A Arte de Escrever - Arthur Schopenhauer
A Arte de Escrever - Arthur Schopenhauer
A Arte de Escrever - Arthur Schopenhauer
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo geral analisar o conto “O Horla”, de Guy de Maupassant
(segunda versão), com base em teóricos que realizam estudos e discussões acerca da literatura fantástica;
elencar, dentro dos pressupostos da teoria literária, os elementos da narrativa que formam o conto (enredo,
narrador, personagens, espaço, tempo); e observar, a partir do suporte teórico estabelecido, quais as principais
temáticas presentes no conto analisado, fazendo uma relação entre estas temáticas e a teoria do duplo/cópia.
Além da obra de Maupassant (2006), temos como suporte teórico para esta discussão as teorias que remetem
às características da literatura fantástica desenvolvidas, de uma maneira mais geral, por Rodrigues (1988) e
Todorov (2004); e, num âmbito mais específico, as teorias apresentadas por Bloom (2001) e Furtado (1980).
1 INTRODUÇÃO
Encontramos no texto literário uma nova forma de se relatar os fatos da realidade, ou até
mesmo de se “confundir” estes fatos. A literatura surge, inicialmente, como mimesis da realidade,
como afirma Aristóteles na sua Poética: “A epopéia, o poema trágico, bem como a comédia, o
ditirambo em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo, todas vêm ser, de modo geral,
imitações.” (2005, p. 19) Aqui, Aristóteles refere-se aos gêneros produzidos na época, mas não
podemos deixar de perceber que este conceito de arte da imitação foi referenciado à literatura
durante muito tempo.
Temos, ao longo da história da literatura, uma série de escolas literárias que tinham como
intuito transmitir, da forma mais fiel, o que acontecia no cotidiano das pessoas. Até hoje, podemos
considerar os textos produzidos, desde o Quinhentismo até o Realismo, representações do que
aconteciam nas sociedades nas quais viviam os escritores de determinadas épocas. A nossa
tendência a identificarmos com a imitação é natural, inerente ao ser humano, como afirma
Aristóteles:
Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em
ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da
imitação - e todos têm prazer em imitar (2005, p. 21-22).
1
Aluna do Mestrado em Linguagem e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande.
2
Aluno do Mestrado em Linguagem e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande.
No entanto, assim como nas outras artes, o escritor foi se desligando dessa referência com a
realidade ao longo dos anos, e passou a utilizar o texto literário como forma de criação de uma nova
realidade, desconstruindo a referência de mundo e de comportamento do ser humano que nós
construímos ao longo da vida. Sobre o surgimento da literatura fantástica, Rodrigues afirma:
O fantástico, no sentido estrito, se elabora a partir da rejeição que o Século das
Luzes faz do pensamento teológico medieval e de toda a metafísica. Nesse sentido
ele operou uma laicização sem precedentes do pensamento ocidental. Pensar o
mundo sem o auxílio da religião ou de explicações metafísicas, essa é a grande
proposta do século XVIII. [...] A partir daí, como diz Irène Bessière, temos a
desconstrução de um verossímil de origem religiosa, “pelo jogo de uma
racionalidade suposta comum ao sujeito e ao mundo”.
[...] O fantástico se desenvolve, segundo Bessière, exatamente pela “fratura dessa
racionalidade”, que, tendo procurado objetivamente dar a explicação do mundo e
do indivíduo autônomo, criar sistemas e críticas da sociedade [...], não pode dar
conta da singularidade e da complexidade do processo de individuação (1988, p.
27).
Textos construídos a partir do que consideramos insólito podem causar, a princípio, muito
estranhamento no leitor, mas ao mesmo tempo prendem a nossa atenção. Eis a literatura fantástica,
definida por Rodrigues:
[...] o efeito de incerteza e da hesitação provocada no leitor face a um
acontecimento sobrenatural [...].
[...] o fantástico se situa na experiência do leitor real, que deve ser a do medo, a da
intensidade emocional provocada pela intriga [...]” (1988, p. 28-29).
