Wille Bolle

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I V A N T E I X E I R A

Rosa e depois: o curso


da agudeza na literatura
contempornea
(esboo de roteiro)
UM CONCEITO OPERACIONAL DE AGUDEZA

Boa parte dos efeitos literrios obtidos por


Guimares Rosa e por Joo Cabral decorre da apropriao de certos elementos da agudeza seiscentista, muito
bem aclimatada em diversos aspectos da construo
da arte no sculo XX. Dentre as inmeras manifestaes da agudeza na arte contempornea, talvez se
pudesse apontar o movimento potico ingls do
Vorticismo como um dos principais momentos de concentrao desse procedimento, mesmo conside-

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IVAN TEIXEIRA
doutor em Literatura
Brasileira pela USP,
professor da ECA-USP,
autor de Mecenato
Pombalino e Poesia
Neoclssica (a sair pela
Edusp) e organizador
de uma edio
atualizada e anotada
da Arte Potica de
Francisco Jos Freire,
a partir do texto de
1759 (a sair pela Ateli
Editorial).

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rando-se suas razes cubistas. Ezra Pound,


um dos fundadores do grupo e para quem
a poesia dependia sobretudo da curiosity,
passou a vida toda em busca de solues
agudas para seus impasses formais e existenciais. No s os desenhos de Wyndham
Lewis como tambm as esculturas de Henri
Guadier-Brzeska revelam a sbita
contundncia das coisas inesperadas, o que
pode ser exemplificado com a famosa
Cabea Hiertica de Pound esculpida por
este ltimo, autor tambm de um
agudssimo Gato de Mrmore (H. Kenner,
1971, pp. 249 e 257). Ao se falar em aplicao imprevista da inteligncia, pensa-se
normalmente em James Joyce. Em
Finnegans Wake, talvez domine a agudeza
dos vocbulos, enquanto em Ulysses mais
freqente a agudeza do significado, a comear pelas relaes imprevistas com
Homero. Como poderia um romancista investigar o sentido da peregrinao de Ulisses
num nico dia de Dublin, seno atravs de
contnuas sutilezas da imaginao? O mesmo processo de associao engenhosa se
observa em Grande Serto: Veredas, que
se apropria do mito fustico, sem perder a
especificidade de drama sertanejo.
Evidentemente a agudeza seiscentista
no a mesma do sculo XX. Mas h em
ambas algo da mesma compresso semntica e do mesmo esforo mental. A histria
no se repete, mas as estruturas retricas
subsistem, ainda que com diferentes matizes. Nesse sentido, talvez se pudesse
revisitar o conceito de agudeza seiscentista
com o propsito experimental de caracterizar algumas constantes da poesia contempornea no Brasil, igualmente muito
preocupada em causar surpresa mediante
o impacto de lances imprevisveis da inteligncia. No primeiro discurso da Agudeza
y Arte de Ingenio (1648), Baltasar Gracin
queixa-se de que os antigos no tenham
definido a agudeza, embora a praticassem
com freqncia. Sem observ-la com rigor, no deixaram reflexo til sobre ela,
dificultando sua conquista (1960, pp. 2345). O prprio Gracin no a define com
clareza, mas oferece infinito exemplrio e
interminveis comentrios, com os quais

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organiza uma verdadeira arte, no sentido


clssico de compndio de preceitos sobre a
maneira certa e racional de dizer bem as
coisas. Gracin julgava que a agudeza deveria resultar do mtodo e do estudo, e no
depender exclusivamente do esforo do
engenho, que colocava o poeta merc do
acaso. Os antigos souberam criar regras para
o silogismo e para os tropos, mas no se
dedicaram organizao dos meios para se
obter a agudeza. No obstante, ela a alma
das coisas: est para o entendimento, assim
como a luz est para o sol. Na arte de
Gracin, agudeza e conceito se confundem,
pois ambos se unem para dar vida ao que,
sem eles, ser morto (1960, discurso I, p.
136). Se perceber a agudeza aproxima os
homens da guia, produzi-la os aproxima
dos anjos (1960, discurso II, p. 237).
Depois de Gracin, no mbito da lgica, os retores seguiram conceituando a
agudeza como uma aplicao sutil de inteligncia, empenhada na conquista da surpresa mediante os diversos requintes do
estilo potico. Assim conceituada, por
exemplo, num curioso compndio escolar
do sculo XVIII em Portugal: Teatro da
Eloqncia ou Arte de Retrica (1766),
escrito pelo poeta Francisco de Pina de S
e de Melo, chamado Corvo do Mondego
por Filinto Elsio, seu rival na famosa Guerra dos Poetas. A, define-se a agudeza nos
seguintes termos: uma engenhosa expresso ou do conceito ou do pensamento
ou da sentena; ou um dito inesperado, que
faz, com a sua novidade, arrebatar o nimo
pela luz esquisita que comunica ao entendimento (Melo, 1766, p. 229). Antes dessa divulgao portuguesa, porm, o Conde
Emanuel Tesauro, seguindo uma tradio
italiana que remonta a Matteo Pellegrine,
produziu na Itlia um livro equivalente ao
de Gracin na Espanha: Il Cannochiale
Aristotelico, de 1654. Vestgio da divindade, a agudeza no s aproxima os homens
dos anjos, como tambm distingue o discreto do rstico (Melo, 1766, p. 229). Em
Portugal, as idias de Tesauro encontraram
apoio em Francisco Leito Ferreira, membro da Academia dos Annimos que escreveu a Nova Arte de Conceitos, editada em

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dois volumes nos anos de 1718 e 1721.


