(N - A) Varios Autores - Como Renascem As Democracias
(N - A) Varios Autores - Como Renascem As Democracias
(N - A) Varios Autores - Como Renascem As Democracias
as democracias
.>7
:lTHI Alain Rouquié + Bolivar Lamounier
e Jorge Schvarzer (orgs.)
Coleção QuaIE
A Questão da Democracia -- De/HS Z.. Rosen/h/d
1985
CbpyrlgAr © IDESP
(;apa.'
Solange Salva
Revisão:
José W. S. Moraes
Saulo C. Rego
Índice.
@
g 6 Funcionamento da economia e poder político na Ar-
6 gentina: empecilhos para a democracia -- Jorre .F'.
8 .SáóafeelorgeScÀvarzer .......--..'''''''..... 155
ju 7
editora brasiliense s.a. O sistema jurídico argentino diante das sequelas do
01223 -- r. general jardim, 160 ''processo de reorganização nacional'' -- .EPzrlqzze l.
(;roislnan .....''''''''''''''''''.'...''..... 197
são paulo -- brasil
8 As fragilidades da democracia na França: o conflito
das finalidadese as dificuldades do compromisso --
.4/aín .Bergozznfotzxe Gérard G nberg . . . . . . . . . . . 211
9 Conclusão -- os desafios democráticos, ou o aprendi-
zado da virtude --.4/afaz .Rozzqufé . . . . . . . . . . . . . . . . 252
Bibliografia......''''''...................... 260
Apresentação
da edição brasileira
nochete Videla, contribuírampara reabilitara velhariae as distorções e das continuidades de funcionamento dos sistemas
apalpadelas da ordem poliárquica. Mas se, de Santiago a Var- representativos pluralistas em contextos sócio-políticos que
sóviae de Andara a Kinshasa, os povos, cansadosdos salva- são essencialmenteos da Argentina, do Brasii e da França.
dores de farda e dos dias seguintesque cantam, aspiram às Essa escolha que pode parecer artificial, ou mesmo arbitrária,
modestas liberdades do pluralismo real, nossa reflexão sobre o não é fruto do acaso. Constitui o resultadode uma decisão
funcionamento dos regimes democráticos não está de maneira metodológica e de uma aventura coletiva. Por certo, o redator
alguma à altura do tema. Na Europa não se coloca a questão. destas linhas tem sua responsabilidade nesta aproximação.
Por exemplo,na França a única preocupaçãodiz respeitoà Francês embebido de Argentina e iniciado no Brasil, tem uma
expressão democrática, forças e comportamentos, como se o certa fraqueza pelas reflexõestriangulares, mas seus colegas
ar que respiramos fosse natural. E verdade que, como escrevia argentinos ou brasileiros não deixam por menos: atentos à
bem a propósito Stein Rokkan, a política comparada é uma vida política europeia, convencidos de que o que se passava na
disciplina desequilibrada: ''Nos estados ocidentais economi- França podia ter repercussõesem seus próprios países, como
camente avançados e constituídos de antiga data, possuímos algunsdeles de fato mostraram (Trindade, 1982a), são da-
uma enorme quantidade de dados empíricos, mas apenas pou- quelesque ao invés de recusar o ''olhar à distância'' sobre sua
cos esforços esporádicos foram feitos no domínio teórico, en- própria realidade nacional, convocam-no com franqueza sob
quanto que nos estados mais recentes e menos avançados da a condição de reciprocidade que ninguém cogitarâ negar-lhes.
América Latina, da Ãsia ou da Ãfrica, hâ uma pletora de de- Enfim, o que se quer dizer é que o estudo em profundidade
clarações ou de sugestõesteóricas, mas uma quantidade muito destes três casos visa esclarecer empiricamente nosso conheci-
menor de informações empíricas controladas'' (Rokkan, 1975, mento das condições de reprodução dos sistemas representa-
562) tivos, através da projeção do foco sobre as particularidades
Seja lá como for, se existem muitas formas de se falar da dessestrês objetos políticos bem identificados, graças a uma
democracia, pode-se dizer que na Europa, e em particular na perspectiva comparativa ampliada. Haverá quem se surpreen-
França, o interessedireto por ela só se manifestaquando se da com o caráter propositadamente limitado da comparação,
trata de assinalar seus limites ou seu caráter alienante e ilusó- bem como com sua aparenteheterogeneidade.Por que não
rio (Kolm, 1981, Pozzvolrs,1978), para opor o sistema repre- uma ''democracia'' por continente, respeitando a simetria?
sentativo à ''verdadeira'' democracia, vivida e autogerida pe- Por que afastar a primeira ]Uafer .Par/íamenlomm como pon-
los cidadãos (Braud, 1980, Mac Pherson, 1977), para analisar to de referência, ou não incluir a Espanha recentementede-
a compatibilidade entre o socialismo e as liberdades democrá- mocratizada, modelo possível das liberações de além-Atlân-
ticas, ou confrontar a lógica representativa e a lógica dos regi- tico? Simplesmenteporque este livro não é uma justaposição
mes leninistas (Lefort, 1981), ou, ainda, para advertir as ''de- de textos de encomenda. Assim como ele trata de um objeto
mocracias industriais'' contra a tentação totalitária que leva construído, tem sua vida própria nascida da longa familiari-
às ''democracias populares'' (Revel, 1983). Já nas zonas peri- dade existente entre os autores, tecida de discussões múltiplas
féricas do Ocidente capitalista, onde frequentemente a demo- e de valores comuns. Porque são preocupações intelectuais co-
cracia conjuga-seno passado, o que esta na ordem do dia é a muns que reuniram nesta empresa pesquisadores de horizon-
saída das ditaduras, e a reflexão ou a pesquisa, quando po- tes geográficos diversos mas de sensibilidade convergente. Pri-
dem se exprimir, esposam com muita freqüência contornos meiramente uma certa concepção da política comparada, que
táticos. A transição para a democracia ocupa a frente da cena, não exclui a análise aprofundada de uma realidade singular e
e diante da urgência do problema a procura das vias e meios, não sê resume à colheita de dados de segunda mão. O compa-
quando não das receitas, marginaliza as reflexões políticas em ratismo esta no enfoque, na maneira de colocar os problemas,
prol de visões normativas. mais do que nos objetos estudados. Mas também porque os
Quanto a este livro, ele trata da análise comparativa das autores se interrogam sobre um modo de ordenação política,
12 INTRODUÇÃO GERAL: QUERER A DEMOCRACIA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 13
que estudam como ''analistas comprometidos'' e no qual tram convencidos da legitimidade e mesmo da necessidade de
crêem. E compreensível, nestas condições, que não nos permi- que haja oposição.E, por outro lado, permanecendono do-
tíssemos uma volta ao mundo. mínio político, que interesse há em aproximar uma democra-
O fato de a América Latina ter maior espaço no livro não cia ''de origem'', que certamente teve suas vicissitudes histó-
quer dizer que a obra seja de e para especialistas desta região, ricas, mas que hoje chegou à maturidade, com países em que
e muito menos que seja uma série de estudos sobre as dificul- o regime democrático importado, mimético e portanto artifi-
dades de implantação da democracia no Terceiro Mundo. O cial não pode ser senão frágil?
caso francês esta aí justamente para desengastar a América Poder-se-ia responder a estas objeções com um bom-senso
Latina, subtrai-la da rigidez conceptualdo ''Terceiro Mundo'', condescendente, simplesmente citando autoridades ''científi-
sem retirar dos países estudados, como verá o leitor, sua per- cas''. Alguns politólogosnorte-americanos,e não dos meno-
sonalidadepolíticae social. Quer dizer, recusar as interpre- res, não classificam a Argentina, o Brasil e a França no mesmo
tações culturalistas para inscrever a abordagem das realidades purgatóriodas ''democraciasinstáveis''(Lipset, 1959)?Mais
destecontinente em uma problemática global, ou mesmo uni- ainda: autores franceses respeitáveis não hesitam em conside-
versal. Quanto ao caso francês, a proximidade da Argentina e rar que nosso país padece de um mal pernicioso, que os fran-
do Brasil impunha o enfoque de um olhar novo, distanciado cesessão ingovernáveise até que a França é uma ''grande
do hexágono'kpolítico. Exótico, dirão talvez alguns; forma doente'', frequentementeabúlica e dividida porque ela não
justa de reciprocidade. soube ''alçar vâo com as sociedades reformadas'' como os paí-
ses anglo-saxões ou escandinavos (Peyreffite, 1976)? E por-
tanto, como crê Alain Peyreffite, porque o ''mundo girou em
A razão comparativa torno da praça Navone'' no momento da reforma e da contra-
reforma, que a França católica e latina ficou do lado ruim,
Com que então, objetar-se-á, comparais o Brasi], ainda isto é, do lado das sociedades hierárquicas e administrativas
ontem escravista, à pátria dos direitos do homem, uma das do Sul. Reconhecem-seaí argumentosque foram muito úteis
mais velhas democracias européias com um país novo, de ori- no século passado, aos quais um l)emolins ou um Charles
gem.emigratória?Que hâ em comum entre uma grande nação Moune (1899) haviam dado, como se diz, seus títulos de no-
tropical e multiétnica e a doce pátria de Descartes, ou, ainda, breza, e que durante muito tempo alimentaram a anglofilia
entre nações em via de desenvolvimento e a França pós-indus- latino-americana e o desprezo pelos latinos. Mesmo estas in-
trial? A menos que vos submetais ao encanto da teoria da terpretações psicoculturais e essencialistas, que só encontram
modernização e que tenteis estabelecer um paralelo entre o rivais nas teorias tropicalistas da degenerescência do homem
avanço económico e o desenvolvimento político. A França se- brasileiro, ou naquelas dos neopositivistasque atribuem à
ria, para nós, o coroamentode uma evoluçãoprevisível, o mo- mestiçagem americana as inconveniências das repúblicas me-
delo político acabado e perseguido? Ou acaso diríeis que a ridionais (Bunge, 1903;Holanda, 1956), não são desprovidas
França se ''latino-americaniza''? Não se diga que a república de base fatual em seu ponto de partida político. A França
esta em perigo só porque alguns contestadores tomam a liber- continua sendo uma grande consumidora de constituições. De-
dade, depois de maio de 1968, de manifestar intenções aven- zasseis regimes sucederam-se desde a monarquia, e todos, até
tureiras, deixando entrever uma impaciência culpada na busca aqui, morreram de morte violenta. Isto não a habilita para
pelo poder, ou porque membros da atual oposição não se mos- uma patente de instabilidade?
Estamos, portanto, diante de três nações (majoritaria-
mente) católicas, de cultura e de língua latina, e marcadas por
(+) Hexágono: metáfora com que os franceses designam a França continental distintas modalidades de instabilidade política. Longe de nós
em razão de sua comia. (N. T.) a idéia de que este último traço se explique pelos primeiros.
14 INTRODUÇÃO GERAL: QUERER A DEMOCRACIA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 15
Entretanto, talvez a aproximação não soja tão artificial quanto existir em política um progresso paralelo ao crescimento das
parecia à primeira vista. A presença de um quadro normativo indústrias ou ao desenvolvimentodas sociedades. O que não
comum aos três países selecionados dá à comparação uma di- passa de ilusão, gratificante talvez, mas falaciosa para muitos
mensão experimental na qual os desníveis sócio-económicos bons espíritos (Debray, 1982).
podemjustamente desempenhara função de reveladores. Se
nos atamos ao domínio político, justamente o principal inte-
resse deste livro, apercebemo-nos por outro lado da existência Desvio americano e coi\juntura política
de afinidades binárias para as quais a França serve de eixo ou
de referência.Assim, o Brasil e a França são naçõesconsti- O interesse de nosso trabalho parece-nos provir também
tuídas por um Estado forte e por uma sociedadecivil fraca. O do momento político especial que vivem hoje os três países:
fato é bem conhecidona França desdeTocqueville, enquanto construção ou reconstrução da democracia nos casos da Ar-
que, no Brasíl, as análises de Faoro (1958) a respeito parecem gentina e do Brasil, aprendizado da alternância entre duas
amplamenteaceitas. Na Argentina, ao contrário, o caráter coalizõesmuito polarizadas no caso francês. Passagensprivi-
tardio da formação do Estado permaneceu solidário de uma legiadas (e dramatizadas) onde surgem as distorções e os me-
grande vitalidade associativa e de uma estruturação particu- canismos do desenvolvimento dos sistemas representativos .
larmente robusta dos grupos dirigentes. Da mesma maneira, O Brasil conhece há vinte anos um regime forte, nascido
poder-se-ia pâr frente a frente as respectivas culturas políti- de um golpe de Estado onde o poder autoritário instituciona-
cas. Veríamos então que Argentina e França participam de lizou-se mantendo uma rotação presidencial rigorosa e uma
certas características comuns. A esse respeito, como notou vida parlamentar mínima. Desde 1974 a liberalizaçãovem
com propriedade um sociólogo franco-brasileiro, a cultura transcorrendo sob o controle dos militares. A abertura desen-
política brasileira mostra-se tão unificada quanto se mostram volveu-secomo fora programada pelos mais lúcidos respon-
divididasas da França e da Argentina. De fato, nestesdois sáveis pelo ''sistema". Em novembro de 1982 os governadores
países coexistem dificilmente duas tradições culturais antagó- dos estados foram eleitos pelo sufrágio universal direto, como
nicas, cada uma das quais abarcando, quase que totalmente, também o foram os deputados e os senadores. Mas os milita-
certas domínios da vida (religioso, étnico, político). Nas mar- res parecem recuar diante do último obstáculo, a eleição pre-
gens do rio da Prata persiste sempre a oposição ''Civilização sidencial, não abrindo mão da escolha do próximo titular da
X Barbárie'', como na época de Sarmiento, o mesmo ocor- magistratura suprema. De fato, uma vez estabelecidaa elei-
rendo entre o ''Espírito de Joana d'Arc'' e o de ''Voltaire'' nas ção presidencial por sufrágio universal, o autoritarismo será
margens do Seno. Poderíamos acrescentar a isto que a França coisa do passado e os militares deverão retornar aos quartéis.
e a Argentina possuemtambém em comum a obsessãopelo Na Argentina, o retornodos civis ao poder não foi nem
passado, nisto diferindo outra vez dos brasileiros, que se sur- controlado nem outorgado: o regime militar estabelecido em
preendem com o fato de que seus vizinhos do Sul ainda se 1976 desabou em consequência de uma série de desastres. A
batem a favor ou contra Rosas, govemador da Província de derrota na acabrunhante epopeia do Atlântico sul desferiu-lhe
Buenos Abres que reinou sobre o Pampa de 1830 a 18S2. O um golpe mortal que, entretanto, não foi o único. O escrutínio
que diriam então das lutas políticas francesas em torno da de outubro de 1983deu a vitória a um candidato de centro-
Revolução de 1789e de seus heróis (Furet, 1979; Helvig, 1983) esquerda frente ao invencível peronismo. Mas a democracia
quase dois séculos depois do acontecimento? não se resume às eleições, e o país, com seus milhares de ''de-
Como se vê, estamos aqui em meio a um terreno conhe- saparecidos'' e sua inflação de três dígitos, precisa ser recons-
cido e a heterogeneidadesocial não impede que se constitua truído.
mçtodologicamente um espaço homogêneo de problemáticas Na França o difícil aprendizado da mudança de maioria,
= políticas. Recusar essa possibilidade equivale a crer que possa após vintee três anos de hegemoniada direita, fez surgir as
16 INTRODUÇÃOGERAL: QUERER A DEMOCRACIA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 17
P
rachaduras do consenso republicano. O sistema da V Repú- outras) é concebida globalmentecomo produção social, de-
blica acabou por gratificamos contestadores mais extremados, pendente da vontade dos atores ou de alguns deles. Porque a
aqui e ali manifestaram-se certas tentações facciosas traduzi- democracia não é nem acidente nem predestinação, ainda que
das por diferençasde linguagensinéditas.Mas, ao mesmo a parte da fortuna não possa ser descartado, este livro sobre as
tempo, pode-se pensar que, talvez pela primeira vez desde a dificuldades de construir e de reproduzir os sistemas represen-
Revolução de 1789, o país em sua totalidade aceita como legí- tativos pluralistas desemboca em uma manifestação de oti-
timo o quadro institucional existente. Em suma: um período- mismo prudente em favor da capacidade dos povos ao auto-
dobradiça. governo.
Nestes contextos politicamente preciosos e expressivos,
nosso prqeto de comparação global, mesmo implícito, apre-
senta-se como umlogo de esse/hos que aumenta ou deforma
certos traços, destaca as especificidades, desmascara aparên-
cias significativas. Em nenhum momento os autores tentaram
assimilar, confundir ou enquadrar experiênciassingularesno
leito de Procusto de uma grade única e rígida. Sua abordagem
é empíricae seu enfoquetão-somente
comparativo.Deste
modo a América Latina deixa de ser uma realidade longín-
qua, e a França uma presença cotidiana, um dado apreendido /
sem recuo, para o leitor francês e vice-versa. Por que não co-
locar questões latino-americanas à política francesa e subme-
ter a Argentina e o Brasil a interrogaçõesfrancesas? Este livro
tambémfala da França pelo desvioamericano, da mesma
forma que explora os sistemas políticos argentinos ou brasi-
leiros através de uma incursão no Velho Mundo. Não era, afi-
nal, de seu próprio país que Tocquevillefalava em sua Z)emo-
b
cracfa na ,4méríca?
Recusando as interpretações deterministas de uma pseu-
do ''incapacidade democrática'' que afetaria as nações latino-
americanas por causa de sua situação geopolítica, de seu nível
de desenvolvimento ou de sua configuração social, e evocando
os segmentosde rachadura ou as fendas mal conhecidasdo
edifício democrático francês, provocados tanto pelas cristali-
zações bipolares de hoje quanto pelos conflitos do passado, os
autores deste livro não defendem uma tese. Mesmo porque as
contribuições provêm de diferentes disciplinas: juristas, poli-
tólogos, historiadores e economistas permaneceram fiéis a si
mesmos. Não obstante, como o leitor poderá perceber, um fio
condutor percorre o conjunto das contribuições, salienta-se
nas diferentes conclusõesparciais. Ele se identifica na prima-
zia do indeterminado e das práticas políticas sobre as supos- b
O mistério democrático:
Das condições da democracia
às democracias sem condições
.4/afaz Rouqzzlé
o poder como função e não como propriedade, os riscos e os que este não seja extorquido ou forçado em consequência da
desafios da alternância dos homens e dos partidos no governo? ausência de escolha (Crick: 1968, 7). O sistema representativo
São alguns elementos que configuram um autêntico ''mistério implica um certo número de exigências significativas de uma
democrático'', à primeira vista insondável, exceto para alguns participação ampliada e livre, que o tornam autenticamente
partidários de um determinismo unilinear estrito. De fato, um pluralista: acessonão discriminatórioà cidadania, competi-
número sem dúvida excessivo de parâmetros entra em jogo ção eleitoral aberta, apuração honesta do escrutínio, possibili-
para que se possam discernir facilmente as condições próprias dade de mudança pacífica dos partidos no poder (Rustow:
à eclosão desta planta rara. Por isso, na maioria das vezeses- 1967)
condemos nossa ignorância atrás de indefiníveis noções de Mais abrangente e mais operatória que qualquer outra
''espírito público", de "cultura política'' ou de ''código cultu- parece-nos ser a definição schumpeteriana da ''democracia-
ral'', que seriam ou não favoráveis ao funcionamento dos sis- procedimento'': tal método permite, segundo regras definidas
temas democráticos. É por esta razão que, antes de analisar (e pacíficas), ''aceitar ou recusar os homenschamados a go-
empiricamente casos concretos de instabilidade ou de repro- vernar'' (Schumpeter: 1965,368). Esta definiçãoé em parte
dução difícil de regimes representativos, pareceu-nos útil fazer retomadae completadapor Sartori(1973, 57), quando escreve
um inventário, menos de nossos conhecimentos do que da in- que ''a democracia consiste, pois, no sistema político no qual
suficiência deles, com relação às condições propícias ao apa- o povo exerce poder suficiente para ser capaz de mudar os di-
recimento e à conservação das democracias, para, em seguida, rigentes, mas não o bastante para se governar ele próprio'',
explorar igualmente em sua especificidade as democracias re- ou, em outras palavras, um ''sistema no qual é a maioria que
conhecidas que não correspondem a essas determinações ca- designa e que apoia a minoria que governa'' (/dem , 17). Evi-
nónicas. dentemente, isto pressupõe um certo número de exigências
que permitem pâr em funcionamento esses procedimentos, a
saber, o respeito dos direitos cívicos e das liberdades sem as
A 6íeF8da confusão democrática99: quais qualquer mudança dos governantesé impossível e a al-
problemas e definições ternância pacífica dos partidos no poder se torna um objetivo
inacessível. Nem por isso se quer dizer que somente a alter-
Atualmente sacraliza-se a democracia. Tirante algumas nância constitui a pedra de toque da democracia: quando as
exceções arcaicas, todos os regimes são ''democráticos'', pois condiçõesque Ihe são propícias se acham reunidas, a manu-
falam em nome da soberania do povo e assim se inscrevem na tenção de um mesmo partido no poder por um longo período,
definiçãojeffersoniana do govemo do povo pelo povo. E ver- conforme demonstra o caso da ltália republicana, não é con-
dade que todos os autores, depois de Rousseau, expresssam traditória com a definição.
dúvidas sobre a possibilidade do autogoverno do povo e da Na era da autogestãoe do leninismo,são conhecidasas
''democracia governante'' (Burdeau). ''Se houvesse um povo críticas, que se tornaram clássicas, contra esta concepção
de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo ''constitucional-pluralista'' da democracia. Ã sua dimensão li-
perfeito não convém aos homens...". ''Se tomarmos o termo beral, opõe-se o conteúdo social de um regime justo fundado
no rigor de sua acepção, nunca existiu uma verdadeira demo- na soberania do povo. Denunciam-se as ''liberdades formais''
cracia. . .'', nos diz Jean-Jacques no Contrato .Sacia/ (livro lll, em nome das ''liberdades reais''. Questiona-se o caráter de-
capítulo IV), considerando os obstáculos inerentes a esta mocrático do regime representativo, que constituiria, para al-
forma direta de governo. Por isso, uma vez que o povo é sobe- guns, uma simples ficção jurídica, e mesmo um engodo, em
rano mas não pode exercer por si mesmo esta faculdade, ele decorrência da confiscação do poder em benefício exclusivo
deve delega-la a seus representantes. A democracia é, pois, o dos eleitos e da classe política (Turpin: 1978). Deplora-se
governofundado no consentimentoda maioria, à condição de igualmenteo caráter lúdico e a ''racionalidadepacificadora''
22 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 23
do sufrágio universal, que conforta o sfafu que e mistifica os capacidade transformadora do sufrágio universal não contra-
eleitores, cujos interesses e antagonismos profundos ele é in- balanceado implica a instabilidade universal dos regimes de-
capaz de refletir (Braud: 1980). mocráticos (Przeworski: 1981). Diante do crescimento das
Os epígonosde Lenin não se cansam de apresentar este ameaças, isto é, das forças de mudanças ou dos grupos polí-
tipo de governo como a forma acabada da dominação bur- ticos representantes das classes dominadas, permitido pelo su-
guesa, referindo-se, para isso, a algumas reflexões críticas de frágiouniversal,os conservadores, o partido da ordem, gri-
Marx sobre ''a abstração representativa'' que implica a sepa- tariam, como Odilon Barrot, tão frequentementecitado por
ração entre a esfera política e a esfera da existência privada, Engels, ''a legalidade nos mata'', e estariam dispostos a ''rom-
isto é, a ficção da igualdade dos direitos (políticos) de cida- per esta legalidade que se tornou para eles tão fatal" (Engels:
dãos desiguais em uma sociedade dividida em classes (cf. a 1967,34). Não seria a história da Argentina ou do Brasil que
discussão do pensamento marxista em Bergounioux e Manin: desmentida esta afirmação.
1979, 31-38). Mas eles esquecem, sem dúvida por razões im- Não se pode estar seguro de que a instabilidade esteja
puras e táticas, as análises empíricas do mesmo Mam sobre os inscrita na própria definição do sistema representativo nos
perigos do sufrágio universal para a hegemonia da burguesia e países capitalistas, mas o que é certo é que as críticas desmis-
sobre o caráter virtualmente emancipador do voto para as clas- tificadoras dos sistemas representativos colocam antes o pro-
ses dominadas. A idéia da função não conservadora da demo- blema de suas condições de existência e de funcionamento
cracia é várias vezes salientada em textos clássicos consagra- mais do que o denunciam. Assim, a hipocrisia aparente que
dos às crises políticas francesas após a revolução de 1848. Em consiste em contar como unidades iguais os votos de cidadãos
O Z)ezoífo Brumárío (1969, 5) Mam escreve explicitamente: desiguaisé o próprio preço da democracia. Na verdade, esta
De modo geral, a república não é mais do que a forma de consiste em formalizar, transpondo-os para lugares próprios e
transformação da sociedadeburguesa e não sua forma de con- simbólicos, os enfrentamentos da sociedade. Ela é simulta-
servação, como ocorre por exemplo nos Estados Unidos da neamente constituição de uma ''cena de conflitualidade'' e um
América...''. Em ,4s .Lzzfasde Classesna Franca (1967, 83), a ''sistema de pacificação'' (Gauchet: 1980, 64): nela se fala de
propósito da constituição republicana, escreve: ''A vasta con- conflitos e com eles se joga. A violência simbólica dos embates
tradição desta constituição consiste nisso: as classes cuja es- oratórios substitui as lutas civis. A codificação dos combates
cravidão social deve perpetuar, proletariado, camponeses, pe- políticosé o próprio fundamento de um sistema de ''reconci-
queno-burgueses, são, através dela, dotados da posse do po- liação das dissensões'' (Rustow: 1967, 234) que funciona à
der político por meio do sufrágio universal. E à classe cujo base do compromisso. Na verdade, mesmo a democracia mais
antigo poder social sanciona, a burguesia, ela retira as garan- transparente exprime os antagonismos de classe para evitar
tias políticas desse poder. Ela encerra sua dominação política que eles se realizem na violência nua. E evidente que os regi-
em condições democráticas que ajudam a cada instante as mes ''constitucionais-pluralistas'' estão longe de corresponder
classesinimigas a conquistar a vitória, e que colocam em ques- a um estado de natureza; são totalmente ''artificiais'' e mani-
tão os próprios fundamentos da sociedadeburguesa''. festam um grau elevado de criatividade e de elaboração no
Estas análises, nos antípodas da vulgata marxista que vi- domínio da ''institucionalização das praticas e dos procedi-
lipendiaa ''democraciaformal'' e ''burguesa'' e a armadilha mentos'' políticos (Huntington: 1968).
das eleições,têm a particularidade de não confundir libera- Os teóricos da ''poliarquia'', outro nome dado ao mesmo
lismo e democracia, como fazem com tanta freqüêhcia os crí- tipo de sistema (Dahl: 1971), insistem nas exigências desse
ticos dos sistemas representativos. Ela aponta para dois fatos modelo político: a pequena monta daquilo que se põe em jogo
interessantes para o nosso propósito: por um lado, que a bur- é a sua primeira condição, não devendo as consultas eleitorais
guesia é naturalmente censitária e, assim, tenta apropriar-se, pâr em ''causa o conjunto das relaçõessociais'' (Bourricaud:
limitando-a,da idéia da democracia,e, por outro lado, que a 1970). Para isso, convém que não haja superposição absoluta
24 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 25
dos conflitos políticos e das clivagens sociais. A limitação dos sua contribuição para responder a esta questão, da economia
conflitos, a moderação das escolhas possíveis asseguram a au- à antropologia, passando pela psicologia e a história. Em ou-
tonomia da ''instância política com relação à sociedade civil'' tras palavras, indagou-se se a democracia seria um acidente
que é a essência mesma da ''operação representativa'' (Gau- histórico, sociológico,antropológicoe qual seria o fatos deci-
chet: 1980,65). Estas poliarquias são, pois, ''espaços do com- sivo nesse sentido. De fato, um regime político é o reflexo de
promisso'' de grande fragilidade, onde os diferentes atores todo um conjunto de condições, e o famoso e tão frequente-
devem conhecer e respeitar as regras do jogo, sabendo perfei- mente invocado ''código cultural'' não é sem dúvida outra
tamente até onde podem ir. Elas representam uma tentativa coisa senão o condensado dessas múltiplas determinações. Ê
de ''resolver o problema fundamental do ajustamento da or- evidentepara nós que podem existir coincidênciase mesmo
dem à diversidade através da conciliação dos diferentes inte- correlações entre um sistema político e uma série de variáveis,
resses'' (Crick: 1968, 8). A flexibilidade deste tipo de sistema mas que a pertinência de uma relação de causalidade estrita é
permite a mudança social, mas através de um método gradua- mais que duvidosa. Assim, é em nome de um certo probabi-
lista ou ''incremental'', que não pode proceder senão através lismo e não enquanto devoto do determinismo que vamos evo-
de correçõesrelativamentefracas e de maneira quase insen- car algumas hipóteses.
sível
V
son: 1978,1, 20), existiriaum obstáculodificilmentesuperâ- Não deixa de ser interessante examinar comparativa-
vel para permitir o funcionamento do sistema representativo. menteo papel do espaçoaberto em um país onde a democra-
Se, de fato, a democracia é de algum modo uma ''extensão do cia conheceu dificuldades de implementação como o Brasil.
racionalismo do mercado'' (Apter: 1966, 26), haveria uma re- Quanto ao ensaísta Vianna Moog, considera que aquilo que
lação necessária entre o mercado político da competição plu- denomina ''a imaturidade brasileira'' se deve ao desejo de en-
ralista e o mercado económico do capitalismo maduro. Certa- riquecimento rápido dos colonos portugueses e de seus des-
mente não há dúvida de que a mobilidade dos fatores, a exis- cendentes, oposto ao lento processo de conquista da terra do
tência do assalariamento, o desaparecimento das relações de pioneiro norte-americano: o bandeirante, caçador de escravo
dependência e sua substituição por relações contratuais facili- ou de diamantes, é, segundo ele, um conquistador que obe-
tam os procedimentos de conciliação e a aceitação do princí- dece a um chefe de bando, não um trabalhador individualista
pio de maioria. A dimensão social do capitalismo talvez se e parcimonioso(1963, 100-200).Melhor ainda, em,4 .A/arcar
encaminhe no sentido da construção democrática. Mas tere- para o Oeste, Cassiano Ricardo, um dos ideólogosdo Estado
mos realmente certeza quanto às relações entre a causa e o Novo de Vargas (1942), pretende mesmo que a ''fronteira'',
efeito? Tocqueville consagrou um capítulo às relações entre em sua versão brasileira, esta na origem do autoritarismo na-
senhorese serviçaisnas sociedadesaristocráticase nos Esta- cional e constitui o molde do ''governo forte e autocrático'': a
dos Unidos; a passagemda ''qualidade'' e do ''estatuto'' ao ''democraciahierárquica'' da bandeiraseria a matriz primi-
contrato pareceu-lhe um fenómeno essencial mas, para ele, é tiva dos desdobramentos políticos contemporâneos. Assim, o
porque a sociedade é democrática que se criam relações con- espaço aberto não leva necessariamente à democracia. Refle-
tratuais entre cidadãos e homens iguais (Tocqueville: 1981, 11, tindo sobre Turner e Ricardo (1976), Velho sublinha as dife-
226), e não o contrario. Vêem-se assim os limites desta deter- renças de apropriação do espaço brasileiro e da ''fronteira''
minação. norte-americana. Para além da igual abundância das terras,
Além do mais, não se pode assimilar a democracia uni- as consequências políticas provêm do contraste entre um sis-
camente ao capitalismo avançado. Deixemos de lado Atenas e tema fundado no trabalho livre e outro que se baseia na ''re-
a democracia grega original, que não se compreende sem a pressãoda força de trabalho'', entre uma colónia de povoa-
uiistência dos escravos. Mas a experiência dos Estados Uni- mentoe uma colónia de exploração.Não se poderia refutar
dos no século XIX constitui, desde Tocqueville, um modelo de melhora ideia das causas físicas da democracia. E mais uma
referência. Seria, neste caso, a abundância primitiva de terras vez é grande a tentação de citar Tocqueville, visto que o para-
cultiváveis que teria permitido o nascimento de uma sociedade lelo entre os Estados Unidos e as ''desditas'' da América do
democrática e do regime representativo? O próprio Tocque- Sul se encontra já em seus escritos, quando afirma: ''Em que
ville assinala estas ''causas acidentais ou providenciais que parte do mundo se encontram desertosmais férteis, maiores
contribuem para a manutenção da república democrática nos rios, riquezas mais intactas e inesgotáveisdo que na América
EstadosUnidos'': ''Foi o próprio Deus'', escreveele, ''que, do Sul? No entanto a América do Sul não pode suportar a
entregando-lhes um continente sem limites, conferiu-lhes os democracia...'' (1967, 1, 414). A riqueza desempenha por-
meios de permanecerem por muito tempo iguais e livres'' tanto apenas um pequeno papel na eclosão e sobrevivência das
(1981, 11, 382). A mobilidade horizontal e o espírito pioneiro, instituições representativas.
ao fomentar a mobilidade vertical, teriam limitado os enfren-
tamentos de classes tanto quanto a rigidez das posições de sla-
ftzs. Sabemos como Tumor teoriza as virtudes da/ronfelra, e o Sociedades democráticas e regimes representativos
papel da facilidade do acesso às terras livres do Oeste na cons-
tituição da democracia americana (Tumer: 1921, 320; Potter: Existiriam sociedadesautoritárias que constituemum
lqhhl obstáculo à democracia e, ao contrário, sociedades mais aptas
28 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 29
a esta forma de regulação política? Se a riqueza física de um o princípio da igualdade política, que está na base do funcio-
país não é um fatos determinante da possibilidade de instau- namento desses regimes, deve no entanto revestir-se de uma
rar mecanismos representativos, a distribuição mais ou menos certa credibilidade. Em outras palavras, os direitos dos cida-
equitável desta riqueza não terá uma influência decisiva? Toc- dãos não devem ser recusados pelas desigualdades sociais
queville considerava antes de tudo a democracia como um reais: a ficção da igualdade jurídica (cada homem um voto)
''estado de sociedade'' caracterizado pela igualdade das con- não poderia estar em completa contradição com a configura-
dições. É possível indagar se a tendência para o ''desenvolvi- ção das relações sociais reais. As sociedades hierárquicas, ba-
mento gradual da igualdade de condições'' constitui um dos seadasna discriminação coletiva e na opressão individual, pa-
pressupostos sociais para o funcionamento dos regimes repre- recem, pois, pouco aptas aos regimes competitivos pluralistas.
sentativos.Com relação a esteponto, a experiênciaeuropeia As relações de autoridade social e de dependência pessoal,
se inscreveria antes de modo negativo nessa hipótese. À dife- fortemente assimétricas, não favorecem a igualdade formal do
rença do ''laboratório americano onde a sociedade esta em princípio de maioria. Aliás, alguns consideram que, de modo
coincidência com o princípio democrático'' e onde os cidadãos geral, um regime político só é estável se houver correspondên-
nasceram iguais em vez de se tornarem iguais, as democracias cia entre as relações de autoridade no seio do sistema político
do Velho Mundo se estabeleceram em sociedades não-iguali- e as relaçõesde autoridadena sociedadeglobal(Eckstein:
tárias e hierárquicas, para cuja transformação vieram a con- 1961). O debate histórico e as desastradasaventuras do su-
tribuir. O que Tocqueville não percebeu, como assinala justa- frágio universal ilustram suficientemente, aliás, uma tal cons-
mente Marcel Gauchet (1980, 45), é ''o sentido das transfor- tatação. É suficiente lembrar os erros de cálculo dos republi-
mações conflituais do velho universo da unidade orgânica hie- canos franceses em 1848 quanto à democracia, ao perceberem
rárquica e o trabalho penoso de ajustamento dos princípios ao como o sufrágio universal, pelo qual haviam reclamado, ia
funcionamento efetivo de uma sociedade de feitio desespera- contra seus interesses, ou as lutas políticas em outros países
damente rebelde, a partir dos quais se formou a democracia, no século passado, entre os liberais, favoráveis ao voto censi-
uma outra democracia, deste lado do Atlântico". tário, e os conservadores, que defendiam o sufrágio universal
Sem dúvida, poder-se-á objetar que a difusão da proprie- guiado e esclarecido pelas autoridades sociais.
daiie pode criar situações mais favoráveis aos sistemas repre- Nas sociedades hierárquicas e autoritárias, a distinção
sentativos. A autonomia individual do ''campesinato parce- dos grupos reais e das condições herdadas, a ''longa cadeia
lar'' teria assim tido uma influência decisiva na França para o dos deveres'' que ela impõe a cada um (B. de Jouvenel), a ên-
enraizamentoda ''repúblicano vilarejo'', de que, alias, dão fase dada à ''qualidade'' da pessoae a recusa das regrasim-
testemunho as diferenças de comportamento assinaladas por pessoais, e mesmo do anonimato da lei, se opõem ao ato-
Siegfried entre as zonas de grandes propriedades e as de pe- mismo individual, garantia da igualdade político-jurídica,
quena produção (Siegfried: 1913). Mas a Inglaterra, ''mãe dos base do regime representativo. O rito de autoridade que impõe
parlamentos'', se caracteriza pela quase ausência desse pe- o reconhecimento da posição(e portanto o privilégio) descrito
queno campesinato desde os erzc/oszzres(''cercamentos'') tanto pelo antropólogo Roberto Da Matta (1979) para o Brasil, e
quanto pelo peso essencial da aristocracia fundiária na edifi- que ele resume na frase: ''Você sabe com quem está falan-
cação do regime representativo. Tocqueville considerava que do?'', exprime tâticas cotidianas que parecem estar em con-
''o voto universal seria menos perigoso na França que na In- tradição com a lógica da interação democrática. No entanto,
glaterra, onde quase toda a propriedade suscetível de taxação comportamentosidênticos podem ser encontrados em socie-
se encontra reunida em algumas mãos'' (1981, 1, 301). dades onde os ''sistemas globais universais'' permanecem pro-
Se a igualdade das condições não constitui um pressu- fundamente impregnados pelos ''sistemas das relações pes-
posto nas ''democracias não tocquevilleanas'' dos regimes re- soais'' e as posições adscritas de s/afzzs,mas que deram provas
presentativosestáveis da Europa Ocidental e de outras partes, de capacidade representativa. Ao ''Você sabe com quem está
30 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 31
falando?'' da sociedade brasileira corresponde um italiano Zeí pensão ao totalitarismo porque seus filhos são embrulhados
lzopzsa c/zísono io? (''O senhor não sabe quem sou eu?'') (No- em cueiros muito apertados. No entanto, pode-se supor que as
bécouft: 1975, 25) que não impediu quase quarenta anos de estruturas familiares modelam em grande parte a relação do
república na ltâlia de superar os obstáculos sócio-históricos indivíduo com a autoridade, mesmo que não constitua o único
''antidemocráticos'' fator nessedomínio, nem o fator preponderante. Nem todos
De modogeral, no entanto, não resta dúvida de que uma os tipos de família favorecem igualmente a liberdade e a igual-
sociedade aberta e secularizada é eminentemente receptiva ao dade dos futuros cidadãos. Sem cair no determinismoantro-
regime representativo. A multiplicidade das .associações livres pológico das atitudes políticas, a transmissão dos valores e o
e voluntárias constitui, como Tocquevillejá tinha notado, a tipo de configuração social procurado não deixam de ter rela-
propedêutica e o esteio do regime representativo dos Estados ção com o modelo familiar dominante. Assim, nas sociedades
Unidos. As estruturas intermediárias são de alguma forma sua muçulmanas do Mediterrâneo, a lógica da endogamia e do
''coluna vertebral'' (Sartori: 1973, 380). A macrodemocracia casamento preferencial, além do enclausuramento das mulhe-
supõe o substrato da microdemocracia que prepara o autogo- res e da hipertrofia da ligação familiar, vão contra o indivíduo
verno de uma sociedade e enraiza no ''espírito público'' o e a igualdade (Tillion: 1966). A ''república dos primos'' não é
gosto pelo diálogo e a capacidade de negociar. No entanto, a república dos cidadãos do jogo democrático. Notou-se igual-
o caso argentino, com sua instabilidade crónica, não parece mente que, na Ãfrica, as relações políticas ''se declinam nor-
confirmar que estas condições da democracia, sem dúvida ne- malmente sobre o modo das relações parentais", onde a rela-
cessárias, sejam também suficientespara o seu desenvolvi- ção dos ''caçulas sociais" com os mais velhos constitui um es-
mento harmonioso. quema dominante (Bayart: 1983, 25). Ao contrário, conforme
foi assinalado por Charles Tilly (1975, 18), na Europa Ociden-
tal, a família nuclear e a exogamia desenvolveram o individua-
lismo e a aceitação das relações interpessoais, que talvez te-
IJma singularidade antropológica? nham tido alguma incidência sobre as formas políticas adota-
Muitas vezesjâ se salientoua importância da homoge- das. Sem dúvida, seria pouco prudente ir muito além nesse
neidade social, étnica e às vezes religiosa para o florescimento tipo de explicação.
das democracias, sem que, por esta razão, se atribuísse a estas
variáveis uma necessidade estrita. Por oposição, as sociedades
ditas tribais ou com configuração baseada na linhagem não Espírito público, cultura e "virtude''
apresentariamo grau de secularizaçãoexigidopara o bom
funcionamento dos ritos democráticos. Vimos que a característica central dos regimes constitu-
Alguns chegaram a pensar que o fundo antropológico ex- cionais pluralistas residia na sua estilização das lutas políti-
plica todos os incidentes da vida política. Os estudos do ''ca- cas. Os ritos parlamentares, as campanhas eleitorais são a ex-
râter nacional'' constituem o grau zero deste tipo de enfoque, pressão simbólica e formalizada de rivalidades que poderiam
marcado por um fatalismo implacável. Mais sofisticada, a ex- ser violentas entre aspirantes ao poder que representam inte-
plicação dos regimes e dos sistemas ideológicos pela especifi- ressese paixões antagónicos. Raymond Aron gostava de sa-
cidade das estruturas familiares nem por isso é menos discutí- lientar o carâter a8ózzfcodo jogo político democrático, que é
vel, e parece corresponder mais a um esforço de desqualifi- marcado precisamente pela ''imposição de regras estritas, a
cação de certas ideologias do que a uma vontade não dogmá- manutenção de um quadro espácio-temporal no interior do
tica de compreender. Sem dúvida, não é científico pretender qual os atores devem manter-se" (Aron: 1965, 85). Acentuan-
que a família ''Comunitária exogâmica'' favoreça o comu- do na definição das instituições democráticas seu sentido libe-
nismo (Todd: 1982), pretender que os russos têm uma pro- ral, acrescentava, evocando o que chamamos anteriormente
32 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 33
de mistério democrático, que a democracia estabilizada na elucidar. Baseia-se evidentemente em ''premissas culturais
América do Norte ou na Europa se define menos ''pela sobe- amplamente compartilhadas'' (Dahl: 1966, 119). Mas a paci-
rania do povo e o sufrágio universal(quase todos os regimes ficação das condutas políticas, numa palavra, o não-recurso à
da nossa época procedem por votação e invocam a vontade de violência, sem dúvida representa apenas um aspecto da ''civi-
todos) que pela organização de uma competição alimentada lização dos costumes'' analisada por Norbet Ellas (1973). A
por paixões prestes a explodir. É forte a tentação, para aque- ''contenção'' e a ''autocoerção'', expressões da ''civilização'',
les que estão no poder, de não se exporem ao risco de perdê-lo traduzem em todos os domínios uma reforma das estruturas
e, para os que se acham excluídos dele, de utilizar os meios emocionais e uma mudança da afetividade. O autocontrole é
legalmenteinterditospara deleseapossarem''(1965,85). sempre a aceitação de um código de conduta; tem, pois, ne-
A democracianão se acha, pois, inscrita na natureza, cessariamente uma dimensão política. O abrandamento dos
nem antropológica nem sociológica; trata-se bem de uma cria- costumese o abandonodo recurso à violência não deixam de
ção cultural. E a tentação da qual fala Aron constitui seu ho- ter relação com a igualdade das condições: só se aceitam como
rizonte maldito, a ''queda'' e o ''pecado'' no sentido bíblico. compulsórias as regras do jogo se este tem lugar entre seme-
Por que nas democraciasestáveisesta tentação, apesar das lhantes(Tocqueville:1967,206-208;Gauchet:1980,84).Aliás,
crises, consegue ser com tanta freqüência evitada? E Montes- uma vez que o superego social limita tanto as pulsões sexuais
quieu que nos dâ a resposta: ''A virtude é o princípio da de- quanto o uso da força nos conflitos coletivose individuais,
mocracia". Qual é o conteúdodestaforça propulsoraessen- nada impede de pensar que existe alguma concomitância entre
cial do governorepublicano?''O amor pelas leis e pela pá- a emancipação da mulher, a liberação dos costumes que a
tria'', nos diz ele, lembrando o papel da educação, no seu acompanha e o funcionamento das instituições democráticas.
entender capital, e precisando que a ''virtude política consiste As nações da Europa setentrional ilustram bastante bem uma
numa renúncia a si mesmoque é sempre coisa penosa'' (Es- tal hipótese.
prff des .Edis, ]ivro ]V, capítu]o V). Comentando Montesquieu Mas, uma vez que a cultura individualou a civilização
em um texto pouco conhecido, Tocqueville precisa deste modo nacional consistem no conjunto das respostas aprendidas e
esseprincípio: ''O poder moral que cada indivíduo exerce so- das experiênciaspassadas, as evoluçõesnão são unilineares.
bre si mesmo e que o impede de violar o direito dos outros... As influências ideológicas e religiosas não se encaminham to-
O triunfo do homem sobre as tentações..." (citado por Aron: das no sentido do homem Inner-dírec/ed (''dirigido por si mes-
1965, 28). mo") de Riesman e do autocontrole mais ou menos kantiano.
Em outras palavras, esta vl»:zde consiste, no plano cole- Mesmo na esfera ocidental, como assinala Dahl (1966, 119),
tivo tal como ao nível do indivíduo, na capacidade cultural de pode-se,no final da cadeia, ver aparecer dois modelosdiver-
resistir à própria força e às pulsões agressivaselementares. gentes de conduta: ''empírico-cooperativa'' contra ''raciona-
Ela exige o domínio de si mesmo que é indispensável à acei- [ista'' ou, para fa]ar como Be]] (1967, 290), citando Max We-
tação das práticas simbólicas próprias dos regimes represen- ber, uma ''ética da responsabilidade''em face de uma ''ética
tativos. Sem esta víNude, não pode haver estilização das pai- da convicção'', cujas relações com os procedimentos represen-
xões nem expressão codificada destas em lugares normaliza- tativos são evidentemente muito diferentes.
dos, através do respeito às barreiras constitucionais. É este
domínio que evita, tanto quanto possível, a confusão entre
poder económico e poder político, que permite o respeito das O Estado e a invenção da democracia
minorias pela maioria.
