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SIMONE VIERNE
(Universidade STENDHAL de Grenoble, Frana)

<<MITOCRTICA E MITANLISE>>
(in RIS , N13, P. 43-56)

O estudo que segue no tem pretenses originalidade , pois apenas queria apresentar uma sntese do mtodo de leitura dos textos literrios, que eu prpria pratiquei com os meus estudantes, desde h uma quinzena de anos. Isto quer dizer que o presente estudo ter uma vertente pragmtica, embora obviamente baseada nos princpios tericos, que j tinham sido expostos num dos nmeros das <<Pesquisas e obras de investigao>> por Gilbert Durand, em 1979, nas pginas de <<Figuras mticas e Facetas da obra>> (1), cuja reedio leva na capa um subttulo bastante explcito : <<Da mitocrtica mitanlise>>. Este subttulo remete, no menos explicitamente, terceira parte metodolgica da obra de referncia. Se pessoalmente fiz questo de expor esses dados por achar que talvez seja til lembramo-nos de que, ao contrrio do que apressadamente afirma uma obra recente, intitulada <<Mitocrtica>>, este processo j existia e produzia obras, artigos e pesquisas bem antes de 1992 ... Algumas definies e princpios Em <<O Ar e os Sonhos>>(2), Bachelard abrira o caminho da investigao que ia procura duma profundidade mtica, na leitura dos textos literrios, realando o carcter oniricamente natural dos versos de La Fontaine em <<O Carvalho e o Canio>> : Aquele cuja cabea estava prxima do cu Et cujos ps tocavam no imprio dos mortos. O autor acha que mesmo sendo preciso termos em linha de conta a cultura clssica do fabulista La Fontaine para poder explicar a imagem acima citada, no se deve menosprezar por isso o devaneio pessoal, j que, por assim dizer, a cultura nos permite sonhar :

Sonhando com a rvore imensa, com a rvore do mundo, com a rvore que se alimentasse com toda a terra, com a rvore que falasse a todos os ventos, com a rvore que estivesse sustentando as estrelas ... eu no era, contudo, um simples sonhador, um devaneador, uma iluso viva ! A minha loucura um sonho antigo. Dentro de mim, ento, uma fora sonhadora, uma fora que sonhou outrora, nos tempos muito remotos, e que, nesta noite, volta a animar-se numa imaginao disponvel (P.253) Este apelo ao mito, ( e um pouco mais adiante, a um regresso de uma cultura mtica na educao ) como fora imaginante, evidentemente ainda no est formalizado, mas entronca na linha de pensamento, na qual se situam todas as pesquisas ulteriores. Todavia, antes de prosseguirmos, precisamos estabelecer algumas definies. Sem pretender que elas sejam exaustivas, essas definies so indispensveis para assentar um mtodo numa base mesmo slida. Em primeiro lugar, evidentemente, o que que se entende por MITO ? Bachelard insiste sobretudo na universalidade e na intemporalidade do mito, que confere ao devaneio pessoal e subjectivo um valor objectivo, permitindo classific-lo entre os grandes sonhos, que desde sempre assediavam a humanidade, trazendo, alm de mais, um acrscimo de compreenso e tambm de felicidade ao leitor. Mas se o mito h de servir-nos de uma maneira mais operante, na nossa leitura, impe-se quanto antes uma difinio mais pormenorizada dele, baseada nos estudos de Mrcea Eliade (Veja a sua definio no <<Dictionnaire des mythologies>>, sob a direco de Yves Bonnefoy (3), e nos de Lvi-Strauss, que possvel resumir como segue : - trata-se de uma narrativa, inicialmente oral (continuando a ser oral em certos lugares preservados do mundo), que mais tarde foi fixada pelos escritos, que apresentam um nmero mais ou menos importante de variaes. O carcter diegtico importante : o mito narra uma estria ;

