Fichamento Mímesis
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EPÍLOGO
A primeira destas ideias refere-se à doutrina antiga, mais tarde retomada por toda corrente
classicista acerca dos níveis da representação literária. (p. 499)
[...] tanto durante a Idade Média toda como ainda no Renascimento, houve um realismo
sério; tinha sido possível representar os acontecimentos mais corriqueiros da realidade num
contexto histórico sério e significativo, tanto na poesia como nas artes plásticas; a doutrina dos
níveis não tinha validez universal. (p. 500). [Auerbach denomina como figural a “visão da
realidade da tardia Antiguidade e da Idade Média”].
Tornou-se-me claro que o realismo moderno, da forma que se formou no começo do século
XIX na França, realiza como fenômeno estético uma total solução daquela doutrina [antiga];
mais total e mais significativa para a formação posterior da visão literária da vida do que a
mistura do sublime com o grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. (p. 499)
[...] o realismo moderno [...] se desenvolveu [...] em formas cada vez mais ricas,
correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida. (p. 500)
2 – A visão da realidade expressa a partir das obras cristãs da tardia Antiguidade e da Idade
Média é totalmente diferente da do realismo moderno. (p. 500)
3
SOBRE A PESQUISA
4 – A pesquisa fundamenta-se nessas três ideias estreitamente ligadas entre si, que deram
forma ao problema original, mas que também lhe impuseram, evidentemente, limites mais
estreitos. Naturalmente ela envolve uma variedade de outros motivos e problemas
inerentes à abundância dos fenômenos históricos a serem tratados; contudo, a maior parte
deles está de alguma forma ligada àquelas ideias e, em todo caso, recorre-se
constantemente a elas. (p. 501)
5
SOBRE O MÉTODO
4 – Uma história sistemática e completa do Realismo não somente teria sido impossível, como
também não teria servido à intenção, pois, devido às ideias diretrizes, o tema ficou delimitado
de uma forma muito determinada; já não se tratava mais do Realismo em geral, mas da medida
e espécie da seriedade, da problematicidade e da tragicidade no tratamento de temas realistas
de tal forma que as obras meramente cômicas e que pertencem, indubitavelmente, ao âmbito
do estilo baixo ficaram excluídas; só entraram em consideração ocasionalmente, como exemplo
contrário, e, como tais, podiam ser apresentadas, por vezes, obras totalmente irrealistas de
estilo elevado.
4.2 – O método que adotei, isto é, o de apresentar, para cada época, uma certa quantidade de
textos, para com base nos mesmos pôr à prova os meus pensamentos, leva imediatamente
para dentro do assunto, de tal forma que o leitor chega a sentir do que se trata, antes que lhe
seja impingida uma teoria. (p. 501)
5.2 – Os textos também são, em sua grande maioria, escolhidos ao acaso, muito mais graças ao
encontro casual e à inclinação pessoal do que à intenção precisa.
6 – Cada capítulo trata de uma época; por vezes uma época relativamente curta, meio século,
por vezes, também, uma época mais longa. (p. 502)
A CICATRIZ DE ULISSES
PARTE I
APRESENTAÇÃO DA CENA
2 – Tudo isto é relatado com exatidão e relatado com vagar. Num discurso direto,
pormenorizado e fluente, ambas as mulheres dão a conhecer os seus sentimentos; não
obstante tratar-se de sentimentos, um pouco mesclados a considerações muito gerais acerca
do destino dos homens, a ligação sintática entre as partes é perfeitamente clara; nenhum
contorno se confunde. (p. 02)
NOTA: No parágrafo seguinte, Auerbach discorre sobre a descrição da cena presente e da cena
digressiva, que diz respeito à caça ao javali, ocasião em que Ulisses adquiriu sua cicatriz.
3.1 – O não preenchimento total do presente faz parte de uma interpolação que aumenta a
tensão mediante o retardamento; é necessário que ela não aliene da consciência a crise por
cuja solução se deve esperar com tensão, para não destruir a suspensão do estado de espírito;
a crise e a tensão devem ser mantidas, permanecer conscientes, num segundo plano.
