Revista Tempo Brasileiro - 142 PDF

H W *t tf H
2oû
2 P . -^ PS
PH
rZ
S^-brfK
Êou^3
^ ^2uô
H-O SiS
o t j '
~.s E e
s gs -O
O ,(U O. '
O 03 l
O N i .H -
l o 3
o PS
TEMPO BRASILEIRO
142
JULHO - SETEMBRO DE 2000
Diretor: EDUARDO PORTELLA O LUGAR DO LIVRO HOJE
Conselho Consultivo Os textos aqui publicados so

BARBARA FREITAG comunicaes apresentadas no
Cincias Sociais em Tempo Brasileiro CARLOS CHAGAS FILHO
EMMANUEL CARNEIRO LEO
Colquio Internacional "O lugar
JORGE AMADO do livro: entre a nao e o mun-
Crise de Legitimao no Capitalismo JOS PAULO MOREIRA DA FONSECA do" , realizado no Auditrio Ray-
Tardio l Jrgen Habermas NLIDA PINON mundo Magalhes Jnior, da
RAFAEL GUTIRREZ GIRARDOT
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA Academia Brasileira de Letras, de
Estado e Capitalismo l Winfried Vogt, SRGIO PAULO ROUANET 28.08 a 31.08 de 2000.
Jrgen Frank e Clauss Offe Foi uma iniciativa conjunta da
Comisso Editorial UNESCO, da Fundao Biblioteca
Poltica Econmica regional l Furst, CARLOS SEPLVEDA
Klemer, Zimmermann EDUARDO COUTINHO Nacional e do Colgio do Brasil.
FLVIO BENO SIEBENEICHLER Contou ainda com a cooperao da
Problemas Estruturais do Estado GUSTAVO BAYER ABL e da Folha Dirigida.
MRCIO TAVARES D'AMARAL
Capitalista l Clauss Offe MUNTZ SODR
O Colquio programado pelo
PEDRO LYRA Comit " Caminhos do Pensamen-
Regime Econmico e Poltica Econmica RONALDES DE MELO E SOUZA to Hoje", da UNESCO, quis pen-
l Alfred Muller Armack A editorao desta Revista, desde o sar o livro na encruzilhada dos
nmero 80, est entregue ao Colgio do nossos dias, completamente divi-
Mundializao: sia e Amrica l Revista Brasil (ORDECC). dido entre o protagonismo amea-
Tempo Brasileiro, 125 Revista Trimestral de Cultura ado, a emergncia de novos
Relaes Brasil-China: Impasses e Os artigos assinados so da inteira atores culturais, e o fortalecimento'
Perspectivas /Revista Tempo Brasileiro, 137 responsabilidade de seus Autores. precrio e possvel, do seu lugar
Direitos reservados s formador.
O compromisso bsico da Revista EDIES TEMPO BRASILEIRO A reunio contou com a partici-
Tempo Brasileiro continua sendo pensar. LTDA. pao de personalidades nacionais
Pensar, repensando, reconstruindo e in- FRANCO PORTELLA
e internacionais, e teve como coor-
ventando caminhos. Diretor-Presidente denador geral Eduardo Portella e
coordenadora executiva Francs
Redao e Administrao Albernaz.
RuGago Coutinho, 61
22221-ff70 - Laranjeiras
Rio de Janeiro RJ Brasil
Telefax: (021) 205-5949
SUMARIO
EDUARDO PORTELLA/ O livro na encruzilhada 5
EMMANUEL CARNEIRO LEO / O livro da linguagem. 7
RAFAEL ARGULLOL / Cumplicidades 15
GIANNIVATTTMO / Livro - Liberdade 29
GERD BORNHEIM / A propsito da histria

de uma vida: o livro 37
FRANCISCO DELICH / Parbola do Livro na Cultura Global 45
MAURICE AYMARD / As metamorfoses do livro e da leitura 51
Ficha Catalogrfica elaborada pela Equipe SRGIO PAULO ROUANET / A cultura do fim de tudo: do fim
de Pesquisa da ORDECC da cultura ao fim do livro 67
Revista Tempo Brasileiro, jul.-set. - n 142 - 2000 - Rio de Janeiro, ZYGMUNT BAUMAN / Os livros no dilogo global das culturas.... 87
Tempo Brasileiro, ed.
Trimestral BARBARA FREITAG / Era informacional e Uso do livro 103
1. Filosofia. 2. Cincias Sociais. 3. Histria. 4. Literatura. GLORIA LPEZ MORALES / O lugar do livro entre a nao
e o mundo 117
CDD 100
300 MILAGROS DEL CORRAL / O Livro tem futuro? A cultura
909 do livro na era da globalizao 125
B 869
CLAUDIUS B. WADDINGTON / O livro e a inveno da
modernidade 135
Cena Aberta
EDUARDO PORTELLA / Juan Rulfo, a palavra murmurada 157
Crditos dos autores 163
O LIVRO NA ENCRUZILHADA
EDUARDO PORTELLA
Aqui estamos, intelectuais de diferentes ecologias, para saber das

condies de vida, do estado de sade, para medir a temperatura ou a
presso arterial do livro neste comeo de milnio. Deixamos de lado a
iluso fundamentalista, a crena na relquia tombada, bem como a
anteviso apocalptica, o diagnstico do doente terminal. O livro, obje-
to-sujeito facilmente identificvel, no nem uma coisa nem outra.
antes qualificado agente de transformao da histria. Fica difcil acre-
ditar que "a civilizao do livro", sobre a qual Peter Sloterdijk lana
hoje perturbadoras suspeitas, tenha concludo a sua derradeira volta.
Mais provvel que a "galxia de Gutenberg" continue navegando,
com a obstinao de sempre. Aprendemos, com os nossos antepassados
portugueses, que "navegar preciso". Com ou sem a Internet. A
internetizao nem nos assusta nem nos pacifica. Mas de uma coisa
devemos estar razoavelmente certos: a histria do livro no pode ser, de
modo algum, a crnica de uma morte anunciada.
O livro sabe que vive em uma sociedade simultaneamente complexa
e simplificadora, cercado de perigos por todos os lados, sitiado entre a
presso do mercado e a impresso do mundo. Isto o identifica como um
ser profundamente humano - demasiado humano. Padece das dores
prprias de sua humanidade. Dentro dele esto guardadas, disponveis
e protegidas, as percepes mais entranhveis da peripcia humana - a
lembrana, a ocorrncia, a premunio.
* Palavras de abertura do Colquio Internacional "O Lugar do Livro: entre a nao e

o mundo", pronunciadas por Eduardo Portella, no dia 28 de agosto de 2000.
Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 5/6, jul.-set., 2000

O livro vem a ser a entidade confluente, na medida em que rene, no
mesmo projeto, a cultura e a educao. A cultura enquanto educao
no-formal, e a educao enquanto cultura basicamente formal. Todo
desempenho pedaggico, toda poltica pblica de educao, passa ou
deve passar pela cultura, inevitavelmente pelo livro. Foi assim nas
sociedades desinformadas e nas sucessivamente formadas. Ser cada
vez mais assim nas sociedades informatizadas, destinadas a rezar pelo
"evangelho digital", segundo a expresso cunhada por Hans Magnus O LIVRO DA LINGUAGEM
Enzensberger. Da a necessidade da leitura poliglota, a urgncia de
desmontar o dispositivo excludente do monolingismo. EMMANUEL CARNEIRO LEO
A leitura logo se afirma como o encontro do alfabeto em dissdio,
palavra babelizada, enlace penoso com o cotidiano de cada um de ns
- a nossa esperana militante, dentro da qual coabitam a memria e o Vivemos, nesta ltima semana do ms, o primeiro centenrio
esquecimento. A leitura no singular, como se praticava na poca da da sobrevivncia de Nietzsche na vida do pensamento. No Cre-
alfabetizao fora, nunca se desfez da herana autoritria que estig- psculo dos dolos, de 1887, Nietzsche nos lembra que, sem
matizou grande parte da nossa histria comum. No plo oposto, ou na biblioteca, os livros morrem e desaparecem e, com e na biblioteca,
contracorrente, a leitura chega a ser o mais livre regime de parceria, os livros ressurgem e se transformam em vida, numa Vontade de
insolitamente regido por contratos abertos. quando atinge o seu Poder. "Um livro, escreve ele, no livro. O que tm os livros,
estgio mais avanado, e faz do leitor co-autor. essas tumbas e mortalhas? Pois o passado o presente dos livros";
Tudo isso acontece por iniciativas ou com a cumplicidade de biblio- e como todo presente, no apenas a presena, tambm a
tecas cidads. indispensvel prestar muita ateno. Porque o poder ausncia do esprito, a vitalidade, princpio de vida! "Mas neste
das bibliotecas um poder silencioso. As bibliotecas no falam alto; aqui vive um eterno hoje" !
quase diria que simplesmente murmuram. E nem por isso deixam de ser E que livro esse em que vive um eterno hoje? O que Nietzsche
ouvidas. Dentro do seu recinto, dos seus corredores, de suas paredes nos quer dizer e fazer pensar deste livro que ultrapassa um hoje
midas, fantasmas convictos e seres perplexos, procuram tenazmente determinado para a eternidade de todo hoje?
decifrar a incerta verdade dos homens. Disso sabia muito bem um certo O livro eterno , sem dvida alguma, o livro da biblioteca. Pois
diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires: aquele inventor de fazer com que os livros deixem de ser tumbas e mortalhas de um
linguagens que nos acompanhar para sempre - Jorge Luis Borges. O passado morto e sem vida e ressuscitem para um eterno hoje, constitui
mesmo que, naquela biblioteca famosa, diante do saguo onde havia um o desafio de toda a biblioteca.
espelho, recusou a constatao predominante da finitude. "Eu prefiro - E o que isso, um eterno hoje?
disse ele, e ns repetimos - sonhar que as superfcies polidas repre- Este hoje, o hoje eterno, que vive no livro de biblioteca, a
sentam e prometem o infinito". Borges, ei hacedor, ei memorioso, nos concentrao do tempo. Pois todo dia de hoje revela e recolhe em si
ensinava sobre livro, leitura e biblioteca. E sua lio persiste. a fora de reunio de passado e futuro. Sem esta vigncia sempre
presente, o tempo no poderia ser tempo. O hoje eterno torna-se
sempre a consagrao do instante criador e assim de todos os outros
instantes com ele abraados no abrao de um mundo sem fim, porque
temporal. o in-finito do tempo, i. , justamente por ter sempre um
Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 5/6, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set., 2000
fim, o tempo nunca termina de passar. a conjugao do tempo vigente de toda a Antigidade. A idia bsica, que transmite o radical, tomado
em todo verbo de realizao da realidade, nas palavras conjugadas da aumalngua desconhecida do Mediterrneo Oriental, a idiade colher
poesia de T. S. Elliot: " O tempo presente e o tempo passado esto e recolher, para acolher e escolher: da casca se colhia o miolo, a
ambos talvez vigentes no tempo futuro e o tempo futuro contido no entrecasca, que era, ento, recolhida ao e no papiro para se acolher a
tempo passado. Se, pois, todo tempo est assim eternamente vigente, escrita e se escolher a escritura na leitura.
todo tempo no pode ser redimido". Pois bem, este tempo impossvel So estes trs verbos, recolher, acolher, escolher, todos derivados
de remisso o livro de biblioteca. Pois seu tempo nunca deixa de de colher, que definem tambm as funes do relacionamento criado
passar, denunciando sempre toda pretenso da totalidade e desmas- com os livros. Originariamente, ler, como Ayo), em grego, legere,
carando qualquer iluso de simultaneidade. Cada vez se faz sua em latim e lesen, em germnico, diz, tanto na palavra como na ao,
primeira vez, tornando-se a inveno de uma temporalidade cintilan- reunir, conservar, proteger. Mas, ento, que que, ao ler um livro, a
te mas pontual, sem fim mas finita, com memria produtiva, a leitura escolhe para reunir, conservar e proteger?
memria das musas, mas sem desejo de imortalidade, o desejo de Evidentemente, o que foi acolhido na escritura pela escrita.
todo animado insatisfeito com sua animalidade, movido pela preten- E o que a escrita acolhe na escritura e o leitor colhe na leitura?
so de elevar-se acima da vida e da morte. - A esta pergunta responde 0r|'Kr|, o segundo timo da palavra,
O livro de biblioteca j no sonha como vencer ou domar a morte, Biblio-teca.
ao contrrio, evoca continuamente, com sua prpria presena, e a 0TKT] se deriva de TGrî, sem a reduplicao. um dos
recebe, como pressuposto de uma constante inovao da vida. Trata- verbos irregulares em \i\, como t'v|ai, f arruai, )|ai, Kvufii.
se de uma transtemporalidade, i. , de uma temporalidade sem ne- Trata-se em -r6r\\ii de um verbo que nos fala de estabelecer e
nhuma pressuposio de imortalidade, seja retrospectiva seja pros- instituir, no sentido de guardar e cuidar, de promover e expandir.
pectiva. O livro de biblioteca celebra, assim, sem cessar, a aliana do Para integrar, numa dinmica de plenitude, as funes de colher,
hoje com o sempre, na conjurao conjugada do tempo. que no a saber, recolher, acolher, escolher, o livro necessita de cuidado
conserva apenas o j produzido, provoca o apelo de criar, evoca a e promoo, exige e requer um lugar instaurador de vitalidade,
necessidade de uma transformao ininterrupta e convoca as diferen- um lugar, i. , que no apenas guarde e proteja, mas, sobretudo,
as para um encontro de complementaridade. E, ento, um outro dizer que acione todas as suas potencialidades de gerar transformaes,
rompe os limites do discurso e prorrompe num dizer sem discurso. de induzir mudanas de estrutura. isto o que nos diz o segundo
Uma outra fala se desenha: uma fala sem definio, uma proposio timo e que define a funo vital de toda biblioteca: um livro s
que s prope o que j se impe. nesta direo, para este endereo livro em movimento de vida, quando mobiliza a tarefa de um
que o eterno hoje constitui o desafio e perfaz a provocao do livro desafio de crescimento.
de biblioteca. E que desafio este em que consiste sua tarefa?
E por que biblioteca, Livro de Biblioteca? o desafio da Linguagem e a tarefa de cultiv-la e preserv-la
Biblioteca uma palavra formada de dois timos, recolhidos numa em toda lngua!
dinmica de concentrao e acolhimento: ppAo e 6r|'Kr|. De certa feita, o mesmo Nietzsche do Crepsculo dos dolos,
BpAo o nome que os gregos davam ao porto da Fencia, donde disse num aforismo de 1888 que o filsofo vive "nas geleiras das
importavam a entrecasca de um arbusto, o Cypressus papyrii, uma altas montanhas", tendo por companhia o monte do vizinho, onde
espcie de cipreste. Era um arbusto muito comum no delta do Nilo. mora o poeta.
Por isso, antes de significar livro, ppAo tinha o sentido apenas de Ser mesmo que geleiras tm algo a ver com a vizinhana de
entrecasca. Pois da entrecasca deste cipreste se fazia o papiro, o papel filosofia e poesia? O que poder ser?
Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set., 2000
Sem dvida, alimentando de vida uma e outra, tanto a poesia S abemos tambm, quando dispostas, desvendar a verdade em
como a filosofia, a Linguagem mantm vizinhos poetas e filsofos. formademitos!"
Poesia e filosofia so dois modos, embora diferentes, de ser e estar
na Linguagem. Um dos mistrios da Linguagem para toda a cultura e civilizao
Sem dvida, as muitas filosofias no so apenas maneiras Ocidental se tem concentrado na dinmica de expanso e no poder
diferentes de se responder s mesmas perguntas legadas pela de transformao do livro de Biblioteca. Na raiz de todo ou no
tradio do pensamento, e sim nveis diferentes de se perguntar e , de todo e no age a fora do livro, a fora de gerar e induzir
aprofundar as respostas dadas pela experincia do pensamento tenses e conflitos. Nas vicissitudes e peripcias de realizao de
e preservadas pelas diversas lnguas da Linguagem. seu verbo, vive alvissareiro o poder criador e destruidor da Lingua-
Sem dvida, "os limites da Linguagem so os limites do mun- gem de gerar posies e compor oposies.
do" , na formulao pregnante de Wittgenstein. Enquanto viver- Das constelaes da biblioteca poderemos ento colher quatro
mos, pensarmos e agirmos nesta Terra, s faz sentido mesmo o coordenadas para a estrutura de encaminhamento da Linguagem
que pudermos falar uns com os outros, o que puder receber uma na poesia e no pensamento.
significao na e da Linguagem. No h verdade no singular, fora de 1 A Linguagem vive em toda fora de reunio, como a conjuntura
toda envergadura de integrao e convivncia. A verdade nos dada, de todo ordenamento das diversas ordens. Trata-se de uma conjugao
por existirmos sempre na Linguagem do plural, numa correnteza que ontolgica que, de alguma maneira, perpassa e resguarda tudo que e
nos arrasta para a conjugao das e com as diferenas. se realiza;
Sem dvida, j se tornou um desafio do e para o pensamento a 2 Pertence Linguagem coeso e consistncia de estruturao das
seqncia lapidar da Carta sobre o Humanismo: "A Linguagem a diferenas e suas tenses;
casa do Ser. No casa-mento de Ser e Linguagem, mora o homem. Os 3 Linguagem diz a realidade, como verbo e movimento de realiza-
poetas e pensadores so vigias e sentinelas deste casa-mento". o, que rege a totalidade do real e impulsiona o universo das realiza-
Mas que tem a ver geleira com Linguagem? es;
que ambas, tanto as geleiras como sobretudo a Linguagem, tm 4 A Linguagem a operao matricial nas lnguas e nos discursos
o poder ou melhor so os poderes de preservao radicais da vida, de uma vinculao matinal que instaura mundo no imundo e faz
depondo o passado e dispondo o futuro para o presente. As geleiras nascer ordem da desordem.
conservam. Conservaram os mamutes da Sibria e o Homem da Neve preciso muita experincia nas peripcias do Pensamento,-
dos Alpes. E a Linguagem? A Linguagem preserva. Preservou nos TTOXAU aropa - diz Herclito, para se perceber que pensar sempre
timos das lnguas as criaes do passado e as entrega continuamente traduzir da Linguagem para as lnguas. o convite que faz o livro de
s geraes presentes para as criaes futuras. Deste fluir e refluir da biblioteca, uma aprendizagem de traduo. Traduzir no , ento,
Linguagem vive toda a tradio e toda a histria humana, recolhendo encontrar correspondncias biunvocas entre vocbulos de duas ou
em suas correntes culturais Tcrr'vTa - o que - T(rr'55|iva - mais lnguas. Nenhuma traduo pode ser literal, para ser criadora.
o que ser - TTTpVTa - o que foi antes. o saber de integrao Um tradutor literal no sabe o que faz. impossvel uma traduo
e acolhimento que, no dizer de Hesodo (Teog. 27), Mnemosine, o eletrnica. Pois traduzir no est em trocar traos, traduzir respon-
pensamento criador, passou, em nove noites de amor, para as Musas: der aos novos apelos, mltiplos e diversos, que, diferenciadamente,
nos chegam nas palavras da Linguagem. Linguagem no lngua. A
"Pastores rudes, ms lnguas, somente ventres, linguagem a lngua materna de todas as lnguas e somente por
Sabemos recolher muitos mistrios ao seio das razes; sermos e estarmos sempre em sua maternagem que, na poesia,
10 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set, 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set., 2000 11
podemos traduzir de uma lngua para outra. Nenhuma lngua, seja e de volta ao caos retorna toda ordem e toda desordem, o mundo e o
verbal ou no verbal, pode dizer tudo que tem a dizer. E nenhuma imundo, tudo que est sendo e tudo que no est sendo.
lgica ou gramtica do discurso, da sentena ou proposio con- A palavra caos tem o mesmo radical do verbo XCTKCJ, que nos
seguem suprir tal impossibilidade, antes a favorecem e reforam. envia para a experincia de manter-se continuamente abrindo-se, de
Por um motivo bem simples. Pois justamente esta impossibili- estar, portanto, sempre em aberto. Diz o hiato do ser, o abismo hiante
dade que constitui e perfaz a Linguagem, como lngua materna de da realidade que , no sentido transitivo de deixar ser e realizar-se.
toda lngua. Somente esta impossibilidade cria as condies de Todo real se instala e sustem num advento desta realidade que se
uma maternagem que acolhe a diferenciao vigente nos dizeres abisma no hiato sem limites nem discriminaes de um nada criador.
de uma lngua. Dizer tudo seria a mxima redundncia e uma pura A essncia da Linguagem, me de todas as lnguas, est neste poder
tautologia, pois saturaria o vazio da palavra e preencheria o matricial do caos, o poder em si indeterminado e indeterminvel de
silncio da fala com o alarido dos discursos. Gr, ambos os dois, toda determinao e indeterminao.
tanto o silncio quanto o vazio, so indispensveis a qualquer A Linguagem, portanto, envia no livro de biblioteca para a conju-
diferenciao. O solo de uma relao e de qualquer relacionamen- gao das trs dimenses, os trs poderes, da realidade:
to no est na repetio da igualdade mas no rudo da diferencia- 1 A realidade est aqum e/ou alm de toda ordem e desordem de
o das diferenas, que provoca o "eterno retorno de seu qualquer tipo, natureza ou nvel;
igualar-se", no "pensamento absissal" de Nietzsche. Provocar 2 A realidade a possibilidade, em sentido transitivo de possibi-
repeties tudo que sabe e pode fazer uma traduo compu- litar, dar e/ou tirar o poder, de toda diferenciao e indiferenciao;
tacional. Ora, para traduzir criativamente, toda poesia tem de 3 A realidade o princpio de transformao e manuteno para
fugir literalidade e ser fiel s palavras da Linguagem nos diver- toda discriminao e/ou indiscriminao.
sos discursos das muitas lnguas. Esta integrao da Linguagem constitui de alto a baixo a existncia
As lnguas perfeitamente ordenadas so transparentes e imutveis. humana em cuja fora se inaugura a dinmica histrica das culturas.
Ideais e clonadas so, contudo, desprovidas de vida e de morte, Nela mora tanto o silncio da fala como o espanto da criao. Dela
tornando-se insensveis para as diferenciaes histricas e as diver- vive o estranho que atrai o Pensamento e o inesperado que alimenta
sidades culturais da humanidade. A linguagem real da vida dos de esperana as esperas. Com ela partilha o pensamento a ousadia de
homens no considera apenas as estruturas logicamente ordenadas suas aventuras e para ela recorre a insistncia das tentativas de
que se podem compor com clareza e uma perfeio sem jaca. A transformao de cada ato criador. nesta direo e neste sentido
Linguagem da vida real se mantm sempre em aberto e abrindo-se que o livro de biblioteca sempre livro da Linguagem!
para usos sempre inesperados e jogos em contnua mutao de suas
regras. A fonte da vida histrica o caos, no sentido originrio da Rio de Janeiro, agosto de 2000
experincia e da palavra grega. Trata-se de uma experincia inaugu-
ral to cheia e dinmica que dela se origina tudo que e nela se nutre
toda criao em qualquer rea ou nvel, tanto do real quanto do
possvel, tanto do necessrio quanto do contingente. Por isso todo
propsito de pensar ou falar, de conhecer ou agir sempre acena para
este vigor primordial de ser e realizar-se que a Linguagem propicia
numa infinidade de modos, entre eles, no seu livro, no livro de
biblioteca. Do caos provm, para o caos remete e no caos se mantm
12 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 7/13, jul.-set., 2000 13
CUMPLICIDADES
RAFAEL ARGULLOL
Respondendo ao tema proposto neste colquio, gostaria de referir-

me, muito especialmente, s cumplicidades que podemos entrever nes-
ses anos marcados pelo paradoxo e pela transio. Em conseqncia,
vou destacar trs territrios de convergncia nos quais permanece
implicada a cultura de nosso tempo, sem renunciar a expor meus
prprios desejos, na direo que, em seu momento, talo Calvino indi-
cou, conforme ouvimos nesta manh. Estes territrios de cumplicidades
representam um cenrio, uma proposta de hospitalidade e um apelo
polifonia.
O Cenrio
Considerando que a percepo do tempo, em princpio linear, to
significativa na mente ocidental, deveramos primeiro entender como
ele se estrutura, uma vez que dificilmente a cotidianidade ocidental pode
ser pensada em outros termos que no sejam lineares. Estamos forte-
mente configurados no sentido de um tempo linear - passado, presente
e futuro. margem, somente o tempo do sonho, que um tempo
anrquico cujas leis desconhecemos, como desconhecemos os ritmos,
a legislao com que o tempo da memria atua, embora seja um tempo
que vai do presente para o passado.
No sei at que ponto assim o era, na poca clssica dos gregos. A
partir de algumas dedues que podemos fazer, desde os filsofos
pr-socrticos e do mundo da tragdia, possvel que ali atuasse uma
espcie de dupla dimenso do tempo. De um lado, um tempo efetiva-
Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000 15

mente linear (passado, presente, futuro), porm, por outro lado, tssima presena da linearidade temporal, mais estrita ainda na
provvel que esse tempo linear estivesse matizado ou vinculado poca moderna, j que, se o que conhecemos como histria uma
dialeticamente a um tempo de dimenso circular. No Prometeu acor- disciplina antiga, fundada pelos gregos, a imbricao da histria no
rentado, pude detectar uma das poucas passagens da literatura grega tempo, em forma de historicismo, uma atribuio completamente
onde se diz que o destino est dirigido, tanto por algumas deidades moderna.
que representam o tempo linear, como por outras, que podiam repre- Ao longo do mundo antigo, da Idade Mdia e at do Renascimento,
sentar um tempo do retorno contnuo das coisas, embora eu no saiba no acontecia esta fuso entre tempo linear e historicismo, no sentido
se do "eterno retorno" como gostava Nietzsche. provvel, portan- que ns a concebemos, continuadamente. O homem moderno, oci-
to, que essas duas dimenses do tempo vieram combinadas, mas o dental, ao contrrio, fruto de uni poderosssimo historicismo. Man-
certo que o peso de "Cronos" no Ocidente tremendo. O perodo temos uma viso que se traslada da escatologia teolgica ao mundo
fundamental de um dos pintores cruciais da poca moderna, as humano, secular, implicando, nesse avano, um processo de progres-
Pinturas negras da Quinta dei Sordo, de Goya, presidida pelo mito so que paralelo ao tempo linear. Entendemos que existem algumas
de "Cronos", em quadros como Saturno devorando os filhos e A.y idades antigas e algumas idades modernas e existiro idades futuras
fiandeiras do tempo. O mito de "Cronos", que segue devorando os nas quais se ir cumprindo o progresso humano. O historicismo
homens, como o mito das tecedeiras do tempo, so dois mitos poten- ocidental acontece desde Giambatista Vio, Hegel, do grande discur-
tssimos e, nesse sentido, poderamos dizer que o homem, ao criar o so de Marx e do marxismo. Porm eu creio que houve, inclusive, uma
tempo, ao criar a conscincia do tempo, criou, concomitantemente, aplicao mais universal do que aquela de Hegel ou de Marx; refiro-
um mito imediatamente destruidor e devorador e o assumiu como tal. me a Darwin. O evolucionismo se submete a uma espcie de histori-
Esse mito destruidor e devorador convida a uma espcie de continui- cismo biolgico que supe para o homem um processo de adaptao
dade estrita desde o nascimento, vida e morte, cuja herana muito e aperfeioamento, um processo de evolucionismo contnuo que se
pesada para o Ocidente. Tambm a tradio judaico-crist participa vincula com esse historicismo tornando, para o homem ocidental,
dessa herana, pois, diferentemente de outros sistemas metafsicos sumamente difcil pensar em termos temporais que no sejam linea-
que adotam uma imagem de crculo ou de transmigrao, de reencar- res. Pois bem, o enorme peso que o tempo possui, como mito ou como
naes sucessivas, a tradio judaica, que influencia o cristianismo, dimenso individual, Kronos individualizado ou como mito de di-
aponta, no fim dos tempos, para o nascimento do mundo. O Gnesis menso coletiva, fez - creio - despertar, muito cedo, a luta contra a
aponta para a queda do homem, para um processo de sofrimento e de conscincia do tempo. Ao ser dotado da conscincia do tempo, o
libertao e para um fim dos tempos. H um fim dos tempos para homem reivindica tambm uma luta contra o tempo. A conscincia
cada um dos homens, que significa a salvao ou a condenao, como do tempo a conscincia direta da morte. De modo geral, presumi-
h um fim dos tempos para a humanidade, que, no cristianismo, se mos que somos os nicos animais que tm conscincia de sua morte
prope em termos de ressurreio dos corpos. O esquema coletivo e atribumos a outros animais a funo instintiva, de reproduo e de
que se oferece humanidade um esquema linear, um esquema que sobrevivncia, mas no a conscincia da morte. Assim, a luta contra
parte da criao ao paraso final, ou ao inferno final, passando pelas o tempo no deixa de ser, tambm, uma tentativa de luta contra a
etapas do mundo ou pelas etapas da vida humana. Ao corporificar morte.
Deus no Cristo, o cristianismo prope uma figura que nasceria, Tenho a impresso de que, em termos histricos, no Ocidente
cresceria, morreria e ressuscitaria, obedecendo a uma viso linear. (como em outras culturas), esta luta contra o tempo se deu, parado-
Por conseguinte, tanto os mitos procedentes da herana grega, como xalmente, por meio do que poderamos denominar tentativas de
os originrios do judaico-cristianismo nos convocam para uma for- conquista de um espao. J que o tempo da morte era algo que nos
escapava, ns nos iludimos com a possibilidade de conquistar um a luta da memria contra o fluir do tempo, contra a conscincia
espao que significasse a contradio do tempo, do passar do tempo; da morte. Por essa razo, na origem do que chamamos arte sempre
que contrariasse esse transcorrer do tempo. Enquanto produto da estaro presentes os monumentos funerrios, e memria contra a
civilizao e produtor de civilizao, a cidade do homem no deixa morte. E da, em todas as culturas conhecidas existe a pica que ,
de ser uma conquista do espao, criando uma iluso contra o passar do mesmo modo, a memria da morte, memria contra a morte. Por
do tempo. O homem, como construtor de cidades, como construtor isso, quando, no mundo secular, ocidental, moderno, tende-se a
de monumentos, como construtor de pontes, o homofaber, o homem recusar a esfera do divino, a esfera dos deuses, desaparece, ento, a
dotado de uma dimenso tcnica, cria uma perspectiva espacial que esfera dos heris, porque, no sentido da pica, estava ela fortemente
o engana em face do passar do tempo. Em termos gerais, diramos vinculada a essa inter-relao com o mundo do divino. Aparece,
que o esprito utpico a criao de um topos, um lugar que no o ento, o heri moderno, que a poesia re-apresentou na literatura
lugar que efetivamente existe, mas o lugar que pode chegar a ficar moderna e que estava mais ligado quilo que Octavio Paz denominou
margem da condio humana, enquanto atributo mortal e temporal; a consagrao do instante. O conceito de Paz se refere, no
.uma idia, creio, que deve ser to antiga, rudimentar, como a possibilidade de construir monumentos literrios ou artsticos, ret-
prpria conscincia da morte e a conscincia do tempo. As principais bulos, afrescos contra a morte, por meio de uma memria que tenha
manifestaes do que agora chamamos arte ( a arte paleoltica, a arte capacidade de representao, que seja potica, pictrica ou escult-
rupestre), ou as primeiras manifestaes simblicas do homem, aten- rica, mas possibilidade de certos instantes que nos resgatem, ainda
dem, provavelmente, necessidade de criar esse no-lugar que, que provisoriamente, de nossa condio de cados no tempo; certos
contudo, no existe e incapaz de erguer muralhas contra a passagem instantes que nos criem uma iluso de superao do tempo, de atem-
do tempo. Portanto, grande parte do que vimos denominando civili- poralidade. Por essa razo, retomando uma questo anteriormente
zao, desde a arte at a tcnica, passando por sucessivas expresses referida, de modo amplo, apontamos a atemporalidade, a eternidade,
simblicas, est vinculada a esta luta contra o tempo que , tambm, como plenitude, como imensidade. Obter a atemporalidade, subtrair-se
luta contra a morte que , em grande medida, uma luta contra o tempo conscincia do tempo, supe, para os ocidentais, sentirem-se plenos,
concebido atravs dessa gravidade linear do tempo. Naturalmente, o a plenitude, porm, o vazio absoluto tambm nos deixa margem do
homem no luta unicamente contra o tempo, por meio de produtos curso do tempo. Portanto, uma das caractersticas da arte moderna, da
exteriores da civilizao material, da tcnica, inclusive a arte, mas, poesia moderna no Ocidente, tem sido esta espcie de aposta, aposta
tambm, atravs de toda uma srie de realizaes espirituais que, secular, suplemento do religioso e do mtico, a favor dessa consagrao
igualmente, denominamos arte ou literatura. Creio que, no momento do instante que acaba sendo, sem embargo, mtica e sagrada. A melhor
mesmo em que o homem assume a conscincia do tempo, d-se conta expresso da arte e da poesia modernas emancipou-se do sagrado para
da dupla dimenso da memria como organismo dessa conscincia acabar sendo, de novo, sagradas.
do tempo e como cenrio da luta contra essa conscincia. Isso a Vivemos em um mundo onde o domnio tecnolgico, do comuni-
memria. Para o homem primitivo, para o homem antigo e para ns cacional, do que se vem chamando globalidade planetria mais a
tambm, a memria o veculo da morte e cenrio legtimo contra a exigncia de uma atualidade permanente, converteram-se em um
morte. No de estranhar que os antigos tivessem, como musa mtica convite planetrio amnsia. Nesse sentido, nosso mundo est for-
das artes, a memria, porque, afinal, essa outra vertente da arte, a arte temente marcado por um modelo de amnsia e de velocidade, de
como criao utpica que tenta erguer barreiras contra o passar do amnsia e de vertigem, embora, evidentemente, muitas vezes essa
tempo, atua por meio da memria, porque ela que cria determinados vertigem se manifeste como no mito de Ssifo; manifeste-se como
jogos nos quais o superficial o produto resultante, mas cuja raiz uma vertigem imvel, de voltas circulares, sobre um mesmo eixo.
18
Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000 19
Parece-me muito significativo que o modelo linear, teleolgico,
A Hospitalidade
de um paraso religioso ou paraso laico do progresso e da igual-
dade, tenha sido substitudo, no Ocidente, por um modelo que pode- Creio que, no substancial, podem-se contemplar trs tipos de
ramos chamar de circular presentificado, de um presente circular, conhecimento: o conhecimento cientfico, o conhecimento artstico
permanente, como sugere o capitalismo de nosso tempo. Trata-se de e, para os devotos, o conhecimento religioso. O conhecimento cien-
um modelo de produo-consumo permanente, permanentemente se tfico nos transporta para um idia de domnio objetivo da realidade
consumindo para a produo; produz-se como consumo, sem que exterior. um conhecimento que est vinculado a um concepo
nada fique ao largo deste crculo totalitrio, nem mesmo o cio, o linear e progressiva do tempo, que permite assegurar que, o que hoje
qual se constitui como componente dessa produo ou desse consu- temos na conta de certeza, invalida o que tnhamos como certo h
mo. O mundo atual no parece propor um paraso no final dos tempos, dois mil anos, como ocorre no terreno da astronomia, da medicina,
mas uma fantasmagoria de um paraso permanente, sempre que se da botnica, etc. O segundo conhecimento, poderamos chamar, em
produzir essa espcie de consumo do produzido. Portanto, a substi- largos traos, de artstico. E um terceiro conhecimento, o religioso,
tuio do paraso como promessa do paraso, como consumo acom- o que diz respeito aos devotos, aos que crem, implicando a relao
panhado da amnsia, e da vertigem imvel marcam to duramente dos homens com seus deuses ou a religio dos homens atravs de
nossa poca contempornea que chegam, inclusive, a destruir o distintos sistemas metafsicos. No caso da religio do Ocidente,
modelo historicista ocidental moderno. O cidado que faz parte da tende-se a compreender esse conhecimento, fundamentalmente, em
globalizao atual no pensa, nem em termos historicistas, nem em termos lineares e apocalpticos, em termos de um paraso final.
termos de eterno retorno, mas exclusivamente atravs da viso de um Descartando este terceiro conhecimento que, como digo, exclusivo
presente permanente em que o paraso se consome e se autoconsome, dos que crem, gostaria de manter-me no mbito dos conhecimentos
permanentemente. cientfico e artstico.
Por isso, aparentemente, em nossa sociedade contempornea, a O conhecimento artstico nos conduz a um tipo de conhecimento
utopia perdeu prestgio, no apenas em face das calamidades causa- circular ao qual no se aplica a percepo linear do tempo. As obras
das pelas utopias coletivas, a que j aludimos, mas tambm pelo fato de arte que hoje nos agradam no invalidam as obras de arte de dois
de que se, efetivamente, o presente contnuo, um presente que se ou trs mil anos atrs. As obras filosficas que hoje se tornam
autoconsome, nele no cabe a utopia, no cabe o no-lugar, devido apreciveis no invalidam as obras filosficas de Plato ou Aristte-
iluso de lugar permanente, embora esse lugar passe, rigorosamente, les. Este conhecimento circular teria relao com toda uma srie de
pela produo e pelo consumo de bens. No h lugar para a utopia cenrios nos quais a viso da vida, da morte, das paixes, das
como no h lugar para o tempo, nem para a memria, que contra- emoes humanas adquire carter prioritrio. Permite-nos uma apro-
ditada pela amnsia, sem perspectiva suficiente dentro deste processo ximao maior em relao s luzes e sombras de nossa existncia. Se
da permanente atualidade, nem para a morte camuflada e submetida buscssemos resumir, por mtodos cibernticos, os temas da poesia
ao esquecimento, porque o morto no , nem produtor, nem consu- universal, verificaramos que no passam de uma dzia os que per-
midor. Para se construir uma possibilidade de crtica em face do mitem essa circularidade. So temas que no favorecem qualquer
mundo atual, uma resistncia, totalmente imprescindvel tratar de domnio colonizado. A poesia, a arte, a filosofia no nos permitem
se situar fora desse crculo infernal apresentado como paraso. controlar, colonizar, dominar. Confirma um conhecimento inacaba-
do, que retorna para ns e que jamais permite atribuir-lhes um final.
Em algum momento eu disse que, em boa lgica, um poema nunca
deveria ter um ltimo verso, nem uma pintura a ltima pincelada,
20 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000