Podemos, então, definir o fantástico sob a perspectiva de Rodrigues como uma relação entre
sobrenatural/natural, real/irreal, inanimado/animado, eu/outro (duplo). Este último elemento,
recorrente em algumas leituras feitas durante o curso da disciplina “Abordagem do romance no
Ensino Médio: manifestações do fantástico”.3 nos chamou atenção. A partir de uma série de
discussões acerca da literatura fantástica, tivemos um momento em que foi necessária a reflexão
sobre o que foi discutido em termos teóricos e metodológicos acerca desta vertente literária.
Contos como O outro de Jorge Luís Borges, Dentro de um espelho de Valliere Bresson, O
espelho de Machado de Assis, nos trazem a temática do duplo, representada pelo reflexo do “eu” no
espelho que ao mesmo tempo revela um “outro” que seria a duplicação desse “eu”. Esse evento
pode acontecer através desse objeto que reflete imagens, ou através da “duplicação” da própria
realidade, como acontece em O outro, e no conto aqui estudado: O horla de Guy de Maupassant.
Diante da inquietação apresentada no conto através do protagonista/narrador, chegamos aos
seguintes questionamentos: o que torna esta narrativa, construída sob os pressupostos estruturais de
um conto tradicional, um texto fantástico? A partir deste questionamento, elencamos enquanto
3
Disciplina optativa oferecida pelo Programa de Pós Graduação em Linguagem e Ensino da Universidade
Federal de Campina Grande.
principal objetivo deste trabalho analisar o conto “O Horla”, de Guy de Maupassant (segunda
versão), com base em teóricos que realizam estudos e discussões acerca da literatura fantástica. De
forma específica, objetivamos ainda elencar, dentro dos pressupostos da teoria literária, os
elementos da narrativa que formam o conto (enredo, narrador, personagens, espaço, tempo); e
observar, a partir do suporte teórico estabelecido, quais as principais temáticas presentes no conto
analisado, fazendo uma relação entre estas temáticas e a teoria do duplo/cópia.
Para a realização deste trabalho, tivemos como principal norte teórico os textos de
Rodrigues (1988), Todorov (2004) e Furtado (1980), estes que apresentam como se formou a
literatura fantástica e como podemos conceituá-la diante das várias vertentes que temos dentro da
mesma (o fantástico, o maravilhoso, o conto de fadas). Estes autores procuram, ainda, observar de
que forma o texto fantástico se organiza estruturalmente, além de resgatar e analisar alguns textos
que representam este tipo de literatura. Maupassant (2006) é autor do texto analisado, e sobre o
autor temos o texto de Bloom (2001) que tenta observar os textos de Maupassant através da relação
que existe entre a obra e a vida pessoal do autor – o que parece justificar a escolha de determinadas
temáticas presentes em seus textos.
3.1.1 ENREDO
3.1.2 NARRADOR
3.1.3 PERSONAGENS
3.1.4 TEMPO
3.1.5 ESPAÇO
Henry René Albert Guy de Maupassant foi um escritor e poeta francês que escreveu textos
com uma temática direcionada, em sua maioria, para as situações psicológicas e de crítica social.
“O Horla”, conto aqui analisado, tem sua temática voltada para o psicológico, sendo uma
das obras mais significativas do autor. É importante lembrar que este texto possui duas versões: uma
primeira, mais resumida, que conta de maneira sucinta o que acontece com o personagem principal
da narrativa; e a segunda, mais extensa, escrita em forma de diário na qual podemos observar
diversos outros elementos acerca da vida e do comportamento do narrador/personagem.
Sabe-se que Guy de Maupassant adquiriu sífilis e, em decorrência disso, ele teve diversos
problemas psicológicos como: medo da morte, paranóia e mania de perseguição. Por conta deste
fato, acredita-se que seus textos têm uma influência desta temática em sua construção4.
4
Fonte de pesquisa: Guy de Maupassant. Disponível em
No caso de “O Horla”, alguns teóricos como Bloom (2001) afirmam que existe uma relação
entre sua doença e a temática desenvolvida no conto. O mesmo autor ainda afirma que seria possível
que Maupassant tenha escrito o conto desta forma para mostrar ao público como é viver com sífilis,
e ele ainda estaria prevendo a sua tentativa de suicídio. O autor morreu em 1893: suicidou-se em
decorrência das crises nervosas que tinha por conta da doença.