- esta estria comporta, no seu desenrolar, elementos no naturais, mgicos e absurdos do ponto de vista da lgica e da vivncia quotidiana. Estes elementos, que os etnlogos chamam de MITEMAS, podem ser tanto acontecimentos quanto cenrios, personagens (humanas, divinas, animais, vegetais ou hbridos de toda a espcie) cuja significao deve ser procurada no seu valor simblico ; - esta estria exige uma crena por parte daquele que a disser, como daquele que a ouvir (ou daquele que a escrever ou ainda daquele que a ler). A princpio, esta crena era de natureza religiosa. Mas com o passar do tempo, a crena pde ter mudado de natureza (4) : mas basta pensarmos na maneira de como se entra num livro ou num filme, para perceber que tambm ali se trata de uma forma de crena que obviamente atinge a sua dimenso mais forte, quando se entra na posia ou na msica. Freud falava com justeza no <<c sei /que isto no verdade/, mas mesmo assim ...>> ; - as narrativas mticas .no so uma pura fantasia ou uma iluso mentirosa, ou um ornamento gracioso ou didctico como se acreditava na idade clssica. O mito procura resolver uma questo essencial..( no sentido filosfico da palavra) e existencial para o homem, questo que a lgica no pode resolver. Os especialistas chamam a essas questes de MITOLOGEMAS. Afinal de contas, o seu nmero no muito grande : temos a questo da vida e da morte, a relao do Eu e do Outro, o lugar do homem no espao csmico e/ou na sociedade (o indivduo e a totalidade ou a multido), donde provm o homem e aonde ele vai (do Big-Bang at Apocalipse now, para dar um exemplo contemporneo), o Bem e o Mal ( verdade aqum dos Pirenus, etc. ) Certamente pode haver ainda outros mitologemas, mas no decorrer do estudo acabamos por nos aperceber de que as questes cabais que se colocam perante o ser humano sempre entroncam numa ou noutra daquelas propostas acima apresentadas ; - preciso insistirmos no facto de que essas questes ficam sem soluo satisfatria, se nos limitarmos lgica comum, chamada de terceira parte excluda , a que praticamos no nosso viver quotidiano e tambm a na qual se tem alicerado a

cincia, at uma poca recente, bem como uma boa parte da reflexo filosfica. Na rea da crtica literria, o estruturalismo foi o apogeu daquela reflexo. Pelo contrrio, a cincia contempornea, nos seus aspectos de proa, e tambm a nossa abordagem de leitura , que concede um lugar de destaque ao imaginrio, funcionam com base na lgica da terceira parte includa. possvel ilustrarmos a presente exposio, recorrendo a uma figura de retrica (a retrica obviamente me muito mais familiar do que, por exemplo, a fsica das partculas ou a astrofsica) : o oxmoro, a preta, contudo, luminosa de Baudelaire (5), ou o sol negro de Nerval, que mantm plos opostos numa mesma imagem, de maneira a no vermos a cor cinzenta, mas, sim, uma cor negra mais profundamente escura e uma luz mais resplandecente, ao mesmo tempo. Reparamos igualmente em que esta coincidncia dos contrrios tem seus referentes no somente na alquimia, mas tambm na terceira estrutura do imaginrio, de acordo com as teorias de Gilbert Durand, sem nos esquecermos de pensar na afirmao de Andr Breton, no Segundo Manifesto do Surrealismo (6) :
Tudo leva a crer que existe um certo ponto no nosso esprito, onde a vida e a morte, o real e o imaginrio, o passado e o futuro, o comunicvel e o incomunicvel, o alto e o baixo deixam de ser percebidos como contrrios. Pois seria intil procurarmos uma outra razo actividade surrealista que a esperana na determinao desse ponto. (P.92)

Da pertinncia do mitos , para a leitura dos textos literrios (entre outras aplicaes) O que foi exposto acima j anuncia a resposta pergunta : para qu o mito e, em suma, para qu a mitocrtica ? Desde j poderamos dizer, e Bachelard tambm o sugerira, que o mito a primeira expresso da arte transmitida pela oralidade, depois pela escrita : a epopia de Gilgamesh, achada gravada, nas tabuletas de barro demonstra que se trata no somente da histria que comea em Sumer, mas tambm da literatura, graas quela primeira epopia inicitica (7). O modo mtico de como os Gregos concebiam o