porque, do ponto de vista da lgica interna da arte, no existe essa De modo geral, o conhecimento esttico, simblico, refere-se
ltima pincelada, nem a ltima palavra do ltimo verso. Isso esfera do sagrado, mas, eu diria que, inclusive no territrio do
expressaram Leonardo, Michelangelo ou Rodin, atravs do inacaba- que poderamos chamar conhecimento cientfico, h um desejo de
do, porque este mais perfeito do que o acabado e porque h nele transcendncia, pois construir, por exemplo, uma teoria dos campos
algo profundamente astucioso. Este conhecimento se situa fora da unificados expressa o desejo de unidade. De Prometeu a Fausto,
linearidade, fora do domnio e fora da colonizao. possvel identificar esse desejo de criao de vida, que implica uma
O destino prprio do conhecimento cientfico o domnio objeti- espcie de desejo de absoluto. Naturalmente, essa ambio se mani-
vo, por isso seu prolongamento natural o tecnolgico, embora essa. festa com mais clareza no conhecimento de tipo esttico, artstico,
relao possa ter dois sentidos, j que tambm a tcnica pode induzir que supe, como costumo dizer, uma contnua circularidade, ao
a novos avanos cientficos. longo de toda a histria da cultura ocidental.
Creio que, no homem, atuam, simultaneamente, esses dois planos Minha posio a esse respeito de uma aposta na integrao dos
do conhecimento. Podemos contemplar nosso corpo desde um ponto dois tipos de conhecimento. Parece-me imprescindvel que no en-
de vista cientfico, como um conjunto de clulas, canais, nervos, caremos o conhecimento em termos absolutos ou exclusivistas, mas
msculos e rgos que podem ser descritos por meio de tcnicas que saibamos distinguir entre conhecimento e sabedoria. O conheci-
como a cirurgia. Esse mesmo corpo, porm, pode ser cantado, ex- mento nos conduziria a determinados momentos, algumas vezes
presso, atravs da emoo provocada por sua beleza, da repulsa, por grandiosos, outras vezes terrveis, enquanto a sabedoria seria aquilo
causa de sua feira; o que poderamos chamar de sentimentos que sugeriria uma alternncia, um equilbrio, entre o conhecimento
estticos. O conhecimento cientfico no melhor, nem superior, e o enigma. O saber demonstra que determinados aspectos da vida
nem inferior ao esttico. O sol, por exemplo, tem sido, tradicional- humana, da relao do homem com o mundo, ou com a existncia,
mente, um dos grandes smbolos da beleza para a maioria das cultu- no podem ser dominados ou colonizados, uma vez que sempre sero
ras, porm o Sol, em termos cientficos, em termos da fsica, uma incontrolveis, irredutveis. Essa dialtica entre o conhecimento e o
dos maiores cenrios de violncia csmica jamais concebidos, por enigma, a dialtica do saber, seria expressa pela coexistncia entre o
suas imensas exploses termonucleares. Conhecermos esta informa- conhecimento de tipo cientfico e o do tipo simblico-esttico. Se me
o sobre o Sol no impede que contemplemos sua beleza esttica. fosse atribudo definir o homem, coisa que, em princpio, melhor
Tanto o conhecimento que se vem chamando objetivo e que produz no fazer, nunca utilizaria a definio tradicional, ensinada em nos-
colonizao e domnio, quanto o conhecimento esttico circular, sas escolas, de que o homem um animal racional, mas, sim, que o
aquele que Kant uma vez denominou "desinteressado", oferecem homem um animal nostlgico, uma conscincia de coerncia, uma
seus ritos e seus mitos. De fato, quando falamos dessas verbalizaes conscincia de separao, de ser estrangeiro, de estar exilado em
- os mitos - e desses representaes ou gestualizaes - os ritos - relao a uma ptria que no a sua ptria de nascimento. Essa ptria,
estamos falando de dois tipos de conhecimento em suas mltiplas em muitas tradies mticas e religiosas, foi povoada por deuses, mas,
manifestaes. Cada um deles apresenta um tipo de rito e de mito: o quando os deuses so expulsos, o homem se torna um ser nostlgico,
conhecimento produtivo, tcnico, colonizvel, que pde possibilitar defini-se a si mesmo como estrangeiro, como um exilado, um nma-
o domnio objetivo na captura de uma presa de caa, como mistifica- de, que peregrina pelo mundo afora. A vida, desse modo, seria essa
o e atualizao, e o conhecimento simblico, que se vincula ao que peregrinao, no exatamente sem sentido, mas que no se sabe o
vimos chamando de conhecimento artstico, isto , o desejo de trans- sentido pleno. A partir da se desenvolve uma ignorncia que, muitas
cendncia, de chegar a expressar uma harmonia, uma ordem, um vezes, implica dor e sofrimento; outras vezes, imagens de consider-
cosmos. vel beleza. Para mim, o sagrado, na atualidade, est relacionado com
L
esta nostalgia, no tanto com a definio religiosa do mundo, de tempo, uma superao, ainda que transitria, efmera, provisria,
um deus, mas com a sensao de isolamento que essa nostalgia em relao a essa nostalgia, com que podemos sentir essa hospita-
produz, com a educao nessa nostalgia, com a aprendizagem do lidade essencial. Parece-me importante enfatizar que, embora este
estrangeiro nessa nostalgia. Pois bem, essa espcie de busca de algo tipo de conhecimento se produza, como disse antes, de maneira
perdido no horizonte desconhecido nos leva a desenvolver um senti- fulgurante, pode acontecer uma espcie de predisposio. Essa pre-
do de plenitude que um sentido de hospitalidade. Desejamos alcan- disposio exige que se reconhea a dialtica entre logos e enigma,
ar uma ptria que no se encontra em nosso bero natal, que no est entre conhecimento e enigma a que tambm j me referi antes. Quem
por detrs de ns. quer que se atenha exclusivamente razo jamais viver este tipo de
Paradoxalmente, ansimos por uma ptria que est adiante de ns, experincia. Tampouco os pseudo-espiritualistas, que caem em uma
que a que nos promete essa unidade, plenitude, inteireza e que no espcie de culto irracional do enigma.
pode ser atingida pela colonizao, pela dominao. Sermos hspe- Gostaria de enfatizar outro aspecto importante. O conhecimento
des dessa ptria o que nos possibilita verbalizar, expressar a har- fulgurante acontece em experincias dialgicas, nunca monolgicas.
monia e a beleza. O que chamamos beleza no seria tanto o produto Quem pensa que vai chegar a este tipo de conhecimento atravs do
de algumas leis, de alguns nmeros, de alguns cnones, mas a forma monlogo recai num tipo de solipsismo, na melhor das hipteses, ou
do momento em que se habita essa ptria, do sentir-se hspede. A de iluso fantasmagrica. O conhecimento do enigma se produz
onde eu creio que se pode desenvolver um sentido plenamente atual sempre por via dialgica e assim sucede nos ritos erticos, msticos
do rito e do mito. O fato de superar essa condio de exlio para e estticos que implicam sempre um dilogo com o outro, um deixar-
alcanar essa ptria, ainda que provisoriamente, o que nos trans- se tombar para o outro. Sem este dilogo, no possvel superar nossa
porta aos ritos mais profundos do ser humano em sua dupla dimenso: condio de estrangeiros. Por isso, no terreno das culturas, to
de ser nostlgico e de ser que deseja a hospitalidade. importante abrir-se para o outro e, no campo pessoal, to importante
Referi-me, antes, ao ritual esttico que tem sido, desde o incio, chegar a si mesmo sempre atravs do outro.
representao, jogo, mscara. Porm, o esttico tambm tem sido
habitante dessa ptria e dessa hospitalidade: sentir-se habitante dessa A Polifonia
casa, sentir-se habitante de uma inteireza, de uma superao de ciso.
Este rito esttico o que eu chamaria arte, cuja definio incluiria No sei se possvel um dilogo real entre culturas, mas sim entre
todas as mscaras, todos os jogos, todas as representaes que per- interlocutores pertencentes a distintas culturas. Gosto de me referir,
mitem ao homem sentir a hospitalidade essencial. O mesmo podemos neste sentido, noo de cumplicidade. No acredito em projetos
dizer dessa outra ponte em direo hospitalidade essencial que coletivos. Creio, sem dvida, que se pode construir uma cumplicida-
venho chamando conhecimento fulgurante. Conhecimento que de de intelectual que normalmente conseqncia de uma amizade, no
fogo, que se produz muitas vezes sem que saibamos como, por meio s intelectual, mas tambm sensvel. Se dois interlocutores no se
de labaredas. Assim acontece com nossos ritos erticos nos quais se sentem, no se apalpam, no se percebem; se entre eles no se
identifica Eros como fora nostlgica e fora de unidade. Tambm estabelece cumplicidade de tato, dificilmente vai-se poder construir
com o xtase mstico que nos oferece vises fulgurantes dessa hos- uma conversao real, uma conversao que vai mais alm dos
pitalidade essencial sem que, necessariamente, deva ser religioso, j arqutipos, dos tpicos, do politicamente correto. A paixo da inti-
que se pode tratar de rituais msticos de natureza laica. O que de midade deve estar equilibrada por um saber se desarmar cada um
fulgurante tm esses ritos - estticos, erticos e msticos - que nos deles, porque, se algum cultiva uma espcie de personalidade dog-
proporciona uma imagem congelada dessa nostalgia e, ao mesmo mtica, de carter dogmtico, dificilmente se instala a amizade nti-
ma, embora possa acontecer de essa paixo esbarrar nas superfcies continentes e a recuperao progressiva dos patrimnios culturais
planas do dogmatismo. O mesmo acontece no dilogo entre culturas. de distintas tradies foram despertando, lentamente, um sentimento
A despeito de existir certa paixo por conhecer-se outra cultura, de respeito mtuo. Pois bem, para que essa cumplicidade produza
se no se estiver disposto a abrir-se, desarmar-se, romper as superf- resultados, acho que importante, por um lado, o desarmamento, a
cies demasiado lisas, dificilmente vai-se produzir essa interlocuo capacidade, no tanto de armar-se, mas de desarmar-se mentalmente,
e cumplicidade. Um interlocutor ocidental tem os mesmos handicaps por outro lado, no tentar apreender falsos espiritualismos e, por
e as mesmas limitaes que um interlocutor na ndia ou de qualquer ltimo, no refugiar-se em dogmas fechados. O desarmamento seria
outra tradio, porque tambm ele est afetado pelo tpico do politi- a aceitao, de certo modo, do relativismo, da flexibilidade e do
camente correto, do politicamente igualitrio, da intolerncia con- carter irregular, inacabado e plural da verdade. Tambm me parece
vertida em discurso poltico, da mestiagem convertida em discurso muito importante o rigor. Em face das conexes facilitadas que o
tambm poltico, etc. No h maiores limitaes de partida do que pseudo-espiritualismo produz e das conexes fceis a que nos remete
outras tradies, incluindo sua defesa, produzida pela viso crtica e essa espcie de telecomunicao universal, que pretende um tipo de
autocrtica na modernidade (agora, lamentavelmente, bastante perdi- modelo nico, fcil e superficial, necessrio o rigor intelectual.
da) que uma boa arma para ajudar neste dilogo. Pois bem, em seu preciso avanar numa traduo que no seja s lingstica, mas
desfavor atua o peso do colonialismo, pois, ainda que no haja dvida tambm conceptual e lgica. importante desarmar-se para se poder
de que o racismo e o egosmo identitrio sejam patrimnio de toda a armar o outro, sermos capazes de ver como se confrontam as idias
humanidade e de todas as culturas, o Ocidente exerceu seu domnio do interlocutor, por intermdio desse rigor e dessa traduo lings-
sobre o resto do planeta. A herana do colonialismo (as seqelas e as tica, lgica e conceituai.
dependncias do colonialismo) o primeiro elemento a considerar e Em nvel superior, o desarmamento e a traduo lgica e concei-
se vincula ao exotismo que o segundo dos perigos dessa relao. O tuai poderiam conduzir-nos possibilidade de um intercmbio m-
exotismo seria o falso rendimento das contas do colonialismo que se co-simblico que seria o grau mais elevado dessa cumplicidade. Seria
deixa fascinar, tambm falsamente, por outras mentalidades que o momento em que os interlocutores poderiam intercambiar figuras
costumam ser igualmente falsas. No terreno artstico, espiritual ou mtico-simblicas; chegar a compartilhar territrios profundos dessa
filosfico, o exotismo integra uma srie de costumes que muitas hospitalidade essencial a que antes me referi. Acredito, pois, que o
vezes foram captados superficialmente. Um terceiro fator de dificul- dilogo seja difcil, impossvel mesmo entre culturas, entendido no
dade o autismo e as endogamias culturais que afetam todas as terreno da poltica, mas excitante e possvel, do ponto de vista da
tradies, as quais, quanto mais slidas so, mais impermeveis cumplicidade e da conversao entre interlocutores.
parecem. Nesse sentido, a tradio clssico-judaico-crist-capitalista A globalizao supe certos perigos: o convite amnsia, uni-
do Ocidente uma tradio muito slida, embora, provavelmente, formizao, a uma espcie de culto idolatrado da atualidade que
no se possa falar de uma nica, mas de diversas tradies que sustenta toda a realidade, o convite trivialidade, banalizao. Ao
convivem dentro dessa tradio. H uma tendncia natural endoga- lado disto, uma suposta tolerncia, uma mestiagem politicamente
mia e, geralmente, mais forte o racismo em nossas mentes do que correta que sempre sucumbe na superfcie das coisas, naqueles fato-
em nossos bairros e cidades. Os fatores de limitao so, portanto, res que permanecem facilmente colados a esse discurso universal
evidentes. Por outro lado, sem dvida, as circunstncias do mundo plano. No h, portanto, dvida de que esta globalizao inevitvel
atual produziram vias de comunicao maiores do que em pocas e que tem apresentado aspectos tambm favorveis, como a comuni-
anteriores. Por exemplo, a comunicao universal, a globalizao, cao universal a que me referi, deve estar equilibrada pelo respeito,
com tantos efeitos negativos, a efetiva descolonizao na maioria dos pelo aprofundamento. Com a globalizao, pode acontecer algo pa-
recido com a hybris da que falava no comeo. Hybris vinculada
ao saber como colonizao, aquela hybris que levou, afinal, a uma
contraconscincia ecolgica, de defesa da biodiversidade. Defender
a comunicao e o dilogo entre todo o humano, entre todo o vital,
um fator extraordinariamente criador, porm, ao mesmo tempo, de-
fender a diferena um dos caminhos para defender a igualdade,
como defender a biodiversidade um dos caminhos para defender a
universalidade. De novo, a idia da metamorfose do uno e do mltiplo LIVRO - LIBERDADE
a que nos convida a um certo tipo de equilbrio que est sendo
GIANNIVATTIMO
saqueado pela globalidade, muitas vezes terrvel.
Creio que vivemos num mundo de aldeia global, prognosticado por
McLuhan. Ao mesmo tempo, esta aldeia global gerou uma contrafigu- difcil fazer um inventrio completo do que devemos aos
ra: uma metrpole tribal. Algumas tendncias centrpetas acontecem, livros. No somente no sentido banal de que nossa educao
mas, por outro lado, permitem tendncias centrfugas, como a busca individual se fundamentou em certos livros, que se tornaram
dessa biodiversidade, a busca de uma diferena que no deve ser a nossos educadores, com freqncia, permanentes, nossos textos
desigualdade. de referncia, mas tambm a partir de dicionrios, enciclopdias,
Por meio da tcnica, o Ocidente tratou no s de colonizar a cdigos, escrituras santas, clssicos. Se refletirmos sobre esta
natureza, o no-humano, mas de colonizar tambm o no-humano lista, nela encontraremos no apenas nossa biografia intelectual
no-ocidental. Produziu essa espcie de modelo global com elemen- individual, mas o esquema que sustenta a cultura ocidental. Fala-
tos extraordinariamente positivos e frutferos, porm com fortes se geralmente de religies do livro, para indicar o judasmo, o
estalidos de violncia. Em termos gerais, penso que, em face do cristianismo, o islamismo; mas se deveria falar de uma civilizao
unidimensional, do monotesmo, frente unilateralidade da coloni- do livro para toda a cultura ocidental, mesmo a partir da poca em
zao humana, frente a um pensamento que se constri a partir do que o livro, no sentido moderno da palavra, ainda no existia.
monlogo, o de que realmente necessitamos a polifonia. O polif- Tudo isso nos to habitual que se tornou difcil captar a distino
nico se relaciona com a sabedoria, tendo em conta que esse saber e a conexo entre o contedo de nossa educao e a forma "livresca"
deveria superar a separao entre a tica e o intelectualismo, a razo na qual ele nos foi comunicado; com a conseqncia de que tudo
prtica e o intelectualismo. A polifonia o meio para alcanar esse parece se reduzir, se resolver, ao contedo desta educao. Se o livro
saber viver que tambm um saber sentir.
parece destinado a desaparecer, ou a ser substitudo por outras formas
(Trad. Carlos Seplveda)
de transmisso, temos tendncia a pensar que isto somente concerne
ao aspecto instrumental da educao. A ponto de a defesa do livro,
que freqentemente nos engaja em discusses sobre as novas formas
de comunicao social, parecer o negcio de velhos senhores que no
conseguem imaginar uma Bildung* diferente da deles, e que sero,
fatalmente, superados pelo progresso etc. O debate se reduz, ento,
* Em alemo no original.

a uma luta entre geraes, marcada por traos puramente psicol- possuem aspectos irredutveis forma livro enquanto tal. Sim e no,
gicos, e, no fundo, torna-se intil.'O que seria til fazer, ao direi: a complexidade destes fenmenos me parece somente mostrar,
contrrio, seria um inventrio, o mais completo possvel, do uma vez mais, a dificuldade de separar a "forma" dos contedos.
que, na educao, provm da forma livresca da comunicao; um pouco como dizer que no se poderia imaginar uma democracia
melhor, no somente na educao escolar ou pessoal, mas na sem imprensa e sem o sistema moderno de informao; certamente,
prpria Bildung da nossa tradio. sem querer com isso reduzir a democracia informao etc.
Comearei este inventrio, recordando diretamente o elo entre Pode-se concluir que o indivduo livre moderno se forma apren-
livro e liberdade: um elo que -jamais havia pensado nisso seria- dendo a ler e se referindo a textos? No se excluem, assim, todos
mente - denunciado pelos termos latinos que designam as duas os heris analfabetos de nossas tradies populares, os Robins
coisas, liber em ambos os casos. Na tradio poltica moderna, dos bosques de Walter Scott, mas igualmente, por que no, Ulis-
um passo decisivo para uma sociedade mais livre foi dado quando ses de Homero? Poder-se-ia evidentemente tentar sair desta difi-
os reis aceitaram pr por escrito suas leis. Um exemplo muito rico culdade, esclarecendo que a noo de liberdade menos genrica
de significao, visto que foi sempre em torno da interpretao que a de revolta "imediata" de algum contra a violncia que
de certos textos de base que a liberdade se afirmou. Primeiro, sofre; ou que as revoltas "populares" tm sempre necessidade de
como evidente, na grande revolta religiosa do sculo XVI, onde um chefe carismtico. Sem nos voltarmos para problemas deste
se tratava de conquistar o direito de ler pessoalmente a Bblia e gnero, notaremos que, em todo caso, tambm o nosso culto aos
de interpret-la, contra toda restrio da tradio e do magistrio heris - clssico ou moderno e as aes que eles inspiraram na
da Igreja Catlica. Por outro lado, tambm sobre o plano das histria efetiva "mediado", mediatizado, pelos textos literrios
cincias exatas da natureza, o modelo do livro no foi apenas uma (o heri tem sempre necessidade do seu cantor?). Descobre-se
metfora inocente: Galileu pensou concretamente a natureza talvez tambm que, numa certa medida, o livro, a transmisso
como um livro escrito em caracteres matemticos; e Blumenberg escrita e vivida no silncio da leitura privada, um elemento
mostrou como, no seu caso e no de tantos outros, esta similitude constitutivo de nossa definio de liberdade; a ponto de, mesmo
desempenhou papel decisivo para a histria da modernidade. uma revolta popular contra a injustia somente poder aparecer sob
Alis, as tbuas de Moiss so um livro, um texto que se tornou a luz do chefe carismtico, o que muito suspeito para o que
a base da tica judaico-crist; no somente pelo seu contedo, chamamos de liberdade.
repito, mas por sua forma de texto escrito e comunicvel. A lei Poder-se-ia desenvolver mais longamente as implicaes desta
moral, mais tarde, foi imaginada como impressa em nossos cora- sugesto "etimolgica" sobre o elo livro-liberdade. Mas mesmo se
es. bem verdade que, durante sculos, antes da inveno de deixamos de lado a sugesto verbal enquanto tal, parece-me bem
Gutenberg, o livro - a Santa Escritura, os cdigos, os clssicos da claro que tudo, ou a maior parte, do que se encontra, se nos
literatura e da filosofia - eram acessveis apenas atravs da co- inclinamos a analisar, enumerar simplesmente, os traos de nossa
municao verbal de alguma "autoridade". Mas foi certamente Bildung (contedo e maneira da educao) que dependem da forma
em torno da transformao de suas formas, at a possibilidade, livresca da transmisso, reencontra-se o elo em termos menos
inicialmente restrita s classes dominantes, de dispor de uma "sugestivos", porm totalmente concretos. A comparao entre
biblioteca, que se desenvolveu o processo moderno de liberao liberdade e revolta conduzida por um chefe carismtico orienta-nos
individual, da conquista da liberdade de conscincia etc. Poder- para um outro elemento decisivo da Bildung livresca: a inte-
se- acrescentar que aqui no nos confrontamos apenas com li- rioridade, mesmo o que se poderia chamar de apropriao dos
vros, mas com fenmenos mais complexos, que provavelmente contedos da Bildung herdada, com toda uma srie de relaes
entre liberdade e privacidade*, por exemplo. Poderia a liberdade modelo da experincia moderna, ou antes ps-moderna, da verdade.
moderna ser pensada sem a distino entre pblico e privado, que No se conhecem todos os livros da biblioteca, tudo o que ela contm
implica a constituio de um espao "interior", tambm no sentido analiticamente; sabe-se onde procurar quando um problema se apre-
fsico da palavra, o salo da casa burguesa (Benjamin). verdade senta, nos reconhecemos nela, por assim dizer. , como se v, antes a
que aprendemos a ler na escola e, portanto, sob a direo de uma noo hermenutica da verdade do que a noo metafsica. preciso
voz presente e sonora; mas justamente apenas o fato de aprender prestar ateno a isso, pois poder se tornar decisivo para compreender
um meio que se utilizar depois por si mesmo. (Recordo a minha e se adaptar s novas formas de experincia determinadas pela infor-
dificuldade em preparar este texto sem os meus livros. Poderia mtica. Esta experincia da verdade que se tem ao se habitar* a
usar a Biblioteca Nacional de Paris. Mas agora est toda conta- biblioteca tem a ver com a memria, evidentemente. Ora: a liberdade
minada pela eletrnica e s se pode pedir um certo nmero de que nos advm do fato de saber habitar a biblioteca depende
livros. Ao escrever, porm, precisamos de no poucos livros, e simplesmente do fato de ter nossa disposio todos os "dados",
adequados. E depois nossos livros esto assinalados, marcados na as fichas do catlogo, digamos; ou h alguma coisa a mais, que no
primeira passagem, significando assim a nossa cultura. Pela voz e se reduz memria objetiva e depositada no catlogo, mas tem
a leitura: que dizer da poesia que se l em voz alta, e que precisa a ver com nossa memria orgnica, que se tornou uma parte de
do som?) O elo livro-liberdade se enriquece aqui de um elo ulterior: ns (penso aqui nos computadores de que se fala - somente em
o elo livro-liberdade-interioridade (talvez tambm privacidade bur- fico cientfica? - utilizando protenas...)? Poder-se-ia formular a
guesa). A recordao do salo burgus pode tambm no ser to questo tambm desta forma: o fato de trabalhar numa biblioteca,
banal. Ela nos dirige a um outro cmodo do interior burgus, a podendo circular livremente nela, deixando-se levar pela sugesto
biblioteca. Mais ainda que a imagem do livro a da biblioteca que das proximidades casuais, (com o sistema Dewey tudo isso j mais
domina a prpria forma da nossa cultura. Surpreendi-me freqen- complicado, mas assim mesmo...) exatamente o mesmo que dispor
temente ao pensar que daria plena confiana, a ponto de lhe entregar de um computador no qual procuramos textos, palavras etc?
as chaves da minha casa, a algum que tivesse passado sua vida primeira vista, o contato com o computador parece mais rgido e
numa biblioteca, independentemente do tipo de livro que tenha lido determinado: deve-se, desde o comeo, escolher um percurso, que
ou gostado. Habitar a biblioteca talvez, em vrios sentidos, a tanto mais rpido e funcional quanto mais delimitado. Por exem-
prpria imagem da perfeio, do humanismo, da experincia da plo, ainda em termos de palavras latinas: poder-se-ia ainda chamar
verdade que nos liberta, segundo a palavra de um livro, o Evange- de otium o trabalho intelectual nos computadores? O que acontece-
lho. (A verdade tornar vocs livres, e tambm livros?...) Habitar ria se os amantes, Paolo e Francesca, de Dante, estivessem lendo
a biblioteca ao mesmo tempo a plena realizao do itinerrio da as aventuras de Lancelot e Guenivre no monitor de um computador
Fenomenologia do Esprito hegeliana e sua superao. Se, de um (que poderia, por exemplo, registrar a longa permanncia dos aman-
lado, tornamo-nos, de fato, o perfeito habitante da biblioteca, que tes em certas passagens, a interrupo da leitura no momento em
se reconhece em sua complexidade, que sabe viver nela tendo que os dois caem um nos braos do outro...)? Todo otium, se no
assimilado seus contedos; por outro lado, esta "familiaridade" se tratar dos dois pobres amantes de Rimini, se apresenta aqui
com os contedos desta imensa coleo de saberes e de expe- como uma violao da ordem (do computador), um pouco como
rincias no absolutamente o esprito absoluto hegeliano, a espera muito longa do empregado do banco quando ele aguarda a
uma forma de assimilao inteiramente especial, que, alis, o resposta no monitor.
Em ingls no original: prvacy. Em ingls no original: inhabitation.
32 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 29/35, jul.-set., 2000 . TB, Rio de Janeiro, 142: 29/35, jul.-set., 2000 33
Deixe-me tentar um pequeno balano do que se encontrou at de proteger contra os piratas de todo gnero, mas que, no presente,
aqui, neste inventrio provisrio e totalmente incompleto. A Bildung colocada somente como questo financeira. Certamente no impos-
que se transmite nos livros caracterizada pela liberdade (que no svel preservar tambm, nas formas da comunicao informtica, a
simplesmente independncia com relao ao outro); pela inte- integridade original de nossos textos; mas torna-se cada vez mais
rioridade, com todos os seus elos com a privacidade; por um fcil interpelar hipertextos, comentrios, promover verdadeiras
tempo e um ritmo mais biolgico-biogrfico que estritamente transformaes. Como concebo a tradio europia - e no somente
fsico e material; pelo otium, que implica tambm a liberdade ela - como um negcio de comentrios sobre textos basilares, em
enquanto possibilidade de seguir os vos da imaginao e das torno dos quais se desenvolveu a prpria experincia da liberdade
associaes livres (a psicanlise estaria ela tambm implicada na moderna, nossa religiosidade, nossas artes, me pergunto o que seria
cultura do livro?...). Outrossim, a imagem da biblioteca, o fato de de tudo isso nas novas condies. Podemos observar que diante de
viver numa biblioteca, habitando-a mais como bibliotecrio do um computador, com todas as suas possibilidades de interatividade,
que como pesquisador especializado, tornou-se o modelo da ex- nos sentiremos decididamente mais "livre", porque menos "livro".
perincia da verdade ps-moderna: de uma verdade mltipla que Mas ser ela uma liberdade acompanhada por uma interioridade
jamais se deixa possuir por um indivduo, logo nem mesmo pelo rica, ou (somente?) antes uma independncia no fundo vazia, aberta
esprito absoluto hegeliano, ao menos na medida em que esse a toda forma de dominao carismtica? (Isso j visvel nas
pensado como ato pontual, como o ns noeseos* de Aristteles. classes juvenis de hoje, nas quais a capacidade de trabalhar em
A segunda parfe desta exposio - que infelizmente ser muito computador acompanhada de uma abertura predicao de pro-
curta - deveria responder questo: como retomar e realizar os fetas de todo o gnero.) talvez neste ponto que nossa discusso,
mesmos "valores" de nossa Bildung numa situao onde o compu- e nossa pesquisa, deveria comear.
tador e a comunicao eletrnica substituem cada vez mais os livros?
Se nos colocamos uma questo parcial, poderemos tambm descobrir (Traduo do original francs de
que o pequeno balano que acabamos de propor no tem apenas uma Claudius Bezerra Gomes Waddington)
sada catastrfica; poderamos descobrir que existem perdas e ga-
nhos, e estamos, sobretudo, certos de que seria preciso refletir. Creio
que o aspecto mais difcil, porm igualmente mais "intrigante", do
que nos aguarda nas novas condies de transmisso da cultura,
talvez o que se chama de interatividade das comunicaes inform-
ticas. Os surrealistas anteciparam isso (conscientemente? no o
creio) em seus jogos dos cadveres excelentes** Ao invs de propor
novas interpretaes de textos, o leitor informtico intervir cada
vez mais nos prprios textos. A questo j se coloca hoje sob a forma
das leis de direito autoral, um direito que se torna cada vez mais difcil
Em grego no original.
O "jeu ds cadavres exquis' era praticado em grupo pelos surrealistas. Consistia em
cada participante escrever uma palavra num pedao de papel que era dobrado e
passado adiante, compondo-se assim uma frase (Nota do tradutor).
A PROPSITO DA HISTRIA
DE UMA VIDA: O LIVRO
GERD BORNHEIM
A constatao oferece todos os requintes da obviedade: para escri-

tores, pesquisadores, intelectuais, professores o livro vem se tornando,
j em sua prpria forma fsica de ser, um problema, um objeto freqente
de discusses. Justamente uma das principais, seno a mais importante
via da moderna forma de expresso, transforma-se agora em inusitado
alvo de inquietaes. E claro que esse alvoroo, em tudo novo, merece
o carinho da melhor considerao. Trao a seguir, e j que tanto se fala
em crise do livro, alguns tpicos sobre esse tema de relevncia que nem
poderia ser exagerada.
O primeiro decorre justamente do fato de que sobre o livro tanto se
fale. Exatamente as pessoas menos suspeitas, as industriosas em sua
confeco, entregam-se com ardor defesa do livro, elogiam o seu
carter de perenidade, de excelncia, de realidade insubstituvel, e por
a afora. Pois parece-me que o problema j comea neste ponto, e que
todos esses falares, precisamente pela sua insistncia, pela sua convic-
o - convico de gente que escreve -, pelo seu entusiasmo at,
terminam levantando essa gravssima suspeita: e se tudo estiver acon-
tecendo sob o signo da morte, da decadncia definitiva, como se o livro
estivesse deixando esvair as prpria razes de sua razo de ser? Por que
esse novo entusiasmo em sua defesa, to total e entregue, e talvez
desavisado? A questo se revela at ardilosa: por que esse objeto, o
livro, cuja existncia j parecia to espontnea, em tudo to natural,
veculo privilegiado e to inconteste - por que que o livro, de repente,
passou a exigir tanto encmio em seu resguardo?
R
ev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 37
Afigura-se at que so exatamente os vigores desse resguardo que passa a ser um objeto manipulvel pelo homem. Pois todo objeto
terminam por tudo pr a perder. E nem se duvide da autenticidade j no mais que o resultado de uma manipulao humana destinada
dessa paixo de tantos e mesmo necessria a quem quer que escreva. ao consumo. E instaura-se por a esse nosso novo mundo, no qual
Convm levar a srio as bases em que repousam essas inquietaes produo e consumo se perfazem numa espcie de necessidade eter-
e, com elas, o entusiasmo pela defesa do livro, expresso, at mesmo na, a fundamentar a democracia, a investividade humana entrosando
de modo precpuo, como foi dito, pelos escritores, por aqueles que a cincia e a tcnica, sempre com o fito de erradicar a pobreza e
tm o livro, por assim dizer, entre as suas mos. Mas j aqui, de sada, estabelecer o homem neste mundo.
remeto-me brevemente ao mbito da revoluo gutenberguiana, Claro que este contexto todo, aqui to sucintamente delineado, no
quando, pela primeira vez, passou-se a oferecer o livro na plenitude poderia deixar de afetar o livro. Pois o livro , antes de tudo, um
de um objeto, e objeto manipulvel, acessvel, tudo j acontecendo objeto, inteiramente submisso s regras da revoluo industrial. E,
nos albores da democracia e da expanso do mercado. Esses incios como objeto, o livro no poderia fazer-se ausente s rgidas normas
foram realmente auspiciosos. Pense-se, por exemplo, em tomar nas que passaram a nortear a confeco dos objetos. Considere-se, pois,
mos um livro da biblioteca de Erasmo, ou de Espinoza; de feies fundamental para o nosso tema o fato de que o livro passa a ser, como
ainda um tanto rudes, ofereciam - e oferecem ainda hoje - o esplen- todo objeto, uma realidade manipulvel. Os processos se inserem,
dor de uma forma de objeto, um tom solene at, de coisa que se queria simplesmente, no contexto geral por que passam os avatares da
ver respeitada entre os seus ainda poucos pares, como acontecimento categoria do objeto. O livro disso em tudo participa, e disso tambm
nico e indito. O livro era ento, em seus comeos, essa oferta em sofre as conseqncias: o corolrio intrnseco prpria idia de
tudo generosa, promissora, satisfeita em sua suficincia. Sem dvida, manipulao est em que o objeto se torna agora descartvel, e isso
esse elemento impresso representava a prpria glorifcao da nova se aplica a tudo o que constitui o nosso mundo manipulado: vale para
hegemonia que comeava a afetar a categoria do objeto. a pedra, para a ma, a energia solar, a casa, para a mquina e toda
No h como iludir-se: a edio da Bblia, feita por uma maquina- a parafernlia das aparelhagens. Talvez o museu no passe de um
ria qui ainda estouvada, logo revelaria a inteireza de seus destinos. modo de tornar descartvel at mesmo a obra de arte, desenraizada
De fato, aquela Bblia no passava de madrasta de procedimentos que que ela agora se faz em relao a qualquer contexto. Entende-se logo:
os tempos modernos descartariam com facilidade, e que os tpicos tambm o livro se transforma numa realidade que facilmente se dilui
bblicos sobre a predestinao divina, como que por ironia, cedo no abrao de suas prprias entrelinhas. A histria do livro percorre,
viram-se substitudos pelos impressos imperativos do assentamento ento, em exatas linhas, a histria da prpria categoria do objeto - de
da dicotomia sujeito-objeto, e as coisas se fizeram rpidas. Nos uma certa soberania presidida pelo clculo at alcanar os desloca-
momentos inaugurais, isto: o esplendor do sujeito e a ostentao do mentos e a incontinncia do descartvel.
objeto. De permeio, e de modos em tudo esclarecedores, o progres- Descartvel quer dizer: substituvel e perecvel. Os pases mais
sivo imbricamento das relaes entre sujeito e objeto. De fato, a avanados do mundo vm-se dedicando a editar a obra de tantos autores
revoluo industrial, e com ela as transformaes da tcnica tipogr- quantos se quiser, em edies primorosas, as mais perfeitas que se
fica, tudo veio modificar. E isso a ponto de, em nosso tempo, tudo se possa imaginar, e o primor alcana as chamadas "edies de trabalho".
ter metamorfoseado em sujeito ou objeto, nada mais existindo que se E, no entanto, ao ler-se nelas uma pgina qualquer de Freud, o manu-
situe acima ou abaixo dessa dicotomia. Mais ainda: a partir do seio nem to freqente leva logo ao inesperado que j se fazia pressen-
envolvimento interno de sujeito e objeto, passa a desenvolver-se a tir: uma folha se destaca, remetida agora s mos do leitor. Repito que
moderna sociedade de consumo, e nela, sujeito e objeto tornam-se as edies so perfeitas, mas a irnica substituio da costura da
realidades extensamente manipulveis - o prprio planeta Terra lombada pela cola torna a dimenso material do livro simplesmente
deplorvel. Parece at que o destino do livro logo se emparelha com daquele saber totalizante pertence, por assim dizer, quase geneti-
o que a indstria vem chamando de xerox, ou seja, com essas camente prpria inveno do mundo ocidental; basta lembrar a
imensas pilhas de papis avulsos que se acumulam, tudo destinado edificao, j nos finares da grande maturidade do mundo grego,
desorganizao do lixo - assim que vem sendo feita a educao de da biblioteca de Aristteles. Essa representao totalizante do saber
nossos estudantes em relao ao livro. E isso tudo ocorre justo agora construiu-se possivelmente de modo perfeito, pela ltima vez, no
em que qualquer professor de provncia pode alimentar o pequeno luxo iderio da Enciclopdia francesa do sculo XVIII - ela continha todo
de organizar talvez a sua nem to pequena biblioteca particular. Ser o saber, sistematicamente ordenado, e punha-se disposio do
que os livros mais caros, os bem costurados em suas lombadas e com pesquisador que podia, ento, dominar e criar a partir de uma totali-
capas solidamente encadernadas no se destinam inutilidade decora- dade viva. So coisas que hoje j nem existem; ou existem apenas
tiva dos estoques dos colecionadores? franjas daquele ideal enciclopedista. Nossas bibliotecas desdobram-
Mas no se perverta o cio dos colecionadores. O biblifilo (e onde se agora em labirintos por assim dizer infinitos, que se deixam
o pesquisador que no se compraz em s-lo?), tanto quanto vejo, deve vasculhar atravs de computadores que, tambm eles, no deixam
ver os seus antecessores no deleite a que se entregavam, l pelos idos sua maneira de oferecer carter labirntico.
do sculo XVIII, os fundadores dos famosos gabinetes de Histria No h de ser por acaso que os tempos modernos souberam criar
Natural; colecionavam objetos raros, coisas como cobras embebidas dois meios de expresso: o sistema e o fragmento, ou o prolongamen-
em ter, pedras e areias estranhas, passando por esqueletos e o que quer to deste ltimo que o ensaio. O sistema oferece a transparncia da
que fosse, mas sempre coisas de mundos distantes, a formar calidos- racionalidade enfim concretizada: o sistema tudo sabe e tudo trans-
cpios de alteridades. E nesses gabinetes destacavam-se os belos e mite. J o fragmento vive de seus prprios tentames, de seus experi-
volumosos livros, no raro profusos em ilustraes, que relatavam as mentos, ele ensaia diversos caminhos, mas sempre nos meandros do
exticas aventuras de tantos viajores por terras desconhecidas. A claro-escuro, das fainas inacabadas. E importante observar, para
bibliofilia talvez no seja mais do que o prolongamento daquele esp- nosso assunto, que o sistema j no funciona, ou s funciona nas
rito aventureiro. cincias ditas formais, caso da lgica e da matemtica, formalidades
Mas h de se averiguar tambm esse novo tpico, o do sentido das estas que, muito interessantemente, se fizeram plurais: hoje, coexis-
modernas bibliotecas. A questo no se poderia concentrar nas belas tem as lgicas e as matemticas. E, mais importante ainda, est em
e adequadas dimenses, talvez ainda possveis, da biblioteca do constatar que o meio de expresso como que universal de nossos dias
referido professor de provncia, nem na teimosia dos biblifilos. est no fragmento, no ensasmo. A biblioteca - e os livros dentro dela
Penso aqui nesses monumentos desvairantes, nos milhes de volumes no passa de ser apenas um amontoado de fragmentos, e fragmentrio
que constituem as grandes bibliotecas e que hoje se erguem em tantos se faz at o indivduo que disso tudo se aproxima. Na base de tudo,
lugares de nosso mundo. Elas so realmente deslumbrantes e soube- qualquer coisa como um ceticismo material, a desmantelar a prpria
ram tornar-se em tudo insubstituveis para qualquer tipo de pesquisa. realidade do livro. Ceticismo, no caso, quer dizer: o saber se faz
A iluso concentra-se precisamente neste detalhe: o consultor pensa inacessvel ao homem, ele s capta detalhes disso ou daquilo, posto
que, de repente, ele tem o livro concretamente entre as suas mos; e, que a enciclopdia tornou-se invivel. J no h mais espao para a
de fato, assim , e assim necessrio. Por que ento falar em iluso? cabea de um Leibniz.
que a grande biblioteca j no representa mais o saber, ou j no o De certo modo, a biblioteca passou a viver da impossibilidade de
faz de modo concreto em seu saber total; perde-se agora nas minu- seus prprios pressupostos, ela se desmente no ritmo mesmo de seu
dncias, no escrpulo da observao particular, do carter tornado andamento. Mas isso tudo no afeta apenas a grande biblioteca como
incontrolvel da viso fragmentria. E, no entanto, a transparncia um todo - afeta, isso sim, e em primeirssimo lugar, cada livro em
40 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 ev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 41
particular. Cada livro to-somente, nesta perspectiva de consi- se a um mundo pretrito, j ultrapassado e que nem mais poderia
derao, o ndice fundamental da crise de si mesmo, da inviabili- sustentar-se. Quero dizer que o que hoje se percebe est em que o
dade do projeto: tudo se confina em espcies de particularidades: o elogio da penria deriva, antes, da exibio de uma extrema riqueza.
ensaio, o clculo, o romance, a poesia, o fragmento que se quer modo Basta lembrar que at faz pouco tempo, nos idos de Kant, havia
de ensaio, o clculo preso no enredo de sua imanncia, a viso parcial apenas uma cincia bem estabelecida, que era a fsica de Newton;
que o romance, as frestas da subjetividade que a poesia. hoje, a multiplicao das cincias tornou-se por assim dizer incon-
Parece que esse contexto todo no deixa de provocar uma espcie trolvel. E isso para no falar da dicotomia arvorada a partir da
de vertigem, como se o homem devesse estar condenado a caminhar segunda metade do sculo XIX, que distingue as cincias da natureza
sobre algo como a ausncia de fundamento. No estranha, por isso, desse outro ramo, constitudo pelas cincias da cultura, ou histricas,
que haja autores que falam em penria, nosso tempo seria de modo ou do esprito, como insistem em dizer os alemes. Sabe-se que essa
at essencial um tempo de penria. E talvez assim se possa falar, mas imensa diversificao terminou por gerar uma crise correspondente
isso, se verdadeiro, possivelmente num plano mais remoto, que no campo das metodologias e das prprias razes do saber - e, na
estaria enraizado numa certa distncia a provocar a ciso da biblio- ponta disso tudo, mais uma vez, a presena do livro. O livro, agora,
teca em relao aos seus prprios desgnios originrios ou, ento, como que esquecido de suas origens, assume limites exteriores a si
naquele ceticismo material acima mencionado. Por a, a penria prprio, a alastrar-se em bibliotecas infinitas - mas existir hoje coisa
decorreria do advento de certo hiato essencial: portanto, na origem, mais alheia ao homem do que o infinito?
a biblioteca era apenas a unificao do saber plenamente dominvel Evidentemente, toda essa situao leva com facilidade e at justeza
pelo homem, e o homem tinha o saber; o gnio dos tempos modernos a reconhecer algo como a glorificao do livro. A multiplicao das
ainda convivia com a objetividade total do saber criador. Mais tarde, bibliotecas e a imensido inscrita em seus propsitos insere-se agora
j em nosso tempo, surgiu a vez da falao sobre a penria, ou seja, em destinos preconizados nas prprias origens da fabricao do livro.
entre outras coisas, uma forma de proliferao que tornou totalmente Acontece, entrementes, que toda essa pujana, no obstante a sua
impossvel aquela unidade do saber que era a prpria razo de ser da bvia necessidade, no passa de ser, mais uma vez, o ndice da
biblioteca. Algo de anlogo, de resto, verifica-se tambm na evoluo extrema fragilidade do livro. A riqueza imprescindvel condio
de nossas universidades. De fato, a universidade assenta as suas humana de expressar-se, isso desde os tempos das inscries nas
razes numa bem estabelecida classificao das cincias, garantindo paredes de cavernas primitivas ainda hoje existentes, seguidas por
por a uma viso unitria do conjunto. Aconteceu, entretanto, que a mltiplas formas de proliferao subseqentes (pense-se nas espan-
expanso das cincias conduziu a uma fragmentao intrnseca da tosa histria dos alfabetos), certamente encontrou no livro a sua
Universidade, e ela vive, em nosso tempo, da impossibilidade de configurao mais perfeita e significativa. Mas recorde-se que o
reconhecimento da unidade essencial que determinava a sua prpria livro, aliado inveno da imprensa, vem se expandindo no breve
razo de ser originria. E os problemas, em nada descartveis, j decurso de alguns poucos sculos. Pois no que as coisas hoje
comeam por a: e que esses complexos todos no podem ser parecem perscrutar novos rumos? Reconheamos que, a despeito
considerados ingenuamente como negativos. E, de qualquer maneira, mesmo da desmedida de todas as paixes, no faria sentido algum
dentro de todo esse entrevero que devemos procurar entender qual pretender que o livro devesse constituir-se em realidade por assim
possa ainda ser a identidade do livro. dizer eterna e estvel. Veja-se, por exemplo, o que parece no passar
De imediato, convm acrescentar a tudo o que foi dito que a de simples acidente: na ltima Feira do Livro de Frankfurt, realizada
referida penria em nada se assemelha pobreza, ou mesmo simples neste ano de 2000, considerada o evento mais importante do universo
ausncia de sentido. Se tal pobreza existisse, ela s poderia reportar- letrado, aparece, como que de repente, a grande novidade: o primeiro
42 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 ..TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000 43
exemplar, fartamente premiado, de um livro eletrnico, e nem h
de ser to difcil imaginar o que o novo rebento possa vir a significar.
Na era da tecnologia, os progressos revelam-se irreversveis. Mas
talvez sobre um pequeno e nostlgico espao para a extrema genero-
sidade dessa espcie de biblifilos em que todos ns nos tornamos -
na medida em que o livro conseguir sustentar-se em nossas mos.
Entretanto, advirta-se que a pior das sadas est sem dvida, por
intil, em alimentar qualquer forma de preconceito contra os avanos PARBOLA DO LIVRO NA CULTURA GLOBAL
da tecnologia. Mesmo porque no sero tais avanos que iro atra-
vancar os descendentes de Machado de Assis. FRANCISCO DELICH
A globalizao, to mentalmente elaborada na ltima dcada do