3.3.1 O DUPLO
O conto “O Horla” tem como principal temática em sua construção a mania de perseguição,
neurose desenvolvida pelo narrador/personagem, que acredita estar sendo seguido por um “ser” que
se alimenta de sua energia enquanto ele dorme e passa a perseguí-lo diariamente. Essas sensações
vão tomando uma proporção maior ao longo da história, já que inicialmente o narrador/personagem
acredita estar apenas doente, mas depois isso se intensifica ao ponto dele não conseguir mais viver
tranquilamente em sua casa por conta da sensação constante de estar sendo observado pelo Horla.
O duplo é uma sub-temática desenvolvida no conto a partir desta neurose do
narrador/personagem, e consiste na confusão que este faz acerca da existência do Horla junto à sua:
em determinados momentos do texto o narrador está tão confuso que começamos a nos confundir se
ele mesmo não é o próprio Horla.
Jean Baudrillard (1991) afirma que o duplo é uma figura imaginária que, como a alma, a
sombra, a imagem no espelho, persegue o sujeito como o seu outro, fazendo com que este seja ao
mesmo tempo ele próprio e nunca o mesmo. Conforme seu raciocínio, a riqueza e poder do duplo
encontram maior ressonância na sua imaterialidade, ser e permanecer um fantasma.
Assim, a literatura fantástica nos coloca em contato com cenas insólitas para nos
surpreender e fazer com que dessa surpresa seja desencadeada uma reflexão sobre o real. As
manifestações do duplo estão ligadas ao gênero fantástico não apenas pelos mecanismos de
repetição do semelhante e acúmulo de coincidências, mas também pela função subversiva de
desmascaramento moral e social aos quais o protagonista é submetido com o aparecimento da figura
fantástica.
O conto desenvolve-se de maneira gradativa e as situações que envolvem a mania de
3.3.1.2 O ESPELHO
Essa é uma das cenas que melhor descreve a questão do duplo no conto. O
narrador/personagem encontra-se em seu quarto, escrevendo, e percebe que está sendo observado
pelo Horla. Numa nova tentativa de pegá-lo, ele levanta-se rapidamente e quando olha para o
espelho ver o “ser” refletido nele. No entanto, quando a imagem vai se formando, ele acaba vendo a
própria imagem refletida:
Fingia, então, estar escrevendo, para enganá-lo, pois ele também me espiava, e, de
súbito, senti, tive a certeza de que ele lia por cima do meu ombro, de que ele
estava ali, roçando a minha orelha.
Levantei-me, com as minhas mãos estendidas, virando-me tão depressa que quase
caí. Pois bem!... enxergava-se como em pleno dia, e eu não me vi no espelho!...
Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Minha imagem não estava lá... e
eu estava diante dele! Eu via de alto a baixo o grande vidro límpido. E olhava para
aquilo com um olhar alucinado; e não ousava mais avançar, não ousava mais fazer
qualquer movimento, sentindo, no entanto, que ele estava lá, mas que me
escaparia de novo, ele, cujo corpo imperceptível havia devorado o meu reflexo.
Como tive medo! Depois, eis que de repente comecei a avistar-me numa bruma
no fundo do espelho, numa bruma como através de uma toalha d’água; e me
parecia que esta água deslizava da esquerda para a direita, lentamente, tornando a
minha imagem mais precisa a cada segundo. Era como o fim de um eclipse. O que
me ocultava não parecia possuir contornos claramente definidos, mas uma espécie
de transparência opaca que ia clareando pouco a pouco. Pude, enfim, distinguir-
me completamente, assim como faço todos os dias ao me olhar.
Eu o tinha visto! Ficou-me o terror daquela visão que ainda me faz estremecer”
(MAUPASSANT, 2006, p. 113).
A situação aqui assemelha-se à citada anteriormente (a cadeira e o livro), já que relata uma
ação em que o narrador/personagem encontra-se concentrado em outra coisa e levanta-se
bruscamente para capturar o Horla. No entanto, o que mais chama atenção nesse trecho da narrativa
é o fato de ele ter confundido a imagem refletida no espelho: seria o Horla ou apenas a sua própria
imagem refletida no espelho? Pode ser que a sua neurose esteja maior (como aqui falamos sobre
como os fatos se desenvolvem gradativamente no conto) e agora ele não saiba mais distinguir quem
é o Horla, que poderia ser ele mesmo.