mundo, a sua criao e a do homem, foram-nos transmitidos por um poema, o de Hesodo. Alm disso, no se deve menosprezar na criao artstica o peso da cultura, nem do que se costuma chamar inconsciente cognitivo : mesmo que a educao s deixe um lugar reduzido a um conhecimento mitolgico, este ltimo continua bastante vivaz, podendo ser reencontrado nas formas que aparentemente pouco ou nada tm que ver com ele, como, por exemplo, a publicidade (8). O que, alis, pelo menos constitui uma prova de que o imaginrio e as suas leis, conscientemente ou no, desempenham um papel determinante nas reas mais diversas ! Ser preciso lembrar que aquilo que foi chamado de novo romance e que em plena conscincia se queria destrutor da chamada iluso romanesca, inmeras vezes fez apelo ao substrato mtico, a dipo, no caso de <<As Borrachas>>, ao mitema do labirinto em <<No Labirinto>>, no que diz respeito a Alain Robbe-Grillet, a Teseu, em <<O horrio>>, e a vrias lendas em <<A Modificao>>, no que diz respeito a Michel Butor, o seu modelo sendo naturalmente o Ulisses de James Joyce. As referncias revelam-se, alis, explcitas, e mesmo que o objestivo for contestar o gesto primitivo comum ao ouvinte de mito e ao leitor de romance, o da adeso fico, estou convencida de que no somente, isso testemunha da fora do mito, mas tambm substitui uma pregnncia mtica at na sua negao. Por outro lado, seria preciso no nos limitarmos s referncias mtolgicas provenientes da cultura greco-latina, apesar de esta ter impregnado a nossa cultura ocidental (por exemplo, na obra de Butor, a lenda do Monteiro-Mor, cujo fundo cltico) . A Bblia fornece un substrato mtico, explcito ou no, nomeadamente no caso de Vtor Hugo, mas tambm, na nossa poca, os mitos pertencentes s mais diversas culturas, da ndia Amrica, passando pela frica e pela Nova-Zelndia, graas aos estudos dos etnlogos e dos historiadores das religies. Todavia , se tomarmos o mito por uma simples referncia cultural, mesmo que esta fosse profundamente sonhada e actualizada, a meu ver, ficaramos perante um relao demasiadamente superficial. Se voltarmos definio do mito que acabo de dar ; podemos constatar que este tem um papel bem mais complexo e importante. Em

primeiro lugar, por apelar a uma lgica diferente da lgica puramente racional, e que vai permitir resolver as questes levantadas pelo homem, no tocante ao seu prprio estatuto e relao dele com os outros e com o mundo, ligando esta abordagem aos estudos sobre o imaginrio, onde ela se nos afigura como a fora motriz essencial da criao artstica, opinio compartilhada por todos os estudiosos do CRI. A arte tal como o mito a nica capaz de transcender a condio humana, e de responder, mesmo que fosse de maneira desesperada, e s pelo acto de criar, ao seu lancinante desejo de ultrapass-la. Julien Gracq, no prefcio ao <<Rei Pescador>>, ao meditar sobre o ciclo da Tvola Redonda, que a seu ver, pertence << espcie mais elevada de mitos>>, evoca a cena de Parsifal :
/.../ onde o rei ferido levanta o fogo vermelho do Graal, num gesto de fervor e de desespero que configura um dos smbolos mais utilizados no teatro um instantneo dos mais pungentes que se pode encontrar nesta arte da condio do homem, o nico entre todos os seres animados a operar para ele prprio a secreo do irrespirvel, e condenado a este confronto a ss, fascinante e interminvel, com o que de mais puro conseguir tirar de si mesmo, e a no poder fazer outra coisa a no ser repetir a exaltante e desesperante frmula : <<No posso viver nem contigo, nem sem ti>>. (9)

Tambm se poderia pensar, e isso constitui, alis, uma crtica comum, que o suporte mtico de uma leitura desse tipo fosse to geral que acabaria por no ter mais pertinncia , por faltarem-lhe a especificidade e a originalidade que o leitor espera encontrar em qualquer obra. Porm, alm de definir o particular, preciso guardarmos as marcas gneralizantes, e o contrrio, o facto mtico ele prprio muito bem nos indica quais as relaes do geral e do particular. Com efeito, ao examinarmos um mitologema, estamos a lidar com uma das questes cabais que se colocam na mente do ser humano. Contudo, de acordo com as pocas, e tambm segundo aquele que narra ou que escreve o mito, as respostas sero extremamente diversas. As variantes dentro da mesma cultura esto suficientemente patentes para atest-lo (veja o dicionrio de mitologia de Roscher). Este fenmeno s poder ir ampliando-se, se quisermos mudar de cultura e de poca, e tambm se intervier cada vez mais a personalidade, consciente e inconsciente, do criador, como acontece na literatura..