sculo passado*, no produto recente. Isto est muito bem demons-
trado por Aldo Ferrer em sua Historia de Ia globalizacin (Histria
da globalizao), cujo segundo volume acaba de ser editado pela
Fondo de Cultura Econmica. Em sentido estrito, a primeira ordem
mundial se instalou com o descobrimento e ocupao da Amrica por
parte dos espanhis e portugueses. Coincidiu com a inveno da
imprensa e o prenuncio da difuso em massa do livro, sculos depois.
Os livros - lembremo-nos - se escreviam e se ilustravam mo,
eram produto da inteligncia e habilidades individuais e manuais que
registravam e continham os cdigos da vida e a memria dos povos.
De maneira que, com os espanhis e portugueses, desembarcaram,
no apenas guerreiros e sacerdotes, mas tambm livros, objetos
estranhos aos nativos.
Na Amrica do Sul, os jesutas se instalaram e, como se sabe,
evangelizaram os ndios no antigo vice-reinado, sem impor seu
idioma nem tampouco utilizando textos sagrados que traziam con-
sigo, em latim, na maior parte dos casos, mas tambm em castelha-
no. Ao fim de um sculo, advertiram que a consolidao da evan-
gelizao (a propsito, nada fcil) requeria algo mais do que pala-
vra, disciplinas e organizao teocrtica da economia e da socieda-
de indgena. Sua tarefa ia mais alm da converso nova f;
propunha-se inclu-los para sempre na f crist. A nova moral
O autor se refere ao sculo XIX (NT).
religiosa e o acesso cultura ocidental requeriam algo mais doutrinadas em nossa santa f. Com um confessionrio e outras
permanente do que as homlias e os rituais. coisas necessrias para os que doutrinam, que se contm na pgina
A verdade estava no Livro Sagrado e este objeto - o livro - era seguinte composto por autoridade do Concilio este catecismo para
tambm sagrado e, por isso mesmo, inacessvel aos profanos. O educao de curas, de ndios e um terceiro para a expanso dos
Livro Sagrado no era acessvel s tribos evangelizadas por servios).
razes estritamente idiomticas. Os jesutas tomaram duas deci- Um Congresso Provincial dos jesutas, celebrado em Lima, em
ses que hoje, quatro sculos depois, imprimem sua marca e suas 1583, fixou as bases teolgicas deste excepcional catecismo.
conseqncias, merecendo o mais amplo reconhecimento. Deci- Estes livros iniciais, distantes e incompreensveis para os ndios, em
diram, em primeiro lugar, evangelizar no prprio idioma dos breve menos alheios, compreensveis quando lidos na prpria lngua,
evangelizados, na lngua aimar, quchua e guarani. Conseqen- contriburam para consolidar uma rara parbola histrica. Seriam estes
temente, decidiram dispor os textos sagrados no prprio idioma livros - e outros - que legitimariam o protesto e a insurreio contra os
indgena. Necessitavam de uma prtica de traduo para essas dominadores. Os Livros Sagrados, vulgarizados, seriam includos na
lnguas e tambm de um espao onde pudessem educar as elites identidade coletiva e se rebelariam contra a antiga ordem colonial,
locais que, cedo ou tarde, necessitariam ser cooptadas. Fundaram, sustentada no analfabetismo, e, claro, na coero.
em 1613, a Universidade de Crdoba que, durante o sculo XIX, Os livros sagrados, quando o Estado moderno, no Ocidente, defi-
em seguida independncia nacional*, foi secularizada e includa niu-se como uma instituio laica, foram confinados privacidade
na jurisdio do Estado provincial, em primeiro lugar, e depois, dos crentes. Outros livros ocuparam seu lugar, porm no lograram
nacional. substitu-los. Novos livros contriburam logo para definir a identida-
A Biblioteca Maior da atual Universidade Nacional de Crdoba de, no mais tribal, mas, sim, nacional.
tem sob guarda uma impressionante coleo de livros que acompa- Em todo caso, os livros e a palavra contriburam, primeiro, para
nhou a expanso jesutica, at sua expulso das terras americanas, no a Independncia e, em seguida, para a formao das cidadanias.
sculo XVIII. Ali se pode seguir, com relativa facilidade, a aventura O livro civilizador, na medida em que avanou a industrializao,
do Livro Sagrado em terras do novo mundo. O primeiro catecismo e, por outro lado, no momento em que as sociedades se conscien-
em aimar e quchua, edio trilnge, se relaciona com pases hoje tizaram da importncia da educao universal, se difundiu entre
oficialmente bilnges como a Bolvia e o Peru; logo a seguir em pblicos dispostos a devor-los ilimitadamente. Aqui, surgiram
guarani para o Paraguai, tambm bilnge, utilizados durante sculos os paradoxos de uma parbola desconcertante: por que motivo se
para facilitar a integrao dos evangelizados com os evangelizadores. l cada vez menos nas sociedades contemporneas? Nos Estados
Em 1584 e 1585, publicou-se a Doctrina Christiana y Catecismo Unidos, segundo divulgam alguns jornais, os alunos passam
para instruccin de los ndios e de Ias dems perfonas que han de 11.000 horas anuais na escola, contra 15.000 em frente da televi-
fer enfenadas en nuestrafantafe Con un confesionrio y otras cosas so. Na Argentina, clculos razoavelmente confiveis assinalam
necefesarias para los que doctrinam, que f contienem en Ia pagina que os alunos do ensino fundamental passam no menos do que
siguiente compuesto por autoridad dei Concilio este catecismo in- quatro horas dirias defronte de um televisor, mais do que dedi-
cluye un segundo catecismo para instruccin de curas, de ndios y cam escola.
un tercero para Ia expansin de servidos (Doutrina crist e catecis- Assim, ento, temos cada vez mais alfabetizados, tanto nos pases
mo para educao dos ndios e das demais pessoas que ho de ser avanados quanto nos emergentes, porm lendo menos. Por qu? Por-
que alfabetizamos mal, nos acomodamos em ensinar a ler e escrever,
na tradio antiga da recepo passiva em compreender os signos
* O autor se refere a seu pas, a Argentina.
46 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 45/49, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142:45/49, jul.-set., 2000 47
para tornar bvios os significados. Todos sabem ler e escrever, que jamais ocorreram. Um modo, entre tantos outros, de invadir a
dispem de um instrumento formidvel para a compreenso da vida, memria dos povos; os livros resistem invaso de um estilo que no
da sociedade, dos cdigos explcitos e implcitos. Porm a capacidade se relaciona com os pases nem com suas histrias. A globalizao da
para a leitura crtica e auto-estimulante continua adormecida. cultura avana, mas no de ningum. Os livros vacilam e os leitores
Enquanto se escrevem estas linhas, estamos recebendo mais de tambm.
duas mil resenhas crticas de livros, no marco da Primeira Olimpada No entanto, a globalizao, em sua etapa contempornea, necessita
de Leitura para estudantes do ensino mdio. So interessantes, algu- do livro, porque continuam sendo os livros, no importa como se leia,
mas fascinantes. Porm estamos nos reportando a 1% dos estudantes o suporte institucional do Estado. So os livros, livros cannicos, livros
em condies de participar. Em plena expanso industrial, posto ao de poesia, so os livros que identificam as naes e so os livros tambm
alcance de todos, no entanto, apenas discreta minoria sente a neces- que mobilizam as sociedades no sentindo de reconhecerem-se.
sidade de ler e de se expressar sobre os livros que l. O segundo Quem so, ento, os inimigos do livro? Provavelmente e em
paradoxo se refere ao Mercado. Os livros se compram e se vendem, primeiro lugar, a desvalorizao da palavra e a fetichizao do
em edies de bolso, em dignas edies populares acompanhando a gestual. A palavra fragilizou-se e no apenas em frente da gestuali-
edio dos jornais dirios nacionais e regionais, em massa; esto ao dade, mas tambm como valor social.
alcance do poder de compra de setores da pequena classe mdia e Lentamente, as sociedades deixam de lado a distino entre formas
ainda dos raros setores emergentes. Sem dvida, compram-se menos e contedos, entre consciente e inconsciente, entre objetivo e subje-
livros. Certamente, a desigualdade social no ajuda em nada a con- tivo. S vale a aparncia primeira, sem antes nem depois, que se
solidar o mercado editorial. Porm no parece ser razo suficiente esgota em sua prpria reiterao.
para esta apatia com a leitura. Em segundo lugar, um quase pragmatismo, correlato e vulgar,
Ser ento, como pensam alguns, que o avano da vida digital o empenhado em desterrar todo debate de idias. No momento em que
inimigo que condiciona a vigncia do livro e sua leitura? assomam as crticas discursivas, comea, de imediato, uma desvalo-
verdade: a digitalizao permite que cada qual disponha, em sua rizao oblqua. O que passa em branco no a escrita em si mesma,
casa, de uma biblioteca virtual, assim acontecer nos prximos anos, nem seu contedo, nem seu estilo. A idia e o prprio conceito que
mas muito alm de toda nossa capacidade de consulta e absoro. Isto questionam a utilidade de qualquer discurso controverso. Argumen-
est e estar disponvel, com certeza, ao redor do planeta. tar por si mesmo considerado perigoso para o sentido comum
No entanto, existem duas restries. A primeira de ordem tcni- estabelecido. Nestas condies, para que livros, se o que eles contm
ca. possvel que os livros digitalizados, para proteger os direitos so os argumentos?
autorais e editoriais, no possam ser impressos. Podero ser lidos e Finalmente, uma conseqncia necessria e infeliz derivada das
consultados, mas no copiados. A segunda de ordem subjetiva. O duas anteriores: o pensamento nico; a histria ensina o suficiente
prazer esttico que pe em relao de intimidade a mo, o olho e a sobre as conseqncias e destinos para a liberdade quando o pensa-
contemplao, ao correr das pginas, irrepetvel. Ningum pode mento nico se apossa das sociedades; ele que agora se difunde com
confundir o cinema com o teatro. Em ambos os casos, o prazer pode a globalizao provavelmente mais sutil. O pensamento nico no
ser imensurvel, mas so distintos. se diferencia dos outros pensamentos, mas conforma em si mesmo
O terceiro paradoxo refere-se ao avano da globalizao, tambm um gigantesco vazio, a que assistimos, entretanto, sem reagirmos.
no caso dos livros. Assimilam-se os gostos. O best-seller transcende
as fronteiras nacionais e regionais. Um estilo planetrio privilegia (Traduo do original espanhol por Carlos Seplveda)
os relatos neo-histricos, quer dizer, uma inveno de histrias
AS METAMORFOSES DO LIVRO E DA LEITURA
MAURICE AYMARD
A reflexo a que fomos convidados se deve situar na juno de

duas grandes interrogaes: o futuro do livro na era eletrnica e
o lugar do livro entre a nao e o mundo, na era da globalizao.
A inquietao levantada pela primeira no deixa de surpreender.
Ela afeta, com efeito, as regies do mundo que so, ao mesmo
tempo, as mais alfabetizadas, as mais profundamente marcadas
pela cultura europia, e as mais tributrias, em seu funcionamento
cotidiano, da escrita sob forma impressa e de sua circulao. As
mesmas regies em que a demanda em matria de produo e de
circulao da informao no cessou de estimular a inovao e
seus aperfeioamentos cada vez mais rpidos.
Esta inovao respondia no comeo, em suas aplicaes civis
e no mais militares, s necessidades de comunidades cientficas
restritas, em forma de clubes onde todos os membros se conhecem
e se cooptam. Ela se estendeu, pouco a pouco, a grupos cada vez
mais amplos, constituindo verdadeiras redes, ignorando frontei-
ras, e cuja formao e dinmica de expanso so com freqncia
submetidas a outras prticas: preciso atrair, incluir ou seduzir,
por todos os meios, parceiros que no se conhecem e no sabem
nada um do outro. Ela se limitou, em princpio, a textos que se
situavam freqentemente no limite entre o oral e o escrito, e iam
da mensagem pessoal ao texto mais elaborado: a rapidez da
circulao repercutia sobre a redao, donde a procura de um
estilo mais direto, ignorando ou desviando as regras da correspon-
dncia formal ou do texto acabado, pronto para ser impresso. Ela

atinge hoje as fronteiras da edio: ela ameaa colocar em questo termhais de emisso e de recepo), a circulao percebida pelo
todas as suas estruturas de produo, de distribuio e de consumo, usurio como instantnea (os nicos atrasos devendo-se aos pos-
assim como, mais profundamente ainda, o prprio estatuto do texto e a sveis engarrafamentos das auto-estradas da informao), e indi-
relao entre autor e leitor. Paralelamente, ela se enriqueceu de poten- ferente s distncias, como se ela fizesse o mundo inteiro viver
cialidades suplementares que lhe do uma vantagem decisiva sobre o mesma hora. Ela permite, desta forma, ao impresso desempenhar
livro tradicional: a possibilidade de associar sobre o mesmo suporte, no papel igual ao do oral, que progride no mesmo ritmo, na
apenas o texto e a imagem, mas tambm o som, e dar a esta associao medida em que utiliza o mesmo instrumento de transmisso
um carter dinmico e mvel (e no mais esttico) e interativo (o " leitor" codificada: um telefone que , com freqncia cada vez maior, ele
dispondo de uma liberdade e de uma margem de iniciativa infinitamente tambm, digital.
maior de modos de consulta). Os limites precedentes, hoje esquecidos, tendem, verdade, a
Fundamentalmente, portanto, a "era eletrnica" se situa ao ceder lugar a outros, ligados a problemas de saturao. Saturao das
menos tanto sob o signo da continuidade quanto da ruptura com memrias dos computadores, atulhadas, apesar do crescimento de sua
relao era de Gutenberg. Ela libera, com efeito, o impresso da capacidade, por causa do fluxo das mensagens que no ousamos mais
maioria das limitaes de que ele permanecia prisioneiro j h jogar fora, como se todo escrito devesse ser conservado. Saturao
cinco sculos, apesar dos progressos realizados particularmente da capacidade de leitura dos destinatrios e a dificuldade cada vez
desde o comeo do sculo XIX, mas se situa na mesma lgica. maior de mobilizar sua ateno. Sufocamento dos autores, incapazes
Fim dos limites do volume de informao circulando sob forma de fazer face demanda de textos de que so alvo, e tentados a
impressa, ligados capacidade e aos custos da composio e da construir, a custa de "copiar-colar", umpatchwork de fragmentos de
impresso por empresas especializadas: toda diviso de trabalho textos redigidos por eles mesmos ou por outros, que ope plurali-
abolida, porque todo autor pode compor ele mesmo seu texto e dade das leituras possveis a das reutilizaes do mesmo texto.
escolher os destinatrios, e todo leitor tem a escolha de ler no seu Paralisia das redes, cuja expanso por demais rpida suscita descon-
monitor ou de imprimir, de conservar, de transmitir a outrem ou fiana ou indiferena, e o desejo de retornar a crculos mais restritos
de jogar fora a informao recebida, e, certamente, de responder, de comunicao, protegidos de todo vrus e de toda indiscrio, logo
tornando-se por sua vez autor. A escrita de imprensa consegue de reconstituir hierarquias e espaos reservados ao interior de um
assim ocupar (o que ela vinha apenas ensaiando h um sculo com sistema julgado, doravante, muito aberto para todos. Saturao, en-
a mquina de escrever) uma larga parte do campo reservado at fim, dos acessos s bases de dados, vtimas de seu gigantismo, e das
aqui escrita manuscrita, que a inveno da imprensa havia expectativas, tanto mais significativas quanto em parte utpicas, que
transformado, em contrapartida, no signo do individual e da inti- se alimentam de um saber (ou de uma simples informao) que seja
midade: o instrumento da correspondncia pessoal e da criao realmente enciclopdica.
literria, mas tambm, atravs da assinatura (que havia substitu- O jogo, obviamente, permanece aberto e o balano que se pode
do o selo) e da grafologia, a expresso mais profunda e a mais esboar hoje pode ser rapidamente posto em questo por inovaes
inimitvel da personalidade. E esta vitria da escrita impressa tcnicas e modificaes prticas. A escrita manuscrita pode, a termo,
atinge tambm pases como a China ou o Japo, onde os ideogra- encontrar seu lugar de pleno direito nos monitores, e pr fim ao
mas haviam bloqueado o uso da mquina de escrever, ao passo reinado do teclado, de que o economista Paul David fez, em artigo
que se entendem perfeitamente bem com o computador. clebre, o modelo das escolhas tcnicas de longo prazo, criadoras de
Fim, doravante, dos limites espaciais ou temporais circu- rigidez e de irreversibilidade mais ou menos longas (uma durao,
n
lao do texto: desprendida de todo suporte material (alm dos este caso, simplesmente secular, o que pouco para um historiador
Re
52 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 51/65, jul.-set., 2000 v. TB, Rio de Janeiro, 142: 51/65, jul.-set., 2000 53-
formado na escola de Fernand Braudel, cujas "prises de longa Se o livro parece hoje posto em causa que ele havia lentamente
durao" tinham ilustrado, vinte anos antes, a mesma intuio). conquistado, em nossa cultura, um lugar e um estatuto igualmente
A mediao de toda escrita pessoal faz parte do universo de privilegiados. Prestgio do texto, referncia simultaneamente religio-
possveis visualizados, o computador, transcrevendo ele mesmo sa e literria, que se deve reproduzir e transmitir para proteger contra
sob forma de texto o som da voz. O monitor, elemento atualmente o esquecimento, mas tambm ler para se apropriar e se identificar
insubstituvel da cadeia, esquartejado entre a miniaturizao (os com uma cultura e com um conjunto de saberes profissionais (direito,
computadores de bolso) e, ao contrrio, o alargamento (que per- medicina, teologia) ou mais desinteressados (filosofia, poesia etc). A
mite justapor vrios textos) pode ceder lugar a suportes de utili- imprensa no havia apenas permitido multiplicar o nmero de cpias
zao mais flexvel e menos constrangedora. Da mesma forma, em circulao e colocar disposio de uma clientela mais ampla um
podem evoluir as preferncias dos usurios, que hesitam ainda nmero maior de obras (crescimento quantitativo), ela havia condu-
hoje entre a leitura direta ao monitor e a impresso dos textos zido ao desenvolvimento de um conjunto de disciplinas eruditas que
preparados (para uma correo mais atenta) ou recebidos (para concorreram para recuperar a pureza do texto original, para liber-
leitura n eventual classificao mais conformes com seus hbitos t-lo de todas as adies voluntrias ou no e de todos os erros
ou com suas necessidades). E que preferem ainda as bibliotecas dos copistas, para estabelecer assim uma verso nica de referncia
(das quais consultam ao monitor os catlogos), como lugar de (mutao qualitativa). Mas, em nvel dos modos de apresentao do
acesso aos livros, leitura ao monitor das obras digitalizadas. texto, ela havia retomado a forma do codex, feito de folhas dobradas
Mas quaisquer que sejam as mudanas possveis, elas se inscrevem e reunidas, de que a Idade Mdia havia confirmado a substituio ao
na perspectiva de uma generalizao e de uma multiplicao dos usos rolo (volumeri) da Antigidade Clssica - uma mutao que parece
do escrito como meio de comunicao, de circulao da informao, poder ser datada entre os sculos II e IV da nossa era, e na qual a
de transmisso dos conhecimentos e de acesso a eles. Que esta reproduo dos textos do incio do cristianismo parece ter desem-
generalizao e esta multiplicao se refiram ainda hoje apenas a uma penhado papel pioneiro. 1 Esta forma servia, particularmente bem,
minoria dos pases e da populao do planeta, e que somente uma aos usos religiosos do texto, associando as leituras das diferentes
parte dos alfabetizados tenha acesso ao universo eletrnico, no h passagens das Escrituras ao ritmo das horas, dos dias e dos meses.
dvida. O computador exige, assim como a instalao e a manuteno Mas tinha tambm, entre outras vantagens, a de permitir, ao
das redes, pesados investimentos em material e em pessoal qualifi- mesmo tempo, a leitura cursiva, a identificao de um texto
cado, que contribuem para cavar novos e duradouros fossos entre preciso (graas numerao das pginas e ao estabelecimento de
"pobres" e "ricos": a lgica da extenso do mercado, procura de sumrios e ndices), e a comparao de diferentes pginas da
novos clientes, ser suficiente para levar as instituies pblicas e mesma obra ou de diferentes livros.
privadas, bem como os particulares, a fazerem os investimentos Se nossos computadores marcam, deste ponto de vista, uma
necessrios, cuja amortizao das despesas de pesquisa provocaria a volta ao passado, visto que eles rolam o texto diante de nossos
baixa dos custos? Um otimismo sem reserva seria, sem nenhuma olhos como um volumen antigo, eles procuram compensar este
dvida, excessivo. Mas o livro e a carta no seguiram a mesma rota? defeito com a paginao, a indexao e as possibilidades de busca,
Produtos caros, reservados s elites, se "democratizaram" lentamen- por palavra ou frase, e de impresso, sempre possvel, do texto
te. O importante ver que as mudanas atuais constituem nova etapa que nos restitui a forma familiar do codex. Mas, sobretudo, eles
de sua histria: e-bok e e-mail somente existem, se desenvolveram propem, graas ao hipertexto, um modo de leitura radicalmente
e se impuseram em referncia a esta histria, mesmo se seus efeitos novo, infinitamente mais livre que o do livro, ao mesmo tempo
podem se revelar revolucionrios a mais longo prazo. que se situam na mesma lgica, na medida em que o hipertexto
54 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142' 51/65, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 51/65, jul.-set., 2000 55
permite generalizar ao infinito a comparao, ligando potencialmente dos pases francfonos". Mas, por acaso, o mesmo programa me per-
cada ponto do texto com todos os outros, e autorizando, assim, leituras mite ignorar estas recomendaes...
por encomenda, que jogam com as estruturas profundas e freqente- Observando-se mais de perto, as lnguas nacionais no so as nicas
mente ocultas do texto.2 a se sarem bem neste novo contexto: as lnguas regionais ganham a
Mas os prprios computadores se encontram confrontados com o possibilidade e o direito de retomar o lugar que a imprensa lhes havia,
mesmo desafio que a imprensa havia encontrado em sua rota: o da durante muitos anos, recusado ou estritamente medido. A era eletrni-
lngua, ou antes, da ausncia de uma lngua comum. E isto, mesmo ca, atuando em favor da flexibilidade contra a produo em massa,
se as posies podem parecer, em 2000, exatamente opostas s de alarga e renova, com efeito, de maneira espetacular o "mundo dos
1500. A imprensa havia sido inventada num contexto em que os possveis" :3 ela permite descentralizar a produo, a circulao e o
intelectuais europeus tinham o domnio de uma lngua comum, o consumo, e de tornar rentveis, na medida em que os custos so
latim, e ela devia servir para multiplicar edies de referncia nesta bancados pelos autores e leitores, e no pelos editores, impressores,
lngua. Rapidamente, contudo, as encomendas da clientela e as exi- divulgadores e bibliotecas de sries "curtas", criadores e organizado-
gncias dos Estados colocaram-na a servio da afirmao das lnguas res de novos mercados sobre os quais a edio clssica poder ulterior-
nacionais, a expensas tanto do latim, lngua internacional, quanto dos mente se implantar, se sua rentabilidade parecer assegurada. A combi-
dialetos, relegados ao lado da oralidade. nao do global e do local pode, doravante, intervir mais facilmente
Hoje o ingls pode dar a impresso, num primeiro momento, de que em outras esferas, e recolocar em discusso a fronteira tradicional entre
poderia servir de lngua comum da era eletrnica, na medida em que era lnguas e dialetos, que passa, precisamente, pela existncia de uma
a lngua na qual haviam sido concebidos os computadores, seus progra- literatura escrita e de uma gramtica.
mas e as redes sobre as quais os internautas surfam. Mas, se os Estados Podem-se assim precisar-se trs nveis de produo e de circulao
intervm pouco, ou margem, para impor seus idiomas a usurios de textos, em relao lngua utilizada: lngua de comunicao inter-
preocupados em utilizar todas as novas liberdades que suas novas nacional (o ingls e, mais raramente, o espanhol, francs ou portugus),
mquinas lhe oferecem, as lnguas nacionais se recuperaram rpido e lngua nacional e lngua regional. A estes trs nveis correspondem
impuseram que os computadores e seus programas fossem adaptados s tantas definies de pertinncia que ressaltam, como essencial, a deci-
necessidades dos usurios: mesmo se um nmero crescente de usurios so dos indivduos e das organizaes privadas, e que escapam, por sua
lem e escrevem em vrias lnguas, elas permanecem lnguas da comu- vez, daquelas relativas aos Estados: estes no tm outra escolha, em seu
nicao cotidiana e majoritria. preciso, portanto, lhes adaptar as esforo por manter sua lngua nacional, seno como lngua central em
escritas disponveis no computador (alfabetos, silabrios ou ideogra- seu sistema de ensino e funcionamento da vida cotidiana, tanto quanto
mas), bem como os programas de correo ortogrfica e gramatical. facilitar o aprendizado da lngua internacional, nas escolas, (indispen-
Depois de ter, como meus antigos professores na escola, sublinhado com svel em todos os setores sujeitos a concorrncia) e tolerar, quando elas
um trao vermelho, em sinal de protesto ou advertncia, e-mail e e-book, no se sustentam, as lnguas regionais, utilizada em ambiente familiar
mas tambm primavera e verano, para no falar de " Ia muerte", meu e promovida por autoridades locais. Entre estes nveis, nenhuma outra
computador acaba de assinalar que patchwork um anglicismo e que mediao possvel seno a dos indivduos sozinhos, obrigados buscar
eu deveria preferir o termo "mosaine" ou "arlequine" que prope o sua expresso em meio a inmeros registros lingsticos, de modo que
Dirio Oficial da Repblica Francesa, do qual ignorava a existncia, os programas de traduo automtica no atingiram uma qualidade
assim como meu dicionrio Larousse Lexis, editado, verdade, em suficiente a ponto de garantir sua credibilidade. Inmeros atores so,
1982, mas rico em 76000 palavras, cobrindo tanto a lngua clssica e propriamente, capazes de multilingsmo, esta superposio de nveis
literria quanto o vocabulrio contemporneo e os "termos regionais e nada tem de rgido, ela assegura uma margem de liberdade de escolha
e a possibilidade de redefinir, de acordo com as circunstncias e dos os livros foram convocados a mudar, por sua vez, de suporte, de forma
contedos de informao, as redes em fronteiras mveis. e de contedo, e se as definies de " autores" e de " leitores" concor-
Enfatizar, de modo exclusivo, a liberdade dos atores e as novas darem em modificar-se, bem como as relaes que mantm entre si e
possibilidades que oferecem aos atores, bem como aos leitores, a com os livros. Pois atribuir a estes trs "objetos" inscritos na histria
redefinio da cadeia de produo e distribuio do livro, oferecer o uma estabilidade e uma permanncia, que jamais tiveram, ser um erro
risco, entretanto, de falsear as perspectivas. A importncia dos investi- fundamentaldeperspectiva.
mentos exigidos pela informatizao, a dimenso mundializada do Esta constatao acerca do universo da Internet marca, na verdade,
mercado da comunicao, que ultrapassam largamente as fronteiras do o primeiro e, sem dvida, o mais profundo limite de nosso debate
mercado editorial, o contexto jurdico do direito autoral, a diversidade desses trs dias. De que se trata, afinal? Trata-se da solitria minoria,
das formas sob as quais o mesmo texto suscetvel de ser apresentado expressa em porcentagem, e, alm do mais, muito injustamente
a diferentes pblicos (livro do CD-Rom, simples ou multimdia, filme distribuda em escala planetria, para a qual as novidades tecnolgi-
ou programa televisivo, etc) tem favorecido a emergncia de grandes cas foram colocadas na ordem do dia, a fim de responder s suas
empresas operando em escala internacional; que surgem, hoje, influen- necessidades crescentes em matria de informao e de comunica-
ciando no somente, em razo de campanhas promocionais carssimas, o: uma minoria que tem tambm a vontade e os meios para fazer
a produo, a distribuio e a venda - em uma palavra: fabricao dos os investimentos necessrios? Ou, de outro modo, a totalidade da
best-sellers - mas tambm a prpria criao.4 Tudo se resume, mais do populao do mundo ou mesmo apenas suas elites solitrias?
que nunca, a um problema de escala. Entre liberdade total, onde cada Entende Madame Gyoretti Kyomuhendo de nos falar do livro que,
um se tornar editor e difusor de seu prprio texto, selecionando os na frica subsaariana, talvez seja percebido pelo leitor como exclu-
leitores, e a dominao sem limites desses grandes grupos, capazes de dente, em face da comunidade, na medida em que se tornou objeto
modelar e orientar os gostos do consumidor, o jogo est feito, mais do de uma leitura individual, solitria e silenciosa; nunca se pode pensar
que nunca. nisso seno em face da histria da leitura no Ocidente europeu, na
Ser melhor deixar de lado as frmulas abusivas ou inutilmente poca medieval e moderna: a leitura individual foi uma longa con-
apocalpticas acerca dessas trs mortes associadas: morte do livro, quista (ou o produto de longa evoluo, se se prefere, para evitar a
morte do autor (anunciada, em 1968, por Roland Barthes num outro conotao triunfalista do termo "conquista"), que se consolidou, no
contexto, verdade, uma vez que o autor houvera sido vtima, no mnimo, ao longo de seis ou sete sculos. Houve, antes de tudo, a
da mquina, mas da onipotncia do leitor), e morte do leitor. Uma presena dos monges, estes profissionais da leitura, cujas regras de
coisa, porm, sobrou disso tudo: a galxia de Gutenberg, aquela da conduta os fazia, precisamente, viver desligados do mundo. Durante
generalizao da comunicao escrita sob uma forma impressa (mas muito tempo, isto coexistiu com a prtica da leitura em voz alta, s vezes
obrigatoriamente sob suporte de papel), est mais viva e slida do individualmente, mas, na maioria dos casos, coletivamente, como os
que nunca, contrariamente s profecias pessimistas de Marshall Mc camponeses franceses no alvorecer do sculo XVIII, que no sabiam
Luhan, que anunciou seu fim, ligado ao triunfo da imagem; as novas ler, ou liam mal, ou, mesmo sabendo, preferiam esta forma de recepo
tecnologias foram recolocadas no centro de um sistema de comuni- e de apropriao do texto quela que hoje nos parece superior e bvia;
cao renovada, pois se abriram participao ativa do leitor, e ora, esta forma preenche, pelo menos, duas necessidades: uma leitura
tambm ao texto, ao qual podem estar, doravante, associadas no rpida, permitindo a cada um assimilar mais rapidamente um fluxo
apenas a imagem, virtual ou real, esttica ou em movimento, mas crescente de informaes complexas e matizada - a leitura oral acaba
igualmente o som. O universo da Internet um universo de leitores sendo, desde ento, percebida como simplificadora -; por outro lado, a
e de autores. tambm um universo de livros. E, mesmo assim, se leitura silenciosa foi tambm entendida como necessria compreenso
em profundidade, como se o som da voz constitusse um obstculo. com o computador; tambm a distino entre o saber acumulado por
Significativamente, a leitura de um texto escrito em voz alta, l onde ele geraes e mesmo civilizaes precedentes, simbolizadas pelos textos
persiste, no fundo, claro, das cerimnias religiosas, tende a se disfarar antigos, religiosos ou no, e a criao original - ou que procurava ser
por detrs da aparncia de improvisao, da palavra falada: o jornalista ou parecer original - aplicadas aos gneros novos ou renovados: a poesia
da televiso faz isto, parecendo nos olhar nos olhos, enquanto l o texto, e a filosofia, a histria, o romance, a novela, o ensaio, quer dizer: tudo
redigido previamente, e que se cola no " teleprompter" (mais um angli- o que chamamos hoje literatura, cuja afirmao imps-se ao preo de
cismo que meu computador sugere substituir por " teleponto" ,* situado mltiplas "renascenas" e de no menos da querela dos "antigos e
por detrs da cmera. O ensino tende a relegar para segundo plano esta modernos", que visam legitimar as rupturas, da o direito inovao,
antiga prtica de leitura de textos em voz alta, feita por um professor, em contrafao com simples respeito tradio.
que h muito tempo vem se chamando "leitor", ou pelo aluno. Dentre essas renovaes no campo da imprensa, convm fazer
A histria, ento, nos convida a pensar que a etapa do livro, e de tudo exceo recuperao da tradio oral por parte da literatura oficial,
aquilo que o acompanha em matria de relaes restritas ou generaliza- que precede, freqentemente, sua circulao por meio do livro,
das numa sociedade com uma cultura escrita, fixada e difundida sob ilustrado ou no, para um pblico mais amplo, graas a edies
forma manuscrita ou impressa, no pode, portanto, ser ignorada, pelo resumidas: percurso que simboliza os Contos de Perrault.
menos no inteiramente. Estamos hoje, efetivamente, numa situao Deste ponto de vista, Menocchio no deixa de ser particularmente
muito diferente da que foi criada h pouco mais de cinco sculos: a representativo das transformaes que nc s prendem ao sculo XVI.
inveno da imprensa de tipos mveis, na Europa Ocidental. Sua passagem por uma escola pblica cimentar no passa de uma
Isto interveio nas sociedades onde ler e ter acesso ao livro era, hiptese, deduzida por Cario Ginzburg do fato de ele sabar "ler,
ainda, privilgio de uma minoria. Permitiu, antes, produzir, em escrever e contar", mas que no se confirma.--A dvida reforada
grande quantidade e custo menor, obras para o pblico habituado ao pelo fato de que ele no se preocupou, de modo algum, em transmitir
livro manuscrito. Porm, muito depressa, os editores se dedicaram a seu saber a todos os seus filhos, porque, pelo menos um deles,
diversificar sua produo e a baixar os custos, a fim de atingir novos Ziannuto, aquele que aparece com mais freqncia ao longo do
pblicos, que no tinham ou no teriam nunca acesso ao livro processo, analfabeto. A dezena de obras que ele parece ter lido, a
manuscrito. Eles foram beneficiados por um contexto favorvel crer-se nas citaes que faz, so, em sua maioria, textos anteriores
de progresso na alfabetizao pela escola, o que encorajou, na imprensa, religiosos (a Bblia, a Lenda dourada de Jacques de Vora-
mesma poca e por razes inteiramente diferentes, as Igrejas e os gine) e no religiosos (John Mandeville, Boccacio5). E, mesmo que
Estados - mas tambm as famlias desejaram e mantiveram - a tenha feito uma leitura individual, sobretudo no-crtica, apressa-se
levantarem financiamentos locais, nos burgos e nas pequenas cida- em partilhar a oralidade de suas leituras consigo mesmo, como se no
des, para pequenas escolas, da mesma maneira como financiavam os pudesse se contentar com um tte--tte pessoal com o texto e tivesse
estudos de seus filhos em faculdades e universidades. necessidade, ou de mediao, ou de confirmao da palavra, e compar-
Os mesmos editores, para atingir novos pblicos, favoreceram tilhar com os outros o contedo da mensagem ou das idias que se lhe
notvel ampliao no campo da escrita, que conduziu formalizao inspirava: ser preciso esperar mais de um sculo pela formulao, por
de dupla distino: a distino entre o texto, restaurado sua forma Spinoza, do clebre Larvatus prodeo. A escola, com todos os processos
original, e o comentrio ou a glosa, que a escritura manuscrita tendia de aprendizagem e de domesticao que propicia, mas tambm de
a integrar no prprio corpo do texto, como se pode fazer, de novo, hierarquia dos saberes e da perspectiva de sua utilizao, no passou
por l. Ora, o livro de que falamos hoje est indissoluvelmente ligado
* O autor utilizou o termo francs tlsouffleur.(tlota. dos tradutores). escola e, de modo mais geral, a todo um sistema de ensino por onde
60 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 51/65, jul.-set., 2000 . TB, Rio de Janeiro, 142: 51/65, jul-set., 2000 61
passa a reproduo organizada de nossos saberes. O lugar que os nvel: o dos custos de difuso e de distribuio que duplicam ou
verdadeiros autodidatas construram, no campo da cultura, no cessa de triplicam o preo, quando mantidos nos circuitos tradicionais da livraria,
se restringir. que nos parece, entretanto, essencial salvaguardar. E percebe-se bem
-nos necessrio, ento, levar em conta esta fora e esta presena que a ganncia dos grandes grupos de comunicao, mesmo quando eles
institucionais do livro e no apenas a leitura, em nossas sociedades, pelo se apressam em defender os direitos de seus autores (que fundam seu
menos naquelas onde est assegurada a alfabetizao majoritria ou prprio copyright) consiste em eliminar os intermedirios na difuso e
generalizada. Esta fora e esta presena vo muito alm do prazer distribuio, para atender diretamente os leitores e aumentar mais ainda
esttico que os intelectuais - que somos - podemos ter quando vemos, o rendimento de seus prprios investimentos, graas ao preo na trans-
quando manipulamos, quando acariciamos sua encadernao, quando misso do arquivo.
sentimos o cheko do papel e da tinta. Este prazer esttico no ser A concorrncia da edio eletrnica , ento, convocada a transfor-
suficiente para assegurar a sobrevivncia do livro, se este no estiver mar, em torno de certo nmero de pontos essenciais, as condies
sido inscrito no mais profundo de nossos hbitos mentais, a tal ponto mesmas da escrita, a formatao do texto, sua disponibilidade para o
que a forma do livro possa ditar a forma de todas as adaptaes leitor, enfim, a leitura propriamente dita.
eletrnicas atuais: caracteres, formato, paginao, etc. Todos os Soft- Em face da proliferao da escrita e da "impresso", a leitura
books, Rocketbooks ou Eve ybooks, para melhor se parecer com livros, arrisca-se a tornar-se ainda mais individual e solitria, mais rpida e
so dotados de um dispositivo que permite passar de uma pgina a seletiva tambm, porm, do mesmo modo, mais interativa do ponto de
outra.6 Os mais aperfeioados apresentam o texto sob forma de uma vista do leitor, que reencontra o direito de interferir no texto que lhe
pgina dupla e outros so at munidos de capa de couro. Ser o livro proposto. Ele utilizar, tambm, cada vez com mais freqncia, os
eletrnico obrigado a se disfarar ou se esconder para se afirmar? recursos de um hipertexto.
O livro dispe, portanto, de todas as possibilidades de viver melhores A composio tipogrfica passar, daqui at uns quinze anos, pelo
dias no futuro, no importa o que se diga. Ele se beneficia do prestgio embargo que a eletrnica exerce, bem como pela digitalizao dos
e de todas as aquisies de seu passado. E, em termos de custo, continua textos, que tendero a circular sob uma pluralidade de formas, em
perfeitamente competitivo, desde que os nmeros das tiragens perma- propores que variam conforme os tipos de textos. Hoje, parece
neam num certo patamar. Mesmo no caso de um milhar de exemplares, legtimo pensar que a disponibilizao e circulao dos textos, por meio
a impresso propriamente dita representa apenas a metade e um tero de procedimentos e com suportes eletrnicos, tm boas perspectivas de
dos custos reais (incompreensveis, se queremos manter a qualidade serem vlidas para diversas categorias de textos:
final do texto) de composio e de preparao do "pronto para impri- A informao cotidiana: quanto mais a rapidez exigida, mais
mir" , e este percentual diminui rapidamente, quando a tiragem aumenta. iminentemente o texto perecvel; a maioria de nossos jornais nos
Para quem continua a preferir a leitura no papel, a partir de um texto prope, j, edies on Une.
recebido pela Internet, o custo da impresso (em torno de dez ou A informao de tipo enciclopdico que poder, desse modo, fazer
quinze cntimos de franco por pgina por usurio) definitivamente frente s necessidades de capacidade de armazenamento, de atualizao
marginal, em relao ao custo da composio e da impresso de alta permanente e de consulta pontual para um nmero crescente de
qualidade de um texto fornecido em disquete, por parte do autor a seu usurios. Ou, ainda, sob o mesmo modelo, os manuais escolares,
editor (no mnimo 80 a 100 francos a pgina, muitas vezes mais). A propostos aos alunos; estes manuais sero acompanhados de materiais
verdadeira fragilidade do livro, como produto industrial em srie, que, pedaggicos, cada vez mais atraentes e eficazes.
alm do mais, se conserva, infinitamente melhor e por mais tempo do A consulta a distncia de livros e revistas, atravs da alocao em
que todos os suportes eletrnicos existentes, situa-se, de fato, noutro redes de bibliotecas, e o acesso pela web a publicaes digitalizadas.
No existe aqui o menor paradoxo em relao queles que, por profis-
so, se apresentam ou se percebem como os maiores defensores do livro,
1 Roger Chartier. "Ls reprsentations de 1'crit", in Culture crte et
uma vez se arriscam a ser, tambm, os principais usurios desta biblio-
socit. L'ordre ds livres ((XlVe-XVIIIe sicle). Paris, Albin
teca universal com a qual sonham h tanto tempo.
Michel,'1996, pp. 33-35.
A publicao e circulao de textos complexos, especializados ou
raros, redigidos em lngua de rara difuso, destinados a um nmero de 2 Umberto Eco, "De internet Gutenberg", Debate (Institucio' Alfons
leitores muito restrito para poder passar pelos circuitos tradicionais de ei Magnnim, primavera/verano 2000), n 69, "La muerte (incierta)
edio e da livraria. dei libro y su cultura", pp. 66-75.
As comunicaes internas na Repblica das Letras, j to amplamen- 3 Charles F. Sabei e Jonathan Zeitlin (eds.). World of possibilities.
te transformadas pelo uso do telefone, ao fax, e da Internet de modo que Flexibility and mass production in western industrialization.
as correspondncias em suportes tradicionais tm sido esvaziadas em Cambridge/Paris: Cambridge University Press/Maison ds Sciences
seu contedo essencial.
de l'Homme, 1977.
Pode-se tambm supor que a escrita de certos textos, no necessaria-
mente sua totalidade, tender a se transformar para levar em conta 4 Roger Chartier. L livre en rvolutions. Paris, L Seuil, 1977, pp.
possibilidades novas, abertas no ambiente eletrnico da comunicao. 146-148.
A escrita tender ento a tornar-se menos individual e mais coletiva, 5 Cario Ginzburg. II fromaggio e i vermi. Turin, Einaudi, 1976, pp. 4,
apelando para verdadeiros "cengrafos" e especialistas de diferentes 10 e 35. (Trad francesa por Monique Aymard. L fromage etles vers.
mdias e de diferentes tcnicas. Paris, Flammarion, 1980, pp. 34,40 e 65).
Possveis ou verossmeis, todas estas escolhas, todas estas evolu-
es, todos estes compromissos ou diviso de tarefas confirmam, 6 Steve Silberman. "Ex libris. La satisfaccin de 'enrollarse' con un
plena e integralmente, o lugar atual, central, do livro como instru- buen dispositivo de lectura digital", in Debats, cit., pp. 94-103.
mento de um dilogo direto e sem intermedirio entre um autor e um
leitor, atravs de qualquer coisa que continuamos a chamar de texto.
Um texto que no existe seno porque existe uma forma acabada
que lhe foi atribuda por seu autor, seja por um transcodificador,
mesmo desconhecido, seja pela tradio editorial. E porque h
leitores que cada leitura -- diferenciada, individual e livre -
torna-se, a cada vez, viva.
Tudo nos permite pensar que esta relao esteja destinada a perdurar,
embora tudo esteja se transformando. Que ela seja "eterna"! Nenhum
historiador deixar de se aventurar em dize-lo, mesmo que, como meu
caso, acontea-lhe de apenas desejar.
(traduo do original francs de