Trata-se de uma verso portuguesa dos
princpios seiscentistas da expresso aguda, graas qual a poesia gongricoconceptista sobreviveu at a segunda metade do sculo XVIII em Portugal. Com
efeito, o propsito de Leito Ferreira fornecer um mtodo ou arte de fabricar conceitos por imagens e idias engenhosas,
graas ao qual coloca os portugueses em
contato com as grandes idias da doutrina
seiscentista, s quais funde noes adversas, extradas de Muratori e Boileau
(Ferreira, 1718, p. 8). Como quer que se
entenda sua posio transitiva entre o sculo XVII e o XVIII, a Nova Arte de Conceitos representa um estgio interessante da
teoria engenhosa na construo do pensamento em Portugal. Francisco Leito
Ferreira evita o termo agudeza, preferindo
o vocbulo conceito, no sentido de apreenso sutil de uma noo. Ao conceito liga-se
a idia de argumento engenhoso, que o
artifcio com o qual se demonstra a verdade
ou a verossimilhana da matria (Ferreira,
1721, p. 3). Quando no para se entenderem melhor os modernos com o apoio de
uma teoria antiga, o conhecimento da doutrina de Leito Ferreira, alm do inestimvel valor como documento de uma forma
mental especfica, possui a vantagem de
facilitar o contato com o grande discurso
doutrinrio da poesia seiscentista da
Espanha e da Itlia, pois nem Tesauro e
muito menos Gracin demonstram a clareza e a ordenao sistemtica de um verdadeiro tratado ou compndio como o representante deles em Portugal.

O CONCEITO ENGENHOSO
EM GUIMARES ROSA
A partir da experincia do presente autor com esses tratadistas, talvez fosse
demonstrvel a hiptese de que Guimares
Rosa est para Leito Ferreira, assim como
Joo Cabral est para Gracin. Como os
artistas, os retores tinham tambm suas
preferncias de estilo e matria. No se trata de retomar aqui a inoperante separao

entre conceptismo e cultismo, mas de destacar um possvel predomnio da agudeza


em Cabral e um possvel predomnio do
conceito engenhoso em Rosa. Considerese, em particular, Campo Geral, novela
de Corpo de Baile (1956), e Morte e Vida
Severina (1956). Ambos os textos constroem-se a partir de generalidades alegricas,
embora em Campo Geral haja tambm
uma particularidade realista, que o enigma da condio de Miguilim, apresentado
pelo narrador como filho de Nh Bro, mas
que, decifrados todos os ndices e aluses
equvocas, resulta, na trama, como filho de
Tio Terez. Esse um mistrio agudo da
novela, essencial para a captao de seu
aspecto particularista e de sua natureza de
texto cifrado, de significao oblqua. O
aspecto particularista, nesse caso, reside na
construo de uma fbula singular,
caracterizadora da realidade nica de
Miguilim, filho do tio com quem o suposto
pai divide a casa, seus pertences e habitantes. Esse pormenor funciona como integrante da geometria do isolamento de uma famlia no serto mineiro, cujas normas se
desenham conforme a precariedade social
do lugar. medida que o leitor amplia o
foco de observao, saindo da origem de
Miguilim e de sua relao paradoxal de dio
ao pai e amor ao tio, a novela vai perdendo
a singularidade realista e adquirindo
nuanas alegorizantes, at se chegar
encarnao do conceito engenhoso em um
menino-filsofo e ao entendimento dos
culos como metfora da cultura e do conhecimento. Conclui-se, por fim, que a
novela no se prope como o relato de uma
ao, mas como um mito, no sentido de
explorao potica de uma situao carregada de significado transcendente.
Ao investigar a noo de mito em seu
pioneiro estudo sobre James Joyce, W. Y.
Tindall elabora um conceito operacional
que pode auxiliar a compreenso de Campo Geral. Segundo o estudioso norte-americano, mito seria uma narrativa meio
onrica, em que se investigam problemas
pessoais em ntima conexo com a sociedade, com o tempo e com o universo. Ao
unir a realidade com a imaginao, o cons-

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ciente com o inconsciente, o presente com


o passado, o homem com a natureza a
narrativa mtica arca com a funo bsica
de organizar a experincia humana (1950,
pp. 95-126). Evidentemente, Tindall partilha da idia de que as palavras antecedem
as coisas em nossa mente, sendo o nico
meio de conhecer a realidade, noo fundamental na construo das novelas de Corpo de Baile. Assim, o mito pode ser entendido como uma maneira primitiva de transformao da natureza em cultura, de converso do mundo em discurso. Somente
aps nomear uma coisa, o homem capaz
de control-la. Sendo uma novela de formao, a temtica de Campo Geral talvez pudesse se reduzir idia de que conhecer muito doloroso, pois centra-se na
explorao das dificuldades de um menino
na fase em que as coisas, as pessoas e a
famlia comeam a adquirir significado
social, para alm de sua importncia afetiva.
Independentemente do aproveitamento agudo das possibilidades mticas da narrativa, h em Campo Geral algumas passagens de pura aplicao experimental do
conceito engenhoso. O pice dessa explorao encontra-se no momento em que
Miguilim, indeciso com uma atitude que
tinha de tomar, busca orientao em pessoas que julga mais sbias do que ele:
Dito, como que a gente sabe certo
como no deve de fazer alguma coisa,
mesmo os outros no estando vendo? A
gente sabe, pronto. Zerr e Julim perseguiam atrs das galinhas-dangola. Tomezinho jogou uma pedra na perna do Floresto,
que saiu, saindo, cainhando. Tomezinho
teve de ir ficar de castigo. No castigo, em
tamborete, ele no chorava, da deixava de
pirraar: mais de repente virava sisudo,
casmurro to pequetitinho assim, e assombrava a gente com uma cara sensata de
criminoso. Rosa, quando que a gente
sabe que uma coisa que vai no fazer
malfeito? quando o diabo est por
perto. Quando o diabo est perto, a gente
sente cheiro de outras floresA Rosa estava limpando acar, mexendo no tacho.
Miguilim ganhava o ponto de puxa, numa