Nesta altura da minha reflexo, queria dar algumas explicaes adicionais no tocante a dois termos que, at agora, tenho evitado. Trata-se da MITOCRTICA e da MITANLISE. Apesar do precedente de Denis de Rougemont. , que foi o primeiro a utilizar o termo de mitanlise (10), embora na acepo muito difirente, sobretudo Gilbert Durand, quem, num artigo e numa publicao dele (assinaladas por mim no incio do presente artigo) estabelece e experimenta o mtodo de anlise que se baseia no mito. Em princpio, Durand reserva o termo de mitocrtica anlise literria e artstica, confessando t-lo forjado, ao pensar psicocrtica de Mauron. Com efeito, h uma abordagem bastante parecida, na medida em que vamos sobrepor, em todo o caso, aproximar, no somente as imagens que testemunham das componentes inconscientes de uma psque particular, como faz Mauron, mas tambm os mitemas, pertena tanto do criador como do fundo comum de toda a humanidade. Pelo contrrio, a mitanlise, apesar de levar um nome que faz pensar psicanlise, e gerar uma certa confuso no que precede, dedicar-se- ao estudo dos fenmenos scio-culturais, por exemplo, como um determinado perodo cultural, num lugar e num contexto histrico bem definidos, pode ser tributrio, nas suas diferentes expresses, de um mito ou de uma figura mtica que aos poucos se impe (para degenerar depois) porque est confrontada com problemas especficos, com certeza, mas que j tinham sido levantados por outros grupos humanos, ainda que sob as formas bem diferentes e nos lugares igualmente diferentes. Assim, o lugar do homem no mundo, frente s foras que o ultrapassam, ser a pouco e pouco, no decorrer da primeira metade de Oitocentos, colocada sob o signo de Prometeu, aquele que quis permitir aos homens que se igualassem aos Deuses. evidente que podamos encontrar uma outra figura de referncia, proveniente de uma outra mitologia. Contudo, acontece que Prometeu j tinha criado as suas razes no inconsciente colectivo, sendo explicitamente evocado nas obras maiores daquela poca. o que tambm nos mostra que impossvel no praticarmos a mitanlise ou a mitocrtica, de acordo com o que j foi demonstrado nas reflexes acima. Pois, nesta perspectiva mitocrtica, obviamente,

o contexto scio-cultural influencia a criao individual, e, numa perspectiva mitanaltica, as obras de arte entram na anlise dos dados scio-culturais. Citaria a ttulo de lembrana, a interessantssima tese de Alain Pessin, <<O Mito do Povo e a Sociedade francesa de Oitocentos>> (11), em que uma boa parte dos exemplos citados em apoio quele mito foi encontrada nas obras literrias (Hugo, Michelet, Sue, Ballanche, Lamennais, Leroux, George Sand) Talvez igualmente na nossa perspectiva literria, seria preciso tomarmos em linha de conta o suporte utilizado, que vai desempenhar um papel de relevo, no somente contribuindo para repararmos na originalidade da obra, o que lgico, mas tambm para a interpretao do mito (no sentido musical).

Os caminhos da mitocrtica

Tudo isso, claro, no nos explica como se deve proceder para levar a cabo uma leitura mitocrtica (e mitanaltica). Como destacar ou distinguir o que, numa determinada obra literria ou num determinado grupo de obras literrias, serviu de esquema dinmico,, de meio de cristalizao ? Julien Gracq ofereceu-nos algures aquela bela imagem de limalha de ferro que sob a impluso magntica do man se levanta, formando figuras significantes. O mito definido com palavras acima referidas certamente desempenha esse papel, mas precisamos saber : qual mito e qual continente ? Basendo-me na minha prrpia experincia, diria que existem vrias maneiras de abordagem deste fenmeno cristalizador, e alis, isto permite uma grande flexibilidade ao pesquisador. Pois nada seria pior do que um estalo ou uma btola aplicada aos textos, como, por exemplo, o leito de ferro do salteador Procustes. Mito explcito Nesta mesma perspectiva seria falso considerarmos mais fceis de estudar as obras, onde o mito dado explicitamente., como, por exemplo, nas peas de teatro novecentista, nas de Giraudoux, de