Claudius Bezerra Gomes Waddington
& Carlos Seplved)
. TB, Rio de Janeiro, .42: 51/65, jul.-set., 2000 65

A CULTURA DO FIM DE TUDO:
DO FIM DA CULTURA AO FIM DO LIVRO*
SRGIO PAULO ROUANET
Um poeta brasileiro deflagrou uma polmica clebre, h alguns anos,

dizendo que vivamos uma poca "ps-tudo". Hoje estamos vivendo
uma sndrome conexa, que poderamos designar como a poca do " fim
de tudo", ou, se quisssemos ser pedantes, a era do "pan-escatologis-
mo". Estaramos vivendo o fim da ideologia, o fim da utopia, o fim da
geografia, o fim da histria, o fim do estado nacional, o fim do homem
e o fim da modernidade, para no falarmos do fim do mundo, anunciado
pelas seitas apocalpticas, s quais pertence por direito de antigidade
o riqussimo tema do fim de todas as coisas. S no est vista,
aparentemente, o fim do prprio pan-escatologismo, o fim da poca do
fim de tudo. Sem dvida, esse estado de esprito estimulado pela
mudana do sculo e do milnio, e talvez se dissipe quando passar a
atual vaga de excitao milenarista.
Entre as vrias coisas que esto acabando, um lugar de honra
reservado ao livro, em face da atual difuso de tecnologia digital, que
cria a figura do livro eletrnico. Bill Gates e outros agentes da
biblioclastia se alegram com isso, e se transformam nos profetas
inspirados da deusa Web e do seu esposo imortal, o deus Bit. Mas,
em geral, os intelectuais se horrorizam. At nisso se demonstra o
* Palestra pronunciada no simpsio "O lugar do livro entre a nao e o mundo".

Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2000.

carter "milenarista", ou quilistico, do clima atual, porque segun- forma, o da oposio entre cultura e civilizao. A cultura desig-
do uma viso tradicional, agora desmentida pelos historiadores, a nava a esfera simblica - religio, arte, literatura - enquanto a
passagem do ano mil teria sido acompanhada por fenmenos de civilizao aludia ao mundo material - a economia e a tcnica.
histeria de massa, que ora se manifestavam sob a forma do pnico, Desde o incio, a polarizao teve intensa carga ideolgica. Na
ora sob a forma da esperana numa vida melhor, alm das calamida- tradio do romantismo alemo, de Herder a Schiller e Hegel, a
des da vida presente. civilizao exprimia a condio fragmentada do homem moderno,
Mas milenarismo parte, pergunto-me se no haveria um equvoco que, por estar escravizado mquina e aos valores comerciais, perdeu
de acento nessa angstia gerada pelo fim do livro. Seria, realmente, a viso do todo, da unidade original com a natureza. A cultura - a
a crise do livro que tanto preocupa nossos intelectuais, ou algo que alta cultura, a cultura clssica - era uma via para corrigir os males da
est por trs dessa crise, a crise de cultura, da qual a crise do livro civilizao, contribuindo para a reconquista da totalidade perdida.
seria, seno um epifenmeno, pelo menos um sintoma? O problema Essa ideologia experimentou violenta guinada nacionalista a partir
que s se l hoje James Joyce em livro digital, ou que no se l, de da primeira guerra mundial. Os alemes passaram a ver-se como o
todo, James Joyce, qualquer que seja o suporte dessa leitura? Se a povo da Kultur, associada autenticidade, ao instinto vital, tradi-
segunda parte da disjuntiva for verdadeira, ento no o livro que o, e viram, nos franceses, os protagonistas da mera Zivilisation,
est em crise, e sim a cultura. Por isso ela que convm interrogar que aceitava como inevitvel o desmembramento do homem moder-
' primeiro, fazendo diagnsticos e vaticnios sobre seu futuro, som- no, substitua a histria pela razo, baseava-se em valores materia-
brios ou otimistas, antes de interrogarmos o livro, cujo destino ser listas e utilitrios, e era pervertida por um refinamento excessivo, que
sempre solidrio da cultura que ele contribui para formar, e da qual afastava o homem da sua verdade e da sua natureza. Os franceses
constitui o veculo mais prestigioso. aceitaram em parte essa atribuio, considerando-se, realmente, os
porta-vozes da civilizao, mas a palavra tinha para eles um contedo
II positivo. A civisation consagrava a hegemonia da moral e do direi-
to, e, nesse sentido, o pas dos direitos do homem encarnava a
A angstia com relao ao desaparecimento da cultura vem de uma civilizao em sua forma mais alta, enquanto a Kultur de alm-Reno
velhssima tendncia, que os romanos j exteriorizavam, quando - os franceses usavam a palavra ironicamente, em alemo - era, na
deploravam a perda de prestgio da cultura grega, e que se manifestou verdade, o reino da barbrie.
nos vrios avatares da "querela dos antigos e modernos", do sculo Com isso, o velho topos do fim da cultura (ou da civilizao)
17 s vanguardas contemporneas. De modo geral, os " antigos" viam sofreu uma transfigurao chauvinista. Vitoriosa a "civilizao",
nas inovaes culturais dos "modernos" investidas contra a cultura seria o fim da Kultur, segundo os alemes, ou, pelo menos, o fim do
clssica e, por extenso, contra a cultura em si. Os "modernos", por Ocidente, na linguagem de Spengler; vitoriosa a Kultur, seria o fim
sua vez, no se faziam rogar, e se esforavam por confirmar esses da civilizao, segundo os franceses, consagrando, assim, o primado
temores. O niilismo dos dadastas, que queriam desarticular todas as da fora e do instinto sobre a razo e o direito.
formas tradicionais de expresso artstica, e dos futuristas, que que- A velha distino foi retomada pela Escola de Frankfurt, agora
riam incendiar os museus, apenas o avesso da velha angstia com numa tica marxista. Marcuse usou a polaridade explicitamente: o
o fim da cultura. capitalismo seria hoje uma sociedade de massas, em que a esfera da
Com o advento da modernidade, que consagrou a hegemonia da civilizao teria absorvido a esfera da cultura. Com isso, a sociedade
classe burguesa e ps em circulao valores mercantis, ligados ao tornou-se unidimejisional, perdendo sua transcendncia com relao
ganho e utilidade, o fantasma do fim da cultura se difundiu sob nova ao existente. De modo menos direto, a velha nostalgia pela cultura
perdida permeia a crtica indstria cultural, feita por Adorno e substituda por culturas, no plural. Com isso, o tema do fim da
Horkheimer. Reduzido mera "civilizao", o Iluminismo passou cultura foi redefinido em termos particularistas, herderianos, em
a ser o culto do mundo tal como , sem possibilidade de fazer apelo oposio ao tratamento universalista, marxista, que lhe dera Adorno.
aos valores ideais que outrora habitavam a esfera da cultura, e que O espectro que assombra o escritor ps-colonial no o fim da alta
ofereciam tanto um padro crtico como uma perspectiva utpica: cultura, e sim o fim da cultura nacional, entendida num sentido
uma "promesse de bonheur", nas palavras de Stendhal. A angstia antropolgico amplo, e das vrias culturas nacionais, ameaadas pelo
com o fim da cultura assumia agora a forma do horror diante do rolo compressor de uma cultura ocidental hegemnica.
desaparecimento da nica instncia capaz de proporcionar uma exte- Essa redefinio experimentou um reforo desmedido com o tr-
rioridade com relao ao todo social. Todos os frankfurtianos eram mino da guerra fria, e o advento do tema da globalizao. Agora no
suficientemente marxistas para saberem que a cultura era sofrimento se tratava mais de proteger a cultura nacional contra as investidas
sublimado, distilao ideal de relaes de violncia; mas sabiam descaracterizadoras que vinham da antiga metrpole, mas de prote-
tambm que, sem ela, o homem estaria entregue irremissivelmente g-la contra um verdadeiro cataclismo planetrio, um capitalismo
facticidade bruta do que . por isso que Adorno disse que escrever mundializado que atravessava todas as fronteiras e arrasava todas as
poesia depois de Auschwitz era um ato de barbrie, mas acrescentou especificidades culturais. O velho tema adorniano da crtica da cul-
que deixar de escrever poesia seria igualmente brbaro. tura de massas no estava ausente, porque, afinal, as mercadorias
esse o sentido da crtica cultural de Adorno e Horkheimer. Eles culturais que invadiam os rinces mais longnquos dos nossos pases
combatem a pseudocultura difundida pela indstria cultural, porque no eram sinfonias dodecafnicas e quadros abstratos, e sim filmes
ela no tem nenhum dos elementos de transcendncia contidos na alta sobre artes marciais e discos de Madonna e Michael Jackson. Mas o
cultura. Em sua estereotipia, em sua banalidade, em sua unidimen- foco do horror provocado pela globalizao cultural claramente
sionalidade, a cultura de massas entroniza o mero entretenimento, outro. O que assusta o fim, considerado iminente, da "nossa"
bloqueia qualquer reflexo crtica e substitui a utopia de um mundo cultura - festivais de bumba-meu-boi, rodeios, folhetos de cordel,
situado alm do existente pelo mito do existente como realizao da estatuetas do mestre Vitalino - e no o declnio da alta cultura. Antes
utopia. Nessa perspectiva, o fantasma do fim da cultura , na verdade, o tema do fim da cultura tinha um contedo elitista; hoje tem um
o fantasma da substituio da alta cultura por uma cultura de massas contedo xenfobo. O que considerado repulsivo na cultura de
que nada mais que o lado ldico da esfera da " civilizao", o mundo massas global o fato de ser global, e no o fato de ser cultura de
da economia e da tcnica. massas.
Mas o topos do fim da cultura experimentou decisiva modificao Sob essa nova aparncia, o fantasma do fim da cultura assusta, e
nos anos que se seguiram publicao da Dialtica do esclarecimen- com razo, porque o medo que ele evoca pertence ao domnio do que
to. Nesse perodo, que coincidiu com o movimento de descoloniza- Freud chamava de Realangst, o medo no-neurtico, que vem da
o, a inimiga passou a ser a cultura metropolitana, e no a cultura realidade. um fato que a diversidade cultural est sendo ameaada
de massas. Paralelamente, houve um deslocamento no conceito de pelas presses niveladoras que vm da cultura global. E tambm
cultura. Ela no designava mais um acervo de saberes, normas e artes, um fato, por mais que essa dimenso do tema do fim da cultura tenha
como a moral, o direito, a cincia, a filosofia, a literatura, a msica, sido recalcada pelos idelogos do nacional-populismo, que a globa-
a dana, o teatro, e sim, lato sensu, um conjunto de valores, crenas, lizao acelerou a generalizao da cultura de massas, em detrimento
smbolos, modos de agir, de fazer, de pensar. Em suma, o sentido da da alta cultura, qualquer que seja a sua nacionalidade, nisso consis-
cultura como culture cultive foi sendo reprimido, e, gradativamente, tindo o que talvez seja o seu aspecto mais problemtico. Mas seria
substitudo pelo sentido antropolgico. A cultura, no singular, foi outro fato, tambm, que o reforo das identidades locais, das tradi-
es locais, das razes locais, seria o melhor exorcismo para Marx usa quase as mesmas palavras que Goethe. No trecho
expulsar a assombrao? clebre do Manifesto comunista em que descreve, nos mnimos
A meu ver, todos esses particularismos so perigosos, porque pormenores, o que hoje chamamos de globalizao, Marx afirma que
partem de uma viso ontolgica do prprio grupo e absolutizam a "os produtos intelectuais das diferentes naes se transformam em
identidade do Outro, transformando-o numa essncia inimiga e numa patrimnio comum. A unilateralidade e a estreiteza nacionais se
extraterritorialidade irredutvel. So mquinas de fabricar estrangei- tornam crescentemente impossveis, e uma literatura mundial (Wel-
ros. A proliferao desses particularismos est transformando nossa tliteratur) se constitui a partir das vrias literaturas nacionais e
sociedade no que um autor j chamou de sociedade heteroflica, locais".
votada ao culto da diferena. Eles opem ao pesadelo da homogenei- Tanto Goethe como Marx deixam claro que a "literatura mundial"
zao total o pesadelo da retribalizao do mundo. Alm de tica e - os dois usam a mesma expresso, Weltliteratur - funciona como
politicamente inaceitveis, particularismos desse gnero so inefica- aluso metonmica cultura como um todo. E ambos a descrevem
zes para conter o globalismo, que, por definio, cruza todas as como um fenmeno moderno.
particularidades e se evade a todas as jurisdies nacionais. uma pista importante para compreendermos a natureza da cul-
Diante disso, o que fazer? tura global e explorarmos os meios que permitam superar suas
A resposta exige uma anlise mais detida do que entendemos por perverses.
cultura global. Permito-me, para isso, retomar algumas idias que Habitualmente, a modernidade entendida na significao que lhe
desenvolvi em ensaios recentes. deu Max Weber, como o desfecho de processos cumulativos de
A internacionalizao da cultura no um fato indito na histria racionalizao, ocorridos no Ocidente a partir da reforma protestante.
da humanidade. O fenmeno se deu no imprio alexandrino, quando Segundo essa acepo, numa sociedade moderna as instituies/ww-
a cultura grega se imps; no imprio romano, em que o latim e o grego cionam melhor que numa sociedade pr-moderna. Por isso, podemos
se generalizaram; na Idade Mdia, unificada pelo uso do latim e por falar em uma concepo funcional de modernidade.
uma religio comum; e, no perodo das grandes navegaes ibricas, Mas existe um segundo vetor da modernidade, que no tem a ver
em que o uso do portugus e do castelhano interligou os vrios com a eficcia e sim com a autonomia. Sua matriz o projeto civiliza-
continentes. Ela conheceu novos impulsos, desde o sculo 17, com a trio da Ilustrao, que no busca a funcionalidade das estruturas e sim
entrada em cena de outros atores, como a Holanda, a Frana e a a emancipao dos indivduos. a concepo emancipatria de mo-
Inglaterra. Mas foi a partir do sculo 19 que a expanso mundial do dernidade.
capitalismo gerou a conscincia de que uma cultura mundial estava A modernidade a coexistncia contraditria desses dois vetores.
verdadeiramente surgindo. Ela uma priso, uma stahlhartes Gehause, na expresso de Weber,
Talvez a primeira referncia a essa cultura esteja em Goethe. mas tambm uma promessa de autonomia, o reino da racionalidade
Numa de suas conversas com Eckermann, ele disse que "se ns instrumental, que submete o homem a imperativos sistmicos, mas
alemes no olharmos alm do crculo estreito do nosso prprio tambm o prenuncio utpico de uma humanidade mais livre.
horizonte, cairemos facilmente num obscurantismo pedante. Por isso Pois bem, a modernidade tende internacionalizao - ou
gosto de olhar para o que se faz nos pases estrangeiros e aconselho mundializao - nesses dois vetores.
a todos que faam o mesmo. A literatura nacional no quer dizer Em seu vetor funcional, a modernidade percebe as barreiras locais
grande coisa hoje em dia. Chegou a hora da literatura mundial e nacionais como obstculos para o pleno desdobramento da lgica
(Weltliteratur), e cada um de ns deve contribuir para acelerar o da eficcia e do rendimento. Conseqentemente, a modernidade vai
advento dessa poca". derrubando essas barreiras. Ela passa primeiro dos particularismos
72 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 67/85, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 1.42: 67/85, jul.-set., 2000 73
locais, que impunham limites ao do capital, para o espao dotada de estruturas que facultam a transformao de bens culturais
mais amplo criado pelo estado nacional, que punha sua disposi- em mercadorias e permitem a difuso no mundo inteiro de produtos
o um mercado integrado. Em seguida, os prprios estados nacio- culturais de massa, que tendem a expulsar as criaes culturais
nais se tornam demasiado estreitos, e ela ultrapassa esses limites, "autnticas".
mundializando-se. a globalizao. Segundo a bela anlise de Renato Ortiz, a cultura global corresponde
Mas a modernidade se mundializa, tambm, em seu vetor emanci- a uma nova fase, transnacional e no simplesmente internacional, da
patrio, porque, sob esse aspecto, ela deriva de um projeto planetrio, organizao capitalista da produo e do consumo. A Disneylandia, o
o da Ilustrao, que visa autonomia de todos os seres humanos, blue-jeans e o McDonald no resultam de um projeto imperialista
independentemente de sexo, etnia, cultura ou nao. Podemos cha- norte-americano, e sim das caractersticas dessa nova fase. A nova
mar de universalizao a esse movimento de extroverso da moder- realidade seria ofastfood, no o McdonakTs; ofastfood corresponde
nidade emancipatria. aos ritmos mais velozes da vida, neste final de sculo, e pouco importa
Os agentes da globalizao so os executivos transnacionais, as a nacionalidade das empresas que encarnam essa realidade. H outras
elites tecnoburocrticas, os especialistas da comunicao por satli- firmas especializadas nofastfood - Brioche dore, Quick e Free Time
tes, e, em geral, os "intelectuais orgnicos" do novo prncipe - a - todas trs so francesas. O cinema se transnacionaliza cada vez mais:
"burguesia global". Os agentes da universalizao so as organiza- um nmero cada vez maior de filmes rodado na frica, por um estdio
es no-governamentais, os partidos polticos, os sindicatos, os de Hollywood, com um diretor europeu, e financiamento japons. O
parlamentos, os governos democrticos, os artistas, e os intelectuais western h muito deixou de ser privilgio americano. Hoje ele produ-
crticos comprometidos com ideais universalistas. A globalizao zido na Austrlia (Silverad) e na Itlia - o western spaghetti. H alguns
a unio dos conglomerados. A universalizao a unio dos povos. anos, o pblico americano reagiu com choque notcia de que os
Somos objetos da globalizao. Somos sujeitos da universalizao. japoneses tinham comprado companhias cinematogrficas americanas.
A acelerao dos processos de mundializao, em seus dois veto- No havia motivo para tanta surpresa. Afinal, o capitalismo global
res, est levando, em nossos dias, a algo que poderamos chamar de fundamentalmente cosmopolita. Isso foi perfeitamente expresso por um
sociedade mundial. uma sociedade ainda relativamente amorfa, empresrio japons, para quem "antes da identidade japonesa, antes da
porque no dispe, por enquanto, de estruturas polticas. Mas j filiao local, antes do ego alemo ou italiano, vem o compromisso com
dispe de uma cultura prpria, irredutvel soma das culturas nacio- uma misso global, nica e unificada", o compromisso com os clientes.
nais. Assim como as sociedades nacionais geram culturas nacionais, Um documento da Brown Bovery deixa isso claro: "No somos uma
a sociedade mundial gera uma cultura mundial. companhia sem teto; somos uma companhia com vrios lares". Esse
Ocorre que, sendo, como , produto dos dois grandes movimentos cosmopolitismo especialmente evidente na esfera da cultura. Num
da mundializao moderna, a cultura mundial contm elementos, momento dado, a indstria dos bens culturais pode estar indiferentemen-
tanto do vetor funcional, como do vetor emancipatrio da moderni- te monopolizada por conglomerados americanos, suos, alemes ou
dade. Por isso, ela ambivalente. A cultura mundial a unidade japoneses, e o panorama pode mudar da noite para o dia, ao sabor das
antagonstica de duas culturas: a cultura global, produzida pela glo- fuses e aquisies, que variam com estonteante velocidade. A indstria
balizao, e a cultura universal, produzida pela universalizao. fonogrfica, por exemplo, dominada por empresas de vrias naciona-
No sentido antropolgico a que me referi antes, em que o termo lidades, corao a Bertelsman, a Polygram, a Sony, a Virgin. Se a Sony
"cultura" designa um repertrio de crenas, atitudes, representaes absorvesse suas concorrentes, isso no bastaria para caracterizar um
e significados simblicos, a cultura global privilegia valores ligados imperialismo musical japons, porque, no momento seguinte, a alem
ao ganho, eficcia, competio. Num sentido mais material, ela Bertelsman poderia capturar o mercado.
Embora menos visvel que a cultura global, a cultura universal global, no devemos refugiar-nos em particularismos a contracorrente,
porque eles no nos permitiriam lidar com fenmenos que se sobrepem
tem-se ampliado desde o tempo de Goethe e de Marx. No sentido
a todas as culturas, e sim agir no prprio terreno em que se d a cultura
antropolgico, ela impregnada de valores humanistas, no-utilit-
global: o da mundializao. O corretivo da mundializao pelo globalismo
rios, traduzindo a conscincia de que pertencemos mesma espcie,
a mundializao pelo universalismo.
de que estamos expostos aos mesmos riscos, de que todos os homens
Com isso, nosso fantasma do fim da cultura comea a esvair-se. A
e mulheres, independentemente de etnia ou nao, constituem uma
cultura no precisa ser paciente terminal em nenhum dos dois senti-
comunidade de destino. A cincia, cada vez mais cosmopolita, se
dos. No necessrio temer a extino da cultura no sentido da alta
torna crescentemente sensvel dimenso tica e poltica do saber.
cultura, porque, como os processos de universalizao sero condu-
A moral se universaliza, num sentido humanista, a partir de propostas
zidos, em tese, por cientistas, filsofos e artistas, ou por seus repre-
como a de Hans Kng, que pretende fundar uma tica ecumnica, de
sentantes autorizados, eles sabero evitar a trivializao de suas
Hans Jonas, que lanou as bases para uma tica da responsabilidade
mundial, e a de Jrgen Habermas, que concebeu uma tica discursiva criaes. E o fim da cultura no sentido antropolgico igualmente
capaz de ser aceita universalmente. O direito se universaliza, atravs evitvel. certo que a globalizao tende a nivelar todas as particu-
laridades, porque sua fora motriz a otimizao do ganho, atravs
de instrumentos como a Declarao Universal dos Direitos Humanos,
de uma racionalidade de mercado que supe a criao de espaos
de 1948, a Conveno para a Preveno do Genocdio, do mesmo
homogneos. Mas a universalizao pluralista, porque seus fins s
ano, a Declarao sobre a Abolio da Escravido, de 1956, ou a
podem ser atingidos por uma racionalidade comunicativa, que supe
Declarao contra a Tortura, de 1975, e, mais recentemente, atravs
o desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade das
da fixao do conceito da jurisdio universal nos crimes contra a
suas formas de vida.
humanidade e da instituio do Tribunal Penal Internacional. No
sentido esttico, limitado s chamadas "artes", a cultura se univer- bvio que os processos de universalizao s podero ser plena-
saliza rapidamente, graas Bienal de Veneza e de So Paulo, no mente eficazes quando chegarem sua culminao lgica, a implanta-
campo das artes plsticas, ao Pen Clube ou ao Parlamento de Escri- o de uma democracia mundial, dotada dos mecanismos necessrios
tores, no campo da literatura, a festivais como o de Avignon, no para corrigir os abusos da globalizao, mas isso assunto para outro
simpsio.
campo do teatro e da dana, ou aos festivais como o de Cannes e
Berlim, no campo do cinema.
No h guerra de morte entre globalizao cultural e universaliza-
o cultural. Elas so opostas, mas dialeticamente complementares.
Podemos agora abordar a segunda questo, a idia do fim do livro.
A mesma revoluo tcnica que viabilizou a globalizao da cultura
Essa idia encontra slida confirmao na realidade: as estatsticas
pode ser usada pelos que pretendem universaliz-la. As duas culturas
mostram que as tiragens esto ficando cada vez menores, e que h
so partes da modernidade, indissociveis uma da outra. Sem a
cada vez menos leitores.
cultura global, a cultura universal no teria os meios tcnicos para
Mas a crise do livro no precisaria necessariamente indicar uma
implantar-se, e, sem a cultura universal, a cultura global careceria de
crise de cultura. Por exemplo, as tiragens podem ser pequenas, porque
contedo tico.
o alto preo de cada exemplar inviabiliza sua compra por parte de
Mas h uma relao hierrquica entre as duas. da cullura univer-
camadas mais amplas da populao. Essa explicao , sem dvida,
sal que vm os impulsos para traar seus rumos cultura global,
decisiva no Brasil, onde o livro est entre os mais caros do mundo.
supervision-la, retificar seus desvios. E, com isso, encontramos uma
Medidas de ordem tributria provavelmente ajudariam a resolver esse
resposta nossa indagao. Para combater os excessos da cultura
76 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 67/85, jul.-set., 2000 . TB, Rio de Janeiro, 142: 67/85, jul.-set., 2000 77
L
problema. Ou podem ser pequenas, porque grande parte da popula- tou, severamente: "Jacques, qu'est-ce que c'est que ca?" O peque-
o analfabeta, ou no adquiriu na escola o hbito de ler. Tambm no vndalo respondeu: "C'est Ia rvolution culturelle!"
aqui um problema localizado; situadc na escola, e no precisa pr em Sim, somos filhos da galxia de Gutenberg, e no poderamos
questo a cultura como um todo. aceitar facilmente a passagem para outra galxia. Nisso, no somos
Mas no so esses fatores tpicos que assustam, e sim os sinais de muito diferentes de Claude Frollo, arquidicono da catedral de No-
que o livro estaria sendo deslocado pelas novas tecnologias de infor- tre-Dame, no romance de Hugo: ele opunha o livro impresso
mao e comunicao: em vez do livro, o CD Rom, e, em vez do livro catedral, dizendo que uma coisa mataria a outra, ceei tuera cela. Que
impresso, o livro digital. Por que nos assustamos? preciso confes- seria de ns, se a Internet matasse o livro?
sar: em parte, por tradicionalismo. Levada s ltimas conseqncias, essa atitude , certamente,
Todos ns, intelectuais, vivemos dos livros e para os livros. Somos irracional. S um cego negaria as extraordinrias contribuies
um pouco como aquele personagem de Ea de Queirs, que adormece trazidas pelas novas tecnologias para a preservao, difuso e at
no meio de milhares de livros, no palacete em que vivia, em Paris, e formulao do pensamento. S por uma distoro ideolgica mui-
sonha que tudo tinha se transformado em livros: as casas eram to profunda seria possvel negar os enormes servios que elas
construdas com livros, dos ramos dos castanheiros pendiam livros, prestaram ao prprio livro, e que vo desde a possibilidade de
e as mulheres usavam vestidos de papel impresso. Ele escala o consultar distncia os catlogos das principais bibliotecas do
obelisco da Concorde, evidentemente uma montanha de livros, e mundo at a de comprar livros raros com um simples clicar de
chega ao cu. Encontra Deus, sentado entre vetustssimos flios, mouse. Mas, mesmo que elas estivessem de fato deslocando o
lendo. O Eterno lia Voltaire, numa edio barata, e sorria. livro, no seria necessariamente uma tragdia. O livro essencial-
Em nossa imaginao, somos todos diretores da Biblioteca de mente um instrumento, um instrumento valiosssimo, mas um instru-
Babel, quando no da Biblioteca de Alexandria, uma biblioteca ideal, mento. Outros instrumentos podem surgir, capazes de coexistir com
incorruptvel, que nunca foi destruda pelo fogo. Eduardo Portella o livro, sem expuls-lo. Em si, a crise do livro no precisa indicar
tem sobre seus confrades a vantagem, ou a desvantagem, de estar uma crise de cultura. No nos preocuparamos tanto, se houvesse
vivendo na realidade o que para ns uma fantasia. algum indcio de que as novas tecnologias estariam realmente cum-
Como se isso no bastasse, somos incorrigveis fetichistas, fasci- prindo o papel que lhes atribuem os seus propagandistas, e se capts-
nados pelos livros enquanto objetos, e no somente como deposit- semos algum sinal de que atrs dos contedos transmitidos por esses
rios de idias ou informaes. No h prazer sensual comparvel ao veculos houvesse uma cultura vigorosa e intacta, como existiu, na
de acariciar as pginas de um livro da Pliade, virando as pginas de Frana, no sculo 18 e em parte do sculo 19, isto , no apogeu da
papel couch como se fossem as etapas de um jogo amoroso. Folhear, cultura do livro. Nesse caso, haveria crise do livro, mas no crise de
no caso, eqivale a desfolhar. nisso que consiste, literalmente, o cultura. Com a inveno da imprensa, por exemplo, houve crise na
plaisir du texte. Essa atitude, meio perversa e meio religiosa, quase tecnologia tradicional, pela qual os livros eram copiados nos mostei-
um convite atitude oposta, antifetichista e dessacralizadora. Um ros, mas no houve crise de cultura, que, pelo contrrio, floresceu
amigo meu, durante os acontecimentos de maio de 1968, tinha enco- como nunca, pois a imprensa tornou acessveis autores modernos e
mendado as obras de Flaubert, na Pliade, e passou o dia antegozando ps disposio de um pblico muito maior que no passado todos os
o momento em que chegaria em casa, depois do trabalho, para tesouros da sabedoria antiga.
examinar suas novas aquisies. Mas, em casa, encontrou os livros Mas, se nossa anlise verdadeira, existe, sim, uma crise de cultura,
profanados pelas unhas raivosas do seu filho Jacques, de 10 anos, e ela que produz, em grande parte, a crise do livro. As pessoas no
com a palavra: "Merde!", escrita em toda parte. Meu amigo pergun- lem, no por serem analfabetas, mas por serem vtimas do fenmeno
social do "iletrismo", a recusa de ler, mesmo quando dominam a xote para a identidade espanhola, ou pelos Lusadas para a identidade
tcnica da leitura. nisso, fundamentalmente, que a globalizao portuguesa.
fatdica, no por dissolver identidades, muitas das quais devem ser Mas, na fase da universalizao, no se trata tanto de construir
mesmo dissolvidas, mas por planetarizar a massificao, levando o lixo identidades, como de desconstru-las e reconstru-las, substituindo o
cultural aos confins do universo, e demolindo, com isso, a curiosidade conceito de identidade nica pelo de identidades mltiplas. Por exem-
intelectual, sem a qual no existe o prazer da leitura. da cultura global, plo, Michael Walzer sugeriu que uma maneira de "civilizar" o nacio-
e dos canais utilizados para sua difuso, como a televiso por satlites nalismo seria integr-lo em molduras pluralistas mais amplas. Num
e a cabo, que vm as contratendncias que inibem a leitura. O homem congresso sionista dos anos 30, David Ben-Gurion disse o seguinte:
no l, porque foi condicionado para no ler, passando por uma "Pertencemos a vrios crculos. Como cidados palestinos, estamos no
pedagogia da no-leitura. No l, porque a leitura exige esforo, e a crculo de uma nao que aspira a uma ptria; como trabalhadores, estamos
mdia lhe oferece uma gratificao instantnea; no l, porque a leitura no crculo da classe operria; como filhos de nossa gerao, estamos no
implica uma historicidade, um mergulho temporal na cronologia dos crculo do mundo moderno; e nossas companheiras esto no crculo do
personagens e da trama, enquanto a mdia o habituou a um presente movimento das mulheres trabalhadoras que lutam por sua emancipao".
eterno; no l, enfim, porque passa por um aprendizado regressivo que No mundo contemporneo, as identidades pessoais se estruturam cada vez
faz com que regrida do estgio do pensamento conceituai, sem o qual mais pelo cruzamento dessas identidades particulares.
nenhuma leitura possvel, para o estgio do pensamento por imagens, Podemos encontrar um prenuncio disso em nosso prprio passado.
efmeras por natureza, sem ligaes entre si, e que no podem fazer A figura do latino-americano "alienado", que sai do seu lugar de
outra coisa seno refletir um mundo tambm desconexo, por isso origem, europeizando-se, sempre foi vista como odiosa ou ridcula,
ininteligvel, e, portanto, intransformvel. E bvio que o contrrio e, de fato, em grande parte o foi. Mas, de outro ngulo, essa " aliena-
tambm verdadeiro: porque no l, o homem no aprende a pensar o" pode ter sido precursora de uma atitude epistemolgica repre-
causalmente, historicamente e politicamente. sentativa dos novos tempos. o topos do exilado lcido, que, por ser
Mas, se a crise do livro solidria da crise da cultura, um otimista exilado, percebe o que as evidncias locais impedem que seja perce-
diria que a modificao da cultura segundo as exigncias do processo bido. o persa de Montesquieu, ou o pele-vermelha de Voltaire, que
de universalizao levar superao da crise do livro. Uma vez compreenderam muito melhor a Frana do sculo XVIII que todos
retificados os descaminhos da cultura global, principal responsvel os sbios europeus juntos. Ora, foram os brasileiros que forneceram
pela resistncia leitura que hoje caracteriza todos os pases, o livro aos europeus o modelo desse saber "de fora". Refiro-me aos trs
poderia reassumir seu papel de guia, companheiro, magister vitae, canibais tupinambs que foram levados para a Frana, no reinado de
que sempre desempenhou no passado, sem que isso signifique o Carlos IX, e que, segundo Montaigne, observaram coisas sobre a
abandono das novas tecnologias, que continuariam cumprindo as Frana que nenhum francs tinha notado. Viram mais claro, porque
tarefas que lhes so prprias, sem tornar o livro redundante. seu olhar era um olhar estrangeiro: um olhar etnogrfico.
Mas o livro no pode dar-se ao luxo de ser apenas um beneficirio Muitos intelectuais latino-americanos foram como esse tupinam-
passivo e automtico da universalizao da cultura. Ele pode contri- bs do sculo XVI: j no se sentiam bem em sua ptria e no
buir para a consolidao desse processo. chegaram a entrar na cultura europia. Eram forasteiros dos dois
Durante boa parte da histria, o livro foi constitutivo para a lados do Atlntico. Ouamos um trecho de Minha formao, a obra-
formao das identidades coletivas. A Ilada e a Odissia foram prima de Joaquim Nabuco. "Estamos condenados mais terrvel das
os fundamentos da identidade grega. O mesmo papel foi desem- instabilidades, e isso o que explica o fato de tantos sul-americanos
penhado pela Divina Comdia para a identidade italiana, pelo Qui- preferirem viver na Europa No so os prazeres do rastaquerismo,
como se crismou em Paris a vida elegante dos milionrios da sul manual didtico para o aprendizado da aret grega. Hoje, pelo con-
Amrica; a explicao mais delicada e mais profunda. a atrao trrio, devemos ler Homero para nos reculturalizarmos, para nos
das afinidades esquecidas, mas no apagadas, que esto em todos ns, descentramos de nossa cultura de origem, do sculo em que nasce-
da nossa comum origem europia. A instabilidade a que me refiro mos. Com isso, passamos a ser contemporneos de Heitor e de
provm de que na Amrica falta paisagem, vida, ao horizonte, Ulisses, e nos identificaremos com vrias culturas, a europia e a
arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histrico, a perspectiva asitica, que se digladiavam junto s muralhas de Tria, e tambm
humana; e que na Europa nos falta a ptria, isto , a frma em que com todas as figuras da alteridade que povoam a epopia, os semi-
cada u-m de ns foi vazado ao nascer. De um lado do mar, sente-se a deuses, os semi-homens, as sereias e os ciclopes, Polifemo e Circe.
ausncia do mundo; do outro, a ausncia do pas. O sentimento em No incio da modernidade, surgiu um gnero novo, o do Bildungro-
ns brasileiro, a imaginao, europia". man, o romance que narrava as vicissitudes de um heri que buscava
O que chama ateno, nessa passagem notvel, que a mentalida- formar-se, atingir a Bildung, no sentido dos iluministas do sculo 18,
de latino-americana definida por uma dupla negao, pela intersec- como Kant, Lessing e Herder. Ao mesmo tempo, esse processo de
o de duas ausncias: na Europa, falta-nos a floresta tropical, e, no autoformao do personagem central envolvia o leitor, que deveria,
Rio, falta-nos o Sena. O que Nabuco descreve a experincia de um pela identificao com o heri, chegar tambm sua Bildung, sua
desterro permanente. autoformao.
Mas um sculo depois, na era da universalizao, talvez se possa O prottipo do Bildungsroman o Wilhelm Meister, dividido em
negar essa negao dupla, e preencher, com uma dupla presena, o duas partes, os anos de peregrinao e os anos de aprendizado de
vazio das duas ausncias. Nesse caso, no teremos mais o expatriado, Wilhelm Meister. So os dois momentos da Bildung contempornea.
mas o cidado de dois mundos, no o dracin, no sentido de Barres, Por um lado, o homem pluriidentitrio peregrina pelo planeta mun-
mas o homem descentrado, com uma identidade nmade, sempre se dializado, numa viagem real ou virtual, e, por outro lado, ele aprende,
fazendo, sempre se refazendo, sempre disposto a relativizar todas as nessa viagem, a reconhecer-se como habitante da cosmpole. Nesse
suas certezas culturais por sua capacidade de role-taking, de assumir sentido, qualquer grande romance, hoje em dia, pode transformar-se
incessantemente o ponto de vista do Outro. O exlio passou, de certo num Bildungsroman, porque, em todos, podemos chegar ao Outro, a
modo, a ser a experincia fundadora de uma nova epistemologia: a vrios outros, e, no limite, a esse Outro generalizado que o gnero
epistemologia do olhar excntrico, porque o exilado o homem que humano.
se desenraizou sem se reenraizar, o que se libertou de uma particula- Enquanto no chegarmos utopia (ou ao pesadelo) da lngua nica,
ridade sem entrar em outra. o livro s poder prestar-se a esse objetivo atravs da traduo. Se
Para a aquisio dessas identidades mltiplas, as novas tecnolo- Walter Benjamin tivesse razo, a principal tarefa do tradutor a de
gias de informao podem, sem dvida, desempenhar papel impor- liberar os ecos da lngua pura, aprisionados no original, "tornando
tante. Mas s o livro permitiria que a aquisio fosse profunda e tanto o original como a traduo reconhecveis como fragmentos de
duradoura. O livro sempre nos permitiu sair de ns mesmos, para uma lngua maior, do mesmo modo que os estilhaos so reconhec-
melhor nos reencontrarmos. Ele deveria permitir-nos, agora, sair de veis como fragmentos de um vaso ... A verdadeira traduo trans-
nossa cultura, para v-la de fora. Esse sair-de-si cultural foi prenun- parente; ela no recobre o original, no bloqueia sua luz, mas permite
ciado por Goethe, quando descobriu afinidades entre um romance que a lngua pura, como que reforada pela traduo, brilhe mais
chins e as novelas de Fielding e Richardson. intensamente sobre o original". Mesmo sem esses motivos messi-
Um jovem grego aprendia a ser grego ao ler Homero. Era um nicos, no h dvida de que a traduo permite nossa lngua
instrumento de socializao para a cultura grega, uma paidea, um transcender-se em direo s outras, e obriga as outras lnguas a se
transcenderem em direo nossa. Pela traduo, nossa cultura a esse preo possamos constituir uma cultura universal. A escolha
se abre ao mundo, e nossa prpria lngua pode ser modificada. oposta mais arriscada ainda. Na etapa da mundializao, no h
Pois, numa grande traduo, como tambm observou Benjamin, nada mais perigoso que a adeso obstinada a uma identidade nica.
no se trata tanto de transformar a lngua estrangeira na nossa, mas Se bsnios e croatas tivessem identidades mltiplas, alm de suas
de deixar a nossa lngua ser transformada pela lngua estrangeira. Foi lealdades meramente nacionais e culturais, talvez tivssemos evitado
o que fez Hlderlin ao traduzir Sfocles: a literalidade da traduo o genocdio na antiga Iugoslvia.
violentou de tal maneira o alemo, que ele deixou de ser o que era, e Fim da cultura? Fim do livro? Talvez, mas no necessariamente.
converteu-se por assim dizer numa nova lngua. As tradues de No se trata de fim, e sim de Aufhebung, no sentido hegeliano. A
Shakespeare feitas por Wieland, Tieck e Schlegel o germanizaram de cultura pode sobreviver, ao transformar-se em cultura universal. E o
tal modo, que, para os alemes, ele deixou de ser um autor ingls, livro tem futuro, se renunciar a seu papel de instncia formadora de
integrando-se, de modo indissolvel, tradio cultural alem. Mas identidades coletivas homogneas, transformando-se em instrumento
a traduo est tambm a servio da lngua estrangeira, no s no para a constituio de identidades mltiplas, segundo a lgica do
sentido trivial de que ela permite a difuso de uma obra fora das suas processo de universalizao.
fronteiras lingsticas de origem, como no sentido de que, numa
grande traduo, a obra chega plenitude do seu sentido. A traduo
faz o original dizer o que ele no sabia que sabia. No sei se Kant
realmente s compreendeu sua filosofia depois de ler a traduo
francesa, como juram os maledicentes, mas incontestvel que, ao
traduzir em francs a Fenomenologia do Esprito, Hyppolite deu a
Hegel uma clareza que certamente no havia no original. Ele demons-
trou, com isso, que no h textos que no possam ser transpostos em
outras lnguas. Hegel no intraduzvel, apesar de sua vinculao
lngua alem, como no intraduzvel Plato, apesar de sua vincula-
o lngua grega.
Original ou traduzido, todo livro pressupe uma transcendncia,
porque sua leitura permite sempre escapar a nosso contexto espacio-
temporal imediato. Em nossos-dias, a leitura pressupe uma trans-
cendncia sui-generis, a que se dirige a todo o gnero humano, em
sua infinita variedade. O homem pluriidentitrio aprende a ser judeu
com Proust, catlico com Greene, irlands com Joyce, colombiano
com Garcia Marquez, mulher com Virgnia Woolf, e, em cada um
dos seus livros, pode fazer o aprendizado da alteridade, identifican-
do-se, sucessiva ou simultaneamente, com cada personagem.
Estaramos, com isso, propondo a esquizofrenia como ideal do
homem ps-moderno, um homem com tantas personalidades que
acaba no tendo nenhuma, transformando-se, por excesso de atribu-
tos, num "homem sem qualidades"? O risco bvio, mas talvez s
OS LIVROS NO DILOGO GLOBAL DAS CULTURAS
ZYGMUNT BA UM AN
No meu tempo de estudante em Varsvia, o meu professor de

