentidos” e
espírito”, pois ele é condição de possibilidade para o sentir, o interpretar e o valorar.
A compreensão do que é o “corpo” é aqui ampliada, na medida em que a
palavra corpo não diz respeito nem somente ao aparato instintivo em contraposição ao
49
Ibid., p. 45. Tradução nossa.
50
Ibid., p. 45. Tradução nossa.
63
aparato intelectivo, nem também à ideia de unidade estática e subjetiva a partir da qual o
homem vem a se projetar no mundo. O que Zaratustra entende por corpo deve ser
interpretado por mundo, mundo este que é múltiplo e constituído por corpos distintos
que interagem entre si e são capazes de criar para si mundos. Esses mundos, concebidos
como valores ou pontos ópticos a partir dos quais o homem se constitui, podem dizer
respeito tanto à condição primordial, como também a uma dimensão suprassensível e
falsificadora. A história da metafísica foi construída, na concepção de Nietzsche, a
partir dessa última óptica.
Vimos como a noção de corpo é utilizada por Nietzsche para se referir à “grande
razão” ou ao “ser próprio” do homem. Esse ser próprio evoca a vigência própria do
homem, uma condição da qual o homem não escapa, embora projete para si artifícios
valorativos com essa intenção. Se por trás de todo e qualquer valor o corpo é o que
aparece como força propulsora, na medida em que corpo coincide com vontade, e sendo
vontade essencialmente múltipla, o “ser próprio” do homem estará relacionado a um
modo peculiar de sua vontade, isto é, à sua diferença específica através da qual um
mundo se mostra perspectivamente. A diferença específica relativa a cada vontade
implica em perspectivas de mundo essencialmente distintas. No domínio da metafísica,
essa diferença específica é negada à medida que é postulado um imperativo categórico
de uma moral universal. Aqui, a multiplicidade de vontades que se submete à lei moral
tornar-se “rebanho”. O rebanho serve para conduzir o que é particular, com o objetivo
de eliminar as vontades singulares e abarcá-las em uma unidade determinada e
constituída pela moral. Não significa que ocorra a efetivação dessa unidade do ponto de
vista perspectivo, isto é, da percepção que cada vontade possui. Significa, antes, que a
moral adquire seu poder de domínio na esfera conceitual. O conceito aqui se sobrepõe
ao ser próprio de cada vontade, conforme o ideal moral se mostra como condutor da
vida. Na medida em que esse ideal se expande no mundo, o rebanho obtém mais força,
mais poder. Nesse ponto é onde reside a força do imperativo moral, pois o rebanho tem
o número e a quantidade a seu favor, tal como podemos constatar na obra WM/VP,
fragmento 401: “Compreendemos o que até agora determinou o supremo valor e por
que ele se tornou senhor sobre a valoração oposta –: ele era numericamente mais
forte.”51 O fato de essa moral ter triunfado incrementa o seu sentimento de poder como
à parte de uma valoração, fazendo com que a ideia de “bem” seja concebida como em si
51
(NIETZSCHE, 1964, p. 275). Tradução nossa.
64
e para além do âmbito meramente humano. Mas o que tem em vista Nietzsche, quando
estabelece não apenas um diagnóstico, como também uma crítica?
Certamente a ideia de opor valores não é, na filosofia de Nietzsche, uma
tentativa de estabelecê-los como permanentes, tal como o foi o triunfo dos valores
judaico-cristãos na cultura do Ocidente. Partindo do ponto de vista da teoria da vontade
de poder, que consiste em considerar a singularidade que é cada pulsão de um ser
vivente, veremos que o estabelecimento de uma moral tomada como universal para
conduzir a vida diz respeito a um adoecimento do homem. É somente na medida em que
o homem se encontra em um processo de esgotamento de sua vontade de poder, que se
torna possível uma submissão ao ideal do rebanho. O rebanho, do ponto de vista da
fisiologia constitutiva da vida, é um esforço contrário à saúde e ao vigor da manutenção
do poder relativamente ao novo. Assim, se considerarmos o perspectivismo de
Nietzsche na esfera da moral, mesmo as vontades sujeitas ao ideal do rebanho têm para
si uma maneira própria de conceber a moral e de ver o mundo. Para aqueles que
entendem a doutrina de Zaratustra, o reconhecimento do perspectivismo é fundamental.
Isso pode ficar mais claro no discurso “Von den Freuden- und Leidenschaften” (“Das
amizades e paixões”), onde lemos: “Meu irmão, se tens uma virtude e ela é tua virtude,
então tu não a tens em comum com ninguém.”52 Compreende-se por virtude o que
primeiramente é proveniente das afecções do corpo. Sendo o corpo uma pulsão por
natureza singular, aquilo que o corpo interpreta para si remete ao perspectivo de seu ser
próprio.
A partir do perspectivo referente ao ser próprio de cada vontade é que surgem
valores que pretendem ultrapassar essa condição. Em parte, essa ultrapassagem ocorre,
na medida em que um valor concebido como atemporal e a-histórico tem efeito
diretamente na constituição fisiológica do homem e o faz se conduzir através desse
valor. Por outro lado, é impossível transcender o âmbito do corpo segundo a perspectiva
de que tudo é essencialmente corpo e vontade. No primeiro caso, há de se analisar a
força que as palavras possuem com respeito ao fisiológico: por ser um animal cuja
diferença reside precisamente no lógos, o homem só se constitui a partir do elemento
interpretativo – elemento este que remete necessariamente à linguagem 53. Nesse caso,
52
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, 1994, passim., p. 47. Tradução nossa.
53
Tomando por base a perspectiva de Nietzsche, a linguagem não se reduziria ao conjunto de fonemas e
grafemas. Como originariamente a razão de tudo é “corpo”, e como corpo aqui é entendido como vontade
de poder, então não é difícil a conclusão de que vontade, enquanto direcionada ao poder – poder este que
conjuntamente à totalidade é vazio de valor –, é o que essencialmente irá constituir a linguagem. A
65
os conceitos da metafísica que, por sua vez, exprimem falsificações da realidade, serão
o ponto de partida para a crença em valores apodíticos. No segundo caso, tendo em vista
que o homem, à medida que é corpo, é vontade para criar, todos os valores, sejam eles
condizentes com as vontades que intensificam seu poder na tensão originária, sejam
condizentes com as vontades que pretendem uma fuga dessa tensão, irão exprimir, em
última instância, corpo. Isso significa, dito de outro modo, que em todo e qualquer
âmbito da criação de valor o homem permanece em sua condição de ser vontade de
poder.
linguagem é, em sua origem, afeto e vontade, para só então se tornar palavra do ponto de vista, por
exemplo, da gramática ou de qualquer forma de comunicação oral. Contudo, sob a óptica da crítica à
metafísica, o que pretendemos aqui expor é o fato de que as palavras, enquanto conceitos valorados a
partir de um processo de esgotamento fisiológico, serão concebidas como a própria realidade.
66
54
Devemos, contudo, atentar para a noção de “mundo”, na intenção de que esta não seja compreendida
como “unidade”. Quando nos referimos ao mundo, apenas por convenção e sob a determinação da
gramática o exprimimos com o artigo definido “o”, como se houvesse o mundo e como se nele
esgotassem-se todas as possibilidades de mundos, vivências e perspectivas diversas das que nos
referimos. Ainda que partamos dessa redução de mundo como apenas o que nos é dado a perceber, o que
há é uma multiplicidade de mundos, visto que há uma multiplicidade de vontades e, portanto, de ópticas.
