O Que São Id, Ego e Superego
O Que São Id, Ego e Superego
O Que São Id, Ego e Superego
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens:
Getty Images
A SEGUNDA TÓPICA
Você já viu neste dossiê: Freud usou o termo tópica para falar das
divisões do aparelho psíquico, e fez isso duas vezes. A primeira, que
surgiu na virada do século 19 para o 20, divide esse aparelho em
consciente, pré-consciente e inconsciente. Já a segunda tópica
apresenta um novo trio formador da nossa personalidade: id, ego e
superego. Essa divisão começa a ser apresentada em Além do Princípio
do Prazer (1920), mas ganha corpo mesmo três anos depois, no ensaio O
Ego e o Id.
EGO
Enquanto o id é guiado pelo princípio do prazer, o ego se baseia no
princípio da realidade. É uma espécie de mediador entre a
impulsividade do id e as condições externas, fazendo a interação entre a
sua personalidade e as leis do seu país, a cultura do seu tempo, as regras
de etiqueta e as normas do bom convívio. Dependendo do livro de Freud
que você encontrar, o ego pode ser traduzido por “Eu”, o que dá bem a
ideia de que essa instância, adequando as suas vontades ao mundo em
volta, acaba sendo quem você é de fato aos olhos das outras pessoas. E
essa parte da nossa personalidade não existiria sem o id – é dele que o
ego tira suas forças.
Nessa condução do cavalo selvagem que existe dentro de cada um, o ego
pesa os custos e benefícios dos desejos do id antes de liberar este ou
aquele comportamento. E ele também possui um agudo senso de
timing. Em diversas situações, vai acabar permitindo a gratificação
exigida pelo id, mas só na hora certa. Por exemplo: um rapaz está no
meio do público de um show de rock, dançando de pé no setor pista, e
dá vontade de fazer xixi. Só que o banheiro mais próximo fica a 10
minutos de muito empurrão em meio a uma massa de fãs do Guns
N’Roses. Isso gera uma tensão que o id vai querer eliminar na hora –
“abre a braguilha e manda brasa aqui mesmo”. É então que o princípio
da realidade faz o ego disparar um pensamento mais senhor da razão:
“calma, se fizer isso você vai revoltar toda essa galera, além de molhar a
própria calça; o show já está no bis, a vontade ainda é administrável, dá
para esperar numa boa o Axl parar de cantar, aí você vai ao banheiro
sossegado”.
Em outras situações, o ego vai ter de negar mesmo a gratificação.
Naquele mesmo show, o rapaz vê uma garota bonita cantarolando
“Sweet Child O’ Mine” com a camiseta molhada de suor e de chuva. O id
logo lhe dá a ideia pouco inteligente de ir correndo se atracar àquele
corpo que o pano mal consegue esconder. O ego então rebate com o
mundo real: levando em consideração que a satisfação desse desejo
renderia a) um grito de “tarado” por parte da moça, b) a possibilidade
de um linchamento, c) provavelmente prisão… Que tal só puxar
conversa com ela, respeitosamente?
SUPEREGO
Já vimos as instâncias guiadas pelos princípios do prazer e da realidade.
Agora vamos tratar daquela que segue o que poderíamos chamar de
“princípio do dever”. O superego se baseia nos valores da sociedade e
nas regras de conduta que herdamos dos nossos pais para agir como um
juiz das nossas intenções – um tipo de árbitro de futebol cheio de
cartões vermelhos no bolso. Essa é a parte moral da nossa
personalidade, a fonte dos nossos pensamentos de autocontrole que vão
servir para empatar o jogo contra os impulsos “vamos que vamos” do id.
O superego, por isso, seria frágil nas mulheres, o que explicaria a visão
de que “mulher é tudo louca”: segundo Freud, elas falham na sua
moralidade, falham na tomada de decisões racionais, são impulsivas e
precisam de alguém – um homem, claro – que as contenha.
E a comparação negativa para o lado das mulheres não para aí. O
superego, além de fazer papel de censor e agente da moral e dos bons
costumes, é a principal instância de aperfeiçoamento do indivíduo –
tem funções educativas, é transmissor dos valores da sociedade e da
ética dos pais. Assim, busca a construção de um ideal de pessoa. Já a
mulher, com seu superego subdesenvolvido, teria problemas de caráter.