lgica era um defensor de uma rara linha de filosofia, que ele
chamava de "resmo" (do latim rs, "coisa"). Significava, pelo
menos em inteno, um tipo realista de filosofia, ao modo do senso
comum, afastando-se da disputa culta - e, no geral, esotrica - entre
os partidrios das vises de mundo "materialistas" e "idealistas".
Os "restas" admitiam a bvia e empiricamente dada factualidade
das coisas - mas nada alm de coisas. Sentenas, os principais objetos
da investigao lgica, eram coisas como quaisquer outras, e isso era
tudo que se podia dizer sobre sua "realidade" ou "substancialidade"
- insistia o professor, quando eu o pressionava. "Elas existem", ele
dizia," tanto quanto uma camada de tinta ou grafite sobre a superfcie
do papel, ou sulcos na pedra, ou uma corrente de ar". Eu me lembro
da minha dificuldade em aceitar isso -no s como jovem estudante,
mas, tambm agora, como professor aposentado... Havia, certamente,
algo mais numa sentena ou proposio do que alguns pingos de
tinta? Mais importante: uma proposio mudaria de acordo com a cor
do lpis usado por mim? Meu amigo erudito Leszek Kolakowski
insistia, por outro lado, que mitos no so colees de palavras, mas
de personagens humanos e animais, suas relaes e feitos: por isso,
eles podem ser contados e so contados e continuaro sendo contados
de muitas maneiras diferentes, repetidas vezes. Eles "permanecem
os mesmos", embora as histrias mudem. Achei essa opinio muito
mais aceitvel, e no apenas no caso de mitos - muito embora o caso
dos mitos guarde particular importncia: eles eram, no s mais

antigos, como eram tambm a mais onipresente das matrias em que de visitantes, a situao da produo editorial argentina passou de fraca
foram constantemente moldadas as histrias contadas de homens para a mais fraca ainda: pequenos editores independentes so postos para
homens. Eu acreditei ento - como acredito agora - que, por mais que fora do mercado dominado por alguns dos grandes produtos de fuses
o "significado" e a forma no qual esse significado "comunicado" de empresas e de tomadas de controle tais como Prisa Santillana,
sujeitem, determinem ou influenciem intimamente um ao outro, eles Planeta ou Sudamericana, sucursal do imprio Bertelsmann. Pior
ainda conservam bastante autonomia, e cada significado pode ser ex- ainda, a demanda por produtos dos editores continua caindo.
presso de vrias maneiras. H mais numa sentena do que apenas exceo das reedies de uns poucos imortais como Borges e
rabiscos sobre uma lousa ou manchas pretas sobre papel, e eles no Cortazar ou textos das poucos celebridades do nvel de Garcia Mar-
mudam necessariamente, quando uma caneta substitui o grfio... quez, os autores ficariam felizes (e teriam sorte) se a venda dos seus
Esse episdio num pas distante e noutro sculo no mereceria ser livros ultrapassasse a barreira das 1.000 cpias (veja a reportagem
lembrado e recontado, se ele no tivesse sado do esquecimento, com no L Monde de Livres, de 26 de maio de 2000). Mais de 700
todo o seu frescor incorrupto e tambm com surpreendente atualida- representantes da indstria do livro de 70 pases se reuniram na
de, quando li no L Monde, de 13 de maio de 2000, a reportagem de conferncia da Cmara Argentina do Livro, e a maioria deles com-
Roger Chartier sobre a conferncia internacional dedicada situao partilhou das apreenses dos seus anfitries argentinos. Parecia que
do livro e suas perspectivas hoje, realizada no comeo deste ano em Dick Brass e seus assistentes puseram os dedos nas feridas que
Buenos Aires pela Cmara Argentina do Livro. Eu tive a estranha machucavam todos ou quase todos os presentes. Eles ofereciam uma
impresso de reencontrar meu professor de lgica h muito falecido, explicao digna de crdito sobre a doena - mesmo que o remdio
com sua cano familiarssima, mas dessa vez transcrita para vrias prometido parecesse a muitos ouvintes muito mais hediondo e desa-
vozes e cantada em coro por muitos clones... gradvel do que a enfermidade que ele se propunha curar...
Primeiro, Dick Brass, vice-presidente da Microsoft, presenteou as Ento, logo aps Dick Brass, Jerome Rubin e Joseph Jacobson (do
pessoas ali reunidas com um programa detalhado da morte iminente Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts - MIT)
do livro e do seu funeral. At 2015, disse ele, todos os volumes da levantaram-se para informar a platia de que os testes de uma " tinta
Biblioteca do Congresso Americano sero transcritos eletronicamen- eletrnica" e de um "papel eletrnico" - que juntos permitiro a
te. Em 2018, sair o ltimo nmero impresso de um peridico, ao transferncia eletrnica de textos sem a mediao de computadores,
mesmo tempo que, de 2019 em diante, o verbete "livro" encontrado e faro com que os leitores tenham a sensao de estar virando a
nos dicionrios dever trazer a seguinte definio: "obra escrita pgina de um livro "verdadeiro" - tinham chegado s etapas finais
fundamental, geralmente disponvel por meio de computador ou de e que poderiam, em breve, estar disponveis no comrcio. A expres-
equipamento eletrnico prprio". O seu pronunciamento, como es- so dos representantes da Microsoft converteu-se num estado de
perado, causou pnico entre os editores presentes, todos ocupados na profunda agitao: a vida pstuma do livro - de que eles esperavam
produo de objetos que agora - eles ouviram dizer - estavam prestes ter posse exclusiva - parecia estar escorregando de suas mos. Depois
a ser descartados na lata de lixo da histria, dentro de uma ou duas de pequena confuso e de muito exame de conscincia, a Microsoft
dcadas. O que tornou as notcias ainda piores foi que parecia haver sugeriu ao Media Lab do MIT que eles juntassem suas previses e
alguma correspondncia entre a mensagem trazida pelo pessoal da compartilhassem o esplio da imploso da Galxia de Gutenberg por
Microsoft e a experincia mesma dos editores. Embora a 26a Feira meio da unio de foras em favor do desenvolvimento de ambos os
do Livro de Buenos Aires (um dos maiores eventos deste gnero na projetos de substituio dos livros impressos.
Amrica Latina, ao lado das feiras realizadas em So Paulo e Guada- A maioria das pessoas que compareceram conferncia de Buenos
lajara), realizada em maio de 2000, tenha atrado mais de um milho Aires ficaram provavelmente com a impresso - assim como ficaria
o meu professor de lgica, caso ele a tivesse presenciado - de que eles espcime de coleo de pginas encadernadas sob uma capa - que pode
haviam testemunhado um debate sobre o futuro do livro; de que esse ser assim descrito. Como sugeriu, h muito tempo, o fundador da
futuro est agora sendo embaralhado entre a Microsoft e a Media Lab, e moderna filosofia da cincia, Gaston Bachelard, a cincia nasceu quan-
que a sua forma depende, finalmente, de qual dos protagonistas/antago- do os livros cientficos pararam de recuar diante do encantamento da
nistas sobre o palco se provar mais determinado, habilidoso ou inteli- experincia humana comum, como um trovo ou uma panela a vapor,
gente para levar a cabo suas idias favoritas. e, em vez disso, partiram de uma referncia a experimentos que no
Assim, qual das duas previses - se que alguma - deve prova- faziam parte da prtica cotidiana dos leitores, ou da citao de uma
velmente suceder? Pessoalmente, estou inclinado a repetir o Rhett proposio feita por outra testemunha de acontecimentos semelhante-
Butler de E o vento levou...: "Francamente, eu no dou a menor mente misteriosos; noutras palavras, a cincia comeou, quando o
importncia..." O assunto pode ser de imenso interesse para Bill cordo umbilical que liga a experincia dos cientistas experincia laica
Gates e todos aqueles que prefiram antes achar a mina de ouro foi cortado. Por essa razo, as publicaes cientficas e a experincia
pessoalmente do que deixar a satisfao para os seus concorrentes, comum foram separadas h muito tempo - e sua comunicao no
mesmo que isso significasse o risco de ser acusado pelas juntas est em jogo, o que quer que acontea tecnologia editorial). O
comerciais de prtica monopolstica. Mas, ao contrrio do que eles relato de histrias alimentou-se da experincia compartilhada do
gostariam que o resto de ns acreditasse, o futuro do livro no ser mundo ao mesmo tempo que lhe provia o sustento. Por isso, o cenrio
determinado pelo que eles venham a fazer ou no. No a tecnologia da conversa terminaria por deixar sua marca profunda sobre a histria
de publicao e distribuio que decidir o papel do livro em reunir contada. Como sugeriu Franz Rosenzweig: diferentemente do pensa-
(ou separar, se for o caso) as comunidades humanas, o seu lugar em dor abstrato, que no pensa por ningum e no fala para ningum e
nossas culturas compartilhadas ou exclusivas, na forma e no conte- que, por isso, "conhece de antemo seus pensamentos", o pensador
do de nossa humanidade. No quero dizer que no h elementos que fala no pode antecipar nada e deve ser capaz de esperar, porque
preocupantes em todas essas coisas. O que quero dizer que as "depende da palavra do outro", de "algum que no tem apenas
questes calorosamente debatidas em Buenos Aires pelos chefes da ouvidos, mas uma boca tambm". A questo da conversa no passar
Microsoft e da Media Lab, e por aqueles que fizeram eco s suas a verdade pronta de algum que a conhece para algum que no a
preocupaes em muitas outras ocasies, no so as verdadeiras conhece. Como props William James, "a verdade ocorre a uma
razes com que se preocupar. idia ... Sua validade o processo de comprovao". Podemos dizer
Desde o seu comeo, e muito tempo antes de ele assumir a forma que o encontro entre locutor/leitor e entre leitor/locutor foi o lugar
que sustentou sua imagem nos sculos passados, o livro tem sido preciso daquela " verificao".
basicamente uma histria contada num dilogo vitalcio com a expe- O relato de histrias e a audio de histrias criaram um vnculo entre
rincia humana. Como observou Walter Benjamin," uma experincia os dois protagonistas e os manteve amarrados durante a negociao
passada adiante de boca em boca a fonte em que bebem todos os envolvendo a verdade da experincia humana. Foi o restabelecimento
contadores de histria. E, entre os que escrevem contos, so grandes repetitivo daquele vnculo no ritual de reiterao que sustentou a base
aqueles cujas verses escritas diferem menos da fala dos muitos cognitiva para a idia de continuidade e de parentesco - o " tear caseiro"
contadores de histria annimos... O contador de histria narra o que da experincia, comumente herdada e usufruda por aqueles cujas
extrai da experincia - de sua prpria experincia ou daquela repor- prticas de vida no haviam sido compartilhadas; foi confortante, trouxe
tada por outros. E ele, por sua vez, transforma o que conta numa reafirmao, minimizou ou encobriu as exasperantes incertezas da vida
experincia daqueles que o ouvem". (Permita-me notar, contudo, que (isto , talvez, a razo por que as crianas - ainda lutando "para fazer
no so todos ou, para ser exato, nem qualquer livro - ou algum parte de", para encontrar o seu lugar seguro no mundo assustadora-
90 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 87/101, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 87/101, jul.-set, 2000 91
mente estranho - adoram ouvir, repetidas vezes, as mesmas histrias contador fica bem distante, e, no momento em que somente os contadores
que sabem de cor). Enquanto o relato de histrias permaneceu oral, para cujas histrias so impressas, que podem contar com um nmero signi-
cada grupo de pessoas havia tambm um nmero estritamente limitado ficativo de ouvintes transformados em leitores. O crculo de leitores e
de histrias a ser provavelmente contadas, bem como ouvidas, na o crculo de "parentesco" no precisam mais coincidir. Isso talvez
presena delas. Para usar a distino de Walter Benjamin, podemos significasse uma bno confusa para os contadores de histrias, uma
dizer que o tipo predominante, quase nico, de histria contada e ouvida vez que eles no poderiam continuar confiando na harmonia predeter-
era ento a "histria de campons", a histria de algum "que ficava minada do dilogo, mas poderiam enfatizar - e enfatizaram - o destino
em casa, ganhando a vida honestamente, e que conhece os contos e um tanto desconcertante embutido numa estimulante oportunidade de
tradies locais" ; apenas ocasionalmente, a srie de "histrias de cam- superao, ou de ir alm daquele aspecto de suas experincias compar-
poneses" foi interrompida por "histrias de marujos" , contadas por ou tilhadas com os leitores. De agora em diante, as realidades sociais
ouvidas de "algum que veio de longe". Podemos supor que esse surgiam com a tarefa que Hannah Arendt designou para os artistas: a de
desequilbrio no desempenhou papel menor na manuteno da conti- " adicionar ao mundo". Adicionar - inserir no mundo alguma coisa que
nuidade e da identidade em separado do grupo. Na maioria das vezes, no estava l antes e que no estaria l a no ser que fosse inserido -
"fazer parte conjuntamente" - "ns" como uma existncia distinta um ato precisamente distinto de preservar, mais uma vez, o que j foi
de "eles" - significava ouvir as mesmas histrias, enquanto raramente, dito; mais do que dar forma articulada ao que j foi vivido por
se que alguma vez, se podia ouvir outra diferente. completo, embora no comentado.
Isso poderia ter mudado, ou pelo menos ter adquirido potencial de "Adicionar ao mundo" ps em risco a continuidade e a separao
mudana, com o advento da "Galxia de Gutenberg". Impressas e do grupo cujo mundo ele encarnava. O livro que adicionasse ao mundo
vendidas, as histrias poderiam agora viajar sem os contadores, e - em vez de exibir, uma vez mais, seu auto-retrato familiar - perturbaria
cruzar as fronteiras que separavam "ns" e "eles" mais facilmente a ordem das coisas em lugar de preservar intacta a forma que ela
do que os contadores de histrias em sua maioria: "histrias de assumira previamente. Ele poderia chocar-se com a sabedoria recebida
marujos" no seriam mais marginalizadas pelas "histrias de cam- do mundo ou, a qualquer custo, insuflar dvida sobre sua exclusiva
poneses". Deve ter sido o comeo do que mais tarde viria a ser pretenso verdade. Ao invs de ser, como antes, um instrumento de
chamado de "comunicao transcultural" , embora o verdadeiro im- continuidade e separao, o livro se transformou num fermento de
pacto da mudana no viesse a ser completamente sentido aps a auto-reflexo e mudana. Os guardies da coeso do grupo e os
inveno da mquina impressora, mas, visivelmente, graas a uma sentinelas da ordem no poderiam seno perceber o perigo na livre
revoluo social, no tecnolgica: a difuso da alfabetizao, logo circulao de histrias. As artes haviam se tornado subversivas - e no
seguida por impresses de baixo custo - como s se poderia esperar por escolha dos artistas (foi mais exatamente a deciso de conformar-
do que se conhece da esperteza do mercado. se, a submisso plcida ao sistema que tinha avocado a si o direito de
Uma das mais profticas conseqncias da nova mobilidade das nico intrprete da histria e tradio popular, que veio a ser, agora
histrias foi a relativa emancipao da composio e narrao em confessadamente, a escolha do artista). O tempo de construo da
relao experincia vivida dos leitores. Na "era da comunicao nao com suas cruzadas culturais promovendo a unidade da lngua,
oral" , com histrias tendo a no ser a memria humana como nico tradio, panteo e viso de mundo tinha de ser tambm - e era, na
receptculo e abrigo, cada ouvinte era um contador de histrias ou verdade, em quase todo lugar - o tempo de censura. Nem todas as
um recontador em potencial: os dois personagens envolvidos no "adies ao mundo" eram bem-vindas, e particularmente ressentida
dilogo eram intercambiveis. Nem tanto agora, com as histrias era a seleo de adies feita por agentes sem plenos poderes para
saindo, na maior parte das vezes, de forma impressa, enquanto seu comandar o processo de construo da nao.
Mas o que que o livro - seja em conjunto com o resto das artes, a contingncia, a ambivalncia e o mistrio, o romance um aprendi-
ou sozinho, ou com seu jeito prprio e inimitvel - adiciona ao mundo zado vitalcio na difcil mas inevitvel arte de viver sob condies de
precisamente, e ao Lebensweh do leitor mais particularmente? O que incerteza, na companhia da polivalncia e entre uma variedade de
isso que aparece no Lebenswelt do leitor, graas ao ato de ler, esse formas de vida.
algo que, do contrrio, no estaria l, mas ausente do mundo que Nem todos os pensadores contemporneos concordariam com
precisa dele? Isso depende, outra vez, dos dois participantes do Kundera. Pode-se encontrar uma viso um tanto oposta nos escritos
dilogo entre contadores de histrias e seus ouvintes, e muda quando de Umberto Eco (ver, particularmente, o seu Seis Caminhos adentro
mudam os participantes. da Floresta Ficcional), para quem o verdadeiro valor da fico
Entre os comentaristas que se manifestaram a respeito da sentena artstica est em ser um antdoto contra a frgil clareza que a expe-
proferida pelo falecido aiatol Khomeini contra o escritor Salman rincia cotidiana produz: o romance uma ilha de certeza tranqili-
Rushdie, Milan Kundera foi um dos pouco a perceber, no s que um zadora entre os mares turbulentos da dvida e da insegurana. Pode-
ataque liberdade de expresso artstica tinha avanado duramente se estar certo de que Scarlett O'Hara realmente casou com Rhett
sobre o prolongado esforo de oposio censura, mas que se tratava Butler; Margaret Mitchell tem o controle incontestvel do enredo e
de um crime muito mais profundo, alcanando as razes da civiliza- podemos confiar em sua histria com menos hesitao do que em
o moderna. A sentena de Khomeini era particularmente abomin- quase todas as notcias que nos chegam, neste mundo de controvrsia
vel, porque o golpe no tinha como alvo apenas um escritor que ruidosa, polmica e onipresente. Mesmo as afirmaes feitas em
cometera um erro grave, mas tambm o romance - que, no modo de nome da cincia so dispostas numa enorme pilha de admisses,
ver de Kundera, significa a pedra angular do que mais precioso, muitas das quais no conhecemos nem entenderamos, se nos fossem
mais humano, no tipo de sociedade em que vivemos, aquela adio reveladas. Pode-se dizer que o valor do romance, de acordo com Eco,
particular sem o que este nosso mundo seria muito mais pobre, menos est no potencial curativo de um tranqilizante abenoado, na prote-
humano, tolervel e digno de ser vivido - isto , caso ele fosse capaz o que ele oferece aos nervos dolorosamente postos prova e
de existir sob qualquer condio. O romance traz ao mundo o mo- expostos...
mento de auto-reflexo, separao, ironia e riso que os poderosos Nessa controvrsia, de quem a opinio correta? Talvez cada uma das
combatem e que condenariam ao exlio, com alegria, se no ficasse duas histrias conte parte da verdade, que precisa de ambas as histrias
o romance bem no meio do caminho deles. "A arte inspirada pelo para ser verdadeira. tentador pensar na hiptese de que Kundera e Eco
riso de Deus no serve, por natureza, a convices ideolgicas, ela representam experincias de duas geraes diferentes, educadas em duas
as contradiz", nota Kundera em A Arte do Romance. "Como Pen- partes diferentes do mundo moderno: uma, como Kundera, crescendo
lope, ela desfaz toda noite o tapete que os telogos, filsofos e sombra da ameaa do totalitarismo e das presses homogeneizantes, num
homens cultos teceram no dia anterior". Visto que ela no poderia mundo onde a liberdade era o mais cobiado e o mais dolorosamente
seno fazer a mediao entre as diversas experincias humanas, ausente de todos os itens indispensveis a uma vida humana dignificada
minando assim as certezas de cada uma delas, a fico artstica serviu - enquanto a outra, como Eco, deslumbrada, ensurdecida e iludida pela
como uma contracultura irnica e irreverente cultura tecnocientfi- confuso da " cultura do cassino" com suas apostas em constante mu-
ca e burocrtica da modernidade, que promoveu a obsesso pela dana e poucas regras, se que havia alguma, num mundo que conseguia
ordem, por classificaes concisas e hierarquias severas, pela con- sentir-se, ao mesmo tempo, incerto, inseguro e perigoso e no qual a
formidade regra e pela disciplina rgida. A fico artstica defende liberdade era um "fato da vida", antes um fado do que uma vantagem,
a liberdade do homem, arduamente conquistada, e redime a imaginao enquanto a segurana e a autoconfiana eram, entre todos os valores
; a ousadia humanas; no mundo que trava uma guerra exaustiva contra humanos, aqueles cuja falta causava a dor mais lancinante. Cada uma
das duas experincias salientou os diferentes aspectos do fenmeno enclaves territoriais, as civilizaes vo se encontrar nos campos de
bifronte do livro; cada uma delas esperou, vislumbrou e encontrou no batalha - se muito.
romance histrias diferentes - tipos distintos de prstimos suprindo No obstante suas diferenas, so vises de uma ciso irreversvel e
diferentes faltas e redimindo tormentos diferentes. incurvel. Enquanto Huntington pe em discusso o blefe da "globali-
Quais so os prstimos que o livro pode proporcionar ao nosso tipo zao" e sugere sua impossibilidade final em vista da diviso perma-
de sociedade? Que tipo de prstimos ele oferece mesmo, e que tipo nente da espcie humana, Lehman leva sua concluso lgica as atuais
de prstimos, se houver algum, tende a estar na expectativa dos seus tendncias separatistas da globalizao " tal qual ns a conhecemos" -
leitores? Para responder essas perguntas mordazes, precisamos tal- globalizao dos poderes econmicos, financeiros e comerciais irrestri-
vez pensar na mudana da tecnologia de produo e distribuio do tos e desigualados pela planetarizao das instituies polticas e do
livro bem menos do que os profetas da revoluo eletrnica gostariam controle democrtico (estes permanecem to locais quanto antes). O
que fizssemos, mas, em vez disso, olhar mais de perto para a maior efeito desse tipo de globalizao uma polarizao agravante,
natureza mutante do mundo em que vivemos e para a experincia tanto das condies, como dos padres de vida (Permita-nos notar que
mutante de viver dentro dele. as diferenas culturais e a fragmentao poltica do mundo parecem
No L Monde d'avenir, um suplemento extra do L Monde, publi- estar se desenvolvendo na direo oposta: enquanto, em 1850, o globo
cado no comeo do novo sculo, Jean-Pierre Langellier justape duas estava dividido entre 44 estados, h 193 estados "soberanos" agora,
vises de nosso planeta tal como ele evoluiria nos anos que viro. A com aproximadamente outros 30 fazendo fila para promoo; enquanto
primeira oriunda do romance F.A.U.S.T., de Serge Lehman, cuja se espera que - de 6.000 lnguas usadas hoje em todo o globo -
ao ocorre em 2095. No mundo governado pelos "Grandes Pode- aproximadamente a metade seja extinta antes do fim deste sculo, 95%
res" dos imprios industriais e comerciais, uma srie de "aldeias" delas so faladas por escassos 4% da populao global). A ciso de
metropolitanas, ricas e confortveis, se estende ao longo do " Sota- Huntington causada por um colapso de comunicao que no tem
vento de Darwin" que circunda o globo. O estreito cinto de riqueza reparo. A ruptura de Lehman induzida pelos ricos, que no fazem mais
separado por um outro, o largo cinto sanitrio da terra de ningum, uso dos pobres e, por isso, no mais aliviaro o seu fado, e os pobres
abandonada, um matagal sem lei, o territrio da pobreza desesperan- no tendo mais iluses sobre a boa vontade dos ricos para tomar um
ada, habitado por seis milhes de criaturas miserveis, sofrendo atitude. tudo a mesma coisa, uma ciso abissal, no nenhuma
privao. Nesse mundo, os bem-sucedidos optaram por no fazer unidade ou universalidade da condio humana o que aparece ao fim c
qualquer tipo de contato com o resto, tendo antes assegurado, para seu cada uma das duas estradas.
uso exclusivo, as melhores regies do planeta: o que antes eram classes Lehman e Huntington produziram distopias, colocando lado a lado
que coabitavam transformou-se agora em sociedades separadas e de os receios declarados ou tcitos da nossa era de globalizao. Suas
comunicao cortada entre si. A segunda viso tirada das profecias vises so avisos, no vaticnios, muito menos "prognsticos cient-
amplamente lidas e calorosamente debatidas de Samuel Huntington, ficos" (a assim chamada " futurologia" assume contrafactualmente
que no d importncia s desigualdades produzidas socialmente, ao a regularidade e a legitimidade da histria do homem, a fim de se
mesmo tempo que vaticina um abismo profundo, intransponvel, sepa- pronunciar sobre o futuro: mas futuro, por definio, no existe -
rando "civilizaes" que ele calcula chegar a sete ou oito (no est um "no-ser". No tendo um objeto acessvel empiricamente, a idia
bem certo do futuro da frica). Os universos ideolgicos, polticos, de uma "cincia do futuro" um oxmoro, uma contradio de
artsticos e tecnolgicos seriam, na viso de Huntington, impotentes termos). O que os dois escritores previram pode realmente acontecer,
para transpor as fendas intercivilizacionais, quanto mais para ved-las mas no estamos na posio de dizer, com algum grau de certeza, se
ou escond-las. Fortificadas e sem muros dentro dos seus respectivos vai ocorrer ou no. A histria feita de atos humanos, e o futuro no
96 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 87/101, jul.-set, 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 87/101, jul.-set., 2000 97
est determinado at que ele se torne um outro presente. Tendncias opus magnum, A Estrela da Salvao. Em si mesma, a mensagem
estatsticas podem permitir extrapolaes, mas a histria do homem desse livro no era " verdadeira". Ainda assim, ela poderia se tornar
prima por frustrar probabilidades estatsticas. Qual dos cenrios imagi- verdadeira em suas conseqncias; ela poderia ser "verificada" na
nveis (ou inimaginveis, se for o caso - como uma sociedade sem vida e pelos vivos. Ela no teria, contudo, tal oportunidade, caso no
escravos foi inimaginvel para Aristteles, e um estado sem realeza, fosse escrita, publicada e lida.
para Bossuet) se converter em presente futuro, no podemos dizer. O Correr o risco de verificao e ento surgir como o verdadeiro
que ns podemos tentar evitar que os homens encarnem os termos da sentido da experincia humana - em si mesma confusa, dispersa e
distopia. opaca, destituda de senso bvio - uma tarefa do livro que os nossos
Outros cenrios afluem noutros debates. H ewtopias ao lado de tempos talvez tenham tornado mais urgente do nunca; mas estes
/z'.ytopias, vises da bem-aventurana universal, da emancipao mesmos tempos fizeram o cumprimento dessa tarefa ainda mais
final do potencial criativo do homem e da verdadeira autonomia do difcil do que antes. Colocar a culpa nas costas da nova tecnologia
indivduo; e tambm das barreiras entre povos e seus tesouros cultu- editorial seria grave erro. A dificuldade em questo afeta o livro e,
rais sendo finalmente desmontados, de fronteiras sendo abolidas ou de maneira mais geral, o relato de histrias em toda a sua forma, quer
abertas, de idias de uma vida saudvel livremente trocadas, dispo- sobre o papel, sobre a tela ou escrito com "tinta eletrnica". A
nveis para todos e negociadas por todos com a inteno universal- dificuldade est intimamente relacionada com a natureza mutvel de
mente compartilhada de chegar a um acordo. H tambm esperanas nossa experincia, e, mais precisamente, com a mudana no modo
expressas de que, mais cedo ou mais tarde, chegaremos a um enten- como vivemos nossas vidas e, conseqentemente, como percebemos
dimento sobre a pluralidade e a diversidade do mundo e de seus e relacionamos o mundo em que elas so vividas.
habitantes - que os veremos como uma oportunidade, no como uma Os dias de hoje diferem daqueles em que as formas clssicas do livro,
.ameaa, e talvez at acrescentemos mera tolerncia da variedade a e o romance em particular, prosperaram - e diferem deles em muitas
solidariedade ao outro e ao diferente. Se o futuro no est predeter- relaes fundamentais. Penso que uma, entre essas muitas relaes, seja
minado (e no est!), ento ele est aberto; talvez no "bem aberto", de particular relevncia para nosso problema: a saber, a marca registrada
no "sem fronteiras" - mas, provavelmente, mais aberto do que da atualidade, a fragmentao da vida numa srie de episdios relativa-
estamos preparados para admitir. nossa responsabilidade assegurar mente autosegregados ligados percepo do fluxo do tempo como uma
que no seja ignorada ou negligenciada qualquer possibilidade de um sucesso de eventos relativamente autosegregados. A conseqncia
destino melhor para a humanidade, que possa passar ou ser conduzida dessa dupla fragmentao o "encurtamento de perodo" que marca,
atravs dessa abertura. tanto a vida pblica, quanto a individual.
O livro, o relato de histrias que "faz sentido" da experincia De acordo com o slogan lanado pelo canal francs RTL, " infor-
humana, tem um imenso papel a desempenhar nesse jogo de possibi- mao, assim como caf, s boa quando quente e forte". Hoje em
lidades. Permita-me citar Franz Rosenzweig uma vez mais: "Hou- dia, h uma enchente de informao sobre ns, mas ainda servida
vesse Lutero morrido em 30 de outubro de 1517, toda a ousadia como caf - bastante forte para anular o sabor da comida consumida
do seu comentrio sobre a "Epstola dos Romanos" no passaria de no momento anterior e bastante quente para abafar todas as sensaes
extravagncias de um escolstico falecido". Sabemos, contudo, que experimentadas. Contudo, ela esfria rapidamente - desaparece
ele no morreu naquele dia, e, assim, no dia seguinte, ele pregou das manchetes de jornal e do noticirio de televiso antes que o seu
sobre a porta da igreja de Wittenberg as suas 95 teses. Foi graas a gosto possa ser saboreado por completo, muito menos avaliado. Se
esse ato, conclui Rosenzweig, que "a vida complementou a teoria e for, por acaso, informao sobre o mundo, servida como caf, a
a tornou verdadeira". Sob a mesma luz, Rosenzweig viu o seu prprio velocidade da sua ida e vinda prediz o fim do entendimento: um bit
de informao caado por outro antes mesmo que possa ser absorvido, guinte, a demanda por tais leituras pode apenas sofrer quedas. Os
e, uma vez que eles no so assimilados, no podem ser conectados a prprios livros mudam o seu lugar no mundo existente de nossos
uma cadeia de eventos significativa. Cada evento deve assim " sobrevi- contemporneos; eles mudam do universo do esclarecimento para o
ver" por conta prpria, e o senso de totalidade deixado para trs pelos universo do entretenimento, mudam de valoresdurveisparaobjetosde
competidores j no incio da caada. consumo. Mais do que isso: no mundo que dividiu sua prpria histria
Os eventos - sincronicamente trombeteados pela mdia e sincro- em eventos, os livros podem confiar no seu poder de atrao, caso eles
nicamente lanados por ela ao esquecimento - criam, por um breve mesmos se tornem eventos; da o paradoxo do crescente aumento de
espao de tempo, seu prprio "pblico", por sua vez to efmero que pblico das feiras de livros coincidir com a rpida queda do nmero de
se separa logo aps juntar-se, sem aperfeioar sua coeso. Trata-se leitores. O culto s listas de best-sellers - os "livros quentes", lidos
tambm de um pblico guiado por influncias externas, forjado de por " todo mundo" e que decoram a mesa de caf de " todo mundo"
fora para dentro, no um "pblico orgnico", nascido de um dilogo apenas para que sejam jogados fora da sala de espera na semana
contnuo e mantido por ele. Fora dessa experincia singular do seguinte, quando sarem de moda empurrados pela listagem dos
"pblico", extremamente difcil, no impossvel, moldar a imagem prximos best-sellers - sinaliza essa transformao do livro em
do "interesse pblico" e de qualquer outra coisa relativa a ele, tal evento. Em vez de contra-atacar as presses para fragmentao e
como a idia de uma sociedade justa, de justia social ou de tica da "episodiao" da viso de mundo e da vida humana, os livros
poltica - do mesmo modo que, fora dessa histria da vida vivida transformados em eventos cooperam com o processo. a transfor-
como uma srie de episdios escassamente ligados, difcil ao mao profunda do cenrio da vida produzido socialmente que fez
extremo organizar um debate sobre o "projeto da vida", sem men- com que os livros se ajustassem "realidade virtual" flexvel,
cionar o projeto de " toda uma vida". O mundo nos oferecido como caleidoscpica e multiforme da rede eletrnica - e no o contrrio.
um continer cheio de eventos para consumo imediato, instantneo, Os livros podem ter adicionado ao mundo - mas nunca o fizeram
de uma nica vez. Num mundo assim, o breve espao de tempo da de fora; eles sempre foram parte do mundo e esta precisamente a
vida parece ser uma srie de episdios, devendo cada um deles ser razo por que as adies que eles ofereceram puderam ser assimila-
consumido de modo similar e superficialmente. das. natural que os membros do mercado editorial imaginem os
a partir de tal entrelaamento do mundo fragmentado e da vida seus produtos nos termos de problemas que venham a surgir no curso
fragmentada que o livro enfrenta seu maior desafio. Como pode o da produo. Mas o destino do livro, em nosso mundo globalizante,
livro ajudar, e pode ele realmente ser de ajuda, no corte deste n no depende, nem pode ser explicado, pelas tecnologias de impresso
grdio particular? E enquanto o n permanecer amarrado, como ou qualquer outra coisa restrita ao mercado editorial. Os livros esto
parece estar agora, pode o livro dar continuidade a um dilogo condenados a compartilhar o destino das sociedades das quais so
significativo com a experincia humana, essa condio sine qua non uma parte. Quando pensarmos em livros, vamos pensar primeiro em
de qualquer prstimo que ele possa vir a oferecer? sociedade. Quando nos preocuparmos com o futuro dos livros, vamos
A fora do livro foi sua nica habilidade para amarrar biografia e olhar mais de perto para a sociedade e suas tendncias. Para produzir
histria, o privado e o pblico, o indivduo e a sociedade, momentos livros ajustados sociedade em que vivemos, vamos tentar evitar que
vividos e o significado da vida. Esse trabalho de sntese difcil de essa sociedade se torne inadequada para os livros...
compreender num mundo que ps fim durao e ao pensamento a
longo prazo; sua significao (na verdade, sua indispensabilidade)
tende a iludir os seus habitantes. Nossa ateno muda rapidamen-
te demais para nos permitir fazer uma pausa e refletir; por conse-
ERA INFORMACIONAL E USO DO LIVRO
BARBARA FREITAG
Manuel Castells, o socilogo espanhol e catedrtico na Universidade