Esta interiorização da autocoerção é tanto mais forte por No frágil equilíbrio entre liberdade e igualdade que sub-
ser não escrita e costumeira. Pode ter numerosas fontes(reli- jaz às práticas democráticas e alimenta os fantasmas das elites
gião, memória coletiva, educação...),que seria conveniente liberais, o Estado não tem boa reputação. Ele é com freqüên-
34 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 35
cia denunciado como o Leviatã que ameaça o pluralismo, no ou, dito de outro modo, ''a plenitude do poder público (...),
melhor dos casos como um ''ogre filantropo'' que, intervindo causa eficiente da plenitude dos poderes individuais'' necessá-
em toda parte, falseia o jogo democrático. No entanto, consi- ria à burguesia, foi obra do absolutismo ''liberticidad'' (Jouve-
derando a história um pouco mais cuidadosamente, percebe- nel: 1955,226).
se que a antiguidadeda formaçãoestatale sua origemendó- De modo mais geral, como notou Strayer (1970), o Es-
gena parecem freqüentemente paralelas ao enraizamento da tado, nascido de uma certa estabilidadeterritorial, garante
democracia. É verdade que a edificação de um Estado e a antes de mais nada a segurança das pessoas, garantia de sua
formação da nação, na história européia, são processos dificil- liberdade através do desenvolvimentode ''instituições perma-
mente dissociáveis, mesmo que tenha sido possível dizer que, nentes e impessoais''. Os Estados soberanos se erigem em ''es-
na França, o Estado precedeu e modelou a nação. tado de direito'' na medida em que, na Europa ocidental mo-
Os Estados nascem na Europa em condições singulares. nárquica, sob a égide dos legistas, o poder não aceita autori-
Como assinalou Otto Hintze e, depois dele, Zolberg, estas for- dade superior à da lei e se reconhecem direitos individuais ina-
mações políticas aparecem nos interstícios do conflito entre o lienáveis (Barret-Kriegel: 1970, 21-55). Pode-se, aliás, com al-
Império e o papado (Hintze: 1975, 167; Zolberg: 1980, 737). guma razão pensar que foi o lento estabelecimento desse es-
Foi a dissociação do temporal e do espiritual deste.modo pro- tado de direito a partir das necessidadesda administração ter-
duzida que favoreceu o seu nascimento. Stein Rokkan, por ritorial unificada que serviu de embasamento consistentepara
sua vez, inscreve sua emergência numa dupla dimensão norte- as instituições políticas estáveis. Por oposição, a instabilidade
sul e leste-oeste:com relaçãoao ''centrocultural'' da cristan- democrática das nações ditas ''periféricas'' não proviria da
dade, Romã, e em função de um ''eixo económico" composto implantação do sistema representativo antes mesmo da sedi-
pelo centra/ óe/f of frade roube clfies("cinturão central de ci- mentação de um ''estado de direito'' sólido?
dadesna rota comercial'') indo da ltâlia do Norte às cidades Como quer que seja, é sobre o alicercejurídico edificado
hanseáticas. E à margem desses dois eixos que se produz o pelos legistas do antigo regime que aparecem os procedimen-
Estado (Rokkan: 1975, 570-580). Esta apreensão geopolítica tos representativos. Esta emergência foi atribuída a numero-
do processo de sfafe-bzz//dipzg (''construção do Estado'') não sas causas. Para alguns, além do sistema judiciário, que esta-
deixa de ter conseqíiências quanto ao tipo de regulação polí- beleceo reino da lei, é o aparecimento de instituições finan-
tica dominante ao qual essas nações deram nascimento. Nas ceiras que impõe ao soberano a consulta. E da necessidade do
duas hipóteses, é a autonomização do político que está em consentimento à cobrança de impostos que nascem os parla-
jogo. A Inglaterra e a França dão provas disso. mentos (Strayer: 1979, 69), do mesmo modo que as exigências
Pois o Estado -- o que é confirmado por estas duas teses representativas dos povos surgem historicamente da recusa de
-- antes de mais nada põs fim, como assinalou Weber, ao pa- imposições fiscais não aprovadas. Assim, quando o Tesouro é
trimonialismo, à confusão entre a propriedade e o governo. o pilar essencialdo Estado, as modalidades de sua lógica ex-
Mas, de modo mais geral, ele foi o instrumento da separação trativa contribuem para delinear o tipo de regulação política
do poder e da sociedade em sua dimensão espiritual e religio- dominante. Para outros autores, os parlamentos nasceriam da
sa, assim como na sua dimensão económica. Foi por ter-se obrigação, para o soberano, de fazer com que suas decisões
edificado deste modo que o Estado impôs o domínio da lei, fossem aplicadas. Na falta de qualquer aparelho administra-
lançando as bases ''nomocráticas'' dos regimes representati- tivo, ele não teria tido ''outros agentes executivos senão as
vos. Assim, segundo Tocqueville, sem dúvida o antigo regime autoridades locais'', atires paradoxais da centralização esta-
tinha aberto o caminho à Revolução, porque a ação do Estado tal (Jouvenel: 1955, 224).
absolutohavia preparado a tradição igualitária da república. Não é, pois, surpreendente,como assinala Tilly, que as
Segundo ele, ''a monarquia administrativa tinha esvaziado de nações européias mais estatizadas sejam aquelas que permiti-
sua substância viva a sociedade de ordens'' (Furet: 1978, 39), ram mais cedo e mais rapidamente, senão de modo mais du-
36 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 37
râvel, a extensão do sufrágio universal (Tilly: 1975, 36). Mes- rio ou plural (Bendix: 1977, 117) num passado europeu relati-
mo que os construtoresdo Estado nem sempre se tenham in- vamente recente. As democracias ''evolutivas'' ou ''guiadas''
clinado a ''estender os direitos'' mas procurassem antes limitá- existentesespecialmente no Terceiro Mundo serão autoritaris-
los e absorva-los,pode-sesupor que, tendo o edifício estatal mos disfarçados, e até mesmo institucionalizados, ou sistemas
adquirido solidez, os riscos e as incertezas dos governantes de aprendizagem das formas representativas? A questão me-
não aparecem mais como um perigoso salto no vazio que era rece ser colocada. Como os exemplos ambíguos são inúmeros,
necessário evitar a qualquer preço. não parece impossível distinguir as verdadeiras e as falsas di-
Se a emergência da democracia não é totalmente aciden- taduras. Onde colocar a democracia de 40% da Indonésia? A
tal, se ela parece responder a uma sequência de fatores inter- democracia brasileira no período da abertura, embora domi-
dependentes,seu carâter histórico não diminui de modo al- nada pelos militares, tal como o sistema mexicano, após a
gum o mistérioque a cerca. Por issopode-seconsiderar que reforma eleitoral, com suas características comuns (ausência
precondições sociais múltiplas e convergentes, necessárias ao de alternância, pluripartidarismo realcom acessomais ou me-
seu aparecimento, tomem difícil sua exportação para a perife- nos limitado aos cargos executivos, direitos civis relativamente
ria, e que a implantação mimética dos sistemas representa- respeitados) poderiam entrar na categoria dos regimes semi-
tivos em terrenos não propícios é, na maioria das vezes, rever- competitivosmais do que nas das pseudodemocracias.
No
síve[ou, pe]o menos, frágil. Mas, destemodo, não se supõe Egito, o fenómeno evolutivo é nitidamente perceptível: com
que a liberdade dos atores e, portanto, sua estratégia de coe- efeito, do regime militar mobilizador de Nasser, passou-se a
xistência seja secundaria na instalação dos procedimentose um regime ''quase-pluralista'' com Sadat, através da reforma
das instituições de regulação política? Também os regimes são do funcionamentoda União SocialistaÁrabe em 1975para
produções sociais. A importância das estruturas condicionan- permitir as tendências (p/adoras) (Buttner: 1979), antes de se
tes não exclui de modo algum a vontade dos atores e particu- chegar, sob a presidência de Moubarak (1984), a eleições
larmente daqueles que dominam o jogo sócio-político. O que semilivres e a um bipartidarismo efetivo que, no entanto. ain-
explica talvez que regimes representativos aparentemente du- da é percebidopor parte da opinião pública como um álibi
ráveis apareçam em sociedades cujas características parecem político.
Pem poucofavoráveisà pratica democrática. E mesmo em algumas ''democracias sob medida'', mais
decorativas que substanciais -- das quais se pede dizer que
suas práticas concorrenciais recentes se destinavam antes de
Democracias sem condições tudo a um uso externo -- embora o partido que ainda ontem
era o único permanecesse inamovível, o poder, ao autorizar e
mesmo suscitar o pluralismo partidário, não estaria criando
A via real das quase-democracias uma autolimitação? Nos casos quase paralelos do Senegal e da
Tunísia, a ruptura do monopóliodo partido único (Partido
As quase-democracias ou os regimes representativos fic- Socialista Senegalês ou Destour), mesmo que acompanhada
tícios abundam. Considera-los em bloco como simples e per- de múltiplas salvaguardas, não representa um progresso na
versas homenagensdo vício autoritário à virtude representa- ordem representativa? Estabelecem-se liberdades e, embora o
tiva é sem dúvida insuficiente. E bem verdade que não são adversário político seja talvez ''balizado'' e mantido a uma
raras as paródias de consultas pluralistas no caso de verda- distância respeitosa do poder real, ele é tolerado, e não exor-
deiras ditaduras, do Paraguai às Filipinas, mas nem todos esses cizado ou diabolizado. Foi dado um passo à frente. Também
regimes são idênticos e não podem ser vistos simplesmente sob em matéria de democracia nem tudo é branco e preto, e com
o aspectodo disfarce ou da mentira: impõem-senuanças e frequência procurar pelo melhor significa transformar-se em
gradações. Não nos esqueçamos do voto censitârio, capacitá- inimigo do que é simplesmente bom.
38 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 39
Certamente, não será de surpreender que nessas demo- Sociedades divididas e democracia concordatária
cracias de má vontade ou incoativas -- não vamos evocar aqui
as possíveis razões dessas aberturas -- aqui e ali alguém pro- Ao contrário, situações aparentemente incompatíveis com
cure dar um pequeno empurrão para ajudar a sorte, limitar os o bom funcionamento do sistema representativo parecem na
riscos inerentes ao sufrágio livre e assegurar a estabilidade do verdade ter estimulado sua implementação. Haveria prova
poder. Da urna negra da oposição no Burundi, à supressão da mais clara de que os homens, pelo menos em matéria de polí-
cabine indevassâvele da carteira de identidade do Senegal, tica, fazem seu destino e não apenas se submetem às condi-
passando pela ausência de listas eleitorais ou envelopes em ções objetivas de seu ambiente?
certos países da América Central, as manipulações dos títulos Assim, sociedades
divididassegundolinhas de futura
de eleitor ou o clássico preenchimento prévio das urnas, o ar- linguísticas (Suíça, Bélgica), religiosas e/ou ideológicas (Paí-
senal da fraude é variado. Mas às vezes esses subterfúgios são ses-Baixos, Austria) encontram-se entre os modelos mais aca-
infinitamente legaise sutis, como no caso das leis eleitorais. O bados de regularidade democrática. A segmentação social con-
Brasil semicompetitivo dos militares tornou-se mestre em elei- flitual não é necessariamente sinónimo de instabilidade polí-
ções tipo ganha-quem-perde e de ''geometria variável'': os re- tica. Esses sistemas, que foram chamados de consoclafíona/
sultados eleitorais servem de barómetro para revisar o arranjo democracy (''democracia consociacional'') e que denominare-
legal a fim de permitir ao partido oficial minoritário conservar mos ''democracias concordatárias'', baseiam-se na necessi-
o poder, apesar de tudo. Mas o antigo modo de escrutínio se- dade do compromissoentre segmentossociais ou famílias es-
negalês(lista maioritária em um turno em uma cirscunscnçao pirituais que devem coexistir ou arriscar-se à explosão da na-
nacional única), o voto vinculado brasileiro ou a mudança da ção (Mac Rae: ]974; Nordlinger: 1972). Essas sociedades se
lei eleitoralna Guiana em 1963-- para tirar do poder o par- encontram diante da escolha entre a regulação dos conflitos
tido revolucionário e marxista de Cheddi Jaghan -- não cons- levando em conta suas divisões irredutíveis e a guerra civil, di-
tituem estratégiasmuito diferentes da lei francesa sobre os reta ou em estado larvar, como ocorre atualmente na Irlanda
''aparentamentos'' entre partidos aliados, que oferecia uma do Norte e no Líbano.
vantagem aos que deixavam o governo na IV República. Alias, A propósito deste último exemplo, que representa um
a escolha dos sistemas eleitorais que colocam a justiça (a pro- caso-limite particularmente interessante, pode-se assinalar
porcionalidade integral) a serviço da estabilidade e da eficácia que, no mundo árabe, antes das convulsõesde origem sobre-
-- representadas pelo escrutínio maioritário uninominal -- tudo exógenaque o destroçaram, o Líbano era o único país
decorre indiscutivelmente da mesma ética. realmente democrático, no sentido constitucional-pluralista
De qualquer forma, não se pode deixar de ser sensível ao do termo. Ora, este país islagio-cristão, dividido entre qua-
fato de se produzirem evoluções democráticas em contextos torze comunidades religiosas distintas e antagónicas, havia
que não correspondem absolutamenteàs condições conside- conseguido, com base no confessionalismo e através do Pacto
radas ótimas segundo a experiência ocidental. Evidentemente, Nacional de 1943, que fixava os fundamentos de uma demo-
sempre se poderá questionar a precariedade dessas tentativas, cracia intercomunitária, estabelecer um sistema representa-
mas não se deve subestimar, na falta de condições objetivas ou tivo vivido mas igualmente frágil. A dosagem sutil e a reparti-
de imposição externa, a vontade dos protagonistas e da classe ção rigorosa da representação nacional não conseguiu superar
política. Mais notávelainda, nessesentido,é a existência,na as tensões israelo-árabes e a questão palestina (Rondot: 1965).
área ocidental (ou não), de sociedades que apresentam obstá- Mas a fragilidade geopolíticado Líbano não deveria fazer es-
culos aparentemente intransponíveis ao enraizamento dos sis- quecer os trinta anos de paz e de prosperidade concordatâria
temas representativose que constituem, apesar disso, exem- que o país conheceu. A vontade de se viver junto, e portanto
plos de estabilidade democrática. de aceitar compromissos, é sem dúvida o primeiro móvel da
lógica democrática. Esta não conseguiria sobreviver ao aban-
40 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 41
dono do imperativo nacional em benefício de solidariedades Poucos países da América Latina são dotados de condi-
infra ou supranacionais inconciliáveis. ções menos favoráveis à democracia que a Colõmbia. Além da
Mas os diferentes casos de democracia concordatâria
lembram ao menos a importância dos desafios, sociais e polí- pobreza de amplos setoresda sociedade, em face de uma gran-
de burguesia fundiária quase imutável, pode-se notar uma in-
ticos, na edificação desse sistema de regulação pacificador. A tegração nacional pouco satisfatória, tanto do ponto de vista
democracia como vontade e representação? Sim, se se trata da
geográfico quanto humano, uma lgrçja católica poderosa e
representaçãodas catástrofesque qualquer outra forma de teocrática e uma herança de violência civil cujos sobressaltos
governo inevitavelmentetraria, e se a vontade é a dos princi- parecem intermináveis. E, no entanto, o regime político é
pais atores da existência nacional. aberto e competitivo e não se desconhece a alternância, como
foi demonstrado pela inesperada vitória do candidato conser-
vador nas eleições presidenciais de 1982. Ê o bipartidarismo
Clientelismo e pluralismo que constitui aqui a coluna vertebral da sociedade política e
assegurauma democracia sem riscos, portanto estável. A
As relações de clientelismo, baseadas na dependência identificaçãopartidária familiar e hereditária com base geo-
pessoal e, portanto, em assimetrias sociais muito fortes, pare-
gráfica -- alguém nasce liberal ou conservador -- constitui
cem opor-se à fluidez necessária ao bom funcionamento dos um obstáculo às solidariedades de classes e estreita mais os
regimes competitivos. Mas podem igualmente favorecer seu laços verticais de dominação. Esse bipartidarismo, tão funcio-
enraizamento cheio de dificuldades. De fato, não há dúvida
nal para a estabilidade da sociedade, opõe-se a qualquer pro-
de que, como prova a experiência de numerosos.países, a con- cesso de participação popular independente, mesmo de tipo
figuração vertical do universo sócio-político, ao arear a organi- populista. Enquanto os dois partidos se entendem na cúpula,
zação de solidariedades sócio-económicas horizontais, perigo-
principalmente em virtude de sua espantosa homogeneidade
sas para o sfafu qzzo, atenua os conflitos e exerce uma função social, suas bases são mobilizadas por um ódio histórico por
estabilizadora. A ''polarização'' das famílias espirituais ou dos
muito tempo insuperável, que desembocou, tempos atrás, na
segmentos sociais nas democracias ''consociacionais'' (Mac mais inexpiável e atroz das violências, .[a Vzo/elzcía (Wilde:
Rae: 1974, 6) desempenha o mesmo papel moderador dos en- 1979; Oquist: 1978).
frentamentos de classe.
No Senegal independente, um partido moderno domi-
Em uma tal estruturação ''diâdica'' e não-igualitária, os
nante, mas já não mais único, a União Progressista Senega-
recursos de clientelismo substituem uma administração esta- lesa, transformada em Partido Socialista, apoia-se em uma
tal enfraquecida e privatiza de certa forma o poder. As elei- estrutura segmentâria clientelizada, sem se confundir com ela.
ções abertas, quando não realmente concorrenciais, desempe- O Partido de Senghore Diouf se beneficia principalmento do
nham um papel funcional duplo. Elas demonstram ao poder
apoio, com base em um intercâmbio de poder, de poderosas
central a importância do capital "cívico'' detido pelo patrono, confederações marabúticas que controlam o voto (Coulon:
ao mesmo tempo em que se reanimam as solidariedades verti- 1981)
cais que poderiam embotar-se (Rouquié: 1978, 95). Os meca- Geralmente, é só quando essas configurações verticais so-
nismos são mais ou menos idênticos nas formas de ''cliente- frem erosão ou se acham em crise que o sistema ''democrá-
lismo de notáveis'' e no ''clientelismode partido moderno''.
tico'' é colocadoem questãopor seus próprios beneficiários,
Assim, na ltâlia, um ''partido de massaclientelístico"(Gra- os defensores do ifalu qao.
ziano: 1973,212)que se confundecom o Estado construiu um
''império faraónico'' ''de interesses clientelísticos colossais'
(Tamburrano: 1974, 1-135), onde clientelas e ''parentelas"
(La Palombara: 1967)são os mais fortes esteiosdo regime.
42 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 43
Fragmentação e ordem hierárquica: indícios de que a tensão entre a rigidez da estruturação social
o enigma da maior democracia do mundo e a igualdade política legal tenha favorecido a capacidade de
barganhae de negociaçãodos atires (Kothari). Por outro
Os teóricos mais ou menos etnocêntricos dos socfa/ pre- lado, se é verdade que os grupos preponderantes se esforçam
reqzzüíres of democracy (''pré-requisitos sociais da democra- para evitar que a força numérica se transforme em poder elei-
cia'') têm algum trabalho para fazer a índia entrar nos seus toral (Jobert: 1982), os dominados se apegam ao sufrágio uni-
esquemas. Um governo parlamentar estável de mais de trinta versal que contribui para a difusão de normas igualitárias. A
anos nesse país constitui um desafio intelectual e político con- cidadania eleitoral que é consentida figura como emancipação
siderável.De fato, poucas naçõesdo mundo, novas ou anti- simbólica, e mesmo como substituto de uma verdadeira trans-
gas, são divididaspor ''clivagensinternas tão profundas'' formação de seu estatuto legal (Mitra: 1979 e 1980). Mas a
(Frankel: 1969). Mosaicode religiões,de raças, de línguas fragmentação e a multidimensionalidade da sociedadeindiana
(179 línguas e 544 dialetos oficialmente), atravessada e aba- constituem sem dúvida o fator essencial para a manutenção
lada por todos os conflitos que daí decorrem (Kothari: 1970), do sistema pluralista. A ''politização da diversidade'', a busca
a Índia é também a sociedade do como Àferarcãlczzs e do sis- do consenso e a rejeição da ''ilusão de dominação'' (Kothari:
tema das castas. Se as sociedadesnão-igualitárias são pouco 1970, 320) apresentam-se como necessidades nacionais para
aptas à democracia, o que dizer de uma sociedade onde as preservar a unidade da república-continente. O compromisso
hierarquias são não só legitimadas como também sacralizadas democrático constitui, na era do desenvolvimento, a condição
pela religião, além de codificadas e reconhecidas pela lei(scÀe- da sobrevivência.Para isso não é necessárioque os valores
du/e casas) e onde 90 milhões de cidadãos são considerados habitualmente considerados como próprios da democracia se-
''intocáveis'' (&arÜàni)? A igualdade legal em que se baseia o jam dominantes; importa que as outras soluçõespolíticas apa-
sistema representativoparece estar muito pouco de acordo reçam às elitescomo mais custosas ou mais arriscadas.
com esse tipo de realidade social. A herança de Westminster
(dividida, aliás, com um Paquistão muçulmano muito instá-
vel) e as capacidades do Zndfan admf/züfraffve sewfce (''ser- Do compromisso pluralista
viço administrativo indiano'') legado igualmente pelos britâ-
nicos, não são suficientes para explicar o paradoxo dessas ins-
como vontade e representação
tituições representativas capazes de superar as crises, e apa- Em uma visão dinâmica das condições da estabilidadee
rentemente independentes dos homens que a fundaram. da instabilidade dos sistemas representativos, não se pode es-
Na realidade, parece que a disciplina das castas tenha capar das recaídas do desenvolvimentoeconómico.Não basta-
desempenhado um papel complexo na articulação da tradição ria uma visão estática tão-só dos componentes sociais e de seus
sócio-cultural e da modernidade política. Ê certo que elas ten- interesses bem compreendidos. De fato, as tensões do desen-
deram a reforçar sistemas de clientela, freando, lá como em volvimento económico afetam a base dos regimes políticos. Jâ
outros lugares, a organização coletiva(e subversiva) dos domi- se indagou se as necessidadesdo crescimento acelerado, e até
nados e obscurecendo os conf]itos de classes. Mas seu papel de mesmo aquelas decorrentes da superação do atraso econó-
integração e de identificação social contribuiu também para mico, seriam compatíveiscom as normas políticas da demo-
disciplinar os fenómenos de desintegraçãosocial; a divisão em cracia. A acumulação e a simultaneidade dos problemas que
castas deu lugar a novas formas associativas que favoreceram as primeiras democracias tiveram que resolver sucessivamen-
a passagem insensível a valores modernos (Rudolph: 1967, te, às vezes, ao longo de um século constituem desafios difíceis
23). Por isso, embora os famosos ''bancos de sufrágios'' conti- de superar sem que haja derrapagem dos confrontos codifica-
nuem a existir, significando que não há (ainda) antagonismo dos da ordem representativa. Entre outros, o problema da to-
entre a prática representativa e as relações de dominação, hâ lerânciacom relação à desigualdadesocial em uma fase de
44 O MISTÉRIO DEMOCRÁTICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 45
acumulação foi inúmeras vezes examinado nesse sentido. Hirs- transponível da vida nacional. A evolução de 1910 no México
chmann propôs uma resposta teórica (o "efeito túnel''), dis- não faz parte apenas da ideologiaoficial mas constitui tam-
tinguindo funções ou fases de ''acumulação'' e de ''reforma- bém o ato de fundação do Partido dominante e a referência
distribuição'' (Hirschmann: 1975e 1979). A dialética dessas suprema. .Z;a Vzo/enchana Colâmbia representa um elemento
duas funções seria capital para a estabilidade sócio-política. A da dissuasão de natureza a fazer baixar as apostas quanto ao
tolerância com relação às desigualdades permaneceria grande que se põe em jogo na política. O mesmo se poderia dizer de
enquanto as populações que as sofrem se encontram no ftí#e/ numerosas "democracias sem condições". A começar pela Ín-
do pauperismo absoluto. Esta tolerância desaparece com o dia, onde a guerra de castas em estado larvar e os confrontos
desenvolvimentoindustrial e a esperança de uma distribuição ''comunalistas" poriam em chamas o país se instituições re-
mais justa das riquezas. Não estamosassim muito longe do presentativas não conseguissem canalizar e ''agregar'' as de-
''paradoxo tocquevilleano''segundoo qual a abertura de re- mandas.
formas e a melhoria de uma situação insuportável constituem Em todos os casos, implícita ou explicitamente, o com-
uma conjuntura propícia às crises políticas e aos abalos insti- promisso democrático passa por um pacto nacional visando
tucionais, pois ''o mal é menor, mas a sensibilidade é mais criar contratualmente as condições da democracia quando es-
viva''. Segundo uma tal hipótese, a democracia seria privilégio tas não existem, foijá-las levando em consideração as reali-
não apenas das nações desenvolvidas, mas também talvez dos dades e as ameaças. Quanto à vontade de viver em conjunto
países de menor desenvolvimentoabsoluto, sendo os Novos ela não é nem um mistério nem um acidente. A democracia
Países Industriais os menos aptos à adoção e manutenção dos nasceassim pela dissuasão, talvez como um mal menor. Não
sistemas representativos. dizia Thiers que ''A República é o regime que nos divide me-
Se se tenta aplicar este esquema de leitura à classe média nos"? O sistema representativo não pode ser senão um obje-
internacional das nações latino-americanas mais industriali- tivo coletivo, porque ele implica uma tensão permanente, e
zadas, percebe-se que as poucas democracias ''permanentes'' não uma decorrência, como consequência mecânica, de dados
do subcontinente estão longe de pertencer ao grupo dos países objetivos. A lembrança amarga dos confrontos civis passa-
pouco desenvolvidos. E verdade que se pode pensar que a ri- dos e a vontade de viver em conjunto são com muita frequên-
q\rezapetrolífera permitiu harmonizar na Venezuela, demo- cia a força propulsora escondida da "virtude''
cracia estáveldesde 1958, as duas funções mencionadas por
Hirschmann. No México, o ''desenvolvimentoestabilizador''.
pela rapidez de seu crescimento, criou talvez expectativas po-
pulares favoráveis à distensão social, enquanto na Colâmbia,
é duvidoso que o bipartidarismo tenha repartido as duas ''fun-
ções'' entre conservadores e liberais. Mas onde situar a Costa
Rica e como explicar o seu estranho apego ao sistema plura-
lista, mesmo atualmente, quando o país se encontra situado
na linha de frente de um novo conflito Leste-Oeste?
Na verdade, experiênciashistóricas comuns (e dramáti-
cas), a exemplodas guerras na Europa, sem dúvida fizeram
mais para a aceitação do compromisso e do pluralismo que os
condicionamentos diversos, económicos ou não. Na Costa
Rica, a guerra civil de 1948, que acarretou o desaparecimento
das instituiçõesmilitares, constituiu a experiênciafundadora
da democracia e representa até o momento o horizonte in-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 47
para estudos posteriores.' Nessa direção analítica, a contri- cesso de construção do Estado com a dinâmica liberal; se-
buição de Schwartzman, retomando a tese de Faoro sobre a gundo, definindo os parâmetros da ordem política brasileira
hegemonia do Estado numa perspectiva neopatrimonialista, no contexto de uma sociedade agrária; e, finalmente, discu-
busca, através do conceito de ''cooptação política'', explicar tindo a questão do liberalismo e sua tendência a coexistir com
como o Estado trata de ''submeter à sua tutela formas autó- estruturas políticas autoritárias.
nomasde participação". (Schwartzman,1982:23).
No presente artigo nossa ênfase será menos a questão das
''bases do autoritarismo'' (como fez Schwartzman em seu úl-
1. Construção do Estado
timo livro) do que uma espécie de contraponto que examine o e dinâmica liberal
processopolíticodo lado das ''bases da democracia". Certa-
mente, a tese do enraizamento profundo do ''autoritarismo'' Para se entender a configuração do sistema político brasi-
na realidadepolítica brasileira tem fundamentos sólidos. En- leiro dois processos básicos devem ser relacionados: o padrão
tretanto, o uso indiscriminado do conceito(inclusive para de- de construção do Estado e a dinâmica do liberalismo. Dada a.
finir diferentes situações políticas na América Latina) faz com natureza exploratória de nossa reflexão, o objetivo inicial é de
que ele se torne tão fluido quanto o de ''populismo". Em con- explicitar o argumento, buscando definir os principais fatores
que poderiam estar associados ao processo político, a partir de
seqüência, a preocupação, por vezes excessiva, de ressaltar os uma comparação entre os casos argentino e brasileiro. Geral-
aspectos ''autoritários'' do sistema político tem tolhido nossa
mente, uma das dificuldades de entender as vicissitudes do
capacidade de perceber os processos e estratégias de tipo libe- liberalismo no Brasil decorre de uma tendência a centrar as
ral que estão também presentes na dinâmica política brasi-
leira. A ''práxü liberal'' torna-seum traço persistentee captá- análises na formação do Estado sem articula-lo com o pro-
cessoliberal presente desde os primórdios do sistema político.
vel nas ideologias e instituições políticas desde a época colo-
Naturalmente, a questão é complexa e não temos a pretensão
nial, perpassando os períodos monárquico e republicano. A de resolvê-la nos limites desse artigo, embora pareça que por
questão-chave seria, então, entender por que o liberalismo
brasileiro, instalando-se de forma quase permanente no cam- esta via pode-se abrir uma nova perspectiva analítica.2
A formação do Estado nas sociedadesperiféricas (parti-
po político, não evolui, salvo em momentos transitórios e de
forma limitada, numa direção democratizante . cularmente na América Latina) foge, como observa O'Donnel,
Partindo desse enfoque, seria importante empreender um à concepção clássica do Estado como reflexo da sociedade ci-
esforço analítico exploratório em direção das bates (e certa- vil. Ao contrario, ''quanto mais a inserção no mercado mun-
mente dos /ímffes) da democracia brasileira antes da implan- dial e as tentativas para definir e realizar o desenvolvimento
tação da primeira experiência de ''democracia de massas'' económico foram tardios, mais o papel do aparelho de Estado
com a república populista. Inicialmente, buscando, numa
perspectiva comparativa com a Argentina, articular o pro-
(2) Dois outros artigosanalisam o período de forma comparativa: Trindade,
1984,e anualmenteem elaboraçãoTrindade, Hélgio, Penerraçâo do Estado e l)fnê-
mica libera!; Aspectos G)mparativos do P)'acesso Político Brasileiro e Argentino (no
(1) A versão recente do debate rompe, em grande medida, com os parâmetros prelo). Noutra perspectiva analítica ver importante contribuição de Alimonda(1982).
da dicotomização anterior, não apenas discutindo criticamente a validade de certas Análises recentessobre a formação do Estado Nacional insistem sobre sua origem na
inferências históricas(lglésias, 1976; Carvalho, 1979), como a utilização de conceitos, sociedadefeudal em transiçãopara o capitalismoe, ao mesmo tempo, na especifici-
tais como "capitalismo" ou "feudalismo", na análise da formação histórica brasileira dade européia do fenómeno estatal(Anderson, 1977; Badie, Bimbaum, 1979; Stra-
(Reis, 1974a; Centra, 1974). O mais importante, porém, foi a incorporação das novas yer, 1979). Deixando de lado a discussão sobre as fronteiras históricas do processo de
abordagens teóricas e pesquisas sobre a problemática Estado-sociedade civil nos úl- estatização" e a questão do "feudalismo"(Simonsen, 1944; Ribeiro, 1957; Furtado,
timos anos(Schwartzman, 1970; Reis, 1974b; Carvalho, 1974; Schwartzman, 1975; 19S4), parece legítimo postular a existência efetiva de Estados nacionais na América
Schwartzman, Reis e Cardoso, 1977; Urácoechea, 1978a; Uricoechea, 1978b; Carva- Latina, embora sua estruturação, diferentemente da tradição européia, estala intima-
lho, 1980). mente ligada ao fato colonial e à sua herança politica.
50 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS SI
nos países do Terceiro Mundo foi decisivo e extenso''. As con- sante considerar a abordagem utilizada por Hermet ao anali
seqüências dessa proposição são várias. De um lado, além do sar as diferentes estratégias liberais produzidas historicamente
Estado desempenhar em diversas situações históricas decisi- pelas ''democracias fundadoras'' (Inglaterra, França e Esta
vas ''um papel mais importante que no centro capitalista, a dos Unidos), mas valorizando igualmente as que se desenvol
classe dominante nacional é filha do aparelho de Estado''; de viram em outras partes da Europa (Prússia, Espanha e ltâlia)
outro lado, o ''Estado não é a síntese idealizada da sociedade e no espaço político latino-americano. Esta démarc#e tem a
civil existente'', mas, ao contrario, sua função é sobretudo de vantagem de desmistificar uma certa visão idealizada da bons
ser o ''agente de uma síntese'' numa sociedadeprofundamente tituição das democracias clássicas (cuja evolução não foi sem
heterogénea(O'Donnel, 1980: 769-770). pre nem liberal, nem linearmente democratizante) e de valori
Essa analise ao destacar alguns elementos centrais na de- zar outros padrões possíveis de democratização dos sistemas
terminação das ''especificidades'' do Estado latino-americano políticos ocidentais, seja através da via autoritária bismar
(peso da herança colonial, tipo de inserção no mercado mun- kiana ou bonapartista, seja através do ''subterfúgio cliente-
dial e articulação entre Estado e classe dominante), não men- lista'' dos regimes europeus mediterrâneos (Hermet, 1983). A
ciona outros fatores que também contribuíram decisivamente reconstituição dos processos políticos reais mostra quão varia
para sua formação. Refiro-me, especialmente,à dinâmica in- dos e contraditórios foram os caminhos na construção das de
terna da economia; a relação entre regiões, ''centro'' (Badie, mocracias contemporâneas.Todo o problema, pois, é buscar
Birnbaum, 1979)e unidade nacional; o perfil das elitespolíti- a /ógica/ibera/ no interior do sistemapolítico e a partir daí
cas e seu grau de autonomia com relação à classe economica- ter condições de entender a dinâmica da democracia possível
mente dominante; a autonomia dos poderes civil e religioso; o Partindo dessesparâmetros, a comparação entre os siste
peso das forças armadas ou da burocracia, etc. mas políticos brasileiro e argentino, sugere alguns traços dife
Por sua vez, a questãodo liberalismona América Latina renciadores significativos tanto na formação do Estado quanto
tem sido insuficientementeanalisada. Os especialistas reco- na dinâmica liberal. Para os objetivos de nossa analise separa
nhecem a presença, sob a influência dos ideários liberais in- mos dois processos que estão correlacionados entre si: 1) a
glês, francês ou americano, de uma tradição antiga que se formação do Estado nacional e seu grau de penetração na se l
manifesta, desde os movimentos emancipadores, na maioria piedade civil; 2) a capacidade de mobilização da sociedade e a
dos países do continente. Geralmente são considerados como conseqilenteampliação da arena de competição política. \qas
idéias importadas, socialmente ''fora do lugar'' (Schwarz, sa hipótese pressupõe que existam entre os dois países padrões
1973), circulando nos setoresmais ilustrados das elites coloni- diferentesde ''desenvolvimento
político''. De um lado, o pa
zadoras ou crio//as, mas cuja influência seria restrita. A maio- drão argentino se configura por um processo fardfo de forma
ria das análises, em conseqüência, interpreta o liberalismo ção do Estado nacional, enquanto que, no caso brasileiro, o
como uma manifestaçãopuramente decorativa, fruto do mo- Estado se constitui precocemente. De outro lado, no plano
dismo ou mimetismo intelectual, e que, paradoxalmente no da dinâmicaliberal, o padrão é praticamenteinverso:en
Brasi[ até o final do sécu]o X]X, coexistecom a escravidão. quanto na Argentina o ritmo de expansãoda arena política e
Deixou-sede considerar adequadamenteque, sob a hegemo- mais/arfa e amp/o; no Brasil, ele se desenvolve de forma mais
nia do autoritarismo, quase sempre se preservaram no Brasil tenta e restrita
instituições de tipo liberal e que esse hibridismo institucionali- A interação entre esses dois processos indica, de forma
zado tem sido um dos traços fundamentais do sistema político tendencial, as diferenças entre padrões políticos que estão
brasileiro. provavelmente relacionados também com variáveis sócio-eco-
Nesta perspectivaanalítica, mais do que discutir a per- nómicas. Primeiramente, constata-se variações entre o pro
centagem de autoritarismo que poderia ser detectado mesmo cesso de formação do Estado a mobilizaçãoda sociedade
na maioria dos atuais regimes demoliberais, seria interes- cíl,í/ no período que se estende da independência até a década
S2 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 53
de 1930. No caso brasileiro, o Estado nacional intemaliza e nas mais amplas da economia brasileira (Furtado, 1976). Se
consolida as estruturas monárquicas oriundas do Reino Unido gundo, o peso do legado institucional político-administrativo
de Portugal e do Brasil (1815) favorecendo sua centralização foi diverso: no caso brasileiro, o aparato administrativo colo-
precoce, enquanto que a mobilização somente se manifesta nial era mais complexo,produziu a formação de um ''esta
lentamenteentre as décadas de 1920 e 1930. No argentino, ao mento burocrático'' (Faoro, 1958) e transmitiu-se intacto em
contrário, o longo e conflitívo processo de indecisão na consti- função da forma pacífica em que se deu a transição para a
tuição do ''centro'' provoca um retardamento na construção independência; a Argentina, pela sua condição de Vice-Rei
do Estado nacional cuja organização definitiva ocorre apenas nado tardio (1776), herdou um arcabouço institucional mais
em torno de 1880, embora a mobilização comece rapidamente simples e descentralizado com relação ao controle metropoli
com a criação de partidos urbanos(Unión Cívica Radical, tano. Além disso, a estrutura aditada de início (com a depo
1891 e Partido Socialista, 1898) . sição do vice-rei em Buenos Abres) foi totalmente alterada
Por sua vez, a relação entre a penefraçâo do Estado e através do prolongado e conflitivo processo de unificação
a competição po/íffca mostra-se igualmente diferente. Na Ar- nacional
gentina, até o advento do peronismo em 1943, a penetração do A importância dessestraços da fase colonial torna-se bas
Estado na sociedadeé menos forte do que no Brasil. Nesse, tante evidente. Na Argentina, a ausência de uma articulação
o processo de intervenção estatal na economia, por exemplo: mais ampla entre a economia e a ocupação do território, assim
aumenta progressivamente com as crises sucessivas do café como a frouxa e descentralizada ligação com a Espanha têm
(desde o Acordo de Taubaté em 1906), amplia seu campo de provavelmente,efeitos sobre a formação tardia do Estado,
ação nos anos 30 com a ascensão de Vargas ao poder (controle apesar da precocidade de sua independência nacional. De
da organização sindical), estabelecendo, durante o Estado forma inversa, a diversificação da economia brasileira na fase
Novo (1937;1945), as bases de sua hegemonia sobre a socie- em que entra em decadência a mineração e a longa tradição
dade civil. A ampliação da competição, porém, em termos de de controle centralizado das instituições coloniais, favorecem
expansãoda cidadania e participação política ocorre de ma- a complexidade e rapidez da configuração estatal
neira mais ampla e precocena Argentina do que no Brasil, Com a ruptura do vínculo colonial se coloca para ambos
acelerada pela reforma eleitoral de Sáenz Peça (1912) que via- os países, como problema crucial, a criação de um ''centro
biliza a ascensãoao poder, em 1916,de um partido (UCR) que propicie as condições de emergência de uma estrutura es
não controlado pela oligarquia tradicional e maioritariamente fatal. Se alguns fatores, como vimos, estão ligados ao período
apoiado nas camadas médias urbanas. colonial (diferenças na estruturação económica e político-ad
Como explicar as diferenças entre os dois padrões de ''de- ministrativa), outros decorrem da forma como se deu a eman
senvolvimento político''? Sem pretender dar uma resposta sis- cipação política. Primeiro, os dois países acedem à indepen
temática a esta questão, nossa análise busca localizar, numa dência de maneira diferente: o Brasil conquista sua unificação
perspectiva comparativa, alguns fatores que permitam sugerir política rapidamente, entre 1822e 1825 (derrotado o movi
os principais elementos de diferenciação e convergência entre mento republicano no Nordeste. a Confederação do Equa
os dois padrões, embora sem atribuir qualquer determinismo dor), enquanto na Argentina transcorre uma década entre a
às referidas variáveis consideradas isoladamente . insurreição portenha'' (1810) e o final da guerra da indepen
No período colonial configuram-se dois traços estruturais dência. Em segundo lugar, a política interna evolui de forma
que são importantes para a compreensão dos casos argentino radicalmente diversa: de um lado 'o esquema de tipo brasa
e brasileiro. Primeiro, a organizaçãodistinta da economia leito, de continuidade com relaçã o à administração colonial
produziu efeitos significativos sobre sua distribuição espacial. de outro lado, ''a descontinuidade bastante brutal própria à
Na Argentina esta articulação foi relativamenterestrita em América hispano-americana ' (O'Donnel, 1980: 772). Essas
termos territoriais quando comparada com as conexões inter-
variações não se explicam apenas pelo passado colonial, mas
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 55
S4 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
também por uma série de outros fatores intervenientes no pe- Sem dar um peso determinante seja a fatores económicos
ríodo pós-independentista,produzindo dois efeitos distintos: ou políticos na equaçãofragmentação/centrotardio e uni-
a manutençãoda unidade política, num caso, e a fragmen- dade/centro precoce, seria difícil excluir um do outro. Toda-
tação territorial, no outro. via, se as condiçõespróprias da estruturaçãoeconómicaofe-
De uma maneira geral, os sistemaspolíticosimplantados rece um argumento forte, por outro lado não se pode deixar de
nas ex-colónias espanholas enfrentavam um ''longo período reconhecer que as opções políticas das elites na transição
anárquico e muitos só chegavam a organizar o poder em bases (mesmo que a margem de escolha fosse limitada) produz efei-
mais ou menos legítimas através de lideranças de tipo caudi- tos.sobre a localização do ''centro'' com implicações sobre a
Ihesco''. No caso brasileiro, ''se não se evitou um período ini- unidade territorial. Parece também decisivo o tipo de regime
cial de instabilidade e rebeliões, não chegou a ter uma única implantado, que decorre da estratégia liberal adotada pela
mudança irregular e violenta de governo (não considerando elite política ao se apropriar seletivamente do estoque de idéias
como tais a abdicação e a antecipação da maioridade), e con- e instituições extraídas do liberalismo dominante, segundo
servou sempre a supremacia do poder civil'' (Carvalho, 1980:
seus interessespolíticos ou económicos. Mesmo não discu-
IS). Em conseqüência, a manutenção da monarquia pela elite tindo as diferenças significativas entre os vários projetos libe-
política brasileira facilitou a transição e criou um consenso rais em curso na América Latina. pode-se admitir que, à épo-
básico entre os governantes, garantindo um nível razoável de ca, uma monarquia constitucional à inglesa tivesse mais con-
legitimidade e estabilidade ao novo regime, indispensáveis .à dições de atingir esses objetivos do que um regime republicano
preservaçãoda unidade territorial. Na Argentina, ao contrá- sob forte influência do federalismo americano. Nesta ética.
rio. ''se houve unanimidade para a declaração da independên- torna-seinteressante mencionar que o centralismo unitário do
cia, não houve, em troca, com respeito à forma de governo que Império brasileiro somente se rompe, em 1889, com o advento
adotariamas ProvínciasUnidas'' (Romeno, 1975:68). A au- da República, inspirada no mesmo federalismo que fez da Ar-
sência de uma definição clara dos limites territoriais do Es- gentina (salvo durante o período da ''Federação Rosista'') um
tado nascente, a secessão de varias províncias (Paraguai, Alto caso extremo de instabilidade cíclica associada à descentrali-
zação política.
Peru e Banda Oriental) e os conflitos económicose políticos
entre as elites regionais diante da vocação hegemónica de Bue- O Brasil, ao contrário da Argentina, defronta-secom as
nos Abres, gerando uma situação permanente de guerra civil, contradições mais complexas do regionalismo (exceto as rebe-
mina em suas bases a legitimidade de qualquer ordem política liões regionais durante a Regência) somente no período repu-
estável até 1880. blicano, quandojá tinha superado, em grande parte, as ques-
A construçãodo Estado, pois, dependeuem muito das tões da unidade nacional e construído um aparelho estatal
condiçõespolíticas e económicas próprias a cada país. De uma complexo e estável. Esta diferença se explica pela própria ex-
parte, a forma em que surge o ''centro'' decorre, em grande periência política, segundo Santos, dos novos Estados inde-
medida, da estratégia de integração nacional da elite que con- pendentes: ''Todos os demais países latino-americanos já in-
dependentesda Espanha -- o Brasil foi uma das últimas coló-
trola o aparelho do novo Estado e de sua capacidade de coop-
tar as elites periféricas, estabelecendo as bases de um pacto nias a se tornar independente -- já estavam experimentando
as conseqüências da estratégia liberal. Haviam-se tornado au-
político estável. De outra parte, esse processo encontra-se inti-
mamente associado à estruturação económica, na medida em tónomos em relação ao poder colonial, abolido a escravidão e
esboçado excelentesconstituições políticas republicanas. O
que, em função do grau de concentraçãoou distribuição dos
benefícios no interior das elites, criam-se as condições mate- união senão estava em que a realidade não replicava o que
fora planejado'' (Santos, 1978b: 76).
riais indispensáveis à legitimação de um Estado com vocação
nacional. Esses dois processos condicionam-se mutuamente Entretanto, não se pode esquecer os efeitos do processo
ao longo do período. económico sobre a formação do Estado. Oszlak, ao analisar a
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS S7
56 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
interação desses três fatores com o processo de construção da
formação do Estado argentino, reconhece que as condições de ordem política, durante a segunda metade do século XIX, têm
uma economiamais integrada teriam, como no caso brasi- influênciadecisiva no ritmo de implantação do Estado nacio-
leiro, somada à preservação de certas instituições coloniais, a nal
possibilidade de produzir ''o cimento que amalgamada a so- Da mesma forma, poder-se-ia comparar as diferenças na
ciedade territorialmente constituída ao incipiente sistema de dinâmica liberal entre os dois países através da análise da re-
dominação, num estado nacional'' (Oszlak, 1982: 25).' Apesar lação entre a penetração do Estado e o desenvolvimento da
da interpenetração de variáveis políticas e económicas, a com- competiçãopolítica. Uma discussãomais detalhada das ''es-
paração entre os dois casos nacionais tende a mostrar uma tratégias liberais'' implicaria uma analise sistemática da ló-
certa'preponderânciade fatores de natureza política. Este gica política de cada regime, a partir da forma como foram
dado, porém, não invalida a generalização de que ''as possibi- solucionados certos desafios básicos, comuns a diferentes sis-
bilidades de êxito para impor uma ordem nacional estiveram temas políticos. A significativa diferenciação entre novos fato-
condicionadastanto pela situação do mercado, regida pelo res políticos (tipo de regime, partidos políticos, clientelismo e
grupo que controla as exportações-- monopólio dos portos, mobilização política) e sócio-económicos (tipo de economia
domínio do setor produtivo fundamental, etc. -- como pela rural, processo de industrialização, dominação oligârquica,
capacidade de alguns setores das classes dominantes de conso- fluxo emigratório, urbanização e mobilização social) oferecem
lidar um sistemapolítico de domínio'' (Cardoso e Faletto, novas articulações que permitem conceber hipóteses explora-
1970:43). tórias (Germana, 1972).