Cocteau, de Sartre ou ainda em <<Prometeu mal acorrentado>> por Gide. Neste caso, o trabalho consiste em estudarmos as variaes e as inflexes que os autores deram aos mitos, ento mais conhecidos na sua forma cannica do que na nossa poca. Isso supe que surjam cada vez mais estudos como os frequentemente levados a cabo, na rea da literatura comparada. Citem-se os exemplos de Raymond Trousson, estudioso de Prometeu, o livro de Jean-Louis Backs sobre O Mito de Helena (12), ou a hoje desaparecida coleco da editora Armand Colin, dirigida por Philippe Sellier (13). Uma recente tese, dedicada a Ren Char, tentou com xito uma interpretao da obra a partir do mito de Oron, a que o poeta costumava recorrer. S que era preciso dar ao referido mito um sentido particular, aplicado a uma obra, cujo carcter permanece, voluntria ou involuntariamente, crptico. exactamente o que eu tentei fazer, ao estudar as figuras mticas de ris e de Artemsia. Para um colquio sobre a figura de Hermes, resolvi, um pouco por provocao, interessar-me pela figura mtica feminina que, na mitologia grega, a mensageira dos deuses, a cintilante e ligeira ris. Em primeiro lugar, tratava-se de esboar-lhe um retrato de acordo com os dados transmitidos pelos Gregos antigos (e depois herdados pelos Romanos), recolhidos no precioso dicionrio de Roscher. A seguir, havia que analisar as metamorfoses da mtica ris, tanto na qualidade de deusa, quanto na figura do arco-ris, sem me esquecer das suas aparies na literatura barroca, depois na obra de Nerval e na de Giraudoux. Porm, decidi que iria mais longe ainda, entregando-me reflexo sobre o que nos podia trazer, acerca da coincidncia hermtica dos contrrios, esta figura de mensageira, que se caracteriza por uma passagem contnua, e no por uma oposio ultrapassada. Ao dedicar-me pesquisa sobre uma outra deusa, Artemsia, esta mais representada na iconografia, comecei a chegar concluso de que era mesmo til voltarmos a interessar-nos pela significao profunda dessas figuras, que se tinham tornado em clichs , tal como j o fizera, no seu excelente trabalho, o estudioso Pierre Klossowski (14)

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Convm igualmente precavermo-nos de um certo automatismo cultural do autor, que facilmente nos poderia induzir em erro. Chantal Robin tinha demonstrado perfeitamente que Proust, ao chamar ao senhor de Charlus, entravado na sua cama de enfermo, de Prometeu acorrentado no seu rochedo, apenas estava a utilizar uma espcie de clich , impossvel de ladear na frente de uma pessoa acorrentada ou entravada. Pois o senhor de Charlus no tem nada dum Prometeu que se revoltasse contra os deuses, pelo contrrio, vemos nele uma personagem hermtica, ligao entre os dois sexos, entre as classes sociais, e at mesmo um alcoviteiro. (15) Mito implcito

No entanto, na maioria dos casos, quando considerado no sentido de princpio dinamizante do imaginrio, o mito implcito. Aqui convm evitarmos uma outra armadilha, a de querermos demonstar de mais, por ideia preconcebida ou por excesso de zelo. Por exemplo, j tive que acalmar as nsias de simbolizar a torto e a direito dum dos meus estudantes, que, nos primeiros poemas de Rimbaud, pretendia ver Hebe, na pessoa de uma criada ruiva que servia chopes de cerveja aos fregueses, ou queria demonstrar a presena de um mito inicitico, fazendo, por assim dizer, ressuscitar a adormecido do vale. Sem nos esquecermos de que o leitor, este tambm, dotado dum inconsciente e duma forma de imaginrio pessoal, que podem muito bem faz-lo enveredar pela senda duma anlise errada, quer dizer, tornar esta ltima no coerente, relativamente ao que j se sabe da restante obra do mesmo autor e do prprio autor, bem como da poca em que ele vivera. Por isso, muita prudncia recomendada, contudo sem que esta mesma refreie o entusiasmo do estudioso. Simultaneamente preciso segurarmos com cuidado todos os fios da urdidida que nos permite tecer a leitura mitocrtica. Por onde comear ? interrogava-se Barthes, num artigo que se iria tornar clebre, e que foi escrito para a inaugurao da revista