da Califrnia, pertence, ao lado de Anthony Giddens e Jrgen Haber-
mas, a um grupo de intelectuais contemporneos que cercam e assesso-
ram os governantes no poder. Enquanto Habermas1 buscava o dilogo
com o novo Chanceler Schrder da Alemanha e Giddens2 assumia o
papel de souffleur de Tony Blair, Manuel Castells3 passou a freqentar
os Seminrios internacionais organizados pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso, para rediscutir as linhas mestras da conduo do
Estado nacional brasileiro. Nesta ocasio, Castells tambm concedeu
entrevista ao programa "Em Aberto" da TV Cultura de So Paulo e
lanou, no Brasil, a sua trilogia, que tem como ttulo geral "A era
informacional", publicada pela Paz e Terra. Em suma, Manuel Castells,
que FHC chama de "Manolo", tem algo a dizer sobre o mundo e o
Brasil. Mas teria ele algo a dizer sobre "o lugar do livro entre a nao
e o mundo?"
A tese central da trilogia de Castells pode ser resumida no slogan:
"Estamos vivendo na 'network society'" .4 Com o detalhamento dessa tese
em aproximadamente 1.500 pginas, amplamente recheadas com dados
dos grandes relatrios mundiais5 e uma bibliografia extensa, no final de
cada volume, aprendemos que j demos um passo alm da " globalizao"
da economia e entramos na "era informacional" .6
Na passagem do segundo para o terceiro milnio, j est consumada
a passagem da globalizao para a informatizao e da era industrial
para a informacional. Essas mudanas macroestruturais tm um impacto
jamais imaginado sobre a organizao da sociedade mundial e sobre a

mentalidade dos indivduos nela inseridos. Castells lembra que esses de governos, empresas bancos, etc. Em verdade, Castells quis dizer:
processos de mudanas radicais aconteceram recentemente, nas lti- "Este livro no se inspira em teorias dos outros. Ele procura construir
mas duas dcadas, alando um quarto da humanidade a patamares de uma teoria prpria: a teoria da era informacional". Para tal, tudo indica
riqueza jamais vista, somando aproximadamente dois bilhes de "opu- que pode "descartar" os livros com suas teorias, hoje obsoletas. (Cas-
lentos" . Em contrapartida, os mesmos processos deixam aproximada- tells, vol. I., pp. 25 ss.)
mente trs quartos da humanidade margem da era informacional. Esta Assim sendo, tentarei, num primeiro passo, expor, de maneira sint-
populao de mais de 4 bilhes de pessoas vive, como o autor admite, tica, a teoria da network society, desenvolvida por Castells. Em seguida,
em nveis de pobreza indignos, espalhados em continentes e pases que procurarei "rastrear" os trs volumes da "Era informacional" para
no ousaram ou no foram bem-sucedidos em sua tentativa de integrar- encontrar alguma referncia ao lugar e papel do livro nesta sociedade
se no novo "modo de desenvolvimento informacional". Este repre- mundial calcada no "modo de desenvolvimento informacional". So-
sentaria o ltimo estgio do capitalismo internacional, produzido por mente ento, passarei a examinar o "lugar do livro entre a nao e o
uma quarta revoluo tecnolgica, que teve a sua origem em Silicon mundo, fazendo alguns emprstimos a teorias menos deslumbradas com
Valley, na Califrnia/USA. os dados e as tabelas da era informacional.
Ao escrever sua trilogia, Castells teve o objetivo de formular uma teoria O Castells da dcada de 90 est convencido de que o final do sculo
sistemtica da sociedade informacional, capaz de analisar o impacto das XX representa, no somente o fim do marxismo, como tambm o fim
modernas tecnologias da informao sobre a nova diviso do trabalho, a da "era da razo". Ambos estariam sendo substitudos pela "era da
estrutura de emprego, o enfraquecimento do Estado e dos sindicatos, a informao". Para ele, chegado o momento em que deveramos
organizao dos meios de comunicao no mundo globalizado e conectado desenvolver novos conceitos, capazes de exprimir as mudanas tecno-
em redes. Como reafirmou, em sua palestra no Brasil, Castells se props a lgicas ocorridas nas ltimas duas dcadas e sintetizadas no conceito de
" identificar os principais processos de mbito mundial que transformaram " quarta revoluo tecnolgica". Em sua essncia, essa revoluo se deu
a economia, a cultura e a sociedade na ltima dcada, analisando o como graas um conjunto de tecnologias convergentes, integradas num bloco:
e o porqu do atual desmantelamento do Estado Nao, construdo desde a microeletrnica, a computao (soft e hardware), a telecomunicao,
a idade moderna, e da crise de legitimao que sofrem suas instituies e a eletrnica baseada na fibra tica e, ultimamente, at mesmo a bio- e
seus representantes?"7 engenharia gentica. Mas tudo isso no teria gerado mudanas estrutu-
Neste novo contexto de "passagem", em que "tudo que slido rais nos mercados, Estados e nas sociedades do mundo inteiro, no fora
parece desmanchar-se no ar", mais precisamente, "em fluxos eletrni- um feliz casamento entre essa tecnologia de ponta e um mercado gil e
cos" , cabe a ns - reunidos neste Seminrio Internacional, na Biblioteca flexvel, que soube veicular e multiplicar os resultados da cincia (novos
Nacional, rgo do Estado - lhe perguntar, qual seria, em sua opinio, conhecimentos) e da tecnologia de ponta, desenvolvidos em Silicon
o lugar do livro no futuro? Valley, atravs das redes do " www".
,No prlogo de sua trilogia, Castells d uma resposta (em termos): A caracterstica dessa revoluo tecnolgica recente no a centralidade
"Este livro no um livro sobre livros", no que parece querer contra- do saber e da informao (que sempre j estiveram presentes nas revolu-
por-se a autores como Habermas, que antes de formular sua " teoria da es anteriores), mas sim a comunicao imediata e fcil dos novos saberes,
ao comunicativa" revisitou, criticou e remanejou mais de dois mil conhecimentos, informaes e tecnologias ao mundo inteiro pelas redes
livros e ensaios, buscando uma nova via terica para compreender a globais, realimentando e integrando novas redes, associadas ao mercado e
sociedade do futuro. Castells, no entanto, diz que buscar suas informa- ao poder (econmico e poltico).
es na "prpria realidade", alis em Relatrios do Banco Mundial, Castells admite que isso somente ocorreu em algumas partes do mundo,
estatsticas oficiais das Naes Unidas, relatrios tcnicos e econmicos privilegiadamente nos Estados Unidos, na Unio Europia e em certos
pases Asiticos, como o Japo e o Taiwan. Nesses pases, tambm h Ao Estado, aos sindicatos, aos empresrios e aos empregados no
reas e segmentos populacionais que no foram atingidos pela revolu- resta outra alternativa seno adaptar-se aos novos paradigmas introdu-
o em discusso, ficando excludos e marginalizados da riqueza pro- zidos pela revoluo tecnolgica informacional. Por isso, cabe ao Esta-
duzida. do agilizar as estruturas de trabalho, flexibilizando a legislao traba-
O carter "excludente" deste novo modo de desenvolvimento no lhista, dando uma educao mais atualizada e diversificada s novas
passa despercebido a Castells. Ele sabe que, no mximo, um quarto geraes, para que essas, por sua vez, tenham condies de adaptar-se,
da populao global est sendo beneficiada, mas exprime a sua com maior rapidez, s exigncias do mercado. Alm de retirar-se do
"esperana" de que isso seja somente temporrio. A longo mercado, o Estado contemporneo faria bem em devolver a autonomia
prazo, ele espera que seja possvel integrar fraes cada vez maio- e responsabilidade aos governados, que passariam a velar por sua
res dos atualmente excludos no seio da "sociedade informacional prpria sade e aposentadoria, assinando planos de sade e convnios
favorecida". O caderno "Mais", de 20 de agosto 2000, publicou previdencirios particulares, educando melhor seus filhos para a
recente artigo de Castells, no qual este procura assessorar um chefe nova era. A ao do Estado deveria, pois, restringir-se a formular as
de Estado africano. A nica sada para superar a pobreza na frica o leis corretas e pr disposio certos servios bsicos, entre eles a
autor v na adeso ao novo modelo da sociedade em redes. Isso requer moderna tecnologia das telecomunicaes e das auto-estradas ciber-
grande esforo dos africanos de se modernizarem tecnologicamente nticas, para processar as mudanas, em benefcio da internacionali-
e de educarem melhor as novas geraes de africanos. Requer ainda zao da network society.
uma compreenso e generosidade dos pases ricos do planeta, j A mdia, at agora voltada para as massas, tambm teria de acom-
conectados em redes, para "perdoar dvidas" e facilitar a adeso dos panhar essas mudanas, incorporando a nova lgica informacional.
excludos, dando sustentabilidade s estruturas geradas pela quarta Seus destinatrios, receptores de mensagens, no seriam mais massas
revoluo tecnolgica. amorfas, mas "internautas" individualizados. Os "acoplados" In-
Castells no culpabiliza a "era informacional" pelo desemprego. ternet so sujeitos isolados, que se relacionam em casa (na intimida-
Ao contrrio, argumenta que, com as novas tecnologias, tambm de, e no no espao da rua) com seu PC e os diferentes programas
foram criadas novas formas de emprego. Se houve novas ondas de software ao " www". O recurso aos meios de comunicao de massa,
desemprego, isso se deve incapacidade dos trabalhadores vincula- rdio e televiso, estaria passando para o segundo plano. O sindica-
dos s velhas tecnologias de se adaptarem s novas condies de vida. lismo de massas, bem como atuaes partidrias demaggicas, co-
Aponta para as mudanas estruturais da diviso do trabalho e do muns no sculo 20, teriam os seus dias contados, perdendo sua funo
emprego dos pases do leste europeu e da antiga Unic Sovitica de mobilizao coletiva. A mo-de-obra flexvel "livre" estaria
depois da queda do muro de Berlim. disponvel para ser (r) utilizada de acordo com as demandas de um
A "flexibilizao" das estruturas de emprego inevitvel, tornan- mercado voltado para a alta produtividade, o lucro (a mdio e longo
do imperiosa a dissoluo da estabilidade do emprego e do Estado de prazo), sem riscos, assegurando o acmulo de riqueza para os conglo-
Bem-Estar que a garantia. Nem a profissionalizao dentro de qua- merados internacionais. A mo-de-obra flexibilizada e facilmente reci-
dros rgidos, nem o emprego vitalcio, ainda reivindicados pelas clvel assume, ela mesma, os riscos, outrora repassados ao Estado de
organizaes trabalhistas, teriam condies de "modernizar" a eco- bem-estar. assim que o trabalhador de hoje passaria para a condio
nomia. Somente os novos paradigmas impostos pela globalizao da de cidado autnomo e responsvel de amanh.
economia e pela informatizao generalizada da vida poltica, cultu- O modelo da sociedade informacional, aqui relatado, , como admite
ral e social da sociedade podem mostrar novos caminhos para a Castells numa das entrevistas, a-moral (isto , desprovido de moralida-
humanidade do terceiro milnio. de individual e eticidade coletiva) e neutro, nos melhores moldes
nfico" da era informacional sobre suas vidas. A estrutura de emprego
advogados pelos positivistas do sculo XIX e parte do XX; sua funo
se diferencia e flexibiliza, o desemprego se reduz, os salrios crescem,
nica e exclusiva garantir a mdio e longo prazo a lucratividade.
a sociedade como um todo se enriquece, apesar de uma apropriao
Se verdade que o impacto da "era informacional" se traduz em
muito diferenciada (e por parte de uma frao reduzida da populao).
aumento acelerado de riqueza para mais ou menos 1/4 de beneficiados, em
O impacto da sociedade organizada em redes sobre os 3/4 da populao
detrimento do resto da populao do globo terrestre, por sua vez excludo
no atingida pela quarta revoluo tecnolgica traduz-se em aumento
e pauperizado, precisamos retomar a questo do livro, levantada no incio,
acelerado da pobreza (proporcional e absoluta). Apesar de excludos da
para dois tipos potenciais de leitores: a minoria conectada s redes mundiais
economia e poltica informacional, esses mais de 4 bilhes de habitantes
da Internet, e a grande maioria no conectada.
do globo so duplamente atingidos, pois no existem mecanismos
Para os primeiros," os conectados", desenvolver-se-o novas formas
capazes de inseri-los nem no mercado de trabalho tradicional, nem
de sociabilidade, como, por exemplo, a "virtualizao das relaes
mecanismos adequados para que os preparassem para o novo mercado
sociais" entre as pessoas. Elas, a rigor, no precisariam mais viajar,
de trabalho gerado pela sociedade informacional.
nem mesmo telefonar para seus pares do outro lado do globo, nem
Surge, assim, o que ficou conhecido como o desemprego estrutural,
sair de casa para trabalharem, irem ao banco, se encontrarem com os
isto , um desemprego que atinge vrias geraes de potenciais traba-
vizinhos ou fazerem suas compras. Como tero acesso fcil "ama-
lhadores (av, pai e filho). Esta grande maioria permanece fora do
zon@com", podem inclusive encomendar os livros que quiserem
gueto exclusivista dos beneficiados. Para tirarem proveito das vanta-
pela Internet, desde que tenham um carto de crdito, do qual podem
gens, teriam de ter acesso s diferentes redes de informao e s
ser debitados o custo e o envio por correio. Graas ao acesso virtual aos
tecnologias da informao, que, por sua vez, garantem o acesso a redes
ltimos lanamentos, crtica e rplica do livro que os interessa, podem
(celular, computador, novas linguagens software, bem como o treina-
estar, potencialmente sempre a par de tudo que se publica no ramo de
mento adequado para poder lidar com essa tecnologia, entre outros).
sua especializao. As chances de emprego para esses beneficiados
At pode ser verdade, como Castells insinua, que anetworksociety tenha
aumentam, j que tm igualmente acesso tecnologia informacional e
dissolvido as classes sociais tradicionais, mas tambm verdade que ela
a todas as alternativas de emprego geradas pela remodelao da produ-
criou nova hierarquia social, em cujo topo vivem os habitantes do globo
o baseada nos fluxos imediatos de informao capitalizvel. Essa
encerrados numa torre de marfim virtual, sustentada e viabilizada por um
populao fica beneficiada. Independentemente do livro, se beneficiam
cho real, de trabalhadores "no conectados". So estes que verdadeira-
acima de tudo os setores do management privado e pblico, jogadores
mente sustentam a torre. Os "virtuais" muitas vezes perderam a noo de
nas bolsas financeiras, aplicadores de capitais volteis que prometem
quem garante efetivamente a sua existncia na base do sistema social.
altos lucros de risco, corretores de imveis, vendedores virtuais, agn-
Nestes termos, a "sociedade informacional" de Castells lembra "Metro-
cias de informaes, jornalistas, editores. Abrem-se, assim, novas pos-
polis", o filme expressionista de Fritz Lang, da dcada de 30, no qual essa
sibilidades de emprego e de enriquecimento fcil, rpido, tentador e
viso da sociedade em dois patamares j foi antecipada. O desenvolvimento
lucrativo. Como se pode ver, todos esses empregos pressupem o uso
da era informacional, admitidamente "insustentvel" a longo prazo, pode
do livro ou do jornal real ou virtual. Para no "perder tempo" e dinheiro,
terminar em revoltas operrias, como as encenadas no filme.
esses "privilegiados" podem estar lendo, diretamente no screen de seu
A sociedade informacional indiferente ao risco que ela corre,
monitor, as ltimas notcias, a situao da bolsa, o saldo da conta
bancria, dispensando a impresso. Mas trata-se de livros, jornais, negligenciando a populao excluda dos "benefcios" que ela gera e
textos eletrnicos que, com um clique, podem materializar-se em folhas desrespeitando a natureza, da qual extrai boa parte de sua riqueza. Como
impressas, encadernadas ou no. Aqueles beneficiados pelo novo "modo sabido, a sociedade informacional alta consumidora de energia
eltrica e no pode existir sem ela. Esgotadas as reservas, essa sociedade
de desenvolvimento informacional" experimentam, pois, um "efeito be-

desmoronaria como um castelo construdo em areia ou como uma mo, surpreendi-me com a ausncia do livro nos dois estratos principais
seqncia de peas de domin em queda livre. Por ser indiferente da sociedade (retratada). Nem os donos da fbrica nem seus operrios
natureza e suas fontes de energia, ela tambm no respeita as regras de explorados e exauridos pareciam recorrer ao livro, seja para se divertir ou
sua preservao, como alertam os movimentos ecologistas. Por isso, ela distrair, no primeiro caso, seja para se informar e reorganizar, no segundo.
hostil ao meio ambiente. Basta lembrar as pilhas txicas dos telefones Os donos da fbrica pareciam estar mais ocupados com seus livros de
celulares, walkie-talkies, rdios e CDs, TVs. contabilidade (perdas e ganhos; salrios e custos da produo) que em
E, como foi admitido pelo prprio Castells, ela a-moral, por no livros propriamente ditos (de filosofia, literatura, arte, cincia, economia,
preservar os valores herdados do humanismo dos sculos XIX e XX, como poltica). Ocupavam-se mais em controlar (atravs de uma espcie de
a defesa da integridade e da dignidade do homem, de todos os homens "panopticum-TV") os operrios e verificar se estavam efetivamente traba-
(no sentido de humanidade). Defendendo a neutralidade da cincia, da lhando. Estes, por sua vez, colados as mquinas no subsolo e nas cavernas
tecnologia e do mercado, ela no introduz novos valores sociais, polticos de Metropolis, no unham como pensar ou pegar num livro, porque lhes
e morais capazes de encaminhar as novas geraes no sentido de integrar- faltava tempo e energia para investir em leitura, durante a dura jornada de
se, sustentar, preservar e ampliar a sociedade informacional em bases trabalho. Tampouco aMaria (boa) que prega solidariedade e f na religio, nem
dignas para todos. Esses valores dificilmente podem ser gerados no espao a Maria (m), o clone mecnico da Maria boa, consulta um Manual da
virtual do web, mas nele podem ser incorporados e veiculados. aqui que Revoluo que ela prega somente para desorientar a classe operria.
vejo novas chances para o livro, os livros escritos, lidos e relidos, No entanto, o livro aparece no filme, nas mos do cientista judeu, que
debatidos e comentados, e at mesmo concretizados em valores e mora numa residncia prpria a meio caminho e parte das duas classes
instituies (como a democracia, direitos humanos, alfabetizao para antagnicas. o cientista louco que termina sendo, na verso que
todos, liberdade de religio, sufrgio universal, etc.). chegou ao pblico, o culpado do desastre e curto-circuito que ameaa a
Em interessante artigo, escrito na dcada de 80, Vilm Flussr, existncia de Metropolis, quando os operrios enfurecidos destroem as
filsofo tcheco-brasileiro8 j alertava para a necessidade de traduzir os mquinas e inundam a parte subterrnea da cidade em que viviam seus
velhos cdigos, encerrados em livros e documentos (empoeirados) para filhos. Revoltam-se, assim, instigados pelo "clone" Maria, fabricado pelo
os novos cdigos da era digital. Noutras palavras, no se trata de cientista, contra o falso inimigo - as mquinas - e no reconhecem, no
"descartarmos" os livros por haver a Internet, cabe preserv-los, incor- sistema monstruoso de explorao, concebido e realizado pelos donos da
porando-os, guardando-os - no sentido da Aufhebung - no interior das fbrica, o seu verdadeiro inimigo. Neste filme de fico, que reflete o
linguagens eletrnicas e digitais da era informacional. Essa proposta de anti-semitismo e antiintelectualismo difuso j existente na Alemanha, at
Flussr, lamentavelmente no faz parte do iderio e das receitas de mesmo antes da tomada de poder de Hitler, o livro da cincia e a tecnologia,
Manuel Castells, mas j est sendo colocada em prtica, como nos em mos do cientista judeu, assume papel perverso: "clonar" Maria. O
informam diariamente os nossos jornais.9 filme antecipa duas prticas abominveis, posteriormente comuns durante
Se aceitarmos a nova diviso da humanidade em includos e exclu- o nazismo: a queima dos livros em plena praa em frente Universidade
dos, estratificada nos "de cima" e "nos de baixo", qual o papel do livro de Humboldt e as experincias do doutor Mengele em Auschwitz, pesqui-
para os "de cima" conectados em rede? E qual o papel (se que tm?) sador frio e monstruoso da biogentica.
e lugar do livro entre os "de baixo", os desconectados e excludos, que Recorrendo metfora de "Metropolis, tentarei pensar o papel do livro
vivem na pobreza e no desemprego estrutural? na "sociedade informacional", seguindo o script que Castells nos deixou
Para melhor visualizao deste problema, voltemos ao filme de Fritz em sua trilogia. Tambm no terceiro milnio, os detentores da riqueza esto
Lang, "Metropolis", que antecipou em imagens marcantes essa estratifi- mais preocupados com o acompanhamento dos valores das aes na bolsa,
cao do futuro. Revendo este "clssico" do cinema expressionista ale- a venda virtual de "aes", aplicaes financeiras etc., do que com livros
que pudessem ser virtualizados e divulgados pelo sistema eletrnico ministrios e at mesmo no Palcio do Planalto e no Buriti, isto , no
da rede ou em CD-Rom, a verso tecnolgica mais adiantada do livro. corao do poder institucionalizado.
Os que no manipulam (histericamente) os seus telefones celulares, No se trata de uma pea do passado, guardada a sete chaves, mas de
suas agendas eletrnicas e calculadoras, "estudam" pela Internet, um material real que pode ser ativado a qualquer instante.
acoplados a um laptop na sala VIP de qualquer aeroporto mundial, ou O noticirio da semana passada mostrou um esforo feito no Congresso
a um PC instalado em casa, as ltimas notcias e "informaes" que de alfabetizar os serventes e faxineiros da casa, em sua maioria analfabetos.
possam ser teis para novos investimentos, o home banking e novas O livro do qual um deles havia espanado o p, durante duas dcadas, sem
decises econmicas. Raras vezes encontramos, em aeroportos ou saber do seu autor e contedo, era Os Lusadas, de Cames.
dentro do avio, em restaurantes ou cafs, modernos/as profissionais Provavelmente o faxineiro recentemente alfabetizado desistir de ler
da " era informacional" lendo um livro real e muito menos um virtual alm das primeiras estrofes, mas o livro visvel, palpvel, "bonito",
downloaded no seu screen. existe e continua provocando, como tantos outros, o potencial leitor. Por
Por outro lado, acompanho h 6 meses, a partir da sacada do meu isso, ouso arriscar uma tese a ser confirmada: o livro " salvo" num texto
apartamento, o dia-a-dia e o movimento de 10 a 20 " sem teto/sem terra" virtual ou impresso, encadernado em Unho ou couro, papel de em-
que habitam embaixo de uma rvore (encobertos por uma plstico preto) brulho ou plstico, estabelece um elo entre os estratos extremos da
na entrequadra da Asa Norte em Braslia. Certamente trata-se da "raspa "sociedade em redes". Ele tem condies de humanizar aquele estrato
do tacho" dos excludos da era informacional, dos quais nos fala dos excludos que vive aparentemente no nvel tcnico da pr-histria,
Castells. No caso deles, a preocupao primeira a gua, a comida, o como ele conferiu dignidade e alegria ao faxineiro (antes) analfabeto do
fogo. Seus filhos no vo escola, seus pais no sabem ler nem escrever. Congresso brasileiro. Mas, antes de mais nada, ele tem condies de
Eles no tm eletricidade e muito menos "conexo interntica". Vivem humanizar aqueles que atingiram riqueza e glria na sociedade infor-
do lixo acumulado nas grandes lixeiras dos blocos das superquadras e macional, manipulando seus computadores e telefones celulares. Em
comerciais mais prximas. Fazem a coleta de latas, garrafas e outros Braslia, a Biblioteca do Congresso conhecida como uma das melhores
"restos" do lixo, no aproveitados pela classe social mais abastada da e mais atualizadas do Brasil. Isso nos d esperanas de que deputados
sociedade de consumo e os revendem, estando vinculados ao merca- e senadores, vindos dos todos os cantos do Brasil, sigam o exemplo do
do monetrio dessa forma "original". bvio que no tm livros e faxineiro e usem a biblioteca, mergulhando nos livros que ela abarca.
muito menos os lem, mas gostam de receber os jornais velhos, para Em lugar dos personagens de "Metropolis" que estabelecem o con-
forrar o cho de terra em que dormem. tato entre em cima e embaixo (o filho do dono da fbrica, o operrio
Caricaturei os dois extremos da estratificao social na " era infor- padro que acata as ordens do patro e as retransmite aos operrios,
macional" , deixando claro que nos plos extremos da hierarquia social como traduz o clamor destes ao dono insensvel, a Maria autntica, o
de hoje no h lugar para o livro. Contudo, o livro existe e persistir. cientista judeu), temos na "era da sociedade em redes" batalhes de
Onde o encontrar? in-between. Trata-se dos mediadores entre os extremos, que somente
Na metfora de Metropolis, ele esta v na casa do cientista judeu, que tm de "loucos" o interesse pelo livro, dedicao em sua preservao
morava entre as duas classes. Na realidade da era informacional, ele se e transmisso, colaborando na formao de leitores. Acrescentem-se
encontra na casa dos pesquisadores, professores e alunos, em centros aqueles que escrevem livros, os editam ou encadernam, organizam
de pesquisa, bibliotecas, livrarias, editoras, nas estantes de muitos feiras nacionais e internacionais para divulg-los. Mas so, antes de
leitores, ainda encantados pelo livro fisicamente materializado. Mas ele mais nada, os leitores do livro, que nele vem seu amigo mais ntimo,
tambm se encontra - em meu campo visual, alm dos sem teto/sem inspirador de idias, dilogos, fonte de saber e prazer, alegria e lazer,
terra - nas bibliotecas da UnB, do Congresso, do Itamaraty e outros texto e pretexto para pesquisas cientficas e descobertas tecnolgicas.
A "era informacional" resultado do livro e do saber readquirido Vol. II: The Power of Identity (1997);
atravs dele por leitores inventivos, criadores. Associado tecnologia Vol. III: End of Millenium (1998).
da informtica, o livro pode ser "virtualizado" como nos ensinou Traduo para o portugus:
Flusser, transmitido por fibras ticas ao outro lado do globo e l Ttulo geral dos trs volumes: A era informacional: Economia,
novamente materializado em papel impresso, costurado e encadernado. Sociedade e Cultura. So Paulo, Editora Paz e Terra.
O livro pode ainda ser fixado em disco CD-Rom, armazenando numa Vol. I: A sociedade em redes (1998);
pequena chapa de silicone brilhante, informaes condensadas que Vol. II: O poder da identidade (1999);
antes enchiam prateleiras e bibliotecas. Vol. III: Fim de milnio (1999)
A "era informacional" no inimiga do livro, ela dispe da tecno- 5
Do Banco Mundial, das Naes Unidas (Desenvolvimento
logia para universaliz-lo, democratiz-lo. A tecnologia informacional
Humano), UNIDO, UNICEF, UNESCO, entre outros relatrios de
, mais que qualquer outra (penso naquelas que Walter Benjamin tinha
economistas, socilogos, comuniclogos, das ltimas trs dcadas
em mente), a que garante a "reprodutibilidade tcnica" da letra escrita,
do sculo XX, etc.
do som falado, da imagem ilustrada, separadamente .e em sntese. H
aqueles que preferiro ler uma pea de Shakespeare, impressa em Vide entrevista dada por Castells no programa de televiso
papel mach, outros daro preferncia a um vdeo obtido em Londres, "Roda Viva", em que interpelado ao vivo por vrios
no Globe Theater; terceiros, por sua vez, querem ouvir a voz de intelectuais, socilogos, economistas e urbanistas brasileiros,
Lawrence Olivier, acompanhando as palavras sonoras com a leitura do em 1999, por ocasio do lanamento de sua trilogia pela Editora
texto. Mas tambm pode haver aqueles que querem sintetizar tudo isso Paz e Terra em So Paulo.
num CD-Rom tecnicamente perfeito em que todos os seus sentidos Vide tambm : "Castells - The Videos" (I Castells at Oxford/II
estaro ativados: os olhos, os ouvidos e sua mente. Castells the Interview/III Castells, org. por B. Dimitri), que podem
De minha parte, prefiro levar o King Lear para a cama, no exemplar ser solicitados pelo endereo: 3 Broadway Close, Woodford
de couro perfumado que herdei de minha av materna. Green, Essex, IGH OHD - U.K.
A revista inglesa CITY: Information, Identity and the City, n 7,
NOTAS de maio de 1997/Oxford-U.K. publica uma Introduo trilogia
acima citada, feita pelo prprio Manuel Castells (pp. 6-17), bem
Vide Freitag, B. "Habermas como intelectual", in Habermas: 70 como uma entrevista feita por Bob Catterall, em Londres, com
anos. Nmero especial da Revista TB, Rio, 1999. Manuel Castells, em 1997.
7
Cf. Giddens, A. The Third Way. The Renewal of Social Democracy. Pgina introdutria de "Hacia ei Estado Red?"
Polity Press: Cambridge 1998. 8
Flusser, Vilhem. "Alte und neue Codes", in Prigge, Walter (org.).
3
Castells, M. "Hacia ei Estado de Red? Globalizacin econmica e Stdteische Intelektuelle. Urbane Milieus im 20. Jahrhundert.
instituciones polticas en Ia era de Ia informacin. [Ponencia presentada Frankfurt/M.: Fischer Verlag, 1992 (o texto foi escrito originalmente
en ei Seminrio sobre " Sociedade y Reforma dei Estado" ]. So Paulo, em 1988). Vide, tambm, do mesmo autor, Fices filosficas. So
maro 1998. Paulo: EdUSP, 1998.
4
CASTELLS, Manuel (1996-1998). The Information Age: Um reflexo sobre o artigo de Flusser encontra-se em Freitag,
Economy, Society and Culture. Oxford: Blackwell Publisher/U.K. Barbara: "A cidade brasileira como espao cultural", in Tempo
Social. Rev. Sociol. USP, So Paulo 12 (1): 29-48.
Vol. I: The Rise of Network society (1996);
JL.
3
Cf. Piquer, Isabel. "Livro digital se firma na Internet", in Correio
Brasiliense, 12/8/2000, comentando o recente acordo firmado
entre a Microsoft e a Barnes & Nobel.
O LUGAR DO LIVRO ENTRE A NAO E O MUNDO
GLORIA LOPES MORALES
Quem so os novos alfabetizados da sociedade de redes?

Nas eleies presidenciais realizadas no Mxico, em 2 de julho de
2000, Francisco Labastida, o candidato do PRI, arrolou, como uma
de suas principais promessas de campanha, a universalizao do
ensino da lngua inglesa e da computao para os estudantes do
ensino fundamental e mdio. Oferecida a panacia, ele deve ter
ficado muito decepcionado com a resposta tbia e at mesmo irnica
do eleitorado, que no se deixou deslumbrar pelas duas mais impor-
tantes chaves de acesso ao progresso e modernidade que se deseja
obter em nossos dias.
O certo que o candidato Labastida foi o grande derrotado na
disputa e, com ele, a prolongada hegemonia do Partido Revolucion-
rio Institucional no poder. Surgem interpretaes em vrios sentidos
perante a atitude dos eleitores mexicanos que, de maneira mais ou
menos consciente, deixaram manifesta uma sbia hieraquizao dos
problemas que o pas enfrenta, assim como das necessidades e prio-
ridades para livr-lo de seus graves entulhos. O atraso imperante no
se mede apenas em termos quantitativos, embora estes sejam deter-
minantes. Em nmeros redondos, existe algo em torno de 10% de
populao analfabeta, embora o analfabetismo funcional alcance
propores muito mais alarmantes. Estima-se em cerca de 60% o
nmero de mexicanos vivendo em nveis de pobreza e uns 30%
abaixo da linha da pobreza absoluta.
As estatsticas refletem baixos nveis nos servios de sade, gua
potvel e eletricidade, ausncia de qualidade de vida no mundo rural
e nas imensas reas suburbanas das grandes cidades, com favelizao, do livro sintam-se estranhos com relao a uma linguagem que os
moradia insuficiente e improvisada. Outro indicador pouco recon- impede de pensar, que inibe a emotividade e que enrijece a memria.
fortante o desemprego no campo e na cidade, cujos efeitos mais Em todo caso, os vrios gneros de expresso escrita parecem mais
visveis so a imigrao e o aumento sensvel da delinqncia. consubstanciais aos seus prprios padres do que a linguagem dos
Nessas circunstncias, parece quase irnico pensar num plano para computadores.
promover a entrada de milhes de analfabetos na modernidade, No planejamento das polticas e na elaborao de programas de
mediante a informtica, que, como num passe de mgica, passariam governo, no se pode ignorar esse contexto cultural, tampouco as
a integrar as legies de novos alfabetizados, profetas do mundo feliz. circunstncias histricas herdadas. Nesse sentido, desde o incio,
Parafraseando o provrbio: primeiro a comida, depois ser um espe- torna-se necessrio eliminar o falso dilema entre o computador e o livro.
cialista em computao. No se trata de escolher entre um e outro, porque ambos so necessrios
preciso pensar, por outro lado, que o baixo xito do refro e complementares. Talvez a exposio a esta disjuntiva seja a causa dos
poltico labastidista se deveu a que os eleitores, que, na maioria das excessos que, atualmente, provocam efeitos indesejveis, devido
vezes, ignoram nmeros e estatsticas, manifestaram uma sabedoria informatizao seletiva e elitista nos pases com grandes desnveis de
primordial que os fez discernir entre o substantivo e o adjetivo, na desenvolvimento. De fato, o que se est conseguindo a fragmentao
finalidade essencial e o meio para alcan-la. aqui onde entram as e a produo de uma ruptura cultural entre os diferentes segmentos da
consideraes de ndole qualitativa que, tanto a gente do povo, sociedade. Por outro lado, uma populao informatizada no , neces-
quanto as elites ilustradas levaram em conta para no se deixar sariamente, uma populao culta. Para s-lo, tem primeiro que ser
deslumbrar pelo ingls, a lngua do sucesso, e pelos computadores. alfabetizada e aficionada leitura.
Notaram, provavelmente, que, por trs desse atraente pacote didtico, Voltando ao processo poltico mexicano, uma campanha eleitoral
se escondia todo um embate neocivilizatrio que, se no lhes oferecia inteligente deveria ter embasado suas promessas no fomento da produ-
gato por lebre, estava muito perto de faz-lo, posto que pretendia o do livro e incentivo leitura, complementado e aqui no cabe
fazer passar o acessrio como se, na verdade, fosse o essencial. dvida com uma boa dose de capacitao em informtica. Desse
Notaram que se lhes oferecia um veculo supersnico para a imerso modo, sim, ser possvel que o mexicano se ponha em sintonia, atravs
numa globalidade amorfa, quando ainda no puderam territorializar- do ciberespao, com o resto do mundo e passe a trocar conhecimentos
se, assumir e conhecer seu espao vital. vlidos com ele. Para conseguir isto e, sobretudo, para aprofundar o
No Mxico, como nos demais pases da Amrica Latina, no processo poltico, preciso que o indivduo seja capaz de penetrar o
possvel lanar um convite cidadania quando, por uma questo sentido de um texto, que possa exercitar-se na reflexo a fim de captar
social, isto invivel ou, pelo menos, secundrio, tendo em vista os matizes da realidade em que est imerso e assim poder analis-la
outras urgncias. Em adendo, h questes de contextura social que criticamente. Isto s se consegue merc da pacincia gregria das
parecero contraditrias como as noes de tempo, espao e utilidade palavras que se vo alinhando, umas aps as outras, graas fidedigni-
que a ciberntica promove. que, tradicionalmente, as pessoas nestes dade mensagem que permanece sobre o papel, que se deixa compor e
pases pertencem, em parte, por um de seus segmentos, comunidade recompor gramatical e filosoficamente. (Alatriste)
que Roberto Cardoso de Oliveira chama de Comunidade da Argu- Ler uma disciplina ligada ao tempo e os leitores se apropriam, com
mentao. E, como muitos tericos afirmam, o que possibilita o ela, do instante e da eternidade. Para acercar-se da tela ciberntica com
suporte informtico a capacidade de transladar e processar infor- capacidade seletiva, primeiro preciso que se tenha sido um leitor.
mao a granel e em grande velocidade, sem permitir o raciocnio; Desse modo, em face da seduo da imagem imediata, tornamo-nos
lgico que, em troca, os praticantes da linguagem oral e os adeptos capazes de transcendncia.
A formulao de polticas de comunicao, de polticas educativas so, em realidade, os verdadeiramente capazes de nos colocar na van-
aodadas e impacientes, nasce de expectativas errneas no poder todo guarda do mundo. Pode ser que parea muito complicado atrelar a
poderoso da informao. No h que enganar-se, nada substitui o livro poltica fiscal poltica educacional, porm sabemos ser possvel con-
no sentido de satisfazer a necessidade de reflexo que subjaz a toda segui-lo e muitos pases altamente desenvolvidos j o fizeram. Uma
funo educativa, assim como nada substitui a Internet na necessidade poltica cultural correta pode faz-lo e mais ainda se incentivar a leitura,
de tratamento rpido da informao. Em todo caso, o aprendizado da e, com ela, o exerccio do pensamento, promovendo cidados conscien-
escrita e da leitura a nica ponte indispensvel para empreender ambos tes, com grandeza espiritual e prontos para participar da coisa pblica;
os caminhos. cidados capazes de fazer avanar os povos em direo a metas menos
L pelos anos cinqenta, com o nascente desenvolvimentismo, confusas do que aquelas que a cibervida nos faz entender como condio
nossos pases conceberam a leitura como o melhor instrumento para necessria e suficiente para adentrar o mundo feliz.
a decolagem. Imagine o que foi o pice da produo editorial de Quantas coisas teriam os polticos de considerar quando contra-
ento! A intuio foi certeira, s que os caprichos do mercado, as tam, para suas campanhas, os magos do marketing eleitoral!
crises econmicas generalizadas e recorrentes, do mesmo modo que Nada mais distante das mentes lcidas em nossos pases de in-
a falta de polticas adequadas para atribuir ao livro o papel de fluncia luso-hispnica do que negar o avano e a influncia dos
protagonista indispensvel, fizeram com que o advento da inform- meios eletrnicos e muito menos fechar os olhos a uma realidade
tica nos encontrasse sem ter preenchido os requisitos bsicos para dar avassaladora. Bem sabemos o que pensa um Garcia Mrquez acerca
a essa ferramenta o uso adequado. Vemos, assim, que o desamparo do apoio inestimvel do que significa para ele o computador no seu
aos leitores faz com que eles se entreguem inertes s telas audiovi- processo de criao. H pouco, um dos mais esclarecidos e consultados
suais com o conseqente prejuzo para a formao e transmisso dos intelectuais mexicanos, Carlos Monsivis, alinhavou, numas
valores individuais e coletivos que oferecem coeso ao corpo social. quantas frases, uma srie de verdades desmitificadoras ao dizer
Em nosso meio, a reflexo est desvalorizada, no se nota sua que, com a Internet, d-se o retorno leitura ou ao afirmar que
utilidade, deixou de ter importncia. O valor cultural da leitura est "a televiso tinha a ltima palavra antes que chegasse a web e
cedendo vez ao valor de consumo que o livro vem ganhando, inclu- que, agora, no h nada to pouco concorrido do que uma confe-
sive em pases onde h um nmero consistente de leitores. rncia ao vivo e nada mais povoado do que um chat". Suposta-
Uma boa poltica para um povo educado, culto e informado deve mente, ele restabelece os equilbrios, sinalizando a sobrevivncia
passar pelo reconhecimento de que livro e leitura so pr-requisitos necessria da imprensa escrita e a permanncia indispensvel do
para tirar o melhor proveito da informtica, que deveria ser conside- local frente ao global.
rada um meio para satisfazer necessidades complementares de infor- Parece, ento, delinear-se um consenso no que se refere profecia
mao e apoio tcnico, porm nunca para substituir os verdadeiros de que o livro no morrer e que, melhor ainda, dar-se- a convivn-
elementos que forjam a cultura individual e coletiva. cia de vrios suportes. Porm isto no acontecer de modo espont-
Combater a ignorncia, a corrupo, a falta de eqidade e cultivar neo. Falta verificar como se comportar a poltica, como se formula-
a democracia s possvel usando a nica arma a nosso alcance: a ro as polticas que, no momento, parecem entregues a correntes
cultura e seu enorme apetrecho que a leitura. H que aprender, alm fatais e pragmticas do devir ciberntico. O tema deve ser analisado
do mais, a pensar, de maneira diferente, a cultura, caso queiramos em toda sua complexidade, complexidade esta que faz com que o
reformar as bases de nosso desenvolvimento e compreender que o social seja ecolgico e o ecolgico, tico; que faz com que a trans-
recurso cultural , para isto, o melhor motor; h de reconhecer-se, misso do pensamento e do conhecimento no possa ser abordada
igualmente, que nossos artistas, nossos criadores, nossos pensadores apenas do ponto de vista do suporte ou do meio.
Com este enfoque ser mais fcil distinguir a funo que deve ter A rede ibero-americana, utilizando as possibilidades do ciberes-
a leitura. H que se pr na perspectiva multifacetada da cultura, das pao, deveria poder conservar suas ferramentas prprias para poder
culturas, para acabar por concluir que talvez no seja o livro que se comunicar-se, entre si e com o resto do mundo. Nela, o livro, seja de
acha em situao crtica e talvez o que se encontre em crise seja a papel ou suporte eletrnico, desempenha papel insubstituvel.
viso que temos da prpria cultura, com parmetros pouco adaptados
ao mundo em transformao. H, tambm, que lanar o olhar sobre (Traduo do original em espanhol por Carlos Seplved)
o papel fundamental da educao para distinguir, eleger e hierarqui-
zar os meios e suportes transmissores de saberes.
Nesse sentido, as culturas formam uma polifonia, na qual, talvez,
a leitura no tenha o mesmo valor entre elas. O que acontece que
todas as vozes precisam ser audveis e que no se leve a esquecer que
o Estado existe e que h governos e estruturas de poder que no
podem desobrigar-se de formular polticas. Deixar o fomento do livro
e da leitura ao livre jogo da oferta e da procura, deixar que se instale
a predominncia da informtica ou de outros meios ou suportes,
apenas por razes de mercado, seria abdicar da capacidade de deciso
e conduo de uma sociedade. Cabe, pois, a pergunta acerca de se
so, de algum modo, possveis as polticas mais atentas s condies
culturais em escala local e regional. Podem-se concentrar os esforos
de reflexo sobre a crise da cultura ou das culturas nacionais e locais,
para que, longe de transcorrer de maneira cega pelas vias da globa-
lizao, haja algum modo de incursionar por aquelas vias da univer-
salizao a partir do prprio?
Assumindo que o livro no um doente terminal, h de se concor-
dar, sem dvida, que preciso fazer intervir a vontade pblica ou
privada para que sua sobrevivncia no seja, quando muito, o prolon-
gamento da vida de um doente comatoso. A globalizao no deve
paralisar a necessidade de pensar localmente, regionalmente, no
interior das famlias culturais amalgamadas ao longo da histria.
Pode-se identificar a famlia latino-americana, ibero-americana,
pelo uso das lnguas comuns e pela possibilidade prxima e concreta
de poder comunicar-se oralmente e por escrito atravs do castelhano
e do portugus. Esta circunstncia abre possibilidades para que a
comunidade das naes, que conforma este espao cultural, entre na
rede das redes, sem necessidade de perder suas caractersticas e,
melhor ainda, participando com elas na globalizao que no tem por
que ser indiferenciada.
122 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 1 17/123, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 117/123, jul.-set., 2000 123
O LIVRO TEM FUTURO?
A cultura do livro na era da globalizao
MILAGROS DEL CORRAL
Os ciclos temporais se aceleram vertiginosamente (h trs anos