A evidente importância dessa articulação permanece, po- No caso brasileiro, a penetraçãoampla do Estado asso-
rém, muito geral e se constitui de fato numa espéciede con- ciada a outros fatores intervenientes (partidos políticos domi-
texto estrutural para explicação da emergência precoce ou tar- nantes, regionais e oligárquicos; forte enquadramento cliente-
dia do Estado na América Latina. As diferenças entre os pro- lístico rural; ausência de camadas médias organizadas politi-
cessos políticos argentino e brasileiro tornam-se mais nítidas camente; organização sindical sob o controle governamental,
se agregarmos três outros fatores mais específicos e que de- etc.) tiveram um peso importante na incapacidade, até a dé-
sempenharam, na nossa interpretação, um papel .estratégico cada de 30, de viabilizar a institucionalizaçãode formas de
no ritmo da construção do Estado; primeiro, o perfil básico da participação política e social oriundas da sociedade civil. l\la
classe dirigente (unidade ideológica e treinamento político).e Argentina, de forma inversa, a emergência precoce da mobili-
seu papel na ruptura do vínculo colonial e na constituição de zação política e social criando condiçõespara que a partici-
um aparato estatal; segundo, as relaçõesentre a construção pação política superasse os limites do liberalismo oligárquico,
do Estado e o desenvolvimento das formas de controle coerci- esta provavelmente ligada a uma expansão e intervenção mais
tivo sobre a sociedade (papel do exército e milícias cívicas); limitada do Estado, viabilizando a estruturação de partidos
terceiro, o grau maior ou menor de dissociação entre o. poder nacionais competitivos e um movimento sindical independente
político e a Igreja, tendo em vista a tradição católica das po- do poder político.
tências colonizadoras e a influência da instituição religiosa na Essas diferenças no padrão do ''desenvolvimento polí-
formação do sistema político. Nossa hipótese (que não será tico'' entre os dois paísesnão se explica, porém, pelo mero
analisada em detalhe) postula que as diferenças na forma de jogo do ''acaso e da necessidade''. Um peso considerável deve
ser atribuído também às estratégias políticas das respectivas
classes dirigentese dominantes. Se, como salienta Santos, na
(3) Sua analise demonstrou que a fragmentação argentina residia,. em grande ética da elite política brasileira considera-seque ''para se ter
parte, na ''heterogeneidade dos interesses económicos.regionais''; ''nas dificuldades um Estado liberal é necessário em primeiro lugar que se tenha
para formar alianças estáveis que articulassemum sistema de dominação" e..na
um Estado nacional'' (Santos, 1978b: 81), seria legítimo dizer
r' ;ã' li;das instituições e I'ecursos ex stenak,pam e25nder o poder de um Estada
58 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 59
que, no caso argentino, em função das aspirações próprias das mentode arbitragem política.' A participação eleitoralera li-
elites portenhas, a meta é edificar um Estado nacional que mitada por um sistema censitário que previa eleiçõesindiretas
seja, ao mesmo tempo, um Estado liberal. Esta diferença na para a escolha de deputados e senadores. Esse sistema, que
lógica política das classes dirigentes mostra, em grande parte, vigorou até a República (seguindo a tradição da escolha indi-
por que a Argentina, embora em atraso com relação ao Brasil reta para as Câmaras Municipais da época colonial), funcio-
na formação do aparato do Estado nacional, produz precoce- nava através de um mecanismo de votação em dois graus.
mente as condições de emergência de um regime liberal demo- Com a queda da monarquiaem 1889começaa segunda
crático. Este contraste, porém, não impede que, paradoxal- fase dentro do novo marco institucional republicano. Ainda
mente, na década de 1930se altere novamente o curso do pro- que preservada a dominação oligârquica, o novo regime acaba
cesso político. A revolução de 30 inaugura no Brasil, com Var- beneficiando-se dos efeitos modernizadores, decorrentes da
gas, as condiçõesde ascensão ao poder das oligarquias dissi- abolição da escravatura (1888), sobre o desenvolvimento da
dentes com as camadas médias urbanas (civis e militares) e a economiacafeeira que se dinamiza com a introdução do tra-
crise do autoritarismodo Estado Novo abre a via ao popu- balho livre e imigrantes europeus. O novo.regime presidencia-
lismo. Na Argentina, ao contrario, o sentido da intervenção lista, sob o signo do federalismorepublicano, implanta um
dos militares em 30 interrompe a experiência liberal do radi- regime político descentralizado, sob o controle de partidos
calismo e restaura a dominação oligárquica tradicional, pro- únicos regionais, representativos das oligarquias estaduais do-
vocando, em 1943, a reação ''populista'' do peronismo. minantes e coordenados nacionalmente pelo Presidente da
República. Com a Primeira República extingue-seo sistema
censitârio, mas os analfabetos são excluídos totalmente do di-
2. Sociedade agrária reito de voto (também os praças de pré e os religiosos em co-
munidadeclaustral). Apesar das restriçõesdo novo sistema,
e liberalismo oligárquico ''a classe dirigente foi capaz de utilizar o mecanismo de am-
pliação do regime representativo como meio de manter a efi-
No períodoque se estendeda instauraçãodo Império cácia e a validez de sua posição perante a coletividade'' (Sou-
(1822) à queda da Primeira República (1930), a sociedade za, 1969:169).
brasileira é preponderantemente agrária. As contradições po- Comparando os dois regimes em termos de dinâmica li-
líticas e o controle do Estado se fazem quase inteiramente en- beral, alguns autores admitem que a pratica do parlamenta-
tre oligarquias rurais. Em conseqüência, os regimes políticos
que se sucedem não ultrapassam os limites do liberalismo oli- (4) Entre as principais atribuições do Poder Moderador, segundo a Constitui-
gárquico. Neste contexto, as principais características institu- ção de 1824, estavam as de nomear os senadores, escolhendo numa lista tríplice de
nomes eleitosnas Províncias; convocar extraordinariamente a Assembléia Geral(reu-
cionais do sistema político, que permitem compreender as
nião conjunta da Câmara e Senado); sancionar leis; dissolvera Câmara de Depu-
bases e os limites de sua dinâmica liberal, evoluem ao longo de tados e nomear os ministros de Estado. As duas únicas constituiçõesque ''adotaram o
diferentes fases. Poder Moderador orgânico e autónomo(ambas por influência de D. Pedra 1) foram a
A primeira nasce cam a Constituição de 1824, que, inau- brasileira de 1824e a portuguesa de 1826.
(5) A constituição distinguia os vofaPzfes(incluindo os analfabetos) dos eleí-
gurando formalmente uma ''monarquia constitucional'', con- fores, reconhecendocomo qualificados para votar os indivíduos do sexo masculino,
cede ao imperador, através do ''Poder Moderador'' , um meca- maiores de 25 anos(com exceção dos bacharéis e oficiais, que podiam votar com
nismo de veto sobre o sistema. Esse poder será parcialmente idade inferior) e dispondo de renda líquida anual de 100 mil-réis. Para ser eleito, os
atenuado, a partir do Segundo Reinado (1841), produzindo a requisitos eram os mesmos, acrescidos de uma renda correspondente ao dobro da
exigida ao eleitor. No final do Império, a Lei Saraiva(1881) rebaixa a idade mínima
divisão da elite política em dois partidos (conservador e libe- (21 anos) e adota a eleição direta, embora elevando o nívelde renda do corpo eleitoral
ral), e viabilizando o funcionamento de uma monarquia par- para 200mil-réis. Esta alteração, porém, não representounenhum alargamentosig-
lamentar na qual o ''Poder Moderador'' torna-se um instru- nificativo do nível de participação política(Kinzo, 1980).
60 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 61
ritmo do Segundo Reinado correspondia mais ao liberalismo cando, num primeiro momento, o afrontamento entre ''duas
novecentista europeu que evoluía numa direção democrática propostas conflitantes de liberalismo (o excludente e o demo-
do que à pratica do presidencialismorepublicano, marcada cratizantey' e, mais tarde, permite que a Aliança Liberal
por uma forte dose de autoritarismo.' No Brasil as primeiras transcenda a mera disputa regionalistae se transforme num
pressões democratizantes buscando alterar a ordem liberal prometonacional que busca legitimidade nas camadas médias
excludente se desencadeiam apenas na década dos 20, quando urbanas, superando os limites ideológicosdas oligarquias dis-
se inicia a crise da República Velha, que, com a Revolução de sidentes(Viana, 1976: 106-107).
30, submergeno centro de suas próprias contradições.Daí Com a Revolução de 30, o sufrágio se torna secreto e qua-
poder-se considerar que o retardamento das demandas demo- se universal, com a introdução inclusive do voto feminino, em-
cráticas no caso brasileiro se explica, em grande parte, pela bora mantendoa exclusão dos analfabetos. A experiência,
revitalização da dominação oligârquica que se produz com a porém, dura menos de uma década, porque a radicalização
implantaçãodo federalismorepublicano. O novo pacto das político-ideológica dos ''anos críticos'' entre 1934e 1938(Le-
oligarquias regionais sob a hegemonia dos estados dominantes vine, 1980),provocada, em grande parte, pela mobilizaçãode
(São Paulo e Minas Gerais) reforçoua representatividadedas massaoriunda de dois movimentospolíticos nacionais,' so-
elites locais, tornando mais eficaz sua dominação no plano capao consenso revolucionário e produz efeitos perversos. Es-
nacional.
vazia politicamente, de um lado, o ideário liberal que dera
Se historicamente as democracias liberais foram primeiro é/an ao movimento de 30, reforçando as tendências autoritá-
liberais (e somente depois democráticas), as condições de fa- rias do Governo Provisório que haviam sido retardadas pelo
zer avançar o liberalismo brasileiro começam a ocorrer com os regime liberal da Constituição de 1934; de outro, oferece ao
primeiros movimentos sociais e políticos do pós-Primeira Guer- regime os pretextos de ''crise" que legitimam o golpe militar e
ra Mundial. Esse processo que se manifesta, ao nível das elites frustram as expectativas de alternância democrática na suces-
políticas, com a campanha civilista de Rui Barbosa (1910) e são de Vargas em 1938. Com a instauração do Estado Novo
na oposição militar do tenentismo (1922-1926), insere-se, em ocorre um refluxo autoritário, sob o controle de uma estru-
1930, no ideário político da Aliança Liberal com a candida-
tura de poder centralizada, desmobilizadora e paternalista
tura de Vargas à presidência e será frustrado, após a Revolu-
que, dissolvendo os partidos, estabelece a matriz burocrático-
ção de 30, pela conjugação de duas tendências antiliberais -- corporativa do Estado brasileiro.
o estatismocrescentee o pensamentoautoritário -- (Lamou-
nier, 1974) que legitimam a implantação do Estado Novo. Não Ao tentar definir os traços básicos do processo de confi-
guração do sistema político, constata-se que o padrão brasi-
obstante, as novas reivindicaçõesliberais e seu apelo demo-
cratizante (expressas simbolicamente na divisa tenentista de
leiro de interação Estado-sociedade civil contém dois compo-
''representação e justiça''), se incorporam na legislação elei-
nentes fundamentais, ambos bloqueadores do desenvolvimen-
to democrático: de um lado, a expansão de mecanümos eifa-
toral de 1932e na própria Constituição de 1934. As insurrei- tais de controle tendendo a reduzir o espaço de estruturação
ções sucessivas dos tenentes e a Coluna Prestes ''consistiram
autónomada sociedadecivil; de outro, a atitude persistente
numa dramática ruptura da juventude militar com o sistema
das elitespolíticas, independentemente dos regimes políticos,
oligárquico e em favor da abertura do pacto político'', provo-
de dissuadir formas de participação de tipo liberal-democrâ- Com a proclamação da República, o novo discurso liberal
fíco. A articulação contínua entre ambos não provocou, no de inspiração jeffersoniana (apesar de suas variantes regio-
período considerado, nenhuma ruptura global com a socie- nais) proclama a idéia federalista se contrapondo ao centra-
dade civil, devido, em grande parte, à flexibilidade do pacto lismo do Império. A pratica política da Primeira República,
oligárquico mantido por uma elite ao mesmo tempo represen- porém, obedece a um esquema institucional cuja lógica oligár-
tativa da sociedade agrária e experientena condução do Es- quica era diferente da monarquia. No ápice da pirâmide, o
todo
a presidenteque detém o poder Executivo, retira sua legitimi-
Nas diferentes fases da evolução do sistema político as dade do pacto político denominado ''política dos governado-
formas de controle do Estado e de dissuasão das elites polí- res". Os partidos únicos regionais garantem, da mesma forma
ticas se diversificame se consolidam. Mesmo não concor- que o bipartidarismo do Império, a hegemonia da classe do-
dando com o peso atribuído por Raymundo Faoro ao ''esta- minanteagrária, embora sob a égide dos estadospolítica e
mento burocrático'' (especialmente antes da transferência da economicamente mais poderosos, articulando-se nacional-
corte portuguesa em 1808), parece indiscutível que, com a in- mente sob a direção do presidente da República. Finalmente,
dependência,se inicia o processo de formação de um Estado a reconversãodas funçõesmilitarese cívicas da Guarda Na-
burocrático-tradicional que busca impor sua hegemonia sobre cional em cargos honoríficos de caráter político (''coronéis''),
a ''ordem privada''. Esse processo acaba por facilitar, sobre- concede ao sistema uma forma eficiente de mediação entre o
tudo com a autarquização da economia agrária, uma maior centroe a periferia atravésdo ''arranjo coronelístico''.(Cen-
articulação entre o Estado e a classe economicamente domi- tra. 1974)
nante, pois tratava-se de criar arranjos que viabilizassem ''or- A fase de transição do regime em direção da ''república
ganizar politicamente espaços relativamente grandes com a populista''começacom a ascensãode Vargas ao poder.8 O
ajuda de meios de uma civilização subdesenvolvida'' (Centra, desafio principal da nova ordem gerada pela Revolução de 30
1974:51) (em que a ruptura da aliança dos estados dominantes produz
No Império, além do desafioda integraçãonacionaldas a queda da Velha República) é o de definir um novo modelo
forças regionais e dos interesses económicos feudalizados, tor- político capaz de substituir o pacto oligárquico em crise. Este
na-se a preocupação principal da classe dirigente construir um seelabora pela via estatal, reestruturando de forma mais au-
sistema político estávelque consiga impor sua dominação so- tónoma as relaçõescom as oligarquiasregionais e estabele-
bre o conjunto da sociedade. A partir dessa época o processo cendo novas formas de representação e participação das clas-
de supremacia do Estado se estabelece e as formas de controle ses médiase do operariado. O laboratório político do Estado
sobre a sociedadeampliam sua rede. A monarquia constitu- Novo, utilizando-se voluntariamente do retrocesso autoritário
cional hierarquiza seu poder em diferentesníveis. Na cúpula produzido pela classe política no poder (com a participação da
do sistema esta o imperador armado do ''Poder Moderador''. alta hierarquia do Exército), elabora os parâmetros do novo
A agregação de interesses que inicialmente se manifesta atra- paradigma em cujas bases se assenta até hoje o sistema polí-
vés de facções (''nacionais l,erszzsestrangeiros'') e de socieda- tico brasileiro.
des políticas (''Sociedade conservadora'', ''Sociedade defen- A experiência do Estado Novo estabelece as condições de
sora'' ou ''Sociedademilitar'') passa a fazer-se, a partir de consolidação de um Estado nacional estruturado, sob a prote-
1837, pelos primeiros partidos políticos (Conservador e Libe- ção do estamento militar, definindo as formas da representa-
ral). A mediação entre o centro político e a extensa periferia ção.dos novos interesses industriais (Diniz, 1978) e da organi-
do sistema se faz, desde 1831, através da Guarda Nacional
que, enquanto mí/feia de cidadãos, ''favorece o aliciamento da (8) Varias encama sucessivamenteo chefe do Governo Provisório(1930-34), o
cooperação das classes privilegiadas para a organização patri- presidente da República constitucionalmente eleito(1934-37) e, sobretudo, o Chefe
monialista do Estado'' (Uricoechea, 1978a: 88). da Nação, com a implantação do Estado Novo(1937-45).
64 BASESDA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 65
zação corporativa do sindicalismo, deixando sua base de sus- tralizadores que eram basicamente anti:rurais e antiestados
tentação política como herança para a ''democracia popu- (Carvalho, 1974: 185, 186), e que ''a participação das Forças
lista''. O autoritarismo varguista, pois, com a deliberada des- Armadas na Revolução de 30 e na instauração do Estado Novo
mobf/ízaçâopo/íffca, propicia a formação de uma nova elite tem essencialmente por objetivo rl::forçar o Estado centra/
política leal ao Estado centralizado e, com a desmoblZízaçâo (Rouquié,1980:18)
sacia/ assenta as bases de controle corporativo do movimento Voltando à questão inicial das relações entre sociedade
operário nascente.o agrária e ordem política, constata-se que a configuração do
A contrapartida principal do esgotamento do regime oli- sistema político até a década de 30 mostra que o controle do
gárquico-liberal da República Velha foi o reforçamento da cen- Estado pela classe dominante rural, apesar da passagem do
tralização e da autonomização relativa do Estado em face da regimemonárquico ao republicano, não alterou significativa
sociedade. Esse processo não pode ser compreendido sem con- mente sua natureza. A elite política do Império, impregnada
siderar o peso das Forças .Armadas na balança do poder. pelas práticas e valores de uma sociedade rural e escravocrata
Como observa Carvalho, ''as transformações sociais verifica- ao ser afastada do poder, vê-se substituída por uma nova elite
das no período, tendentes a reduzir a influência política e eco- (inclusive em termos geracionais) que sendo mais federalista
nómica de grupos rurais através da urbanização e industriali- que abolicionista prefere a descentralização regional a um in
zação, produziram importantes aliados para as Forças Arma- crementoda participação política. Embora o dinamismo eco-
das''. Entretanto, não era apenas o processo de mudança eco- nómico da fase cafeeira introduzindo o trabalho livre e a imi
nómico-social que abria novas perspectivas aos militares. Es- gração (repercutindo também nos níveis de urbanização) te
sestambém se transformavam redefinindo seu papel na socie- nha sido um avanço com relação à economia feudalizada e
dade: desaparece o ''soldado-cidadão'' das insurreições con- escravocrata do Império, a dominação agrária permanecia in
testatáriasdo tenentismopara surgir a ''corporaçãoe a clas- tanta e as formas de controle da oligarquia rural (apesar da
se'', dando origem ao padrão de intervenção ''controladora'' eliminação do censo) sobre o Estado foram reforçadas. As pri
sob a égideda alta hierarquia militar (Carvalho, 1974: 161, meiras fissuras do Estado oligárquico começam a se manifes
162). Essa situação se consolida com o golpe de 1937, quando tar somente na década dos 20, quando o liberalismo conserva
''a construção do Estado Novo e a institucionalização da iden- dor sofre as primeiras investidas dos movimentos sociais e po-
tidade do Exército eram uma mesma e única empresa'', fa- líticos exteriores ao seu controle (Viana, 1976; Saes. 1975
zendo com que a ''simbiose Exército-Estado" se exprimisse FoÜaz, 1977)
numa ''doutrina militar de efeitos duradouros'' (Campos, A nova fase de transição, porém, ao desarticular proviso
1976: 98). Todos esseselementosindicam o importante papel riamente a relação Estado-elite agrária, preparou moderni
do Exército na transição para um sistema marcado por uma zando e dando novos papéis a essa mesma elite, o advento de
maior autonomia do Estado em face das elites agrárias tradi- um novo pacto social que viabiliza no pos-guerra o avanço
cionais: apesar das divergênciasentre eles, ''tenentes, jovens democrático populista. 'A posição privilegiada do Estado e a
turcos e moderadores, todos concordavam nos propósitos cen- natureza da coalizão que se consolida depois de 1930'', como
ressalta Reis, ''são os elementos-chave para uma compreensão
do processo modemizante que tem lugar com Vargas
(9) O Estado Novo apenas mais recentementetem sido objeto de estudos aca- bora percam a exclusividade da representação, as elites agrâ
dêmicos, embora até agora não tenha sido publicada nenhuma obra definitiva sobre o
período. Ver Sola (1969); Carone (1977); Oliveira ( 1981); Diniz (1981); Schwarbman
rias não são alojadasdo poder, No novo arranjo político, elas
(1983). Convém ressaltar, porém. que o "Estado Novo não inventou a centralização dividem o poder com as elites industrializantes, sob o patro
do Poder Executivo federal. nem a expansão da presença estatal na economia. Ten- cínio de um Estado significativamente autónomo. A preserva
dências neste sentido vinham pelo menos desde os primeiros anos deste século. Deu- ção do sistema de propriedade da terra e das relações de tra
Ihes uma legfrfmaçâoe uma consisfêücfa ínsfltucfona/ xem diívfda frreversípels"(La-
mounier, 1981). banhono campo permitiu manter inalteradas as bases do po-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 6
BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
der local dos latifundiários. No contexto urbano a estratégia tura o reconhecimentode seus limites. Enquanto uns conside-
adotada para incorporar a classe trabalhadora ao sistema po- ram que ''as ideologias políticas liberais tendem a se localizar
lítico atrelou-a firmemente ao controle do Estado. A moder- predominantemente entre grupos sociais relativamente restri-
nizaçãope/o a/lo gradualmente se afirmou, promovendo mu- tas, ainda que social e economicamente bem postos, e sempre
tiveram um conteúdo social bastante reduzido'' (SchWartz-
danças decisivas, sem contudo permitir uma ruptura radical
com os antigos padrões de dominação'' (Reis, 1982: 340). Sem man, 1982: 10); outros, mesmo valorizando a ''praxis liberal'',
reconhecemos limites da implantação de uma ordem liberal
o aprendizado político do Estado Novo, pois, decorrente da
ação do Estado nos setores de sindicalização, representação porque ''embora seja possível que exista agora uma burguesia
de interesses, tecnificação é modernização económica, a nova nacional brasileira, integrada via mercado interno, parece al-
elite provavelmente teria dificuldades de entrar como princi- tamente improvável que venha a ser suficientemente forte para
pal paper/cafre no novo pacto que se estabelece no pós-guerra, conquistar o monopólio ideológico da organização militar, do
instituindo a democracia populista. sistema educacional e da burocracia pública -- o que tornaria
viável a implementação de uma ordem liberal no sentido clás-
sico'' (Santos, 1978b: 116).
3. Lógica liberal e praxis autoritária No caso brasileiro (diferentemente dos países hispano-
americanos), o liberalismo identifica-se originariamente como
A questãoque resta discutir diz respeitoa uma das sin- ''a forma cabocla do liberalismo anglo-saxão'' que em vez de
gularidades do sistema político brasileiro: como explicar que, identificar-se ''com a liberação de uma ordem absolutista'',
numa sociedade em que prepondera um secular autoritarismo preocupa-secom a ''necessidade de ordenação do poder na-
social e político, coexistam instituições e praticas liberais? Es- cional'' (Barreto, 1977: 110). Além do mais, era avesso ao li-
ses componentesliberais não se limitam a uma pura retórica beralismo radical francês considerado como uma ameaça à
sociedade civil e propenso à anarquia e, conseqüentemente,
política das elites ou a uma dimensão formal das instituições,
mas estão presentes na reflexão teórico-ideológica, no funcio- era um liberalismo ''lockeano'' e ''pré-democrático'' (Uricoe-
chea, 1978a:.84). Esses traços explicam o seu conteúdo visce-
namento das estruturas e na pratica política. O fato de que os ralmente conservador.
:'liberais doutrinários'' (Santos, 1978b: 78) nunca tenham
controlado duravelmente o poder desde o Império (o que toma A idéia subjacente a essa concepçãoliberal é de que
a questão mais paradoxal), não deve induzir à falsa conclusão ''tudo deveria ser feito l)ara o povo mas nada pelo povo''. No
Império, ''o Estado liberal nasceria em virtude da vontade do
de que a ordem liberal não tenha importância no Brasil. Ca-
próprio governo e não em virtude de um processo revolucioná-
beria, no entanto, buscar entenderos limites do liberalismo
brasileiro através de suas manifestações durante o Império e a rio". Com essa orientação ideológica compreende-se melhor o
traço básico do liberalismobrasileiro: enquanto ''o Estado li-
República Velha, a fim de melhor penetrar nos fundamentos
ideológicosdo sistema político. Para tanto, torna-se indispen- beral anglo-saxão existia para garantir aos homens a fruição
sável esboçar alguns traços das instituições e do seu conteúdo de suas propriedades'' e ''a Reforma libertara as consciências
ideológico, ainda que limitados ao nível político. Sem retomar dos entraves colocados pela tradição católica'', (. . .) ''no fundo
a discussão sobre o caráter socialmente etnocêntrico das ideo- da cultura portuguesa'' (apesar da reforma pombalina) havia
''uma razão religiosa para afastar do indivíduo os instrumen-
logias políticas, estudos recentes têm mostrado que o ideário
tos de riqueza''. Portanto, pode-se interpretar que a ''acumu-
liberal, mais do que uma importação cultural, correspondia a
certos interesses e aspirações reais das elites brasileiras desde lação de riquezas seria para a cultura política luso-brasileira
a época anterior à Independência. uma/unção do .Enfado, que passa a exercer o papel de prote-
Embora a importância do liberalismo seja reconhecida tor da sociedade'' (Barretto, 1977:89, 90).
A mesma idéia de um liberalismo funcional às exigências
por gregos e troianos, tornou-se um lugar-comum na litera-
68 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 69
da estruturação autoritária da sociedade reaparece na analise nos, cuja proposta básica também é a da democracia política
da Primeira República: ''as normas liberais que regiam o qua- a curto prazo, além do socialismoa longo prazo''. Durante
dro políticoe económicobrasileiro não devemser vistas so- esseperíodo, que se interrompe com o golpe militar em 30,
mente enquanto características impostas externamente''; mas ''a base popular da autoridade estatal'', prossegue o autor,
''sua utilização foi possível desde que também se revelou ins- ''se ampliou notavelmente; os procedimentos parlamentares e
trumental no processo político e económico do país'' (Souza, os partidos políticos conquistaram um lugar importante na
1969: 168). Entretanto, ainda que se possa admitir a funcio- articulação e agregação de interesses; os militares mantive-
nalidade do liberalismo, parece indispensável distinguir insti- ram-se fora da cena política; existiu uma ampla liberdade de
tuições formais e pratica política. O liberalismo económico reunião, expressão e organização política; os direitos e garan-
praticado pelos cafeicultores paulistas (parcialmente compro- tias do indivíduo frente ao Estado foram respeitados, ao me-
metido pelo Convénio de Taubaté de 1906 quando o governo nos na região pampeana. A presença simultânea desses ele-
intervémna defesa do preço do café) buscava, no plano polí- mentosnos permite caracterizar esse período como de vigên-
tico, instituições políticas correspondentes: ''além da influên- cia de um regime liberal-democrático'', mas não ''democrá-
cia da Constituição americana a absorção do liberalismo polí- tico sfrlcfzzsenitz, devido ao fato de que permaneceram duas
tico foi possível e desejável internamente, dentro das novas limitações fundamentais em termos de cidadania: as mulheres
características do quadro político'' da República Velha. Muito e os estrangeiros (esses últimos constituindo uma proporção
embora o sistema liberal não tivesse condições de estender-se muito alta da população economicamenteatava) carecem de
ao conjunto do país, a presença de uma ''estrutura flexível'' direitos políticos'' (Viola, 1982: 1, 2).
concedeu ''à cúpula dirigente mais tarde um meio de renovar- No caso brasileiro, o Estado não enfrentou, pela ausência
se no poder, ampliando suas bases de legitimação política'' de uma diversificação social ligada a um desenvolvimento
(Souza, 1969: 168, 170). Convém ressaltar, no entanto, que, mais intenso da economia e dos níveis de urbanização, como
com a pratica da ''política dos governadores'', o funciona- ocorre na Argentina, ''o desafio de mediar entre interessesso-
mento do sistema republicano oligárquico ''esvaziou o mer- ciais conflitantes; não se viu ele na contingência de celebrar
cado político dé' qualquer conteúdo liberal substantivo que alianças políticas típicas com um setor urbano combativo,
pudesse ter'' (Santos, 1978b: 92). comoseobservahistoricamenteno caso da Inglaterra, nem se
Apesar das disposiçõesliberais dos republicanose do aliar com um campesinato independente, como ocorreu no
avanço que representou a expansão da representação e parti- caso francês'' (Reis, 1982: 339).
cipação política, não seria excessivoinsistir que o exercício do Considerando, pois, as limitações do liberalismo brasi-
liberalismo no Brasil foi bastante condicionado pela domina- leiro, caberia perguntar como se articulam no sistema polí-
ção económica e política das elites agrárias. Esta observação tico brasileiro a lógica liberal e a praxis autoritária. No ensaio
torna-se mais significativa quando se compara a lentidão e sobre ''A praxis Liberal no Brasil'', Santos reconhece ''a ten-
atraso da ''dinâmica liberal'' no Brasil com a experiência li- dênciaà centralização, ao aumento das atividades regulatórias
beral-democrática ocorrida na Argentina entre 1916 e 1930. do Estado e ao alargamento do escopo de sua capacidade ex-
Como salientaViola, após a Reforma Política de 1912 de trativa, e eventualmentedistributiva, sempre estevepresente
Sáenz Peça ''os elementos fundamentais para a instauração na história brasileira''. Parece contraditório, no entanto, que,
de um regime democrático estão dados: existência de um par- dentre as diferentes tradições de pensamento autoritário, o
tido opositormajoritârio (a Unión Cívica Radical) cuja pro- autor considere que ''representa a forma mais antiga e resis-
posta fundamental é a democracia política e que canaliza tan- tente'' a que denomina de ''auforífarümo fnsfr"t/menta/". Esta
to os setoressecundários das classes dominantes quanto am- Postularia ''o elercícfo autoritário do poder'' como "a ma-
plas camadas médias urbanas e rurais; existência de um Par- neira maü r(íplda de se conseguiredificar uma sociedadelibe-
tido Socialista que agrupa um setor dos trabalhadores urba- ral, após o que o carâter autoritário do Estado pode ser ques-
70 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 71
tionadoe abolido''. Essa concepçãode um autoritarismocomo ao nível da superestrutura política), tem-se condições de en-
''formato político transitório'' (cujo teórico principal foi Oli- tender, na conjuntura atual, tanto as dificuldades de institu-
veira Vianna), e que poderia ser assimilada à astral(gala bona- cionalização
da democraciaquantoa do autoritarismo.
A
parfüfa (Hermet, 1982), parece questionávelnum ponto es- ideologia e as instituições liberais remanescentes estabelecem
sencial: como explicar sua longa vigência histórica? A objeção entraves à consolidação dos regimes autoritários e, por sua
se reforça quando Santos sugere ''descobrir sinais de autori- vez, o peso das estruturas políticas e sociais autoritárias defi-
tarismo instrumental desde o início da história independente nem os limites aceitáveis de democracia política.
do Brasil". Se Oliveira Vianna propunha, segundo a interpre- Esta peculiaridade explica por que Schmitter, referindo-
tação do autor, um modelo de autoritarismo transitório ''para se ao Brasil, cunhou dois conceitos sincréticos: ''democra-
criar as condiçõesque tornariam o liberalismo viável'', sua dzzra'' (''tentativa de adaptar o sistema político autoritário às
permanência tem sido excessivamentelonga. Não apenas por- exigênciasmínimas da democracia formal sem modificar suas
que ''o Estado Novo, instituído em 1937, deu forma ao Estado estruturas essenciais'') e ''dlcrab/a/zda'' (''restabelecimento da
forte pretendido pelos autoritários instrumentais'', como, ordem autoritária .nos momentos de crise ou decadência da
após terem desaparecido ''durante muito tempo do cenário situaçãoanterior'') (Schmitter, 1971; Schmitter, 1973). Da
ideológico'' (referindo-se à fase da democracia populista), ''o mesma forma Lamounier refere-se ao ''sistema político hí-
movimento militar de 1964acabou com o período de democra- brido'' que se instaura no pós-30 e cujos ''conceitos apropria-
cia limitada no Brasil e assumiu a agenda dos autoritários dos'' somente foram desenvolvidos por Vector Nunes Leal, em
instrumentais dos anos 30'' (Santos, 1978b: 103, 106, 108).'" sua obra clássica sobre o ''coronelismo'' (Leal, 1948), ao des-
Na realidade, a singularidadedo sistemapolítico brasi- crevo-locomo ''um equilíbrio instável entre o sistema oligár-
leiro é a sua persistente hibridez ideológica e institucional, quico liberal em decadência e um poder público fortalecido''
combinando estruturas e praticas políticas autoritárias e libe- Esta mesma perspectiva analítica legitima também o conceito
rais. Desse traço básico que se mantém associado ao tipo de de ''democracia e/aflora/'' utilizado, mais tarde, por Jaguari-
dominação da formação social brasileira desde a fase colonial, be para caracterizar o período 1945-1964(Lamounier, 1982:
decorre a hegemonia do padrão autoritário combinado com 414;Jaguaribe, 1962: 175). Por que não admitir, enfim, no
surtos de expansão liberal (ou democratizantes como em conceito de ''democracia re/atira'', inspirador do atual projeto
1945), frustrados, geralmente, por crises políticas e instabili- de ''abertura política'' no Brasil, a ideia subjacente de insti-
dades cíclicas. Nessa linha de raciocínio (se nos restringirmos tucionalização de uma forma de azzforífarismo /fberaJ? O sin-
cretismo da terminologia utilizada comprova a insufuciência
do conceito de ''autoritarismo'' ao se aplicar a um sistema polí-
(lO) A crítica refere-se à equivalência entre os tempos ''instrumental" e "tran-
sitório", sem que serejeite a ideia desenvolvidapor Carvalho de que o padrão brasi-
tico no longo prazo. A análise do caso brasileiro parece ofere-
leiro é o ''de liberalizar a sociedadeatravés da política, fenómeno já percebido à cer um rico laboratório de experiências para uma reflexão crí-
época pelo senador Vergueiro, ao afirmar que o Brasil anteêipara a organização polí- tica sobre o uso indiscriminado do conceito de ''autorita-
tica à social"(Carvalho, 1980: 181). Nada impede, porém, que variantes da interpre- rismo''
tação do ''autoritarismo instrumental'', inspiradas em outros esquemas interpreta-
tivos(o modelo bismarckiano), estendam sua necessidade a um horizonte longínquo. Retornando à questão inicial das bases e /ímlfes da demo-
Recente ensaio não apenas estabeleceuuma linha de continuidade entre o Estado cracia /zo.Brasa/,conclui-seque a formação e o padrão evolu-
Novo, o ''autoritarismo populista" e o "autoritarismo burocrático-militar" do pós-64,
mas profetiza utopicamente a desaparição dos mesmos com o perecimento do próprio tivo do sistema político, i' da monarquia constitucional à repú-
Estado: ''A largo prazo -- e a despeito de tais ou quais vicissitudes económicas con-
junturais -- o Estado, atravésda expansãode sua maquina governamentale, sobre-
tudo, de seu aparelho produtivo, terá cumprido o seu papel. Fazendo florescer a eco- (11) Nossa análise converge, aliás, com a de Aspâsia Alcântara Camargo, que
nomia e, deste modo, criando as condiçõespara a emergência de uma sociedade considera(mesmo até a década de 60), ser a característica do "made/o po/ífíco brasi-
autónomade classes,terá produzido, em última instância, as corzdfçõeide sua pn5-
leiro, por seus diferentesreajustes no curso da História", a de "ter secretadouma
pria relírada para o.fundoda cepzasacia/e políffca(grifo nosso)(Tapares, 1982: 181) classe política simultaneamente vinculada aos interesses agrários e ao desempenho
72 BASES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
semrazão. A exclusãode grande parte da populaçãodo pro- mico e mecanismos de um pluralismo democrático, recusando
cessopolítico durante o período,: as crises freqüentesque a fatalidade de ''nosso destino autoritário''
pontuaram seu funcionamento, 3 e o golpe militar, em 1964, A literatura interessada em explicar o problemático ca-
que Ihe põs fim, fazem dele um exemplo do que até aqui se minho democrático brasileiro vem insistindo sobre um aspecto
tem afigurado como o sombrio horizonte das democracias la- básico de nossa evolução política: o de que o desenvolvimento
tino-americanas.
sócio-económicobrasileiro teria se manifestado incongruente
O intuito deste ensaio não é negar o que já é conhecido e com uma organização horizontal e autónoma dos vários gru-
aceito, ou seja, que o regime populista brasileiro não atendia pos sociais, vista como condição necessária para o funciona-
às exigências de uma real democracia de massas; tampouco é mentode um sistemademocrático.A partir daí, duranteos
contestar seu desenrolar difícil e instável. O que nos interessa anos de ''experiência democrática'' no Brasi], populismo,
é precisamente entender as causas. Afirmar a imperfeição da clientelismoe coronelismo' é que descreveriam as várias mo-
democracia brasileira no período -- admitindo, para fins de dalidades de participação e integração políticas. Um sistema
argumentação, que se trate de uma singularidade brasileira partidário-parlamentar
nãoinstitucionalizado
(Souza, 1976)e
ou latino-americana-- é dizer muito pouco. E a explicação o corporativismo estatal (Schmitter, 1971) é que regeriam as
desse fato que se apresenta como tarefa para a analise política relações de representação entre os interesses da sociedade e o
e sociológica. Além do mais, freqüentemente as observações a Estado. Ou seja, processos e estruturas que se constituem em
respeitodo caráter elitistaou do ''formalismo democrático'' manifestaçõesclaras da ausênciaou da dificuldadede enrai-
do populismo brasileiro se têm mantido nos estreitos limites da zamento de um regime efetivamentemais democrático no
acusação. Com isso encobrem a presença de aspectos institu- país. Parece claro, enfim, que tanto a organização de interes-
cionais democráticos naquela ordenação política, aspectos sescomo sua representaçãopolíticanão obedecemno Brasil
cuja constatação e entendimento se impõem aos que se preo' aos mesmosmoldes daquelas sociedadesonde a integração
cupam em compaginar proJetos de desenvolvimentoeconó- política se baseia numa sociedade civil robusta que coloca obs-
táculos à manipulação e à repressão.
Não menosimportante, por outro lado, é o entendimento
da instabilidade dos regimes latino-americanos que nele se baseiam. Dentro dessa do impacto exercido pelo modo de operação do sistema de re-
perspectiva, em linhas muito amplas, o processo de modernização nesses países teria
antecedido o desenvolvimentoda economia, levando a uma situação onde a satisfação
presentação de interesses sobre a legitimidade e eficácia da-
das demandas populares -- ou a pressão nesse sentido através de líderes carismáticos quele regime, ou de como as formas assumidas pelas institui-
ou messiânicas -- antecede o desenvolvimento mais pleno da acumulação do capital ções que o compõem poderiam responder às questões sobre a
ou dos recursos estatais. Grande parte das análises sobre o "peronismo" na Argen-
tina e o ''getulismo'' no Brasil, tem, em graus variados, se baseado em tais linhas
gerais de interpretação. (4) Freqüentemente esses processos são analisados separadamente, seja por-
(2) Os dados sobre a participação eleitoral mostram que -- sobretudo em
que as ações políticas que dele decorrem têm como base ou incidem sobre diferentes
razão das restriçõesimpostas aos analfabetos-- entre a população brasileira maior
setores sócio-económicos, seja porque são diversos os mecanismos acionados para se
de 20 anos, a percentagem de votantes era de 37%oem 1950 e de 38%nem 1960
conseguir apoio político(recursos materiais ou simbólicos) ou seja, enfim, porque en
(Alencastro, 1983). Esse é um dado de importância, considerando-seque o voto se
sejam a dominação política a diferentes classes ou setores sociais(classe agrária
constituía no único recurso de poder político à disposição das massas rurais e da
grande maioria das camadas populares urbanas para terem acessoaté mesmo aos empresáriosurbanos, burocracia estatal, etc.). O agrupamento delesem uma só ca
tegoria obedece à razão de que todos eles se opõem ao modelo pluralista democrático
benefícios clientelistasgcvemamentais ou privados. onde a política supõe a existência:de grupos que competem e barba
(3) Refiro-me às crises que se sucederam a cada eleição presidencial realizada
duranteo período, bemcomo aquelasque conduziram ao suicídiodo presidenteVar- nham pelo poder. O estudo de Vector Nunes Leal(1948) é o clássico sobre o ''coro-
ias em 1954, à renúncia do presidenteJânio Quadros em 1961 e ao golpe de Estado nelismo" na estrutura agrária brasileira. Centra(1974) e Reis(1974b) analisam a
em 1964. Todas elas envolveram grupos militares e setores civis ligados ao principal relação entre esse processo e o da formação do Estado nacional brasileiro. Entre as
partido de oposição, a UDN, em tentativas de golpe de Estado. Para uma análise dos análisessobre o clientelismourbano durante o período cabe destacar os escritos de
golpes e tentativas de golpes militares, ver Stepan, 1971. Para a atuação militar no Guerreiro Ramos (1956, 1961) e de Jaguaribe (1950, 1961, 1962). Os estudos de Wef
período, consultar também Campos, 1976, e Rouquié, 1980. fora(196S, 1978) sobre o populismo brasileiro constituem referenciais importantes
para a análise dessa modalidade de participação política no Brasil
76 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 77
governabilidadedo regime e sobre as causas de sua ruptura Ê bem verdade que os vários governosno Brasil respon-
em 1964.s deram aos desafios de integração e incorporação colocados
Nosso objetivoé, pois, examinar uma das facetas do sis- pela classe média e pelo operariado através de estruturas cor-
tema de representação política no período: o sistema partidá- porativas e condutos clientelistas. Não obstante, é também
rio, condicionado em sua operação, de um lado, pela amplia- verdade que existe no país uma aceitação, mesmo que parcial,
ção dos direitos políticosàs camadas popularese pela exis- do princípio de que os líderes governamentais devem ser sele-
tência de eleições progressivamente mais competitivas, de ou- cionados e legitimados através de eleições. No período de um
tro lado, pela presença de uma estrutura decisória na qual o século e meio de vida independente, o país deixou de ter elei-
poder de decisão, centralizado nas mãos da burocracia esta- çõese atividades partidário-parlamentares por não mais que
tal, era exercidocom grande margem de autonomia em rela- uma década; a despeito de fraudes, limitações ao sufrágio,
ção aos partidos políticos. medidas restritivas a eleições verdadeiramente competitivas,
Algumas considerações se impõem a respeito do tema em etc. , estabeleceram-se normas eleitorais e partidárias destina-
apreço, dada a insistência de vários autores sobre a pequena das a reger um dos lados do processo de representaçãopolí-
relevância das instituições de caráter ''liberal'' na dinâmica tida. 7
política brasileira; sobre sua inviabilidade em países perifé- Evidentemente é possível argumentar-se -- e com razão
ricos ou enfim sobre sua obsolescência mais geral em face da -- que a persistência de instituições liberal-democráticas na
complexidade dos problemas políticos do mundo moderno . história política brasileira, embora significativa e a exigir ex-
Com argumentos e ênfase diferentes, inúmcrcPSestudos plicações, não estabelece por si só e suficientemente o grau de
afirmam que a essência da vida política brasileira se encontra sua relevância no quadro político. Esta somentepode apare-
nas agências governamentais, nas corporações privadas e na cer se pudermos estabelecer sua importância; 1) enquanto re-
interação entre elites económicas e funcionários burocráticos, ferencial orientador da estruturação ideológica dos grupos so-
enfim em padrões corporativos e cooptativos de representação ciais; 2) como fator de aceleração ou desaceleração de crises;
que impedem formas mais pluralistas de atividade política. ou 3) seu impacto no sentido de expandir o escapo da arena
Dentro dessa perspectiva, o exame do sistema político brasi- política.
leiro através da ênfase em partidos, Congresso ou eleições, As pesquisas existentes permitem conclusões razoavel-
foco convencional,por assim dizer, da ciênciapolítica, pode mente seguras quanto ao fato de que os partidos do regime
se revelar enganoso e pouco gratificante em seus resultados.' 1945-1964 -- pelo menos os três principais (Padído .Soc/a/ Z)e-
mocráfíco -- PSD, t/nfâo Z)emocráffca .Nbclo#a/ -- UDN e o
Partido Tuba/#üfa .Eras/Zefro -- PTB), embora distassem de
(S) O estudo das consequências que a emergência de diferentes modos de in- obter a adesãoda maior parte da população,eram não obs-
temiediação formal de interesse tem sobre a governabilidade dos sistemas atuais na
Europa Ocidental e nos Estados Unidos é um dos assuntos centrais do livro editado tante apoiados de maneira diferencial pelas distintas camadas
por Berger(1981). Sustentam os autores que a relativa governabilidade dos regimes sociais, as quais os percebiam como ideologicamente diferen-
políticos desses países é muito mais o produto da natureza qualitativa de seus respec- ciados (Cintra, 1968; Soares, 196S, 1967, 1971; Couto, 1966;
tivos sistemas de intemiediação de interesses que da magnitude quantitativa dos pro-
blemas económicos e sociais que elesenfrentam. P. Schmitter, um dos autores nessa Simão, 1956).
obra coletiva, argumenta que a crise de govemabilidade desses regimes é menos uma
função do overZoaddas demandas da sociedade, ou seja, do desequilíbrioentre a
soma total das demandas e a capacidade do Estado em atendê-las que dos processos
que identificam, agregam, promovem e implementam os interesses. tica brasileira.(Trindade, neste volume, analisa alguns aspectos da literatura sobre a
(6) Essas afirmações aparecem com maior ou menor grau de explicitação em questão da formação do Estado brasileiro.)
vários estudos sobre a política latino-americana. Foram desenvolvidas especialmente (7) A importância dessas instituições sob o regime militar brasileiro atual e o
por Wiarda(1973) que destaca em sua explicação a importância do "efhos ibérico' efeito que têm exercido sobre os caminhos políticos do país têm sido amplamente
Schmitter (1972), O'Donne11 (1973), Faoro (1958) e Schwartzman (1975) destacam o destacadospor Lamounier(1975, 1978, 1981, 1984). Ver sobre esta questão o artigo
papel do Estado burocrático-patrimonialista português no condicionamento da polí- de Alencastro (1981).
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 79
78 A DEN40CRACIA POPULISTA, 194S-1964:
BASES E LIMITES
penho de funções classicamente imputadas a eles parece visí
Por outro lado, o Legislativo brasileiro, em comparação vel
com outros da América Latina, era uma instituição de impor-
tância, bastando lembrar, para demonstração, que crises como 'Para que transações políticas de longo prazo, envolvendoum
a de 1954(suicídio do presidenteVargas) ou como a que se grande número de atires, se tornem viáveis, faz-se necessária
seguiuà eleiçãode Kubitschek em 1955e ainda a crise que uma categoriade mediadoresadequadamenteidentificados,
envolveua renúncia do presidenteJânio Quadros em 1961, que funcione como uma instituição de crédífo po/íríco. A ga-
contornadas através da atuação do Congresso Nacional, te- rantia da mediaçãopolítica estarájustamente no grau em que
riam levado a uma imediata degeneração do sistema político essa instituição se torne depositária de uma confiança dura-
em vários países latino-americanos, seja pela via do caudilhis- doura, através de uma contínua verificação do crédito dispo-
nível. por meio do processo eleitoral''.q
mo plebiscitârio, seja pela dos ''pronunciamentos'' militares
pura e simplesmente. E, finalmente, os mecanismos eleitorais ,
apesar dos atropelos e restrições a que se viram sujeitos du- Ape/#ormance dos partidos políticosbrasileiros, embora
rante o período, retiveram a potencialidade de ampliar a com- aquém do padrão acima desenhado, correspondeu em parte
petitividade e alargar o leque de alianças na luta sucessória, ao que diz Pizzorno. Resta conhecer suas características de
com a consequente inclusão de novos itens na agenda política modo a compreender algumas das razões que não permitiram
e o reforço do carâter público dessa agenda.' o desempenho pleno desses papéis na operação do regime de-
A despeito da alegada incompatibilidade entre o regime mocrático anterior a 1964.
partidário e os requisitos do processo de desenvolvimento dos
países periféricos, o que percebemos quando examinámos os
desdobramentoshistóricosmais recentesna América Latina é 1. Sistema partidário e estrutura estatal
o caráter recorrente dos debates em torno da natureza dos
partidos e dos novos significados e papéis suscetíveis de serem A bibliografia disponível, brasileira e estrangeira, conta
jâ com um apreciável número de bons trabalhos sobre o ciclo
encarnados por eles. Essa recorrência deve-se, a nosso ver, ao
populista brasileiro, seu funcionamento e crise. Grande parte
fato de que a centralização do poder, por um lado, e a repre-
deles, porém, se não chega a afirmações necessariamente er-
sentação e combinação de interesses, por outro, são problemas
igualmente objetivos e inarredáveis em qualquer sistema polí- róneas sobre a forma e o conteúdo dos partidos políticos,
chega a conclusões insatisfatórias sobre sua dinâmica no pro-
tico. E em função do caráter objetivo desse dilema que nasce a
cesso político. Fruto, a nosso ver, do fato de que a maioria
instituição partido político; se não podemos afirmar que ela
deles é centrada preferencialmente sobre uma única dimensão
seja eterna ou imutável em estrutura e função, podemos, pelo
de análise: a das intenções, valores e expectativas do eleitor
menos, considerar como apressadas e ingênuas aquelas con-
cepções que passariam seu atestato de óbito (Souza, 1976). individual ou dos grupos sociais. O funcionamento das orga-
A função singular e insubstituível exercida pelas institui- nizações políticas (recursos simbólicos e materiais, burocracia
ções partidária no funcionamento de regimes democráticosé interna, competição entre organizações) e, de outro lado. as
destacadapor Pizzorno (1981), num estudo em que se per- características legais que determinam ou condicionam o papel
gunta sobre as causas da sobrevivência de partidos políticos que as instituições de representação irão exercer no sistenl:i
em sociedades desenvolvidas onde sua redundância no desem- político, têm sido insistentementeminimizados por grande
parte da literatura.
(8) Para uma análise das situações onde não se cumprem as condições arque-
típicas da democracia representativa, mas, mesmo assim, as eleiçõeslogram produzir (9) Pizzorno, ín Berger(org.), Organfzfng /lzferesls ípz Wesferzz Europe. 198 1
efeitosforçando a ampliação do processo democrático, ver Guy Hermet, Richard P. 277
Rose e Alain Rouquié, E7ecffons wffàoaf (Zoíce, 1978.