3.2 – Só que Homero [...] não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre
somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor. É o que
acontece na passagem citada. (p. 03)
4.2 – De certo Schiller tem razão quando diz que Homero descreve “meramente a tranquila
existência e ação das coisas segundo a sua natureza”; a sua finalidade estaria “presente em
cada um dos pontos do seu movimento”. Só que tanto Schiller quanto Goethe, elevam o
processo homérico à categoria de lei da poesia épica em geral, e as palavras de Schiller, acima
citadas, devem vigorar para o poeta épico em geral, em contraste com o trágico.
4.3 – Contudo há, tanto nos tempos antigos como nos modernos, obras épicas significativas
escritas sem qualquer “elemento retardador”, no sentido de Schiller, mas de maneira
claramente carregada de tensão, obras que, sem dúvida, “roubam a nossa liberdade
emocional”, o que Schiller quer conceder exclusivamente ao poeta trágico.
4.4 – Mas a verdadeira causa da impressão de retardamento parece-me residir em outra coisa;
precisamente, na necessidade do estilo homérico de não deixar nada do que é mencionado na
penumbra ou inacabado.
NOTA: A digressão é um traço comum em Homero, pois nada lhe foge à necessidade de
descrever algo pormenorizadamente quanto à sua espécie e origem. Há nele, ainda, a
necessidade de exteriorização dos fenômenos.
5 – Aqui, é a cicatriz que aparece no decorrer da ação; e não é possível para o sentimento
homérico deixá-la emergir simplesmente da escuridão de um passado obscuro; ela deve sair
claramente à luz, e com ela, um pouco da juventude do herói [...].
5.2 – Isto é válido, naturalmente, não só para os discursos, mas para toda a apresentação. Os
diversos membros dos fenômenos são postos sempre em clara relação mútua; um número
considerável de conjunções, advérbios, partículas e outros instrumentos sintáticos, todos
claramente delimitados e sutilmente graduados na sua significação, deslindam as personagens,
as coisas e as partes dos acontecimentos entre si, e os põem simultaneamente, em correlação
mútua, ininterrupta e fluente; tal como os próprios fenômenos isolados, também as suas
relações, os entrelaçamentos temporais, locais, causais, finais, convêm à luz perfeitamente
acabados; de modo que há um desfile ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos
fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente
iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre, de profundezas inexploradas. (p. 04)
6 – E este desfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano, isto é, sempre em pleno presente
espacial e temporal. Poder-se-ia acreditar que as muitas interpolações, o frequente avançar e
retroceder, deveriam criar uma espécie de perspectiva temporal e espacial; mas o estilo
homérico jamais dá esta impressão. (p. 05)
6.1 – A maneira pela qual é evitada esta impressão de perspectiva pode ser observada
claramente no processo da introdução das interpolações, uma construção sintática que é
familiar a todo leitor de Homero; utilizado em nosso trecho, é também encontrável em
interpolações muito curtas. À palavra “cicatriz” segue-se imediatamente uma oração relativa
(“que outrora um javali...”), a qual se expande num amplo parêntese sintático; neste introduz-
se, inesperadamente, uma oração principal (“um deus deu-lhe...”), a qual vai se livrando
silenciosamente da subordinação sintática, até que, com o verso 399, começa um novo
presente [...].
6.2 – Mas um tal processo subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e um segundo planos,
de modo que o presente se abra na direção das profundezas do passado, é totalmente
estranho ao estilo homérico; ele só conhece o primeiro plano, só um presente uniformemente
iluminado, uniformemente objetivo; e assim, a digressão começa só dois versos depois,
quando Euricleia já descobriu a cicatriz – quando a possibilidade da ordenação em perspectiva
não mais existe, e a estória da cicatriz torna-se um presente independente e pleno. (p. 05)
PARTE II
1 – A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro
texto, igualmente antigo, igualmente épico, surgido de um outro mundo de formas. Tentarei a
comparação com o relato do sacrifício de Isaac, narração inteiramente redigida pelo assim
chamado Eloísta. (p. 05)
NOTA: Deus, que não explicita de onde fala, chama Abraão e ele responde: “Eis-me aqui!” Não
se diz a posição dos interlocutores.
1.1 – De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito.