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cuia dgua; repartia com o Dito. Me,


o que a gente faz, se mal, se bem, ver
quando que a gente sabe? Ah, meu
filhinho, tudo o que a gente acha muito bom
mesmo fazer, se gosta demais, ento j pode
saber que malfeito O vaqueiro J descascava um anans branco, a eles dava
pedao. Vaqueiro J: malfeito como ,
que a gente se sabe? Menino no carece
de saber, Miguilim. Menino, o todo quanto
faz, tem de ser mesmo malfeito O
vaqueiro Saluz aparecia tangendo os bezerros, as vacas que berravam acompanhavam. Vaqueiro Saluz vinha cantando bonito, ele era valente geralista. A ele Miguilim
perguntava. Sei se sei, Miguilim? Nisso
nunca imaginei. Acho quandos os olhos da
gente esto querendo olhar para dentro s,
quando a gente no tem dispor para encarar
os outros, quando se tem medo das sabedorias Ento, mal feito. Mas o Dito, de
ouvir, ouvir, j se invocava. Escuta,
Miguilim, esbarra de estar perguntando, vo
pensar voc furtou qualquer trem de Pai.
Bestagem. O co que eu furtei algum!
Olha: pois agora que eu sei, Miguilim,
tudo quanto h, antes de se fazer, s vezes
malfeito; mas depois que est feito e a
gente fez, a tudo bem-feito...
Como se v, o texto apresenta uma coleo de diferentes respostas ao mesmo
estmulo, cada qual surpreendendo pelo
imprevisto do achado. Nessa, como em
outras situaes, observa-se o quanto Guimares Rosa era preocupado com a busca
da soluo lingstica eficaz, no sentido de
promover o impacto medido sobre o leitor.
Dentro da tradio do culto ao artifcio, no
se contentava com efeitos medianos; buscava sempre o estranhamento completo.
Para tornar ainda mais aguda a seleo de
conceitos engenhosos, esfora-se por
encaix-los em situaes cotidianas, em
meio faina diria de pessoas aparentemente rsticas. Ao preparar o doce, a cozinheira dispara uma resposta incomum; ao
descascar um abacaxi, um vaqueiro exibe
uma pepita conceitual e assim por diante.
O prprio Dito, menino de sete anos, demonstrou agudeza nas duas tentativas de

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Henri GaudierBrzeska, Hieratic


Head of Ezra
Pound, 1913

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responder adequadamente: na primeira, faz


crer que todo saber imanente existncia
que se leva; depois, refora esse pressuposto com a idia de uma tica a posteriori,
em que a f ou o impulso das aes superam a eventual maldade da existncia. Evidentemente, nenhum desses conceitos seria to engenhoso ou agudo, caso a linguagem no acompanhasse o desenho insinuante deles, ou melhor, o seu poder de penetrao decorre tambm do paradoxo que os
acompanha, paradoxo entre a finura da
concepo e a rusticidade das palavras, que
se organizam conforme uma sintaxe oral e
primitiva. Em termos de retrica seiscentista, h um choque entre o nvel elevado da
inveno e o rudimentarismo da elocuo.
A eficcia do efeito depende, em parte,
desse choque, que ecoa na pseudonaturalidade de frases to sutis.
Considere-se por fim que o elenco de
respostas ao mesmo estmulo dessa passagem lembra as variaes sobre o mesmo
tema dos certames seiscentistas. Sabe-se
que, no sculo XVII, os intelectuais reuniam-se em sesses acadmicas para exibir
os frutos dos respectivos engenhos sobre
um tema previamente apresentado. Nessas
disputas, a sutileza das composies funcionava como elemento diferenciador entre
os concorrentes. O homem educado nessas
habilidades verbais e conceituais chamava-se discreto, diametralmente oposto ao
rstico. No texto de Rosa, os diversos conceitos pertencem ao universo de pessoas
discretas, embora sejam emitidos por rsticos. Tanto quanto nas academias seiscentistas, a funo bsica do conceito engenhoso em Campo Geral promover o
deleite intelectual. O fato de Miguilim dirigir-se a vrias pessoas pode caracterizar
o nvel de sua angstia diante da atitude a
ser tomada, mas o resultado de suas perguntas no adensa sua caracterizao. Da
mesma forma, os conceitos enunciados no
auxiliam a definio das personagens que
os enunciam, pois so todos coadjuvantes
com funo estereotipada na histria. Sem
funo narrativa, o propsito dos conceitos
engenhosos na passagem em destaque no
outro seno tornar o texto potico, apto a

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agenciar o prazer com os conceitos. Em


termos retricos, funcionam como ornato
potico de origem seiscentista, o que tem
levado a crtica brasileira a falar em regionalismo universalizante, quando, em rigor,
trata-se da transposio do gnero sapiencial europeu para o serto brasileiro.
Evidentemente, a agudeza dessa passagem projeta-se em toda a novela, que se
acha em perfeita consonncia com o livro
de que parte. Decorrente de uma operao engenhosa do esprito, Corpo de Baile
talvez seja o livro mais enigmtico da literatura brasileira. A partir de conhecidas
informaes do prprio Rosa, Helosa
Vilhena, em A Raiz da Alma, esclareceu
pela primeira vez o significado geral do
ttulo das novelas rosianas, que alude
dana dos planetas, em seu contnuo movimento celestial. Cada uma das sete narrativas da obra associa-se, na simbologia esotrica do livro, a um planeta da cosmogonia
geocntrica, defendida tanto por Plato
quanto por Plotino, ambos presentes nas
epgrafes de Corpo de Baile. Assim, as
histrias correspondem aos integrantes de
um grande bailado csmico, de uma dana
crica, cujo sentido depende de uma harmonia transcendental e de uma infinita regularidade. Segundo a astronomia platnica, restaurada por Plotino, a Terra seria o
centro em torno do qual circulavam os sete
planetas de que ento se tinha notcia. Se
fosse possvel tornar tangvel a abstrao
dos nmeros, o centro do nmero sete seria
o quatro, porque em torno dele se harmonizariam dois grupos de trs unidades. Assim, o centro do Corpo de Baile rosiano s
pode ser a quarta histria do volume: O
Recado do Morro, em torno da qual gravitam as outras seis. Campo Geral associase ao Sol, representado por seo Aristeu, uma
das personificaes de Apolo, deus da luz,
da msica, da poesia e da medicina. Era
tambm protetor das abelhas. De fato, essa
personagem possui, na novela, todos os atributos daquele deus. Ele no apenas induz
Miguilim a curar-se de uma depresso, que
o levou ao desejo inconsciente da morte,
como tambm lhe desvenda os caminhos
da inveno de histrias, o que consiste num