80 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 81
Uma explicitação precisa dos estudos sobre os partidos termos de solidariedade social entre as classes. Elas impedi-
políticos brasileiros e dos vários pontos em que eles parecem riam na pratica a preservaçãoda unidade nacional, a moder-
se apoiar tornaria necessárioum trabalho de revisão crítica nização institucional e a conciliação dos interesses económi-
bem maior do que o pretendido e possível neste ensaio. Inte- cos, impondo-seportantoo recurso ao autoritarismocomo
ressa-nos,contudo, explicitar algumasdas premissase con- única forma viável de sobrevivência autónoma do país. Três
clusões aí existentes, de modo que a abordagem e conclusões décadas mais tarde os militares responsáveis pelo golpe de Es-
específicas deste trabalho possam ser destacados. tado em 1964justificariam quase com os mesmos argumentos
Uma perspectiva encontrada freqüentemente na litera- a criação de drásticas restrições ao processo partidário e elei-
tura sociológica produzida nos anos trinta, que se enraizou ora
tonal
com extremado vigor na bibliografia produzida posteriormen- Nos anos cinqüenta, sob a égide do ISEB (Instituto Supe-
te, procurava explicar os estilos de incorporação política no rior de Estudos Brasileiros), surgiu no Brasil uma série de es-
país -- clientelismo, coronelismo -- quase exclusivamente a tudos centrados nos problemas em questão.i l
partir de condições sócio-económicas, sem ligação com a es- Tinham eleso mérito de chamar a atenção para a impor-
trutura político-institucional.Ou seja, essa perspectiva julga tância das instituições partidárias como fator interveniente na
encontrar explicações suficientes no amorfismo da sociedade dinâmica política do período, recusando-sea vê-las como um
brasileira, ou no baixo grau de diferenciação objetiva e subje- mero artefato decorativo. Mantinham-se contudo em marcos
tiva das classes sociais. Entendendo Interessei como produtos estreitospara a investigação do modo como os partidos opera-
rzâo mediados das propriedades fundamentais das estruturas vam no interior do regime, bem como dos condicionamentos
sócio-económicas, ela tende a ver os partidos políticos, sindi- que dificultavam a sua institucionalização.
catos e associaçõescomo meras adaptações às circunstâncias e O sistema partidário aí é visto basicamente enquanto fa-
não como uma parte do processo mesmo de identificação de tor que impedia a concorrência entre um nível mais avançado
interesses. de conscientização política da sociedade brasileira e sua ex-
Premissas como essas foram utilizadas com grande fre- pressão institucional. Os partidos políticos -- ''carentes de
quência por ideólogos e políticos brasileiros autoritários nos unidade programática e ideológica'' -- e o Congresso Nacio-
anos trinta '" comojustificativa para pâr fim à vida partidária, nal ''monopólio das forças agrárias sustentadas pela máquina
eleitoral e parlamentar do país. Nessa ética, o estágio rudi- coronelista'' -- estariam em descompasso com os conflitos e
mentar do desenvolvimentosócio-económicoe cultural brasi- diferenciações induzidos pelo desenvolvimento económico-so-
leiro é invariavelmente invocado como obstáculo às instituições cial. Atravésde estratégiaspopulistase clientelistas,
impe-
e praticas liberais. Elas teriam realidade apenas nominal, ou diam a articulação de alternativas políticas necessária ao pro-
tornar-se-iam feudos de clãs oligárquicos ou ainda instrumen- gresso do país. Mostravam-se, pois, desadaptadas ao contexto
tos de radicalismos de ''inspiração alienígena''. Ou seja, no sócio-económico.
Brasil, essas instituições seriam sempre sinónimos de inauten- Estes pontos nos interessam em dois níveis distintos. Pri-
ticidade, de artificialismo prejudicial pelos seus efeitos desa- meiro, é necessáriodestacar o ângulo implicitamentenorma-
gregadores, tanto sob o ponto de vista territorial quanto em tivo em que os fenómenos do clientelismo e populismo são en-
carados. Faltando àquela literatura um foco ao mesmo tempo
estrutural e político, ela é levada a tratar tais processos como
(lO) A consulta aos Anais da Constituinte Brasileira de 1934 revela, sem am- efeitos da ''qualidade da liderança'' ou das ''preocupações
biguidade, a ênfase dos legisladores no fracasso dos partidos do regime anterior e a
incapacidade das elites em focalizar o problema a não ser pelo ângulo da extinção das
agremiações partidárias e do Congresso Nacional. Alguns dos porta-vozes mais im- (11) Refiro-me sobretudo aos artigos publicados nos Cbdenzoi do grosso
portantes da douüina antipartidos e anti-representação parlamentar na época foram Tempo, durante a década de 50, sob o patrocínio do ISEB, bem como os estudos de
Oliveira Viana (1951, 1952), Azevedo Amaral (1938) e Francisco Campos (1941). Hélio Jaguaríbe e Guerreiro Ramos, já citados na nota 4, acima.
82 A DEMOCRACIA POPULISTA. 1945-t964:
BASES E LIMITES
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 83
ver: a estrutura centralizada de decisões confirma-se e se revi- dos atores responsáveis pela reformulação da vida política na-
gora em seu próprio funcionamento. O clientelismo e o popu- cional não se renovara, como também, o que é mais contun-
lismo compatibilizam-na com o carâter formalmente demo- dente, era a mesma elite que, na década anterior, havia pro-
crático do regime político, mas representam, ao mesmo tem- curado no autoritarismo e nas doutrinas antiliberais a solução
po, em sentido estrutural, a fraqueza dos partidos. para os problemas que o país enfrentava.
O raciocínio desenvolvidoacima nos conduz a três inda-
gações sobre as condições de emergência do regime democrâ-
tico A. Estado Novo: Aspectos institucionais
1) a distribuição de poder prévia à criação dos partidos
-- apropriação de atividades e dos recursos a elas correspon- Nos anos trinta, os grupos revolucionáriosadaptaram às
dentes -- que teria dificultado a institucionalização do sistema condiçõesnativas ideologias antidemocráticas de diversos ma-
partidário, de 1946em diante; tizes, mas sempre marcadas pela característica básica de dis-
2) as características do sistema partidário que então se sociar a política partidária das arenas de decisão governamen-
formou (origens, número e tipos de partidos) ; tal. Difundia-se largamente pelos círculos políticos brasileiros
3) parâmetros legais que condicionaram seu funciona- a desmoralização crescente do parlamentarismo multiparti-
mento. dário, dentro de uma atmosfera de descrença no Estado libe-
A partir da análise de alguns aspectos da estrutura insti- ral e suas instituições, que passou a ser reavaliado criticamen-
tucional do Estado Novo e da história do processo de transição te, procurando dar-se-lhenovo sentido e conteúdo. As preo-
cara o regime democrático esperamos responder a tais ques- cupações fundamentais no debate político da época -- uni-
tões dade nacional, incorporação de novos setores sociais e moder-
nização institucional -- levaram a maior parte dos ideólogose
políticos a concluir que o autoritarismo seria o único regime
2. Centralização e corporativismo'' harmonizado com o ''Brasil Real''. A noção de que o país não
se encontrava ainda maduro para um regime democrático, ou
A restauração democrática em 1945, causada bem mais de que a integração nacional exigia a abolição da vida parla-
por eventos internacionais que por sérias dissensões internas, mentar -- ''campo da caduca política regionalista e oligâr-
muito menos por sério conflito de classes, não produziu uma quica'' --, o enunciado da supremacia da Segurança Nacional
substituição radical dos grupos de poder, embora exigisseuma em perigo, dado o ''excessivoliberalismo'' em relação à cres-
reformulação político-institucional. Desse modo, se em 1945 centeparticipação popular nos movimentosde caráter comu-
foi deposto o presidente Vargas, manteve-se na liderança do nista e fascista, is terminavam por convergir num mesmo pon-
processo de redemocratização do país a mesma elite política to: anulação do Congresso e dos partidos políticos, submissão
que comandava o regime deposto. Sob sua direção promove- dos sindicatos à tutela estatal. Por outro lado, as mudanças
ram-se as primeiras eleições nacionais e a formulação da Carta institucionais iniciadas logo após a Revolução de 1930e desen-
Constitucional, que deixou praticamente intacto, em pontos volvidas durante o Estado Novo redundaram, de modo geral,
cruciais, o arcabouço institucional do Estado Novo.
Uma investigação, mesmo superficial, sobre o período de
1943-1946mostra sem ambigüidades que a maciça maioria (15) A eclosão da Aliança Nacional Libertadora(ANL), de inspiração comu-
nista, em 1935, bem como a mobilização induzida pelo movimento integralista, ine-
gavelmentefacilitaram a harmonização da ideologia liberal de cores então fortemente
agrárias e elitistas com a doutrina autoritário-corporativista que deificava o Estado e
(14) As duas primeiras seçõesda parte que se segue acompanham de perto o s6 entendia a representação partidária num papel fortemente subordinado. Sobre o
estudo sobre a conjuntura de transição democrática realizado por mim em Souza movimento integralista, consultar Hélgio Trindade(1974); sobre a articulação comu-
( 1976) nista, Chilcote (1974)
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS
86 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
esse que garantia ou visava garantir certo grau de autonomia
na criação de uma extensa máquina burocrática não contro- ao poder federal para a efetivação de medidas económicas ur-
lávelpor um Legislativoou por qualquer tipo de organismo gentes e de grande envergadura para o período.i
representativo da ''sociedade civil'' Paralelamente ao sistema de interventorias foram criados
Essa autonomiaburocrática não provinha, todavia, de órgãos administrativos estaduais (ramificações do organismo
uma impecáveleficiência racional-formal segundoo paradig- central, o DASP, .Z)epaMamenfo 4dmlnz.sfraffvo do Sewfço
ma weberiano das organizações burocráticas. Ao contrário, a Pzíó//co), que funcionavam ao mesmo tempo como uma espé-
expansão e a centralização burocrática deram-se continua- cie de legislativoestadual e como corpo supervisor para o in-
mente sob o signo da absorção ou cooptação de agrupamentos terventor e o Ministério da Justiça. Como uma engrenagem,
de interesse, quer regionais, quer funcionais. Este aspecto é a interventoria, o Departamento Administrativo e o Ministé-
evidente no novo padrão de relacionamento que se estabelece rio da Justiça cooperavam na administração dos estados sob o
entre o centro e os estados no nível da ampliação dos instru- controle do presidente da República. (Sobre estes pontos ver
mentos de controle sobre a economia.
A essência do mecanismo institucional criado após a Re-
Graham, 1968;Lowenstein,1944;Vieira da Cunha, 1963).
Praticamente nenhum campo da legislação permaneceu com
volução de 30 e purificado pelo Estado Novo era a articulação os estados, visto que em todos eles os governos estaduais de-
entre /nfewenforias e depaNamenlos adminüfraf/vos, que li- pendiam da aprovação do presidente da República (Miranda,
gava as oligarquias estaduais aos Ministérios e à Presidência 1953)
da República. De maneira análoga ao que se passava na relação entre o
O sistema de interventorias pouco ou nada interferia com centro e os estados, a inventividade centralizante manifestou-
os pilares económicos do poder político nos estados, nem era se também na criação de uma vasta gama de órgãos tecno-
esse o seu intuito. Seu mecanismo básico consistia no seguinte: burocráticos -- ins/ífzzros, aurarqzzías e grzzpos íéclzícoi. No-
o Executivo federal nomeava para a chefia dos governos esta- minalmente sob a direção do presidente da República, mas
duais indivíduos que, embora nativos dos estados e identifi- praticamente sob o controle dos Ministérios aos quais corres-
cados em suas perspectivas ideológicas aos grupos dominan- pondiam, estes órgãos serviam como agências coordenadoras
tes, eram ao mesmo tempo ''marginais'' à vida partidária es- e centralizadoras do governo federal para campos específicos
tadual, isto é, indivíduos com escassa ou nenhuma biografia da atividade económica (Lowenstein, 1944; Wirth, 1970; Da-
política, ou, se possuíam alguma, haviam-na feito fora das land, 1967; Martins, 1976). Toda a operação deles foi desen-
maquinas partidárias tradicionais dos estados.Assim, o inter- volvida no sentido de institucionalizar e legitimar a atuação
ventor, embora ligado à elite estadual, não devia a ela sua direta de interesses económicosjunto à burocracia. Esse pro-
permanência no controle do estado e sim ao beneplácito do cedimentotornou-sea regra, e a atuação em associaçõesre
Executivo federal.
presentativas de caráter autónomo e público, como se supõe
Enfraquecendo as antigas situaçõespolíticas provenien- sejam os partidos políticos, a exceção. Embora constituíssem
tes da Primeira República (1889-1930),removia-seboa parte resposta imediata à crítica conjuntura económica interna e ex-
dos empecilhos à centralização administrativa e estabelecia- terna, tais órgãos adquiriram significação mais ampla e dura-
se, através do interventor, uma convivênciaentre as diversas doura, permanecendo como o modzzi e o /octzs /ache/zd/ das
correntes da política regional, sem que o governo central en- respectivas atividades. Da mesma forma, as decisões sobre a
trasse em conflito aberto com elas ou sequer acenasse com
qualquer ameaça a seus interesses económicos. Compatibili-
zava-se assim o mínimo necessário e o máximo possível de mu- (16) O governo efetivou uma série de medidas relacionadas ao desenvolvi-
dança: configurava-se a ditadura modernizante no combate à mento da indústria petrolífera e especialmente siderúrgica; à resolução de problemas
surgidos pela déóác/e da exportação do café em 1929, com efeitos sobre todo o sis
descentralização oligárquico do regime anterior, forjando um tema económico; e medidas referentes à questão da dívida externa.
novo padrão de articulação entre as forças políticas, padrão
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 89
88 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
4) a garantia antecipada do controle ou pelo menos de Não afirmamos, é claro, uma continuidade total, como se esti-
um papel decisivopor parte dos remanescentesdo regime an- véssemosdiante de dois sistemas idênticos. Tal interpretação
terior sobre a primeira legislatura e sobre a Assembleia Cons- equivaleria em sua ingenuidade àquela outra, simétrica, que
tituinte através da manipulação dos instrumentos da legisla- vê na Constituição de 1946 um corte abrupto com o passado e
ção eleitoral; :' a inauguração de uma etapa imaculadamente democrática em
5) a utilizaçãoda legislaçãopartidária, elaboradaainda nossa história política. Afirmamos, sim, que ao pluralismo
durante os últimos meses do regime autoritário, que indicava partidário, às eleições diretas em todos os níveis, ao retorno à
a amplitude a ser considerada legítima para o espectro polí- separaçãode poderes do Estado, determinadospela Carta
tico-partidário: através dela negou-se o registro a quinze par- Constitucional, foi acoplada a estrutura anterior, marcada
tidos cujos vínculos com o regime anterior eram ténues (Peter- pelo sistema de interventorias, pelo corporativismo sindical e
son, 1962),e em 1947permitiu-sea cassaçãodo Partido Co- pela presença de uma burocracia estatal detentora de impor-
munista Brasileiro.:: Note-se que o PCB era então detentor de tante capacidade decis6ria.
considerável prestígio e eventualmente capaz de competir com A passagem para o regime democrático foi, pois, uma
o PTB junto às massas populares; combinação de instituições corporativo-estatais e liberal-de-
6) a inscrição no próprio texto constitucional de vários mocráticas. Parece-nos indispensável ter em mente tal sim-
dispositivos asseguradores dessa mesma continuidade, nota- biose, se de fato pretendemos compreender os percalços e con-
damente a sub-representação no Congresso dos estados mais tradições da democracia política no Brasil, apoiada como es-
urbanizados, a manutenção da estrutura sindical corporativa, tevenum poder Legislativo nacional incerto entre espasmos de
e a soma de poderes centralizados no Executivo federal. altivez e submissão, e num sistema partidário aparentemente
A queda do Estado Novo foi assim amortecida e sua es- incapaz de se expandir e de se afirmar a uma taxa compatível
trutura geral aproveitadapara a nova armação institucional. com o ritmo das transformações sócio-económicas.
mítico, pois tem também razões sólidas nas medidas tomadas durante sua gestão em
benefício daqueles setores. Para uma análise da política previdenciária e de outros
3. Representação corporativa
benefícios concedidos aos setores operários urbanos ver Vianna(1976) e Santos
9
(1979)
de interesses e sistema partidário
(20) Em face da precariedade dos recursos disponíveise da provavel lentidão do
alistamento eleitoral, foi permitido o registro de blocos de eleitorescom base em listas
preparadas por empregadores e agências govemamentais: o chamado alistamento A. Aspectos gerais da dinâmica partidária (1946-1964)
a-(l#icío. Este expediente assume um sentido muito especial quando se considera
que se trata de recursotipicamente clientelístico, embora urbano, geralmente concer- O eixo básico do sistema partidário em funcionamento
nente ao funcionalismopúblico e aos sindicatos, pelo qual o getulismoexpande o era constituído por três partidos de extensão nacional: o PSD
eleitorado ao mesmo tempo que o compromete. O alistamento ex-c#icfo correspon-
deu a 23%oda votação nacional em 1945, e nada menos que 54%üno Disüito Federal, e a UDN, ambos conservadores e detentores de amplas bases
33%oem São Paulo, 31%ono Estado do Rio, 21%ano Rio Grande do Sul e em Pemam- rurais, e o PTB, partido de caráter reformista urbano. O PSD
buco, 17%ona Bahia e 15% em Minas Gerais. Tratava-se, pois, de recurso eleitoral de e o PTB formaram-seem grande parte por decisão governa-
certa magnitude, que deu às eleições, senão um caráter de fraude oficializada, pelo
menos um viés considerável. mental, ou pelo seu aberto beneplácito. Eram partidos ''inter-
(21) O Partido Comunista foi legalizadologo após a derrubada de Vargas e namente mobilizados'', nos termos de Duverger, que realiza-
apresentou candidato à Presidência da República, que acumulou 8,7%odos votos vam sua estruturação inicial a partir dos benefícios que retira-
presidenciais, chegando a ganhar em algumas capitais do Nordeste, elegeu 14 depu-
tados e um senador à Assembleia Constituinte em 1945. Tomou-se o partido majo- vam do fácil acesso aos aparatos burocráticos-administrativos,
ritário na Câmara Municipal do Distrito Federal e da capital do Estado de São Paulo. estaduais e federais.
O PCB elegeu 46 dos 855 deputados estaduais em 15 dos 20 estados da federação. Era A UDN nasceu da conspiração contra Vargas e a ditadura
naquela conjuntura a quarta força política eleitoral, após o PSD e o PTB(Soarem,
1973). Quinze partidos foram registrados durante o período. Em 1963, existiam treze do Estado Novo. Estruturou-se a partir das oposições às inter-
94 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 95
ventorias estaduais e da articulação com setores militares que aliam, e finalmente as características do próprio estamento
se opunham ao ''varguismo" desde os anos trinta (Picaluga, burocrático-administrativo.
1980; Benevides, 1981; Dulci, 1977). O primeiro desses fatores -- a preferência dos votantes --
Assim, o eixo polarízador em tomo do qual se estrutura- não deveria ser considerada como preexistente ou à parte das
vam os três grandes partidos políticos da época se encontrava alternativas que lhes são apresentadas na arena política, visto
no sistema de interventorias e no acesso à burocracia federal. que em grande parte a operação das instituições de represen-
A importância do acima exposto parece evidente. A estrutura tação política faz parte do processo de identificação e defini-
partidária, em seu corpo principal, formou-seem função de ção dos interesses dos grupos sociais.
fatores marcadamente conjunturais (anta ou pr6-''varguismo") Colocam-se assim questões sobre outros fatores que im-
ou pela ligação e acesso à burocracia estatal, e não por cliva- pelem os partidos políticos a escolherem tais estratégias. No
gens sócio-económicasnítidas, o que torna o conhecimento da caso brasileiro, como foi sugerido, o perfil da estrutura deci-
estrutura decisória e das clivagensregionais fundamental para sória compelia as agremiações partidárias a gravitarem em
o entendimento da atuação das agremiações partidárias.z: torno das arenas distributiva e regulatória.
As condições que envolvem a origem dos partidos são de Não pretendemos com isso afirmar a onipotência do Es-
particular importância na determinação de seu caráter como tado burocrático no Brasil, como se não houvesse competição
organização. Assim, as probabilidades de um partido vir ou entre órgãos burocráticos, ou mesmo alinhamento de alguns
não a utilizar a distribuição de benefícios clientelísticos de delescom diferentespartidos. Na realidade, o crescimentodo
modo a ganhar apoio de grupos sociais tem muito a ver com a aparelho estatal desde os anos trinta, posteriormente, deu-se
maneira como a liderança desse partido estabeleceuílzlcla/- sob a égide de dois movimentos simultâneos: autonomia em re-
mente sua ligação com bases populares (Shefter, 1977). Par- lação às fnsfífulções partidário-parlamentares e penetração pe-
tidos fundados por elites que ocupam posição de poder dentro los grupos privados de interesses. Pelo menos um dos níveis da
de um regime estarão em posição privilegiada para se utilizar estrutura decisório -- o da execução específica das decisões
de recursos estatais de modo a adquirir uma base popular. tomadas -- era entrecortado pelo jogo de pressões entre as
Essa articulação inicial marcara o caráter da organização várias agências estatais e os diferentes grupos de interesse que
em termos dos mecanismos que ela deverá acionar para man- constituíam sua clientela, configurando o processo de ''balca-
ter essa base, bem como efetivará o grande poder de barganha nização'' frequentemente apontado na descrição da política
que, no interior dos partidos, é detido pelos políticos que pra- decisória brasileira(Leff, 1968; Cardoso, 1973; Santos, 1978).
ticam o clientelismo em relação a seus oponentes eventuais. Ê possível encontrar nos aspectos apontados uma das res-
Por certo há outras consideraçõesa seremlevadasem postas para o fenómeno que tem surpreendido muitos analis-
conta pelas lideranças partidárias quanto às possibilidades de tas do sistema partidário brasileiro (Schwartzman, 1970; Car-
utilização de estratégias clientelistas: orientações e preferên- doso, 1975): a debilidade da liderança paulista na direção dos
cias dos votantes, os interesses dos membros militantes do três grandes partidos nacionais do período. Com efeito, as eli-
aparato partidário e das elites com as quais os partidos se tes dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande
do Sul detinham o controledas organizaçõespartidárias. Essa
característica pode ser explicada por razões de ordem conjun-
tural no período da implantçaão dos partidos, por estilos de
(22) O tema das clivagens regionais continua uma das chaves cruciais para a liderança regional diversos e pela história política de cada um
compreensão do processo político partidário nos dias atuais. Uma parte da literatura
supõe uma estrutura de classe formada em temposnacionais e procura reduzir as dos estados em relação ao ''varguismo''.a Não há dúvida, po-
agremiações partidárias a elas. Um conhecimento mais aprofundado do período,
apontando para a heterogeneidaderegional dos partidos, desafia a validade da maior
parte de tais interpretações. (23) Consultar Skidmore(1967) para a história dos anos trinta ao fim do Es-
tado Novo. Para uma análise do quadro parüdádo paulista e sua evoluçãoaté anos
96 A DEMOCRACIA POPULISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 97
rém, de que a representação dos interesses económicos de São apelava à intervenção militar. Já em 1946, por ocasião da As-
Paulo se dava através da articulação direta com os organismos sembléiaConstituinte, a UDN não legara muitos exemplos de
burocrático-estatais, sendo esta uma das respostas para o pe- uma crítica verdadeiramente liberal aos aspectos autoritários
queno ''investimento'' da elite paulista na ativação dos con- incorporados na Carta Constitucional, dividida que estava
dutas partidários para o desempenho daquelas funções junto entre seu papel de oposição liberal à centralização do poder no
ao poder federal. A não representação das elites económicas Executivo federal e suas raízes elitistas e conservadoras, que a
mais importantes do país ou de seu contingente operário mais faziam temerosa da crescenteparticipação popular. Ã medida
numeroso pelos três partidos centrais é um aspecto da precá- que evoluía o processo de passagem de partidos meramente
ria institucionalização do sistema partidário em nível nacio- representativos dos estratos altos da sociedade para as grandes
tial. 24 organizações partidárias de massas, a fragilidade ou a timidez
A partir de 1946,o votourbano, embora insuficientepara do pensamento liberal que ela afirmava representar tornou-se
eleger à Presidência da República um candidato ''tipicamente mais explícita. Transforma-se, assim, progressivamente num
urbano'', detinha a possibilidadede fazer com que os resul- foco desestabilizador do regime, distanciando-se mais e mais
tados pendessema favor de uma das facções dos grupos rurais do papel de uma oposição baseada em questões substantivas,
mais conservadores em litígio. A aliança PSD-PTB uniu o co- que as expressasse a partir do reconhecimento do direito bá-
ronelismo rural e o populismo urbano, dominando ampla- sico de seus oponentes eleitos de governarem. Iniciadora da
mente as eleições presidenciais e detendo a maioria parlamen- mobilizaçãopolítica contra a ditadura do Estado Novo, a
tar no Congresso Nacional durante todo o período (Soares, UDN veio mais tarde a se constituir no braço partidário do
1971e 1973; Schwartzman, 1971. Ver, porém, as ressalvas golpe militar em 1964.
quanto à hegemonia parlamentar da aliança PSD-PTB em A composição política PSD-PTB, se redundou em ganhos
Santos, 1974). políticospara os partidos vitoriosos, teve também seu preço
A união Democrática Nacional, o maior partido da opo- em deslegitimação do sistema partidário e do poder Legisla-
sição e o segundo em poder eleitoral no país, embora vitoriosa tivo. Sendo uma composição em desacordo com as tendências
em vários estados da federação, teve reduzidas suas chances seculares das filiações do eleitorado, ela estimulou a cristali-
de atingir a Presidência de República num contexto onde os zação do discurso normativo em que o ''país legal'' -- o sis-
recursos de poder partidário provinham sobretudo das articu- tema partidário especificamente -- era considerado como irre-
lações clientelistas e da mobilização popular baseada na mís- mediavelmente não representativo do ''país real''. H E, com
tica getulista e no apelo nacionalista. Frustrada em seu poder efeito, não o era. Como seria de se esperar, aumentaram os
de competição, a IJDN tornou-seum partido em eterna cons- atritos entre os dois partidos. As divergências entre ambos ad-
piração contra o regime: a cada eleição perdida proclamava a quiriram particular virulência nas eleiçõeslegislativas de 1958
'ilegalidade''do pleito, e atravésde um discursojurisdicista e no processo sucessório de 1960.
A viabilidade da aliança PSD-PTB repousava nos ganhos
que reciprocamente se asseguravam em termos de controle da
mais recentes ver Cardoso (1975), Souza (1977), Schwartzman (1975). Para a análise máquina burocrática do Estado. Na arena propriamente legis-
do "janismo" até 1964ver Ferreiro (1960), Weffort (1965), Souza (1976). Um exce- lativa e nos embates ideológicos era frequente o dissenso entre
lente estudo sobre o Partido Social Progressista (PSP), base partidária do "adema-
rismo", encontra-se em Sampaio (1981).
ambos, a despeito da condição majoritária da aliança. Esse
(24) A modalidade corporativísta de representação política perante o Estado desgaste tornou-se mais visível e agudo no contexto de crise
reforça a pouca visibilidade da atuação partidária, tomando difícil para a opinião económica do fim dos anos 50 e início da década de 60, quan-
pública estabeleceruma associação.claraentre as siglas dos partidos e alternativas
políticas específicas. A demonstração dessa hipótese seria diretamente pertinente à
interpretação do "pouco amadurecimento" das força sociais que deveriam em prin- (25) Ver a referência mais adiante sobre a evolução da força eleitoral dos
cípio corresponder a diferentes partidos. partidos políticos
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 99
98 A DEMOCRACIA POPULISTA, 194S-1964:
BASES E LIMITES
B. A crise da democracia populista siva, porém, talvez seja a de saber se o sistema partidário se
achava exposto a uha fragmentação pura e simples, com dano
Grande parte da literatura avalia os processos de erosão irreparável para sua eventual capacidade governaffva, ou se
do sistema partidário pela mudança sócio-económica.O de- de fato se processava um realinhamento através do qual essa
senvolvimentoteria alterado a correlação de forças políticas e capacidade poderia ser reforçada, a médio prazo.
essa alteração ter-se-ia refletido no nível político-eleitoral com Os dados eleitorais analisados por Soarem(1971 e 1973) e
o declínio dos partidos conservadores(sobretudo PSD e UDN) por Schwartzman (1971), sobre o período, revelam, resumida-
configurando-se assim uma situação de crise. O ocorrido em mente, que:
1964 toma-se portanto interpretâvel diretamente como uma 1) os pequenos partidos ''ideológicos'' cresciam de ma-
reação generalizada da direita a tais efeitos políticos da mu- neira proporcionalmente mais rápida nas regiões desenvolvi-
dança sócio-económica, ou pelo menos ao mecanismo institu- das e nos grandes centros urbanos;
cional vigente, que a enfraquecia. 2) o PTB, que se desenvolveraa partir de uma base ex-
Sem desconhecer que esse argumento pode encerrar boa clusivamente urbana, localizada sobretudo nos grandes esta-
parcela de verdade, parece-nosque ele dilui a autonomia da dos, ampliava sua penetração nos estados menos desenvolvi-
esferapolítica no mesmomomentoem que a postula. Se de dos e também no interior. Essa ampliação não chegava obvia-
um lado reconheceque um mecanismoeleitoral formalmente mente a descaracterizá-lo como partido trabalhista urbano;
democrático, mesmo descontadasas mazelas do caso brasi- 3) em face da concorrência dos pequenos partidos e do
leiro, funciona a longo prazo como corretivo político à estru- PTB, os chamados partidos conservadores -- PSD, UDN, PR
tura de classes, de outro tende a diluir esse reconhecimento na (Partido Republicano) -- viam-se forçados a procurar suas
medida em que toma a mudança na correlação de forças sócio- ''bases naturais'' nos municípios menores e a cultivar uma
econõmicasquase diretamentecomo sinónimo de crise insti- maior aproximação com elas. Parece possível afirmar, tenden-
tucional. Faz coro, assim, com as interpretaçõespuramente cialmente, que eles teriam de aumentar a mobilização de suas
economicistas que prescindem do estudo dos mecanismos polí- respectivas bases, à medida que perdiam apoio, nas cidades,
tico-institucionais por entenderem que a crise do modelo eco- conquistado pelo PTB e pelos pequenos partidos urbanos.
nómico os levaria fatalmente ao colapso. Sendo cornetaessa interpretação dos dados, parece evi-
Nossa hipótese básica, ao contrário, é de que o carâter dente que se processava, embora de maneira paulatina, um
crítico da conjuntura de 1964derivou do simultâneo fortaleci- realinhamento partidário. .Ao contrário do que sugere a maior
mento do Estado e do sistema partidário, colocando de ma- parte da literatura, um processo caótico e sem direção não
neira nada remota o dilema Estado sem pa Idos ou goverrzo era, pois, a única possibilidade aberta naquele momento.
pa /daria. A despeitodas dificuldadesjâ apontadas, ou seja, Esse realinhamento se desenvolviacom ritmos e extensões
da preservação da máquina estatal e dos mecanismos centra- diferentes. De modo lento, as eleições legislativas refletiam as
lizadores dolo/lcy-makllzg durante o regime populista, e em- tendências da mudança social e económica ao nível do eleito-
bora o acoplamentode mecanismosformalmente democráti- rado. Jâ as eleições executivas, especialmente a da Presidência
cos a mecanismos autoritários resultasse certamente no debili- da República,. embora registrassem aquelas mudanças de ma-
tamento do sistema de partidos, acreditamos que o mecanismo neira mais abrupta e dramática, condensando-asnos diferen-
institucionalse põs em marcha, forçando os partidos a um tes estilos personalistas, distinguiam menos o eleitorado em
processo de reestruturação e realinhamento.:' A questão deci- termos sócio-económicos, não s6 em virtude da obrigatorie-
dade de mobilizar uma maioria nacional, como pelo fato de
que essa maioria não poderia ser obtida por nenhum partido
(27) Para uma análiseda evoluçãoe clÍse do sistemapartidário no Brasil, bem
como para uma discussão crítica sobre a hipótese de rea/fnAamenfo parfídáHo, ver ou candidato senão através de acordos com as máquinas e
Limo Júnior (1978) . oligarquias estaduais. Um candidato presidencial efetivamen-
102 A DEMOCRACIA POPIJLISTA, 1945-1964:
BASES E LIMITES
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 103
(1) Para uma visão geral da história política brasileira desde o Estado Novo, (2) Em 1950, somente 20%oda população vivia em cidades de mais de 20 mil
consulte-se Skidmore (1967), Flynn (1978) e Fleischer (1981).
habitantes. A parcela correspondente em 1980 era de 51 %a. VerTabela l.
I08 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 109
questão da canso/ídaçâo democrática, e mesmo a questão mais esfera política.s Nesta linha de raciocínio, a questão dos con-
dicionamentos sócio-económicospode ser recolocada com pro-
ampla do desenvolvimentopolítico entendido como ''institu- veito se considerarmos:
cionalização de organizações e procedimentos'' (Huntington,
1) que existem configurações estruturais menos ou mais
1968) não podem ser discutidas de maneira frutífera, no que
se refere ao chamado Torce/ro .A/findo, fora desse marco de /avoráveü ao desenvolvimento democrático;
referência. 2) que a representação subjetiva dessas configurações,
na medida em que se incorpora à cultura política, pode exer-
O desencanto com as hipóteses que procuram estabelecer cer efeitos duradouros e relativamente autónomos sobre o pro-
conexões gerais, de longo alcance, entre a base económica e o cesso político, através das escolhas concretas que as elites e os
desenvolvimento político é também evidente nas recentes con- ativistas políticos são levados a fazer, ao longo do tempo.
tribuições de alguns economistas. Referindo-se ao tema que Com efeito, o desenvolvimentoda democracia represen-
ora nos ocupa, assim se expressou Albert Hirschman (1979, tativa supõe um crescente enraizamento da competição parti-
68) dária e eleitoral(entendidas como formas normais e pacíficas
de disputa) e o livre funcionamento de instituições parlamen-
''Mais de um século depois de Marx, ap/opoxlção gera/ de que
tares. Não se pode considerar como reducionista ou como eco-
nomicismo a proposição de que certas configurações sociais
mudanças políticas importantes podem ser mais bem explica-
Ihe são adversas, pois o que esta proposição afirma é apenas
das por fatores económicosnão é nem particularmente nova
nem completamente convincente. Apesar de tudo, uma exci- que essas configurações têm maior probabilidade de gerar ati-
tudes e comportamentos frequentemente antagónicos com a
tação intelectual considerável ainda é gerada -- e legitima-
operação habitual daqueles mecanismos .
mente -- quando se mostra ou se alega que uma virada espe- Essas configurações desfavoráveis, enquanto tipos ideais,
c#lca da maré política tem origem numa característicaprecísa
podem ser construídas de diversas maneiras, mas meu objetivo
do terreno político subjacente'
aqui não é uma classificação ou tipologia sistemática. Desejo
fazer referência a apenas dois entre tais tipos (chamemo-los A
A proposiçãogera/ a que se refere Hirschman pode ser e B), salientando imediatamente que ambos encontram fortes
traduzida, para os fins do presenteensaio, como uma alusão aproximaçõesno caso brasileiro -- no plano da estrutura só-
às pesquisas iniciadas no final dos anos 50, que procuravam cio-económica objetiva e também no da ideologia -- ao longo
estabelecer conexões entre níveis de desenvolvimento econó- de todo este século.
mico e graus de consolidação democrática. Parece-nos entre- A configuração A pode ser exemplificada facilmente com
tanto um pouco cedo para descartar de vez tais estudos, sobre- a América Central e com o Nordeste brasileiro. São formações
tudo se isto significar uma perda completa de contato com claramente determinadas por uma estrutura produtiva de ori-
problemasestruturais ou de longo prazo. Uma linha concilia- gem colonial, ainda hoje fortementeatada a uma extrema
tória e quiçá mais frutífera, sugerida pelo próprio Hirschman, concentração da propriedade fundiária. Uma parcela consi-
consiste em atribuir maior peso explicativo à chamada instân- derável da força de trabalho depende da agricultura, mas não
cia ideológica -- vale dizer, às avaliações, memórias e expec- tem acessoà propriedade da terra. Forma-se, assim, no meio
tativas dos po/ícy-makers, ou dos ativistas políticos, de um rural, üm campesinato ou proletariado rural numerosoe ex-
modo geral. Neste caso, a determinação dos fatos políticos
seria imputada, não diretamente aos ''fatos brutos'' da econo-
(5) Boas defesas de uma perspectiva mais esüítamente política podem ser en-
mia (sejam eles de longo ou de curto prazo), mas antes a essas contradas em Santos(1974) e Di Palma(1983).. Di Palma escreve: "other conditions
crenças das elites acerca dos obstáculos que a economia ante- (social, cultural, economia,intemational) are more oftenthan not only wamingsigns
põe (ou dos meios que ela proporciona) ao desenvolvimentoda to which organized politics are caUed(but may faU) to respond"(p. l).
112APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 113
tremamente pobre, muitas vezes concentrado em grandes entre grupos locais de elite, com base na observação, certa-
p/a/zfaffo/zi; no meio urbano, uma estrutura de emprego forte- mente correta, de que eles pouco ou nada diferiam no que diz
menteterciarizada, caracterizada pela expansãodo funciona- respeitoa suas respectivasbases materiais ou a suas ideolo-
lismo público e de serviços diversos, inclusive pessoais, em ní- gias. Ora, essa competição, como ficou sugerido, sempre teve
veis extremamente baixos de produtividade e de renda. Em que fortes efeitos descentralizantes, inibindo a formação de um
pese à eventual dispersão geográfica dessa população, sua ex- partido dominante inteiramente fiel à burocracia estadual e
trema pobreza, suas crenças fatalistas ou mesmo sua religiosi- federal;.e forçando até mesmo os governos militares, no pe
dade tradicional, o controle social não prescinde de um alto ríodo pós-1964, a adotarem uma legislação que acomodava as
grau de monopolização dos meios de violência, seja direta- diferentes facções locais e estaduais dentro do partido gover-
mente pela elite agrária, seja através de um visível conluio nista, atravésdas chamadas t'sublegendas''.'
desta com as forças policiais e militares.' Houve, pois, certo grau de ãabífuação com as práticas
O antagonismo desta configuração com o desenvolvi- eleitoraise partidárias, facilitada pelo progressivocontrole
mento democrático é tão evidente que em geral os analistas se da violência, por sua vez impulsionado pela centralização do
dispensam de examinar as diferentes fases e fatores de sua poder federal a partir da Revolução de 1930.8 É evidente que
transformação, ou a possibilidade de que a representação sub- esse desenvolvimentonão tem sido homogéneo. A região Nor-
jetiva dessesobstáculosna cultura política possa ser também deste continua ainda bastante próxima do tipo ideal, ou sela,
bastante variável. de nossa configuração ''A'', com tudo o que ela contém de
No caso brasileiro, é indispensávelassinalar que o lati- obstáculo à rotinização democrática. Contudo, os estados nor-
fúndio não levou a um monolitismo e/aflora/, nem mesmo no destinos não são países independentes, embora tenham di-
nível local. Ao contrário, a adição de instituiçõeseleitorais mensões semelhantes ou mesmo superiores às dos países da
obviamente ''importadas'' da Europa e dos Estados l.Jnidos é América Central. Se é certo que as oligarquiasnordestinas
que-dispensougradativamente o poder central, desde o Impé- exercem elevado grau de controle sobre os recursos económi-
rio, de intervir em cenários locais já marcados por forte riva- cos e políticos da região, é também evidente que nenhum es-
lidade familística. Essa situação reproduzia-se de,alguma for- tado nordestino se autodetermina no grau em que o faz um
mo ao nível das províncias, o que ajuda a compreender a rei- país independente, mesmo entre os mais débeis. A eventual
vindicação do federalismo que acompanhou a preparação da semelhança de suas estruturas produtivas com as centro-ame-
República, nas últimas décadas do século passado. ricanas não deve portanto fazer-nos esquecer que.o Nordeste é
A discussão desta questão muitas vezes incide no equí- uma região dentro de um país que tem, no conjunto, caracte-
voco de ver como monolíticas essas antigas estruturas de poder rísticas totalmente distintas; e que é continuamente submetido
locais e regionais, e em situar nessa característica os obstácu- a uma dinâmica económica e cultural fortemente urbanizante.
los ao desenvolvimento democrático. O equívoco consiste em bem como a um aparato governamentale a instituiçõesmili-
subestimar a significação, a longo prazo, dessa competição
(7) A instituiçãodas iuó/e8e d©, penniündo a um partido indicar até três
candidatospara um tnesmocargo, nas eleiçõespara prefeito e senador, foi adotada
(6) "0 sistema económico e a estrutura social do Brasil em 1930 -- escreve pela primeira vez através do artigo 92 do CÓdigOEleitoral de 1965. Sobre o problema
Furtado -- não eram muito diversos do que haviam sido no século anterior... Do da repnsentação e]eitora] e suas conexõescom as disputas locais, ver Leal(1948),
ponto de vista do homem comum que nascia e morria dentro de uma grande fazenda, Carvalho(1958), Lamounier e Kiazo(1978), Kinzo(.1980) e Lamounier(1981bj. ''
o único sistema de poder real era o constituído pelos grandes senhores de terras. O (8) Mesmo um fenoroso adversário da democracia representativa rnonhecia.
Estado como organização política nacional tinha escassa significação para a massa da em 1938: "Houve, sem dúvida, uma profunda alteração dos nossos costumes eleito-
população..."(1965, 135). Para uma visão global da formaçãohistórica centro- rais, depoisda Revolução de 1930...(como consequência)do voto secretoe do esta-
americana, ver Casanova(1981). Boas análises da problemática atual podem ser en: belecimento da justiça eleitoral. . .(pelo menos) nos centros populosos mais adianta-
centradas na edição especial dolotima/ oÍlaffn 4meHcan Sfudfes, Cambridge Uni- dos- ." Ver amara/(1938), caps. 5-6. Para uma análisecomparativade processos
versity Press, vo1. 15, parte 2, nov. 1983. eleitoraiscontrolados, não competitivos, ver Hermet ef a/ÍÍ(1978).
114APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 115
taras que transcendem sua área geográfica. A observação é Ihe emprestou Vector Nunes Leal em 1948: uma nova confi-
trivial, mas necessáriase quisermoscompreendercomo e por guração do sistema político, cujo ponto de equilíbrio se esta-
que a formação social nordestina, com tudo o que ela contém beleceriaagora entre um poder privado em decadéhcfae o
de aparentemente explosivo, não se transforma em obstáculo poder público /arfa/ecfdo.'o Não resta dúvida, porém, de que
à democracia representativape/o camíPz#oconÀecldo em sí- ele se transformou num verdadeiro elo conceitual entre a nas-
fzzaçõesserre/#anfes, vale dizer, pela militarização e ideologi- cente sociologia acadêmica, ojomalismo político e os ativistas
zação dírefa das lutas sociais, ou daquelas que entre si travam políticos zzo locanfe à fnrerprefação do comporfamePzlo e/el-
diferentes facções da oligarquia. fora/. As novas práticas eleitoraisdo pós-guerra, com sua ex-
A mencionada habituação com as práticas eleitorais, alias periência pluripartidâria e com a representação proporcional,
crescentemente enquadradas, a partir dos anos 50, em normas eram assim imediatamente enquadradas num quadro inter-
federais homogéneas; o fortalecimento do poder central no to- pretativo que aludia, não tanto às tropelias e truculências que
cante ao controle da violência privada; a rápida urbanização, vez por outra chegavamao noticiário das capitais, mas sim à
também a partir dos anos 50 e a crescente penetração dos moffvaçâo do voto, à natureza intrínseca e necessariamente
meios de comunicação eletrânicos, na década seguinte, tudo clientelista, interesseira e acomodatícia do comportamento
isso produziu uma acentuação especial e em seguida uma ate- partidário e eleitoral. Invertendo perversamentea analise de
nuação na representação subjetiva dos obstáculos engendra- Vector Nunes Leal, que estabelecerabases adequadas para
dos pela configuração ''A". Em vez da descrição, antes direta uma reflexão mais rigorosa, as sobrevivênciasa que nos refe-
e realista, das velhas famílias proprietárias -- usualmente de- rimos, incorporadas à cultura política, ofereciam um quadro
signadas pelo sobrenome do patriarca --, como verdadeiras de referência que começava e terminava no indivíduo: em sua
parentelas militarizadas ou como organizações clínicas que motivaçãoparticularística, em sua incapacidade de guiar-se
orgulhosamente defendiam e governavam suas fazendas e en- por critérios impessoais, ou ideológicos .
genhos, a historiografia dos anos vinte e trinta hesita entre o O argumento desenvolvidonos parágrafos anteriores é
realismo e a metáfora. Fala num poder público cujo caráfer se fugidio, um tanto especulativo, mas prenhe de consequências,
adultera frente à hipertrofia do poder privado; numa estru- caso seja carreto. Quando a conceituação dos obstáculos en-
tura social ainda marcada pelo ''complexo de Antígona'', na
raizados na configuração ''A'' assume a forma de grupos so-
qual a impessoalidade dos partidos não logra afirmar-se sobre ciais concretos -- exércitos privados ou ''esquadrões da mor-
o particularismo dos grupos primários; num organismo social te'' salvadorenhos -- ela aponta para dificuldades graves, mas
que permanece como que invertebrado, dada a pouca nitidez razoavelmente objetivas, em princípio passíveis de remoção
dos interesses que se proletam no domínio extradoméstico. através da ação governamental. Quando, ao contrário, alude
Duas décadas depois, já sob a Constituição liberal de 1946, a sobrevivências culturais, à falsidade da representação polí-
essa transformação se acelera. Os termos que aludiam a gru- tica em virtude da motivação sempre "clientelística'' do voto
pos sociais concretos -- como c/âk, parentelas ou mesmo oli- ou da ''falta de espírito público'' dos candidatos, trata-se tal-
garquias -- caem em definitivo desuso, substituídos por ou- vez de uma dificuldade menos grave, mas certamente dura-
tros, como o termo corone/isco, que situam esses referentes
num plano conceptualmais abrangente.9
Seria exageroimaginar que o termo coronelismotenha (lO) "Concebemos o corone/limo" -- escave Vector Nunes Leal -- "como
adquirido no sensocomum o sentido altamente abstrato que resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma
estrutura económica e social inadequada. .Rrâóé, pois, mera sobrevfvâlcfa do poder
privada, cuja hipertrofia constituiu fenómeno típico de nossa história colonial. É an-
tesumalbrma peculiar de man#êstaçâa do poder privado, ou seja, uma adaptação
em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conse-
(9) Ver Nunes leal, op. cír., e também Holanda (1956), Duarte (1938), Oli- guido coexistir com um regime político de extensa base representativa"(op. cff , p.
veira Vianna (1951). 20; grifos meus).