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<<Potica>> (16) Pela leitura, claro, mas esforando-nos por levantar todos os elementos miticamente significativos - tratase aqui da definio do MITEMA nas situaes, no desenrolar dos acontecimentos, nas personagens, nos elementos do cenrio. Para ns, que somos to habituados a decifrar imagens e smbolos, este proceder, em princpio, no devia colocar nenhum problema, a no ser precavermo-nos , predentemente, contra os excessos acima assinalados e com excepo do problema da organizao e da interpretao dos verbetes. No se deve menosprezar este problema porque temos que conseguir desenhar, com esta mesma matria , constelaes que remetam a um substrato mtico coerente e dominante, com as eventuais ramificaes adventcias, susceptveis de lhes modificar a significao , como havemos de ver mais adiante. Dir-se- que tudo isso ainda continua muito terico. Portanto, vamos transitar agora para os exemplos prticos. E diga-se, desde j, que existem vrias maneiras de os analisar, e felizmente, porque isso deixa uma confortvel margem para o crtico, em conformidade com o gosto dele e tambm segundo o que ele nos pretender demonstrar.

Em busca do mito organizador A mitocrtica ainda estava por inventar, quando comecei a elaborao da minha prpria tese de doutoramento sobre Jules Verne e o Romance inicitico. Porm, se pensarmos bem no caso, j ento se tratava de ler uma obra reputada clara e algo superficial para lhe encontrar o sentido simblico e explicar em que consistia a fascinao que ela foi capaz de exercer sobre tantos poetas, no substrato mtico da iniciao. justo frisar que eu no fui buscar sozinha este tema mtico, que, desde o incio, me tinha sido indicado pelo meu orientador de tese, Lon Cellier (Ob. Cit. P.118, com diversas anlises referentes aos textos romnticos). Mesmo assim era preciso eu fazer uma demonstrao correcta da presena deste tema na obra de Jules Verne, o que, no entanto, se revelaria tanto mais fcil, ou pelo menos evidente, que se tratava

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dos romances de aventuras. Porque os romances de aventuras, se eles forem bem sonhados, como diria Bachelard, sempre sero umas metamorfoses, mais ou menos bem conseguidas , da busca modelo do Santo Graal. No obstante, eu tinha de achar, quanto antes, os mitemas, nas obras de Jules Verne e para conseguir faz-lo, fui obrigada a referir-me a uma estrutura ou a um cenrio que estabelecesse as constantes smbolicas patentes nos diversos mitos e ritos iniciticos, que reencontrei depois, para comprovar a minha demonstrao, nos outros textos, poemas, romances, filmes e at numa banda desenhada (17). Em seguida, nos artigos publicados e em <<Jules Verne, Mito e Modernidade>> procurei descobrir o que o modelo acima mencionado tinha de particular, nestes romances, devido tanto ao pessimismo inato do autor, quanto sua posio em relao ao contexto histrico e cultural do ltimo tero do sculo XIX. Fiz a mesma coisa no mbito dos estudos da obra de George Sand, nomeadamente, com respeito a <<Consuelo>>, seguindo a trilha aberta por Lon Cellier, e no tocante a certos autores mais contemporneos (Carpentier, Gracq, Le Clzio) apoiando-me, ento, nas obras metodolgicas de Gilbert Durand. Temas adventcios Acabamos de ver nos captulos precedentes que foi preciso combinar a mitocrtica e a mitanlise, j que os romances de Jules Verne deviam obedecer, na forma e no contedo, s directivas do editor Hetzel, cujo projecto didctico representava bem a ideologia dominante da sua poca, encabeada pelo mito do progresso, forma de prometeismo que perdura, sobrevivendo ao Romantismo, na crena positivista nas vantagens e nos benefcios da cincia. Por isso, o meu segundo trabalho dedicado a Jules Verne debrua-se sobre as figuras de Prometeu, de Fausto e de Hefesto (Vulcano), que todas as trs se enquadram na temtica do progresso, embora cada uma com as suas peculiaridades e gradaes que nos permitem demonstrar que mesmo que a busca inicitica, nos romances, parea basear-se numa conquista dos

