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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X02204713
Resenha recebida em 29 de abril de 2020 e aceita para publicação em 5 de agosto de 2020.
* Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública e Professora de História do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Rio de Janeiro/RJ – Brasil.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5288-2274.
** Pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto de História, Rio de Janeiro/RJ – Brasil.
E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6664-4891.
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Redemocratização no Brasil: continuidade ou ruptura?
Ana Cristina Augusto de Sousa e Lays Correa da Silva
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fundamentos da estratégia de transição polí- Brasil expressou duas tradições mais abran-
tica adotada pelos dirigentes do regime após gentes anteriores: a da conciliação como
1974 e as táticas adotadas para alcançar o forma de preservação dos interesses funda-
seu maior objetivo: um regime democrático mentais das classes dominantes na nossa so-
restrito, baseado em maiorias parlamentares ciedade e a da contrarrevolução preventiva
conservadoras. Nesse capítulo, o autor des- como estratégia anticrise (p. 18). Nesse sen-
vela as origens do projeto distensionista no tido, o autor enquadra o tema na dinâmica e
Brasil, expondo a ligação de expoentes da na cronologia do processo de contrarrevolu-
ciência política norte-americana com inte- ção que estrutura politicamente a sociedade
lectuais brasileiros (“conexão Harvard”) na brasileira também (p. 26).
formulação de estratégias e táticas de transi- A partir de Florestan Fernandes (1979),
ção do regime (p. 123). o autor explica que a luta de classes no mun-
O terceiro capítulo, “A anistia como tá- do naquele momento levou as classes domi-
tica do regime: 1979”, trata dos primeiros nantes brasileiras a adotar prioritariamente o
cinco meses do governo do general Figueire- que esse teórico denominou de “métodos de
do (1979-1985) em que a anistia passa a ser contrarrevolução preventiva”. Desse modo,
reconhecida publicamente pelos dirigentes o uso da repressão violenta teria sido um
do regime até a sua aprovação final. Aqui, aspecto constitutivo e inerente à implanta-
o autor mostra como o atendimento às con- ção e à reprodução do regime político con-
veniências táticas oficiais asfixiou a princi- trarrevolucionário e não uma expressão da
pal bandeira do movimento oposicionista: perversão particular dos agentes do regime,
a concessão de uma anistia ampla, geral e embora certamente isso tenha contado em
irrestrita acompanhada da desarticulação do determinadas situações. A repressão violenta
aparelho repressivo do regime, da apuração teve alvos precisos, ele nos lembra: as ligas
da autoria de crimes contra oposicionistas e camponesas e os sindicatos rurais no campo
da responsabilização de agentes de Estado e as organizações de trabalhadores e de es-
comprovadamente responsável por eles. A tudantes, nas cidades, aos quais se somaram
anistia aprovada pelo governo não foi am- num segundo momento (AI-5) os militantes
pla, nem geral, nem irrestrita. E, graças ao de organizações armadas da esquerda (p. 85).
seu artigo sobre “crimes conexos”, que viria Assim, a violência política aberta e tam-
a ser interpretado como uma garantia de bém os métodos de negociação democrática
reciprocidade na anistia, ainda contribuiu – nas figuras do Judiciário e do Parlamento
fortemente para o bloqueio de qualquer ini- – teriam uma racionalidade própria deriva-
ciativa de investigação e punição dos agentes da das necessidades da classe dominante no
do Estado acusados de violações de direitos exercício do poder, que deram sentido aos
humanos. dispositivos jurídicos criados pela ditadura,
A hipótese geral que orienta a obra é que como os atos institucionais e complemen-
o processo que levou à anistia política no tares, as constituições outorgadas e outros
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diplomas legais, assim como aos subprodu- da oposição, por iniciativa e sob o controle
tos desse aparato autoritário: mortos, desa- dos primeiros. Integraria também a agen-
parecidos, presos políticos etc. Nas palavras da de transformações buscadas desde 1973
do autor, “racionalidade essa que estaria na por lideranças civis e militares do governo,
base, também, da evolução das leis que tipi- tais como a ampliação do leque de opções
ficaram o crime político no país e condicio- partidárias e o abrandamento da legislação
naram o instituto da anistia” (p. 24). repressiva, entre outros (p. 26).