116 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 117
nativas de interpretação da crise de 1961-1964e, por via de critério de avaliação a continuidade e um crescente enraiza-
consequência, um campo mais promissor para o delineamento mento das instituições democrático-representativas, uma res-
da questão democrática brasileira. Esta reinterpretação dâ posta adequada do sistema político seria forçosamente uma
um peso considerável não só às crenças das elites e dos ativis- mescla de concessão parcial na questão das reformas e de re-
tas políticos, e a fatores institucionais, como a crise partidária composição de um ''centro'' no espectro ideológico. Numa
e parlamentar, mas inclusive a processos propriamente con- primeira interpretação (Furtado, 1965), isto nâo ocorreu so-
junturais, comoa radicalizaçãodas forças de direita assusta- bretudo devido a diferenças de postura e composição entre os
das com o reformismo do presidente João Goulart, a ambigüi- poderes Legislativo e Executivo. Baseado na representação
dade deste quanto à observação das normas constitucionais no proporcional e sobre-representando os estados menos urbani-
tocante a sua própria sucessão, o clima de pressão interna- zados, o Legislativoteria uma composiçãopredominantemen-
cional estimulado pela radicalização da revolução cubana, en- te clientelista e conservadora, e uma postura tendente a vetar
fim o próprio apoio americano aos principais porta-vozes da reformas progressistas. Eleito pelo voto maioritário, o Execu-
campanha contra João Goulart. tivo das grandes cidades e dos estados, e o próprio presidente
No estágioatual das pesquisas,a interpretaçãoda crise da República, seriam forçosamente mais sensíveis às necessi-
de 1961-1964e dos efeitos imediatos do golpe militar pode ser dades e demandas do eleitorado urbano. Numa interpretação
aproximadamente sintetizada nos seguintespontos : mais recentee melhordocumentada,Santos(1974) postula
t) perda de eficácia e wentual inversão da função dos que a virtual imobilidade do sistema político teria suas raízes
moca/zümoi fradlcio/leis de acomodaçâk). O avanço dos pro- numa paralisia decisório izzfernaao poder Legislativo, resul-
cessosde industrialização, urbanização e mobilização certa- tante de uma crise partidária semelhanteà do modelo de ''plu-
mente produziu tais efeitos. As migrações internas, o cliente- ralismo polarizado'' proposto por Sartori(1976). Estas inter-
lismo rural, o próprio populismo urbano perdem sua capaci- pretações são reforçadas pela hipótese da ''escalação ideoló-
dade de amortecer tensões; com a redução do ritmo de cresci- gica'', segundo a qual a resposta à nâo resolução dos pro-
mento, chegam mesmo, como é o caso do populismo urbano, blemas colocados na agenda consistia em articular novos pro-
a inverter sua função, transformando-se em mecanismo de blemas. Aguçavam-se dessa forma a radicalização e o senti-
politização e radicalização;i4 mento difuso de ameaça, e aumentava-se a descrença em que
Zà baba capacidade global de resposta e adaptação do
tais problemas pudessem ser resolüdos dentro do marco ins-
sistemapolítico, no período 1961-]964.Colocando-secomo titucional vigente;
3Õ intewenção militar, sobrevivência tutelada das insti-
(14) A exposição "canónica" desta primeira proposição é provavelmente Mar- tuições representativas e exclusão dos ''setores populares'' . O
fins(1968, cap. 3). Santos(1974, cap. 1) discute as lünitações de tais abordagens, que êxito do golpe militar, apoiado em ampla coalizão empresarial
trabalham com mudanças sociais de longo prazo, na explicação de situações especí- e em significativossetoresda classe média, deslocadecisiva-
ficas de crise política. Sobre o populismo urbano brasileiro, o trabalho pioneiro é o de
Weffort (1978). Ver também lanni(1968), Soares (196S, 1973) e Sampaio (1980). É mente o eixo do sistema político na direção autoritária. Sem
desnecessáriolembrar que o tema do clientelismo tem sido objeto de amplo rwxame chegar de imediato a uma ruptura total com as instituições
nas ciências sociais, destacando-se sua grande generalidade e, portanto, a inconve- legislativas e com o sistema partidário pré-1964, o fato é que o
niência de conceituações que o vejam como correlato estrito do subdesenvolvimentoe
do "atraso" cultural. Não menos importante neste contexto é a teorização de Hirsch- pretorianismo larvar dos anos anteriores converte-se numa
man(1975) acerca de variações no grau de tolerância frente a desigualdades de renda intervenção multar organizada, que imediatamente respalda
durante o processo de desenvolvimento. Hirschman chama a atenção para o fato de um programa unilateral de estabilização económica e uma rá-
que o impacto inicial do desenvolvimento é quase sempre a criação de expectativas
otimistas e de sentimentosde confiança no futuro, aumentando assim o espaço de pida reestruturação da máquina estatal. Como sugere Serra
manobra dos govemantes mesmo na presença de grandes desigualdades ob#eflvas. (1979), o reacionarismo dessa coalizão vitoriosa, a histórica
Sugere, também, que esses efeitos inicialmente positivos tendem a ser mais acentua- debilidade organizacional dos sindicatos e setores populares,
dos em países grandes e mais homogéneosdo ponto de vista étnico e cultural.
ou mesmo"as característicasdo processopolítico nos anos
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 123
122 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
TABELA 2
imediatamente anteriores a 1964'', mais que requisitos econó- TAXAS DE CRESCIMENTO DO PIB REAL E DE INFLAÇÃO DURANTE
OS GOVERNOS GEISEL(197+1978) E FIGUEIREDO {1979...)
micos de carâter geral, é que explicam o arrocho salarial e o
modelo excludente de crescimento económico posto em prá-
tica nos anos seguintes." /azul /pzsl/pzõl /9 l sz81/pzsl 7 /w/l/wpl /9m
Havia, por outro lado, a necessidadeimperativade sus- 11. Da quase "mexicanização" de 1970
tentar o otimismo, no campo económico. A euforia com as à diarquia de 1982
altas taxas de expansão do PNB, virtualmente deificadas no
período Média, para não mencionar a retórica referente a um O início da abe#ura brasileira, no exato momento em
sfafus já bem próximo de grande potência para o Brasil, fo- que se faziam sentir os efeitosdo primeiro ''choque do petró-
ram convenientemente
substituídaspor uma versão mais só- leo'' e, sobretudo, sua continuação até a primeira metade dos
bria. Mas foi, sem dúvida, uma reelaboração cautelosa. Pode- anos 80, convivendo com um agravamento sem precedentes da
se especular que uma inversão mais acentuada das expecta- crise económica e com taxas de inflação superiores a 200 por
tivas produziria forte dissonância não só com a política econó- cento anuais são fatos de grande importância comparativa.
mica, que na prática continuava otimista, mas também com o Mas são principalmente fatos surpreendentes, se tomarmos
objetivo de conter os aparelhos repressivos e de forçar o re- como ponto de referência os diagnósticos elaborados ainda sob
torno das Forças Armadas a um papel mais propriamente o impacto do ''milagre económico" e da era Média. Com efei-
profissional. to, ao completar 10 anos, o regime de 1964jâ correspondia à
Comparando, porém, o governoMédia(1969-1973) com mais longa experiência de governo autoritário jamais vivida
os governosGeisel (1974-1978)e Figueiredo (1979-1984), cons- pelo Brasil independente, caracterizada pela ocupação direta
tatamos à primeira vista uma total inversão daquela hipótese e corporativa do poder pelos militares. A não menos ostensiva
tão cara ao senso comum, a de que a democracia florescena aliança destescom o ramo "internacionalista'' da tecnocracia
prosperidade, enquanto a estagnação favorece os golpes e o económica civil e com interesses empresariais de grande porte,
retrocesso ditatorial. No Brasil, o chamado ''milagre econó- nacionais e estrangeiros, tornava inequívoca a implantação de
mico'' de 1967-1973associou-seà radicalização autoritária do um novo modelo de organização estatal e de crescimento eco-
período Média, ao passo que a ''abertura'' iniciada em 1974 nómico. A exclusão dos sindicatos, das lideranças populistas e
pelo governo Geisel conviveu com dificuldades cada vez mais dos agrupamentos de esquerda não deixava dúvidas quanto à
acentuadas para sustentar o ritmo de crescimento e, desde ruptura com os padrões de competiçãopolítica prevalecentes
1981,jâ no governoFigueiredo, com índices de recessão, in- durante os anos cinqüenta, até a queda de João Goulart em
flação e desemprego industrial sem precedentes no país. Acei- 1964. Recorrendo com frequência a técnicas repressivas as
tar, porém, a inversãocompletaseria incorrer num reducio- mais violentas, esse novo modelo parecia imune a questiona-
nismo não menos tosco. E necessáriolembrar que o sistema mentos baseados na questão dos direitos humanos, a pressões
autoritário implantado em 1964, embora excludente no ter- civisde qualquer.tipo e, por certo, a inquiriçõespor parte de
reno social e conservador em vários aspectos, foi certamente representantes eleitos pela oposição.
dinâmico no tocante à promoção do crescimento e da moder- Nenhuma análise que insistisse nas contradições desse
nização. O chamado ''milagre económico'' acelerou a trans- novo modelo político com eventuais fatores democratizantes
formação sócio-económica e a urbanização, e consequente- engendrados pela estrutura social ou pelas tradições culturais
mente o processo de mobilização social. Se a democracia brasileiras parecia convincente. Ao contrario, se alguma tra-
não floresceu dara#fe essas transformações, não há dúvida dição devesseser invocada, por certo haveria de ser a da colo-
de que elas produziram fortes efeitos democratizantesno nização ibérica, que nos havia legado uma estrutura política
período szzbseqüe#fe, através das eleições, como veremos em de corte centralizador, parasita, patrimonial e cooptativo, an-
seguida. tes que representativo de grupos sociais independentes, ou de
uma tradição liberal e individualista.'P A utilização da estru-
fura corporativa erigida durante os anos 30 e 40 tornava irre- em Portugal e na Grécia, o processo brasileiro caracteriza-se
sistível a tentação de representar esse novo modelo como um por seu caráter totalmente endógeno e pelo seu gradualismo.
retorno, só que modernizado e eficiente, ao velho Estado Novo Mesmo em comparação com a Espanha, cuja redemocratiza-
getulista.n Não sem razão, os diagnósticosdo início dos anos ção foi também um processo político endógeno, isto é, não
70 sugeriam que a contestação, se e quando surgisse, assumi- marcado por derrotas militares graves que afetassem a coesão
ria necessariamente
a forma de um ou uns poucosautores e a credibilidade das Forças Armadas, o caso brasileiro dife-
igualmentemonolíticos, produzidos pela lógica que o capita- rencia-se, digamos assim, por sua longevidade e por seu carâ-
lismoretardado, a dominaçãotecnoburocráticae a engrena- ter ainda inconcluso. Daí, justamente, é que decorre o papel
gem militar punham em marcha. Seria, quem sabe, uma fac- crucial nele desempenhadopelo calendário eleitoral. Crucial,
ção militar nacionalista, uma grave cisão empresarial, ou uma e ao mesmo tempo limitado, o que à primeira vista constitui
deserçãodas camadas médias, quando a redução da taxa de um paradoxo. Explica-se: no Brasil, começandoem 1974, o
crescimentonão mais permitissea acomodação de tantos no- processo eleitoral foi de fato um teste de forças e de legitimi-
vos interesses; talvez um aguerrido movimento formado a par- dade, e não o símbolo e coroamento de um pacto de transição
tir da periferia miserável das grandes concentrações urbanas. já acertado noutras bases entre os atires relevantes. Foi quase
Seja qual for o entendimento que se tenha do processo de o ponto de partida do processo. Os resultados de 1974 sinali-
abertura iniciado em 1973-1974,inclusive no que diz respeito zaram o desejode mudança que se vinha formando no seio da
a sua profundidade e alcance, parece fora de dúvida que ele sociedade, impulsionaram a organização de oposições varia-
contradiz essas hipóteses em vários aspectos fundamentais. das em um partido político (o MDB) e reforçaram a disposi-
Prímefro, a abertura, ou antes, a ''distensão'', não foi deter- ção inicial do governo Geisel de implantar um prometode libe-
minada, no início, por pressõesorganizadasda sociedadeci- ralização controlada, que encontrava resistências nos setores
vil. Segtz/zdo,ela Hão teve origem numa facção militar rebelde, mais intransigentes do regime.
populista ou nacionalista. Ao contrario, seu núcleo era cons- Este processo de aberturape/a vía e/e/fora/ é, como disse,
tituído pela própria cúpula governamentale, em particular, algo singular. Uma análise aprofundada dos fatores que o tor-
pelo próprio general Geisel, um ienfor o#7cer fortemente iden- naram viável deveria começar pelo legado ideológico e insti-
tificado com a organização e a hierarquia militares. Terceiro, tucionalbrasileiro, cujo caráter autoritário tem sido frequen-
a agregação de pressões pela via eleitoral, a partir de 1974, foi tementeressaltado, mas que também abriga importantes com-
a maneira pela qual se formou uma oposição significativa ao ponentes liberais, não sendo concebível, entre nós, a legitima-
sistema dominante. Essa pressão conflitou, certamente, com o ção em termos duradouros de um sistema autoritário, muito
prometodo chamado grupo Geisel, em virtude da contundên- menos de uma autocracia repressiva como a que se configurou
cia dos resultadoseleitoraisde 1974,mas ao mesmotempo na era Média. :: Evitarei, entretanto, um retorno a esta ques-
reforçou-o contra outros setores militares e civis contrários até tão mais ampla -- o chamado fmperafívo e/effora/-- para con-
mesmo a uma liberalização gradual e cautelosa. centrar-me em dois pontos que incidem de maneira mais ime-
Para se compreender adequadamente o alcance destes diata na mecânica das mudanças ocorridas entre 1974 e 1984.
pontos, é convenienteinserir aqui uma rápida comparação Estes dois pontos podem ser expressos nos seguintes termos:
entre o caso brasileiro e outros exemplos conteilnporâneos de 1) a complexidade da estrutura social, o grau de urba-
transição para a democracia. Ao contrario da redemocratiza- nização do país e a importância de sua história político-eleito-
ção ocorrida na Argentina com Alfonsín e hâ cerca de 10 anos ral tornam perfeitamente viável a pressão democratizante pela
g
como medida de poder efetivo, mas sim sugerir a ordem de
grandeza das chances eleitorais da oposição em diversos mo- 0 C»CDl\ q-
mentos do regime p6s-1964, inclusive no momento de maior
repressão, que foi a eleição de 1970.
Verifica-se, com efeito, que a votação da ARENA (PDS)
seguiu uma tendência declinante, desde a formação dos dois
partidos, baixando de aproximadamente50%oem 1966 para
36%o em 1982. Com exceção de 1970, quando foi drastica-
in -+ a) Q l\
iO
h-
de polos francamente competitiva, mesmo em condições extre- D
cn
mamente adversas para a oposição.zz ê
O encolhimento imposto à arena eleitoral e partidária na
fase de maior radicalismo autoritário acha-se estampado em l\ rhF\ Q in
"."'surgESRZ:lmn
vigente estratificação do poder político-institucional. O ponto
ixs de partida é simplesmente que a abertura via eleições foi pos-
sível em grande parte porque as forças político-partidárias
''reativadas'' em 1974estavam na realidade disputando o con-
.anos trole de um poder Legislativo enormemente esvaziado em suas
funções e prerrogativas. Não se pode esquecer que a definição
formal do âmbito de atuação do Congresso Nacional é ainda
1966 44,7 71.2 hoje sensivelmentemais restrita do que a vigente até 1964, a
começar pela inexistência, hoje, de iniciativa legislativa em
matéria económico-financeira. No tocante à eleição de 1974,
primeiro grande marco da distensão, nós sequer precisamos ir
tão longe. Basta lembrar que a vitória da oposição nesse pleito
(ver Tabela 3) se verificou somente na votaçãopara o .Senado,
e que a renovaçãodeste, naqueleano, atingiria somenteum
terço das cadeiras.
Fonte dos dados originais: Safe/for 7}fbuna/Hb/fora/.
E indispensávelfrisar o ponto do parágrafo anterior para
que se compreenda, de um lado, que o mecanismo /arma/ da
nossas Tabelas 3 e 4. O momento de mexida/zízaçâo, se houve representação,ou seja, o processoeleitoral,foi o campo de
algum, teria sido no intervalo de 1970a 1972, quando teori- ação ''distendido'' pelo sistema autoritário, permitindo o cres-
camente o governo poderia capitalizar seus sucessos económi- cimento da oposição; de outro que essa oposição, no início,
cos. a vitóriada ARENA, e a debilidadedo MDB como par- estava na realidade disputando espaços, construindo sua pró-
tido de oposição, derrotado que foi até pelos votos em branco pria organização, visto que se batia, na melhor das hipóteses,
e nulos. Digo teoricamente,tendo em vista a circunstância pelo controlede um Legislativo enfraquecido e sobre o qual
frequentemente notada de que dificilmente os militares brasi- pairavam inclusive os instrumentos /egaü da tutela militar.
leiros aceitariam, naquelas condições, transferir poder real Em outras palavras, o governo conservava nesses pri-
para um partido político --qualquer que fosse ele. Refiro-me meiros anos, através de sua maioria parlamentar e dos poderes
também às percepções então vigentessobre as chances futuras ilimitados que Ihe facultava o Ato Institucional n9 5, um con-
e a atuação dos dois partidos, as quais sugerem que os pró- trole praticamente absoluto sobre a agenda das disputas no
prios militares não se iludiram tanto quanto se pensa sobre campo político-institucional.A importância dos movimentos
estas questões.Mesmo nas eleiçõesde 1966, no primeiro em- da chamada sociedade civil -- movimentos estudantis, religio-
bate dos recém-criados e urra-intimidados ARENA e MDB, sos, de associaçõesprofissionais, finalmente sindicais -- não
ficou patente a debilidade do partido governista nos grandes foi tanto o de forçar o i/zícfo da abertura, mas sim o de ir aoi
cerzfroszzrbanos.No município do Rio de Janeiro, então Es- poucos criando constrangimentosnão formais, porém efica-
tado da Guanabara, o MDB elegeu 15 deputados federais, zes, ao exercício ditatorial do poder. Do ângulo que ora nos
contra 6 da ARENA; no Estado do Rio de Janeiro, ll contra interessa, entretanto, as considerações relevantes são:
10: no Estado de São Paulo, 27 contra 32. 1) que os níveis de poder mais decisivospara a questão
Entre a impossibilidadede uma ''mexicanização''dura- democrática não se achavam realmente em jogo, de 1974 até
doura e o simples imobilismo ditatorial, o governo Geisel op- 1982. Esses níveis são o acesso ao poder Executivo federal,
tou. entretanto, por uma terceira via, que seria a da distensão atravésda disputada Presidênciada República; a orientação
''gradual e segum''. Esta, como sugerimos acima, tinha como da política económica, obviamente dependente do poder Exe
132 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 133
mandatosaté 1982). através da duzido em 1977.
Emenda Constitucional n' 14. de 9
de setembro.
Restabelecimento da eleição d7le-
fa para os governos estaduaisa
partir de 1982 através da Emenda
Constitucional no 15. de 19 de no-
vembro. Extinçãoda figura do se-
nador ó/ón/co (indireto) a partir
de 1986.
m. Notas amais sobre o problema da participação, vidas do regime representativo a uma base social e económica
ou a políarquiaperversa flzadeqz/ada -- os grifos são meus, mas as expressões são dele.
Por estese por outros caminhos, o tema de participação parece
Para Robert Dah], a democraciaé poliárquica.Para Juan inseparável, no Brasil, dessa ênfase no esvaziamento pre-emp-
Linz (1983), a situação que emerge das eleições brasUeiras de ffvo (valha a expressão) dos movimentos sociais pelo Estado;
1982é pelo menos dlárqufca, pois contrapõe o sistema militar- nos enormes recursos que permitem a este uma prática sem li-
burocrâtico ainda dominante a governadores eleitos pelo voto mitesda coerçãoe da cooptação;ou seja, no amorfismoe na
direto e a uma maioria oposicionistana Câmara baixa. Há, debilidade da Sociedade diante do Estado .
portanto, dois princípios contrastantes, duas pretensões de le- Supor que esse padrão básico se haja alterado em decor-
gitimidade e, até certo ponto, duas estruturas de poder. rência da aberfara dos últimos 10 anos seria sem dúvida teme-
Num panorama mais amplo, que ligasse estes aconteci- rário. Há, entretanto, uma mudança significativano entendi-
mentos imediatos aos dados mais profundos da formação his- mento destas questões. Há algumas décadas, a tese do ''amor-
tórica brasileira, poder-se-ia talvez falar de uma po/íarqula fismo'' social fazia-se sempre acompanhar de uma represen-
pen'erga, isto é, uma sociedade que não se deixa enquadrar tação do Estado como uma força coesa, ativa e criadora. Um
numa dominação autoritária monolítica, mas que tampouco pesquisador cuidadoso não teria dificuldade em encontrar re-
possui a tradição de organização política pluralista e indepen- presentaçõesfrancamente antropomórficas, nas quais o Es-
dentedo Estado típica das verdadeiras poliarquias liberais.a tado aparece como nume tutelar, generoso e altruísta. A con-
Realmente, o tema dos efeitosperversos, de instituições centraçãoburocrática, legal e militar do poder a partir de
que produzem comportamentos distintos ou contrários aos vi- 1964,justamente porque atingiu níveisnunca vistos no país e
sados,é uma constantena historiografiabrasileira. Durante nem assim o impediu de mergulhar numa crise económica e
toda a Primeira República, o /eff mof/v dos historiadorese social de vastas proporções, está agora chamando a atenção
publicistas era o descompasso entre o Brasil ''legal'' e o Brasil dos analistas para as fissuras e para os sinais de descontrole
''real''. Ainda em 1949,como vimos, Nunes Leal descreviao que Ihe são inerentes. O próprio coordenador político do go-
coronelismocomo produto da imposição de formas desenho/- vernoGeisel, generalGolberydo Coutoe Salva,fez amplo
uso da metáfora do bzzraconegro, presumivelmentepara re-
ferir-se a um poder infinitamente concentrado, e por isso tor-
(23) Ver Schmitter (1973), Schwartzman (1982) e Góes (1984). Este último nado inútil. Santos (1978a, 123) não resistiu ao termo óa/caní-
sintetiza com propriedade esta linha de análise: "No caso brasileiro, o escasso desen- zação quando se defrontou com o crescenteencastelamento de
volvimento das classes sociais fez pender a balança do poder para a articulação buro- interessesburocráticos no setorprodutivo estatal. Já o ex-mi-
crático-militar que domina o Estado. Os outros grupos sociais são heterogéneos e se
caracterizam por baixa capacidade de intervenção política. Disso resulta intensa de- nistro Meio Franco (1984), numa fórmula mais caseira, disse
bilidade institucional dos partidos políticos e do Parlamento, que seriam os insüu- recentementeque no Brasil atual existepoder, mas não hâ go-
mentos adequados para organizar e exprimir os interesses daqueles setores que, ao verno.
longo da história do país, tiveram papel secundário nas tarefas de construção do
Estado nacional"(pp. 1-2). A leitura do texto de Bergounioux e Grumberg, neste Estas imagens sugerem, no mínimo, que o poder central,
volume, sugere, entretanto, que a França não representa adequadamente o tipo o sistema decisório, enfim o Estado, não pode moldar subs-
oposto: "A constituição de um Estado nitidamente diferenciado da sociedade come- tancialmente o novo süfema parrícÜ)affvo que se vai consti-
çou na Idade Média. O antigo regime monárquico(-.) encontrou na centralização
administrativa o meio apropriado para governar um território extenso e heterogéneo. tuindo no bojo da redemocratização. Ele pode, seH dúvida,
Mas ele teve que batalhar contra a aristocracia e os parlamentos, manter à margem os resisflr a pressõesparticipatórias muito acentuadas, mas não
corpos intermediários, reduzir os particularismos e tender a concentrar as decisões. possui recursosmateriais nem legitimidadeideológicapara
Como mostrou vigorosamenteTocqueville, a revolução continuou, sem o saber, a
obra da Monarquia, e o Império a concluiu... Estas visões da força do Estado frente à impor-lhesuma canalização ou delineaçãoespecífica. Nem o
fraqueza da sociedade permaneceram justamente célebres e inspiraram, em menor.ou Estado, nem os partidos. Será possível, então, adiantar al-
maior grau, todas as reflexões sobre a Fiança' guma coisa acerca desse novo sistema participativo, ou dessas
138 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 139
novas/termas de participação? Colocarei, para concluir, ape- 5) anãodirefa: o quebra-quebra que se verificou em São
nas algumas hipóteses: Paulo em abril de 1983 foi o mais espetacular, mas de forma
1) participação nospartidos e no processo eleitoral: hou- alguma o único exemplo desse tipo de movimento. Ocorrên-
ve um progressivo alargamento da participação eleitoral e, se: cias mais localizadas têm sido frequentesna periferia das
bretudo, do pressuposto de autonomia individual no compor- grandes cidades, e aumentarão, com certeza, caso se mante-
tamento dos eleitores. Em outras palavras, o processo eleitoral nham por muito tempo a crise da autoridade pública e os dados
em seu conjunto passou a operar com níveis de /rzce#eza sufi- básicos do atual quadro económico. A indagação principal, do
cientes para torna-lo legítimo, não obstante as relações de ponto de vista político-institucional e do processo de redemo-
clientela ainda dominantes no interior dos estados mais atra- cratízação, é que impacto terão tais movimentos sobre os par-
sados. Esta afirmação é valida tanto para o período pré-64 tidos de oposição e como afetarão o desempenho dos governa-
quanto para os últimos 10 anos, desde que se entenda que dores eleitos por voto direto em 1982;
aqui não esta em jogo a equidade das leis eleitorais e sim o 6) .A/ovlmenfo s/lúdica/: as variáveis macroeconómicas e
montante agregado de incerteza que resulta de comportamen- macropolíticas apresentaram combinações cruéis para a classe
tos individuais (menos ou mais) autónomos. trabalhadora nos últimos 20 anos. De 1964a 1967, o autori-
2) l:!áeífosda mudalzça czz//zzra/
: a imposição do autorita- tarismo é exercido diretamente para desmantelar o poder polí-
rismo como forma de dominação política não impediu o que tico dos sindicatos, no contextode uma política de estabiliza-
Mannheim chamaria de ''democratização fundamental'', isto ção (Souza e Lamounier, 1981). A retomada do crescimento e
é, a diluição de valores vinculados a marcas de slafzzs. Ao con- o período do ''milagre económico'' ocorreram, portanto, num
trario, estesprocessosde mudança, que se situam na esfera momento em que o peso político dos sindicatos é praticamente
propriamente cultural, foram acelerados pelo padrão de cres- inexistente. A partir de 1974, com a vitória eleitoral da opo-
cimento económicoimposto a partir de 1964, baseado numa sição e o retorno do debate público, e de 1978, com o reapa-
difusão muito mais ampla dos bens de consumo duráveis, no recimento das greves, esse peso político poderia, em tese, tor-
aumento da escala de produção através da concentração oli- nar-se significativo. Mas este, precisamente, é o período em
gopólica, na expansãoe integraçãoem nível nacional dos que se inicia a reversão das expectativasde crescimento, co-
meios de comunicação de massa, da industrialização rápida. meçando com o primeiro choque do petróleo, até chegar à
E assim por diante; situação anual, que é de franca recessão, com altos índices in-
3) a /armação de 'kzzelos '' parfícÜ)arórfos: a democrati- flaciónários e desemprego crescente. Não obstante, o apareci-
zação va/orafíva a que nos referimos na nota anterior parece mento do chamado ''novo sindicalismo'' na região do ABC
refletir-se na formação de gtzefos participatórios: comunida- paulista e nas indústrias de ponta, de um sindicalismo w&ífe-
des parciais inspiradas no assemb/Cismo,ou sela, numa con- co/Zarfreqüentemente
aguerrido(Martins Rodrigues,1979),e
cepção ativista mas freqüentemente ingênua do processo po- sobretudo de um sindicalismo rural em franco desenvolvi-
lítico. É o que se observa em algumas associações profissio- mento são um contrapeso importante à fragilidade que ainda
nais, em alguns sindicatos, na vida universitária e em certas é, sem dúvida, a característica marcante do sindicalismobra-
manifestações ligadas a lideranças religiosas ; sileiro em seu conjunto. Organizado em moldes corporativos e
4) apareclmenfo de Novos rabosde asioclações: referimo- pressionado de fora para dentro por uma elasticíssima oferta
nos aqui sobretudo às Comunidades Eclesiais de Base e às as- de mão-de-obra, não parece seguro que.o movimento sindical
sociações de bairro. As pesquisas disponíveis não resultaram venha a demonstrar força e coesão suficientes para reduzir sua
ainda num bom balanço de seu significado, mas hâ indicações dependênciaem relação à tutela ministerial. Além disso, a
claras de que o potencial político dessas associações tem sido abertura política aparentemente trouxe-lhe novos complica-
superestimadoe de que pelo menos as associaçõesde bairro dores, através da divisão político-partidária das forças de opo-
não são imunes à cooptação clientelística; sição(Taparesde Almeida,1982);
140 APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
Argentina:
manter sua parcela dos recursos e o comando unificado da
política económica trabalha no sentido de evitar qualquer re-
forma tributária de cunho descentralizante. Asfixiados finan-
ceiramente pela recessão, os governosestaduais -- inclusive, é A participação popular
claro, os de oposição -- têm de preocupar-se em primeiro lu-
gar com a defesa de suas respectivasreceitas, deixando em e seus avatares (1880-1943)
segundo plano a discussão dos mecanismos regressivos em que Ricardo Gonzâlez, Leandro H. Gutiérrez.
elas se baseiam e de possíveis experimentas participativos. luar Cartas Korol, Leis Alberto Romeno
Embora a questão da participação Soja habitualmente re- e Hitda Sabato+
conhecida como crucial para o entendimento do desenvolvi-
mento democrático, é raro encontrar na literatura um esforço
de trata-la como um sistema que se molda na interação com o
sistema decisório. A hipótese geral que gostaria de deixar aqui
alinhavada éjustamente esta: que os sistemas decisório e par- I'Na Argentina, o sistema democrático sofreu diversos
ticipativo moldam-se (e se deformam) mutuamente. A análise avatares: alguns avanços e muitos retrocessos. É um fato cor-
da abertura brasileira devera levar em conta, neste sentido, riqueiro que sua análise seja feita a partir do ponto de vista
não s6 a debilidade historicamente sedimentada da sociedade dos grupos dominantes, dos donos do poder, da instituição
civil frente ao Estado, mas também estes dois traços especí- militar, e que os setores populares sejam considerados apenas
ficos do processode abertura: de um lado, o fato de haver-se como força propulsora ou como aquelesque conferem o con-
iniciado pelo caminho eleitoral e sem colocar em xeque os ní- senso de que necessita todo regime estável. É necessário, en-
veis decisórios mais fundamentais; de outro, o evidente declí- tretanto, colocar o problema a partir de uma perspectiva com-
nio da capacidade organizacional e ideológica do sistema au- plementar a esta: a dos próprios setorespopulares -- decidi-
toritário para moldar ou canalizar estas novas formas de par- damenteos mais interessadosem uma democracia autêntica
ticipação. -- em sua capacidade para gerar e alimentar processos demo-
cráticos.
Para os setorespopulares, a democraciaimplica um com-
ponenteessencial: a participação igualitária, que hoje só é
possível nas organizações celulares que funcionam no interior
da sociedade civil. l.Jm regime democrático integral supõe,
além desta, muitas outras condições, e principalmente um sis-
tema de partidos em que os interesses setoriais se integram e Sobre essa sociedade ainda em estado embrionário pro-
se transformam em proletos políticos. Mas estesdevem apoiar- curou intervir um Estado que, se impedia sua participação
se, necessariamente,
nesta rede de organizações
primárias política, tinha necessidade de ordena-la, disciplina-la e pro-
onde se gera a democracia. duzir nela um consensomínimo para sua ação. A ação do
São os duros avatares da democracia na Argentina que Estado sobre a sociedade civil foi intensa e se projetou em vá-
nos levam a refletir acerca destas células iniciais, estes ''ni- rios níveis: na disciplina do trabalho, na ordem policial, no
nhos'' nos quais se realiza a experiênciaprimordial da parti- controle sanitário. A educação pública -- instrumento formi-
cipação igualitária, e onde se refugia e se mantém latente dável -- foi decisiva para a integração dos imigrantes e, tam-
quando o sistema político geral deixa de oferecer -- como bém, para a difusão dos princípios básicos da ordem. A legis-
ocorre com muita freqüência -- a mediação para que a expe- lação sobre o serviço militar obrigatório, concebida no mesmo
riência primária se prometena vida política. Os comentários espírito, completou o processo, em uma etapa em que a ex-
que se seguem, referentes aos setores populares de Buenos Ai- plosão dos primeiros conflitos graves obrigou o Estado a refor-
res entre 1880 e 1943, visam lançar alguma luz sobre questões çar sua função repressiva.
que são muito atuais. Mas simultaneamente, no seio desta sociedade em forma-
ção, na qual a diferenciação não avançara além dos primeiros
graus, foi-seconstituindo uma infinidade de organizaçõesce-
lulares, através das quais aquele conglomerado .embrionário
O período formativo, 1880-1912 foi adquirindo formas definidas. Primeiramente, as diversas
instituições que reuniam as coletividades nacionais, cuja dupla
Por volta de 1880concluiu-se o processo de constituição organização -- pelo lugar de origem e pela zona de residência
do Estado nacional. No calor da crescenteprosperidade eco- nas cidades -- é característicadesta etapa. Em seguida, as
nómica, os diferentessetoresda e/ffe tradicional encerram as sociedades corporativas e de socorro mútuo, freqüentemente
sete longas décadas de luta e se integram em torno de uma ligados com as primeiras. E, em outro plano, as diversas asso-
fórmula política que se exprime no amplo Partido Autonomis- ciações com fins culturais ou recreativos: os clubes, as biblio-
ta Nacional. Simultaneamente conclui-se a organização jurí- tecas populares, os grupos teatrais ou filodramáticos, as es-
dica do Estado, na qual se concedemextensasfaculdadesa colas livres. . .
um poder central forte, capaz de garantir a ordem e a uni- Qual foi a função deste vasto conjunto de instituições no
dade. O sistema político que administrou o Estado, e que di- processo de conformação dos setores populares e, sobretudo,
rigiu a grande transformação da sociedade manteve-se, por no processo de aquisição de sua identidade? Uma de suas ca-
longo tempo, restrito à e//fe tradicionale particularmentea racterísticas foi a amplitude dos fins efetivos -- para além dos
uma oligarquia política que se constituiu em seu seio. declarados --, a pluralidade das funções assumidas, seu en-
Paralelamente, a sociedade se renovava totalmente, no trecruzamento e superposição, e sua relação conflituosa, ca-
ritmo do crescimento agropecuária e da urbanização. Nas racterísticas das sociedades de socorro mútuo e das sociedades
grandes cidades -- particularmente em Buenos Aires e Rosá- de resistência. Havia, sem dúvida, um espaço a ocupar, amplo
rio -- os setorespopulares se constituíram através da integra- e elástico, em grande parte coincidentecom aquele sobre o
ção dos velhos grupos crio/Zos, os emigrados nas décadas ante- qual o Estado avançava: na educação, por exemplo, funcio-
riores, e os novos contingentes europeus. Esta foi uma etapa nou durante muito tempo um sistema informal -- bibliotecas
de formação em todos os níveis: das atividades produtivas, das populares, centros culturais, centros políticos -- cuja real
redes sociais -- que se articularam primeiro nas periferias magnitude é pouco conhecida, mas que representou uma al-
pobres e logo nos bairros -- e das diferentes tradições cultu- ternativa diante do ensino estatal. Mas o traço mais saliente
rais
a destas primeiras organizações celulares é seu carâter espon-
144 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 145
tâneo, que tornou possíveluma participação efetiva e iguali- atravésde uma imprensa própria que foi-setornando cada vez
tária, uma experiência concreta de discussão e gestão, de di- mais importante; as corporações e associações de trabalhado-
vergênciae acordo, em suma, de democraciaembrionária. res, onde predominavam os imigrantes, nas quais a direção
Entre elas, nasceram algumas peculiares, destinadas a anarquista estabelecia um forte vínculo entre a luta sindical e
transcendê-la: as corporações de ofícios, matriz dos sindica- a política. Houve inclusive a participação direta, com passea-
tos. Sabe-se que estes tiveram um auge precoce, se se consi- tas -- no ciclo crítico de 1890-1895-- e, eventualmente, com
dera o quanto era incipiente o desenvolvimentodas classes algumas formas políticas de violência. Para os segmentos
trabalhadoras, assim como sua fragmentação e o peso enorme c/lbaos, sua inclusão nas já constituídas clientelas da política
exercido pelos que realizavam tarefas ocasionais, ou as ''por tradicional representava um primeiro passo no processo de in-
conta própria''. Para o crescimento acelerado destas organi- tegração na vida política.
zações reivindicativas influíram tanto os problemas concretos Mas o que trouxe um avanço substancial para este pro-
-- condição de trabalho, jornada de trabalho, salários, insta- cessopaulatino de politização das camadas populares foi o
bilidade -- como a contribuição dos militantes estrangeiros surgimento de partidos políticos modernos, onde elas encon-
que representava um precoce desenvolvimento ideológico. O traram amplo abrigo, apesar de não serem essespartidos es-
que mais nos interessa nesse caso é o seu próprio funciona- pecificamentepopulares. No caso do radicalismo deve.se no-
mento interno: tamanho reduzido e associação voluntária -- tar que essa participação popular, que veio a ser importante.
na verdade seu núcleo era constituído pelos ativistas -- impli- não se deu nos seus primeiros tempos. O partido radical foi.
cavam um perfeito funcionamento democrático, semelhante por muito tempo -- provavelmenteaté 1905-1910-- um par-
ao que ocorria nas demais organizaçõescelulares. Porém, tido de quadros, dirigido por um setor dissidente da e/ffe tra-
diferentementedestas, estes sindicatos alcançaram rapida- dicional. Por essa época seu desenvolvimentorepresentou um
mente uma forte capacidade de mobilização, que se manifes- substancial aumento da participação que, entretanto, ficou
tou na série de greves -- de caráter nitidamente contestatário restrita aos limites do sistema estabelecido; em particular, de-
-- ao longo da primeira década deste século. Mais do que pois dos anos críticos de 1890-1895,ele entrou em um estado
uma adesão do conjunto dos trabalhadores à ideologia anar- próximo da letargia. Por outro lado, a nítida heterogeneidade
quista -- que era a dominante entre os dirigentes -- observa- de sua composição limitou suas formulações programáticas ao
se aqui, da parte destesúltimos, uma capacidade, tanto para tema do sufrágio e impediu que a participação popular tivesse
captar as reivindicaçõesque então tinham os trabalhadores, um perfil mais definido. No caso do partido socialista essa
quanto para formular as palavras de ordem que possibilita- definiçãoprogramática existiu; pela primeira vez, uma agre-
vam sua mobilização. Deste modo, algumas daquelas organi- miação política oferecia um programa para uma classe ope-
zações celulares da sociedade -- e particularmente as dos tra- rária cuja formaçãoera estimulada. Partido para os trabalha-
balhadores -- começavam a evoluir para organizações mais dores, ele não foi, entretanto, um partido predominantemente
complexas, com funções mais específicas. dos trabalhadores. Sua condução ficou reservada ao núcleo de
Algo similar ocorreu na esfera propriamente política. intelectuaisque o fundou e o grau de participação das corpo-
Nela, a restrição impostapelo Estado imperava plenamente, rações semprefoi, nele, restrita, a tal ponto que a maior parte
reforçada pelo fato de que o grosso dos imigrantes era avesso à delas abandonou o partido em 1905.'Por outro lado, o lento
naturalização, condição necessáriapara uma hipotéticaparti- avanço da naturalização entre os trabalhadores imigrantes ín.
cipação eleitoral. Entretanto, a falta de aquisição da naciona- dica que a pregação do partido em pri)l de uma participação
lidade cívica, de maneira nenhuma excluía totalmente os imi- política eleitoral -- que competia com a tese anarquista de
grantes de uma participação política que se fazia por outros muito maior sucesso -- não obtinha grandes êxitos.
canais: as associações de coletividades, que em certas ocasiões
funcionavam como grupo de opinião ou de pressão, sobretudo
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 147
146 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
da participação democrática. Esta se anuncia, naturalmente, processo de mobilização e participação? A resposta, em geral,
na crescenteparticipação eleitoral. Mas, também, no desen- parece ser afirmativa, mas devemos assinalar certas dúvidas,
volvimentodaquelas seções dos partidos políticos que operam certas zonas obscuras em um desenvolvimento que nunca foi
no nível da sociedade civil, estabelecendo os vínculos entre ela linear. No partido socialista é conhecido o processo de escle-
e a política. Os comitésradicais e socialistasnão apenas re- rose de sua direção e a chamada ''ditadura'' de seus membros
crutaram eleitorespotenciais como ainda difundiram entre fundadores, o que certamente deve ter repercutido na vida
eles a ideologia partidária. interna dos centros de base. Os comitês radicais foram vistos
Não se pode deixar de lado a questão de saber qual foi a mais como prestadores de serviços do que como geradores de
relação entre este partido e os núcleos anteriores que existiam inquietações, e a possibilidade de que estas chegassematé a
na sociedadecivil, um tema que parececrucial para com- uma direção que, até 1925,era substancialmentesimilar à de
preender os alcances desta primeira grande experiência de- 1890,eram escassas.Tendências semelhantespodiam ser de-
mocrática. Em alguns casos, os comités assumiram as funções tectadasem sindicatos, que começavama contar com grupos
dos velhos núcleos culturais ou sociedades de mutuários que dirigentes estáveis e que, como no caso dos ferroviários, foram
substituíram. Em outros, observam-nosinteiramente, confe- decididamentecentralistas e autoritários, porque assim o re-
rindo às suas atividades um carâter político. O clássico guia queriam as próprias condições de trabalho.
(pzzrzfero)foi tambémum prestadorde serviçose o comité Assinalemosum último ponto. Partidos e sindicatostêm,
pôde cumprir as hinções do clube do bairro, ao tempo em que neste período, esferas de influência claramente diferenciadas.
estes clubes não eram controlados por alguns dos grupos polí- A corrente dita ''sindicalista'', dominante nas corporações,
ticos. O centro socialista reuniu grupos com interessescultu- recusa os partidos. Os socialistas não só têm dificuldades para
rais, organizoubibliotecas e cursos. O comitê radical vendeu fincar pé entre os operários como também, no próprio par-
pão barato em época de eleição, etc. tido, os dirigentes de origem corporativa possuem um limita-
Assim, muitas das funções das primeiras organizações díssimo campo de ação. O radicalismo não desenvolveuorgani-
celulares originais foram absorvidas pelos partidos que lhes camente um setor corporativo e suas relações neste domínio
deram uma proüeçãopolítica ou, em outros casos, pelas orga- ocorriam antes na cúpula, com alguns dirigentes ''sindicalis-
nizações sindicais de novo tipo. Entretanto este não foi um fe- tas''. Do ponto de vista dos trabalhadores, isto significou que
nómeno generalizado, tendo havido resistências, lutas e con- suas solidariedades repartiram-se entre dirigentes corporativos
flitos e também reivindicação de apoliticismo. Em outros ca- e políticos, sem que sua adesãopara a ação, em uma esfera
sos, como na educação, foi o avanço do Estado que, sem uma específica, implicasse que devia transladar-se para outra. Pro-
proposta explícita, restringiu o campo destes agrupamentos vavelmente, se tinham que negociar condições de trabalho,
celulares. Por outro lado, a maioria deles mudou substancial- apoiariam os sindicalistas, e se as coisas levassem ao enfrenta-
mente de caráter, acompanhando o processo de diferenciação mento violento, seguiriam os anarquistas; porém, quando se
e de estratificaçãoda sociedade.Assim, as associaçõesde co- tratava de votar, eram por Yrigoyen.
letividades integravam a totalidade dos membros de uma na-
cionalidade que nela procurava benefícios cada vez mais espe-
/
cíficos -- sob a direção dos grupos mais ricos. De horizontais O recuo, 1930-1943
tornaram-se verticais e foram perdendo aquele caráter de ór-
gãos primários da democracia. Ê possível, entretanto, que em A crise de 1930 inaugurou uma etapa caracterizada por
outros setores da sociedade tenham surgido simultaneamente um regime restritivo apoiado na fraude, que entretanto não
outros novos, mas pouco sabemos a respeito. chegoua negar, no plano dos princípios, o sistema democrá-
t
Esta pratica de democraciaprimaria permaneceu nas no- tico. O Estado ampliou suas esferas de ação e negociou direta-
vas organizações -- partidos e sindicatos --, surgidas com o mente com as organizações corporativas dos setores proprietá-
150 ARGENTINA: A .PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 151
rios, privandoassim os partidos de uma de suas principais A questão sobre onde aninhou a democracia nestes anos
funções. Por outro lado, deteriorou progressivamente o apoio é, sem dúvida, complexa e mal conhecida, mas também rica
consensual no conjunto da sociedade, particularmente entre
em sugestões para o nosso presente, também complicado e
alguns setores populares que mudavam rapidamente de fisio- obscuro. A prova da existênciae vigor destes ninhos acha-se
nomia, graças às migrações e à industrialização. nestevertiginosoimpulso da mobilização popular que acom-
A restrição política acarretou um fechamento dos espa- panhou o surgimentodo peronismo, ainda que não se tenha
ços, ganhosna etapa anterior, para a participaçãopopular esgotadonele, e que se manifestou em todos os níveis, desde a
Não obstante, esta ressurgiu, com ímpeto notável, em 1945. E base até a alta política.
pois o caso de se perguntar em que;domínios se conservou,
onde ''aninhou'' nesses anos em que ficou latente.
Dificilmente a resposta se encontrará no âmbito dos par-
tidos políticos tradicionais, que, quase sem exceção, se.ade- Considerações finais
quaram ao regime fraudulento. Separadas por essa exigência Se interrompemos esta análise em 1943 é porque pensa-
prévia e do poder, os comités mal puderam prosseguir no de- mos que a partir desta data mudam substancialmente os da-
senvolvimentode suas funções políticas, nem nas sociais cone-
xas dos básicos da vida política em Buenos Abres e no país. As
Em compensação, os sindicatos aumentaram seu campo camadas populares começam então a ter uma participação de-
cisiva na luta política, que vai além de sua inclusão no pero-
de ação ao longo da década. Revitalizaram-se as organizações nismo governante.
e desenvolveu-seum amplo processo de mobilização, condu-
zido em grande parte por dirigentesdos partidos políticos Esta luta se desenvolveatravésde formas desiguais:a
pressão efetiva do sindicalismo, desde os locais de trabalho até
operários, socialistas e comunistas, que reencontraram nos
sindicatos e na CGT um vasto campo de ação. Junto com as ao mais alto nível político; a ação das unidades básicas (de
cujas múltiplas funções na realidade sabemos pouco) e, sobre-
organizações cresceram os grupos sindicais de base, as comis- tudo, a presença popular na rua, na praça, isto é, a mobili-
sões internas e os novos sindicatos, no ritmo da expansão e zação maciça destinada a apoiar uma alternativa política pro-
diversificação da indústria, e em que pese não ter havido entre posta. Por outro lado, o Estado praticou uma política de mas-
elas e as direçõesuma comunicaçãoconstantee fluida, pelo sas inédita, com emprego abundante dos meios de comunica-
menos nestes núcleos manteve-se e mesmo reativou-se a parti-
ção e com a tentativa de novas.formas de mobilização e en-
cipação igualitária. quadramento. À experiência populista seguiram-se diversas
Porém, o que, de uma só vez, é o mais interessantee o tentativasde autoritarismo multar, cada vez mais aperfeiçoa-
mais desconhecidoé o que ocorreu no resto das organizações
do, através do qual procurou-se penetrar nos lugares mais
que se desenvolviam no seio da sociedade civil. Muitas das que recônditos da sociedadee aniquilar toda forma de expressão
nasceram na etapa anterior desapareceram, burocratizaram-
política das camadas populares.
se ou se esclerosaram. Entretanto surgiram outras, particular- l Porém, não obstante estas mudanças e a crescente com-
mente nos bairros, antigos ou novos, que desde o início do
plexidade de vida política, de seus agentes e das praticas, a
século tinham sido pontos de articulação da nova sociedade e
velha questão da participação democrática permanece inteira.
que provavelmentecontinuariam sendo, à medida que o pro- Foi sobretudo nos períodos de avanço do autoritarismo, du-
cesso das migrações intimas ampliava a periferia de Buenos rante os quais as formas democráticasforam suprimidas dos
Abres. Nestes anos, os clubes de bairros, as sociedades de ''fo-
espaços mais visíveis da sociedade, que alguns destes grupos
mento'' às bibliotecas populares e muitas outras instituições
celularespuderam servir de refúgio para as práticas partici-
deste tipo parecem ter vivido sua época de maior florescimento
+
tes de participação popular. E preciso que agora nos interro- zações celulares, seja nas suas áreas de interesse. Neste caso,
guemosacerca de sua função em-um processo de restauração e tendem naturalmente a acentuar as definições, a estimular a
de reforço democrático como o que vivemos hoje. convergência de opiniões, a polarizar as pessoas em torno de
Certamente, com isto não esgotamoso problema da de- uma proposta unitária, a deixar de lado os matizes e diferen-
mocracia, nem mesmo pode-se afirmar que ele sqa seu ele- ças, a traçar grandes linhas divisórias na sociedadee na polí-
mento principal. O surgimento e consolidação de um sistema tica. Isto é mais visível nas organizações políticas populares,
democrático responde a outros fatores e implica considerar como o radicalismo e sobretudo o peronismo, movimentos que
problemas e circunstâncias muito mais amplos e complexos. rebaixam os limites do partido e enquadram diversas organi-
Mas a participação, em alguns dos níveis da sociedade, é sem zações da própria sociedade. Fazem-no com maior intensi-
dúvida, um desseselementos. Até que ponto esses núcleos, nos dade quando se auto-identificam não com uma parte do povo,
quais, no âmbito da sociedade, constata-se que a participação mas com o próprio povo, negando a própria possibilidadedo
é viável, podem subsistir e integrar-se num processo democrá- pluralismo. Nestes casos, aqueles espaços surgidos no seio da
tico? A resposta não é, de modo algum, óbvia: a experiência sociedade são, ou absorvidos pelas organizações partidárias
indica que frequentemente os períodos de abertura democrá- ou substituídos por outras alternativas, construídas desde o
tica são solidários de um declínio da força que impulsiona a início sob o signo partidário. Neste caso, cabe perguntar quais
existência desses núcleos, que inclusive acabam sendo absor- são as possibilidades de sobreüvência daquela participação
vidos por outras organizações, especificamentepolíticas, ou que, apoiando-seno pluralismo, surgia espontaneamentena
base da sociedade.
marginalizados pela vigência de outras praticas, que enfati-
zam a mobilização, em detrimento do componente participa- A última questão refere-se à vigência deste estilo de par-
tivo ticipação no seio das organizações políticas populares. Em
Uma primeira dúvida surge em torno das relaçõesentre certo sentido, o problema é comum a todos os sistemas demo-
estes grupos celulares da sociedadee o Estado: .Uma das ca- cráticos atuais: como conservar aquela participação que se
racterísticas do nosso sistema político democrático -- ainda produzia naturalmente .no seio das tradicionais democracias
que provavelmente não específica dele -- é o distanciamento burguesas. Nos velhos sistemas políticos restritivos a partici-
entre ãs autoridades e este conjunto de inquietações, desejos, pação não se esgotavanos partidos: produzia-se em diversas
necessidades e reivindicações surgidos dos níveis mais celula- esferas -- dos clubes às sociedades científicas -- nas quais
res da sociedade. Quais são os canais pelos quais estas peque- geravam-se e cristalizavam-se opiniões que os partidos logo
nas iniciativas e impulsos, surgidos da base da sociedade, po- recolhiam. Mas em um regime de democracia plena a partici-
dem achar eco em algum dos níveis de decisão do Estado, pação política igualitária entra em conflito com as desigual-
ainda que sejam os mais baixos? A resposta a essa questão dades que existemna sociedade.Sem contar que a própria
passa, certamente, pela possibilidadede que o Estado demo- participação genera[izadajá é muito difícil por um simp]es
crático encarne e se enraíze na sociedade, encontrando nela, problema instrumental, a partir do qual geram-se praticas
consequentemente, defensores e sustentadores. que, estimulandoa apatia generalizada,transformam o pro-
Uma segunda dúvida diz respeito à forma em que possam blema inicial em oiro de/ozzdo .
coexistir estes grupos que surgem no seio da sociedadee as Em nosso caso, Buenos Abres, deve-se acrescentar uma
organizações políticas populares. A relação entre uns e outros circunstância histórica: as limitações daquele estilo tradicio-
é inevitável.De um lado, a articulaçãodas reivindicaçõesse- nal de participação e exercício da democracia -- tão visíveis
toriais em um prometopolítico implica necessariamente sua na década de 1930ou nos anos posterioresa 1955-- estimu-
realização através dos partidos. De outro lado, as .organiza- laram o desenvolvimentode outro estilo de participação, mais
ções políticas, na medida em que se encarregam destas reivin- apoiadona mobilizaçãomaciça do que nos partidos ou na
dicações, tendem a aduar sela no interior das próprias organi- prática participativacelular, que se instaura na experiência
IS4 ARGENTINA: A PARTICIPAÇÃO POPULAR E SEUS AVATARES
(+) Este ü'abalho foi escrito em meados de 1983 e revisto para esta
publicação no início de 1984.