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poderes superiores pelo homem, quer dizer, numa possibilidade de ele conseguir ultrapassar o seu destino de ser mortal, no fundo, esta mesma conquista votada catstrofe, quer por causa do egosmo faustiano, quer por mor da impotncia do homem enfrentado as foras da natureza, as armadilhas de Vulcano (e os vulces...). Assim, podemos observar como o mito organizador principal se vincula aos outros mitos, o do lugar do ser humano no espao csmico, ou o das origens do homem (outro exemplo moderno <<A Guerra do Fogo>> e o seu fim (toda a fico cientfica, baseada na queda e no fim da nossa civilizao. Isto apenas um exemplo.

As figuras mticas Acabamos de ver igualmente o comeo duma outra maneira de utilizao da leitura mtica, o incio do estudo de figuras (personagens ou heris). Podemos ir mais longe, estudando a partir dessas figuras no somente uma obra ou um grupo/uma srie de obras, mas sobretudo um mesmo tema mtico na perspectiva duma extenso que pretenderemos ou poderemos dar-lhe. No que chamei Figuras mticas da mulher , em princpio, estive impressionada pelo facto de que, nos romances oitocentistas, as heronas eram quer anjos, quer demnios, e no final do sculo XIX, s ficaram as figuras demonacas. Os prprios textos (indo de Balzac at Baudelaire) apontam para essa dualidade, atravs das palavras de anjo ou de demnio , Lilith (ou Eva) ou Maria, Nossa Senhora ou cortes leviana e provocante. Apenas escapavam a esta dicotomia as heronas de George Sand. O meu estudo abrage as heronas das buscas do Santo Graal, desde a Idade Mdia at aos nossos dias (incluindo a Kundry de Wagner e a de Julien Gracq), mais diversos homens e mulheres que aparecem nas obras dos autores contemporneos (estudo em via de realizao... ) .

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Este gnero de estudos sempre deve tomar em linha de conta, e tambm dar conta, das mentalidades, explicando, ao mesmo tempo, por exemplo , que o imaginrio de um Vtor Hugo, porm conhecido como campeo dos direitos polticos da mulher, no escapa a esta dicotomia, ao criar as personagens Dea e Josiane em <<O Homem Que Ri>> . Sem dvida, um estudo pormenorizado desse tipo tem que evidenciar e pr em destaque as gradaes, as variaes, as peculiaridades. No me parece intil assinalar que o estudo das figuras de deusas acima mencionadas leva s concluses anlogas no tocante figura mtica da mulher. Alis, no seria intil confrontar essas figuras com as dos heris masculinos, a partir dos estudos j efectuados sobre o mito do heri (19), e mais especialmente, sobre as figuras de heris masculinos nos romances escritos pelas mulheres escritoras pertencentes literatura moderna. Ser preciso insistir tanto nesses dois pontos ? No que diz respeito ao primeiro, realmente existem caminhos na mitocrtica, e o prprio objectivo sugere o mtodo de abordagem, bem como o gosto ou o interesse do leitor crtico. No que se refere ao segundo, voltando ao ttulo deste nmero da revista ris , evidente que o mito forosamente moderno , ps-moderno , e at demasiadamente ao sabor do dia de hoje, pelo que estou a interrogar-me, a sentir alguns remorsos, se eu prpria no me tivesse deixado arrebatar por esta tendncia, to na moda, no subttulo da minha ltima monografia sobre Jules Verne. No entanto, somente pretendi demonstrar que a obra de Jules Verne tinha para nos comunicar, aqui e agora, vrias coisas bem mais importantes do que as duvidosas e aproximativas profecias sobre as modernas invenes da cincia, pelas quais o romancista foi glorificado, um pouco a torto e a direito (inclusivamente numa volta ao mundo vela em oitenta dias). A modernidade do mito encontra-se precisamente no facto de os romances de Jules Verne exprimirem ao mesmo tempo o que constitui especificamente um problema de hoje, formulado por um homem de hoje, numa linguagem de hoje, porm com