1.2 – A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular
modo de ver e de representar. Isto fica ainda mais claro quando nos voltamos para o interior
do outro interlocutor, Abraão. Onde ele está? Não o sabemos. Ele diz, contudo: “Eis-me aqui” –
mas a palavra [...] não quer indicar o lugar real no qual Abraão se encontra, mas o seu lugar
moral em relação a Deus que o chamara [...].
1.3 – Aqui, porém, Deus aparece carente de forma (e, contudo, “aparece”), de algum lugar, só
ouvimos a sua voz, e esta não chama nada além do nome: sem adjetivo, sem atribuir à pessoa
interpelada um epíteto, como seria o caso em qualquer apóstrofe homérica. E também de
Abraão nada é tornado sensível, afora as palavras com que ele replica a Deus: Hinne-ni, “Eis-
me aqui” [...]. (p. 06)
2 – Após esta introdução, Deus dá sua ordem, e tem início a narração propriamente dita. Todos
a conhecem: sem interpolação alguma, em poucas orações principais, cuja ligação sintática é
extremamente pobre, desenvolve-se a narração. Aqui seria impensável descrever um
apetrecho que é utilizado, [...] são servos, burro, lenha e faca, e nada mais, sem epítetos; têm
de cumprir a finalidade que Deus lhes indicara; o que mais eles são, foram ou serão permanece
no escuro. Uma viagem é feita, pois Deus indicara o local onde se consumaria o sacrifício; mas
nada é dito acerca dessa viagem, a não ser que durara três dias, e mesmo isso é expresso de
forma enigmática [...]
3 – Na narração aparece uma terceira personagem importante, Isaac. [...] Ele pode ser belo ou
feio, inteligente ou tolo, alto ou baixo, atraente ou repulsivo – nada disto é dito. Só aquilo que
deve ser conhecido [...] para salientar quão terrível é a tentação de Abraão, e quão consciente
é Deus desse fato.
3.1 – Observa-se com este exemplo antitético qual é a significação dos adjetivos descritivos e
as digressões da poesia homérica; com a sua alusão à existência restante da personagem
descrita, aquilo que não é totalmente apreendido pela situação, à sua existência, por assim
dizer, absoluta, eles impedem, mesmo no mais espantoso dos acontecimentos, o surgimento
de uma tensão opressiva. Mas no caso da oferenda de Abraão, a tensão opressiva existe. O que
Schiller queria reservar para o poeta trágico – roubar nossa liberdade de ânimo, dirigir numa só
direção e concentrar as nossas forças interiores (Schiller diz “a nossa atividade”) – é obtido
neste relato bíblico que, certamente, deve ser considerado épico. (p. 08)
4.1 – A conversa entre Abraão e Isaac no caminho ao local do sacrifício não é senão uma
interrupção do pesado silêncio, e serve apenas para torná-lo mais opressivo.
5 – Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que estes, que
pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado, fenômenos acabados,
uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem
interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que
se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente
aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão. Os pontos
culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é
inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os pensamentos e
os sentimentos permanecem inexpressos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos
fragmentários. O todo, dirigido com máxima e ininterrupta tensão para um destino e, por isso
mesmo, muito mais unitário, permanece enigmático e carregado de segundos planos. (p. 09)
5.1 – Falei [...] do estilo homérico como sendo de “primeiro plano”, porque, apesar dos muitos
saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente
único e puro, sem perspectiva. A observação do texto eloísta mostra-nos que a expressão pode
ser empregada mais ampla e profundamente. Evidencia-se que até a personagem individual
pode ser apresentada como carregada de segundos planos: Deus sempre o é na Bíblia, [...] só
“algo” dele aparece em cada caso, ele sempre se estende para as profundidades.