no existia a Amazon.com) e eis-nos aqui reunidos, no Rio de
Janeiro, ainda fresco em nossa memria o lanamento do primeiro
e-book destinado ao grande pblico (Riding the bullet, de Stephen
King); ainda surpreendidos pelas 500.000 cpias digitais comercia-
lizadas em 48 horas, breve tempo que, no obstante, foi suficiente
para que um jovem hacker rompesse a segurana tecnolgica, permi-
tindo a proliferao de clones da obra por toda a Internet. Esta
singular experincia deu, sem dvida, o que pensar ao autor e, como
os senhores todos sabem, s faz algumas semanas o mesmo Stephen
King, que no sei se passar para a histria da literatura de terror,
mas que, desde j, criou o terror entre os editores de livros de
literatura, decidiu "baipassar" seu editor - nada menos que Simon
& Schuster - e oferecer, em seu prprio site na rede web, a mais
recente de suas obras, com uma estratgia comercial nova: no dia 24
de julho estava disponvel o primeiro captulo de seu romance The
plant, que podia ser baixado com um nico endereamento no e-mail.
O autor popular solicitava de cada leitor que lhe enviasse um dlar
americano, assegurando-lhe que, se recebesse contribuies de pelo
menos 75% de seus leitores, continuaria escrevendo o romance; caso
contrrio, no continuaria. 76% dos que baixaram o primeiro captulo
(100.000, em apenas dois dias) responderam positivamente e os
captulos 2 e 3 j esto anunciados para o dia 21 de agosto e 25 de
setembro, respectivamente. Esta iniciativa, aparentemente anedtica,
i.
na qual o sr. King, com algumas poucas pginas, embolsou lado da demanda de bens e servios culturais, num contexto mun-
100.000 dlares de jubilosa antecipao, busca propor um novo dial onde predominam as assimetrias, acrescidas pela globalizao
paradigma para o direito autoral, sustentado no pagamento voluntrio comercial e tecnolgica.
de direitos, para uma edio sem editores, baseada na tcnica de Nos pases industrializados, aumenta sensivelmente o gasto com
folhetins a domiclio, revigorada pela malcia televisiva, com tempe- consumo cultural, e a oferta tambm cada vez mais competitiva. O
ro tecnolgico. O lanamento de The plant suscitou animado debate consumidor est mais consciente e mais sensvel ao fator preo, luta
nos fruns da Internet, com mais aderentes do que detratores, se bem contra o tempo e busca, por ele mesmo, um servio personalizado em
que a maioria dos comentadores reconhecesse que o "sistema" s matria de informao e cultura. A resposta da. indstria editorial, que
funciona para autores de grande popularidade. oscila entre a fascinao e a desconfiana com as novas tecnologias, tem
O que significa tudo isto para a comunidade do livro (autores, sido o incremento permanente da oferta em meio a uma crescente
editores, distribuidores, livreiros, bibliotecrios, leitores), que insegurana jurdica no mbito da proteo do direito autoral, o que
no havia conhecido transformaes substanciais ao longo de configura um alto risco para o investimento e conduz a urna concentra-
seus mais de 500 anos de existncia? Quais so suas implicaes o empresarial, tanto no mbito da edio, quanto no da distribuio.
para o futuro do direito autoral, fundamento jurdico do negcio O corolrio a integrao vertical em grandes holdings multimdia, com
editorial? Quando nenhum discurso parece possvel sem mencio- freqncia financiados por capitais alheios ao setor e acostumados a
nar a globalizao, quais podem ser as repercusses desses desen- uma rentabilidade maior para o investimento. No novo cenrio, as
volvimentos para 80% da populao planetria e para os mais decises empresariais atendem a razes de mercado. Onde, porm, fica
de 1.200 milhes de pessoas que vivem com menos de um dlar a funo cultural e educativa do editor? O que acontecer com a
por dia? legendria pluralidade e diversidade do setor?
Nos pases em desenvolvimento, a situao bem diferente. As
Anatomia do livro condies necessrias para o decolagem do setor editorial no
acontecem. A demanda privada existe e enorme, porm carece de
Sem dvida, o setor editorial encontra-se confrontado com uma poder aquisitivo suficiente para satisfazer suas necessidades de
situao indita em sua histria. At hoje, o capital cultural, esse educao, cultura e informao. As administraes pblicas, por
conjunto, de elementos simblicos e intelectuais criado pelo ser seu turno, esmagadas pela dvida externa e o crescimento demogr-
humano permanecia fixado em suporte de papel, decodificava-se por fico, socorrem-se de emprstimos internacionais para financiar a
meio da leitura e gerava rendimentos derivados de sua capacidade de compra de manuais escolares importados ou optam pelo texto
circulao. O editor era o ltimo elo da cadeia do direito autoral, num nico, editado e impresso pelo Estado, fechando, assim, aos edito-
esquema que soube superar, sem problemas, inclusive com vanta- res locais o acesso ao mercado do livro didtico. Muitos pases em
gem, o surgimento de sucessivos desenvolvimentos tecnolgicos - desenvolvimento contam com modernas leis de direito autoral,
os jornais dirios, o cinema, a televiso, as novas tecnologias de geralmente inspiradas por organizaes internacionais e por pres-
impresso -, condenando ao ridculo os agourentos que anunciavam ses bilaterais, porm isto no impede que a pirataria e a reprografia
a morte do livro. Assistimos, agora, desmaterializao do suporte ilegal faam estragos, ante a passividade - e s vezes a cumplici-
e ao questionamento dos direitos autorais por parte dos usurios da dade - dos governos, com prejuzo para as importaes legais e
Internet, cujo interesse pela gratuidade dos contedos coincide com investimento estrangeiro, sobretudo, em claro detrimento da inds-
os novos atores e operadores de redes, que substituem o editor, no tria nacional. O impacto das novas tecnologias , quase sempre,
final da cadeia produtiva. Importantes mudanas tambm ocorrem do irrelevante e de elevado custo, em razo da escassez de infra-es-
trutura de eletricidade e de telefonia ou pela desconfiana que a Internet o que se produz em nossos dias. Com certeza, nos relembrariam que,
suscita em vrios governos. Da decorre que os internautas africanos nos seus primrdios, os livros impressos tiveram de afrontar a hosti-
representem apenas 0,8% dos usurios da rede. Por outro lado, Tuvalu lidade das bibliotecas universitrias e o menosprezo dos biblifilos
decidiu vender seu mtico identificador de pas (.tv) a uma empresa que os consideravam terrivelmente vulgares. Provavelmente, nos
ponto.com norte-americana. Esta minscula ilha do Pacfico, com indicariam que os primeiros impressores tiveram de esforar-se por
10.000 habitantes, cujo PIB era, at agora, dos mais baixos do mundo, imitar os manuscritos, com a finalidade de conquistar o j florescente
passou, com essa operao, a ocupar, nesse instante, o primeiro lugar mercado editorial universitrio, baseado, ento, no aluguel de manus-
em renda per capita. critos aos estudantes para permitir-lhes fazer copias ( mo, claro),
O desafio - enorme, preocupante - consiste em assegurar o acesso um comrcio que, inclusive, j estava regulamentado em Paris, Bo-
ao livro aos cidados de muitos pases em desenvolvimento, confron- lonha, Oxford, Cambridge e Praga, bem antes do surgimento da
tados aos graves problemas econmicos e sociais, conflitos armados, imprensa. Poderia suscitar-se um apaixonante debate acerca do im-
analfabetismo e aos crescimentos demogrficos difceis de controlar, pacto da imprensa no contedo dos livros como resultado de sua
que afetam a consolidao de seus sistemas educativos. Ironicamen- retirada dos monastrios e das universidades em busca de pblico
te, quando o projeto E-Ink, do MIT, se prope a lanar, brevemente, novo e mais amplo; ou ainda sobre a desconfiana que este revolu-
dois bilhes de exemplares de seu e-book, ltima palavra em tecno- cionrio meio de difuso de idias despertou nos governos... Contu-
logia, e solicita a colaborao da UNESCO para selecionar os 100 do, no preciso ser um especialista na histria do livro para avaliar
melhores ttulos, apropriados ao mbito escolar universal, a iniciativa o que isto causou na gerao e difuso de novas idias literrias,
do milnio, como nos sugere o Senegal, intitula-se prosaicamente cientficas, filosficas, religiosas, polticas, etc.
"giz para todos"!... Havemos de nos resignar pelo fato de estes pases Limitar-me-ei a assinalar, aqui e agora, que nihil novum sub
continuarem seu desenvolvimento sem editores, sem contedos pr- solem* muito menos neste mbito. Com efeito, as novas formataes
prios, sem livros? Ser o destino deles o de meros consumidores de para a leitura dos e-books (Rocket, Cytale, Microsoft Reader, etc)
contedos eletrnicos de importao, supondo que seu desenvolvi- fazem esforos por parecerem, o mais possvel, com o livro. O E-Ink,
mento econmico lhes permita chegar a adquiri-los algum dia? a que j me referi, utiliza, inclusive, pginas autnticas - em branco
O tempo de que disponho e a ateno que os Senhores podem, por - bastante parecidas com papel; vem encadernado e, primeira vista,
ventura, estar me devotando, no me permitiriam sequer esboar uma parece um livro convencional sem costuras nem ligaduras, dotado
resposta s mltiplas questes culturais, sociolgicas ou ticas que apenas de dois discretos botesinhos na lombada. A diferena est
fatos dessa natureza costumam suscitar e que aparecem, hoje, intrin- no fato de que, em sua memria oculta, h 100 livros de 400 pginas
secamente ligados ao futuro do livro, esta velha e impressionante que, como num passe de mgica, aparece "escrito" nas pginas, a um
tecnologia que, durante cinco sculos, vem acompanhando os seres toque de boto; e no fato de modificar-se, j que, nas mesmas pginas,
humanos como ferramenta insubstituvel para se obter informaes, vamos poder ler todos eles sucessivamente no tamanho de letra que
aproximando-nos das culturas, do conhecimento e do pensamento de melhor convier a nossa vista, mais ou menos cansada. Poderemos,
nossos semelhantes ou, mais modestamente, entretendo nossos cios. tambm, sublinhar, acrescentar notas, recarreg-los com novos ttu-
los da Internet, caso tenhamos em mo o conveniente cabozinho
Da imprensa ao e-book: a histria se repete conector para lig-lo ao computador ou ao nosso supertelefone celu-
lar WAP etc. E, claro, virar as pginas no ritmo que desejarmos. A
Os historiadores do livro saberiam, melhor do que eu, estabelecer
analogias entre o impacto que, em seu momento, causou a imprensa e Nada de novo sob o sol. (NT)
esta altura, parece que no restar ao livro nem aquele prazer controvertida questo do direito autoral na Internet d em nada,
sensorial do contato com o papel!... caso se confirme a tendncia ao "controle vertical" das redes de
parte de alguns poucos atores, geralmente alheios ao mundo dos
O futuro do livro: mais perguntas do que respostas livros ( basta recordar, por exemplo, as recentes incorporaes da
Time-Warner pela AOL, da Universal por Vivendi, da Endemol pela
- , desde j, muito difcil predizer qual h de ser a acolhida que o Telefnica), segundo um modelo em que os contedos, previamente
grande pblico dedicar a estes "novos livros", porm os sintomas adquiridos por grandes grupos de multimdia, passam a ser um mero
so muito significativos, no que se refere aos investimentos em libi, um simples pretexto para atrair novos assinantes - e mais
produo e distribuio. Todas as livrarias on-line, at agora dedica- publicidade - para seus servios de telemtica que geram o verdadei-
das a comercializar livros tradicionais, esto abrindo, em seus cat- ro negcio. Se isto chega a acontecer, que novos modos de remune-
logos, sees de e-books ou e-contedos, geralmente combinados rao ao autor seriam convenientes desenvolver a fim de promover
com a possibilidade de obter um exemplar impresso e personalizado, a criao de cultura e a autoria intelectual?
conforme a demanda. (As Edies UNESCO lanaro tambm, no Ningum sabe ainda se estes novos desenvolvimentos chegaro a
prximo outono, os primeiros e-books em sua web, ttulos que j no configurar a nova fisionomia do livro no sculo XXI, ou se, pelo
existiro mais em suporte papel... questo de economizar custos de contrrio, acabaro logo no museu das tecnologias, como tantos outros
produo e de armazenamento, alm de fazer um teste, a partir da gadgets. impossvel adiantar se as crianas em idade escolar chegaro
resposta de nossos leitores) a substituir suas pesadas mochilas por uma pequena quinquilharia
Cabe, sem dvida, perguntar se a eventual generalizao do e-book eletrnica e muito menos qual possa ser o impacto destas novas tecno-
no sculo XXI ser favorvel ou no diversidade cultural e lings- logias no processo da aprendizagem. O que, sim, sabemos que, nos
tica; se sua produo, em larga escala, ir contribuir para a democra- pases industrializados, faz muito tempo, as crianas no aprendem mais
tizao da cultura ou ao surgimento de novo elitismo; se, tendo em a tabuada, porque a calculadora eletrnica ganhou a parada, contra os
vista o desnvel social entre ricos e pobres, o livro convencional professores da velha escola. E por isso normal que os editores de livros
ver-se- confinado em cobrir as necessidades de grupos sociais mais didticos comecem a inquietar-se seriamente em face do anncio da
desfavorecidos, ou se, pelo contrrio, se converter num objeto de chegada em massa de tais competidores, combinada, alm do mais, com
luxo para colecionadores; se os e-books tero como pressuposto o o sacrifcio do preo nico do livro, no altar do liberalismo econmico,
fim da censura ou, qui, o princpio de nova e mais perversa com o beneplcito dos sofridos chefes de famlia.
"censura de mercado eletrnico"... mas tambm o que vai ser da
preservao do patrimnio literrio do futuro, despojado de seu O impacto sobre os contedos ou como declinar o "global"
suporte material.
Por outro lado, os problemas mais srios em relao aos contedos sabido que as edies de livros didticos constituem, em todos
que se oferecem na Internet se referem fidelidade, permanncia os pases, o segmento mais poderoso do setor editorial e como os
e responsabilidade da mensagem ou do contedo. grandes grupos editoriais desenvolveram-se, quase sempre, em torno
Ligada a esta responsabilidade, encontra-se a questo do direito de livros de textos didticos. Se este segmento se fragiliza, seus
autoral, das dificuldades tecnolgicas para garantir sua proteo, em efeitos logo se faro sentir noutras linhas editoriais de maior prest-
ambiente digital, e da resistncia do pblico em pagar pelos conte- gio, mas de menor rentabilidade. Esta indesejvel, porm possvel,
dos (a soluo a que se chegue com o caso "Napster", originrio do debilidade pode tambm acentuar-se, caso o paradigma "King" seja
domnio musical, tambm relevante a esse respeito). Talvez a to seguido por outros autores de xito, cujas obras, de alta rentabi-
lidade econmica, esto, na realidade, financiando indiretamente mento do leitor no processo cognitivo. Sem que se perceba, o proces-
muitas outras obras de difcil venda - experimentalismos literrios, so da aprendizagem est passando do discurso linear, caracterstico
novos gneros, debate de idias, etc. - que s interessam a pblicos do texto escrito, para a percepo simultnea, geralmente adornados
reduzidos . Eis o primeiro impacto possvel sobre os contedos. com imagens, que se apresentam numa tela, por meio de mltiplas
Um movimento, no entanto, subterrneo de "editores inde- janelas. Esta nova forma de apreenso de mensagem algo mais do
pendentes" ou alternativos, que apostam decididamente na edio que um mtodo; uma nova atitude e novo modo de concatenar o
tradicional e sua misso cultural, est emergindo e conta com toda pensamento, que afeta, de mais a mais, os mecanismos da memria.
nossa simpatia. Em junho passado, uma reunio convocada pela Com efeito, a tcnica da leitura exige aprendizado metdico. No se
UNESCO, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a OEA trata tanto de aprender a decifrar um cdigo, mas de penetrar o sentido
promoveu estudos, em Gijn, sobre esta particular problemtica, no de um texto, de exercitar a memria e a reflexo para captar todos os
contexto da to oblqua e inevitvel globalizao. Trata-se de editores seus matizes. Isto conduz ao desenvolvimento da anlise crtica e
por vocao que cultuam seu capital simblico, no dependem de exaltao de comparar o que est escrito com a prpria vivncia
grandes conglomerados e, por isso, conseguem manter a autonomia de (sempre digo que no h nada mais interativo do que ler e, contra os
suas decises editoriais, o que, unida a uma certa concepo de quali- que opinam que "uma imagem vale mais que mil palavras", sustento
dade, lhes permite atingir altos nveis de compromisso com a cultura. que "uma palavra vale mais que mil imagens"). Tudo isto possvel
Sua independncia econmica - ainda que, de modo geral, precria, j graas pacincia gregria das palavras, que se alinham umas atrs das
que este tipo de edio o oposto da busca compulsiva pelo best-seller outras, e fidedignidade mensagem que, embebida no papel, se deixa
- sua vocao e rigor levam-nos a resistir banalizao e padronizao ir e vir, se deixa folhear, decompor-se e recompor-se, gramatical e
do "produto editorial', concebido pelos grandes grupos apenas em funo filosoficamente.
da demanda e da rentabilidade, constituindo o ltimo baluarte do escritor Ler uma disciplina relacionada com o tempo, porque requer
de temas de transcendncia, de anlises que recusam o facilitrio e das prolongado esforo de concentrao; porm sabemos que o tempo ,
expresses culturais portadoras de enfoques pouco convencionais. precisamente, o recurso mais escasso em nossa sociedade. A tela,
Sem dvida, sem uma decisiva poltica de incentivo, por parte dos pelo contrrio, qualquer tela, serve mais para mostrar imagens e, no
poderes pblicos, estes editores, prontos a oferecer resistncia ao mximo, textos curtos que no exigem esforo de compreenso, mas,
"comercialmente correto", em particular no campo da fico, da simplesmente, reconhecimento e receptividade. A mensagem na tela
poesia e do ensaio, podem ser considerados "os ltimos dos moica- apresenta-se como algo evidente que no requer fundamento racional
nos", como uma espcie rara em vias de extino. Se se deseja evitar nem anlise dos antecedentes, que - por outro lado - no dispe de
o risco da monocultura e do pensamento nico, necessrio avaliar, tempo para se tornar real. Da a ruptura entre o livro e a tela, entre o
detalhadamente, o potencial estratgico que este movimento editorial esprito linear do discurso escrito e a percepo "matizada", simul-
alternativo oferece, a fim de restaurar o equilbrio entre a importncia tnea e rpida do multimdia por tela interposta.
atribuda ao significado e aquela concedida comercializao desse A ao simultnea da tela (televiso e computador que, ademais,
objeto de dupla face - simblica e econmica - que chamamos livro. se anunciam em convergncia, na banda larga que nos prometem para
2005), a busca do mnimo esforo e a escassez crnica de tempo
Texto versus "zapping": o impacto sobre o intelecto podem fazer estragos na memria e na capacidade de anlise das
geraes mais jovens, sobre o qu preciso comear a refletir. No
Mas no quero, nem posso encerrar esta interveno sem mencionar, se trata, de minha parte, de satanizar as novas tecnologias, cujas
ainda que brevemente, o impacto das novas tecnologias no comporta- vantagens aprecio profundamente e cujos benefcios aproveito o mais
que posso. Creio, isto sim, que preciso comear a ensinar/aprender
uma gesto saudvel dos recursos informatizados e, desde j, insistir na
importncia fundamental da leitura linear.
Nossos no to remotos bisavs s podiam deslocar-se por terra a
p ou a cavalo, isto antes da inveno da bicicleta. A generalizao
do automvel, do nibus, do trem e do avio , historicamente,
recente. Sem dvida, o caminhar continua-se praticando com a fina-
lidade de cobrir pequenas distncias; montar a cavalo uma prtica O LIVRO E A INVENO DA MODERNIDADE1
desportiva cada dia mais apreciada; a bicicleta voltou moda por
razes ecolgicas e, para se livrar do excesso de trfego, os autom- CLAUDIUS BEZERRA GOMES WADDINGTON
veis so mais populares, mas, s vezes, o nibus mais prtico; as
vantagens do trem so cada dia mais evidentes e o avio acabou Para Franco Portella
consagrado como o transporte adequado para as grandes distncias.
Em nenhum momento, o setor aeronutico pretendeu substituir todos
os outros, at o limite de fazer o ser humano esquecer que, em O livro como lugar de resistncia do pensamento
dispondo de pernas, para poder andar.
Do mesmo modo, superado o "efeito novidade", haver de se Desmedido e estranho o poder que as elites conservadoras da
aprender a utilizar, de forma racional e combinada, os diversos Europa de quinhentos e seiscentos atriburam ao livro. Justa ou
suportes do conhecimento disponvel: livros, jornais, revistas, tele- injustamente? A indagao persiste. O fato que pessoas, em
viso, Internet, e-books e o que mais se produza, porque cada um nmero expressivo, foram presas, torturadas e mortas pela sim-
deles desempenha um papel e necessrio que todos estes suportes ples posse de livros considerados proibidos. Qiê diria escrev-
coexistam e sobrevivam para alijar de nossas sociedades o risco da los, imprimi-los ou comercializ-los? Sintoma;icamente, na auro-
amnsia e da anestesia e dar lugar a um futuro que respeite a ra da modernidade, o livro, seu principal agente de transformao,
diversidade cultural, onde a liberdade de escolha e o desenvolvimen- era considerado tabu. Todo aquele que se aproximava dele, fosse
to do pensamento crtico, bases do pluralismo democrtico, perma- leitor, escritor, editor, livreiro, todos colocavam a vida em risco.
neam garantidos; porm, sobretudo, para assegurar a cada um dos Estranha modernidade, capaz de incriminar uma pessoa pela sim-
indivduos que compe nossas sociedades um futuro com memria, ples posse ou leitura, sem aferir sua concordncia ou discordncia
entendimento e vontade que so, precisamente, as faculdades da com o que foi lido.
alma. Superestimao do poder revolucionrio do livro, menospre-
zando a inrcia que entrelaa a trama social, das esferas de
(Traduo do original espanhol por Carlos Seplveda) produo ao espao cultural? Nem tanto. Ao proporcionar em
ritmo, penetrao social e qualidade, ento inimaginveis, o aces-
so ao livro, a inveno da imprensa sublevou a intelectualidade e
as autoridades religiosas, polticas e educacionais. O que o livro
no transformou, abalou at as entranhas; nada permaneceu como
antes. Contudo, a reao foi to violenta quanto a ameaa de perda
de poder. Em pouco tempo a reincidncia de velhas prticas de
Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 125/134, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 135/154, jul.-set, 2000 135
134
controle e censura permitiu o retorno de um obscurantismo em nada rimentados. A insustentvel asfixia do ambiente acadmico, a que
inferior ao medievo. Nos habituamos a pensar as trevas do esprito conduziu a excessiva especializao dos campos do saber, no
como uma exclusividade medieva, da mesma forma que pensamos a poderia perdurar por muito tempo. Enquanto soobram os siste-
iluminao como um privilgio moderno. Esta viso dicotmica impe- mas fechados de pensamento e o relativismo avana, a civilizao
de-nos de perceber, tanto a busca de esclarecimento que germina de do livro chamada a depor. Ela intimada a declarar as causas
Bocio a Nicolau de Cusa, quanto a quota de sombra que atravessa a que abraou e as alianas que selou. Desde a aurora da moderni-
modernidade, da Noite de So Bartolomeu a Auschwitz, passando pelo dade, a secularizao foi sustentada pela civilizao do livro
lento extermnio das populaes amerndias. como condio para a liberdade, ao mesmo tempo em que a
Se as pessoas no so mais incriminadas pela leitura, posse, aliana com as elites intelectuais imprimiu-lhe uma inflexo
escrita, edio ou comrcio do livro, ou pelo menos no freqen- paternalista utpica da qual ela jamais logrou se desvencilhar.
temente, ser que a crena em seu poder transformador diminuiu? Agora que a baixa modernidade lana um severo olhar de descon-
No faria este fenmeno parte da Entzauberung do livro? A fiana sobre os grandes valores da modernidade plena, o livro
modernidade tardia parece ter ultrapassado sua dessacralizao, surge destitudo de seus poderes insurrecionrios. Talvez agora,
hoje ela se confronta com a sua banalizao: qualquer um escreve, despido das iluses em que se viu envolto por tantos anos, ele
qualquer um publica. Impossvel conter a indiferena que toma consiga levar a cabo a tarefa de emancipao que sua por opo,
conta tanto de intelectuais quanto dos derradeiros remanescentes direito e vocao. Emancipao que a renascena desencadeou e
do patrulhamento ideolgico organizado. A ascendncia poltico- o iluminismo resgatou e reformulou de forma mais consistente. O
social e cultural do livro se rarefez nas ltimas dcadas, a ponto projeto emancipador do livro persiste, confirmando sua funo de
de podermos dizer que o intelectual, sobretudo o pensador, perdeu resistncia unidimensionalizao da existncia. Por isso, seria
irreversivelmente sua "aura", tomando emprestado o termo con- proveitoso revisitar o momento em que o livro assumiu o seu
sagrado de Benjamin. Para conferir, suficiente atentar para compromisso cidado. Acordo firmado entre o livro e a cidade
como os intelectuais vm sendo preteridos pelos chamados "for- visando reinveno da vida.
madores de opinio". A cena tardo moderna no reconhece mais
as credenciais dos intelectuais para diagnosticar as mazelas da O desmantelamento do universo de certezas
civilizao, nem para fazer a prospeco das mutaes sociais. A
no ser que eles sustentem discursos que corroborem os interesses A incorporao pelo ocidente de trs inovaes tecnolgicas
das megacorporaes financeiras, do capital voltil e sem ptria, esteve na base das revolues renascentistas: a plvora, o com-
e no questionem a injustia social embutida no processo de passo e a imprensa. Enquanto a primeira derrubava as muralhas
globalizao. feudais, o segundo desbravava os caminhos martimos. Ambas,
Mas cumpre indagar se este fenmeno no estaria igualmente somando violncia e temeridade, supervalorizaram a ao e, com
contaminado pelo descrdito em que caiu o edifcio de verdades, o auxlio da bssola, catapultaram o expansionismo e o colonia-
laboriosamente erigido pela metafsica ocidental, e de que o livro lismo europeus. Liberaram e ampliaram os espaos fsicos e
foi o incansvel arauto e o intrpido paladino. O espectro da crise imaginrios para a nova modalidade de existncia que a moderni-
que corri os modelos clssicos de pensamento projeta-se sobre dade ia forjando. Por mais citadina que fosse, porm, esta nova
o livro. Talvez, a queda de prestgio do livro corresponda busca forma de viver em sociedade no se mostrou apta a conviver com
de uma abertura do pensamento, enquanto novas modalidades de o no-europeu. Era antes uma ampliao, sem precedentes, de um
exerccio crtico e de reformulao do conhecimento so expe- ideal de existncia profundamente arraigado aos valores oci-
dentais, europeus e cristos, pouco ou nada flexvel a uma abertura mveis, no modificaram apenas a produo do livro. Eles revolu-
para a diferena. Quando, graas s aventuras martimas, a mo- cionaram a forma do ocidente se comunicar.
dernidade europia deparou-se com um horizonte desconcertante Para se ter uma idia do impacto do invento, estima-se que o
de diferenas, deixou escapar a oportunidade de estabelecer mo- montante dos manuscritos produzidos durante os mil anos de
dalidades de convvio com o outro, preferindo as variadas estra- Idade Mdia no tenha ultrapassado algumas dezenas de milhares,
tgias de dominao, em defesa da f, da coroa e da glria para um leque comparativamente limitado de ttulos. Enquanto,
mundana. em apenas cinqenta anos da era gutenberguiana, at 1500, cerca
Das trs inovaes, foi a imprensa que trouxe o fermento da de dez ou quinze mil ttulos diferentes, estimando-se a tiragem
transformao do olhar e, sem ela, as profundas mudanas que se mdia a quinhentos exemplares, em cerca de trinta mil impresses,
desencadearam em todos os campos do conhecimento seriam produziram uns vinte milhes de exemplares!3 Para o sculo XVI,
impensveis, e a convivncia um desiderato ainda por muito imagina-se que cento e cinqenta ou duzentas mil impresses,
tempo inexeqvel. Enquanto a plvora, o compasso e a bsso- estimando-se a tiragem mdia de mil exemplares, elevaram a
la foram cedo arregimentados para as escaramuas do colonia- produo do livro surpreendente cifra de duzentos milhes de
lismo, implicando a neutralizao, seno a subjugao do outro, exemplares!4
a disseminao do livro desencadeou uma problematizao do A intelectualidade europia foi tomada por uma enorme eufo-
cnone que a modernidade ia erigindo, facultando a instaurao ria, gerada pelo crescimento sem precedentes do patrimnio cul-
de uma atmosfera propcia ao dilogo e, portanto, auscultao tural impresso disponvel e circulante. No apenas a noo de
da voz discordante do outro. limite parecia evaporar do campo do saber, como tambm pareciam
Ultimamente a tendncia tem sido de minimizar a importncia infinitas as possibilidades de transformao que esse saber recm-
da contribuio de Gutenberg.2 Contudo, se o invento propria- conquistado poderia operar na sociedade moderna. Um dos emble-
mente dito pode eventualmente no ser dele, ou nem todo os mas mais eloqentes desse aumento descomunal de informaes e de
aspectos tcnicos envolvidos, o certo que foi Gutenberg quem conhecimento a obra ciclpica de Rabelais. Seus gigantes encenam
primeiro realizou o que a juno de todas as inovaes parciais a passagem do mundo medievo para o moderno. Com Thubal Holo-
na fabricao do livro poderia representar. Efetivamente, foi a ferne e Jobelin Brid, satiriza os velhos mtodos pedaggicos, sen-
soma destas mudanas na fabricao do livro com as novas pers- tenciando:
pectivas que o humanismo descortinava no campo do saber que
provocou uma mudana radical na relao que a cultura ocidental Mieulx luy vauldroit rien n'aprende que telz livres soulz
mantinha com o livro. Propulsado pela inovao gutenberguiana, telz precepteurs aprendre, car leur savoir n'estoit que
besterie et leur sapience n'estoit que moufles.5
o livro foi deixando a rbita da perpetuao do poder e do ente-
souramento do saber, para disseminar a contestao ideolgica e A Sorbonne, como instituio, e a teologia, como campo do
o pensamento questionador, atuando iconoclasticamente em todas saber, so os alvos preferidos de sua crtica implacvel. Janotus
as esferas sociais em que penetrou. de Bragmardo, da faculdade de teologia de Paris, encarna a de-
Quando Gutenberg comeou sua incansvel busca, o ocidente j crepitude de um saber extemporneo, agora visto como uma
dominava a fabricao do papel. A tcnica da pintura a leo, que debilidade do esprito. Quando Ponocrates assume a educao de
vinha sendo desenvolvida pela escola flamenga j h muitos anos, Gargantua, depois de este ter-lhe mostrado como seus antigos
forneceria a tinta adequada impresso. Johannes Gutenberg, preceptores o instruam e recitado a longa lista de jogos alienan-
Johann Fust e Peter Schffer, ao conceberem a prensa de tipos tes, alm de uma total mudana de hbitos e de currculo,
prescreve-lhe "elebore de Anticyre", droga usada no tratamento (Pierre Tartaret, telogo da Sorbonne e comentarista de Aristte-
da loucura. 6 Porm, mais eficaz que a terapia qumica, o poder les) t Q De Optimitate Triparum, de Beda (Noel Beda, professor
regenerador do saber pertinente vida; por isso no faltam, na no Colgio de Montaigu, um dos maiores adversrios do huma-
utopia thelemita, "ls belles grandes librairies, en Grec, Latin, nismo e da Reforma) 11 a modernidade desconsidera o que a Idade
Hebreu, Franoys, Tuscan et Hespaignol, ..."7 Se a poca de Mdia produzira de relevante. Mal principia a tarefa bsica de
Gargantua caracteriza-se ainda por episdios que remetem para separar o joio do trigo e j d a questo por encerrada. A inveno
um horizonte semifeudal, como a guerra pricocolina, a de Panta- da imprensa torna concebvel o "abme de science", mas desnor-
gruel entusiasticamente renascentista, facultando a Gargantua teia a intelectualidade renascente com um dilvio de livros. Tendo
afirmar, na clebre carta que envia a Pantagruel: que nadar por um revolto oceano de impressos, muitos leitores
naufragam, sem conseguir se orientar na avalancha de novos
Maintenant tout disciplines sont restitues, ls langues ttulos, surpreendidos pela torrente de opinies divergentes e
instaures - Grecque, [...] tout l monde est plein de gens contraditrias, em que so conclamados a tomar partido. Neste
savans, de precepteurs trs doctes, de librairies trs amples, momento, a modernidade deixa-se seduzir pela excludente novi-
qu'il m'est advis que, ny au temps de Platon, ny de Ciceron,
ny de Papinian, n'estoit telle commodit d'estude qu'on y dade do antigo, sem preocupar-se em consolidar critrios de
veoit raaintenant, ...8 relevncia, sem aferir-lhe a pertinncia para a vida, sem tentar
reelaborar seu relacionamento com a tradio em outro patamar.
Este quadro extremamente positivo e auspicioso gera expecta- No h como camuflar o deslumbramento que toma conta da
tivas e anseios que exorbitam a dimenso humana. Na mesma modernidade renascente, que, por outro lado, revela-se desprepa-
carta, Gargantua exprime o desejo humanista de um saber enci- rada para as conseqncias das inovaes tecnolgicas de que se
clopdico que se inicia pelas letras apropriava, promovia ou patrocinava, vendo-se posteriormente
obrigada a adotar medidas de fora para conter os efeitos que no
Tentens et veulx que tu aprenes ls langues parfaictement: previra.
premierement Ia Grecque, comme l veult Quintilian; A associao do papel, da tinta adequada impresso e da
secondement, Ia Latine; puis 1'Hebraique pour ls sainctes
letres, et Ia Chaldacque et Arabicque pareillement"9 prensa de tipos mveis no resultou apenas na acelerao da
produo - o que j representava um avano significativo -, mas
no intuito de trilhar todos os caminhos do conhecimento - para igualmente colocou o livro ao alcance do poder aquisitivo de um
nunca mais ter fim. Ao afirmar "que je voy un abysme de scien- nmero vertiginosamente crescente de leitores. O saber passou
ce", Gargantua assume a desmedida sede de conhecimento que a circular na sociedade, escapando ao controle e ao privilgio
anima a aurora da modernidade, mas, ao mesmo tempo, trai a quase total da Igreja e da nobreza. Com a inveno da imprensa,
incapacidade ou impossibilidade de saciar essa voracidade sobre- a literatura, a histria, a filosofia e a cincia da antigidade
humana. clssica, redescobertas graas ao empenho da elite humanista,
Quando Rabelais impregna a descrio da "Librairie de Saint comearam, primeiro, a circular intensamente pelas cortes, para,
Victor", clebre biblioteca teolgica parisiense,10 com sua ironia finalmente, penetrar nas mais variadas classes sociais, repercutin-
mordaz, torna patente o desprezo a que a intelectualidade renas- do nas formas mais diversas e fundamentando percepes e inter-
cente sentencia a tradio medieva. E junto com a Ars honeste pretaes, seno Opostas, discordantes. Especialmente nas cortes
petandi in societate de M. Ortuinum (Hardouin, de Cologne, humanistas, a prtica, ento de regra, da leitura em voz alta
adversrio de Erasmo), o De modo cacandi, de Tartaretus multiplicava pelo nmero de assistentes a existncia de um
nico exemplar. Os comentrios e debates que acompanhavam ou dora, despontava no cenrio cultural renascente a figura do indi-
seguiam estas leituras eram freqentemente retomados para a vduo, que comeava a se rebelar contra a ordem do saber insti-
elaborao de cartas e outras obras, facultando a irradiao do tuda. A intimidade com a tradio, que a proliferao do livro
livro para alm do recinto do salo. Incontveis vezes, tambm, facultava e os deslizamentos que a leitura silenciosa e privada
os debates prosseguiam para alm da corte, ganhando a praa proporcionava propiciaram a ruptura da interpretao com os
pblica, a academia, as reunies legislativas, os crculos delibe- cnones exegticos institucionalizados. O humanismo lograr
rativos d polis e at a arredia universidade. A leitura em voz alta romper com a percepo de mundo instalada, investindo o indiv-
fez o livro irradiar da corte humanista para toda a sociedade, duo de poderes sobre-humanos, a fim de viabilizar-lhe o sonho de
fazendo da cultura letrada coisa viva, dinmica, e granjeando-lhe escapar tutela intelectual e ao monitoramento do pensamento.
projeo social que raras vezes na histria do ocidente poder A erudio revelou-se uma das mais eficazes reservas de contes-
igualar. tao e crtica, fomentando a emancipao ao instruir os argumen-
Com a constituio das primeiras casas editoriais, baseadas no tos da dissidncia. Este percurso em que o homem arriscava a
suporte tecnolgico gutenberguiano, furou-se o monoplio da pro- prpria vida, terrena e eterna, e que ia da criatura que reduplica
duo do livro retido pelos mosteiros e universidades, estas sob a o criado criatura capaz de criao, e que no escapou s lentes
vigilante jurisdio do papado ou dos reis. At ento a produo do percucientes do Cassirer de Indivduo e Cosmos,12 descrevia um
livro era meticulosamente calibrada para o atendimento preciso das trajeto emancipador que nosso tempo perdeu a capacidade de avaliar.
demandas do sistema educativo primrio, intermedirio e superior, A modernidade tardia revela-se sempre pronta a atacar a miragem do
ou ento as encomendas da nobreza ou de algum outro mosteiro. A homem, do indivduo, do sujeito, obliterando que, sem passar por ele,
produo no excedia demanda e tinha destino certo e monitora- a modernidade no alcanaria a secularizao do saber. E moderni-
do. No havia espao para o trabalho intelectual oriundo da inicia- dade sem secularizao do saber j no modernidade. A relevncia
tiva do indivduo, apenas para o exerccio coletivo, prescrito e histrica desta entidade, na guinada do pensamento moderno, deveria
tutelado, de um saber reiterativo. Muito menos espao ainda era ser reavaliada pela baixa modernidade. Forjado ou no, o indivduo
conferido erudio, que era tida como essencialmente perniciosa, foi um dos principais agentes da transformao do pensamento,
fosse ela religiosa ou no. Era institucionalmente desestimulada, promovida pela modernidade. Graas a esta entidade, que passou a
pois trazia tona uma multiplicidade perturbadora de pontos de minar e a corroer as instituies e a mentalidade dominantes, alavan-
vista, perspectivas insuspeitadas e desconcertantes de abordagem, cando as revolues renascentistas com um p na fogueira e outro no
a ameaadora relativizao do saber. Foi cerceada ao longo do cadafalso, o acesso ao conhecimento deixaria gradativamente de
milnio medievo, mas agora a situao comeava a escapar ao estar condicionado a uma adeso ideolgica e as vozes discordantes
controle. se fariam cada vez mais ouvir.
Se ainda era por demais cedo falar em secularizao do conhe- No h como discordar: na manh seguinte conquista gutenber-
cimento, j se podia constatar sua disponibilizao e circulao guiana, o livro permanecia sob o domnio de uma elite de editores-
em propores e ritmo at ento inconcebveis. Este foi um pri- letrados e a erudio ainda restrita aos muros monacais ou senhoriais.
meiro passo; o segundo seria a mudana na forma de o homem Contudo, Hans Amerbach, Froben, Josse Bade no eram apenas
se relacionar com o conhecimento, com a tradio. Neste sen- empresrios do livro, pois trouxeram para o ramo editorial todo um
tido, enquanto a secularizao no chegava, mas preparando- projeto de propagao do saber fortemente laicizante e inspirado nos
lhe o caminho, assistimos ao advento do indivduo. Se, por um melhores ideais humanistas. Mas quem pioneiramente realizou o
lado, a classe intelectual se mantinha, em boa parte, conserva- ideal do impressor humanista de que fala Febvre foi Aldo Manuzio.13
Em Ferrara, ao aprender o grego com Guarini, Aldo bebeu de fonte bibliotecas pblicas e leigas, um nmero crescente de letrados e
pura a essncia do pensamento humanista em sua vertente mais radical. intelectuais de confisses religiosas e tendncias filosficas diferen-,
Por ocasio da chegada dos sbios gregos refugiados em Veneza, teve tes ganhou acesso imensa tradio do saber ocidental que jazia
a idia de fundar uma oficina tipogrfica que, em pouco tempo, deu entesourada e morta nas penumbras das bibliotecas monacais.
origem Academia Aldina. Por l passaram Erasmo, Bembo, Geroni- Comeou a se multiplicar, outrossim, uma modalidade de bi-
mo Aleandro, entre outros, escolhendo e discutindo os textos a serem blioteca cuja disseminao s se tornou possvel graas inven-
impressos e os manuscritos que serviriam de base s edies. Mandou o da imprensa: a biblioteca particular dos humanistas. A multi-
cortar caracteres gregos e latinos de distinta elegncia para suas edies plicao deste espao foi fundamental para garantir a inde-
de Aristteles, Aristfanes, Tucdides, Tecrito, Sfocles, Herdoto, pendncia frente s instituies e a continuidade do trabalho, pois
Xenofonte, Demstenes e Plato, entre os gregos; Virglio, Horcio, a prtica mais comum de controle e de censura, e a primeira de
Ovdio, Juvenal, entre os latinos, e Dante, Petrarca, Boccaccio e que se lanava mo, residia em vetar o acesso biblioteca mona-
Erasmo, entre os modernos. Tudo com apuro filolgico inteiramente cal, palaciana, real ou universitria. A tradio, uma vez exuma-
desconhecido para a poca. O que tornou realmente revolucionria a da, foi alvo de uma seleo: o filo medievo, salvo raras excees,
atuao de Aldo na imprensa renascentista, porm, foi sua idia de caiu em ostracismo, enquanto a antigidade clssica recm-res-
oferecer tudo isto em edies "de bolso", extremamente acessveis, gatada recobrou velozmente a subversiva seiva e o vigor contest-
e, para manter o preo o mais baixo possvel, fez tiragens de mil ador. A erudio humanista fez reviver a polifonia do saber e
exemplares, ao invs dos duzentos e cinqenta exemplares ento desencadeou a crtica da modernidade pela tradio. Eis por que,
padro. O exemplo de Aldo foi imediatamente adotado pelos outros dentro em breve, a primeira modernidade, carecendo de argumen-
grandes impressores renascentistas, como Josse Bade, Sbastien tos mais consistentes, incapacitada de sustentar o debate e repli-
Gryphe e os Estienne, que asseguraram a continuidade da revoluo car as contestaes movidas pela tradio, optaria pelo silencia-
laicizadora, mantendo o formato compacto, barato e com o melhor mento desta, recorrendo ao estratagema do descarte da voz disso-
contedo que havia para se oferecer ao pblico. nante. Ela foi acometida no tanto de amnsia como de precon-
Sbastien Gryphe exemplifica o esprito que anima, nessa po- ceito. Foi a que ela enveredou pelo discurso monolgico, que a
ca, os livreiros e impressores humanistas. Enquanto livreiro, foi fascinaria dentro em breve, e que daria origem a um exerccio
o grande distribuidor das edies aldinas; como impressor, tendo recluso e sistemtico do pensamento, desprezando o outro e o
comeado a imprimir em gtico, logo adquiriu caracteres itlicos espao pblico, na impassvel frieza de suas articulaes. A mo-
e romanos, adotando como linha editorial os clssicos latinos e as dernidade descurou de que no poderia ir muito longe ignorando
tradues latinas dos clssicos gregos, tudo no compacto e aces- o outro e a polis. No por acaso ela veio a se constituir nesta srie
svel formato aldino. No menosprezou os modernos, tendo edi- de equvocos e tropeos, inaugurada pelas guerras de religio e
tado Bud, Erasmo, Poliziano, Jules-Csar Scaliger, Dolet e os pela Contra-reforma, protagonizadas pela intolerncia mais infle-
trabalhos cientficos de Rabelais. Como humanista, apesar de no xvel e pela violncia mais incivilizada.
legar obra escrita, reunia em sua casa intelectuais e eruditos,
propiciando fecunda troca de idias e opinies que imprimiu ao O papel do livro no processo de laicizao
humanismo lions inflexo especialssima e distinta da pari- do conhecimento e de consolidao da cidade moderna
siense, que permaneceu sob o espectro da Sorbonne.
No apenas a produo se descentrou, como tambm a guarda Enquanto a imprensa cuidou de saciar a voracidade leitora do
e o acesso cultura impressa. Com a constituio das primeiras pblico emergente com matria religiosa dentro da melhor ortodo-
xia, a imprensa foi saudada pela Igreja. Alm da Bblia, em que se a qual o movimento jamais teria alcanado a fora de presso sobre
notabilizaram Gutenberg, Fust e Schffer, os "Padres da Igreja" cons- as instncias deliberativas do poder que conquistou. No se trata de
tituam o carro-chefe da linha editorial de alguns dos mais clebres minimizar a importncia do sedimento popular e eminentemente
impressores e editores humanistas. Amerbach publicou Santo Ambr- campesino que se encontra na base do movimento, mas de sublinhar
sio, Santo Agostinho, So Jernimo e, para tanto, contou com a nata que, se as vrias ondas contestadoras no tivessem confludo para a
da intelectualidade da poca: Reuchlin, Beatus Rhenanus, entre outros cidade e l constitudo seus porta-vozes e interlocutores, os conflitos
dos maiores eruditos da Alemanha, cooperaram neste trabalho. no teriam passado de escaramuas cedo ou tarde debelveis, com
Ficou clebre o empenho de Erasmo em depurar o texto dos mais mais ou menos violncia. O fenmeno que se deu, porm, foi de
antigos pensadores cristos, Orgenes, Cipriano, Hilrio e Jerni- natureza bem diversa. Ao sedimento campesino associaram-se, por
mo, mas foi, nas sucessivas edies que deu do Novo Testamento motivaes diversas, os mais variados segmentos sociais, que foram
grego, que desdobrou o melhor de seu labor. A Igreja teve tudo para consolidando sua adeso atravs da campanha que os reformistas
festejar o maior best-seller do sculo XV: De Imitatione Christi, deslancharam no corao da cidade, fazendo uso macio da
que teve uma centena de edies, entre 1471 e 1500. Mas, quando imprensa. Era a primeira vez, na histria do ocidente, que uma
Erasmo se torna o maior sucesso de livraria, com setenta e duas reivindicao social atingia estas propores graas instiga-
edies, entre 1500 e 1525, dos seus Adgios e sessenta edies o do impresso, que, em pouqussimas ocasies, foi to social-
para os seus Colquios em apenas oito anos, entre 1518 e 1526, a mente participativo e assumira to inteiramente seu compromisso
Igreja fica alarmada. Quando Lutero assume o primeiro lugar na cidado.
lista dos mais vendidos, procurados e debatidos, ela monta cerco A agitao scio-poltica alastrou-se de tal maneira que acabou
imprensa. por exigir uma tomada de posio de todos os atores sociais - at
Em pouco mais de meio sculo, a imprensa havia esgotado o rachar irremediavelmente a cpula do poder. A Reforma imps uma
estoque de livros antigos a serem publicados e se voltava cada vez transformao na forma de se fundamentar, organizar, impor e
mais para os modernos, religiosos ou leigos, publicando avidamen- manter uma estrutura de poder. E isto, no s pelas altssimas
te Erasmo, Lutero, Rabelais, cujos textos obtinham repercusso quotas de poder que transferiu da aristocracia e da Igreja para a
imediata e causavam impacto de propores inusitadas. A Igreja, burguesia, mas pela forma com que colocou o poder em xeque, que
que jamais deixara de controlar a produo escrita europia, quer o interpelou e levantou pioneiramente a questo de sua legitimao.
retendo o monoplio da produo, guarda e acesso ao livro, quer At aqui, o Estado europeu logrou sufocar revoltas e revolues
atravs da censura, foi surpreendida, no apenas pelo contedo pelo massacre; com a Reforma, ele descobriu que no adiantava
contestador, mas igualmente, e talvez sobretudo, pela recepo matar, pois os sobreviventes retomavam a luta. E, mesmo que todos
destas obras no espao pblico. At aqui todo questionamento fora fossem dizimados, outro foco surgia e os conflitos renasciam ainda
minimizado ou neutralizado no espao privado do mosteiro. Agora, mais acirrados. A petio de princpios que a Reforma fez ao
porm, a interpelao circulava e sublevava a sociedade desde suas Estado europeu, inquirindo sobre as formas de sua legitimao,
bases, era bradada em praa pblica e impressa em volantes que foi a expresso mais contundente do ela emancipador que varreu
corriam pelas mos de uma populao cada vez maior de alfa- o sculo XVI. Isso ela o fez em sintonia com uma sociedade
betizados, leitora e participativa. que j no se deixava mais facilmente conduzir como massa
A velocidade e a intensidade de propagao do movimento de manobra. Essa massa, recm-alfabetizada e vida leitora,
contestador, inteiramente desconhecidas para a poca, bem como sedenta de emancipao, a elite, atnita, descobriu que pensa e
sua ampla penetrao social, tiveram como cenrio a cidade, sem que comea a ter opinio. Opinio poltica.
Havia comeado a se constituir o que Condorcet denominaria A partir de 1543, nenhum livro poderia ser impresso ou vendido
de "opinio pblica". 14 Guardadas as devidas propores com sem autorizao da Igreja. Em 1559 publicado o primeiro Index
o sculo XVIII, esta rede de intercmbio intelectual que a pro- Librorum Prohibitorum, listando boa parte da produo humanis-
liferao do impresso facultava e que viabilizou a cientistas, ta, Erasmo entre eles. Inmeros impressores foram perseguidos e
pensadores e letrados dos sculos XV e XVI tomar conhecimen- levados fogueira. A punio no era apenas pblica, era "exem-
to do trabalho uns dos outros, independentemente do respaldo plar" . Assumia aspectos ritualsticos em espetculos de fanatismo
institucional ainda francamente tradicionalista e reacionrio, raramente excedidos na histria do Ocidente. Robert Estienne
criou um ambiente receptor que interpelava abertamente a auto- teve que abandonar a Frana e refugiar-se na Sua, e Plantin, em
ritas instalada na universidade, na Igreja e na mentalidade da poca. Anturpia, para no serem supliciados como hereges. Segundo
Se ainda no nos lcito falar com Condorcet em um "tribunal da Mzeray, previa-se neste suplcio a purificao dos condenados
opinio pblica", cujos julgamentos so temidos por reis e juizes, "erguendo-os bem alto, com o auxlio de uma polia e de uma
podemos perceber nitidamente a tribuna das idias que surge ento corrente de ferro, deixando-os, em seguida, cair numa fornalha,
e que, na virada do sculo XVI, ria com o Erasmo da Moira o que se repetia diversas vezes". 15 Mas o caso mais eloqente de
Encomium, dos Adgia e Colloquia, satirizando a sociedade e a perseguio aos impressores humanistas o de tienne Dolet.
Igreja, mas que, com a deflagrao dos confrontos, cobrou-lhe uma A Sorbonne de h muito zelava pela boa doutrina das publica-
posio e o condenou por no tomar partido. es na Frana, tendo, reiteradas vezes, se pronunciado contra
O surgimento da opinio pblica distinguiu definitivamente a obras de esprito irreverente e contedo duvidoso como Panta-
cidade medieval da cidade moderna. A cidade medieval orbitava gruel. Ls horribles et espouentables faietz et prouesses du trs
o feudo, o castelo, o mosteiro ou a universidade. Constitua como renome Pantagruel Roy ds Dipsodes, publicado pela primeira
que a periferia, sem direito a voz, a voto ou veto. A nica opinio vez em Lyon, em 1532. No sem razo. Afinal, mestre Alcofribas
que contava era a da prpria elite, dos habitantes do espao recluso Nasier havia cometido a imprudncia de, entre inmeras outras
do centro. As diferenas internas que apareciam questionavam as ousadias, colocar como divisa da Abbaye de Theleme a mxi-
pessoas, no o sistema ou a ordem instituda. J a cidade moderna, ma: "Fay c que voudras". Esta imprudente profisso de f do
que principia descentrando o espao fsico, instaurando uma plura- livre pensamento fica patente, quando afirma dos thelemitas:
lidade de pontos de referncia com fundamentos diversos de poder; "toute leur vie estoit employe non par loix, statuz ou reigles,
que cria uma rede de comunicaes que irriga e oxigena o espao mais selon leur vouloir et franc arbiter" 16 e deve ter sido apenas
urbano, esta s se consolida em sua alteridade quando se constitui a gota dgua, no caso de um autor que no poupou stiras nem
uma opinio pblica sobre a rede de comunicao social que o ironias s instituies no poder e cuja irreverncia bem poderia
impresso engendra. A possibilidade do princpio democrtico mo- ter-lhe valido a fogueira num momento mais tenso. Este momento
derno surge deste espao de reflexo, de articulao, de questiona- no tardou.
mento, de "turbulncias fecundas", estruturado pelo impresso. Ele sobreveio, em 1534, ano de irreparveis reveses para a
Mas, uma vez restaurada a Inquisio, a tribuna das idias Igreja. Nele, Henrique VIII, contrariado pelo Papa no lhe haver
degenerou no Tribunal do Santo Ofcio e o poder de presso e de anulado o casamento infecundo com Catarina de Arago, rompe
reivindicao da opinio pblica enfraqueceu-se, tornando-se pra- com Roma. O episdio, a princpio particular, repercute nos assun-
ticamente irrelevante. A no ser nos casos em que uma delao tos de Estado. O rei apressa-se em apossar-se dos incontveis
fraudulenta levava o suposto infrator condenao, facultando a latifndios da Igreja na Inglaterra, confiscando-lhe as imensas
apropriao indbita do seu patrimnio. riquezas, e funda a Igreja Anglicana, de que se declara chefe. Roma,
148 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 135/154, jul.-set., 2000 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 135/154, jul.-set, 2000 149
alm de ter de amargar este prejuzo substancial, teve que apagar o fomentaram a riqueza de seus cidados, ao passo que os catlicos, a da
incndio provocado pela publicao, no mesmo ano, da Instituio da Igreja e a do Estado. Conquanto o dissenso campeasse sobre qualquer
Religio Crist, de Calvino, verdadeira bomba contra a supremacia outro tpico, houve consenso quanto relevncia da riqueza.
do dogma catlico. O Calvinismo empenhou-se em conciliar a mais Enquanto os projetos reformadores, fossem catlicos, lutera-
severa rigidez moral com o enriquecimento, afirmando, para con- nos ou calvinistas, seguiam seus virulentos caminhos, remen-
tentamento da burguesia, que a riqueza pessoal era sinal de proteo dando interesses financeiros com transformaes religiosas, a
divina. Curiosamente, os reformistas no pesaram o enriquecimen- velha cosmoviso medieva, que mutava sob o efeito das idias
to da Igreja Catlica pela mesma medida, tendo feito da contes- humanistas, ia-se dissolvendo, ao mesmo tempo que uma nova
tao do fausto do clero e da escandalosa venda de indulgncias cosmoviso se erigia dos seus escombros. As runas da antece-
uma de suas bandeiras. Graas a esta flexibilidade no trato com dente serviam de escora da que sucedia, ainda que provisria,
as coisas de Csar, o calvinismo aliviou o drama da conscincia mas de uma provisoriedade persistente, renitente, indesejada.
burguesa, desculpabilizando-a. Os calvinistas prosperaram pela Dessa convivncia forada com a diferena, talvez tenha nasci-
Europa sob diversos nomes: presbiterianos, na Esccia, puritanos, do o fantasma da pureza como uma formao reativa. 17
na Inglaterra, e huguenotes, na Frana. O mundo catlico, com- No h dvidas de que, entre os lugares privilegiados deste
balido pelos sucessivos golpes reformistas, teve que reagir. No convvio entre cosmovises, os mais eloqentes so os textos de
havia mais como diferir a sua prpria reforma e, neste mesmo ano Rabelais, Cervantes e Shakespeare. Atenhamo-nos, por questes
de 1534, surge em Roma a sua milcia da f, a Companhia de cronolgicas, ao texto rabelaisiano. Quando, neste mesmo ano de
Jesus. 1534, Rabelais publica, em Lyon, La vie trs horrifique du grand
Este foi ainda o ano da descoberta do Canad por Jacques Gargantua, onde a verve golirdica e o esprito da feira e do
Cartier, relanando o sonho de uma nova terra onde as relaes carnaval medievos fundem-se com o evangelismo e os ideais hu-
humanas seriam reinventadas sobre bases supostamente mais manistas, a miscigenao das cosmovises atinge seu clmax. O
equnimes, porm sob um crescente recrudescimento moral, alto grau de impureza do texto rabelaisiano inviabilizaria qualquer
religioso e cvico. A descoberta ou a conquista de novas terras dogmatismo, qualquer intransigncia e, exatamente por isso, foi
era invariavelmente percebida como a oportunidade de realiza- condenado tanto por Calvino quanto pela Sorbonne, porque ambas
o de um projeto utpico pela constituio de uma comunidade as faces tinham em comum a irresistvel compulso eugenia
isolada, onde uma faco se ressarciria da indesejada interpe- espiritual. A truculncia da Inquisio tornou explcita a opo da
lao da outra, se resguardaria do questionamento de suas Igreja por uma vivncia religiosa mediada, codificada e patrulhada,
idias, se precataria da rdua tarefa da autocrtica. que salvaguardasse a pureza do dogma catlico. Entre os reformis-
Por toda parte, a soluo encontrada pela modernidade para a tas, o fascnio pela primitiva religio crist, conquanto pregasse
convulso econmico-poltico-social-religiosa que ento sacudia uma comunicao direta com a divindade, no abria mo do
a Europa passava pela radicalizao dos partidos, religiosos ou cdigo severo e do controle frreo, ao mesmo tempo que
no, pela queda das quotas de tolerncia s diferenas, pelo traduzia a mesma perquirio da assepsia da crena. Atraves-
fortalecimento dos dispositivos de combate s divergncias de sando os percalos e os desentendimentos da f, a modernidade
qualquer natureza, pelo enrijecimento moral. A promoo do seria conduzida a optar por formas supostamente puras de experi-
convvio entre as diferenas no espao pblico recm-reconquis- mentao do existir e o exerccio do pensamento seria moldado por
tado preterida em favor do enfrentamento. Mas o reconhecimen- prticas excludentes onde reinaria soberana a razo, emancipada
to da importncia da riqueza uniu todas as faces. Os reformistas dos sentidos, ou os sentidos, libertos da razo. A primeira moder-
nidade caiu na armadilha metafsica, que previa, para o trabalho do tistas estimulavam, cedeu gradativamente lugar leitura silenciosa e
pensamento, o imperativo da opo excludente entre racionalismo ou introspectiva, que, posteriormente, facultaria o desenvolvimento da
empirismo. Silenciou a crise ctica do sculo XVI e a libertinagem defesa da liberdade de pensamento, com Voltaire, e da tolerncia, com
erudita do incio do sculo XVII. Kant. A cidade, que deveria ser o lugar por excelncia do dilogo
Quando o " Affaire ds placards" estoura na Frana, no ano de com o outro, da aceitao recproca das diferenas, tornou-se pro-
1534, a reao da Igreja e da faco catlica francesa tinha como visoriamente uma praa entrincheirada, dominada pela intolerncia
pano de fundo o descrdito crescente em que caa o dilogo como mtua, mas que, em breve, viu surgir os sales e os cafs, onde a
instrumento de negociao dos conflitos e a aposta no enfrenta- conversao e, em seguida, o pensamento voltariam a privilegiar o
mento como estratgia para solucionar a ameaa que a voz discor- espao pblico. As sementes da secularizao e da universalizao
dante do outro parecia opor ao dispositivo scio-poltico vigente. do saber, como instrumentos de emancipao do homem, haviam
A reao, desproporcional aos nossos, olhos, mas compreensvel sido lanadas. Custariam a florescer pelas circunstncias adversas.
no momento em que ocorrera, determinou a fuga de todos quantos Mas o livro permaneceu guardando o lugar da liberdade. Como se
no souberam conter a veia contestadora e mostravam-se simpa- instasse o leitor a se aventurar pela experincia da maioridade e
tizantes do evangelismo. Margueritte de Navarre protegeu quan- portasse a inscrio Sapere aude. Seu percurso, na primeira moder-
tos pde e o quanto pde, mas, em breve, nem Augerau, seu editor, nidade, fez dele este espao de resistncia, ensinou-o a lutar contra
escaparia da fogueira. todas as formas de tirania e de obscurantismo, e constituiu-o guar-
O humanista tienne Dolet, que entrou para o ramo editorial ao dio dos sonhos da humanidade inteira, onde ela vai periodicamente
ingressar na empresa de Sbastien Gryphe, em Lyon, a princpio buscar a energia necessria para reinventar a existncia.
no pretendia descer arena dos conflitos religiosos, mas acabou
preso. Seu crime? Tendo recebido privilgio real para imprimir e NOTAS
comercializar livros, estabeleceu-se entre os grandes livreiros
lioneses, colocando venda, em sua livraria, obras crists, porm Os conceitos de baixa modernidade, tardo moderno e modernidade
suspeitas: o Enchiridion, de Erasmo, alguns textos de Lefvre, os plena so tomados da fecunda reelaborao crtica da modernidade
Salmos na traduo de Marot e um Novo Testamento em francs, empreendida por Eduardo Portella. Dentre seus trabalhos sobre o
entre outros. Uma busca em sua casa revelou que ele possua a tema destaco: "As modernidades", in Revista Tempo Brasileiro,
traduo francesa da bblia, feita por Olivetano, e a Institution [84]: 5/9. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986; "Premissas e
chrtienne, de Calvino. quanto basta. Aps uma seqncia de promessas da modernidade", in Revista Tempo Brasileiro,
encarceramentos e libertaes provisrias, termina na fogueira [130/131]: 5/10. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997; "Qual
inalando a fumaa dos livros que ele mesmo publicara. modernidade?", in Revista Tempo Brasileiro, [111]: 109/112.
Quando os conflitos religiosos se generalizaram, as persegui- Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992," A racionalidade aberta",
es tornaram-se sistemticas e freqentes. Foi impossvel con- in Revista Tempo Brasileiro, [135]: 217/220. Rio de Janeiro,
ter a debandada dos editores, que buscavam refgio nos pases Tempo Brasileiro, 1998, e "O comeo da histria", in Revista
mais tolerantes. A Contra-reforma interceptou o florescimento da Tempo Brasileiro, [136]: 117/123. Rio de Janeiro, Tempo
imprensa humanista e as guerras de religio redirecionaram a men- Brasileiro, 1999.
9
talidade e a intelectualidade europias, mas o homem j dera o Ver, a respeito, o captulo "Ls reprsentations de 1'crit", em
primeiro passo em direo construo da liberdade. A leitura Roger Chartier. Culture crite et socit. L'ordre ds livres
em voz alta, extrovertida e multiplicadora, que as cortes renascen- (XlV-XVlf sicle). Paris: Albin Michel, 1996, pp.17-44.
Lucien Febvre/Henri-Jean Martin. O Aparecimento do livro.
So Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista - Hucitec,
1992, p. 356.
4
Ibidem, p. 374.
Rabelais. Gargantua, in Oeuvres completes. [Edio de P.
Jourda, volume 1]. Paris: Garnier Frres, 1962, p. 62. Cena Aberta
6
Ibidem, p. 88.
7
Ibidem, p. 193.
8
Ibidem, p. 259.
9
Ibidem, p. 260.
10
Rabelais. Pantagruel, in Oeuvres Completes. [Edio de P.
Jourda, vol. 1]. Paris: Garnier Frres, 1962, pp. 248-256.
li Ibidem, pp. 250 e 251.
12
Ernst Cassirer. Individu et cosmos dans Ia philosophie de Ia
renaissance. Paris: Minuit, 1983.
13
Lucien Febvre/Henri-Jean Martin. O Aparecimento do livro.
So Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista - Hucitec,
1992, p.221-223.
14
Condorcet, na terceira poca de seu Esquisse d'um tableau
historique ds progrs de Vesprit humain, apud Roger Chartier.
Culture crite et socit. L'ordre ds livres (XFV -XVlf sicle).
Paris: Albin Michel, 1996, pp. 22-23.
15
Wilson Martins., A palavra escrita: histria do livro, da imprensa
e da biblioteca. So Paulo: tica, 1996, p. 219.
16
Rabelais. Pantagruel, in Oeuvres Completes. [Edio de P. Jourda,
volume l, captulo LVII]. Paris: Garnier Frres, 1962.
17
Remeto o leitor para o captulo de abertura (intitulado " O sonho da
pureza") de O mal-estar da ps-modernidade, de Zygmunt
Bauman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 13-26.