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dos momentos mais importantes do precoce amadurecimento da personagem, o que


no quer dizer que tenha se tornado adulto
ao deixar o Mutum. Metfora dos efeitos
da luz solar, as curas de seo Aristeu destinavam-se ao esprito. Tais curas incluam a
prtica da dana e da poesia como instrumentos, diferentemente das do outro curandeiro da histria, o soturno Deogrcias,
que se limitava ao aspecto fsico do corpo.
Enfim, a presena do sol nessa novela suporta a idia de que a luz dos olhos de
Miguilim advm da ordem universal do
Cosmos, apenas modulada pela interveno do homem atravs dos culos (cultura). Refora, tambm, os laos de Campo
Geral com os demais textos de Corpo de
Baile. Conforme a potica seiscentista,
somente o engenho consegue perceber a
relao entre coisas aparentemente desconexas. E Rosa demonstra amplo domnio
sobre os dois tipos de engenho previstos
pela tradio: engenho vasto, que sobrevoa
a realidade das coisas, estabelecendo entre
elas conexes que as pessoas normais no
conseguem perceber; e engenho agudo, que
penetra a intimidade das coisas, descobrindo nelas componentes imprevistos aos olhos
vulgares.

AGUDEZA DAS IMAGENS


EM JOO CABRAL
A potica de Joo Cabral de Melo Neto
tambm pode ser associada aos artifcios
do seiscentismo, embora nele talvez predomine a agudeza dos vocbulos e das
imagens, em vez do conceito engenhoso.
Pela lgica do presente ensaio, a obra mais
aguda de Cabral Morte e Vida Severina,
apesar de toda a pregao em contrrio.
Trata-se do livro em que se mantm um
nvel mais contnuo de ditos inesperados,
com variaes, retomadas e solues constantemente sutis. Alm disso, dentre os
maiores, o nico livro dele que no fala
sobre as coisas, mostra-as. Logo, partilha
do princpio platnico segundo o qual o
poeta, para ser tal, deve compor fbulas, e
no discursos (Freire, 1759, vol. I, p. 37).

Esboado em O Co sem Plumas e em O


Rio, o Auto de Natal Pernambucano representa o momento diamantino de maturao
de uma fase decisiva na produo do autor.
Pura fico o boato, criado pelo prprio
poeta, de que se trata de obra menor, feita
s pressas para atender a uma encomenda.
Ainda que o tempo real da elocuo possa
ter sido curto, sua inveno (descoberta da
matria) custou ao poeta pelo menos cinco
anos, vindo da soberba experincia com os
dois outros textos do ciclo do Capibaribe,
iniciado em 1950. Muito irnico, insinuante e sabedor da popularidade de seu poema
dramtico, Joo Cabral desencadeou um
curioso processo de pseudodepreciao do
trabalho, cujo resultado (o sucesso crescente) pode ter sido programado pela excentricidade penetrante do artista. Caso
bafejasse a criao com justificativas, explicaes e excesso de auto-estima, talvez
atrasse a antipatia do pblico e da crtica.
Trabalhando supostamente contra, atraiu
adeses. Efetivamente, h nisso um procedimento em diagonal, bem tpico das inteligncias agudas.
Uma das razes centrais do sucesso de
Morte e Vida Severina consiste na inveno de uma trama para o poema, algo
incomum na poesia brasileira. Quer dizer,
trata-se de um texto imitativo, no qual no
fala o poeta, mas introduz pessoas que falem por ele, conforme a definio de Francisco Jos Freire para o gnero dramtico,
em sua Arte Potica ou Regras da Verdadeira Poesia, de 1759 (vol. I, p. 29). A simples condio ficcional bastaria para conferir singularidade ao poema, pois integra
a sua estrutura a metfora representativa,
que mais espirituosa que a usual metfora
de significao, porque opta pela ao, tornando-a imediatamente visvel ao destinatrio, que tanto pode ser um leitor quanto
um espectador, pois o texto participa da
dupla condio de teatro e poesia.
Aristteles chama ao procedimento
prosomaton, que equivale a por diante dos
olhos. Alm disso, o texto desenvolve um
conceito social, que o poeta soube transformar em ao ficcional e a cujo desenvolvimento associou uma alegoria dinmi-

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ca, com dilogos, deslocamentos, trama e


desfecho. Quando se compara Morte e Vida
Severina com a poesia imediatamente anterior, conclui-se que a escolha de seu
material e de sua tcnica obedeceu a um
padro de rigor e agudeza, no sentido de
promover uma diferena eficaz.
Do ponto de vista propriamente
compositivo, o Auto de Natal cabralino no
menos sugestivo, a comear pelo monlogo de abertura, inteiramente marcado por
tiradas de efeito imediato. Comeam a os
ditos agudos: Severino procura identificarse perante o leitor, mas no acha meios,
pois, julgando-se um indivduo, no passa
de um tipo social ou de uma alegoria da
misria. Consciente da falta de identidade,
o retirante inicia a viagem em busca da vida,
sem saber que seguia o prprio enterro.
Chegando zona da mata, entre o serto e
o litoral, o retirante depara com o enterro
de um trabalhador do eito e ouve o que
dizem os amigos que o levaram ao cemitrio. Como outras do auto, essa cena rigorosamente dominada por uma vertiginosa
seqncia de sutilezas engenhosas, organizadas como se fossem um dilogo entre os
acompanhantes do enterro. Em rigor, tratase de um pseudodilogo, pois as pessoas
no se empenham na comunicao, desejam apenas exibir o brilho de suas falas,
que tomam o defunto como mote para as
engenhosas variaes sobre o mesmo tema.
Um pouco diferente da passagem citada de
Rosa, essa cena de Morte e Vida Severina
no busca a elaborao de conceitos engenhosos, mas to-somente de tropos agudos
e engenhosos, formando uma longa reiterao daquilo que os retores seiscentistas chamam de ornato de palavras, que, no limite,
resulta numa espcie de guirlanda eloqente, com inmeras flores de retrica:
[]
Vivers, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e ters enfim tua roa.
A ficars para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas savas.
Agora trabalhars