5.2 – Mas os próprios seres humanos dos relatos bíblicos são mais ricos em segundos planos
do que os homéricos; eles têm mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à
consciência. [...] seus pensamentos e sentimentos têm mais camadas e são mais intrincados. O
modo de agir de Abraão explica-se não só a partir daquilo que lhe acontece
momentaneamente ou do seu caráter (como o de Aquiles por sua ousadia e orgulho, o de
Ulisses por sua astúcia e prudente visão), mas a partir da sua história anterior. Ele se lembra,
tem permanente consciência do que Deus lhe prometera e do que já cumprira [...] é impossível
para as figuras homéricas, cujo destino está univocamente determinado, e que acordam todo
dia como se fosse o primeiro, cair em situações internas tão problemáticas. As suas emoções
são violentas, convenhamos, mas são também simples e irrompem de imediato. (p. 09)
6 – Os poemas homéricos, cuja cultura sensorial, linguística e, sobretudo, sintática, parece ser
tanto mais elaborada, são, contudo, na sua imagem do homem, relativamente simples; e
também o são, em geral, na sua relação com a realidade da vida que descrevem. A alegria pela
existência sensível é tudo para eles, e a sua mais alta intenção é apresentar-nos alegria. (p. 10)
6.1 – Neste mundo “real”, existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por encanto,
não há tampouco outro conteúdo a não ser ele próprio; os poemas homéricos nada ocultam,
neles não há nenhum ensinamento e nenhum segundo oculto. É possível analisar Homero,
como o tentamos aqui, mas não é possível interpretá-lo. (p. 10)
7 – A história de Abraão e de Isaac não está melhor testificada do que a de Ulisses, Penélope e
Euricleia; ambas são lendárias. Só que o narrador bíblico, o Eloísta, tinha de acreditar na
verdade objetiva da história da oferenda de Abraão. [...] Tinha de acreditar nela
apaixonadamente – ou então, deveria ser, como alguns exegetas iluministas admitiram ou,
talvez, ainda admitem, um mentiroso consciente, não um mentiroso inofensivo como Homero,
que mentia para agradar, mas um mentiroso político consciente das suas metas, que mentia no
interesse de uma pretensão à autoridade absoluta.
7.1 – Esta visão iluminista parece-me psicologicamente absurda, mas mesmo se a levarmos em
consideração, a relação entre narrador bíblico e a verdade do seu relato permanece muito mais
apaixonada, muito mais univocamente definida, do que a de Homero. (p. 11)
7.2 – Tinha de escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé na verdade da
tradição, ou, do ponto de vista racionalista, por seu interesse na verossimilhança – seja como
for, a sua fantasia inventiva ou descritiva estava estreitamente delimitada. Sua atividade devia
limitar-se a redigir de maneira efetiva a tradição devota. [...] Ai de quem não acreditasse nela!
(p. 11)
7.3 – A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de Homero, mas
chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo dos relatos das Sagradas
Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira –
pretende ser o único mundo verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo.
7.4 – Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de Homero, não
nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar, e se nos negamos a
isto, então somos rebeldes. (p. 12)
7.5 – Não se queira objetar que isto é ir demasiado longe, que não é o relato, mas a doutrina
religiosa que apresenta estas pretensões, pois os relatos justamente não são, como os de
Homero, mera “realidade” narrada. Neles encarnam-se doutrina e promessa indissoluvelmente
fundidas; precisamente por isso têm um caráter recôndito e obscuro, contêm um segundo
sentido, oculto. (p. 12)
10 – Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento, desde Adão até os Profetas,
encarna-se um momento da mencionada ligação vertical. Deus escolheu e moldou estas
personagens para o fim da encarnação da sua essência e da sua vontade – mas a eleição e a
modelagem não coincidem; esta última realiza-se paulatinamente, de maneira histórica,
durante a vida terrena dos escolhidos.
10.1 – Na história do sacrifício de Abraão vimos como isto ocorre, que terríveis provas envolve
uma tal modelagem. Daí decorre o fato de as grandes figuras do Velho Testamento serem mais
plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sua própria história vital e mais cunhadas na
sua individualidade do que os heróis homéricos. (p. 14)
10.2 – Aquiles e Ulisses são descritos magnificamente, por meio de muitas e bem formadas
palavras, carregam uma série de epítetos, suas emoções manifestam-se sem reservas nos seus
discursos e gestos – mas eles não têm desenvolvimento algum e a história das suas vidas fica
estabelecida univocamente. Os heróis homéricos estão tão pouco apresentados no seu
desenvolvimento presente e passado que, na sua maioria, [...] aparecem com uma ideia pré-
fixada. (p. 14)
10.3 – [...] Penélope pouco mudou nesses vinte anos; no caso do próprio Ulisses, [...] Ulisses é,
quando regressa, exatamente o mesmo que abandonara Ítaca duas décadas atrás. (p. 14)
10.4 – [Aos heróis homéricos...] As estes, o tempo só pode afetar exteriormente, e mesmo isto
é evidenciado o menos possível; em contraste, as figuras do Velho Testamento estão
constantemente sob a férula de Deus, que não só as criou e escolheu, mas continua a modelá-
las, dobrá-las e amassá-las, extraindo delas, sem destruir a sua essência, formas que a sua
juventude dificilmente deixava prever.