O autor mostra ainda que, no desmonte O autor destaca ainda que as ampliações
do regime ditatorial e sua substituição por da lei de 1979, em especial, a instituição da
outro, qualquer passo em falso inviabilizaria reparação financeira às vítimas da ditadura,
uma “transição sem ruptura”, ou, nas pala- podem ser entendidas como momentos do
vras do general Ernesto Geisel, uma “aber- processo de despolitização do problema e vi-
tura lenta, gradual e segura”. O pré-requisito tória estratégica da direção burguesa no pro-
para o sucesso desta estratégia era a obtenção cesso de transição política pós-1974 (p. 484).
de consenso em torno da própria transição, Entretanto, historiadores mais ligados aos
que deveria estender sua legitimidade para estudos sobre Justiça de Transição vêm mos-
além das camadas da sociedade que haviam trando como os atores envolvidos nesse pro-
apoiado o golpe. O tipo de anistia a ser con- cesso utilizaram o espaço aberto pela insti-
cedida, ampla ou limitada, geral ou parcial, tuição da reparação financeira para disputar
irrestrita ou condicional, resultaria, assim, politicamente as narrativas sobre o período
do rumo escolhido pela classe dominante em um movimento conhecido como “vira-
brasileira e do esvaziamento de qualquer po- da hermenêutica” da Comissão da Anistia
tencial antissistêmico (p. 25). (GATHE, 2015; RODEGHERO, 2012).
É importante notar que a transição do Aliás, o pressuposto teórico que admite
regime, segundo o autor, não visava outro que os atores sejam capazes de tomar decisões
qualitativamente diferente, mas apenas uma “estratégicas” pode ser um desafio a leitores
outra forma que incorporasse as novas for- que valorizem mais o peso de cisões e disputas
ças políticas, sob tutela militar. Os limites internas dos grupos de interesse nas escolhas
das reformas foram dados pelo caráter es- políticas. Embora reconheça essas variáveis, o
tritamente burguês da direção do processo autor mira no resultado da ação coletiva que,
político. O sentido básico da transição foi, para ele, é uma ação de classe (p. 476).
assim, o “de preservar as condições da domi- A pesquisa realizada por Renato Lemos
nação política de uma classe social absoluta- constitui uma importante contribuição para
mente desprovida de vocação transformado- os estudos sobre transições políticas. Uma
ra” (p. 26). das obras que mais influenciou as interpre-
A anistia de 1979 teria resultado, portan- tações latino-americanas sobre o tema foi o
to, de um grande acordo entre setores diri- estudo de Guillermo O’Donnell, Philippe
gentes do regime militar e setores moderados Schmitter e Lawrence Whitehead (1986),
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que comparou a transição de regimes auto- singular e arrojada do processo político bra-
ritários de países europeus e latino-america- sileiro recente, na qual ditadura, transição
nos. Os pesquisadores destacaram a “extraor- e democracia seriam faces de um mesmo
dinária incerteza” dos processos de transição padrão de dominação de classes, em que as
democrática e identificaram um conjunto de mudanças de regime político foram usadas
variáveis que devem ser considerados para o como “recursos conscientes” de setores em-
estudo das transições políticas negociadas presariais e militares alinhados no mesmo
ou por rupturas, como o papel dos atores projeto político.
políticos envolvidos na transição, a configu-
ração de pactos políticos e a realização de
eleições, entre outros (LIMA; SÁ, 2005, p. Referências
132). A crítica sociológica dos anos 1990 in-
dicou também a necessidade de examinar, AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio.
para além da transição política, a relação en- Teoria crítica, democracia e esfera pública:
tre Estado, instituições políticas e sociedade concepções e usos na América Latina. Dados
civil (AVRITZER; COSTA, 2004). Nesse – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro,
sentido, a democratização passou a ser re-
v. 47, n. 4, p. 703-728, 2004.
conhecida como um “processo permanente
e nunca inteiramente acabado de concreti- FERNANDES, Florestan. Apontamentos
zação da soberania popular” (AVRITZER; sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo:
COSTA, 2004, p. 704). Hucitec, 1979.
A obra aqui resenhada se insere numa GATHE, Glenda. A virada hermenêutica da
linha de interpretação que põe em causa a Comissão de Anistia: a anistia brasileira e as
efetividade dos processos de transições polí- diferentes estratégias de reparação (2007-
ticas derivadas de negociações, que o alinha 2010). Dissertação (Mestrado em História
a outros autores latino-americanos, como o Social). Programa de Pós-Graduação em
chileno Tomás Moulian (1997), por exem- História Social, Universidade Federal do Rio
plo. Tal linha busca explicitar, mais do que de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
rupturas, as continuidades presentes, em ter- LEMOS, Renato. Ditadura, anistia e
mos estruturais, nos processos de transições transição política no Brasil (1964-1979). Rio
políticas. Nesse sentido, a transição política de Janeiro: Consequência, 2018.
brasileira, negociada de cima para baixo,
LIMA, Bernardo; SÁ, Tiago. As teorias
convida a refletir sobre uma democracia que,
da transição para a democracia e o caso
apesar das liberdades, manteve inalteradas
português. Revista de Imprensa Internacional,
do passado autoritário estruturas brutais de
p. 127-144, set. 2005.
desigualdade social e repressão estatal do
descontentamento popular. MOULIAN, Tomás. Chile actual: anatomia
Não resta dúvida que a maior contribui- de um mito. Chile: LOM-ARCIS, Ed. 5,
ção do livro é oferecer uma interpretação 1997.
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