A ponto de Freud acreditar que, devido à bissexualidade inerente a todo
indivíduo, o homem nunca atingirá uma condição de suprassumo da
humanidade. Afinal, tem em si uma porção feminina estragando tudo.
SACO DE PANCADAS
Sim, o conflito entre essas três instâncias é um verdadeiro MMA no
nosso ringue psíquico. E quem toma porrada é sempre o ego. De um
lado, precisa dar uma chave de braço no id para conter seus impulsos
agressivos e sexuais –, mas não com tanta força que o impeça de aliviar
a tensão que um desejo impõe. De outro, precisa suportar os cruzados
do superego, que quer construir o indivíduo mais certinho da
humanidade, criado à base de leite com pera. “Vemos esse ego como
uma pobre criatura submetida a uma tripla servidão”, diz Freud, “que
sofre com as ameaças de três perigos: do mundo exterior, da libido do id
e do rigor do superego”.
Com golpe vindo de todo lado, não é de se estranhar que haja tanto
remédio para ansiedade. Nossos sentimentos de culpa, que geram uma
baita tensão, nascem desse conflito entre o ego e o superego, entre
aquilo que somos e o que a parte mais moralista da nossa personalidade
gostaria que fôssemos – na nossa mente, o nosso eu está sempre sendo
julgado.
PROJEÇÃO
Está se sentindo culpado por um desejo proibido, um comportamento
impróprio ou um mau-caratismo da pior espécie? Seus problemas
acabaram: é só jogar a batata quente dessa culpa no colo de outra
pessoa – uma transferência de responsabilidade que pode acontecer
dentro da sua cabeça, via projeção. Esse mecanismo faz com que o
indivíduo projete em outras pessoas as suas inseguranças e sentimentos
desagradáveis. Assim, ele consegue tirar a carga emocional das próprias
costas – botando a culpa em alguém.
FORMAÇÃO REATIVA
É agir da maneira oposta ao seu desejo oculto – e exagerando nessa
inversão. Por exemplo, a ciência já mostrou que homofóbicos raivosos
são, na verdade, homossexuais reprimidos. Um estudo de 1996, da
Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, investigou a reação de
homens declaradamente heterossexuais a cenas de sexo gay. Entre os
pesquisados – 64 voluntários, com média de 20 anos de idade –, havia
homens que disseram não gostar de homossexuais, mas também
héteros que não manifestaram nenhuma rejeição à ideia de outras
pessoas terem vínculos homoafetivos. Durante o estudo, enquanto os
pesquisadores exibiam um filminho pornô-gay, um aparelho ligado ao
pênis de cada participante media o nível de excitação sexual de cada
um. Adivinhe, então, qual grupo teve movimentos no pênis ao assistir
às cenas de pegação homem com homem? Sim, os homofóbicos.
SUBLIMAÇÃO
Basicamente transforma pensamentos ruins em atos bons, construtivos,
generosos – no mínimo, em comportamentos socialmente aceitáveis.
Um campeão internacional dos games de luta pode estar sublimando
uma agressividade que, se dependesse só dos seus impulsos originais,
tornaria o indivíduo um criminoso. E alguns esportes também
permitem essa transformação regeneradora. Se você descer a porrada
no seu vizinho barulhento, a polícia vai aparecer na sua casa. Mas, se
você der golpes no seu adversário num torneio de judô, sua vocação
para o confronto físico não apenas será aceita como pode lhe render
uma medalha olímpica.
REGRESSÃO
Você já levou um ursinho para o trabalho novo? Essa volta a um
comportamento infantil é a maneira que a psique encontra para lidar
com aflições da vida adulta que o indivíduo não quer encarar. É o caso
da pessoa que, diante da morte de alguém querido, só consegue um
pouco de conforto dormindo na sua antiga cama, na casa dos pais. Na
regressão, a mente se apega a formas de gratificação do seu passado,
geralmente ligadas à infância, para contornar questões dolorosas.