10.5 – Humilhação e exaltação são muito mais profundas ou elevadas do que em Homero, e,
fundamentalmente, andam sempre juntas. O pobre mendigo Ulisses não é senão um disfarce,
mas Adão é real e totalmente expulso, Jacó é realmente um fugitivo e José é realmente
lançado num poço e, mais tarde, realmente vendido como escravo. Mas a sua grandeza, que se
eleva da própria humilhação, é próxima do sobre-humano e é, também, um reflexo da
grandeza divina. (p. 14)
11 – Homero permanece, com todo o seu assunto, no lendário, enquanto que o assunto do
Velho Testamento, à medida que o relato avança, aproxima-se cada vez mais do histórico; na
narração de Davi já predomina o relato histórico. Ali também há ainda muito de lendário,
como, por exemplo, os relatos de Davi e Golias; só que muito, a bem dizer o essencial, consiste
em coisas que os narradores conhecem por experiência própria ou através de testemunhos
imediatos. (p. 15)
11.1 – [...] é fácil, em geral, separar a lenda da história. A sua estrutura é diferente. Mesmo
quando a lenda não se denuncia imediatamente pela presença de elementos maravilhosos,
pela repetição de motivos conhecidos, pelo desleixo na localização espacial e temporal, ou, por
outras coisas semelhantes, pode ser reconhecida rapidamente, o mais das vezes, por sua
estrutura. Desenvolve-se de maneira excessivamente linear.
11.2 – Tudo o que correr transversalmente, todo atrito, todo o restante, secundário, que se
insinua nos acontecimentos e motivos principais, todo o indeciso, quebrado e vacilante, tudo o
que confunde o claro curso da ação e a simples direção das personagens, tudo isso é apagado.
A história que presenciamos, ou que conhecemos através de testemunhos de
contemporâneos, transcorre de maneira muito menos uniforme, mais cheia de contradições e
confusão; só quando, numa zona determinada, ela já produziu resultados, podemos com sua
ajuda, ordená-los de algum modo; e quantas vezes a ordem que assim achamos ter obtido,
torna-se novamente duvidosa, quantas vezes nos perguntamos se aqueles resultados não nos
levaram a uma ordenação demasiado simplista do originalmente acontecido! (p. 16)
12 – A lenda ordena o assunto de modo unívoco e decidido, destaca-o da sua restante conexão
com o mundo, de modo que este não pode intervir de maneira perturbadora; ela só conhece
homens univocamente fixados, determinados por poucos e simples motivos cuja integridade
de sentimentos e ações não pode ser prejudicada. (p. 16)
12.1 – Escrever história é tão difícil que a maioria dos historiadores vê-se obrigada a fazer
concessões à técnica do lendário. (p. 17)
13 – [...] a passagem do lendário para o relato histórico [...] falta totalmente nas poesias
homéricas. (p. 17)
13.1 – [...] não deixa de ser natural que, mesmo nas partes lendárias do Velho Testamento, seja
frequente a aparição de estruturas históricas; naturalmente não no sentido de que a tradição
seja examinada quanto à sua credibilidade de maneira científico-crítica; mas meramente de tal
forma que não predomina no mundo lendário do Velho Testamento a tendência para a
harmonização aplainante do acontecido, para a simplificação dos motivos e para fixação
estática dos caracteres, evitando conflitos, vacilações e desenvolvimento, como é próprio da
estrutura lendária.