Na interpretação-valoração, o homem traz consigo essas vontades, essas ópticas e esses mundos, mas a
partir de seu modo perspectivo. Diz Müller-Lauter (1997, p. 147): “O homem carrega em si o múltiplo
que ele interpreta. E ele não poderia tê-lo acolhido em si, não poderia ser o interpretante que ele é, se o
próprio acolhido não fosse da essência do interpretar.” A relação entre “acolhido” e “intérprete” quer
exprimir “mundo” e “homem”. Isso, para dizer de outro modo, evoca a multiplicidade que habita no
interpretar. Na medida em que não ocorre de maneira isolada, o interpretar exprime uma exposição dos
processos nos quais o intérprete se encontra imerso.
55
Tradução da Editora Vozes (de Márcia Sá Cavalcante Schuback), levemente alterada.
68
mostra com sentido. Mas as percepções acerca de um “mesmo” fenômeno são diversas,
de modo que há também a possibilidade de o sentido, ou seja, o significado do objeto da
percepção, ser outro. Nesse caso, o próprio objeto ou fenômeno da percepção torna-se
“outro”, pois, enquanto o que chega à percepção já com um sentido, o fenômeno só se
determina dessa maneira visto a partir de um ponto óptico – o que nos leva ao
entendimento de que, na medida em que sua aparição está relacionada a outra óptica, ele
mesmo se determina de outra forma, com outro significado.
Poder-se-ia objetar que a aparição fenomênica é indubitável, e que apenas as
percepções referentes à aparição é que são distintas. Mas na medida em que a aparição
se mostra de formas distintas, ela própria pode caracterizar uma distinção. Entretanto, o
homem não pode ter acesso aos diversos modos de percepção com relação ao mundo, de
maneira que ele não pode perceber senão através de sua própria percepção: “Nós
podemos ver somente sob nossa perspectiva” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 137).
Assim, em qualquer âmbito que discutamos, sempre o homem estará em questão. O
“homem”, aqui, exprime “mundo”, ou seja, perspectiva de mundo, apropriação e
interpretação que se mostra para e no homem.
No âmbito da existência humana, em que medida poderíamos falar de um
fenômeno que não estivesse atrelado à percepção do homem? Quando o homem fala,
discursa, pensa um fenômeno, ele o faz porque está numa disposição de poder fazê-lo.
Esse poder-fazer caracteriza um poder a partir de um "ver", pois um mundo se abre
diante de seus próprios olhos como possibilidade para se realizar. Partindo desse ponto
de vista, a primeira pergunta se nos coloca novamente: o que pode ser tomado como
fenômeno já dado, se o que há não é “o” fenômeno, mas uma multiplicidade de
fenômenos que se mostra de acordo com os pontos ópticos possíveis? Quando
percebemos “um” fenômeno, não significa necessariamente que haja ali apenas um
fenômeno, no sentido quantitativo. O aspecto quantitativo é como nós percebemos (o
que também caracteriza uma capacidade nossa de sintetizar e organizar o mundo). Em
não havendo um fenômeno ao qual possamos nos referir como único, separado de
outros demais, não pode haver nada dado, nem mesmo uma aparição ausente de valor.
Aliás, quando nos voltamos para dizer que há um fenômeno dado, será que aí já não
haveria valoração? – aquela que se volta para identificar um fenômeno como dado da
certeza sensível? A certeza já parte de uma valoração, de uma interpretação de mundo
que pretende dominá-lo a partir de sua óptica. E assim sendo, como poderia haver
certeza referente a uma aparição fenomênica, se ela não se pautasse em um modo
69
constituído por nós de perceber o mundo? Essas questões devem nos levar a uma
análise do aforismo 114 de A gaia Ciência, onde se lê:
partir da moral: “Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos
fenômenos...” (NIETZSCHE, 2005, p. 66). Visto que não há nenhum fenômeno
essencialmente moral, “Tudo é fundamentalmente interpretação e não há
concomitantemente nada dado para além de cada empreendimento de uma determinada
interpretação.” (CASANOVA, 2001, p. 31). O mundo sem seu aparecer apenas se
mostra enquanto interpretação. “Tudo” seria interpretação à medida que aquilo que
vivenciamos e que não vivenciamos somente pode ser pensado mediante interpretação.
A moral, sendo interpretação, caracteriza a atividade própria do homem: o
encontrar-se no mundo sempre impelido por vontade de poder, isto é, vontade com
vistas à criação. Enquanto criação que exprime a atividade própria do homem, a moral
não é um atributo que se reduz à sua capacidade. Essa capacidade também existe, mas
ela advém da não-capacidade, isto é, de uma espécie de indiferença da natureza em seu
irromper56. Essa “indiferença” exprime o real sem seu movimento como vontade de
poder, pois vontade almeja, antes de qualquer coisa, intensificar poder. O que surge
desse intensificar está a serviço do poder enquanto meio para expandir ainda mais
poder. Disso advém a compreensão de que os fenômenos não são essencialmente
morais, pois tais fenômenos são vontades de poder, movimento que visa, antes de tudo,
se expor em sua gratuidade.
A interpretação, contudo, ocorre simultaneamente a esse irromper das vontades.
Poder-se-ia dizer, então, que “há e não há fenômeno moral”. Por quê? Porque enquanto
objeto da percepção, o fenômeno só nos chega à tona por meio de moral e interpretação,
ou seja, o fenômeno só é percebido enquanto fenômeno moral. Contudo, ele não pode
ser reduzido à moral, visto que vontades de poder interpretam perspectivisticamente – o
que nos leva ao entendimento de que há morais, isto é, perspectivas plurais. Logo, na
medida em que um fenômeno não se reduz a uma moral, compreendemos que em seu
irromper originário não é uma moral que o determina. Se assim o fosse, não haveria a
possibilidade de outras interpretações, outros pontos de vista referentes à sua aparição.
Mas sua aparição é perspectivista e varia, assim, de acordo com as disposições distintas,
isto é, as constituições fisiológicas relativas às diversas vontades. Além disso, o mundo,
na condição de ser vontade de poder, diz respeito a uma constante alteração, a um
empenho para intensificar poder e, com isso, se atualizar, se transformar, dar vazão ao
56
“...a natureza se mostra como é, em toda a sua magnificência pródiga e indiferente” (NIETZSCHE,
2005, p. 77).
71
O que significa essa tirania contra a “natureza” e a “razão”? O uso das aspas
quer chamar a atenção para o fato de que tanto a “natureza” como a “razão” não podem
ser concebidas como em si e por si. A natureza, assim como a razão, é inesgotável. Se a
natureza é fluxo incessante, a razão que provém desse fluxo também o é. Tiranizar a
“natureza” e a “razão” consiste em, a partir da própria natureza e da razão, fazer com
57
A filosofia de Nietzsche, dessa forma, enquanto proposta de uma filosofia do perspectivismo, se
distancia da metafísica sobretudo pelo caráter de reconhecimento do saber filosófico em seu modo
perspectivo. A esse respeito, Müller-Lauter (1997, p. 132) diz que “O próprio saber da perspectividade
não deve, porém, ser ‘esquecido’.” Esse exercício de reconhecimento cabe também aos “futuros
filósofos” que Nietzsche anunciara. A interpretação de mundo advinda desses filósofos “tem de explicar a
efetividade em sua totalidade, assim como em suas particularizações, para não permanecer aquém das
explicações globais já dadas e, por isso, submeter-se a elas. Ela tem de desmascarar as outras explicações
do mundo como interpretações, que só podem se mal-entender a si mesmas, porque elas ou não se
compreendem, absolutamente, como interpretações, ou pelo menos não entreveem a essência do
interpretar.” (MÜLLER-LAUTER, 1997, 132).