(++) Jorge Schvarzeré Diretor Geral do CISEA(Buenos Abres). Jorge
F. Sábato é pesquisador titular do CISEA, anualmente Secretário para As-
suntos Especiais do Ministério das Relações Exteriores.
156 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 157
cura de chaves que sirvam, ainda que parcialmente, para des- habitualmente se entende como ''normal'' seja anormal nesse
velar a incógnita. país. Não se trata, é claro, de um jogo engenhoso: no caso de
Optamos, propositadamente,por dar-lhe a forma de um nos confundirmos, as conseqüências podem ser muito graves.
ensaio, apresentando de modo breve e assertivo, não uma ex- Por quê?
plicação, mas algumas idéias para construí-l&.i O ponto de A idéia de normalidade supõe, a rigor, a existência de
partida é simples. Como a realidade argentina recusa inscre- forças intrínsecas a toda a sociedade, e que tendem a estabe-
ver-se em certos modelos, implícita e universalmente, admiti- lecer certas formas típicas de funcionamento. Em nosso caso
dos, ao invés de insistir em acomoda-la dentro destes leitos de trata-se da estabilidade no sistema político e da ordem na eco-
Procusto, procuraremos fazer uma revisão dos pressupostos nomia. Se estas formas são ''normais'' em toda a sociedade,
que os inspiram enquanto observamos, ao mesmo tempo, então podemos pensar que sua procura concitará, por certo,
como aconteceram os fatos. um conjunto poderoso de forças sociais para encontra-las,
Nesta operação iconoclasta concentraremos nossa atenção sqa, por exemplo, através de uma proposta de consolidar um
em dois fenómenos centrais: a instabilidade política e o caos regime democrático de governo que não pretenda mudar a
economico. estrutura do país -- mesmo que tenha a pretensão de reformu-
Quando qualquer um deles -- e sobretudo quando os la em certos aspectos --, seja através de uma proposta revolu-
doisjuntos -- se mantém persistentementeem uma sociedade cionária que procure provocar mudanças estruturais, uma re-
são considerados, seja qual for o enfoque teórico, sintomas de volução social para definir um novo equilíbrio e uma nova
uma situação patológica. Hâ, subjacente, a ideia de que, nes- ordem para o país. Mas se o normal na Argentina é o anormal
sas condições, todos os grupos ou classes sociais perdem, a para nossas concepções subjacentes, a equação de forças será
curto ou longo prazo. Uma sociedadeonde, definitivamente, muito diferente da imaginada, a tarefa de procurar a demo-
ninguém se beneficia e onde, ao mesmo tempo, é difícil ou cracia ou a revolução tornar-se-â muito mais árdua e, sobre-
impossível, para impede-lo, estabelecer as regras do jogo, é tudo, talvez variem substancialmente as estratégias que se po-
vista como uma sociedade doente. dem conceber para alcançar esses objetivos.
É impossívelverificar a validade deste diagnóstico, mes-
mo quando a experiência cotidiana parece confirma-lo a cada
instante. O fato de que esta situação dure há mais de meio A instabilidadepolítica:
século, e de que neste lapso tão prolongado tenham-se tentado
sem êxito as mais diversas soluções -- incluídas, entre outras,
anormalidade ou normalidade
o populismo com Perón, a democracia com lllia, a autocracia na Argentina?
com Ongania -- serve apenas para sustentar a idéia de que
existe na crise profunda no país. Em muitos sentidos isto é Entre 6 de setembro de 1930 e 10 de dezembro de 1983a
indubitável: entretanto, como, apesar de tudo, a Argentina Argentina tevevinte e quatro presidentesda república -- in-
f
continuou existindo e funcionando, convém examinar os crité- cluindo o efémero general Ramson e o transitório sr. Lastiri
rios de normalidade habitualmente utilizados para julgar o dos quais dezesseis foram generais. Nesse ínterim produ-
caso. Talvez possamosconcluir que o que se qualifica como ziram-se seis golpesde Estado vitoriososdas Forças Armadas
''anormal'' seja o normal na Argentina e, inversamente, o que contra governoseleitos -- mal ou bem pouco importa por ora.
Contam-se às dezenas, se não às centenas, as tentativas de
golpes de Estado frustrados, bem como as ''propostas'' cas-
(1) Quase todas as idéias expostas são conclusões obtidas em diversos estudos
e pesquisas realizados pelos autores. razão pela qual na bibliografia limitar-nos-amos
trenses, como presidentes eleitos apenas Justo e Perón pude-
a indicar estas publicações, nas quais os interessados poderão encontrar amplas refe- ram cumprir o período estabelecidopela Constituição e não é
rências bibliográficas. um acaso o fato de que nas duas ocasiõesambos foram mili-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS IS9
158 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO
Uma visão menos imediata desses fenómenos evidencia
tares que haviam exercido anteriormente a liderança no Exér- facetas sugestivas. Em todos os lugares, os setores privilegia-
cito
dos defenderam, por definição, o sfafus que. Na Argentina
A simples consideração destes dados, sobretudo quando conspiraram tradicionalmente contra os governos eleitos. A
os examinarmos -- como ocorre anualmente -- em torno do conjunção dessesdois dados indica que a vigência das regras
fim de um regime militar, sublinha o papel desempenhado institucionais estabelecidas pelos setoresprivilegiados do país
pelas Forças Armadas na desestabilizaçãodo sistema político na Constituição de 1853, e a livre expressão da vontade popu-
argentino. A constatação é carreta, mas cumpre também assi- lar dentro destesmarcos atentam, pelo menos hâ meio século,
nalar que os regimes militares foram igualmente instáveis. O contra os interesses e as orientações de certos grupos minori-
general Uriburu, o primeiro golpista vitorioso, viu-se obrigado tários com poder económico e capacidade de ação política.
a deixar o governo antes do que desejavae de um modo que Isto contrasta com o que ocorre nos países capitalistas de-
não queria. O general Ramson, em 1943, sequer chegou a senvolvidosonde, em linhas gerais, os grupos privilegiados
formar seu governo. O general Ramírez, em 1944, foi substi- aceitam ou procuram manter as regras políticas preexistentes,
tuído por seus camaradas. O general Farrell, em 1945, esteve a
enquanto que as iniciativas de reforma-las são, antes, respos-
ponto de ser expelido, não fosse a mobilização popular de 17
tas às exigênciasdos setorespopulares. Esta particularidade
de outubro a favor de Perón. O general Lonardi foi destituído
levou a inscrever a Argentina entre os países afetados pelo
em 1975 depois de ter chefiado a luta vitoriosa contra Perón. subdesenvolvimento económicoe atraso social, nos quais a
O general Ongania foi derrubado em 1970pelas mesmas For- emergência de projetos populistas, aproveitando os progra-
ças Armadas que produziram o golpe de 1966. Seu sucessor, mas políticosda democracialiberal, tende a ameaçar a posi-
o general Levingston sofreria a mesma sorte em 1971. Para tirar ção dos setores dominantes tradicionais. O que é curioso com
o generalVidela da Presidência, em 1981, a Junta Militar in- relação à Argentina é que ela não tinha nenhuma destas ca-
ventou uma nova fórmula verbal: declarou que ''havia cessado racterísticas quando, em 1930, os grupos privilegiados promo-
em suas funções''.A substituiçãodo generalGaltieri, em veram o primeiro golpe de Estado. Ao contrário, ela se achava
1982, foi mais tradicional: foi obrigado a renunciar. Dos gene- então entre as nações mais prósperas do mundo e havia conse-
rais que ocuparam a Presidência no período anterior a uma guido, sem grandes sobressaltos, abrir socialmente um regime
convocação de eleições, Aramburu e Lanusse tiveram um des- político que vigorava hâ quase sete décadas praticamente sem
tino semelhante ao de Uriburu: em ambos os casos as condi-
quebras. A esta diferença que existiu nas origens acrescen-
ções e, como consequência, os resultados dos comícios foram
tava-se outra mantida ao longo de todo o período: sem menos-
opostos às intenções e desejos que os giravam. Apenas Farrell
assistiu a uma sucessão eleitoral -- a de Perón -- de acordo prezar a importância dos problemas sociais existentesna. Ar-
gentina, não se pode ignorar que sua gravidade foi muito me-
com as preferênciasde seu governo. Desta longa lista resta nor do que nos países subdesenvolvidostípicos. A formação
apenas um exemplo de estabilidade dentro de um regime mili- precoce de uma ampla classe média e a ausência de questões
tar: o general Videla foi o único que cumpriu o período previa-
social-agrárias dominantes (como as que colocam uma popu-
mente definido pelas próprias Forças Armadas entre 1976 e
lação maioritariamente camponesa), fez com que os movi-
1981. Mesmo esta afirmação dâ margem a discussão, mas é mentos populares de massa não assumissem proüetos revolu-
mais interessante constatar que o fenómeno oconido durante cionários. De fato, nenhum dos governoseleitos com vocação
a gestão Videla -- o solitário testemunho da estabilidade mili- popular, nem antes nem depois de 1930,pretendeu explícita
tar -- veio a tomar-se o período dos anos recentes mais abo-
ou implicitamente transformar radicalmente a estrutura capi-
minado pelos próprios militares. A Imoral desta história é talistada sociedadeargentina,indo, no máximo, até a intro-
aquela que anunciamos ao iniciar esse longo registro: a insta- dução de algumas reformas sociais dentro dela. Não se pode,
bilidade política na Argentina também inclui os próprios re- portanto, dizer que os setores dominantes promoveram a ins-
gimes militares qué romperam a continuidade institucional.
lw FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 161
f
tabilidade institucional como uma defesa extrema contra pro- Graças ao golpe de Uriburu, a antiga oligarquia recupe-
postas políticas e sociais que ameaçaram sua existência ou, rou as alavancas do poder e dominou o governo da República
sequer, seus privilégios. entre 1930e 1943. A revolução militar desse ano e o governo
Observando mais de perto o comportamento político dos peronista desalorajaram-na, em grande parte até 1955, mesmo
setoresprivilegiados aparece outro traço interessante: além de que o auge do peronismo, a rigor, se dê entre 1945 -- quando
desestabilizar os govemos eleitos eles também tentaram deses- surge nitidamente como uma opção política diferente -- e
l
tabilizar, em diversosmomentose por vezes com êxitos, go- 1952 -- quando o projeto entra em crise político-económica.
vernos que surgiram em todos e cada um dos regimes milita- A partir de 1955 ela recuperou sua influência nos governos de
res. Essa história começou com o próprio Uriburu em 1931, grupos sociais dominantes, herdeiros, biológica e socialmente,
continuou com Ramirez e Farrell entre 1943e 1945, teve êxito da oligarquiaconquantoadaptados,como era de esperar,
com Lonardi em 1955, com Levingston em 1971 e com Viola às novas condições económicas e sociais do país e do mundo.
em 1981. Desde então, sua influência, ainda que com interrupções, pre-
A primeira conclusão, Óbvia, é a de que estes setores pri- valeceusobre o que pode ter o resto majoritârio dos demais
vilegiados, além de serem incapazes de exercer e controlar os setores argentinos. Para não repetir uma crónica detalhada e
governoseleitos, foram muito menos aptos para estabelecer conhecida, limitar-nos-amos a recordar, a título de índice su-
alianças permanentes e duradouras com os militares que aju- gestivo, o papel desempenhadodurante estes últimos vinte e
davam a derruba-los. Mas desta conclusão surge outra, mais oito anos por quatro pessoas estreitamente ligadas aos grupos
surpreendente: os grupos sociais dominantes prefere'am e esti- t privilegiados:Adalbert Krieger Vasena, Alvará Alsogaray,
mularam sistematicamentea ruptura de qualquer estabili- RobertoAleman eJosé Alfredo Martinez deHoz(filho) .
dade política no país. Os quatro são membros de famílias tradicionais de ampla
Como é possível conciliar este fenómeno com a possibili- atuação no país e desempenharam papéis decisivos na evolu-
dade de manter um sfaltzs qzzono qual se preservea posição ção nacional nas últimas décadas. Sua trajetória em diferentes
privilegiada destes setores? governos, esquematizada no Gráfico 1, pode ser resumida,
Há duas respostas plausíveis para a pergunta: ou os gru- P para efeito de argumentação, nas fórmulas seguintes.
pos dominantes, incapazes de engendrar soluções políticas es- Adalbert Krieger Vasena começousua atuação em fun-
táveis, acharam que as outras soluçõeseram piores para eles ção pública em 1956 e chegou ao cargo de ministro de Econo-
do que a instabilidade permanente, ou a instabilidade política mia em 1957, aos trinta e sete anos de idade. Manteve-se no
não ameaçava realmente a preservação de sua posição privile- cargo até a entrega do governo pela Revolução Libertadora,
giada. quando passou para a atividade privada, nela permanecendo
Em ambos os casos, por um outro motivo -- e, natural- por vários anos. Em janeiro de 1967foi novamente designado
mente, com maiores ou menores prejuízos -- parece evidente ministro de Economia (que agora se via reforçado pela pasta
que a instabilidade política efetiva vem a ser uma forma de do Trabalho), aí permanecendoaté junho de 1969.Ao longo
funcionamento mais normal e mais satisfatória para alguns do }' da década dos setenta atuou como vice-presidente do Banco
que a estabilidade possível, ocorrendo assim uma inversão no Mundial, posto-chave no âmbito financeiro internacional, vol-
emprego habitual dessas nações. Ainda mais surpreendente é tando ao país em 1978. A partir de 1981é diretor da Bolsa de
a conclusão quando se constata como foi-se acentuando o caos Comércio e conselheiro reservado de ministros e funcionários
e a estagnaçãoeconómicada Argentina durante as últimas governamentais. Ao final desse ano surgiu como candidato ao
décadas. Mas antes de examinar este aspecto, vale a pena as- Ministério da Economia antes da designação definitiva de Ro-
sinalar alguns benefícios inegáveis, proporcionados pela insta- berto Aleman.
bilidade política, as posições de certos grupos influentes no Alvaro Alsogaray foi nomeado ministro da Indústria em
:d
âmbito do poder. 1956, aos quarenta e três anos de idade. Em junho de 1959
162 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 163
+
GRÁFICO l
POSIÇÕES EM CARGOS GOVERNAMENTAIS DE auêTBQ . nastroda Economia, permanecendo no cargo até a renúncia
REPRESENTANTES DOS GRUPOS PRIVILEGIADOS NOS ÚLTIMOS do general Galtíeri à Presidência, em junho de 1982.
TRINTAANOS
José Alfredo Martinez de Hoz(filho) iniciou-sena função
pública como ministro da Economia da província de Salta em
1956, aos trinta e um anos de idade. Ocupou vários cargos nos
+ anos seguintes, e ao findar o período de Revolução Liberta-
A. KriogerVawna+
dora era vice-presidente da Junta Nacional de Grãos. Reapa-
rece em função pública como presidente dessa mesma institui-
/'
/
/
os fatos nesses termos, podemos sugerir algumas hipóteses
acerca da lógica do sistema éconõmico e político vigentena
/
5
Assalariados de ''normalidade'', habitualmente aplicadas a um país capi-
/
talista
/
''A.
A lógica do sistema
1. A base económica
A 55 60 65 70 75 80
A primeira vista não parece plausível admitir que uma
Bilhões economia de mercado onde o caos predomina sobre a ordem,
Fontes; 1950-73: Banco Central de la RepúblicaArgentina. a conJetura sobre a previsibilidade, possa ter alguma lógica. O
1974-81: Estimativas da Fundación de Investigaciones para el Desar-
rollo (FIDE). que nos desconcerta diante de tal situação é o hábito de pen-
170 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLITICO.
A integração da economia argentina no mercado mundial (2) Tradicionalmente tem-se postulado que o sistema de produção do tipo
produziu-se graças a um rápido crescimento da produção e da pampa, julgado irracional e por vezes pré-capitalista, deveu-seà existência prévia de
exportaçãode grãos e carnes, tirando partido das vantagens grandes latifundiários graças à repartição inicial de temas lives enfie os membros de
grupos influentes na Argentina do século XIX. Uma série de pesquisas que realiza-
oferecidas pelo pampa amido, uma das grandes planícies tem- mos durante os últimos anos levou-nosa uma conclusão inversa: foi o sistema de
peradas desabitadas do planeta que pede ser explorada du- produção instaurado, plenamentecapitalista e muito racional, que pemiiüu manter e
rante a segunda metade do século XIX. expandir a concentração da propriedade na região dos pampas.
174 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 17S
com alta liquideze a implantaçãoprévia dos empresáriosde não puderam ser removidas por falta de políticas estáveis e
''múltiplas faces'' na indústria facilitou, em um primeiro mo- conseqüentes. O desenvolvimento económico relativamente
mento, a mudança de frente para aproveitar as oportunidades lento começou a converter-se em um dado para a Argentina.
oferecidas a esta atividade por um mercado interno já forma- Uma outra saída seria a vitória decisivade um setorso-
do. Mas as mesmas características do nosso contexto, no qual cial sobre os outros. Os grupos privilegiados tinham capaci-
sucessivamente apareciam vantagens para diferentes ramos da dade económica mas não a força política e social necessária
indústria, demonstrarammais uma vez a conveniênciade para se manter no poder. Os setoresmaioritários necessitam
manter-se uma grande liquidez para deslocar-se de um ramo a da organização e do controle do aparelho do Estado para se
outro, ao invés da especialização e da procura do aumento dos impar, mas sempre foram desalojados dele tão logo iniciaram
ganhos através da realização de investimentos que aumentas- suas experiências.
sem a produtividade do conjunto. O dilema mencionado acabou levando a um novo modelo
A permanência e consolidação do modelo de funciona- de funcionamento da economia argentina. Os setores privile-
mento empresarial, que manifestava a continuidade dentro do giados tentaram diferentes formas de respostas diante das ex
quadro instável gerado pela crise, veio se acrescentar, entre- penências que viviam nas frentes política e económica. À me-
tanto, a aparição de um novo elementoque de fato marcaria a dida que não conseguiam impor sua hegemonia sobre a socie
história posteriorda Argentina: a ação do Estado sobre as dade foram esboçando e desenhando uma tendência a fugir da
condições que demarcam a pratica económica. batalha pela renda através de novas formas de canalização dos
Com efeito, a partir destesanos o Estado começou a de- excedentes.Inaugurou-se então a etapa de abertura ao cir
sempenhar um papel-chave no processo de distribuição de cuito financeiro internacional que continua até hoje.
renda. As necessidades incontornáveis criadas pela carência
de divisas, e a pressão de grandes interesses económicos, leva-
ram-no a controlar, desde o início de 1930, as importações. 3. A abertura ao circuito financeiro
Através de tarifas alfandegárias, o fechamento do mercado internacional(.1960- )
interno impedia a aplicação das estruturas de preços relativos
eln vigência nos mercados mundiais. A variação constante de Ao contrario do anterior surgido em 1929, o novo cicl
preços e de rendas anulava a aplicação de um critério ''histó- não tem um momento de crescimento tão nítido. As mudan
rico'', já que cada participante reclamavasua parte do pro- ças foram-se consolidando de modo gradual e alcançaram su
duto, tomando como base o momento de maior preço relativo forma mais acabada de 1975 em diante. Entretanto, o model
de sua experiência anterior. A consolidação do processo infla- se esboça a partir dos traços desenhados desde hâ vários lus
cionário a partir do pós-guerra não parece alheio a esse fenó- trás
meno, parecendo mesmo ter colaborado para torna-lo mais O aspecto que queremos sublinhar reside em dois ponto
difuso e insolúvel. estreitamente conectados: as características do modelo ante
Este jogo não se pode repetir ad llq#lzífam. A longo pra- rior levaram os empresários a reforçar a prioridade dada a
zo, um lance com tais características só pode encontrar uma controle do dinheiro líquido e à saída de capitais do país. Re
saída atravésdo desenvolvimentodas forças produtivas que correram a essas estratégias a fim de proteger-se dos risco
venha a modificar as possibilidades de a economia atender às criados pelo jogo da renda e encontraram simultaneament
demandas setoriais. Mas o pr6priojogo dificulta essa solução. stratégias poderosos mecanismos para obter e canal
A incerteza dos preços desestimulava os empresários a investir zar a acumulação de lucros fora da esfera de produção.
em ativos fixos industriais de longa maturação. Esgotada a De fato, as intensas variações de renda representavam
etapa ''fácil'' da industrialização substitutiva reapareciam um alto risco para os setores ligados a estruturas produtiva
novamente limitações para seu desenvolvimento posterior, que fixas. Os empresários ligados exclusivamente à produção d
182 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLITICO. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 183
1. A tendência a brecar o crescimento económico mais débil, incerta e insuficiente, fazendo com que a crise se
e szzas conseqzzenczas prolongasse e aprofundasse a um grau incompreensível para o
olhar de uma outra sociedade. Nestas condições não é de ad-
Cessado o impulso externo à expansão da economia ar- mirar que se tenha apelado, cada vez mais, para a violência
gentina e esgotadas as possibilidades de ampliação de fron- como método final para controlar e resolver os conflitos; um
teira agropecuária, a prioridade conferida pelos empresários método, na verdade, incapaz de corrigir as causas originárias
argentinos às atividades comerciais e financeiras sobre as pro- da crise e que torna inviável a aplicação de qualquer outro me-
dutivas tendeu a enfatizar as decisões conjunturais e os lucros canismo que porventura pudesse faze-lo.
rápidos, bem como, a longo prazo, a brecar o crescimento
económico do país. Claro, muitos outros fenómenos colabo-
raram no mesmo sentido, mas o traço destacadoé singular, e
marca, a nosso ver, a especificidade de cada argentino. 2. A homogeneidade da classe dominante
A consequênciafundamental destefato é que deteriora a e a crise da legitimidade política
própria base de legitimidadedo sistema capitalista, base so-
bre a qual os grupos privilegiados podem construir sua hege- Paralelamente ao fenómeno anterior, e nascido da mesma
monia política. Isto porque o intenso desenvolvimentoda ca- origem -- o comportamentopeculiar do empresariado --, a
pacidade produtiva -- e o correspondente incremento do bem- homogeneidade das camadas mais concentradas dos setores
estar geral -- é o fenómeno central a partir do qual se argu- proprietários argentinos daria lugar a certos traços caracterís-
menta para justificar a posição privilegiada de certos setores e ticos do sistema político que se somam aos que acabamos de
a distribuição desigual da renda e dos lucros no sistema. A anotar, ora complementando-os, ora obscurecendo-os.
medida que o crescimento diminui ou é bloqueado, todas as Anotamos acima como o rápido desenvolvimentocapita-
relações de poder no seio da sociedade começam a se alterar e lista produzido no país a partir do último terço do século XIX
os conflitos tornam-se aguçados. abriu espaçopara a formação de uma sociedadeaberta, na
Nesta circunstância a manifestação mais ostensiva é a qual imperava uma pronunciada mobUidade e um alto grau
luta cada vez mais crua pela distribuição da renda, cujo total de autonomia individual. Isto se adequava às exigências pos-
mãl aumenta: todos e cada um dos setorespretendemincre- tas pela expansãoeconómicaque ocorria em um território
mentar sua participação líquida à custa dos demais. A forma praticamente desabitado. Em comparação com os países eu-
mais comum em que se exprime essa batalha são as variações ropeus e à semelhança dos países ''novos'' da época é possível
dos preços relativos, progressivamentemais abruptas e pro- afirmar que socialmentea Argentina era democrática, não
fundas. obstante a existência de um quase monopólio de governo por
Nos países capitalistas avançados a emergência deste tipo parte de um grupo social reduzido durante quase toda esta
de crise estimulou, geralmente, o aparecimento de mecanis- primeira fase. Rapidamente perfilaram-se com força crescente
mos de correção orientados para resolvo-la, não só pelas ten- reivindicações e pressões orientadas para a obtenção de uma
sões políticas que gerava, mas também -- e talvez principal- participaçãopolítica congruentecom a nova composiçãoso-
mente -- porque as flutuações dos preços relativos causavam cial do país. Não sem lutas, algumasbastante árduas, con-
prquízos diretos e graves à maioria dos setores proprietários. seguiu-seimpor finalmente a reivindicação de que os governos
Em compensação, na Argentina, a forma de comportamento fossemeleitos mediante o sufrágio universal e secreto. Tam-
peculiar dos empresários permitia não apenas atenuar os pre- bém contribuiu para isso a similitude entre a evolução social
juízos como inclusive, e frequentemente, transforma-los em que se havia produzido na Argentina e a ocorrida nos Estados
lucros para os grupos dominantes. Por conseguinte a procura Unidos, modelo das nações jovens da época, similitude que
de mecanismos para restabelecer o equilíbrio tornou-se muito incitava a considerar quase natural e inevitável a abertura do
188 FUNCIONAMENTODA ECONOMIAE PODER POLÍTICO. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 189
sistema político. Por isso, uma fiação importante dentro do enquanto se mantivessem as estruturas económicas e sociais
antigo governo elitista achou prudente afrouxar as tensõesque que haviam sido criadas.
se haviam acumulado e aconselhável sancionar uma democra- A resposta histórica a essa situação singular é conhecida:
tização política ampla no país. foi impossível consolidar um regime político legal, único, viá-
Entretanto, sob o acúmulo dos conflitos e de pressões que vel e universalmenteaceito. Houve então uma alternância de
forçavam à distensão e das semelhanças que iluminavam a períodos em que funcionou um sistema democrático amplo de
forma de realiza-la, permaneciamna penumbra diferenças eleição de governos, seguidos por outros nos quais limitavam-
básicas entre os Estados Unidos e a Argentina. A concentra- se as eleições ou os governos eram impostos à força.
ção do poder económico e a unidade multissetorial dos grupos Como dizíamos no início, essa questão vem, em parte,
proprietários dominantes criavam, a nosso ver, condições complementar e em parte ocultar aquela que examinámos no
substancialmentedistintas daquelas que imperavam em ou- momento anterior. Complementar porque na luta distributiva,
tros ''países jovens''. Principalmente porque a ausência de desencadeada pelo lento crescimento econõinico, a confronta-
frações proprietárias com interesses diferentes, e portanto con- ção política entre os grupos privilegiados e os setores popula-
flitantes, dificultava a criação de dois ou mais partidos pluri- res surge claramente à luz: a alternância entre governos livre-
classistasno estilo norte-americano, suscetíveisde canalizar, mente eleitose governos impostos quase sempre se associa os-
cada um, alianças que atravessassema sociedade de cima a tensivamentecom políticas opostas de distribuição de renda.
baixo e nas quais se agrupassem representantesdos estratos
Entretanto, talvez em razão mesmo desta complementa-
mais elevados, ao lado de grupos empresariais menores, mem-
bros das classes médias e porções significativas de operários ção, a oposição entre esse setor dominante -- visto ontem
urbanos e rurais. Inversamente, com a polarização dos confli- como oligarquia e denominado agora de ''pátria financeira''
-- e o povo, toma-se tão notória e deslumbrante que tende a
tos políticos em torno da classe dominante e ainda que esta
pudesse ampliar suas bases de apoio cooptando alguns setores deixar na penumbra as razões mais profundas pelas quais os
empresariaise da classemédia, era-lhe muito difícil, senão setoresprivilegiados argentinos são incapazes de produzir um
crescimento económico satisfatório.
impossível, deixar de ser minoritária em um regime político
presidido pelo sufrágio universal. Acreditamos estar aqui a origem de algumas confusões
Assim, veio à tona o drama da legitimidadedo poder na bastante difundidas na Argentina. Uma delas, por exemplo, é
Argentina. Porque, para sintetizarmos, tornava-se evidente a exagerada importância atribuída à influência de interesses
que a disputa pelo governo ficava encenada em uma encru- estrangeiros-- primeiro inglesese em seguida norte-ameri-
zilhada insolúvel. Se se pretendia manter um regime de demo- canos -- para explicar o atraso do país. De acordo com esse
cracia restrita, no qual a ''oligarquia'' pudesse assumir politi- enfoque, a oligarquia argentina teria sido um agente particu-
camente seu poder económico, engendrava-se uma óbvia, e a larmente servil das grandes potências imperiais que tentavam
longoprazo, incontrolável contradição com a vigência de uma -- e tentam -- por todos os meios impedir que a Argentina
estrutura democrática que, por outro lado, correspondia às cresça. Ainda que dotada de grande força psicológica, essa
necessidades sociais e económicas da Argentina. Mas se se teoria apresenta todos os inconvenientesde outras que tam-
admitia que os governosfossem eleitospelo sufrágio livre.e bém se baseiam em meias-verdades. Não se entende, por
universal da maioria dos cidadãos, as forças políticas que po- exemplo, por que as classes privilegiadas argentinas tiveram
diam representar os interesses dessa oligarquia -- em razão que ser mais c€1payas'K
do que as australianas ou as canadenses,
mesmo da unidade que ela possuía -- ficavam inevitavelmente
em minoria. O quefazia com queo grupo social e económico
mais poderoso do país ficasse excluído do acesso legal ao go- (+) (;ibayo: diz-se, pejorativamente, de um soldado índio a serviço de uma po:
verno. Contradição não menos insuperável do que a anterior tência europeia. Ou, em Cuba, aqueles que serviam no exército espanhol.(N. T.)
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 191
190 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO.
Desde a crise mundial de 1930e durante as duas décadas
ou por que os Estados Unidos puderam estar menos interes-
sados em brecar o desenvolvimentoindustrial do Japão, Co- seguintes, a ação do Estado e o uso de seu poder adquiriram
réia, Taiwan, México, Brasil, etc., do que preocupadosem traços novosem relação à história anterior do país.
impedir o da Argentina. Em primeiro lugar, comojâ assinalamos nas pp 170 e ss.
verificou-se que através do Estado podiam-se fixar condições
Outra confusão habitual consisteem considerar que a
concentração económica nas mãos de um grupo relativamente de funcionamentoda economia(tipos de câmbio, preços, etc.)
pequeno-- no campo, na indústria, no comércio e no banco que modificavam a distribuição da renda entre diferentes se-
-- provoca por si só uma tendência a brecar o desenvolvimento tores produtivos e, correlativamente, entre os distintos grupos
e classes sociais existentes no país.
económico e a manter o atraso político e social. Entretanto,
existempaíses, como por exemploa Suécia, em que uma alta Logo se comprovou, como também vimos, que esse poder
concentração da propriedade não se tomou incompatível com podia ser dirigido tanto a favor como contra os interessesdos
um apreciável desenvolvimento económico, um grande pro- grupos privilegiados. Por conseguinte, a posse do governo, o
gresso social e uma sólida democracia política. controledo aparelho de decisãoestatal, capaz de distribuir
A nosso ver, a influência dos interesses estrangeiros tor- prebendas e cumprir punições, passou a constituir uma ques-
nou-se particularmente perniciosa porque os empresários ar- tão política essencial, não tanto em termos gerais mas em re-
gentinos desenvolveram o comportamento peculiar que des- lação aos lucros ou perdas experimentados imediatamente.
crevemos, e não o contrário. Foi o que tentamos sugerir, por O papel central que assim passou a ocupar o Estado na
exemplo, mostrando a pressão que exerceram para abrir a Ar- vida económica, social e política argentina, unido à destrui-
gentina ao sistema financeiro internacional, privilegiando a ção das instituições que ditavam as normas e asseguravamo
possibilidade de colocar os excedenteslíquidos acumulados no controle do aparelho estatal por parte da sociedade civil, ou-
país de preferência a dar efetivo estímulo a investimentos de torgou aos funcionários estatais uma crescente autonomia po-
capital produtivo (cf. uf szzpra, p. 172). Da mesma forma, a lítica, em particular, às Forças Armadas, cuja intervenção
concentração económica que aqui existe não é uma causa, servia para destituir e ocupar governos .
mas um efeito do tipo de funcionamento dos empresários ar- Deste modo foi-se perfilando no cenário político argen-
gentinos, e seu caráter nocivo reside em que multiplica e aguça tino, progressivamente, um novo ator que começaria a acu-
as conseqüências económicas e políticas de tais comporta- mular poder próprio. Para além da ambigüidade originada na
mentos. própria natureza das Forças Armadas e para além da pertur-
Desde que colocamos nesta perspectiva, torna-se com- bação que introduziram no sistema institucional argentino,
preensível a importância do aspecto seguinte que queremos interessa-nosaqui assinalar alguns aspectos da relação que se
criou entre elas e os setoresdominantes.
examinar: a manipulação do poder do Estado.
Antes de mais nada é preciso sublinhar a ambiguidade a
que ficou submetida a oligarquia em relação aos militares. De
3. A manipulação do poder do Estado um lado, era-lhe indispensávelcontar com eles para destituir
governos eleitos em que não tinha assento. Mas ao mesmo
Não é esteo lugar para analisar a natureza e o papel do tempo esse apelo deu nascimento e consolidou -- ao repetir-se
Estado nas sociedades modernas, nem sequer no âmbito mais -- uma nova personagem política que iria definindo interesses
preciso e restrito da Argentina. Queremos apenas assinalar próprios e oportunidades opostas aos da classe dominante.
como alguns aspectosque surgem da análise anterior influi: Com efeito, à medida que as Forças Armadas começaram
ram sobre o papel desempenhadopelo Estado argentino e a exercer poder político não puderam ficar alheias aos proble-
quais foram suas conseqüências sobre o sistema político. mas que se colocavam a esse poder na Argentina, a começar,
naturalmente, por aqueles gerados pelo lento crescimento eco-
192 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 193
nâmico. Se os grupos privilegiados não eram capazes -- como reversão de alianças operada pelos militares junto aos setores
não foram -- de responder à questão, os militares viam-se populares tornou-o desnecessário.
obrigados a fazê-lopor sua conta e risco, tanto para justificar A instabUidade política crónica da Argentina, que afeta
sua intervençãono governo, como -- sobretudo -- para per- igualmente governos eleitos como impostos à força, parece as-
manecer no exercício do poder. E procura-la-iam no único sim bem compreensível.O resultado se assemelhada, nota-
lugar onde podiam agir, quer dizer, na esfera do Estado. velmente, a um eterno retorno, não fora a existência inapa-
rente de outra dinâmica mais profunda e dramática. Passe-
Não é, então, de admirar que as Forças Armadas tenham mos então para a última questão que completa nosso quadro.
impulsionado a intervenção do Estado na economia, extrapo-
lando de suas funções reguladoras e assumindo uma partici-
pação na produção de bens e serviços. Ao faze-lo entravam em
4. A tendência a destruir asformas
contradição com a oligarquia, tanto por competirem na distri-
buição da renda nacional e dos excedentesgerados, quanto de organização social
por introduzirem nessa disputa um agente económico dotado
de atribuições especiais e privilegiadas para dirími-la. Na Argentina, o caos económicoproduzido pela instabi-
lidade política prejudica -- a curto ou longo prazo -- a todos,
Assim foram-se acumulando contradições que, ao fim e
menos à classe dominante, precisamente por causa de sua for-
ao cabo, acabaram por determinar uma oposição sistemática
ma peculiar de comportamento empresarial, que Ihe permite
dos grupos privilegiados aos regimes militares, juntamente auferir lucro nesse tipo de situação.
com uma conspiração contra sua estabilidade. Entretanto, Esta é uma vantagem fundamental que imprime uma
essa oposição acarretava, inevitavelmente, que os regimes mi- orientação definida ao processo político, independentemente
litares procurassem formar uma aliança com os setores popu- dos projetos e intenções explícitos dos agentes sociais partici-
lares, ou convocassem eleições para designar um novo gover- pantes - - incluída aí a própria classe dominante --. Sendo
no, e, em ambos os casos, aqueles grupos ficavam excluídos. este o único setor que não sofre prejuízos, a perspectiva do
O curioso é que esta dinâmica também encerrava as For- caos económico não só não obriga a mudar de comportamento
ças Armadas em um dilema insolúvel que as impedia de man- -- reforça-o mesmo -- como ainda outorga-lhe graus de liber-
ter-se no governo. Perdiam-no tão logo convocavamas elei- dade de que os outros carecem e, como se não bastasse, dimi-
ções, mas também, decididamente, o mesmo ocorria quando nuem
e
tentavam uma aliança com os setores populares. Porque, nes- Em virtude desta assimetria, a classe dominante vai ga-
te último caso, o monopólio da força física que os militares nhando poder ao longo do tempo e da desordem. Primeira-
detinham deixava de ser imprescindível para exercer o go- mente porque a instabilidade política e a exacerbação dos
verno e com isto seu controle passava, cada vez mais, para a conflitos começaram por romper com as regras institucionali-
organização política dos setores populares. A esse respeito a zadas dojogo político e acabaram por pulverizar em sua tota-
experiência peronista foi para as Forças Armadas tão instru- lidade o tecido das organizaçõessociaisque, direta ou indire-
tiva quanto traumática: a controvertida liderança de Perón tamente, intervêm na disputa pelo poder e estruturam o corpo
dentro do Exército foi suficientepara assumir a liderança de social. A destruição é muito visível no caso das instituiçõese
um grande movimentopopular que, por sua vez, ele utilizou formas republicanas de governo -- a organização e desempe-
para revertê-lo em uma forma de controle político pessoal so- nho do poder Executivo, o desaparecimento do Parlamento,
bre as Forças Armadas. a degradação do poder Judiciário --; menos ostensiva nos par-
Em outros termos: a oligarquia, que reiteradamente pro- tidos políticos e nos sindicatos, e quase imperceptível no con-
moveu a intervenção política dos militares, sempre acabou por junto de associações de todo tipo que organizam a vida de cor-
tornar-lhes impossível o exercício do governo, enquanto que a porações profissionais, locais de trabalho e núcleos populacio-
194 FUNCIONAMENTO DA ECONOMIA E PODER POLITICO. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 195
O sistemajurídico
argentino diante
das seqüelas do ''processo
de reorganização nacional''
Enrique1. Groisman+
Não se deveesquecerque foi apenas quando tudo isto gentina), mas a resposta é que a maioria destas leis o eram
estava alterado, perturbado ou modificado que o governo mi- apenas pelo título, carecendo dos caracteres clássicos de gene-
litar começou a falar de democratização(entendendo com isto ralidade, previsibilidade e racionalidade, para não falar de
apenas a convocação de eleição), como se nada tivesse ocor- sua função de garantia diante da arbitrariedade.
rido durante essesanos em relação às garantias individuais, os Dir-se-ia que a concepção básica do ''processo'' consistiu
modos de exercício do poder e o papel do Estado. Ao mesmo em imaginar o poder como uma força sem limites, nem jurídi-
tempo será preciso lembrar que não se trata hoje de recuperar cos nem nos fatos, sem se deter sequer diante dos textos cons-
uma hipotética situação ideal de plena vigência da democra- titucionais, que ele reformou ao seu arbítrio em várias oca-
cia, mas de construir uma sociedadena qual esteregime possa siões, mesmo quando, para a consecução dos fins perseguidos,
ser sólido e efetivo. isto fosse desnecessário.
O Estado argentino foi submetido a uma espécie de esva- Apesar destas alterações da Constituição, o ''Processo''
ziamento deliberado; o aparelho repressivo foi hipertrofiado, esqueceu-sede modificar o seu artigo 32, que regulamenta o
mas ao mesmo tempo foram desmantelados os organismos de procedimentode reforma. Por esta razão, todas as ''atas esta-
controle, de inspeção e de arrecadação. Não há dados precisos tuárias'' posterioresà edição do Estatuto violam a própria
sobre temas essenciais; um bom exemplo disto é a dívida ex- normatividade do regime. Este parece ser um problema for-
terna -- a capacidade de gestão está seriamente afetada e se mal, ma=elucida um modo de concebero poder.
descuidou da formação de administradores públicos. Os fun- No mesmo sentido, a Junta Militar editou vinte e duas
cionários, submetidos durante anos à instabilidade e ao risco leis -- as que levam os números 21.257 a 21.278 -- sem seguir
da demissão arbitrária, foram compelidos a tarefas rotineiras o procedimento que ela mesma acabava de estabelecercriando
a comissão de assessoria legislativa.
e habituados a declinar de qualquer iniciativa e a se refugiar
no anonimato que facilita a sobrevivência. Exerceu também funções judiciais -- não obstante ter
mantido formalmente a independência do poder Judiciário --
l)urante quase oito anos, o ideal do regime com relação
ao Direito foi marginaliza-lo, relega-lo ao papel de legitimados através da aplicação do ''ato para considerar a conduta de
formal, a uma função instrumental que permitisse governar pessoas responsáveis por ocasionar prejuízos aos interesses su-
Oas que não fixasse limites nem condicionamentos ao exercí- periores da nação
cio do poder. A Junta utilizou as formas jurídicas de modo caótico: di-
Um exemplo eloqüente dessa atitude é a chamada ''lei de tou instruções,normas, resoluções,leis, decretos, atas esta-
pacificação nacional'', mediante a qual se pretendeu anistiar tuârias, modificações da Constituição e sanções, sem que o
os delitos cometidos pelos agentes da ditadura. Lei essa que conteúdo destes ates tivesse relação com sua hierarquia nor-
não foi editada durante o apogeu do poder, mas em seu ocaso: mativa.
antes, bastou a convicção da impunidade, a sensação da força, Utilizou indistintamente a mesma forma para atos de
a crença na eternidade do regime, a onipotência. Outro exem- substância diferente e formas distintas para fitos similares.
plo: a lei //zextremis que autorizou a censura da correspon- Editou resoluções em matéria própria de decretos, como a ny
dência, das comunicações telefónicase dos papéis privados, 15, que designa os integrantes de uma comissão. Reformou a
bem como a invasão de domicílio sem ordem judicial. Poucos Constituição, quando bastaria editar uma lei, ao introduzir a
anos antes, os próprios governantesdo ''processo'' teriam rido censura à informação por motivos de segurança durante a
à menção da necessidade de uma lei que autorizasse tais ates, guerra das Malvinas, ou ao editar um estatutopara ''analisar
que, de fato, foram executados sem nenhum limite . e avaliar as responsabilidades daqueles que integraram a Jun-
ta Militar e o poder Executivo nacional, no que toca à con-
Poder-se-ia objetar à descrição acima lembrando-se que o
''processo'' editou mais de mil e quinhentas leis (mais do que dução política e estratégico-militar do conflito bélico do Atlân-
qualquer governo,de/acto ou de /ure, em toda a história ar- tico sul''. (Para maior detalhe, ver Groisman, 1983.)
200 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQÜELAS
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 201
preferida pelo ''Processo'' não só em matéria administrativa e uma taxa de reajuste que serviu de base para múltiplas obri-
como também penal. gações. Repentinamente modificou-se o sistema, criando-se
Assim, a lei 21.259 facultou ao poder Executivo expulsar um caos nas relações contratuais e operando-se transferências
estrangeiros-- mesmo com visto de residência -- nos casos de rendas, empobrecimentos e enriquecimentos especulativos
em que eles, pelo critério destepoder, é claro, realizassem e, por fim, uma diminuição do direito de propriedade de mui-
''atividades que afetem a paz social, a segurança nacional e a tos em benefício de poucos.
ordem pública". O artigo 2o dessa lei dispôs que a expulsão Em consequência da política oficial, a moeda deixou de
seria decretada pelo poder Executivo, sendo sua decisão ine- constituir uma referênciavalida para se comparar o valor dos
corrível. Consagrou-se assim uma pena semjulgamento prévio bens, o sistema de preços ficou destruído e o Estado perdeu na
e sem controle judicial. pratica a atribuição constitucional que Ihe outorga o artigo
Em matéria de leis penais existiu no ''Processo'' a mesma 679, inciso 10, da Constituição nacional.
tendênciaa criar figuras ambíguas,cuja imprecisãoe ampli- As mudanças legislativas, mais frequentes do que em ne-
tude permitissem enquadrar quase qualquer conduta que o nhum momento da história do país, agravaram a insegurança:
julgador quisessecastigar. Assim, a lei 21.264 reprime com a lei de entidadesfinanceiras, por exemplo, foi modificada
reclusão de até dez anos aquele que ''publicamente, por qual- três vezes e a de transferência de tecnologia, duas. Por outro
quer meio, incitar à violênciacoletiva,e/ou alterar a ordem lado, e haja vista que os debates na comissão de assessoria
pública''. O julgamento deste delito foi atribuído aos tribu- legislativa eram secretos e as leis editadas sem exposição de
nais militares, que, além do procedimento sumaríssimo que motivos, as razões destas mudanças e contradições permane-
aplicam e da severidade que lhes é congénita, são tribunais ceram ignoradas.
''de consciência", ou seja, ''não é obrigatório para o tribunal As práticas viciadas dos órgãos superiores do Estado de-
castrense dar as razões pelas quais estima assim determinadas ram o exemploe suscitaram a imitação da parte dos inferio-
pxawag'ÇFallos de la Corte Suprema de Justicia de la Nación , res. Cada funcionário pede acreditar-selegislador e juiz, am-
tomo 272, p. 99). parado na impunidade que consistia em reivindicar para o
A lei 21.258 agregou ao Código de Justiça Militar um ''Processo'' toda a autoridade. Até mesmo em matéria admi-
artigo segundo o qual é possível impor como acessória à pena nistrativa deu-se este fenómeno, que explica como a munici-
de reclusãoou de prisão, a de cessaçãoabsolutaperpétua palidade da cidade de Buenos Abres pede chegar ao absurdo
''quando seus autores revelem uma posição genérica de rebel- de sustentar que suas atribuições para declarar a disponibili-
dia ao cumprimento dos deveres inerentes à nacionalidade'' dade de seus funcionários baseavam-seem ''poderes milita-
Assim, não secastiga um fato, mas uma ''posição'' que os juí- res'' independentesde outras regras que não as ditadas pela
zes militares, sem necessidadede ministrar provas preciosas, necessidade . . .
hão de considerar ou não enquadrada na figura tão vagamente O estiloautoritáriofoi transportadoinclusivepara a ati-
definida. De lei penal, esta norma não tem mais que o aspecto vidade comercial e industrial do Estado, fazendo preponderar
formal: equivalea um texto que dissessealgo assim como: os critérios de lucro sobre os de serviço. Os institutos de pre-
''poder-se-á aplicar a pena acessória de cassação absoluta per- vidência -- não se sabe se como recurso para recolher fundos
pétua... quando os tribunais militares considerarem apro- ou como resultado de uma desordem inadmissível -- obriga-
priado'' ram sistematicamente seus afinados a pagar qualquer presta-
A insegurança jurídica resultante desta forma de legislar ção de que não tivessem conservado o recibo, ignorando até
estendeu-sea outras matérias, como a referenteaos direitos mesmo os prazos de prescrição, demonstrando carecer de se-
patrimoniais, afetando a previsibilidade inerente ao sistema. gurança própria ou prescindir dela de modo deliberado.