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s para ti, no a meias,


como antes em terra alheia.
Trabalhars uma terra
da qual, alm de senhor,
sers homem de eito e trator.
Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
sers semente, adubo, colheita.
Trabalhars numa terra
que tambm te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
Ser de terra
tua derradeira camisa:
te veste como nunca em vida.
Ser de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ningum cobia.
Ters de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
Como s homem,
a terra te dar chapu:
fosses mulher, xale ou vu.
Tua roupa melhor
ser de terra e no de fazenda:
no se rasga nem se remenda.
Tua roupa melhor
e te ficar bem cingida:
como roupa feita medida.
[]
Dentro da rede no vinha nada,
s tua espiga debulhada.
Dentro da rede vinha tudo,
s tua espiga no sabugo.
[]
Como se v, a ordem compositiva segue a tcnica do desafio nordestino ou da
saeta espanhola, em que cada unidade semntica se esfora por superar a agudeza
da anterior. Tal como o texto de Rosa, este
uma espcie de roscea em torno do mesmo ncleo, posto ali como motivao ldica
do esprito. No discurso III de seu manual,
Gracin afirma que a uniformidade limita
e a variedade amplia (1960, p. 240). A surpresa do texto de Cabral resulta da fuso de
ambas as hipteses. Nele, preservam-se as
mesmas estruturas frasais, cuja repetio
exaustiva torna mais sensveis as variaes,

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processo que por si s revela o empenho da


alma em dominar os artifcios que conduzem agudeza. O artifcio central do texto
consiste no paradoxo de o defunto conquistar a vida s depois da morte, imagem que
ganha significado social pela ironia de sugerir a dissoluo da vida como sada para
o impasse da misria nordestina. Swift sugeriu a devorao das criancinhas como
medida contra a fome na Irlanda. Depois
do paradoxo, Cabral adota a metfora disjuntiva, que descobre semelhana em termos contrapostos; separa medida que une.
Em seguida, multiplicam-se as antteses,
refletindo-se na dissonncia das rimas imperfeitas como forma inesperada de atrao: chuva / savas, trator / senhor, sabugo
/ tudo. A dissonncia resulta do estabelecimento do padro seguido de ruptura programada mas imprevista, que no se limita
ao aspecto sonoro, mas tambm semntico, dentro da regularidade sinttica.

REITERAES CUMULATIVAS
EM HAROLDO DE CAMPOS
Depois de Cabral a procura da agudeza
persistiu na literatura brasileira, dominando completamente o horizonte da Poesia
Concreta, cujo programa talvez pudesse ser
sintetizado pela frmula: muita agudeza e
pouco discurso. De modo geral, pode-se
afirmar que a agudeza fugiu da frase para
se abrigar na palavra. Na fase ortodoxa do
movimento, o tropo converteu-se em trocadilho, em trocadilho expansivo, na medida em que seus efeitos se alargaram pela
pgina, em projees tipogrficas e mudana de cores. O vocbulo dentro do vocbulo, slabas semelhantes em vocbulos
diferentes, imitao da geometria das coisas mediante a exploso tipogrfica dos
vocbulos enfim, trata-se da retomada de
um aspecto importante e pouco estudado
da poesia seiscentista, aspecto que hoje
praticamente s se conhece mediante a
censura neoclssica, sobretudo em Lus
Antnio Verney e Francisco Jos Freire.
Evidentemente, o tropo permaneceu na
Poesia Concreta, mas explorado isolada-

mente. O artifcio deixou-se de esconder


na frase para se mostrar abertamente como
finalidade do poema, cuja sutileza passou
a depender tambm da brevidade e da aluso provocante. O engenho maior do movimento concreto talvez consista em fornecer novos critrios para a leitura de poesia
no Brasil, conduzindo a sensibilidade para
o desnudamento dos processos. Uma das
manifestaes desses critrios a valorizao do vocbulo inveno, com que a retrica tradicional designa um dos quatro passos do processo de comunicao verbal.
Na acepo tradicional, a inveno consiste na escolha dos argumentos com que se
pode convencer o juiz, argumentos inteiramente previstos pelo costume oratrio.
Em poesia, os argumentos confundem-se
com a matria potica, igualmente codificada pela tradio dos bons modelos. Da,
a poesia concreta extraiu o termo inveno, aplicado em acepo prxima de
agudeza. Assim, o vocabulrio crtico do
grupo concreto passou a medir o grau de
penetrao de um texto a partir do teor de
inveno ou criatividade que pudesse ter,
tomando sempre como parmetro um determinado conjunto de obras que estabelece
como seus modelos ou tradio (paideuma).
Contrariando uma certa tendncia para
a poesia basicamente unicelular do movimento concreto, que produziu blocos de
significao compacta porm limitada,
Haroldo de Campos retomou, no incio dos
anos 60, o discurso de natureza seiscentista,
principalmente em sua dimenso aguda,
mediante a manipulao catica e tumulturia de tropos e figuras. Resultou da o
[Livro de Ensaios] Galxias, uma das experincias mais surpreendentes da literatura brasileira no sculo XX. O primeiro
impacto da agudeza haroldiana decorre da
relao que estabeleceu entre discurso tradicional e discurso de vanguarda, removendo as barreiras no apenas entre poesia
e prosa, mas tambm entre os limites do
racional e do irracional. As Galxias no
procuram ordenar o caos. Tanto quanto se
pode imaginar, o mundo para o poeta achase demasiadamente organizado, razo pela
qual ele procura a desordem, o domnio do

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O poeta
Ezra Pound;
abaixo, Henri
Gaudier-Brzeska,
Marble Cat