72
que outra dimensão de ambas venha à presença. Essa outra dimensão exprime um
conflito e, com isso, faz-nos perceber a tensão originária que é o mundo, mundo este
que só se realiza nessa tensão, pois é a partir da própria tensão que se torna possível
duas dimensões, duas forças que são, na verdade, uma mesma em sua diferença. A
tirania contra a natureza constitui, assim, um paradoxo, pois ela não é outra coisa senão
natureza: “De um lado, a moral impõe certas formas à natureza, sendo para com ela uma
tirania, na qual a natureza está limitada apenas a uma de suas possibilidades. De outro
lado, esse traço tirânico aparece como a característica própria da natureza, algo natural”
(TONGEREN, 2012, p. 118). Originariamente, o que há é um conflito de forças.
Todavia, o homem, porque não resiste a esse conflito, tenta se conservar através de uma
força que pretende eliminar o conflito e criar uma “oposição” ao mesmo58. A oposição
constitui uma tentativa de eliminação das possibilidades da natureza, visto que
estabelece um valor tomado como fixo e estático.
Ainda há a questão referente à “qualidade” e à “quantidade”. Do modo como
estamos habituados a perceber as coisas, e partindo do ponto de vista de que essa
percepção é uma “herança”, ou seja, que nós “aprendemos” a perceber de um modo
determinado, entendemos que mesmo a quantidade “um” se mostra como uma
interpretação possível de mundo. O fenômeno que nos chega à percepção pode ser mais
de “um” e, no entanto, o percebemos enquanto um fenômeno. Tendo em vista que todas
as coisas estão interligadas umas às outras, quando designamos um fenômeno em
termos de quantidade, o fazemos perspectivamente, isto é, a partir de um ponto óptico
(uma moral, como vimos). Todo fenômeno é múltiplo em seu mostrar-se, pois é
indissociável de outros demais que estão interligados. É este o sentido da propositura de
Sexto Empírico (1996, p. 117) quando diz que “nenhum dos objetos externos nos afeta
por si mesmo, mas sempre em união com algo a mais”. Disso decorre que podemos, em
um determinado sentido, dizer o objeto que nos afeta em sua multiplicidade, “mas não
poderemos afirmar qual é o objeto externo em sua puridade.” (EMPÍRICO, 1996, p.
117). A questão da quantidade se desfaz, dessa forma.
Resta-nos ainda a “qualidade” da aparição fenomênica. Essa qualidade diz
respeito ao todo, à multiplicidade de acontecimentos interligados que estão inseridos em
uma dinâmica incessante do devir. Uma vez que tudo se transforma a todo instante, o
58
Essa “oposição” diz respeito a uma oposição de valores que, por sua vez, faz-se presente na história da
civilização ocidental e, por conseguinte, na tradição filosófica. Por isso, diz Nietzsche (2005, p. 10): “A
crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição de valores.”
73
59
Tanto percepção quanto objeto da percepção indicam um mesmo processo: percepção só é percepção
de. Ambos exprimem mundo em movimento constante. Se o mundo se consuma em movimento que traz
a todo instante a diferença, a mutabilidade e o novo, compreendemos que assim como o objeto da
percepção vem a mudar, também a percepção se encontra nesse processo, pois se manifesta de acordo
com o lugar onde está situada. Mas não há “lugar” algum, precisamente porque o devir traz consigo o
movimento e, logo, o deslocamento. Entretanto, de acordo com uma determina maneira de avaliar o
mundo, o homem se agarra à ideia de que a percepção, quando aparentemente é referente a um mesmo
objeto, não se altera.
60
Habermas (2002, p. 26) diz que “o princípio da subjetividade determina as manifestações da cultura
moderna”. Isto significa, para falar de modo preciso, que “Os conceitos morais dos tempos modernos são
talhados para reconhecer a liberdade subjetiva dos indivíduos” (HABERMAS, 2002, p. 27).
74
61
Em sua obra Meditações metafísicas, Descartes estabelece uma cisão entre corpo e mente, chegando à
conclusão de que as coisas do espírito (mente, pensamento) são mais fáceis de se conhecer do que as
coisas do corpo: “Não há nada que me seja mais fácil de conhecer do que meu espírito” (DESCARTES,
2000, p. 54-55). Essa conclusão, por sua vez, deriva da primeira certeza de seu método, a saber, a de que
“Eu sou, eu existo”, certeza esta que parte da concepção de que o “eu” é independente e autônomo em
relação ao seu próprio corpo e ao mundo, estes podendo ser meras ficções do espírito.
75
O “pensar” acerca de algo, uma vez que é concebido mediante a ideia de que há
uma coisa pensante que determina a operação do pensamento, se mostra como uma falsa
observação do processo mesmo que ocorre: 1) o pensamento não se dá de forma isolada,
independente e livre do mundo que o impele a brotar; 2) é apenas através da
interpretação de uma falsa causalidade que se pode fazer referência a um acontecimento
que independe dos outros demais; 3) dessa forma, tanto o fazer no que se refere à
concepção da subjetividade para exprimir o pensar, como o que é causa desse fazer (o
sujeito) são ficções advindas de um olhar falseador do mundo.
No tocante a essa falsa percepção de mundo, encontra-se aí uma busca pelo
fenomenalismo em um lugar que não o seu lugar próprio. Ao invés de se buscar indagar
as condições de existência partindo de um mundo no qual se esteja inserido como
partícipe, isto é, como parte de um processo inacabado de um devir cujo fim último é
sempre poder mais, busca-se, ao contrário, sustentar uma “interioridade” que tenta
cessar essa dinâmica conflituosa que é estar no mundo a intensificar suas forças. A
interpretação da causalidade por meio da ideia de interioridade circunscreve a essência
do homem, pois além de pressupor que ele seja senhor de suas próprias ações, implica
em um esquecimento da dinâmica do mundo, da fisiologia originária que possibilita
interpretação. Visto que essa condição originária está presente em todo acontecer, a
própria interpretação do homem como sujeito, como eu, como unidade subjetiva interior
é proveniente não do homem, mas do elemento originário que o constitui. Assim, essa
vontade de individualidade é uma hýbris, uma luta contra si próprio na qual o “próprio”
se dilui na multiplicidade dos acontecimentos. O que há, então, é apenas uma ilusão de
interioridade, individualidade e causalidade. Isso certamente nos leva à compreensão de
que o homem, ao falsear a si mesmo, falseia também o mundo. Essa relação entre
causalidade, homem e mundo pode ser verificada na seguinte passagem:
A moral da utilidade quer fazer da exceção relativa a uma espécie a sua regra
para se conservar. De fato, o que se pretende com esse tipo de moral não é garantir a
preservação de apenas um tipo-homem. Sua maneira de avaliar a vida, por ser unilateral,
reduz todas os tipos a somente um. Embora se depare no meio de seu caminho com a
diferença, esta é atropelada por uma pulsão fisiológica que pretende sua aniquilação. A
luta e o impulso para se manter vivo corresponde aqui a uma tentativa de transformar o
outro em si mesmo, uma vez que a intenção é eliminar a diferença.