É eloquenteo que ocorreu com o tratamento dado aos Uma organização administrativa com linhas hierárquicas
títulos da dívida pública: primeiro fixou-se um preço para eles duplas ou até triplas, um sistema de competênciasindefinidas
206 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SKQÜELAS. COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 207
e atribuições discricionárias, o ocultamento dos ates do poder, responder a uma dupla linha hierárquica: por um lado, aquela
e o exemploda anarquia à testa dele.mesmo, acabaram por correspondente à sua função, e, por outro, a inerente à sua
desembocar num sistema que se poderia chamar de ''autorita- patentemilitar. Até mesmoo presidente,que a partir da re-
rismo descentralizado''.Esse sistema, baseando-seno princí- forma do Estatuto operada a 21 de novembrode 1978passou
pio de responsabilidade, cria a sensação de impunidade em a ser um oficial superior reformado, dependeuhierarquica-
cada funcionário público, incita à corrupção e é incapaz de mente de seu respectivo comandante. Este modelo de organi-
controla-la quando não a fomenta. Reúnem-se assim as inde- zação política chegou à sua expressão mais absurda quando o
sejáveis qualidades de um máximo de repressão com um mí- comandante-em-chefe do Exército designou, por sua única
nimo de controle do poder sobre seus próprios ates. vontade, o presidente Bignone, o qual, dessa forma, se viu na
Ê difícil conceber um poder baseado em tais pressupos- situação de atuar com uma autoridade de empréstimo.
tos, mesmo em se tratando de um sistema autoritário. A falta O governo dos estados também foi afetado por essa disso-
de consenso o obriga neste caso a reprimir até chegar ao ter- ciação da hierarquia, porque ainda que a designaçãodos go-
ror, que nunca foi um apoio sólido por muito tempo; requer, vernadores coubesse ao presidente, eles estavam submetidos
por outro lado, doses cada vez maiores de repressão à medida às instruçõesda Junta Militar (artigo 12o do Estatuto). Poste-
que diminui a obediência, aproximando-se de um ponto fron- riormente suprimiu-se essa incongruência mas criou-se uma
teiriço à decomposição. nova: a Junta assumiu a atribuição de nomear os governado-
E por fim a decomposiçãochegoupara o ''Processo'', e a res, mas deu ao presidente a de demita-los.
tal ponto que apenas a convocação de eleições pareceu sustá- Desde o início, o ''Processo'' pâs em prática a duplicação
la. Mas chegou depois de ter deteriorado a autoridade presi- das linhas hierárquicas, jâ que um de seus primeiros atos foi
dencial, de ter convertido as Forças Armadas em facções pra- designar delegados seus para os órgãos, que, entretanto, de-
ticamenteautónomas, de ter adoecido o corpo social com os pendiam do presidente como o encarregado da administração
germes de dissociaçãoimplícitos em todo poder arbitrário. geral do país.
Pela via do autoritarismo, o ''Processo'' perdeu autoridade e Os inconvenientes deste sistema manifestaram-se desde o
levouo país à beira da anarquia. Não é pouco para aqueles início de seu funcionamento, mas o governo militar -- sabe-se
que se sentiram chamados para salvar a nação do caos, nem lâ que estranhas razões o levaram permanentemente a perse-
para aquelesque devemter na ordem a própria razão da sua verar em seus erros e a aprofunda-los -- acentuou suas falhas.
existência. Ao reformar o Estatuto a 21 de novembro de 1978, diminuiu
A pretensão de institucionalizar o golpe militar levou a mais ainda as atribuições presidenciais: privou o presidente
uma repartição do poder entre as três forças: Exército, Mari- da atribuição de designar os juízes, embaixadores e governa-
nha e Aeronáutica. Por isso, o ''Estatuto'' retirou do presi- dores, impondo-se-lhe para tanto ''requerer o acordo da Junta
dente o carâter de chefe supremo da nação que Ihe confere o Militar'
artigo 86, incisa lo, da Constituição, ainda que tenha deixado A deterioração da organização hierárquica e da unidade
a seu encargo ''a administração geral do país". nos critérios políticos não surgiu tanto do definhamento da
A administraçãopública ficou, assim, com uma chefia autoridadepresidencial, quanto do fato de que a capacidade
hierárquica que não era na realidade o mais alto escalão. Ain- de decisão foi confiada a uma Junta constituída por represen-
da que os recursos formais não chegassem à Junta, as vias in- tantes de forças praticamente autónomas.
formais, os pedidos de audiência, as petições, as súplicas efe- Os comandantes eram designados dentro de cada arma, e
tuavam-se diante dela, e diante de cada comandante-em- eram eles quem decidiam as promoções dos oficiais superio-
chefe, deteriorando não apenas a organização administrativa res. O presidente -- que deixou de ser o comandante-em-chefe
mas o próprio prestígiodo poder. das Forças Armadas -- só tinha a atribuição de ''convalidar'.'
Os militares designados para os cargos civis tiveram que essas promoções (Estatuto, artigo 4', frzá'ne) de modo que
208 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQUELAS COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 209
cada comandante podia determinar aqueles que viriam a estar nos formalmente. O insólito é que se tratou de uma anarquia
em condições de substituí-lo. ''de direito'' (valha o paradoxo numa situação paradoxal por
A autonomia de cada arma chegou a tal ponto que a lei excelência)porque o poder político ficou nas mãos das três
21.256 (artigo 3. 1), ao estabelecer a integração da comissão de forças, que se consideravam autónomas e, ainda que reconhe-
assessoria legislativa, dispôs que seus integrantes ficariam no cessema uma delas a atribuição de designar e demitir o pre-
cargo ''de acordo com o que cada arma resolvesse'' sidente, reservavam-se uma cota de poder e um veto virtual.
Esta comissão teve, indubitavelmente, características ori- Esta circunstância, realmente original, ofereceu à ciência po-
ginais: por estar composta de três representantesde cada lítica, à sociologiae à história o caso de um governode /acto
arma, ingeriu-seque teria funções deliberativas; entretanto, em dentro de um regimede/acto.
caso de votação, o membro mais antigo assumia ''a represen- A passagem de uma situação como a descrita para um
tação de sua força'' (t.o lei 21.256, parágrafo 3.5.2.1.), o que, regime constitucional leva a pensar nas coisas que vão mudar,
além de evidenciar a existência de mandatos rígidos, excluiu a no que vai ser diferente. Durante um certo tempo, fatalmente,
ideia de debate e a possibilidade de convencer os outros mem- deveremosconviver com as seqüelas do ''Processo'' nos usos e
bros do corpo. Além disso, suas sessõesforam secretas, de costumes, no sistema jurídico e na administração pública.
modo que ficou remota a possibilidade de que o complicado O regime militar não se preocupou em demasia com o
procedimento de elaboração de leis implicasse alguma forma Direito até que chegou o momento de convocar eleições.Até
de moderação ou de controle. Mas, mesmo no interior da es- então havia confiado mais na incontestabilidade de sua força
treita margem que estas características deixavam à delibera- do que no poder normativo que se havia atribuído. Repentina-
ção, a existência, dentro das Forças Armadas, de um órgão mente, lembrou-se de que um de seus objetivos era a democra-
como a comissão de assessoria legislativa contrariava não só o cia; não declinou, entretanto, do uso discricionário do poder;
princípio constitucional da unidade do poder militar, mas simplesmente anunciou que tinha-se tornado democrático.
também axiomas clássicos na matéria. O Direito foi então utilizado para coonestar situações,
Foram, portanto, diversas as forças centrífugas que o relaçõese obrigações. As garantias da ordem jurídica foram
''Processo'' introduziu na organização do Estado. Até na Jun- invocadas para consolidar o já feito: direitos adquiridos, auto-
ta Militar, supostacúpula inapelável,cada arma adquiriu um ridade da coisajulgada, irretroatividade da lei foram recupe-
virtual direito de veto através da fragmentação da assistência rados para põr óbices à vontade democrática do governo.
às reuniões. Houve, realmente, o requisito de realizar sessões O ''Processo'', que dissociou o Direito da força, exer-
com a presença dos três comandantes, porém não foram pre- cendo esta última sem sujeição àquele, procurou condicionar
vistos os meios para cumpri-lo. juridicamente o poder legítimo para o momento em que a for-
A autonomia virtual jâ insinuada tornou-se real a 22 de ça deixasse de ser o fundamento da autoridade.
junho de 1982. Nesse dia a Marinha informou que tinha ''re- Com este propósito efetuou designações, celebrou contra-
solvido, a partir desta data, cessar sua participação na condu- tos, assumiu compromissos, concedeuprivilégios, incremen-
ção do Processo de Reorganização Nacional''; a Força Aérea tou a dívida pública e o déficit do orçamento, editou normas e
disse que se dispunha ''desligar-se a partir desta data da con- quis até impor acordos formais para fixar limites a ulteriores
dução política do 'Processo de Reorganização Nacional' '' investigaçõessobre seus ates. Com freqüência recorreu ao se
Ambas, entretanto, anunciaram reservar o direito de intervir gredo para editar normas ou instruções que atribuíssem com-
nas decisões que consideravam relevantes, sem considerarem- petências ou que implicassem ordens aberrantes.
se obrigadas frente ao poder, que diziam acatar com estas Tal é a teia de situações, de normas e de práticas que dia-
reticências. riamente se desenterram, como se fossem objetos arqueológi-
Era praticamentea anarquia, mas não uma anarquia de- cos, vestígios do passado autoritário que continuam incluindo
clarada; o governo do Estado não estava em disputa, pelo me- no presente.
210 O SISTEMA JURÍDICO ARGENTINO DIANTE DAS SEQUELAS
ressesquanto a garantia da lei são reconhecidos. Todos esses Aderindo às instituições de 1958-1962,a esquerda fran-
traços atestam o parentescoentre a França e a evolução por cesa fez sua uma adesão que a opinião francesa jâ havia feito.
que passou o mundo ocidental no século XIX. A originalidade Republicanos e democratas desde o fim do século passado, os
da França consistiu em tê-los incorporado mais tardiamente franceses, pelas votações de 1958 e de 1962, testemunharam
do que os países anglo-saxânicos. A democracia foi instaurada que aceitaram a ruptura institucional provocada em 1958 pelo
na França, de modo durável e sob a forma republicana, pelas general de Gaulle.
leis constitucionaisde 1875 que fundaram a 111República. A participação nas eleições políticas é elevada e os eleito-
De fato, esta se mantevede modo contínuo, se excetuar- res sufragam, em sua grande maioria, as quatro grandes famí-
mos o período do regime de Vichy de 1940 a 1944, da derrota lias políticas que, no governoou na oposição, e para além de
francesa pela Alemanha até a liberação do território nacional. suas diferenças,concordam na defesa das instituiçõese das
Em 1946 a IV República foi instaurada. Em 1958sucedeu-a a liberdades essenciais.
V República. Tendo dado o poder real a um presidenteeleito Nestas condições, como explicar que a democracia fran-
por sufrágio universal (reformas de 1962), as instituições da cesa possa entretanto parecer portadora de uma certa fragili-
V República dissolveramo regime de Assembléia que funcio- dade? Como dar conta do fato de que o debate político seja
nará entre 1877e 1940e depois entre 1946e 1958. Com isso tão áspero, e sobretudo de que sejam tão numerosos os pontos
ganhou o regime político francês: reforçou-se, suas bases tor- de enfrentamento levando os opositores a uma incessante troca
naram-se mais sólidas, viu assegurada a estabilidade de seu de processos de suspeição de legitimidade, à tentativa de ex-
governo. Durante vinte e três anos, o general de Gaulle e seus clusão do concerto republicano, a constantes apelos à opinião
sucessores, G. Pompidou e V. Giscard d'Estaing, enraizaram pública para que testemunhea insinceridade-- por parte do
esse regime através de uma prática constante de reforço do outro -- do apego aos grandes valores sobre os quais um jogo
poder Executivo. Foi esse último traço que, incontestavel- político normal poderia apoiar-se? Ejogo não necessariamente
mente, constituiu, para os observadores estrangeiros, a origi- consensual, mas onde a expressão do conflito seria canalizada
nalidade da democracia francesa. A força do poder Executivo por regras universalmente aceitas.
contrasta com as concepções anglo-saxõnicas da democracia Um sintoma, entre cem outros, deste estado de espírito
pluralista onde a encarnação dó interesse geral no Estado não permanente foi-nos fornecido recentemente, em novembro de
é um dado natural. 1983, quando da eleição municipal parcial em Aulnay-sous-
Em 1981, a chegada da esquerda ao poder contribuiu de Bois, no subúrbio de Paras, após a anulação do escrutínio que,
duas maneiras para reforçar a estabilidade do regime político realizado na primavera desse mesmo ano, dera a vitória aos
francês. Este, de uma só vez, provou que permitia e suportava comunistas. Ã oposição de direita cujo lema era ''liberar Aul-
a alternânciano poder das duas grandes coalizõespolíticas nay da dominação comunista'', o ministro comunista Charles
francesas, alternância que é uma das características funda- Fiterman retorquia irado: ''Quando foram liberadas a França
mentais dos regimes democráticos pluralistas. Esta alternân- e Aulnay? Foi no tempo da guerra em face do ocupante nazista!
cia fez-se acompanhar de uma adesão da esquerda francesa Esta gente quer dizer que os nossoscandidatos são nazistas? E
às instituições da .V República, estas mesmas instituições que, indecente, intolerável! Esta linguagem não é mais a da demo-
desde a origem, foram combatidas pela esquerda. Esta adesão cracias''(Ze ]Wonde, 5.11.83).
traduziu-se em uma notável continuidade na pratica destas Mas essa oposição não deixava por menos. Por exemplo:
instituições. fustigandoa esquerdada qual um dos oradoreshavia decla-
O presidente da República permanece, após 1981, o ver- rado: ''Aulnay será o Valmy da direita'', ela respondia ironi-
dadeiro chefe do Executivo, mas .também da maioria parla- camente pela boca do editorialista do Ze Fixara: ''este orador
mentar. Nenhuma modificação digna de nota, da ordem ins- nos ensina que os concorrentes de seu candidato são de fato
titucional, afetou a alternância de 1981. invasores,inimigosda França e da República reunidas. Não
214 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 215
sei por quais descuidos do Cartório do Registro Civil os elei- bits do apelo permanente a um Estado tutelar e onipotente.
tores de direita são beneficiados com o título de franceses. E Isto não favoreceu a organização e o enfrentamento pacífico
inadmissível que soldados da Prússia e do duque de Brunswick dos interesses.
possam votar na França'' (.[e Xlgaro, 5.11.83). Poderíamos O objetodesta contribuiçãoé o de procurar, nos traços
ignorar tais declarações, considera-lascomo resultado do es- principais de nossa cultura política, os elementostradicionais
quentamento natural dos espíritos que toda campanha eleito- de fragilidade da democracia francesa e o de apreciar os peri-
ral provoca e observar que este enquentamentonão é o apa- gos reais que esses elementos de fragilidade constituem no pe-
nágio da democracia francesa. ríodo anual para essa democracia.
Contudo, estas polémicas são muito sintomáticas da ma-
neira pela qual se desenvolveo debatepolítico em nosso país,
e, nossa história política está suficientementerecheada por
dois séculos de enfrentamento violento e rupturas institucio-
1. A cultura política francesa
nais, para que possam ser consideradascomo simples decla- e o conflito das finalidades
rações de campanhas eleitorais. Elas constituem uma boa
amostra da cultura política francesa, da maneira como é per- 1. A esquerda e a direita
cebida e conduzida a luta política na França. Colocam-nos
diretamente na pista que nos permite a um só tempo procurar Cada país tem suas tradições de luta política. E no âmago
a origem desta cultura do enfrentamentoe tentar compreen- desta luta encontramos a representação que cada força possui
der por que ela sobreviveaté hoje. Indicam o momentofunda- de seus adversários. A relação ''amigo-inimigo'' é fundamen-
dor: a grande revolução de 1789, a derrubada violenta de uma tal em política. Pode revestir-sede múltiplas formas que to-
ordem política e socialpor uma outra. Incitam-nos assim a pro- davia giram em torno de duas lógicas: uma, em que o adver-
curar em nossa história os fundamentos desta cultura política sário é reconhecido em sua existência, ou mesmo em sua legi-
que se caracteriza por um conflito sobre as finalidades da polí- timidade, e outra, em que ele é negado em seu ser político e
tica, de onde resulta esta fragilidade permanente, sem dúvida social. O enfrentamentopode ser igualmenterude em ambos
menos preocupante hoje do que ontem, da democracia fran- os casos, mas, no primeiro, o modo do enfrentamentoé o
cesa compromisso, e a evolução pode se dar pela sucessão de com-
A democracia francesa não se caracteriza unicamente promisso. No segundo caso, o conflito é pensado na perspec-
pela existência de um conflito central sobre as finalidades da tiva da aniquilação do adversário, mesmo que esta solução
política. O regime republicano instalou-se em um quadro seja distante e permaneça como prometo.É claro que estas ló-
marcado por uma tendência -- muito antiga e muito forte -- gicas políticas jamais são puras. Elas levam em conta múlti-
à centralização estatal. Nele, a máquina administrativa do Es- plos condicionamentos. Entretanto, são suficientemente po-
tado reforçou-se, continuamente, a expensas dos corpos in- derosas por acharem-se nos fundamentos das culturas políti-
termediários e dos interesses organizados desde a instauração cas modernas. As sociedades européias constituíram-se histo-
da monarquia capetiana. A democracia francesa foi forte- ricamenteno fim do século XIX em torno de um conflito cen-
mente marcada por esta tradição. Não apenas utilizou-a, tral onde se opunham o mundo do trabalho e o patronato. As
como acentuou seus efeitos. Instalada no interior dos muros representações políticas anuais derivam sempre desta oposição
do Estado, ela tirou partido do papel protetor e estabilizador maior, mesmo se o surgimento de outros conflitos vieram a
da administração francesa. Mas, se a democracia francesa foi tornar nossas sociedades contemporâneas menos ''inteligí-
protegida pelo Estado, ela herdou, ao mesmo tempo, uma cul- veis'' do que hâ vinte ou trinta anos.
tura estatal e centralizadora que prqudicou seu florescimento Na França, este conflito central organizou-se no seio de
na sociedade, privilegiando a uniformidade e enraizando o há- uma cultura política jâ estruturada, desde a grande ruptura
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 217
na Espanha, na Alemanha, afetaram o regime democrático do adversário como excluído da nação, modelo este estrutu-
entre as duas guerras. Foi preciso a derrota e a invasão de rado na França pela cultura de esquerda, mas também, e não
1940para que ele desmoronasse, para renascer após a libera- apenas por um efeito de simetria, pela cultura de direita.
çao A esquerda francesa, em sua forma republicana, depois
Mas, sobretudo, ele foi capaz de integrar, paulatina- socialista e enfim, desde o ''Front Populaire'', comunista,
mente, o movimentooperário que, entretanto, em alguns de sempre fundou seu prometode transformação da sociedade so-
seus componentes, recusava-se a qualquer compromisso com bre uma única estratégia: um povo unido contra um punhado
uma república qualificada de burguesa, e opunha a uma cul- de adversários. Esses adversários são, de acordo com as épo-
cas, a coalizãoclerical monarquista, os facciosos,os reacio-
tura republicana que pretendia, uma vez vencidos monarquis-
tas e clericais, reunir o conjunto do povo francês em torno de nários, os fascistas, o capital. São em pequeno número e, a
seus valores essenciais, uma cultura de enfrentamento que li- um só tempo, desprovidos de consistência social e de legitimi-
dade
gava o surgimento da democracia social à destruição da.ordem
antiga e ao esmagamento dos partidos burgueses, republicanos A cultura de direita funciona de acordo com um esquema
ou não. Com efeito, a cada vez, os socialistasguesdistas nos muito semelhante. Desde a revolução o pensamento urra a
anos de 80, depois, o movimento sindicalista revolucionário considera ilegítima. Apoiando-se no catolicismo e ainda que es-
na passagemdo século,e enfim, o comunismoa partir de boçando alguns compromissos com o espírito do século e com
1920, recusaram reconhecer-senesta República e combate- uma parte dos herdeiros da revolução, o orleanismo e o bona-
ram-na por algum tempo. partismo na verdade sempre praticaram a exclusão, o pri-
Ora, o paradoxo desta República consiste em que foram meiro, do movimentooperário, o segundo, do movimentore-
precisamente as mesmas as razões que, de um lado, tomaram publicano.
possível esta ''republicanização do movimento operário'' , fa- Tanto na cultura de esquerda quanto na cultura de di-
tor de estabilização da sociedade francesa, e que, de outro, reita, o adversárionão é assimilávelporque constitui uma
encontram-se na origem desta fragilidade que contribuiu para ameaça mortal para a unidade da nação (Bergounioux et Ma-
abata-la uma primeira vez em 1940e depois em 1958 expuse- nin, 1980;Grunberg, 1983).
ram-na a correr um risco mortal, de que a preservou final- Na cultura republicana, que se confunde com a cultura
menteo republicanode razão que era o generalde Gaulle. de esquerda -- mesmo se nem todos os republicanos são de
Estas mesmas razões subsistem em parte, hoje, apesar da esquerda, nem todos os homens de esquerda, republicanos --
mudança profunda de regime político ocorrida após o retomo a recusa de conceder ao adversário toda a legitimidade funda-
se sobre três tipos de razões que estruturam a representação
oder do general de Gaülle. Elas estão diretamente ligadas
à maneira como se constituiu a cultura republicana e como ela deste adversário: ele é reacionário, quer dizer, ele tem como
se transformou no fim do século passado e às consequências finalidade a destruição da obra realizada pela Revolução e
que daí resultaram do ponto de vista do funcionamento das pela República. Ele defende privilégios que, inconciliáveis
instituições republicanas. com a idéia igualitária, não tem nenhumajustificação moral.
Ele representa uma ordem condenada pela evolução da huma-
nidade orientada para a felicidade e o progresso, conforme a
2. A república e a alternância filosofia das luzes que esta no coração do humanismo repu-
blicano.
A cultura republicana é constituída por um conjunto das A cultura republicana é teleológica. A evolução da socie-
representações da sociedade que se elaboraram, em parte, no dade é dotada de sentido: liberação do indivíduo e da socie-
transcurso da grande Revolução, em parte, na segunda me- dade, progressodo espírito finalmente liberada do obscuran-
tade do século XIX, e se cristalizaram para formar o modelo tismo religioso, religião do homem sem Deus. Idade teológica,
220 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 221
como diria A. Comte, o passado está concluído. Os monar- Ferry, discurso na Assembléia Nacional, 31 de maio de 1881,
quistas e os clericais são as ruínas de uma ordem antiga, con- T. 6, P. 59).
denada pela evolução do homem e da sociedade francesa. O desenvolvimentode uma direita antiparlamentar na-
Rousseauístapor inspiração, a cultura da esquerda francesa cionalista e autoritária, que no transcurso dos anos de 30, em
aposta em um homem capaz de realizar sua felicidade por si período de crise, far-se-á mais atava e perigosa, permitirá a
só, por pouco que a sociedade Ihe dê os meios para seu flo- reativação deste modelo. O período de Vichy e da resistência
rescimento. Liberdade e igualdade encontram-se assim indis- Ihe trará um vigor redobrado. O esquemados resistentescon-
soluvelmente ligadas. Essa cultura postula a possibilidade de tra os fascistas substituir-se-â ao dos republicanos contra os
um assenhoreamento consciente da sociedade por ela mesma. monarquistas e clericais.
Nestas condições, a ideia de um compromisso durável Em 1958e em 1961,F. Mitterrand e a esquerdao utili-
com o adversário não tem sentido, jâ que este adversário deve zarão, por sua vez, contra o gaullismo e os ativistas da Argé-
desaparecer, menos pelos golpes que Ihe assestarão os republi- lia. Ainda e sempre tratar-se-â de defender a República contra
canos do que pelos efeitos da própria evolução histórica. os ''facciosos''
Esta ausência de espírito de compromisso não é apenas o Que lugar pode ter a alternância em um tal sistema de
apanágio dos republicanos radicais e mais tarde dos ''coleti- representação? A alternância com os adversários da Repú-
vistas". Os grandes republicanos oportunistas, Gambetta, blica é algo sem sentido. Estes devemser reduzidos. Devem
Ferry, Waldeck-Rousseau proclamam bem alto a necessidade desaparecer. As eleições far-se-ão, a partir de 1876, em sua
do combate sem trégua contra os inimigos da República. maioria, à esquerda, sobre o tema da defesa da República
Em 1885, J. Ferry ainda pode denunciar ''a inimiga, a contra as ''200 famílias'', ou os ''facciosos''
verdadeira inimiga, a inimiga implacávelque aí esta: a coali- A linha de separação entre a esquerda e a direita opõe,
zão clerical-monarquista que nunca foi tão perigosa quanto nas representaçõesda esquerda, o legítimo ao ilegítimo, o pro-
hoje, quando recolhe suas garras disfarçando-seem oposição gresso à reação, a República aos facciosos. Este modelo apre-
conservadora'' (Jules Ferry, 30 de agosto de 1885, discurso de senta uma grande vantagem funcional. Permite de uma só vez
Bordeaux,T. 6, p. 35), e ainda: ''os combatesnão acabaram, englobar o conjunto da direita, inclusive os republicanos con-
é sempre a República que está em causa. E sempre o.mesmo servadores, fazer a economia do debate fundamental sobre os
combate em 1876 como em 1871, em 1881 como em 1877, em programase unir em um bloco as diferentescorrentesde es-
1885como em 1881'' (Jules Ferry, 23 de agosto de 1885, dis- querda separadas, entretanto, por grandes clivagens, forne-
curso d'Epinal, T. 6, p. 24). cendo uma representação comum do adversário. Desempenha
Uma vez que o combate contra a reação ainda não aca- um papel integrador velando tanto quanto possível os antago-
bou, o ''partido republicano'', que se opõe à ''coalizão cleri- nismos profundos, que existem no interior das esquerdas,
cal-monarquista'', não pode, não deve ceder espaço para uma transfigurando em ''republicanos'' as mais revolucionárias de-
pluralidade de partidos republicanos, para uma organização las. Enfim, permite aos mais moderados republicanos de es-
dos republicanos entre conservadores e progressistas. Porque querda a conservação de sua identidade original, sua filiação
apesar das clivagens profundas que separam uns dos outros os revolucionária e evita-lhes que tenham que se redefinir frente
acontecimentos que se sucedem -- crise de 1877, boulangis- às novas esquerdas que periodicamente se instalam ao lado
mo, caso Dreyfus -- obrigam periodicamenteà união dos re- das antigas,relembrando-lhesde sua própria ideologiae de
publicanos para salvar a República. seus próprios objetivos, instando-as a que cumpram sua pala-
''Não senhores", declara Ferry em 1881, ''não é chegado vra, realizado seu credo: a liberação do homem pela subversão
o momento para que os republicanos se classifiquem em wÀzgs de uma sociedade injusta. Assim acrescentar-se-á um adver-
e em farias; não, estamos em combate, estamos na brecha, sário a mais ao monarquistae ao poder: o capital. A Repú-
temos 130cadeiras de monarquistas para conquistar'' (Jules blica, como a grande Revolução, é primeiro uma dinâmica,
222 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 223
uma idéia. A República, como a revolução, são, a um s6 tem- E já que, de etapa em etapa, os ''coletivistas'' aderirão,
po, realizadas e entretanto sempre a refazer. A liberação do uns após os outros, à República e ao seu modelo de adversá-
homem é um movimento contínuo. A felicidade e a igualdade rio, introduzindo simultaneamente um fator de clivagem pro-
esta no fim do caminho. Clemenceaupode declarar em 1891: fundo e fundamental entre os coletivistase os outros, entre
''Esta admirável revolução pela qual nós somos não acabou. aqueles que estimam que a Revolução está por ser realizada e
Ela ainda dura'' (discurso de 29.1.1891, citada em Barral). aqueles que estimam que elajâ o foi, a questão da alternância
Esta dinâmicageraum movimentoperpétuopara a esquerda. se torna insolúvel. Ou melhor, ela se resolverá no dia-a-dia, no
A república é o sinistrismo. Parlamento, entre os grupos e os homens, pelo estabeleci-
'Michelet, em sua história da revolução, ilustra bem esse mento e pela ruptura de alianças, e pela sucessão de compro-
processotomando partido pela Montanha contra a Gironda missos nunca definitivos (Odile Rudelle, 1982). Desde então,
aniquilada por ela.'Ele o faz com argumentos que: através de a vida política francesa, de -1875a 1958, funcionará em um
uma reatualização regular, serão, em incontáveis vezes no duplo registro. Frente ao país, a esquerda conseguirá trazer
transcorrer de nossa história contemporânea, os dos partidá- para o seu terreno o adversário: a favor ou contra a República,
rios de esquerda: ''Ainda que a Gironda tenha sido expulsa da a favor ou contra os facciosos. No Parlamento, os republi-
Convenção por meios ignóbeis, indignos, nós nos.limitaríalnos canos e logo os socialistas moderados estabelecerão compro-
a protestar contra essa expulsão, não teríamos abandonado a missos com o centro-direita ou com a direita republicana para
Convenção violada, não teríamos quebrado a unidade da governar e gerir os negócios do país.
Montanha. Teríamos mantido a fidelidade a ela porque lâ es- Este sistema, que funcionará quaseaté a Primeira Guerra
tava a bandeira. Mas, com a mistura entre os realistas e os Mundial, emperrara em seguida. A constituição,quando das
girondinos, não se podia mais defender estes senão fortifi- eleições de 1936, de um forte eleitorado comunista e seu re-
cando aqueles; todo atcba favor dos girondinos teria sido um forço em 1945tornarão cada vez mais difícil seu funciona-
golpe assestada contra a República'' (Michelet: T. 2: 405). mento. A exterioridade parcial do fenómeno comunista per-
Esse sinistrismo da esquerda francesa impede os republi- mitira à direita revirar agora contra a esquerda seu modelo do
canos hostis aos coletivistasde romper clara e duravelmente adversário fazendo apelo aos republicanos contra os marxis-
com eles, sobretudo quando estes últimos, como Jaurés, lhes tas e os separatistas. O desequilíbrio do sistema será cada
apresentam o socialismo como a realização natural dos ideais vez mais grave e as oportunidadespara se estabelecerum
de 89, o coletivismocomo a realização última da República, e o verdadeiro regime de alternância democrática cada vez mais
capitalismo como o último obstáculo, após a vitória sobre a 1 1 dçdb .
conflitos que afetavam a sociedade francesa após a Primeira sociedadefrancesa, como um perigo mortal de dissoluçãodo
Guerra Mundial. Não engrenavamais com a realidade. Sua corpo social.
impotência e sua perda de sustentação pela opinião desempe- Na França a alternância não é dificultada apenas pela
nharão um papeltão grande quanto a derrota e a invasãode permanência de uma cultura política que sempre acaba pola-
1940em sua fácil liquidação pelo marechal Pétain, em favor rizando as paixões em torno da esquerda e da direita de acôrdo
de quem a Assembleia havia abdicado de todos os seus pode- com o modelo do adversário que nós rapidamente descre-
res. As mesmas causas produzindo os mesmos efeitos, quase vemos.
vinte anos mais tarde, a V República se autodissolvia em prol Essas culturas políticas antagonistasadmitiram final-
do general de Gaulle. O regime da Assembleia desaparecia mente as conseqüências do respeito ao sufrágio universal, e,
assim após uma existênciade três quartos de século. Ele dei- em particular, o confronto de uma pluralidade de partidos para
xava o campo livre para que um homem bem decidido resta- a conquistado poder. Mas sua representaçãode uma socie-
belecesseum poder Executivo forte e enfraquecesseos parti- dade reunificada a prazo, uma vez o adversário destruído,
dos sem destruir a República. permanece suficientemente fecunda para que seja possível
Simetricamente a esta cultura de esquerda, e desde 1789, contestar seu carâter autenticamente pluralista. E verdade
organizou-sea cultura contra-revolucionária.Elaborada, co- que, à direita, os partidos aceitaram a conquista do poder
mo a cultura revolucionária, no calor da hora e, como ela, pela esquerda em 1981. Quanto à esquerda, seus partidos ade-
nascida da rupturabrutal de 89, ela também foi uma cultura riram, um por um, à lógica política da alternância. Mas a difi-
do enfrentamento, da recusa e da ausência de compromisso. culdade, em uns e outros, de pensar o pluralismo em todas as
A Revolução havia derrubado uma sociedade cujos valores.de suas implicações reaparece a cada instante.
ordem, religião, de hierarquia e de desigualdade ela defendia. Ã esquerda, a origem desta incapacidade de pensar o
As direitas se sucederam sem chegar nem a se unir, nem a pluralismo reside neste terceiro estado de 1789 que, tornado
impedir finalmente o estabelecimentoe o enraizamento da ''o todo'', pensava representar sozinho o conjunto do povo.
República. A direita legitimista desaparece como força impor- Ela reside nestes representantes da nação que pretendiam ex-
tante mas também como cultura política viva no fim do século primir coletivamente a vontade geral, nesta tradição da Con-
passado. Ao lado de uma direita antiparlamentar e naciona- vençãoestabelecidaapós o 10 de agosto de 1792, pela qual o
lista, a direita parlamentar, muito variegada, reorganizava-se eleito da nação representava o povo inteiro, onde, para reto-
no fim do século, por ocasião do caso Dreyfus, que, graças a mar as palavras de F. Furet, ''trata-se de saber quem repre-
uma poderosa alquimia política, reorganizava para um bom senta o povo, ou a igualdade, ou a nação'', onde ''é a capaci-
tempo o campo do combate político. Diante de uma esquerda dade de ocupar essa posição simbólica e de conserva-la que
republicana, leiga, social quando não socializante? igualitária define a vitória'' , e onde, como consequência, o fato de ocupar
quando não igualitarista, desenvolve-seuma direita nacional esta posição permite legitimar a colocação para ''fora do
quando não nacionalista, católica quando não clerical, ampla- povo'', a designação dos inimigos do povo.
mente filiada à República e adepta do parlamentarismo. Ten- A partir do momento em que ''a Revolução instalou esta
tada pelo estabelecimentode um poder Executivo forte ela é simbólica no centro da ação política'': ''é ela e não os interes-
mais zelosa para com a ordem do que para com a igualdade e sesde classe que serve provisoriamente de árbitro para os con-
define-se anti-socialista e antimarxista. As eleições de 1902, flitos do poder'' (Furet, 1978, 72-74).
que em grande parte giram em tomo da questão clerical, con- Se, como observa B. Manin, o princípio representativoé
cluem o desenho de uma geografia do eleitorado que se reve- uma constituiçãoprópria aos chefesjacobinos que não cons-
lara, até hoje, de uma grande estabilidade(F. Goguel, 1970, tava da herança teórica de que eles se reclamavam, trata-se de
1981, 1983j. Para essa direita, o socialismoe mais tarde o uma concepção da representação radicalmente diferente da-
comunismo devem ser rejeitados como um corpo estrangeiro à quela dos liberais parlamentaristas (Manin, 1974). Nesta tra-
226 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 227
dição, o objetivo central não é o de tentar realizar o melhor realizada a reunificação do povo, e sim pela ação de um chefe
equilíbrio possível dos poderes, ou a melhor.colaboração pos- legítimo. A nação será reunida pela vitória do Estado sobre os
sível entre esses poderes. Robespierre o diz claramente: ''Pou- interesses particulares, pela destruição daquilo que de Gaulle
co nos importam as combinaçõesque abalam a autoridade chamará ''o regime dos partidos''. A longa citação que se se-
dos tiranos. É a tirania que é preciso extirpar. Não é nas dis- gue exprime as concepções profundas do general de Gaulle:
putas de seus mestres que os povos devem procurar a vanta-
gem de respirar alguns momentos, é em sua .própria.força que 'Se eu estivesseconvencido de que a soberania pertence ao
é preciso colocar a garantia dos direitos'' (Robespierre, dis- povo desde que ele se exprime diretamente e em seu conjunto,
curso sobre a Constituição, 10 de maio de 93). eu não admitiria que ela pudesse ser despedaçada entre os di-
O discurso jacobino não constituíra a única herança dos ferentes interesses representados pelos partidos. Certamente,
republicanos do fim do século XIX. Mas, e a história se encar- essesdeveriam, a meu ver, contribuir para a expressãodas opi-
regará de manter esse tropismo, a esquerda desconfiará sem- niões e, consequentemente, para a eleição dos deputados, que,
no seio das Assembleias. deliberariam e votariam as leis. Mas
pre do poder Executivo, do poder ''pessoal' . Para ela, a legi-
timidade reside na Assembléia dos deputados eleitos por su' para que o Estado seja, como deve ser, o instrumento da uni-
dade francesa, do interesse superior do país, da continuidade
frágil universal e em nenhum outro lugar. O pluralismo dos na ação nacional, via como necessárioque o governo prece'
interessesnão será realmenteintegrado com todas as suas desse, não do Parlamento, ou sqa, dos partidos, mas sim de
consequências. Daí a pretensão à universalidade por parte de uma instância superior a eles, de uma cabeça cujo mandato e a
cada um dessespartidos, daí sua convicçãode que defendem, disposição para querer, decidir e agir derivasse diretamente do
e somenteeles, os direitos do povo ou os de uma classe opera- conjunto da nação. Sem isso, a multiplicidade das tendências
ria que, por sua ação, para retomar as palavras de Jaurés, que nos é própria na razão de nosso individualismo, de nossa
prefigurava a libetação da Nação. diversidade, dos fermentos de divisão que herdámos de nossas
Isto contribuirá, .como o fará a tradição da Convenção, desgraças,reduziria o Estado a ser, uma vez mais, apenas um
para afrouxar o laço que une representantese representados. palco para o confronto de ideologias inconstantes, de rivalida-
Os representantes' não representam interesses particulares, des fragmentárias, de simulacros de ação interna e externa
sem duração e sem alcance'' (de Gaulle, 1970, 12).
mas (5interesse geral. Assim sendo, cabe apenas a eles defini-
lo. Com isso a alternânciajâ não tem muito sentido. Pois sua
lógica não repousa no reconhecimento da pluralidade e da As novas instituições adotadas em 1958, e, inspiradas por essa
oposição de interesses legítimos? convicção, substituindo um regime de Assembléia agonizante
Também à direita, dos monarquistas legitimistasao bo- pol uma espéciede monarquia republicana, reforçaram in-
napartismo, e depois ao gaullismo, a reivindicação da unidade contestavelmente a estabilidadee a eficácia do regimerepu-
o povo, artificialmente'desfeita pelos partidários da luta de blicano. Quanto a terem feito progredir na França a ideia de
classes, opõe-sea assumir em todas as suas dimensõeso plu- pluralismo e a aceitação plena e integral de uma alternância
ralismo político e social. Que pode significar uma alternância que elas entretanto tornaram possível, eis o que é mais duvi-
em que os ''vermelhos'', os ''marxistas'', os ''separatistas'' doso
acederiam ao poder para dar livre curso à sua obra de divisão
e destruição? Daí sua dificuldade em admitir a divisão real da
sociedade e a existência de duráveis conflitos de interesses. 11. Fraqueza da sociedade,
Para de Gaulle, como para Pétain, como outrora para o.legi- força do Estado
timismo, capitalismo e socialismo são lesivos à unidade do
corpo social. Mas aqui, não é mais a partir das deliberações As dificuldades e incertezas próprias à alternância refle-
de uma Assembléia que poderá ser obtida a vontade geral e tem evidentemente a permanência da divisão existente entre
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 229
228 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
algumas tendências dominantes hâ quase .dois séculos, mas tal, desdea ponte, o edifícioda escolae a propriedadecomu-
acham também sua razão na importância de que se revesteo nitária da menor aldeia, até as ferrovias, os bens nacionais, as
Estado na luta política. Ele é, efetivamente, um premio ümco, universidades (. . .). Todas as evoluções políticas aperfeiçoa-
de certo modo a fortaleza que é preciso, primeiro tomar, e, em ram essa maquina ao invés de quebra-la'' (Mam, 1852, 125).
seguida, reconstruirsob outra forma. Marx jâ havia notado Estas visões da força do Estado frente à fraqueza da socie-
esse traço: ''Os partidos que lutaram sucessivamentepelo po- dade, permaneceram justamente célebres e inspiraram, em
der consideraram a conquista deste imenso edifício do Estado menor ou maior escala, todas as reflexões sobre a França. Mas
como a principal presa do vencedor'' (Marx, 1852, 125). . a centralizaçãonão foi tudo, pois é inegávelque, ao mesmo
A constituição de um Estado nitidamente diferenciado da tempo, a revolução lançou as bases do individualismo liberal.
sociedade começou na Idade Média. O antigo regime monár- Em março de 1791, os decretos de Allarde suprimiram as
quico que, durante séculos, veio anexando ao domínio real corporações, em junho, a lei de Chapelier estabelecia a liber-
dade do contrato e proibia as associaçõesde interesses.Esse
províncias que tinham suas instituições e seus privilégios, en-
controu na centralização administrativa o meio apropriado quadro liberal como que circunscreveu as funções do Estado
para governar um território extensoe heterogéneo. Mas ele para tudo que dizia respeito à economia quase até 1914. Mas,
o caráter liberal do Estado não impediu a confortávelpersis-
teve que batalhar contra a aristocracia e os parlamentosl .man-
ter à margem os corpos intermediários, reduzir os particula- tência de um Estado administrativo ao longo do século. O es-
rismos e tender a concentrar as decisões. Como mostrou vigo- tatismo e o individualismo mantiveram relações que precisam
rosamente Tocqueville, a revolução continuou, sem o saber, a ser explicitadas. A supressão dos corpos intermediários favo-
obra da Monarquia, e o Império a concluiu. Com efeito,. des- receu o desenvolvimento da regulamentação pública. De fato,
truídas ou abaladasas velhas instituições, o poder central não privado voluntariamentede mediação para atingir os indiví-
encontrou nenhuma resistência capaz de detê-lo. ''A ideia de duos, o Estadovaleu-sedas regras de princípiouniversale
formar apenas uma classe de cidadãos teria agradado a Riche- igualitário. Liberalismo e estatismo coexistiram sob todos os
lieu. Se essa superfície igual convém à liberdade, ela também regimes, uns enfatizando o aspecto liberal, outros, a interven-
favorece o exercício do poder'' (Mirabeau). Quando a revolu- ção do Estado. Nenhuma síntese foi encontrada. Tanto menos
ção chegou ao fim, Napoleão pede focar o Estado mais forte podia ser encontrada quanto a instauração durável da Repú-
da Europa: ''A centralizaçãofoi recolhidaem suas ruínas e blica, ao fim dos anos de 1870, fez prevaleceruma tradição
restaurada; e como, ao mesmo tempo que ela se recuperava, política que estabelecia a lei como a expressão da vontade ge-
tudo o que outrora pudera limita-la permanecia destruído, ral. ''A política dos republicanos é uma política à moda an-
das mesmas entranhas de uma nação que havia derrubado a tiga, por intermédio dos representantes, não é uma política de
realeza viu-se sair, de repente, um poder mais extenso, mais limitação do poder como a dos anglo-saxõesou a dos libe-
detalhado, mais absoluto do que o exercido por qualquer um rais'' (Claude Nicolet, 1982, 357). Com efeito, a tradição re-
de nossosreis (...). A dominaçãocaiu, mas o que havia de publicana, mesmo se incorpora muitas partes do liberalismo,
mais substancial em sua obra permaneceu de pé; seu governo difere dele. Sempre recusou limitar o poder Legislativo que
morto, sua administração continuou a viver, e todas as vezes confere valor constitucional a uma declaração dos direitos
estabelecendouma corte suprema, juiz dos ates da represen-
que, desde então, pretendeu-seabater o poder. absoluto, na
verdade o que se fez foi colocar a cabeça da liberdade num tação nacional, como nos Estados Unidos. As únicas garantias
corpo servil ' (Tocqueville, 1856, 318-319). Neste ponto, Marx que os republicanos admitiam era o exercício do sufrágio uni-
partilhava damesma análise: ''Cada interessecomum foi ime- versal e a educaçãodo cidadão, e, compreende-seque com
diatamente destacado da sociedade, oposta a ela como inte- mais razão fossem, neste ponto, seguidos pelos socialistas
resse superior, geral, retirado. da iniciativa. dos membros da quando estesassumiriam explicitamenteessa tradição. O Es-
sociedade, transformado em objeto da atividade governamen- tado francês pede, desse modo, ser caracterizado antes como
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 231
230 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
lamento em relação à burguesia. Tudo se passou como se os cujo XIX, não obteve reconhecimento antes de 1936, momento
dois adversários se recusassem à própria ideia de compromis- em que se evidenciou,enfim, que a ordem não podia mais
so, esperando sempre poder achar apoios adicionais para permanecer fundada sobre uma equivalência entre a liberdade
evita-lo. Assim, havendo escassa visibilidade de interesses di- e a propriedade. Mas, nesse ínterim, uma cultura havia sido
vergentes em confronto, a intervenção administrativa tirou modelada. Michelle Perrot mostrou em Ozzvrlersen Grave que
sua força e sua necessidade da ausência de negociação direta o patronato não apenas combateu os sindicatos nascentes.
entre os grupos sociais. como preferiu, freqüentemente, ''a ação sobre o aparelho do
A consideração destesdois fenómenos, a fraca auto-orga- Estado'' (M. Perrot, 1974,683) em nome de uma concepção
nização e o não-reconhecimento, que são igualmente a causa de da ordem pública. Quanto aos operários, eles, rapidamente,
um quanto o efeito do outro, explica a persistência de um ''es- utilizaram a greve como meio de pressões, enquanto, uma vez
tilo de autoridade'' que confere amplo espaço à ''autoridade realmente instalada a Terceira República, eles se dirigiam aos
rotineira'' na maior parte do tempo e prepara a influência de representantes do governo para que arbitrassem a seu favor. A
uma ''autoridade heróica'' nas crises nacionais. E o estilo de hostilidade do sindicalismo revolucionário ao Estado não pâs
não-participaçãoque não somenteprovoca uma escalada fí- fim a essa prática. Desde o fim do século XIX as autoridades
sica dos conflitos, como também perpetua os aspectos ideoló- públicas intervieram, cada vez mais freqüentemente, nos con-
gicos tradicionais de alguns deles, quando, há muito tempo, flitos do trabalho. Os litígios passaram então a se desenvolver
desapareceramas bases sociais originais dessas ideologias no plano do direito e não no da negociação. Os acordos cole-
(Stanley Hoffmann, 1974, 203). Por outras palavras, a socie- tivos, admitidos em 1918, depois do esforço de guerra, caíram
dade francesa teve, até aqui, uma tendência a viver seus con- em desuso uma vez evidenciada a derrota operária da prima-
flitos de modo exaltado sobre o plano político. Na prática, e vera de 1920, ressuscitaram no momento do Xronf .l)opu/abre,
no detalheda vida social, para não tornar a coexistênciaim- mas foi apenas com a lei de fevereiro de 1950 que começaram
possível, foi preciso frequentemente decidir esses conflitos pelo a se tornar uma prática real. Mais perto de nós, os contratos
jogo das influências sobre uma administração poderosa. A salariais, inaugurados em 1969, na ''Nova Sociedade'' do go-
concepção republicana da democracia, toda política, acabou verno Chaban Delmas, não modificaram profundamenteo
acomodando esse sistema de gestão dos conflitos. Stanley Hof- sistema das relações sociais. Assim, as relações profissionais
fmann pâs, claramente, em evidência a simultaneidade do foram caracterizadas, desde a segunda metade do século XIX,
apelo ao Estado e da revolta contra o Estado, que contribuiu por um círculo vicioso, onde o patronato luta contra sindica-
para foliar um cidadão que espera muito do Estado e repugna tos maioritários que querem repor em causa os princípios da
a negociação direta e o empenho pessoal. Os militantes, polí- economia de mercado, e os sindicatos invocam a atitude hostil
ticos e sindicais permanecem uma pequena minoria que tende do patronato para justificar sua crítica fundamental. Todas as
a se profissionalizar cada vez mais. O movimento social acha, etapas que marcaram o reconhecimento da presença sindical
freqüentemente, sua expressão em uma ''contestação perma na empresa foram o resultado de crises nacionais: 1936. os
nente'' que favoreceu as correntes antiparlamentares até 1958 delegadosdos operários; 1945,os comités de empresa; 1968,
e que, em suma, defende soluções autoritárias. A democracia as seções sindicais de empresa. Em 1981, as ''Leis Auroux'' só
francesa carece de um enraizamento sólido em estruturas in- se tornaram possíveis graças à vitória política da esquerda.
termediárias numerosas, aptas à negociação entre si para faci- Assim é que G. Adam e J. D. Raymond têm razão de estatuir:
litar as adaptações sociais. ''(...) os sindicatos e os empregadores não desnaturaram, ao
As relações profissionais refletem, de modo privilegiado, longo dos acontecimentos, um modelo preexistente e ideal da
essa contradição que, incontestavelmente,torna, senão mais negociação e do conflito. Jamais houve, no modo anglo-saxão,
frágil, ao menos inacabada a democracia. O sólido cresci- uma articulação institucional e quase automática entre a greve
mento do segmento assalariado industrial, desde o fim do sé- e a negociação, entre a negociação e o acordo, entre o acordo e a
234 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 235
V República quanto a questõestão importantes quanto a polí- particular à esquerda, de uma reflexão nova sobre a questão
institucional. Ela se efetuou de modo tácito, silencioso, con-
traditório. Acrescente-se que a significação da alternância (O.