ANULAÇÃO
É um tipo de atitude que busca o cancelamento de uma experiência
desagradável, tenha sido ela real ou apenas em pensamento. Por
exemplo, um indivíduo tem ímpetos de dar uma surra numa criança –
uma violência que ele mesmo considera repugnante. Aí o mecanismo
mental o protege dessa autoimagem de agressor de menores fazendo
com que ele se comporte de modo a remediar esse ato – ainda que, no
caso, ele nunca tenha partido mesmo para as vias de fato. De uma hora
para outra, o homem vira um doce de pessoa com a molecada: faz
esculturas de balões nas festinhas, vê o mesmo desenho repetidas vezes
com a paciência dos santos penitentes.
NEGAÇÃO
Esse é perigoso! Ao fazer com que o indivíduo se recuse a aceitar que
algum evento traumático ocorreu de verdade – ou ainda ocorre –, o
sistema de defesa pode se transfigurar em alienação ou delírio. Mas essa
negação pode acontecer em vários níveis. Nesse grau mais extremo, o
mecanismo atinge o inconsciente, e a pessoa realmente acredita que o
fato não aconteceu. Como a mãe que arruma o quarto do filho morto e
fica esperando que ele volte para casa à noite. Mas a negação também
opera no nível da consciência, como quando uma mulher que sofre
violência do marido fala às amigas sobre como ele é carinhoso, negando
os maus-tratos. Ela pode não saber por que mente para as amigas, mas
sabe que apanha.
RACIONALIZAÇÃO
Pode ser a justificativa para um ato que a pessoa no fundo condena ou a
tentativa de uma explicação positiva para uma situação difícil. No
primeiro caso, quando a pessoa faz algo que a moral do superego
desaprova, o ego dá um jeito de arrumar razões que atenuem essa
desaprovação. Por exemplo, a pessoa não resiste à impulsividade do id e
compra um apartamento de bacana num dos bairros mais caros da
cidade – uma aquisição acima de suas posses. Ela racionaliza esse ato
dizendo para os outros – e para si mesma – que o próximo ano deve ser
de boas notícias no trabalho, um aumento de salário é quase certo, a
economia está melhorando…
DESLOCAMENTO
O deslocamento é a substituição de um alvo desejado – e proibido ou
inacessível – por um alvo substituto. Um exemplo é o comerciante que
ouve um tanto de absurdos do cliente e engole sapo – afinal, o cliente é a
fonte dos seus rendimentos. Aí, quando chega em casa, desconta sua
raiva, até então contida, nos filhos. O id queria gratificação imediata –
dar um murro na cara do cliente –, mas o superego proibiu – seu
trabalho depende de uma boa relação com a clientela, e isso não
envolve socos no queixo. Então o ego encontrou uma hora e lugar para
essa energia psíquica transbordante: brigar mais tarde, com alguém que
não vá colocar em risco a sua capacidade de pagar boletos.
REPRESSÃO
Mais do que um mecanismo de defesa, falamos agora de um dos
próprios alicerces da psicanálise. A repressão impede que conteúdos
psíquicos incômodos cheguem à consciência, criando um tipo de
amnésia, que pode ser temporária ou permanente. Até aí, parece bom.
Esquecer pensamentos que nos fazem sofrer tem o jeitão de uma
panaceia contra nossas piores angústias. Mas você viu o filme Brilho
Eterno de uma Mente sem Lembranças? As recordações dolorosas, que
deveriam ter sido eliminadas, sempre voltam.
O problema é que, por mais poderosa que seja, a repressão nunca faz o
serviço completo: as memórias reprimidas não são deletadas pela
mente – só estão escondidas. No caso das histéricas do século 19, esses
pensamentos insuportáveis se transformavam em sintomas físicos.
Aqui no século 21, surgem na forma de ansiedade ou comportamento
disfuncional.
Uma pessoa que tenha sofrido bullying na pré-escola pode não ter
lembrança desses abusos, mas “ganha” uma enorme dificuldade de se
relacionar na vida adulta. Outro indivíduo pode ter fobia de aves –
ornitofobia é o termo técnico –, ainda que uma amnésia misteriosa o
impeça de ter a mais vaga ideia de quando esse medo besta começou.
Para quem vive em centros urbanos, e não em fazendas com
galinheiros, lidar com esse transtorno não é tão terrível: basta adquirir
habilidade para driblar o zigue-zague das pombas na calçada. Mas, se o
dia a dia com essa fobia pode ser administrável, o trauma que a
provocou talvez não fosse – e teve de ser banido da consciência pela
repressão.