É por esse motivo que Nietzsche compreenderá o homem virtuoso, aquele que
exerce a bondade, como um tirano62. Sua tirania não apenas diz respeito à natureza, mas
também a outros tipos de homem que, por serem diferentes, partem de outras
disposições fisiológicas. A tirania cometida pelo “homem bom” não admite outros
modos de interpretar o mundo. Assim, o que na verdade deveria ser um meio através do
qual uma espécie adquiriria poder e se conservaria, é visto como fim e como regra
segunda a qual todas as espécies devem se submeter. Esse empenho tirânico se tornou o
fio condutor da moralidade ocidental:
62
(NIETZSCHE, 2008, 354)
80
esse desempenho criador, tanto da natureza como um todo quanto do nobre, que o
ressentimento se volta e, a partir disso, ocorre criação de valores. Por esse motivo, seu
ato criador condiz com um dizer “Não” a um “fora”: à medida que se opõe ao nobre
para poder afirmar sua moral, esta é essencialmente “reação”, e não “ação”; ela se gera,
por conseguinte, a partir de um “outro”. Porquanto essa reação concerne aos valores
judaico-cristãos, entendemos por que Nietzsche menciona que somente através de uma
“vingança imaginária” obtém-se uma “reparação”: posto que os valores estabelecidos
como normas coincidem aqui com os preceitos bíblicos do Novo Testamento, a
vingança do escravo não pode ser propriamente efetivada – ela é deixada para uma
instância superior, a saber, o “juízo final”, Deus.
Na medida em que refletimos acerca dessa criação de valores nobre e escrava,
devemos analisar o modo a partir do qual a moral escrava, que se estabelece como
predominante, adquire terreno e se expande. Sua expansão advém da forma como se
impõe e que implicações gera – o que nos leva a remeter à oposição de valores firmada
por essa moral. A avaliação escrava relativa à totalidade da vida e ao nobre exprime
uma reação que despreza e abomina. Com isso, a vida e a maneira nobre de viver são
avaliadas como más; mais ainda, como “más em si” e que devem ser combatidas.
Consequentemente, seu próprio modo de avaliar é concebido como em si mesmo
“bom”. É que o escravo toma para si “‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito
básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele
mesmo!...” (NIETZSCHE, 2009, § 10, p. 28). Tendo em vista que o parâmetro segundo
o qual esse tipo-homem se utiliza é o de si mesmo, e como a realização de si mesmo
parte de um outro que coincide com a totalidade que lhe aflige, segue-se daí que o seu
realizar-se somente é possível à proporção que há um combate referente a tudo o que
lhe é contrário – uma tirania advinda de sua “bondade”.
acontecer, as relações multíplices que perpassam aquele que interpreta. No homem, ela
se caracteriza como criação de mundo, atribuição de valor às vivências63. Nesse sentido,
a vivência humana é e não pode deixar de ser isso. Por isso, diz Zaratustra: “sem a
avaliação, seria vazia a noz da existência” (NIETZSCHE, 1987, p. 75). A que remete
esse “vazio”? Ele contraria o que é aí designado como “avaliação”. Na medida em que
avaliação é a atividade por meio da qual o homem se constitui no mundo, este só lhe
aparece a partir daquela. Assim, os postulados metafísicos concebidos como em si e
como unidades a partir das quais se chega à concepção de “verdade” devem ser vistos
como perspectivas, isto é, avaliações que “essencializam” o mundo e não se reconhecem
sob essa determinação avaliativa: “A determinação da essência de tudo o que é essencial
remonta a ‘avaliações’. O essencial é concebido em vista de seu caráter valorativo, e
apenas assim se mostra essencial.” (HEIDEGGER, 2007, p. 419). Esse páthos
avaliador, que exprime a condição propriamente humana, também é encontrado na obra
Rei Épido, de Sófocles, momento em que o sacerdote diz a Édipo: “Se reinarás sobre
essa terra como agora a governas, governá-la povoada de homens é melhor do que
vazia. Pois nem torre, nem nave, nada são privados de homens que lá dentro vivam.”
(SÓFOCLES, 2015 p. 29-31). Aqui o sacerdote faz aparecer em sua fala o elemento
interpretativo no qual o homem está inserido no mundo. O mundo, privado de homens
para nele vivenciar e criá-lo conforme seus afetos e disposições interpretativas, não
pode vir à luz enquanto mundo, pois mundo exprime criação, e esta, por seu turno,
encontra-se relacionada à perspectividade daquele que cria. O criar ocorre por meio de
uma guerra, um conflito tal como a vida se nos mostra. O “vazio” ao qual faz menção
Zaratustra, e que também se encontra de maneira implícita na fala do sacerdote a Édipo,
conota a ausência dos valores humanos e ao mesmo tempo o conflito do mundo em
meio a essa ausência, isto é, ausência porque justamente conflito, pois este expressa
originariamente o acontecer inútil e gratuito. Porém, o acontecer no homem é sempre
um acontecer perspectivo, visto que um horizonte para ele sempre já se mostra a partir
de um valor. Goethe nos mostra essa atividade criadora por meio da significação do
poeta em relação à vida:
63
Aqui um questionamento pode ser válido, do ponto de vista conceitual: se interpretação é atribuição de
valor às vivências, seriam as vivências anteriores à intepretação, no sentido de que somente após viver o
homem interpreta o que viveu? A resposta seria que não, pois o viver é o próprio interpretar: ele já traz
consigo a percepção daquilo que é vivido; e como toda percepção diz respeito à interpretação, o que é
vivido é o que é o que é interpretado.
84
Mas não podemos nos deixar seduzir pelas palavras, pois assim como a violência
da natureza não é, em si mesma, nem boa nem má, também esse artifício de se voltar
contra a natureza não o é, pois ele é decorrente de um impulso da própria vida querendo
intensificar seu poder. O homem, no entanto, que caracteriza a figura predominante no
Ocidente, o tipo-homem que quer fazer de seu modo de avaliar o de todos os outros
tipos-homens, não vê na violência da natureza senão seu próprio olhar moral que, por
sua vez, imediatamente indica e atribui um valor “negativo” a tudo que contraria sua
óptica com respeito ao que deve ser o mundo. E como o mundo, por se constituir
através de vontades distintas, se mostra sempre em uma tensão, a perspectiva daquele
que o avalia como “mau” diz respeito à totalidade, pois o conflito está presente em
todos os âmbitos da vida.
encontra – sua condição natural de estar sempre desejando – tão logo ele obtém o
desejado, se acha novamente desejando64.
Mesmo que na moral cristã o desejo conduza a própria moral, há de se perceber
que se trata de um desejo restrito e que, por sua vez, luta para eliminar os desejos que
lhe são contrários. Essa maneira de conduzir a vida privilegia determinados desejos
concebidos como bons à medida que o que constrange e coincide com a ânsia por poder
mais referente à totalidade cega é desprezada e vista como uma calamidade a ser
combatida. É sob essa perspectiva que a propositura do estoico Cícero ressoa, ao dizer
que “Sem desejo, não há frustração: logo, é preferível não desejar.” (CÍCERO, 2015, p.
42). O que o filósofo toma aqui como “desejo” diz respeito às paixões e instintos mais
espontâneos do homem. Cícero parte de uma dicotomia metafísica, a saber, a de que o
pensamento é contrário aos instintos e que, portanto, detém uma superioridade sobre os
mesmos. Contudo, pensamento é também desejo, pois na medida em que com a palavra
desejo compreendemos vontade de poder, o pensar é uma consequência do desejar e
ansiar pelo poder65.