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acaso e das transgresses. Tudo em Galxias aponta para possibilidades imprevistas, mediante o domnio de um estranho
arsenal de procedimentos, manipulados
com invulgar percepo da corporeidade
dos vocbulos. A agudeza aplica-se sobretudo ao aspecto significante das palavras,
pois se tratava de sugerir e investigar significaes no codificadas. Nesse sentido, o
poeta rompeu com a noo consagrada de
copia rerum, isto , com o conjunto de argumentos retricos ou casos poticos armazenados pela tradio. Dos topoi ou lugares consagrados, aproveita apenas mnimas sugestes, melhor entendidas como
estmulos ou motivos para a experincia da
inveno (escolha da matria) em estado
de virgindade. Em outros termos, o poeta
pretende reinaugurar o ato de criao, estabelecendo um horizonte composto apenas
de possibilidades, jamais de certezas. Enfim, essa a verdadeira potica de Haroldo
de Campos, constantemente angustiado
entre as infinitas hipteses do acaso, sem
jamais apostar no consenso. Atrado pelas
experincias rosianas e joycianas (o Joyce
de Finnegans Wake), Haroldo de Campos
parece no ter se preocupado com significados fora do texto, pois partiu da idia de
que a semntica literria resulta do poeta e
seu convvio com as palavras, em constantes fuses, refuses e transgresses.
As Galxias compem-se de fragmentos em longos versos sem nenhuma espcie
de pontuao. O poeta concebeu os fragmentos para serem lidos em qualquer ordem, exceto quanto aos de abertura e fechamento, que funcionam como um tnue
limite extrema liberdade dos fragmentos
internos. Os seiscentistas chamavam luz
agudeza. Por essa perspectiva, os textos
deste livro talvez pudessem ser entendidos
como um agrupamento de pontos luminosos, que resultam numa enorme reunio de
tropos e figuras, mutuamente atrados pela
corporeidade dos vocbulos que os compem. Essa idia talvez funcione como uma
possvel explicao do ttulo, que alude a
um conglomerado reiterante de imprevisibilidades lingsticas, rutilando na profuso de cores, sons, registros, idiomas,

encontros e desencontros de frases e vocbulos:


Cadavrescrito voc o sonho de um
[sonho escrever em linguamarga para
sobreviver a linguamorta vagamundo
[carregando a tua malamgica
zaubermappe para fazer a defesa e a
[ilustrao de esta lngua morta
esta moura torta esta mo que corta um
[umbilifio que me prega porta
a difusa e a degustao de e em
[milumapginas no haver ningum algum
nenhum de nenhrias que numa noite
[nltima em noutubro ou em novembro
ou talvez em deslembro por alguma
[nunca nihilada de janurias naves
novilunas finisterre em teu porto por isso
[no parta por isso no porte
reparta reporte destrince esta
[macarronada em malalngua antes que
[]
contomenos este teu conto a menos sem
[somenos nem comenos este canto
mesmo que j agora teima e no se faz
[por menos mas nem vem que
no tem se no te serve o meu trem se a
[canoa tem furo por a
o futuro morre velho o seguro mas eu
[combato no escuro e pelo triz
pelo traz pelo truz pelo trez tanto faz
[tanto fez minha sina eu que
sei eu que pago pra ver se no dois no
[acerto jogo tudo no trs
e ainda tenho uma vez esta histria
[muito simples uma histria
de espantar no conto porque no conto
[porque no quero contar
cantando cantava o sol contando contava
[o mar contava um conto cantado
de terra sol e mar e ar meu canto no
[conta um conto s canta como cantar.
So tantas as implicaes deste fragmento com o mundo contemporneo, que
se torna difcil perceber sua conexo com a
chamada poesia barroca. Talvez fosse mais
fcil explicitar seus contatos com a teoria,
genericamente entendida, da pop art, voltada para a desssacralizao da matria e
dos procedimentos. Evidentemente, isso

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fundamental para uma leitura ampla das


Galxias. Todavia, na perspectiva do presente ensaio limitado por sua orientao
prismtica talvez se pudesse entender a
apropriao da maquinaria do estilo
seiscentista como um dos traos especficos de Haroldo de Campos, em consonncia com seus antecedentes mais prximos
Joo Cabral e Guimares Rosa. Gngora
sempre foi acusado de vacuidade semntica pela crtica tradicional, como se a
ausncia de assunto explcito (que pudesse
se destacar do enunciado lrico) fosse um
defeito do poeta. Passado o tempo, constatou-se que se tratava de uma concepo
maximamente potica da linguagem. O
mesmo se pode dizer da potica de Haroldo
de Campos, para quem a materialidade do
signo essencial. Nesse sentido, o trocadilho, o equvoco, as projees especulares
de um vocbulo sobre o outro e as
reduplicaes frasais constituem aspecto
relevante de uma experincia aguda com a
poesia. Do acmulo intencional desses procedimentos decorre o efeito labirntico da
frase, imposta como um simulacro da idia
de poesia enquanto luta do artista com as
palavras e enquanto luta entre estas no texto. Dinmica por excelncia, a potica das
Galxias no se limita s sutilezas prprias
do estilo agudo (agudezas descobertas), mas
estende-se tambm ao domnio dos jogos
vocabulares tidos como mais fceis e previsveis. Nesses casos, o engenho manifesta-se mediante a reiterao pop, em que
ganha corpo a dessacralizao do ritual
potico, convertido num verdadeiro laboratrio de consonncias lricas de natureza
pardica.

PARNTESE HISTRICO
Na poca do voto indireto, Mrio
Chamie fez escolhas polticas que o tornaram bastante esquecido, o que compreensvel mas no razovel. Houve ainda a polmica com os concretos, que deve ter auxiliado o relativo ostracismo do poeta. Em
alguns setores, como se ele no existisse.
Mas a prpria poesia est cheia de poltica.