13.2 – Abraão, Jacó ou Moisés, têm um efeito mais concreto próximo e histórico do que as
figuras do mundo homérico, não por estarem melhor descritos plasticamente – pelo contrário
– mas porque a variedade confusa, contraditória, rica em inibições dos acontecimentos
internos e externos que a história autêntica mostra não está desbotada na sua representação,
mas está ainda nitidamente conservada. (p. 17)
13.3 – Aqui interessa-nos sobretudo como se dá, nos relatos davídicos, a transição
imperceptível só reconhecível pela crítica científica posterior, do lendário para o histórico; e,
como, já no lendário, se apreende apaixonadamente o problema da ordem e da interpretação
do acontecer humano, um problema que, mais tarde, explode os limites da Historiografia,
sufocando-a por inteiro na profecia. Assim, o Velho Testamento, enquanto se ocupa do
acontecer humano, domina todos os três âmbitos: lenda, relato histórico e teologia histórica
exegética. (p. 18)
14 – Com isto [...] relaciona-se também o fato de o texto grego parecer também mais limitado
e mais estático com referência ao círculo das personagens atuantes e da sua atividade política.
(p. 18)
14.1 – Com isto chega-se à consciência de que a vida, nos poemas homéricos, só se desenvolve
na classe senhorial – tudo o que porventura viva além dela só participa de modo serviçal. A
classe senhorial é ainda patriarcal, tão familiarizada com as atividades quotidianas da vida
econômica, que às vezes se chega a esquecer seu caráter de classe. [...] Como estrutura social,
este mundo é totalmente imóvel; as lutas só ocorrem entre diferentes grupos das classes
senhoriais; de baixo, nada surge.
15.1 – Vê-se no nosso episódio da cicatriz, como a cena do lava-pés, pintada aprazivelmente, é
entretecida na grande, significativa e sublime cena da volta ao lar.
15.2 – Isto está longe, ainda, daquela regra da separação dos estilos que mais tarde se imporia
quase por completo, e que estabelecia que a descrição realista do quotidiano era inconciliável
com o sublime, e só teria lugar no cômico ou, em todo caso, cuidadosamente estilizado, no
idílico. E contudo, Homero está mais perto dela do que o Velho Testamento. (p. 19)
15.3 – [...] os grandes e sublimes acontecimentos ocorrem nos poemas homéricos muito mais
exclusiva e inconfundivelmente entre os membros de uma classe senhorial; estes são muito
mais intatos na sua heroica sublimidade do que as figuras do Velho Testamento, que podem
cair muito mais profundamente na sua dignidade [...]; e, finalmente, o realismo caseiro, a
representação da vida quotidiana, permanecem sempre, em Homero, no idílico-pacífico –
enquanto que, já desde o princípio, nos relatos do Velho Testamento, o sublime, trágico e
problemático se formam justamente no caseiro e quotidiano: acontecimentos como os que
ocorre entre Caim e Abel [...] não são concebíveis no estilo homérico. (p. 19)
15.4 – Nos relatos do Velho Testamento [...] surgem complicações inconcebíveis para um herói
homérico. Para estes, é necessário um motivo palpável, claramente exprimível, para que
surjam conflito e inimizade, que resultam em luta aberta; enquanto que naqueles, o lento e
constante fogo dos ciúmes e a ligação do doméstico com o espiritual [...] conduzem a uma
impregnação da vida quotidiana com substância conflitiva e, frequentemente, ao seu
envenenamento.
15.5 – A sublime intervenção divina de Deus age tão profundamente sobre o quotidiano que os
dois campos do sublime e do quotidiano são não apenas efetivamente inseparados mas,
fundamentalmente, inseparáveis. (p. 19)
16 – Comparamos os dois textos e, ao mesmo tempo, os dois estilos que encarnam, para obter
um ponto de partida para os nossos ensaios sobre a representação literária da realidade na
cultura europeia. Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um lado,
descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre,
predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico
e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes e
escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos,
multivocidade e necessidade de interpretação do devir histórico e aprofundamento do
problemático. (p. 20)
17 – Uma vez que tomamos os dois estilos, o de Homero e o do Velho Testamento, como
pontos de partida, admitimo-los como acabados, tal como se nos oferecem nos textos; [...] foi
em seu pleno desenvolvimento alcançado em seus primórdios que esses estilos exerceram sua
influência constitutiva sobre a representação europeia da realidade. (p. 20)
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