Para Nietzsche, as consequências desse modo de interpretar o mundo implicam
em uma barreira para o desenvolvimento do saber humano. Quando uma determinada
espécie passa a conduzir o curso de todas as outras, aí reside o perigo de um olhar-para-
o-mundo já condicionado e privado de outros olhares, outras perspectivas, outras
vivências que não são permitidas. As vivências e os saberes não podem ser reduzidos a
uma vivência e um saber, muito menos a uma forma de conhecimento acabada, como se
todas as formas de dizer o mundo tivessem se esgotado. Estando em conjunto, essas
naturezas, todas elas diferentes, tentam se igualar e “divinizam a interrupção do
trabalho, do combate, das paixões, da tensão, das oposições, da ‘realidade’, in summa...
64
De modo bastante semelhante a essa noção aqui exposta de “desejo” é a noção de “Eros” exposta por
Sócrates no Banquete. Eros (Ἔρως) é filho de Póros (Πόρος) e Pênia (Πενία), respectivamente:
abundância/riqueza e carência/pobreza. Eros não é nem somente carência, nem somente saciedade, mas
essencialmente ambos. O conflito entre esses dois polos exprime um movimento simultâneo e incessante,
pois o desejo referente ao que se deseja somente o é à medida que não se tem o desejado, isto é, à medida
que falta o que se deseja. Mas quando se obtém o desejado, este é ainda desejado com vistas ao futuro,
pois uma vez que o futuro é indeterminado, a carência nele já se mostra presente, pois o amor “tanto
floresce e vive, segundo se está senhor dos seus recursos, como morre para voltar à vida.” (PLATÃO,
2012, p. 72).
65
Podemos, contudo, estabelecer uma “diferença” entre pensar e desejar em termos de “grau”: o pensar,
tal como ocorre na atividade relativa aos raciocínios lógico, dialético ou retórico, nos mostra uma
diferença com respeito às atividades “mais” instintivas do organismo vivo, como, por exemplo, o temor
diante de um fenômeno como um furacão, ou um animal feroz correndo em nossa direção. Ao
estabelecermos essa diferença, queremos elucidar a atividade do pensamento como sendo também uma
atividade instintiva, pois parte de disposições fisiológicas que também estão presentes em outras
atividades, porém não ao modo do pensamento.
88
Sob o domínio do ideal que cinde e que estabelece oposição entre valores, bem e
mal são vistos como condutores do impulso de conservação. Na esfera da moral
ascética, o mal, como já vimos, está relacionado às forças mais violentas. Tais forças,
características de uma contrariedade ao ideal moral, são por este combatidas na intenção
de serem eliminadas para que a tensão venha cessar. Mas como o que é combatido diz
respeito à dinâmica originária da existência, trava-se, com isso, uma infindável luta
contra a vida que, paradoxalmente, é ao mesmo tempo meio a partir do qual se pode
conservá-la. Há uma contínua persistência na tentativa de eliminação dos impulsos
vitais e originários. Esses impulsos também são caracterizados por Nietzsche como
“egos”.
Não se trata, como é de se supor dentro da perspectiva cartesiana, de um ego
interior, substancializado e agente das ações. O conceito de ego coincide com o que
discorremos acima como anseio: uma vontade por intensificar cada vez mais o que
nunca se satisfaz, um retorno ao poder-mais de uma vontade sempre outra.
Considerando essa insatisfação da vontade que luta para se manter em vida, e também
não esquecendo de que a vontade que se manifesta em cada ser vivo traz nela mesma
uma distinção com relação aos outros seres, compreender-se-á que cada ser vivo, antes
de tudo, luta para manter a si mesmo enquanto “indivíduo” e pulsão que quer se
intensificar.66 Há aí, portanto, uma espécie de ”interesse” inconsciente com relação a
66
“Indivíduo” serve-nos aqui mais como um elemento linguístico do que para nos referirmos a uma
“unidade quantitativa”. Trata-se de um artifício da linguagem do qual, talvez, não possamos nos livrar.
Por exemplo, dizemos “o cão” ou “aquele cão” (com artigo definido no singular ou pronome
demonstrativo também no singular) para nos referirmos a um determinado animal que vemos, e aqui, por
força do hábito e do costume, percebemos “um cão”, no sentido mesmo da unidade-quantidade. A nossa
linguagem não alcança o múltiplo, pois este parece escapar à percepção pela sua própria natureza efêmera
e misteriosa.
89
cada vontade, interesse esse já proveniente de outras vontades que interagem entre si,
mas querendo dar vazão ao próprio egoísmo primordial. O egoísmo deve aqui ser
compreendido a partir do fenômeno fisiológico. Visto a partir da fisiologia, o egoísmo
diz respeito à perspectividade de cada vontade de poder em um anseio próprio para
aumentar seu poder. Nesse sentido, diz Nietzsche: “... busquei, em primeiro lugar,
provar que não poderia haver nada de outro senão egoísmo.”67. Contudo, na era
Moderna o egoísmo é combatido por via de uma oposição de valores. Seu valor oposto
é o “desinteresse” (Selbstlose) ou as ações não-egoístas (Unegoistischen).
Schopenhauer postulara também o egoísmo como força propulsora de todos os
seres. Para ele, “a motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal,
é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem-estar.” (SCHOPENHAUER,
2001, p. 120). Contudo, o juízo moral de sua filosofia combate o egoísmo como uma
força contrária à moralidade. Assim, o egoísmo é aqui visto como uma força má, e por
ser concebido dessa maneira, “o egoísmo é a primeira e a mais importante potência,
embora não seja a única, que a motivação moral tem de combater”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 124)68. Essa conotação do egoísmo como um fenômeno
mal e que deve ser combatido pressupõe que haja uma aposição entre egoísmo e
desinteresse. Contudo, para Nietzsche essa oposição não existe efetivamente. Uma vez
que o egoísmo corresponde à vontade de poder em sua condição originária, o
desinteresse também é uma forma de egoísmo. Podemos constatar isso no fragmento
373 de WM/VP: “o culto ao altruísmo é uma forma específica do egoísmo, que se
apresenta regularmente sob determinadas pressuposições fisiológicas.”69. Tais
pressuposições fisiológicas resultam em uma interpretação proveniente do próprio
egoísmo. Essa interpretação é a de que o egoísmo deve ser combatido. O egoísmo,
assim, no que se refere à interpretação das ações desinteressadas, atua dissimulando a si
mesmo enquanto tal, isto é, ele atua falsificando o interesse que lhe é próprio. Mas para
combater o egoísmo, tal combate não ocorre senão a partir e com vistas ao próprio
egoísmo, visto que “egoísmo”, aqui, quer dizer “vontade de poder”.
67
(WM/VP, 1964, § 362, p. 249). Tradução nossa.
68
Aqui vemos uma divergência radical com relação às concepções de “moral” na filosofia de ambos os
autores, pois na filosofia de Nietzsche a moral ganha uma conotação mais ampla, uma vez que se refere
às condições a partir das quais o homem percebe o mundo, tal como já vimos no aforismo 114 de A gaia
ciência: “Não existem vivências que não sejam morais, mesmo no âmbito da percepção sensível.”
(NIETZSCHE, 2012, p. 132).
69
Ibid., p. 252. Tradução nossa.