Duhamel, 1980) ocorrida a 10 de maio de 1981 não era ime-
diatamentedada. Os três anos que se seguirampermitem
tem seus limites. pensar que as conseqüênciasque resultaram dessa'alternân-
cia, do ponto de vista do funcionamento do sistema político
francês, permanecem contraditórias, ainda que a tendência
In. A democracia francesa principal pareça favorável à continuidade.
presidente socialista, que ainda podia escrever em
depois da alternância de 1981 1980, poucos meses antes de sua eleição: ''O que ponho em
causa é realmentea monarquia. Chegará o dia em que para
A alternância de maio de 1981 é a primeira ocorrida des- reunir os franceses será preciso gritar-lhes: Viva a República"
::!:E IREI
l IE$ :
de a fundação da V República. Nessa data a esquerda ocupou (F. Mitterrand, 1980, 120), declarava a 2 de julho de 1981,
o poder. Essa altemânciaproduziu-seem.meioà calma. Que
nação, o verdadeiro chefe do poder Executivo.e o eleito por grama socialista de 1972: ''O Partido Socialista não procura a
uma coligação de formações políticas. O. escrutínio majoritâ- aprovação,dos privilegiados, dos exploradores e dos aprovei-
rio em dois fumos conduz a uma bipolarização das forças pf?- tadores. Não pode haver trégua entre ele e os nimigos do
líticas que, a partir de 1972, contribuiu para reatualizar Desse
a cli- povo'' (n'ogramme Sacia/isfet 1972, 9). Os socialistas sempre
vagem esquerda/direita como clivagem política central. tomam o capitalismo como adversário, e um deles, J. P. Che-
modo, o presidenteacaba sendo o chefe da.esquerda ou da venement: pede assimilar o ''liberalismo avançado'' de V
direita em uma sociedadepolítica tradicionalmentemarcada Giscard d'Estaing a um ''vichysmonegro'' e a ação do govemo
pela ausência de compromisso e pela forte centralização do anterior de R. Barre a um ''fascismo serpelante''. O prometo
Europa, o exemplo de uma sociedade atravessada em seu todo necessariamente, uma esclerose social. Entretanto, leva estas
um conflito fundamental, inextricavelmentede natureza mudanças a revestirem-se de uma aparência radical, mesmo
social e ideológica que organizou a sociedade, primeiro em se não o são na realidade, e introduz assim distância entre os
torno do face-a-face revolução/contra-revolução, depois, em preceitose as praticas, fator de decepçõespara amplos seg-
torno de um pólo católicoe conservadorde um lado e, de mentos do corpo eleitoral, submetidos, conforme os períodos,
outro, um pólo operário leigo, e que ofereceu uma estrutura às tentações do extremismo. Mais inquietante poderia ser um
tão poderosa que todos os outros conflitos puderam ser reba- enfrentamento da convicção democrática.
tidos. sobre um eixo direita-esquerda, que é regulam'mentede- ''Muralhas sem homens'', jâ dizia Homero, ''são apenas
nunciado como ultrapassado, mas que permanece como hori- muros ocos.'' Deste ponto de vista, as recentes pesquisas de
zonte de referência para a opinião (G. Michelat e M. Simon, opinião incitam ao otimismo mas também à lucidez. Olivier
1977;F. Bon, 1979). A polaridade que a democracia francesa Duhamel, comentando a pesquisa realizada pela SOFRES
conhecenão deriva, portanto, meramente, da lógica das insti- para ojomal Expans/on em março de 1983(SOFRES, Z'Opí-
tuições, mas de uma realidade cultural sempre viva. A prin- lzfonPzzó//que,1984, pp. 133 e segs.) constata, primeira-
cipal consequênciaé que o Estado não deixou de ser conce- mente, que a alternância de 1981 teve um efeito integrador
bido como um objeto de conquista para as forças políticas, e a que se traduziu, notadamente, pelo aumento do consenso
esperança política prevaleceu sobre o esforço de organização acerca do apego aos símbolos nacionais e à força de dissuasão
da sociedade. nuclear francesa. O mesmo se dá quanto ao apego ao direito
Toda constatação realizada acerca do estado da demo- de voto -- 81%odos franceses estimam que sua supressão cons-
cracia francesa não deve esquecer que ela permanece fundada tituiria um fenómeno muito grave --, à previdência social, a
sobre um conflito de finalidades sociais que dificulta a prática livre iniciativa ou à liberdade de imprensa. Nota-se igualmente
dos compromissos explícitos. As fraquezas e as forças da de- um consenso bastante amplo para considerar como irreversí-
mocracia francesa são apreciáveis a partir daí, e não é parado- veis algumas decisões políticas tomadas desde 1981, tais como
xal que elas se engendram umas às outras. Porque,. de um as leis Auroux sobre a expressão dos direitos dos trabalhado-
lado, a existência de paixões políticas vivas favorece a integra- res na empresa, o estabelecimentode um imposto sobre a for-
ção.dos interesses no jogo político, dâ o sentimento aos cida- tuna, ou a quinta semana de férias remuneradas.Em com-
dãos de que são representados,de outro, a distânciafre- pensação, parece que sobre alguns pontos de particular im-
quente entre as esperanças e as realidades provoca evidente- portância, do ponto de vista da exigência democrática, a dis-
mente sérias tensõese, o que é ainda mais grave, um desamor sensãopermaneceprofunda no seio da opinião pública, ou
periódico pela própria democracia. A evoluçãorecente auto- mesmo aumenta. Assim, os eleitoresda oposição de direita
riza algumas hipótesespara o futuro próximo. A opinião che- que consideram que seria muito grave suprimir o direito de
gou a um consenso quanto às instituições, mesmo se a questão greve, ou que F. Mitterrand é o presidente de todos os france-
de saber que fins visar através do sistema institucional perma- ses, constituem uma pequena minoria. Em compensação, é a
nece sem resposta. Não hâ nenhuma dúvida de que a consti- imensa maioria que exige a desnacionalização das empresas
tuição da V República canalizou melhor a express41.da üo- nacionalizadas depois de 10 de maio de 1981. Por fim, os elei-
lência política do que os outros regimes nos séculos XIX e XX. tores comunistas são os únicos que estimam -- por fraca
Esta permanecelatente, mas tomou uma forma mais simbó- maioria -- que seria muito grave suprimir os partidos políti-
lica - o que incontestavelmente é um progresso, malgrado o cos. Reencontramos
aqui a hostilidadeda opiniãopública
parecer de todas as escolas de pensamento que denunciam a francesa à filiação e ao jogo partidários.
normalização'' das sociedadesocidentais. Importantes mu- Esta rápida visão da opinião pública corresponde, final-
danças puderam surgir, na classe política, nas idéias, .nas mente, muito bem aos traços da cultura democrática francesa
mentalidades. O enfrentamentodas finalidades não implica, tal como a descrevemosgrosso modo: o essencialdos valores
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 251
250 AS FRAGILIDADES DA DEMOCRACIA NA FRANÇA
t
perimentaram outras sociedades ocidentais -- vemos que na-
democráticospareceassegurado,mas se trata de uma demo- quela ocasião chegou-se a questionar a legitimidade do chefe
cracia de enfrentamento sem concessõesentre os dois campos, de Estado, o generalde GauUe, e, portanto, a das instituições.
mal enraizada quanto às próprias condições da participação A alternância de 1981 deve pois ser compreendida em suajusta
medida. Ela é a presunção de um enraizamento mais pro-
poiítja dos cidadãos.tas eleitorais (1986, 1988) constjtuhão fundo da cultura democrática na sociedadefrancesa. Mas ela
uma nova prova para a democracia francesa, em particular,
no caso de vitória da oposição. Ela será capaz de supera-la não significa que as instituições estejam além de qualquer
questionamento. O liberalismo cultural, que difundiu, nas so-
sem choques? . .
ciedades contemporâneas, os valores de individualismo. de
Esta realidade não é, evidentemente, o apanágio da Fran-
participação, de qualidade da vida, é ambíguo, já que é por-
ça. As sociedades europeias se construíram através do con-
flito. Muitos traços da situação francesa podem ser encontra- tador tanto de egoísmo social quanto de um certo igualita-
dos nas culturas políticas europeias. A existência de uma di- rismo, e nutre hoje as correntes neoliberais e o populismo de
reita e de uma esquerda, sob outras formas, aparece por toda esquerda. Os argumentos que se baseiam numa modificação,
vista como fundamental, da cultura política européia, não são
parte. A luta, mais ou menos precoce, contra o Antigo Regime decisivos para que se possa pensar em fundar solidamente
monárquico, as realidades de classe, e, mais simplesmente, a
uma ''democracia tranquila''. A homogeneização social não
lógica da democracia, que tende a formar coalizões, levaram a
este enfrentamentoentre dois pólos. Por falta de uma expe- assegura necessariamente a convergência política. Há mais de
vinte anos que diferentes episódios políticos têm mostrado a
riência cumulativa destes fenómenos, a vida política norte-
dificuldade em que se encontram os partidos políticos no po-
americana não pode ser interpretada através da mesma grade
de leitura. Na Europa, o período atual volta a mostrar a du- der quando procuram obter um consentimento político majo-
ritário. Para além das estruturas institucionais propriamente
reza possível dos conflitos políticos. Os chamados países do ditas, permanece precária a confiança política, essa realidade
consenso .também conhecem oposições ásperas. As divergên- cultural pela qual as previsões privadas e as decisõespúblicas
cias foram reavivadas pela crise. Entretanto, as futuras não deveriam reforçar-se mutuamente. Em comparação com as
se manifestam da mesma maneira nas diferentes sociedades. crises violentas da democracia em outras partes do mundo,
Na Inglaterra, as regras do jogo não foram suspensas, mas os tudo isto pode parecer de pouca gravidade. Mas a dificul-
conflitos sociais são extremamente violentos, e, hoje, a conver-
dade, ou mesmo, em certos casos, a paralisia das decisões
gência programática dos anos de 1950-1960deu lugar a um
verdadeiro enfrentamento entre os dois grandes partidos,. con- políticas não é o menor dos perigos que ameaçam a democra-
cia
servador e trabalhista. As divisões que atravessam a sociedde
alemã traduzem-se freqüentemente em termos de identidade
nacional. Por contraste, a especificidade francesa aparece:
quasetodos os conflitos, qualquer que seja sua natureza, so-
bem ao nível político e ideológico. A situação criada pela che-
gada da esquerda ao poder em 1981 parecia indicar que o
enfrentamento decisivo dar-se-ia no campo económico e so-
cial. Na realidade, foi a questãoescolar, o face-a-faceentre o
ensino público e o ensino privado, entendidos como um con-
junto de valores, que mobilizoumilhõesde franceses.deum
lado e de outro. E se recuarmos um pouco no tempo, até maio
de 1968,que, agora, todos concordam em definir. fundamen-
talmente como uma crise social e cultural -- que também ex-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 253
O analisadosinstitucional
O que é notoriamente exemplar nos três casos estudados
é a posição da classe dirigente diante dos procedimentosre-
presentativos. Não se poderia mostrar de modo mais nu os
paradoxos do liberalismo e da democracia e suas contradições
profundas, na era pós-censitária. Nesse sentido, a democracia
é um operadorsocial particularmenteeficaz. Assim, no Bra-
sil, como salienta Trindade, a lógica liberal tem uma ancora-
Conclusão: gem profunda, mas não é antagõnica a práticas autoritárias,
pois permanece fundamentalmenteexcludente ou, pelo me-
Os desafios democráticos nos, não-integradora. A ''poliarquia perversa'' que daí resul-
ta, segundo a expressão de Lamounier, utiliza diversos meios
ou a aprendizagemda virtude para que o sistema de decisão e o de participação permane-
çam o mais separados possível. A existência de ''guetos parti-
.4/afaz Rouqzzlé
cipativos'' chega mesmo a garantir a natureza semicompeti-
tiva de um regime em que se aliam, de maneira mais ou menos
harmoniosa, ãs tradições liberais e autoritárias. Um dos casos
mais significativos dessa coexistência das ''duas moedas'', a
coerção e o voto, para empregar umâ. imagem de Celso Lafer
.A principal idéia, talvez banal mas sem dúvida perti- (1975, 64) vem a ser o comportamento da grande coalizão
nente, que o leitor guardará deste livro, como vários dos.acto- antiditatorialdo tempode Getúlio Vargas batizadacomo
res sublinham, é que não hâ fatalidade do destino autoritário. UDN (União Democrática Nacional). Esse partido, ponta-de-
Assim como não existe também privilégio democrático perma- lança da oposição liberal à ditadura getulista, logo se trans-
nente. Nos dois extremos, a índia republicana e a Alemanha formará, como assinala Mana do Carmo Campello, numa for-
hitletista contradizem as teorias deterministas. Mas os três mação ''conspiratória'' e no braço político do regime multar,
países que aqui foram explorados ilustram. também:.de ma- na sua primeira etapa. Esses mesmos liberais de princípios,
neira complexa e contrastada, a autonomia do político e o restauradores da democracia após a queda de Vargas e do seu
primado da liberdade. Na Europa, hoje em dia como no pari' Estado Novo em 1945, tomarão cuidado em não tocar na legis-
fado, sabe-se que o autoritarismo não é simplesmente aquilo lação do trabalho corporativista herdada do regime deposto, e
que acontece aos outros, preço da pobreza, apanágio da incul- que coloca os sindicatos sob o controle do Estado. Alias, é a.
tura. Os dados objetivamente favoráveis aos processos demo- inversão desse sistema que dará o sinal à ofensiva antidemo-
cráticos estão longe de garantir o seu enraizamento, como de- crática da UDN e de seus aliados militares, nos anos sessenta.
monstra, segundoa fórmula de Sábato e Schvarzer, ''a anor-
De fato, o controle do Estado sobre os trabalhadores parece
malidade obstinada da Argentina". E o que dizer da ''guerra ter-se transformado, no governo do último presidente civil,
civil fna'' provocada na França pela divisão permanente do em pressão dos trabalhadoressobre a máquina estatal. O
espírito público e a amplidão do fosso que separa os dois cam- avanço da sociedade civil sobre o Estado tem por resposta
pos? Mesmo voltando, como no (;b$ZdzzCbmmerce: aos ''gau- (autoritária), fomentada pelos liberais, o ''golpe de Estado''
lesesbriguentos'', a psicologia não nos auxilia muito a com- em que consiste o.pufscÀ de abril de 1964.
preender a confusão permanente entre adversários e inimigos ]
questão democrática, consiste, diferentemente do que ocorreu dos, que revelou a fragilidade de nosso sistema político. Apre-
na Argentina, na manutenção, após 1964, de um parlamenta- sentada à esquerda como ruptura triunfal e radical com o
rismo mínimo, aliando um bipartidarismo coercitivo a uma ''antigo regime'', à direita como um extravio passageiro do
grande regularidade das consultas eleitorais, sob a tutela de eleitorado,a chegada ao poder da esquerda, no quadro das
uma ditadura militar institucional. Jâ se indagou por que esse sólidas instituições da V República, foi vivida como uma revo-
regime híbrido, no qual aparecem ao mesmo tempo a dificul- lução a mais pelos vencedorese, pelos vencidos, como uma ca-
dade de institucionalizar o autoritarismo e a de enraizar a de- tástrofe nacional, da qual a França devia sair o mais rapida-
mocracia. A história brasileira, em que se revela a força das mente possível, e até mesmo a qualquer preço. Nunca a cul-
elites regionais e do poder privado, dâ um princípio de res- tura do confrontoe de uma recusa do compromisso tinha pa-
posta: uma burguesia fracionada, esfacelada, em um país recido tão perigosamentepresente, nem o processo de legiti-
imenso, necessita de corpos intermediários e de lugares públi- midade do poder legal instruído de maneira tão escandalosa.
cos em que a harmonização dos interesses e as barganhas com O adversário é tratado de ambos os lados como inimigo. A
o poder central possam ser efetuadas. Lugares bem trancados, oposição mantém um discurso que de bom grado desqualifica
protegidos contra as classes perigosas e os impulsos popula- o adversário, quase sedicioso, no limite do respeito às institui-
res, evidentemente. ções. Um vocabulário de guerra de religiões, que se compraz
A Argentina apresenta a situação diametralmente opos- em metáforas militares, constitui a partir de então a língua
ta: a burguesianão se acha fracionada, ou antes, existeum parlamentar.
grupo dominantehomogêneo,que não só não necessitade Deve-se atribuir à projeção política do estilo francês de
partidos múltiplos e de um cenário político público perma- autoridade e à sua recusa do cantata face-a-face e, portanto,
nente, como também recusa os compromissos com outras ora- do compromisso direto, segundo Crozier, essa engrenagem
ções menos privilegiadas. Esse grupo dominante multisseto- tão perigosamente desestabilizadora? Ao conservadorismo
rial, cujo eixo central se encontra no capital financeiro, é ao obstinado de uma burguesia de direito divino? Ou, mais sim-
mesmo tempo ''dominante e não-hegemónico'' (Rouquié: plesmente, à distância entre as palavras e os ates, que um sis-
1982,38). Em conseqüência, para ele, a instabilidade política tema bipolarizado nos extremos fomenta, mas que, atual. B
é funcional e a democracia, ao contrário, um risco fundamen- mente como no passado, leva a govemar no centro? No en-
tal, não pela ameaça das classes dominadas, mas em virtude tanto, quanto mais as políticas se aproximam -- como ocorre
do próprio tipo de dominação solitária que exerce, e que se a partir de março de 1983e do plano de praxe -- tanto mais os
recusa a compartilhar. Pior ainda, pela própria multissetoria- discursos se afastam. Enquanto a democracia não tem nada a
lidade dos seus interessese pela tendência especulativa de seus ganhar com ese jogo perverso. As areadas periódicas que os
comportamentos económicos, as descontinuidades políticas líderes conservadores impõem contra as possíveis derrapagens
Ihe são mais propícias que os amplos estuários de estabilidade no seio de suas fileiras provam, no entanto, que a virtude de-
e as políticas económicas de longo prazo. Visão conspiratória veria prevalecer, e que o extremismo desastroso será contido.
da vida pública, dir-nos-ão. Mais simplesmente,analise da Não estamosem 1940,quando a derrotadera à burguesia
democracia em termos de vontade e de finalidade social. Para francesa a oportunidade de se vingar de 1936 e do ''grande
a grande burguesia argentina, ferozmente partidária do libe- medo'' da Frente Popular, convertendo-seo desastrenacional
ralismo económico mais estrito, o que conta, antes de mais no triunfo dos ''nacionalistas'' (GuiUemin: 1974,420), que
nada, é um acesso direto e privilegiado ao Estado, e uma dis- preferiam Hitler a Thorez ou Blum. Por isso talvez não devês-
ponibilidade total dos seus recursos, que afasta qualquer es- semos tomar ao pé da letra as bravatas de hoje. E se a espuma
quema rígido de investimento. A tanto obriga a especulação. das palavras nos escondesse evoluções profundas, e a gesticu-
E a França, nisso tudo? Não estamos assim tão longe lação encaminhamentog portadores de futuro?
dela. Foi a alternância de 1981, dramatizada de ambos os la-
H6 CONCLUSÃO: OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 257
fe.'' Para a segunda,que começaa se organizar, a autocoer- dade'' contra o governo democrático, afastaram-se dos mili-
ção, o reconhecimentodas regras do jogo, a defesa das insti- tares guardiães do Estado. IJma minoria governante, alguns
tuições e de um quadro normativo comum necessário à coexis- clãs, tanto civis como militares, o núcleo da linha-dura do
tência social têm prioridade. Até agora, a vf#zzde parece pre- Exército ligado aos serviços de inteligência viram na aber-
valecer sobre a violência, que a sociedade argentina rejeita, tura apenas um meio de quebrar a oposição e de instituciona-
depois dos dez anos negros pelos quais o país acaba de passar. ( lizar seu poder. Fracassaram. Um retrocessoautoritário teria
A sobrevivência de uma sociedade que passou tão perto de sua um custo social e político tão alto que ninguém sonha sequer
própria dissolução e da perda de.sua identidade tem esse pre- com isso. A conciliação tradicional deveria permitir encontrar
ço, mas a grande burguesia, cujos comportamentosdesesta- uma saída que lembra a quadratura do círculo. Mas, por trás
bilizadores analisamos aqui, estará ainda satisfeita por muito do cenário oficial, aqui também têm lugar movimentosde
tempo, sem reformas de estrutura que quebrariam o seu fundo, cuja importância é de outra ordem. O que os jornalis-
poder?r tas brasileiros chamam de o despertar da sociedade civil e sua
Algumas das evoluçõesque aparecem na Argentina não emancipação com relação ao Estado recobre uma realidade
deixam de lembrar tendências aparentemente de peso na vida decisiva: a aspiração a uma verdadeira cidadania, a recusa da
política francesa. Na Argentina, a classe operaria integrou-se ''cidadania regulada'' que prevalece até agora (Santos: 1979).
à sociedade política no governo de Perón, em bases autoritá- A saída depende de um número excessivo de parâmetros para
rias. Na França, por razões diferentes,após a guerra de 14-18, que possa ser prevista com seriedade. Uma coisa é certa, como
a classeoperária perdeu a oportunidade de entrar no cenário demonstrou o franquismo a seu tempo: um regime pode es-
democrático. Bolchevizada por um mal-entendido .e um aci- conder outro. Talvez haja aqui também um laço comum entre
dente, ela pesou negativamente sobre as possibilidades de es- essas situações aparentemente disparates, mas problematica-
tabelecer uma república de compromisso, bloqueando em mente convergentes, que acabamos de evocar em sua dimen-
uma direita por muito tempo rancorosa e liberticida a moder- são futura, após termos explorado seu passado.
nização ideológicadas classes médias. Hoje, o declínio das
duas correntes, peronismo na Argentina e comunismo na
França,'não deixa de ter conseqüênciaspara o futuro da de-
mocracia nos dois países.
Mas, considerada globalmente, a situação argentina evo-
ca antes os últimos desdobramentos da interminável abertura
brasileira. Também aqui a burguesia, mais diversa e mais
heterogênea que na Argentina, parece ter perdido sua antiga
confiança no poder militar. Quer pelo fato de se ter reforçado
e não mais precisar, como em 1964, dessa custosa prótese,
quer porque agora desconfia da tendência dirigista dos mili-
taresno poder, acusadosem 1976-1978de esfaflzara econo-
mia, como vulgares socialistas. De qualquer forma, as pesqui-
sas de opinião são prova disso, bem como as tomadas de posi-
ção públicas e as gigantescas manifestações de rua pelas ''di-
retas-já'', a eleiçãodo presidenteda República que deveria
marcar o fim do ''sistema'' saído da ''revolução de 1964'': as
classes médias e a burguesia moderna que, em 1964, saíram
às ruas nas ''marchascom Deus, pela família e a proprie-
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 261
Bayart, Jean-François
1983. "1esSociétés Afncaines face à I'État", in .flouvoirs, 25.
Bela. Daniel
1967. The Endoflaeolo8?, Glencoe, The Frei Press.
1981. Os Parffdos Pb/Íficosno .Braslr, 2 vais., Brasília, Editora da Universi- 1974. .Nbfiona]fté ef ]Vafíonaur(/870-1940), Paras, Gallimard.
dade de Brasília. Helvig, Jean-Michel
Flynn, Peter
1983. "La Bastillen'en Finit paz de s'Écrouler", fn II'berarhn, 15de julho.
Hermet, Guy
1978. .Brazf1 -- .4 /)o/ffícaJ.4ná/ysis, Boulder, Colorido, Westview Press.
1983. .4ux ,FluBfiêres de la Z)émocrarfe, Paria, PUF.
Fodaz, Mana Cecília Spina Hermet, Guy ef a/fí
1982. Tenenfismoe I'o/ífíca; fere filmo e (fumadas Médias Urbanas na
1978.' Z)es Elecffonspas comme /es .4tifres, Paria, Pressas de la FNSP.
Crise da .13'fieira Repiíblíca, Rio de Janeiro, Paz e Tema. 1978. Z/ecffon WífAouf Cholce, Nova lorque, Halsted Press.
Frankel. Francine Hintze. Otto
1969. "Democracy and PoliticalDevelopment, Perspectivasfrom the Indian 1975. "The Formaüon of States and Constituüonal Development: a Study
Experience", fn World.f)o/irias, XXI, 3. in History and Politica", fn Gilbert, Felh, Zhe HnfoHcal Easays oÍ Oao
Furet, François HZnfze, Nova lorque, Oxford University Press.
1979. Pensei /a Révoltirün Françaüe, Pauis, Gallimard. Hirschm an, Albert
Furtado, Celso 1975. "Mudanças na Tolerância com a Desigualdadede Rendas no Curso do
1954. ,4 Economia .Brasllefra, Rio de Janeiro, Ed. A Noite. f Desenvolvimento
Económico", fn Estudos Ceórqp, n? 13, São Paulo. Tam-
1965. "Obstáculos Políticos ao Crescimento Económico do Brasil", íB Revista bém no alia er/y ]otima/ of.Economícs, 87, nP 4, 1973.
(:7vfZízação.Brasflefra, n? 1, Rio de Janeiro. 1979. "The Turn to Authorítarianism in Latin America and the Search for
1976. la Economia Z tinoamericana; una Síntesesdesde !a Conquista Ibérica lts Economia Determinante", in Colher, David, op. cff.
hasta /a Neva/ucfón Cu&alza,Santiago do Chile, Editorial Universitária. Hoffmann, Stanley
Gauchet. Marcel 1974. Esiaü sur ]a Eramce. Pauis. Senil.
1980. "Tocqueville, I'Amérique et Naus(Sur la Génese des SociétésDémocra- Holanda, Sérvio Buarque de
tiques)", fzz.Libra, Pauis, 7, pp. 43-120. 1956. Raüex do .Brasa/,Rio deJaneiro, José Olympio.
Germana. Gins Huntington, Samuel P.
\9'72. Política ) Socieàad en una Época de Transición: de ta Sociedad Tradi- }
1968. Po/fffca/ Ordemfrz Changíng Socfeffei, New Haven, Yale IJniversity
cfoãa/ a la Socfedad de Àíasas, Buenos Abres, Peidos. Press.
Góes, Walder de lanni. Octávio
1978. O Braif/ do venera/ Gele/, Rio deJaneiro, Nova Fronteira. 1968. O ao/apto do Parti/fumono .Brasa, Rio deJaneiro, Civ. Brasileira.
1984. "As Elites e a SucessãoPresidencial: Colaboraçãoe Confronto", paper Iglesias. Francisco
apresentado à reunião do grupo de estudos sobre Elites Políticas da ANPOCS 1976. ''Revisão de Raymundo Faoro", ín (hdemos do Z)eparfamenro de
-- Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais, realizada no IDESP, Cíê»cfa Políríca(3), Belo Hoilzonte, pp. 123-142.
São Paulo. Jaguaribe, Hélio
1950. "Política de Clientela e Política Ideológica", fn l)f8esfo Económico, São
Goguel, François
197Q. Géographie des ÉiectioltsFrançaises seus {a 3ême et la 4êmeRepubli- Paulo, 6 (68).
1961. "A Renúncia do Presidente Jânio Quadros e a Crise Política Brasi-
que, Pauis, Prestes de la Fondation Nationale des Sciences Politiques. leira". fn Revüfa .Brasllefra de Ciências .çocíais, vol. 1, n? l.
1981, 1982. C%noníquesE7eclora/es, tomos 1, 2 e 3, Paras, Presses de la Fon- l
1962. "As Eleições de 1962", ín Zezlzpo .Brasflefno, nP 2, Rio de Janeiro
dation Nationale des Sciences Politiques. 1962. 1)esenvo/vlmeafo Eoonómfco e Z)esenvo/vímepzfo/)olíffco, Rio de Ja-
Graham. Lawrence neiro, Fundo de Cultura.
1968. Cfvf/ Sewfce Rí:áonn ín .Braça, Austin, University of Taxas Press. Jaurês. Jean
Graziano, Luigi
1980. .1+l#üceatu Z)iscours .lbr/amenfalres, Paria-Genebra: Ressources.
1973. "Clientela e Politica nel Mezzogiomo", ín Fameti, Paolo, ll Sistema Jobert, Bruto
PolfffcoIfa/cano, Bolonha,ll Mulino, pp. 221-240. 1982. 'La Crise de I'État Indien", fn Economíe el Hümanisme, julho-agosto,
Gremion, Pierre
PP. 17-27.
1976. 1e .l)ouvoírPéribÀéríqtze, Paras, Seuil.
Groisman, Enrique
1983. .1bder e Z)freira no Processo de Reorganização Naciona!" * Buenos
J Joumal of Latin American Studies
U)83. Edição especialsobrea América Centrale o Caribe, vol. IS, parte 2,
Abres, CISEA. Cambridge University Press.
266 BIBLIOGRAFIA +
COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 267
Jouvenel. Bertrand de
1983. "São Paulo -- 1982: A Vitória do(P) MDB", in 7brfos .IZ)ESP. n9 2
19S5. Z)e /a Souverafnefé(.4 /a Rec&ercÀedti Bíen Po/fffque), Paras, Librairie SãoPaulo.
de Médias. Leal, VectorNunes
Kinzo. Mana D'Alva Gil 1948. Gorone/&mo, Ez ada e Mofo, Rio de Janeiro. Forense.
1980. RepresePzfaçãoPo/ífíca e Sistema E7efforal no .Brasa, São Paulo, Sím- Leff, NathanielH.
bolo. 1968. Ecolwmic PotNci-Makingand Dwelopment in Brazil, 1947-1964,Raça
Kolm. S. C. porque,Wiley.
1981. les É/estio i ne sompas /a Z)émocrarfe, Paras, Le Cera.
+
Léfort. Claude
Kothari, Rajni 1981. 1,'1nvention Démocratiqt4e: l.es limita de la Domination Totalitaire.
1970. .1)o/fflcsfn Zndfa, Nova Delhi, Orient Longman Ltd. Paria, Fayard.
Krishke, Paulo J. (org.) Levine. Robert M.
1981. Z)o ' abre 'Hbedtzra São Paulo, Cortez. 1980. O Regime de Vergas; Os .Anos C)írfcos(/934-19y8), Rio de Janeiro.
La Palombara. JoseDh Nova Fronteira.
1967. Clientela € Parentela: Studio su11iompi dTnteressein Italia. Müâo, Limo Junior, Olavo Brasil
Comunità. 1981. "Evolução e Crise do Sistema Partidário Brasileiro: as EleiçõesLegisla-
Laser. Celso tivas Estaduais de 1947 a 1962", fn Fleischer, Davíd, op. cff.
1975. O .Süfema Po/íffco .Brasa/aipo,São Paulo, Perspectiva. Linz, Juan
1984. "The Brazilian Political System:Trends and Perspectivas", ín Govem- 1973. "lbe Futura of an Authoritarian Situation or the Institucionalization of
menf and (àDposlffon,vo1.19, n9 2, primavera. Publicado em português na
sérieTextos IDESP, nP 1, São Paulo, 1983. an Authoritarian Regime: the Case of Brazil", fn Stepan, ed. , op. clf.
Lamounier. Bolivar 1983. "The Transition from an Authoritarian Regüneto Democracyin Spain:
Some Thoughts for BrazHians", Yale University, mimeo.
1974. Ideology and Authoritarian Regimes: Theoretica! Perspectives and a
Sludp ofrhe Brazllfan Case, Los Angeles, University of Califomia, Ph. D. dis-
F Linz, Juan & Stepan, Alfred(eds.)
sertation.
1978. The .Brêatdownofl)emocrarfc ReB-lhes,Balümore, The JohnsHopkãis
University Press.
1975. "Comportamento Eleitoral em São Paulo: Passado e Presente", ín La- Lippi, Mana Lúcia
mounier, B. e Cardoso, F. H. (orgs.), op. cit
1978. "Presidente Prudente, S.P.: o Crescimento da Oposição num Reduto 1981. "0 Partido Social Democrático", fn Fleischer, David, op. cff.
Lipset, Seymour M.
Arenista", ín Reis, F. W. (org.), op. clf.
1959. /)o/íffcaJ J14am.' Zhe .Socfa/ .Baiei of .l)o/fíícg, Nova porque, Doubleday
1980.(org.). Mofode Z)escon#ança; Eleições e Mudança Polífíca no Brmfl, & Co
Rio de Janeiro e Petrópolis, Vozes. Inwenstein, Karl
1981a. "Introdução", pp. 1-18,in Amaral, Azevedo, op. cff-
1981b. ''RepresentaçãoPolítica: a Importância de Certos Formalismos.
+
Picaluga, 1. F.
1980. Partidos Políffcos e Classes Sociais; a t/DN' da Guanaóara, Rio de Ja-
Mirabeau pondence ave le Comte de Lamuk", cíf. in Thiullier. G., ZZmojns negro, Vozes.
de I'Hdminfsfrafíoiz , Pauis, Berger Lewault.
Pizzorno. A.
da, Pontes de Gonlfffufção de ]94ó, São Paulo, Max Limonad. 1981. 'lnterestsand Partes in Pluralism fn Berger, R. S., op. cíf.
Potter. David
Mitterrand, François
1980. /cí ef Ã/aípzrenanf, Pauis, Fayard. 1966. lei .FTlsde /Hbo dance, Paras, Seghers(Vent d'Ouest).
1981.Entrevistaaojomalle Mbn(ü, 25dejulho. Pouvohs
1978: 'Le Regime ReprésentatifEst-ll Democratique?"
Subrata Kumar and Local Power: Elections in an Indian Vinage' Programme Socialista
Jorna/ ofGommonwealr# aomparaffve Polírfcs, novembro. 1972. Paras, Flammarion.
1980. "Les Élections de 1980en Indo", in /»o#ef, setembro-outubro. Przeworski. Adam
Moog, Viana 1981. "Compromiso de Clasesy Estado: Europa y América Latina", in Lech-
1983. .Bandeíraníes e /yomeíroi, 141 ed., Rio de Janeiro, Civ. Brasileira. ner, Norbei't,Enfado y Pb/ílfca eiz.4méHca lafíPza, México, Siglo Vehteuno.
Mota. CarlosGuilherme Reis. Elisa Mana Peneira
1971. Brasa/emPersa)ecríva,São Paulo, Difel. 1982. "Elites Agrárias, .Sfafe-.Bui/dfng
e Autoritarismo", fpzRevüfa Dados
3, IUPERJ, Rio de Janeiro, pp. 341-348.
urro Charles Z)écadenceÜonomíque de la Xraace, Paria, Plon. Reis, Fâbio Wanderley
Nettl. J. P. 1974a. "Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Político", fn Cademoi
1967. "The State as a Conceptual Variable' WorZd Pb/Iffcs, XIV, se-
do Z)epa amenfo de Clâicfa /)o/íffca 1, Belo Horizonte, pp. 5-58.
tembro. 1974b. "Brasil: Estado e Sociedadeem Perspectiva", in Cbdemoi do Z)epar-
famepzfode (Xêncfa Jlo/üfca 2, Belo Horizonte, pp. 35-74.
Nicolet, Claude bllcalne eH France, Paras, GaUmard. 1978. (arg.) Os Partidos e o Regimesa ]=6gícado ProcessoEleitoralBrasileiro,
Nobercourt, J. São Paulo, Símbolo.
+
Rokkan. Stein
Oliveira Vianna, F. J. írícasBrasíleírag Rio deJaneiro, rosé Olympio. 197S. "I)imensions of State and Nation-Buildings; a Possible Paradigm for
Researchon Variations within Europe", ín Tilly Charles, ZBe .Fbrmaffopzof
1952.Problemasde Organizaçãoe Huble»iasde l)íreçã), Rio de Janeiro, AEaffozza/Sfafes fn Wesfem Eurupe, Princeton, Nova Jersey, Princeton Uni-
rosé Olympio. versity Press.
Oquist, Paul Romero. Jose Luas
1978. Violencfa, Gopz#ícfoyPo/ífíca en Colombfa, Bogotá. 1975. Zas Ideal Pb/ítícas en .4rgeRrfrza, Buenos Abres, rondo de Cultura Eco-
Oszlak, Oscar nom.ica.
1982. 1,a ,lbrmacfón de/ Estado 4rgentlno, BuCHosAbres, Editorial de Bel- Rouquié, Alain
gramo. 1978 L'Analise des Électiõns Non-Concunentielles: Controle Clientéliste et
Pereira. Raimundo ef a/íf
1984. Eleições no Brasa! Pós-64 São Paulo, Global
270 BIBLIOGRAFIA COMO RENASCEM AS DEMOCRACIAS 271
1977. "Party and Patronage: Germany, England and ltaly", fiz/lo/fffci and
cíf SocfeQ, 7, n9 4.
1982. .4dhemarde Barmi e o P.SP, São Paulo, Global. Siegfried, André
Santos. JoséMana dos !913. TabieauPolitíque de ia France de !'Ouest seus la lllême République,
1930. ,4 PI)/íffca Gera/ do .Brasír, São Paulo, J. Magalhães. Paras, Armand Colin.
Santos,WanderleyGuilhermedos . . . . . .. . Simão. Azis
1974. The Cãlcului of (bn#ícr; .IPnpassefn Brazlllan rolzrics, btantora um- 1956. '0 Voto Operário em São Paulo' in Revista Brasileira de Estudos Po-
versity, Ph. D. Dissertation. /úlco.s. vol. 1. no l.
1978a. Poder e Polífíca; C>6nlca do 4tifodfarlsmo Brasileiro, Rio de Janeiro, Simonsen. Roberto
1944. Hisfóría .Económicado .Brasa/(]500-]82a), São Paulo, Cia. Ed. Nacio-
Forense-Universitária beralísmo/)olíflco,São Paulo, Duas Cidades nal
1979. (Xdadanía elusffça, Rio de Janeiro, Campus. \
COMO RENASCEM AS'DEMOCRACIAS 273
272 BIBLIOGRAFIA
Torres. Jogo Camelo de Oliveira
SOFRES 1957. .4 Z)emocracfa Cbnoada, Rio de Janeiro, José Olympio.
1984. Opíníon Pub/íque, Pauis, Gallimard. Tijndade, Hélgio
Sola. Lourdes 1974. O Integra/ümo(O Fascismo .Brasílefno a Z)écada de 30), São Paulo,
1969. '0 Golpe de 37 e o Estado Novo' ín Mota, Carlos Güilherme(org.), DIFEL.
0 clf 1981. "Integralismo: Teoria e Praxis Política nos Anos 30", ín Fausto, Bons
Soir, Bemardo & Taparesde Almeida, Mana H.(orgs.) (org.), op. clt.
1983. Sociedade e .l)o/ífícano .Braif/ P6s-ó4, São Paulo, Brasiliense. 1982a. O AXovo
Socfa/lamafrancês e a .4mérlca.Latina, Rio de Janeiro, Paz e
Tema
e
Souza, ILmanry de Nata,e o/ Corporatist Representation: leaders altd Members of 1982b. .Brasa/em Perspecfíva. l)i/emw da 4beHura .f)oZírfca,Porto Alegre
Organfzed .l:apor in Brazi/, Tese de Doutoramento, Massachusetts Instituto Sulina.
of Technology, Cambridge. 1983. "La Question du Fascismo en Amérique Latino", l Revtie Xrançaíse de
Souza, Amaury de & Lamounier, Bolivar ..,. . . Scíe#cePolífique(2), Paris.
1981. ';Governo e Sindicatos no Brasil: A Perspectiva dos Anos U(J' , in Ke 1984. Constmção do Estado Naciona! na Argentina e no Brwi!= Esboço de
víxfa Dados, vo1. 24, n9 2. uma .4ná/fse (;ozpzpararfva,Paras, CERI/FNSP, mimeo.
Turner. F. J.
Souza, Mana doCarmoCampellode .. . . . .
1969. "0 ProcessoPolítico-Partidário
na PrimeiraRepública", in Mota, Lar- 1921. Zhe J;lorzfferín 4merícan Hisrory, Nova lorque, Henry Holt.
Turpin, Dominique
1976 Estados(org.). op. cü, cos no Brasa'J(/930 a /9ó4), São Paulo. Alfa- 1978. "Critiques de la Représentation' flz.Z)ouvofrs,
7, PP. 7-16.
Uricoechea, Fernando
Õmega.
1976b. Janto Quadros: Três Momentos na Vida de um Político' in istoE, 1978a. O JvZRofauro ]inperfa/, São Paulo, DIFEL
no4. 1978b. "Coronéis e Burocratas no Brasil Imperial: Crónica Analítica de uma
1977. '0 Que é Bom para São Paulo é Bom para o Brasil?" ínlsfoÉ, n' 9. "+ Síntese Histórica", ín Nunes, Edson de Oliveira(org.), .4 .4veizftnaSocioZó-
gfca, Rio de Janeiro, Zahar.
Velho. Otávio Guilherme
StepanIAlfred Py fn Polffícs.'Changfng Patfems in Brazí/, Princeton. Nova
Jersey, PrincetonUniversityPress. 1976. Capita/ümo 4ufon'faria e Campeslizafo([/m Ekftido Colnparaflvo a
padfr da /}oPzfeíra em Mbvlmenfo), São Paulo, DIFEL
1973.(ed.) .4ufÀoHfarlanBrazl/.'Orlgins. Oulpursand Fufure, New Haven, Viana. Luis Werneck
Vale University Press. 1976. Z;Ibera/esmoe Sfzzdícafo, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Vieira da Cunha, M. Wagner
yer, Joseph s Or@fnesMédíevaZei de /:Étaf Ãíodeme, Pauis, Payot. 1953. O Sistema .4dmfnisfrafívà.Brasileiro(/9yO-/950), Rio de Janeiro, Mi-
nistério da Educação e Cultura.
Tambu;;;:o, GiusEppe D fsrfano(]7 Pofere ín Ita/ía Oeg/ e DomaniD, Milho Viola. Eduardo José
Sugarco Edizioni. 1982. 1,as Tentativas de Establecer un Régimen Político Democrático en Ar-
gezzffna; /9]2, /945-5ó, /9á3-óó, trabalho apresentado ao Congresso Mundial
Tapares.José Antonio Giusti smo Brasileiro, Porto Alegre, Editora Mer-
de Ciência Política(IPSA), Rio de Janeiro.
cada Aberto. Weffort, Francisco C.
Tavares de Almeida, Mana H.
1965. "Raízes Sociais do Populismo eh São Paulo", fPZRepara CívfZfzaçâo
1982. "1e SyndicalismeBrésihen entre la Continuité et le Changement' Brasileira. nl?'Z.
Proólêmes d Hméríque Zarfne, n9 65, 39 trimestre, Pauis. 1978. O l\)pu/fumona .f)o/ífícaBras1lefra,Rio deJaneiro. Paz e Terra.
Thompson,E. P. Wiarda, HowardJ.
' 1977. 1a Farmacfó Hlslórfca de /a ClaveObrera, Barcelona, Heinrich. 1973. "Toward a Framework for the Study of Political Change in the lberic-
Tillion. Germaine Latin Tradition: the Corporativo Modal", fn Wor/d/lo/íflcs, 25.
1966. Ze ãhrem ef /es Gotislns, Paras, Senil. Wílde, Alexander
F O PODER NA HISTÓRIA
]
A REVOLTA DE KRONSTADT
Henri A rvon
A história do soviete de Kronstadt, que
lutou e resistiu à ditadura do Partido, após
a Revolução de Outubro de 1917, na
Rússia.
e
rL- ]
AHMOKPATIA.
POR QUE DEMOCRACIA?
Francisco C. Weffort
IJm trabalho brilhante de um intelectual que anuncia uma sole-
ne chegada à maturidade. Lendo-o, entende-semelhor a ques-
tão democrática e acredita-se mais na democracia." ,
''' ]\fúria Sérvio Cona Veja
Até quando?
Weffort tem a seu favor neste livro o clima de atualidade: foi
concluído em setembro e pôde abordar. com dados recentes. a
corrida sucessória via Colégio Eleitoral. Além disso, embora O SENHOR E O UNICORNIO - A Economia dos Anos 80
sua formação seja a de um acadêmico, escreve.para ser lido. l.uiz Gonzaga de Melão BeHuzzo
Seu texto flui. sem tropeços nem embromaçoes Fanfiní -- /sfo E Através de artigos publicados originalmente na Revista Se
nhor. Belluzzo -- intelectual independente que luta pela recons
trução nacional -- analisa a situação económica brasileira e in
ternacional. numa linguagem que não dá margem às interpreta
ções duvidosas.
A QUESTÃO DA DEMOCRACIA
Denis L. Roseníield DÍVIDA EXTERNA E POLÍTICA ECONÓMICA - A
Coleção QUALE
Experiência Brasileira nos Anos 70
Num país que viveu recentementea experiência de manifesta- Paulo Davidoff Cruz
ções políticas carácter izadas
. por exigências
. . democráticas -- Estudando em profundidade ái transformações da econo-
exigências de um governo da maioria e de um governo regido mia brasileira, os mecanismos de financiamento e o endivida-
Dor leis --- a democracia é mais.do que nunca uma.pelTjlJ;linfa
-- mento do Brasil no período que vai do auge do.ciclo expansivo à
e uma resposta -- que diz respeito ao nosso futuro, futuro de ho- recessão dos anos 80, o autor discute o papel desempenhado pe-
mens livres e responsáveis. la politica económica.governamental'e as consequênciasda
abertura financeira'' para o exterior.
+ INFLAÇÃO É RECESSÃO
juiz Cardos Bresser Peneira e Yoshiaki Nakano
Reunindo textos inéditos ou publicados na lievista de Eco-
nomia Política. este livro lança uma luz à discussão sobre infla-
COMO RENASCEMAS DEMOCRAÇIAS ção e recessão: partindo do conceitode estagflagão, gs,autores
Alain Rouquié, Babvar Lamounier e Jorre Schvarzer dentificam latos histói'idos decisivos na ''estabilização'' da cri-
se económica mundial.
ANTROPOLOGIA DO COTIDIANO
da periferia à Indústria Cultural
O OUTRO LADO
A POLITICA DOS OUTROS -- O Cotidiano dos
COMUNICAÇÃO Moradores da Periferia e o que Pensam do
Poder e dos Poderosos
Teresa Pires do Rio Caldeira
O DIREITO DE COMUNICAR - Expressão, A história de um bairro da periferia de São Paulo e de
Informação e Liberdade seus moradores, mostrando como se formou esse pedaço
oesinona Fischer da cidade onde tudo é precário e quem são seus
O objetivo deste livro é fazer o conceito de habitantes, que idéias têm da política, como vivem -- ou
sobrevivem -- junto com seus familiares.
comunicação melhor conhecido, de forma a encorajar
uma discussão mais ampla sobre o direito de
comunicar. direito de estar informadoe participar da TESTEMUNHAOCULAR -- Textosde
comunicação pública. Antropol99ia Social do Cotidiano
Diversos Autores
Os cinco ensaios reunidos neste livrosão o resultado da
COMPANHEIROS DE VIAGEM aplicação da teoria antropológica moderna a algo
Deocélia Vianna familiar: á imagem do índio no livro didãtico, o conceito
Esposa, mãe e companheira de trabalho falando dos de valor de usõ em confronto com os produtos da Souza
acontecimentos que marcaram sua vida ao lado do Cruz, imagens da educação, a festa de Natal e um caso
homossexual.
marido Oduvaldo Vianna e do filho Vianinha,
recuperando parte importante da história do rádio e
da cultura brasileira deste século. ANTROPOLOGIA DO CINEMA
Do Mito à Indústria Cultural
Massimo Canevacci
ILUSÃO ESPECULA.AR - Uma Introdução à A partir da busca do ''espíritodo cinema'', dos seus
Fotografia mecanismosde reprodução de estereótipos,e de toda
Ariindo Mlachado mitologia que o cerca. o autor lança nova lyz sobre a
Através de um profundo estudo do código fotográfico, questão da indústria cultural no capitalismo.
são discutidos os conceitos de realidade e objetividade
atribuídos à fotogrclfia.fazendo uma crítica dos seus
suportes ideológicos, de modo que se possa esclarecer
por que não podem existir sistemassignificantes
neutros nem inocentes.
denaçõo: MarilenaChaui