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Logo, no seria mal reler Mrio Chamie,


sem preconceito nem partidarismo. A histria e a crtica no devem se orientar por
circunstncias de momento. A releitura de
Chamie poderia comear por Lavra Lavra
(1962), livro convincente, sobretudo se se
levar em conta o momento em que foi concebido, agitado pelo desejo de supremacia
de vrias vozes. No se pode esquecer que,
quando a Poesia Concreta fez crer que o
verso estava morto, Mrio Chamie empenhou-se na manuteno dele, praticandoo de modo denso e rigoroso, o que, paradoxalmente, tem sido o ideal de quase todos
os poetas nas duas ltimas dcadas. A teoria da Poesia Prxis, exposta em Lavra
Lavra, engenhosa, embora seu resultado
possa ser apreciado sem tais pressupostos.
Por sorte, isso sempre acontece no sculo
XX, desde o Prefcio Interessantssimo,
de Mrio de Andrade. Atualmente, Lavra
Lavra integra o volume Objeto Selvagem,
que rene a poesia completa de Mrio
Chamie at 1977, mas talvez devesse ser
reeditado separadamente, em funo no
s de seu valor histrico, mas tambm para
propiciar um contato mais especfico com
essa aprecivel experincia construtiva, em
que no raro a agudeza comparece como
geometrizao calculada da surpresa. Os
poetas que, com solues no-retrgradas,
apostaram na permanncia do verso durante a crise concretista, tendem hoje a se consagrar como heris, pela obscura pertincia na manuteno de um projeto paralelo
ao da Poesia Concreta, que durante certo
tempo foi a nica opo a desfrutar de prestgio, a julgar pelo consenso da mdia e dos
intelectuais. Antes de Chamie, Ferreira
Gullar lutou pela preservao do verso moderno, sem rano passadista. Indiscutivelmente, Gullar um poeta de significao
superior na poesia contempornea, hiptese que comeou a se criar desde a publicao, em 1954, de A Luta Corporal, hoje
com quatro edies isoladas. Quando, em
1974, publicou o Poema Sujo, desenhouse, pela primeira vez desde o contexto polmico dos anos 50 e 60, a possibilidade de
um caminho seguro fora da ortodoxia das
vanguardas. Como realizao pessoal,

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provvel que o Poema Sujo, com cinco


edies autnomas at 1983, venha a ser o
livro mais importante no Brasil depois do
aparecimento de Joo Cabral. Ferreira
Gullar, com certeza, ocupar captulo
parte na histria da recente poesia brasileira. Registre-se, por fim, que o poeta chegou a ser usado como instrumento para
alguns crticos combaterem a vanguarda
concretista, postura inaceitvel, visto que,
em termos de evoluo impessoal das formas, ambas as experincias so convergentes e no excludentes. O movimento concreto foi to ou mais necessrio poesia no
Brasil do que o prprio Ferreira Gullar, que
vale sobretudo pelo sopro individual de um
certo tipo de inspirao tradicional que faz
falta a qualquer literatura.

PERSPECTIVAS
Entre os autores mais jovens, a agudeza
converteu-se numa espcie de musa inacessvel, embora cobiada. O sumio da
agudeza talvez se deva crena na brevidade excessiva dos poemas, em que palavras
se sobrepem a palavras ou em que os espaos brancos se alternam com palavras,
como se nisso consistisse a hiptese de
experincias convincentes. Em certo sentido, o medo de escrever tomou conta dos
poetas, no obstante persista a busca da agudeza, da inteligncia imprevista e do procedimento engenhoso, sem o que os
seiscentistas prescreviam a morte da poesia. Se possvel observar um determinado
medo de escrever na poesia brasileira mais
recente, no se pode dizer que haja muita
coragem em escrever curto, com poucas
palavras e nenhuma generosidade expressiva ou experimental. Repetem-se os esquemas, sem muitas variaes; parece haver uma potica tcita, que inclui a retomada de algumas formas fixas, mas no pressupe o contato visceral com o idioma. H
inmeras excees (veja-se o caso das clssicas contribuies de Rgis Bonvicino e
Fernando Paixo), mas existe tambm uma
norma, implicitamente assumida. Num
outro extremo, valorizam-se atitudes su-

postamente sutis no trato com a poesia visual, algumas vezes com meras deformaes grficas de computador. Ainda a,
muitas vezes a musa se cala diante de invocaes surdas deusa distante. Em crtica de
poesia, a generalizao inoperante, mas
ajuda a enfrentar o problema da quantidade.
Por outro lado e apesar das limitaes, ultimamente os poetas tm dado o exemplo da
luta contra o silncio. H inmeras tentativas. Todos escrevem, muitos publicam. E
os crticos? Com raras excees, todos se
calam, preferindo o terreno seguro dos autores consagrados, em estudos prestigiosos e
sem risco. Todavia, preciso falar dos novos, dos novssimos. A coragem est com
eles, como sempre esteve com os artistas,
jamais com os crticos e professores, sempre espera de algo indiscutvel sobre que
falar. E as editoras? Rarssimas as que se
aventuram. Por isso, a exemplo do que acontece com a Editora 34 e com a Sette Letras,
deve-se destacar o recente trabalho delineado pela Ateli Editorial (Heitor Ferraz, Resumo do Dia; Jos De Paula Ramos, Sondas; Cac de Souza, Um Canto; Camilo
Guimares, Lembranas de Esquecer).
Dentro do limitado convvio do presente autor com os novos autores, no h como
omitir certas preferncias, ainda que sumrias, como simples indicador de preocupaes para uma futura tentativa de avaliao. Na poesia visual, Florivaldo Menezes
parece demonstrar agudeza singular, sobretudo em seu consagrado O Lago dos Signos, exposto na Primeira Mostra Internacional de Poesia Visual de So Paulo (Centro Cultural So Paulo, 1988), organizada
pelo poeta e terico Philadelpho Menezes
(autor do admirvel Clichet's). Trata-se
de um ready-made impresso em forma de
carto-postal. Isso confere ao trabalho uma
atraente dimenso pop, que intensifica seu
despojamento e singeleza, na medida em
que favorece a percepo clara de sua concepo engenhosa. Aludindo a Tchaikovsky, o texto (com signos no-verbais)
simula um discurso ambguo em que cisnes se transformam em notas musicais (ou
vice-versa), numa suave navegao por supostas pautas musicais que se convertem

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Florivaldo
Menezes, O Lago
dos Signos. No
verso, o
comentrio
do autor: "Um
ready-made
visumelopaico.
A msica

num limite impreciso sobre que firmar a


imaginao do leitor para a decifrao dessa pequena obra-prima da poesia visual.
No verso do carto, Florivaldo Menezes,
valendo-se da prerrogativa da auto-anlise
de uma certa tendncia da poesia contempornea, fornece dados tambm engenhosos para a decodificao do trabalho:

romntica 'O
Lago dos Cisnes',
de Tchaikovsky,
vista, aqui, por
superposio da
nvoa do papel
vegetal [...]
Signos largados
i-chingando a
Natureza: Vida
breve, arte semibreve!"