90
perceber e viver nesse todo. Tal é o direcionamento que o seguinte fragmento quer nos
indicar: “Egoísmo! Mas ainda ninguém perguntou: qual ego? Mas sim, cada um
equipara involuntariamente o ego a cada ego como iguais. Essas são as consequências
da teoria-escrava do sufrágio universal e da ‘igualdade’”71.
A consequência da ideia de igualdade, seja em que âmbito for, é que ela tenta
aniquilar o princípio básico das condições de manutenção das espécies. É precisamente
divido a uma diferença fisiológica que se torna possível atração e retração. Visto que
cada ser vivo se encontra numa incessante insatisfação, esta se direciona para o novo,
diferente e ainda não realizado. Cada vontade vem a se consumar na diferença, ainda
que essa consumação seja em uma tentativa de extinguir a diferença. Entretanto, tomar
o diferente como igual é algo que falseia a mudança e a diferenciação do que muda em
seu mover-se instantânea e constantemente. A pergunta pelo que é um ego (“was für ein
ego?”) nos surge como maneira de refletir acerca da singularidade de cada acontecer e
de cada força. Na medida em que ego quer dizer aqui condição fisiológica a partir da
qual cada ser vive, Nietzsche nos traz uma conotação diferente do termo: ego não diz
respeito nem a substrato ou coisa, nem a um impulso mau; ele é tão somente a
particularidade relativa a cada vontade. Por isso, a pergunta deve ressoar: Qual ego? A
própria pergunta nos conduz ao entendimento de que não há “o” ego, mas uma
pluralidade de egos que são, na verdade, vontades de poder.
71
Ibid., p. 249-50, § 364. Tradução nossa.
92
de que são pulsões que se querem dominante a partir de si mesmas. Ainda mais: esse
conflito não apenas se dá no âmbito do “si mesmo” frente ao “outro”, como também na
condição de ser um “si mesmo” enquanto plural. Isso ocorre porque, como já vimos,
não apenas o homem, como também todo ser que vive, não é “substrato”, isto é, não se
encontra no mundo enquanto substância estática, mas, ao contrário, coincide com
múltiplas forças “reunidas” em um ser72. Sob essa condição, cada ser participa do devir
e por este é conduzido em meio à mutabilidade das coisas. Assim, o que subentendemos
por “luta” coincide com esse fluxo através do qual vida se realiza. Realizar-se significa
expor-se. O que é exposto? As afecções são expostas segundo a percepção de cada
pulsão. As percepções, por seu turno, designam interpretação e valoração referente
àquilo que afeta, pois, como nos diz o fragmento 590 da obra WM/VP: “Unsere Werte
sind in die Dinge hineininterpretirt.”73 “Nossos valores são introduzidos nas coisas
interpretativamente.”.
Por um lado, os valores são introduzidos nas coisas; por outro, são as próprias
coisas, ao nos atravessarem, que nos possibilitam a atividade do interpretar. Em suma,
ambos (homem e coisa) não estão separados, visto que o mundo, tal como nos aparece,
é resultado tanto da percepção quanto do objeto da percepção. A percepção é percepção
de algo, ao passo que todo “algo” só vem à luz a partir de uma percepção que o
apreenda. Aqui, portanto, vigora uma inseparável relação “sujeito-objeto”, pois ambos
estão atados em uma tensão como fenômenos originários. Isso significa, por
conseguinte, que nem “sujeito” é aqui entendido como “substrato” (“coisa pensante”,
por exemplo), nem o “objeto” é entendido a partir de uma oposição ou separação em
relação ao sujeito que o apreende. No diálogo Teeteto, Sócrates mostra de que modo
sujeito e objeto só podem ser pensados “separados” em relação a algo; e, por estarem
sempre em uma relação com algo, não se poderia determinar nem um nem outro a partir
de uma unidade em si e por si:
72
Com a ressalva de que “um ser” é um modo como nos referimos a como se dá a percepção para nós.
73
Ibid., p. 410. Tradução nossa.
93
74
Até mesmo no âmbito estritamente da percepção humana, pode se tornar problemático tomar a
percepção como “a” percepção do conjunto “humanidade”. Um tal juízo tem a pretensão de abarcar todas
as percepções em termos genéricos. Em nossa forma habitual de nos referirmos às coisas, não há nada de
necessariamente problemático na generalização, uma vez que esta tem por objetivo também a
comunicação e interação em meio à diferença. Contudo, filosoficamente a questão se nos apresenta de
outra forma: se todo ser vivente se caracteriza pela sua peculiaridade no tangente à vontade de poder, e se
toda vontade traz consigo uma forma perspectiva de se manifestar no mundo, segue-se daí que cada
vontade tem sua própria maneira de perceber o mundo – o que nos leva à compreensão de que apenas por
convenção e através do artifício gramatical nos referimos à percepção no âmbito geral.
94
partir do qual o Cosmos se constitui, tal como consta em Hesíodo: “Bem no início,
Abismo nasceu” (HESÍODO, 2013, p. 39, linha 116).
Se tomarmos Khaos tanto como o que origina como o que é vazio e abismo,
perceberemos um paradoxo: como o que é vazio pode originar? O vazio remete ao sem
forma, porque enquanto abismo, é também indeterminado. Essa indeterminação é
referente à efemeridade de tudo o que há, pois à medida que nada está completamente
acabado e previamente constituído, segue-se daí que sua “essência” está por se
constituir, isto é, encontra-se sempre sob a condição de ser um nada, um vazio. Mas é a
partir desse vazio que surge a possibilidade da criação:
Por isso, dele (Khaos) surge não apenas o que é obscuro e sombrio (Escuridão e
Noite), mas também o que é claro e cintilante (Eter e Dia), ou seja, traz consigo o
conflito e a harmonia, pois um depende do outro para irromper e se sobrepor. Khaos,
portanto, sendo força geradora, é o que se faz presente em tudo o que há, e como o que
há é um movimento de forças em conflito/harmonia simultâneos, esse movimento é
essencialmente vazio, pois ainda que do vazio algo brote para a ele se antepor, aquilo
que brota traz, em seu gerar-se, a origem. Isso significa, dito de outro modo: o que se
gera a partir do Khaos é um mundo de vivências e valores a partir dos quais são
possíveis as relações de sentido; porém, as coisas, por estarem continuamente se
transformando, participam e são também a origem, a saber, abismo, vazio não-
substancial e não-coisificado, precisamente pela sua própria natureza mutável. Essa
mutabilidade de tudo o que há é ofuscada frente à perspectiva que vê o mundo e as
coisas como estáveis – o que está atrelado ao ato de interpretar. É próprio da condição
geral da existência humana não perceber a efemeridade presente a todo instante em cada
mínima parte que lhe chega à percepção.
Para Nietzsche, esse caráter abismal no qual o homem se encontra também
exprime o que há de mais originário, pois é o que vem a gerar valorações e, com isso,
criações de mundo. O que na metafísica é concebido como fundamento em si mesmo,
para Nietzsche é consequência e resultado, pois há “um abismo atrás de cada chão, cada
75
(HESÍODO, 2013, p. 39, linhas 123-124)
95
76
Discurso Antes que o sol desponte. NIETZSCHE, 1987, p. 172.
77
Discurso Da visão e do enigma. NIETZSCHE, 1987, p. 165.