Após passar toda a narrativa sendo “perseguido” pelo Horla, o narrador/personagem resolve
montar uma armadilha para capturá-lo, para livrar-se de todo aquele tormento. Fecha as portas da
casa, tranca-se em seu quarto e, quando percebe que o “ser” está lá e sente-se incomodado por não
conseguir locomover-se no ambiente, o narrador/personagem sai da casa e toca fogo no local. De
longe, observa sua casa em chamas, mas começa a refletir sobre a possibilidade de não conseguir ter
matado o Horla, já que ele não é alguém de carne e osso:
E se não tivesse morto?... só o tempo, talvez, tem poder sobre o Ser Invisível e
Temível. Por que então esse corpo transparente, esse corpo imperceptível, esse
corpo de Espírito, se ele também tivesse que temer os males, os ferimentos, as
doenças, a destruição prematura?
A destruição prematura? Todo o terror humano provém dela! Depois do homem, o
Horla – após aquele que pode morrer em qualquer dia, a qualquer hora, a qualquer
minuto, por qualquer acidente, chegou aquele que só deve morrer no seu dia, na
sua hora, no seu minuto, porque atingiu o limite da sua existência!
Não... não...sem dúvida alguma, sem dúvida alguma... ele não morreu... Então...
então... vai ser preciso agora que eu me mate! (MAUPASSANT, 2006, p. 116)
Teria então ele se livrado daquele ser que o perseguia diariamente? Nesse momento nós
percebemos que isso pode não ser possível, já que um ser que não tem um corpo físico não pode,
teoricamente, ser destruído. No entanto, sabendo que aquilo tudo pode ser fruto da imaginação do
narrador/personagem, podemos então concluir o mesmo que ele, ou seja, que apenas a sua morte
consistirá na eliminação por completo do Horla.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da leitura que fazemos do conto “O Horla” podemos perceber que, apesar desta
ser uma narrativa construída a partir dos elementos que compõem um texto deste gênero, sua
temática determina a sua classificação enquanto texto fantástico. Dessa forma, podemos dizer que
mesmo havendo uma relação com o clássico em sua estrutura, o texto é classificado enquanto
fantástico (a partir da temática).
A estrutura em forma de relato (diário) visa intensificar o caráter documental da história
contada pelo narrador: o conto ora é apresentado como confissão de um interno ora como um diário
íntimo. Além disso, o diário aumenta bastante o número de páginas e deixa a desordem subjetiva
refletir-se numa desordem da escrita.
O duplo costuma aparecer concretamente como o encontro com o original, à usurpação da
identidade no âmbito público e privado e a dúvida sobre a própria existência, conflitos estes que
observamos a todo o momento no conto. Essa imagem é polissêmica por natureza. Suas
inquietações vão além do estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias da
fragmentação do sujeito, revelando sua fragilidade, seus temores e frustrações humanas.
Longe de definir uma escolha, a narrativa manterá uma ambiguidade indecifrável em torno
dos acontecimentos – o que constitui o ritual, por excelência, da literatura fantástica, logo, por mais
que possamos querer definir o comportamento do narrador/personagem enquanto um excêntrico
neurótico que imagina estar sendo perseguido por um “ser”, não sabemos ao certo se isto é fruto de
sua imaginação ou se o Horla realmente existe. Cabe ao texto literário deixar estas “pistas” que nos
afirma algo, mas que ao mesmo tempo nos confunde.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Arte Poética. In.: ARISTOTELES, HORÁCIO & LONGINO. A poética clássica.
12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 19-52.
BLOOM, Harold. Como e porque ler. Rio de Janeiro: Objetiva LTDA, 2001. Disponível em <
http://pt.scribd.com/doc/6922293/Harold-Bloom-Como-e-Porque-Ler> acesso em 30/05/12.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Versão 1.0. Junho de 2009.
MAUPASSANT, Guy de. Contos fantásticos. O Horla & outras histórias. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 2006. p. 71-116.
TORODOV, Tzevan. A definição do fantástico. In: Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Perspectiva, 2004, p. 29-63.