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algumas ressonncias simultneas que fazem com que o homem se sente vinculado a toda a comunidade humana, de todos os tempos e de todos os pases. Julien Gracq compreendeu-o perfeitamente (ob.cit. P.12-13) Gracq apercebe-se, ao mesmo tempo, do << prazer febril entre todos os prazeres que ainda hoje conseguimos sentir ainda e sempre nesses jardins mgicos e incomodantes >> que so as lendas do Santo Graal. E acrescenta :
Este prazer e este interesse capaz de chegar ao ponto de obsesso podem perfeitamente depender do sucesso subitamente reencontrado por esses mitos, na nossa poca, e, que descobrimos que eles esto vinculados a certos aspectos da modernidade.

Essa influncia resulta do facto de o mito ser um <<ressoador cuja harmonia com a sensibilidade colectiva // garantida por sculos>>. E no acredito em que seja preciso acrescentar algo mais s palavras do poeta.

Notas: 1. 2. 3. 4. DURAND, Gilbert, <<Figures mythiques et Visages de loeuvre>>, Paris, Berg, 1979, reedio Dunod, 1992. BACHELARD, <<Lair et les Songes>>, Paris, Corti, 1943. BONNEFOY Yves, <<Dictionnaire des mythologies>>, Paris, 1981. Veja VEYNE Paul, <<Les Grecs ont-ils cru leurs mythes : essai sur limagination constituante>>, Paris, Seuil, Des Travaux, 1983.

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16. 17. 18.

Veja CELLIER Lon, <<Parcours initiatiques>>, <<Baudelaire et loxymoron>>, Neuchtel, La Baconnire et PUG, 1977. BRETON Andr, <<Les Manifestes du surralisme>>, Paris, Le Sagittaire, 1947. KRAMER Samuel, <<L Histoire commence Sumer>>, Paris, Arthaud, 1975. Veja o meu artigo, <<Le mythe initiatique aujourdhui>>, in LInitiation , Acta do colquio internacional de Montpellier II, 14 de Abril de 1991, Montpellier, 1992, Publications de la Recherche, Universit Paul Valry, Tomo II. GRACQ Julien, <<Le Roi pcheur>>, Paris, Corti, 1948, P.15-16. Como est a insistir Pierre BRUNEL, em <<Mythocritique, thorie et parcours>>, Paris, PUF, 1992. PESSIN Alain, <<Le Mythe du Peuple et la Socit franaise du XIXe sicle>>, Paris, PUF, 1992. BACKS Jean-Louis, <<Le Mythe dHlne>>, ClermontFerrand, Adosa, 1984. TROUSSON Raymond, <<Le thme de Promthe dans la littrature europenne>>, Droz, Genve, 1976. Na Editora Armand Colin, na coleco Uprisme, vrios estudos sobre o mito de Fausto, o mito da metamorfose, o mito do janota /dandy/, etc. ; os prprios ttulos indicam uma certa hesitao no conceito de mito, mesmo que os estudos sejam todos bastante interessantes. Veja <<Le Mythe et le Mythique>>, Paris, Albin Michel, Cahiers de lHermtisme, Colquio de Cerisy, 1987, P.65-74, KLOSSOWSKI Pierre, <<Le bain de Diane>>, Paris, Gallimard, 1956. ROBIN Chantal, <<LImaginaire du Temps retrouv, Hermtisme et criture chez Proust>>, in Circ, Cahiers de recherche sur limaginaire , Paris, Minard, 1977. Paris, Seuil, 1970, P.3-9. VIERNE Simone, <<Rite, Roman, Initiation>>, Grenoble, PUG, 1973, reedio de 1987. Paris, P.U.F., 1989.

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19. BAUDOIN Charles, <<Le Triomphe du Hros>>, Paris, Pion, 1952.