96
mundo é perceber a “si mesmo”, ou seja, é porque os órgãos dos sentidos – que, por sua
vez, se dispõem de modos distintos em cada ser vivente – captam o que lhes afeta, que
um horizonte se abre enquanto interpretação. O que os sentidos captam geralmente é
uma “unidade” em meio a uma multiplicidade que foge à percepção; captam, então,
uma aparência lógica do conflito. Vejamos o que Nietzsche diz acerca dessa aparência
lógica:
78
(EURÍPIDES, 2010, p. 95)
79
A palavra “lógica”, especificamente aqui, remete à lógica tradicional, estabelecida como valor apodítico
no decorrer da história da filosofia, mas não somente no âmbito da filosofia, como também no âmbito da
cultura do Ocidente. Assim, vale a pena ressaltar que se trata de uma lógica determinada. Isso significa,
para falar de outro modo, que há outros tipos de lógica. A própria filosofia de Nietzsche, por exemplo,
pode ser entendida a partir de uma determinada lógica, se considerarmos o caráter crítico de seu conteúdo
filosófico. Nisso, subentende-se que quando Nietzsche crítica “lógica”, “razão”, “conhecimento”, etc., se
trata de conceitos cravados na tradição filosófica, sobretudo por serem concebidos como universais e
como em si. Sua obra Assim falou Zaratustra pode ser tomada como um exemplo desse antagonismo, já
que lá encontramos os conceitos de “razão”, “espírito”, etc. se referindo à doutrina de Zaratustra. As
palavras, assim, devem ser lidas no sentido de serem reinterpretadas, estando de acordo com a proposta da
filosofia de Nietzsche.
98
das quais as próprias avaliações vêm à luz: “Por trás de toda lógica e de sua aparente
soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências
fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida.” (NIETZSCHE,
2005, § 3, p. 11). O elemento valorativo está associado às exigências fisiológicas; estas,
implicam em preservação. A preservação, porém, deve ser analisada do ponto de vista
de uma “determinada espécie de vida”, pois a “lógica” diz respeito a uma exigência
fisiológica de uma espécie que necessita desse tipo de valor para se manter viva. Por
dizer respeito a um valor relativo a uma espécie, a lógica é, assim, uma interpretação de
mundo que não encerra as possibilidades de interpretá-lo. No domínio da distinção
referente à espécie, teríamos outra forma de vida, outras exigências fisiológicas e, por
conseguinte, outras avaliações80. A lógica à qual Nietzsche põe em questão coincide,
desse modo, a uma vontade de verdade dissimulada, isto é, que não se reconhece
enquanto vontade, logo, também não reconhece enquanto vontade que valora e
interpreta. É esse não reconhecimento, porém, que faz com que o mundo apareça sob a
ótica de uma unidade.
A vontade de verdade, uma vez que caracteriza uma vontade e um anseio por
unidade, por organização e por finalidade para a vida, ao mesmo tempo é vingança
contra o tempo enquanto transitoriedade e contra a vida em seu eterno movimento de
criar-destruir. A verdade, nesse sentido, significa uma instância que é oposta a toda
multiplicidade conflituosa, o que caracteriza uma impotência da vontade: “Vontade de
verdade – como impotência da vontade de criar.” (NIETZSCHE, 2008, p. 302). Voltar-
se contra o tempo por enxergar nele apenas destruição implica em não estar na condição
de poder criar. A criação exprime justamente a continuidade do processo, do devir. A
oposição ao devir advém de uma vontade impotente, e essa impotência coincide com a
diminuição de força relativa à vontade de poder.
Vimos que a distinção entre valores é concebida por Nietzsche mediante uma
fisiologia do poder e que “poder”, nesse sentido, se manifesta de modo distinto em cada
80
Vale salientar que quando mencionamos uma espécie distinta no tocante às exigências fisiológicas e
valorativas, queremos nos distanciar da forma de vida predominante do homem ocidental. Nesse caso,
podemos imaginar o exemplo de outra cultura, totalmente distinta, na qual os valores que surgem dela são
totalmente outros, radicalmente distantes comparados aos do Ocidente.
99
vivente, pois cada ser vivo, imerso em uma totalidade que se encontra em luta
constante, diz respeito a uma vontade sempre insatisfeita. Insatisfação, sendo o que
move, o faz para poder mais, para se consumar no e através do poder. Partindo dessa
compreensão, percebemos que o conflito relativo a forças distintas é precisamente o que
gera insatisfação e, por conseguinte, se mostra como necessário para a preservação da
espécie, na medida em que é condição para criar parâmetros entre valores distintos.
Contudo, o homem que idealiza um mundo no qual não haja o conflito nega tudo que
lhe é contrário. Essa negação é, assim, um movimento, um processo, isto é, ela coincide
com o próprio modo de se conservar do homem fraco.
Como vida é essencialmente tensão que não visa utilidade alguma, o valor que o
homem fraco a atribui é negativo, difamador e falsificador no mais elevado grau. O grau
de desprezo pela vida é relativo ao grau de poder que já não se tem para continuar na
tensão. Com isso, o homem tenta reverter não apenas sua constituição fisiológica, mas
também a da vida como um todo. Ao se voltar contra o que lhe aflige como se não
devesse ser dessa forma, a que se deve essa rebeldia? Nietzsche a chama de
“esgotamento fisiológico” (physiologischen Erschöpfung), uma espécie de cansaço da
vida, um fatigar-se, em virtude de um enfraquecimento, do que é sempre possibilidade
iminente para irromper.
Visto que o fisiológico referente à totalidade não há de cansar, por se realizar no
poder-mais em meio à guerra, uma parte é impelida contra a totalidade por já não
suportar mais o peso, isto é, por ter esgotado seu poder. Aqui a vontade de poder impõe
resistências à sua própria condição, pois não se lança em direção àquele81 poder que se
constitui a partir e em uma luta primordial. A luta, ao invés de ser um meio para
manutenção e incremento de poder, é vista aqui como uma barreira para a continuação
da vida. Cultiva-se, com isso, a diminuição do poder, uma vez que a máxima exaustão
não permite afirmá-lo.
Segundo Nietzsche, a necessidade de outro mundo postulado pelas religiões e
pelas filosofias é proveniente desse esgotamento fisiológico. É devido a um cansaço,
uma impotência e, portanto, uma incapacidade de afirmar este mundo tal como ele é,
que se torna necessário reagir com vistas a afirmar outro mundo no qual prevaleça a paz
e o estado de esgotamento como condição de preservação. Entende-se, nesse caso, que
81
O uso do pronome demonstrativo “àquele” faz alusão ao conceito de vontade de poder já exposto, isto
é, ao caráter geral do mundo dizendo respeito a um movimento para poder. Assim, subentende-se que
quando vontade impõe resistência à possibilidade para poder mais em seu modo espontâneo, trata-se de
outro manifestar-se, de uma constituição fisiológica diversa da que se nos mostra em sua totalidade.
100
esse tipo de preservação não é o que origina o esgotamento, mas, ao contrário, este é o
que condiciona o homem, enquanto páthos afetivo, a assim se preservar: “Fizeram-se o
sono e o sonho, a sombra, a noite82 e o sobressalto natural responsáveis pelo surgimento
de segundos mundos: devia-se sobretudo considerar os sintomas do esgotamento
fisiológico, relacionados a isso.” (NIETZSCHE, 2008, § 230, p. 138).
As imagens de “sono” e “sonho” utilizadas por Nietzsche são para designar uma
oposição ao estado de vigor da vontade, que por estar sempre em direção ao poder, se
encontra em “vigília”, isto é, em movimento para retornar. Tendo em vista que o vigor e
o despertar da vida se dá afirmando-a, sono e sonho devem aqui ser interpretados como
forças negadoras. Do mesmo modo, “sombra” e “noite” exprimem escuridão,
ofuscamento da vida que ao mesmo tempo evoca outra vida, além desta e valorada
como superior.