De volta poesia verbal, agora com os


mais recentes: o presente autor estima de
forma particular os trabalhos de Frederico
Barbosa e Arnaldo Antunes, que, entre
outras coisas, preocupam-se, cada um a
seu modo, em redimensionar sugestes
oriundas da Poesia Concreta. Em caminho diferente, mas igualmente seguro,
caminha Moacir Amncio, voz inconfundvel, que acaba de publicar sua terceira
coletnea de poemas, O Olho do Canrio
(Musa Editora, 1997), livro surpreenden-

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te, que, com certeza, exigir demorada


ateno do leitor interessado na valorizao de caminhos solitrios em meio a tanta coisa previsvel. Contrrio tendncia
dominante, seu trabalho detm-se na pesquisa da imagem, tratada com a agudeza
sensorial dos ibricos, tanto os do sculo
XX (Gerardo Diego, ngel Crespo), quanto os seiscentistas (Gngora, Quevedo e
Maria do Cu). Pela perspectiva do presente autor, dentre os mais fortes dos poetas recentes, encontram-se Carlito Azevedo e Nelson Ascher, ambos bastante
conhecidos. Quem l As Banhistas (Imago, 1993), do primeiro, percebe que se trata
de um poeta propriamente dito, longe do
simples desejo de se equiparar aos anjos
apenas pela honrosa pretenso de receber
o batismo das musas. Por se ajustar mais
aos interesses do presente trabalho, o autor coloca em destaque a poesia de Nelson
Ascher, em que v a mais completa realizao na recente poesia contempornea
brasileira. As hierarquias so sempre relativas, quando no falsas e odiosas. Logo,
esta no pretende ser verdadeira nem nica, mas apenas de uma opinio, que, inclusive, no desprezar hipteses em contrrio. Segundo a percepo de quem agora escreve, o livro Sonho da Razo (Editora 34, 1993) rompeu com a previsibilidade
da influncia concreta, instaurando um retorno irnico e insinuante a formas consagradas pela tradio, no sem relativismo
e distanciamento. Nesse sentido, o
sonetilho aclimatou-se de maneira surpreendente numa viso galhofeira das coisas
(ntimas e urbanas), muito prxima de
Cesrio Verde e Mrio de S-Carneiro.
H uma angstia nesses poemas, uma angstia formal e existencial, marcadas
ambas por um equilbrio singular, que
privilegia o artesanato como suporte essencial para a expresso. Em meio ao balbucio fragmentrio da mdia dos poetas
de ento, Nelson Ascher soube apresentar
uma sintaxe inteligente e expandida, denunciadora de flego e concentrao. Trata-se de um Joo Cabral ciberntico, em
quem a rima (geralmente rara) funciona
no s como elemento de eufonia (melhor

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pensar em dissonncia), mas tambm de


humor e brincadeira. Poder de escolha,
concentrao, densidade semntica, desenvoltura, conteno sinttica, eficincia artesanal isso tudo faz de Sonho da
Razo um livro singularssimo no panorama da atual poesia brasileira. No se trata
de repetir Marcelo Coelho, mas depois da
engenharia de Cabral (de Mrio Chamie e
das enrgicas visceraes de Ferreira
Gullar), a maquinaria mida de Nelson
Ascher desperta o desejo de afirmaes
peremptrias. Algo de Sol (Editora 34) no
contraria esse desejo, antes o fundamenta.
A poesia de Nelson Ascher engenhosa e
aguda, penetrante em seu requinte formal,
em seu verso lapidar. Mas isso pode conduzir a um equvoco de partida, caso o
poeta no redimensione suas tpicas para
horizontes mais existenciais. Sem se confundir com a vida, a poesia deve transmitir a impresso e o calor da existncia, de
paixes, de desencontros, de desacertos e
runas. O discurso por si s ainda no
poesia, embora seja parte importante da
vida. O discurso realmente potico tem de
operar a sutilssima mmesis das coisas e do
sentimento, incorporando-os de modo a
atenuar sua condio de discurso.
Repita-se: enumeraes generalizantes
escondem mais do que revelam, mas como
se trata de esboar o roteiro de um estudo
por fazer, talvez seja aceitvel mais uma,
relativa fico: depois de Raduam Nassar

merecidamente apreciado como um


grande ficcionista, de dimenses superiores, sobretudo por ter sabido soltar a voz
num perodo em que o silncio era voz
dominante , impe-se a experincia de
Diogo Mainardi. O seu Polgono das Secas (Companhia das Letras, 1995) abre
perspectivas surpreendentes na recente fico brasileira. A agudeza de Mainardi
consiste sobretudo na intercalao de lances de ensasmo reivindicatrio (plataforma de criao) tentativa de uma desconhecida fico regionalista, intencionalmente fake. Com frase malevel e personagens esquelticas, soube elaborar uma
alegoria sugestiva, brisa na asfixia emanada da atmosfera do livro. Da mesma
forma, Rodrigo Lacerda no comeou com
promessas; fez um livro indispensvel em
sua primeira tentativa, O Mistrio do Leo
Rampante (Ateli Editorial, 1995). Mais
do que aguda, a novela de Rodrigo engenhosa. Funda-se no desenvolvimento de
uma anedota elisabetana, cuja trama cativante inclui ningum menos que William
Shakespeare como personagem. Trata-se
de um texto delicioso, de dimenses inusitadas, com verdadeiro poder de seduo.
No apenas retoma o enredo tradicional
em tom irnico, mas restaura a frase clssica, de feio ciceroniana, chamada redonda pela retrica tradicional, sem deixar de respir-la de modo inequivocamente
atual.

BIBLIOGRAFIA
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TINDALL, W. Y. James Joyce: His Way of Interpreting the Modern World. New York and London,
Charles Scribners Sons, 1950.

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