Questionemos essa “superioridade” de um além-vida da seguinte maneira: Se, ao
postular esse valor superior, faz-se necessário negar e falsificar a vida, a afirmação de
outro mundo não seria uma vontade de morte? A morte, concebido sob tal ótica,
coincide com negação do que propriamente é vida em sua origem. Quando ocorre um
esgotamento fisiológico de um tipo-homem, é porque sua vontade coincide com uma
vontade de morte. É isso o que nos faz refletir tal fala de Nietzsche, em seu fragmento
231 da obra WM/VP:
82
Curiosamente, na obra Teogonia, de Hesíodo, encontramos a seguinte passagem: “E Noite pariu a
medonha Sina, Perdição negra e Morte, e pariu Sono, e pariu a tribo de Sonhos, sem se deitar com um
deus, pariu a escura Noite. (HESÍODO, 2013, vs. 211-213, p. 45). Sono é narrado aqui como irmão da
Morte e dos Sonhos, e ambos como filhos da Noite. A Noite se caracteriza pelo que há de mais obscuro e
sombrio. Sono e Sonho brotam da Noite porque no anoitecer se dá cansaço, enfraquecimento. Tendo em
vista que no caso da cultura grega antiga tais palavras não dizem respeito a meras “representações”, mas
sobretudo à aparição da physis que possibilita o lógos como discurso que a exprime, podemos
compreender que também se trata de uma fisiologia (fazendo alusão à origem da palavra [physis + lógos]
do Cosmos, no sentido de narrar modos a partir dos quais se nos aparece a constituição da natureza como
uma multiplicidade de forças interligadas que brotam umas das outras.
83
Ibid., p. 164. Tradução nossa.
101
84
Capítulo IV: “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula”.
102
vivo. Afirmar a fraqueza como fortaleza e, sobretudo, como boa: é isso o que
caracteriza negação, empobrecimento e a apequenamento da vida. Uma tal espécie de
homem torna-se escrava dos valores ideais postulados como superiores. O resultado
disso é que “Quando o esgotado apresenta-se com os gestos da suprema atividade e
energia, quando a degeneração reclama como condição em um excesso da descarga
espiritual ou nervosa, então ele se confunde com o afortunado...” (NIETZSCHE, 2008,
48, p. 48). Confundir-se não é outra coisa senão reagir na intenção de valorar – ao
mesmo grau com que o afortunado valora o devir – seus próprios ideais que difamam a
vida.
Questionar-se-ia, aqui neste ponto, da seguinte maneira: vontade, sendo instável
em sua luta constante, também não haveria de se manifestar debilitada mesmo no
homem forte, o que seria o caso do nobre? Para falar de outra forma: se o que
caracteriza a dinâmica própria do mundo é instabilidade e oscilação de vontades, em
que medida a espécie afirmadora, em meio à tensão, não oscilaria rumo ao
esgotamento?
Uma tal pergunta deve ser respondida em termos de grau de forças e de
processos distintos de vontades, obviamente equiparando afirmação e negação. Há o
que Nietzsche chama de dois tipos de “calma” (Ruhe) relacionada às vontades saudáveis
e doentes. Por essa razão ele suscita um alerta para que não se confunda ambas: “A
confusão de dois estados completamente diferentes: por exemplo, a calma da força, que
é essencialmente contenção da reação, o tipo inabalável dos deuses... e a calma do
esgotamento, o estado hirto até a anestesia.” (NIETZSCHE, 2008, 47, p. 47). A calma
da força é uma calma que anseia por poder, portanto, ela não se estabiliza e se conforma
nesse estado, daí a alusão ao “tipo inabalável dos deuses”: os deuses estão sempre em
vigor, pois se mostram como physis que brota em uma guerra constante entre forças.
Nesse caso, quando há uma retração das forças, trata-se de uma retração que atrai e
chama pelo vigor e pelo intensificar do poder. Já a calma do esgotamento é um estado
no qual vontade quer se realizar na debilidade, no cansaço. Esse tipo de calma não é
meio para o vigor, mas fim último a que se quer alcançar com vistas a eliminar a luta
que pede pelo intensificar do poder; um estado de anestesia que quer permanecer
enquanto tal.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
originária do mundo. Como isso se torna possível? No esgotamento que, por sua vez,
advém de uma variação fisiológica referente a vontades enfraquecidas, o homem
interpreta o mundo a partir de cisão, oposição, dualismo. Esse artifício criador serve
como instrumento do poder: na medida em que tais vontades já não suportam mais
permanecer no conflito, elas impõem resistência a partir de um valor “suprassensível”
que determine o valor do mundo “sensível”. Aqui, uma interpretação lógico-metafísica
de mundo vigora enquanto “unidade” que tenta eliminar “multiplicidade”.
O problema, porém, não se refere propriamente à “lógica”, mas tão somente ao
fato de que a lógica, que em sua origem, é meio para intensificar poder – valor –, torna-
se elemento regulativo da própria vida. Mas não somente isso: as vontades que são
assim conduzidas impõem às demais vontades sua própria perspectiva, como tentativa
de eliminar a diferença, isto é, o conflito entre vontades. Eliminar o conflito significa,
neste caso, fazer com que outras interpretações de mundo não vigorem. Tal é o que
ocorreu, na concepção de Nietzsche, com a história do pensamento ocidental. O homem,
por estar na maioria das vezes conduzido por ideias e perspectivas cristalizadas, não se
deu conta de sua própria natureza enquanto dinâmica de criação e interpretação que traz
à luz o inaugural, o novo. Não continua, porém, a ser assim? O homem despertou de seu
sono e de seu esgotamento, ou continua a intensificar sua natureza fisiologicamente
decadente e fraca? O nosso mundo ainda não é conduzido sob as determinações dos
valores lógico-metafísicos?
As próprias questões que aqui se impuseram mostram a necessidade de
refletirmos acerca do tema desta pesquisa. “Refletir” no sentido originário da palavra:
fazer com que algo retroceda desviando-se da direção inicial. O que deve retroceder? E
de qual direção deve-se desviar? Deve-se retroceder ao que já foi pensado e, ao fazê-lo,
redirecionar o pensamento, deslocá-lo para o presente, de modo a inaugurar uma
interpretação. Toda interpretação, porém, advém de outra interpretação, tal como nos
ensina Platão no Íon. Trata-se, assim, de dizer o que não foi dito a partir do dito.
Contudo, “No dito, a fala se consuma, mas não acaba.” (HEIDEGGER 2003, p.11-12).
Consumar diz respeito a trazer ao sumo, à clareira, à luz. Pela própria natureza do real
se efetivar por meio de um jogo entre luz e trevas, criação e destruição, quando
exercemos a interpretação, esta não se esgota, não acaba, visto que a sua proveniência é
inesgotável.
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REFERÊNCIAS:
HESÍODO. Teogonia. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Editora Hedra, 2013.
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KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Marujão. 5ª edição. Lisboa: Editora Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2012.
______. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2005.
______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de
Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
______. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2009.
______. Der Wille zur Macht. Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1964.
______. Íon. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
SÓFOCLES. Rei Édipo. Tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira. São Paulo: Editora
Odysseus, 2015.
VATTIMO, Gianni. Diálogo com Nietzsche. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.