JUAN RULFO, A PALAVRA MURMURADA*
EDUARDO PORTELLA
O narrador mexicano Juan Rulfo nasceu no dia 16 de maio de

1918, em Apulco, Estado de Jalisco, e morreu a 8 de janeiro de
1986, na Cidade do Mxico, Distrito Federal. Em toda a vida,
publicou apenas dois livros: El llano en llamas (1953) e Pedro
Paramo (1955). Logo se tornou, na Amrica Latina das transies, e
de maneira inesperada para ele, desprendido e desambicioso, no
caso mais convincente de um clssico moderno. Na contracorren-
te da retrica de poca, fez do comedimento, da parcimnia, da
economia verbal, a sua opo primordial. Sem contudo renunciar"
cultura de origem, ao hispnico mesclado, americano e amern-
dio a uma s vez.
Certo dia, depois de muito cobrado pelos amigos, pelos leitores,
pela imprensa, tentou justificar o seu laconismo, dizendo: "Porque
para escribir se sufre en serio". Apesar desse sofrimento, e do
perfeccionismo inibidor, escreveu textos para cinema, trechos in-
completos de relatos vrios, fragmentos independentizados que, pelo
seu vigor narrativo, tornaram-se autnomos. o que nos mostra Toda
Ia Obra (1992), de Juan Rulfo, que a Coleccin Archivos recolheu
cuidadosamente, acrescentando parte substancial da fortuna crtica
de Rulfo, sob a coordenao qualificada de Claude Fell. A essa obra
anteriormente conhecida se junta agora, sado h poucos dias, o
volume Aire de Ias Colinas. Cartas a Clara (2000). Poucos imagina-
* Palestra realizada na ABL, Rio de Janeiro, a 5 de setembro de 2000.

riam que o lrico contido se deixaria explicitar, talvez enrubescido, na
correspondncia amorosa. Mas eram cartas dirigidas sua mulher,
Clara Aparcio de Rulfo. Juan Rulfo, desde cedo, afastou-se da predicao. Em vez de expor
idias ou vender ideologias, ele preferiu ser, to-somente, e mais que
tudo, o narrador. No o narrador metafsico, portador de verdades
irrefutveis. O narrador que, embora envolvido, em quem predomina a
Filho dileto da designada " novela de Ia Revolucin Mexicana", todo primeira pessoa, consegue evitar o autocentramento e abrir passagem
pressionado pela exacerbao dos "Cristeros" (1926-1928) de um para o outro. O narrador enraizado, perigosamente equilibrado entre a
lado, e do outro pela represso do Governo, Juan Rulfo recusa a cartografia minada do campo e a sbria desconfiana no progresso.
placidez dos retratos de famlia. Ultrapassa imediatamente a reprodu- verdade que, entre humilhados e ofendidos, uns contingenciais,
tibilidade preguiosa do realismo fotogrfico. Os rostos crispados, outros fantasmais, toma corpo e se desenvolve o mandato dos justicei-
sobriamente arrancados de plancies e paramos, apenas murmuram. ros. O squito danado de Pedro Zamora, no relato A plancie em chamas
Pode-se surpreender uma espcie de estilstica do murmrio, em meio expe, visitao pblica, a ferida aberta pela brutalidade humana. Mas
ao alarido ensurdecedor do discurso dominante. No por acaso a verso sem melodramatizar. O corte vertical sobre o horizonte intersubjetivo
inicial de Pedro Paramo se chamou Los murmullos. "Ali diz Rulfo, da linguagem promove a prescrio da lamria e a prescrio do pranto.
em uma passagem de Pedro Paramo , donde ei aire cambia ei color A austeridade simples de Juan Rulfo no admite concesses. Quando
de Ias cosas, donde se ventila Ia vida como si fuera un puro murmurar, muito, a ironia travada ou o impulso trgico, deixa passar pelas frestas
como se fuera un puro murmullo de Ia vida", ali, diria, moram "os do edifcio narrativo, boa parte da dramaticidade inerente s migraes
remorsos", as obsesses, o mutismo programado, os intervalos comu- urbanas e aos campos abandonados. Os personagens, nessa hora, pade-
nicacionais carregados de significaes - o sentido perpassado pelos cem de certa parania coletiva, plausvel sobretudo para quem se
sentidos. Esses sentimentos constrangidos, e no raro constrangedores, encontra em estado de stio ou pode se deparar, a qualquer instante, com
com que Juan Rulfo promove a unio operosa e matricial de palavra, a emboscada fatal. A descrio precisa, a oralidade nunca banal, o apuro
espanto e silncio. lxico, o sopro vivificador da linguagem, encarregam-se de repor as
O alargamento .imaginrio do real, obtido mediante procedimentos coisas nos seus devidos lugares.
rigorosamente ficcionais, soube proteger-se das ingerncias ou polti-
cas ou melodramticas, freqentemente polticas e melodramticas,
que a histria revolucionria cultivou at o limite da caricatura e, por
razes bvias, da exausto. O realismo sem adjetivos que identifica No seria despropositado considerar a Juan Rulfo o tradicionalista
Rulfo recolheu a violncia, a culpa, a fatalidade, do que modestamente moderno. Mais do que relembrar, ele registra a transformao. A vida
denominou "relato de aldeia", mas evitou a grandiloqncia dos dis- da cidade recupera, por entre a trepidao do asfalto, e certamente por
cursos edificantes. Ele soube interpretar a clera dos despossudos, a ela filtrado, o imaginrio rural. Deixa, contudo, que se perca o que fora
indignao raramente contida e assiduamente explosiva dos oprimidos o eixo tico sedimentado. O rural cada vez mais pr-urbano e urbano,
pela ordem social injusta. Desde a narrativa breve "Nos han dado Ia sacudido pelo idioma da modernidade, recolhe mitologicamente os
tierra", ao comear A plancie em chamas, at a descida aos infernos cones e os fetiches, postos ou impostos sua disposio pela voracidade
de Comala, em Pedro Paramo, a desigualdade e a opresso jamais so citadina. Rulfo conhece por dentro todos esses mal-entendidos dos
poupadas. Sem recorrer, porm, estridncia eleitoreira ou ceder tempos modernos. Conhece o lugar e a errncia, a raiz e mais ainda o
tentao da nfase. desenraizamento.
IV murmrio, no centro da qual se encontra a ecloso da morte. Os
escritores verticais dispem de mecanismos apropriados para tratar
Estamos nos aproximando de Comala, a divisa da morte, o territrio da morte. Os levianos, no. Estes preferem banalizar o sentimento
onrico de Juan Preciado. A se desenrola a peripcia vital, ou mortal, trgico da vida, e com isso retirar da morte o que ela tem ao mesmo
de Pedro Pramo. a narrativa tenaz de ausncias que so presenas, tempo de contingente e de extraordinrio, de fatal e de perdurvel.
de interlocutores desaparecidos, e nem por isso menos participantes. Voltamos portanto ao cerne da linguagem. O que no se pode dizer
a parbola dos fantasmas, levada cena por atores fantasmais ou, como por culpa das carncias da lngua, possvel murmurar com e pela
disse Rulfo, em certa ocasio, por "almas en pena". Nem assim os fora da linguagem. A linguagem uma prtica amorosa. S a
fantasmas de Juan Rulfo deixam de ser fantasmas de carne e osso, vitalidade da linguagem pode salvar o homem da morte, ou pode
tragicamente soterrados nas runas de Comala. faz-lo ressuscitar. a lio de vida e de literatura do escritor
Nesta direo Juan Preciado, atendendo vontade da me, expressa exemplar Juan Rulfo.
na hora da morte, parte ao encontro do pai. Todos guardaram na
memria o comeo emblemtico de Pedro Pramo. Em vrias univer-
sidades do mundo, colegas meus me repetiram de cor este pargrafo:
" Vine a Comala porque me dijeron que aqui vivia mi padre, un tal Pedro
Pramo". A desolada procura do pai foi uma misso impossvel, porm
repleta de signos grvidos de vida. A vida que aflora e floresce no
dilogo dos mortos.
Comala era um povoado morto de morte morrida, como se dizia no
interior do Brasil. Comala era uma pequena cidade morta, e um grande
mausolu, habitada por cadveres enfurecidos. Somente o amor prome-
tido de Susana San Juan, uma sorte de Ins de Castro tropical, destoa
desse ambiente fnebre. No mais, a profunda solido, que atravessa
Comala de ponta a ponta.
A revoluo extraviada, e as representaes estilhaadas de um
mundo agonizante, pareciam alimentar a solido. A solido em Juan
Rulfo distingue-se da solido em Gabriel Garcia Mrquez. No segundo,
a solido est ligada ou decorre, em maior ou menor escala, de estruturas
de poder em deperecimento. No primeiro, a solido antes conseqn-
cia da errncia cravada no corao do projeto humano. De qualquer
modo, persiste alguma coisa de becketiana em toda essa perplexidade.
Com uma diferena bsica: aqui todos sabem de antemo que Godot
no vir.
"A gente no morre, fica encantado", disse uma vez outro escritor
radical, tambm Joo, Joo Guimares Rosa. E essa revelao talvez
possa servir de legenda abrangente do percurso narrativo de Juan Rulfo,
de epgrafe sua potica do encantamento ou sua estilstica do
CRDITOS DOS AUTORES
BARBARA FREITAG
Professora Titular de Sociologia da Universidade de Braslia. Dou-

tora pela Universidade de Berlim. Publicou, entre outros, Teoria Crti-
ca: Ontem e Hoje (1994) e Itinerrios de Antgona. A questo da
moralidade (1997).
EDUARDO PORTELLA
Ensasta, Doutor em letras e Professor Emrito da Universidade Federal

do Rio de Janeiro. Foi Diretor Geral Adjunto da UNESCO e Presidente da
Conferncia Geral desta mesma Instituio, onde atualmente coordena o
Comit "Caminhos do Pensamento Hoje: Novas Linguagens no Limiar do
Terceiro Milnio". Preside, desde 1996, a Fundao Biblioteca Nacional.
autor de vrios livros e artigos publicados em peridicos especializados
nacionais e internacionais. Tem no prelo O comeo da histria. Fundou e
dirige, h 39 anos, a Revista Tempo Brasileiro.
EMMANUEL CARNEIRO LEO
Professor Titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Doutor pela Universidade de Roma. Membro da Academia
Brasileira de Filosofia e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Ensas-
ta, publicou entre outros Aprendendo a Pensar, volumes I e II
(2000, 19a ed.).
163
.Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 163/166, jul.-set., 2000
FRANCISCO DELICH MAURICE AYMARD
Professor de Sociologia Econmica da Universidade de Crdoba e Historiador, Diretor de estudos dacole ds Hautes tudes en Sciences
de Teoria Social na Universidade Nacional de Buenos Aires. Atualmen- Sociales (Paris), Administrador da Maison ds Sciences de VHomme
te, dirige a Faculdade Latino Americana de Cincias Sociais e a Biblio- (Paris) e Secretrio Geral do Conselho Internacional de Filosofia e de
teca Nacional da Argentina. Cincias Humanas da UNESCO. De suas publicaes mais recentes res-
salta: Histoire conomique de 1'Italie Vpoque moderne (1991).
GERD BORNHEIM
MICHEL MAFFESOLI
Professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Livre-docente em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande Professor de sociologia na Universidade de Sorbonne, dirige o " Cen-
do Sul. Possui vasta obra publicada, da qual ressaltam: Dialtica, Teoria tre d'tudes sur 1'actuel et l quotidien" (Sorbonne) e o "Centre de
e Prxis; Sartre, Metafsica e existencialismo; Pginas de Filosofia da recherche sur 1'imaginaire" (Maison ds sciences de l'homme). De sua
Arte; O sentido e a mscara; e Metafsica e Finitude. vasta bibliografia destacam-se: La violence totalitaire, Vombre de
Dionysos - contribution une sociologie de l 'orgie, L temps ds tribus,
loge de Ia raison sensible.
GIANNIVATTIMO
Professor Titular de Hermenutica Filosfica da Universidade de MILAGROS DEL CORRAL

Turim. Desenvolve uma perspectiva de anlise da histria da civilizao
ocidental que denominou "pensiero debole". Seus inmeros ensaios Diretora da Diviso de Criatividade, Indstria Cultural e Direitos do
abordam questes da sociedade contempornea; dentre eles ressaltam: Autor da UNESCO, alm de seu Departamento Editorial. Tem expe-
// soggetto e Ia maschera (1974), Al di l dei soggetto (1981), La fine rincia internacional em edio e em biblioteconomia.
delia Modernit (1985), La Societ Trasparente (1989), Oltre Vinter-
pretazione (1994).
RAFAEL ARGULLOL MURGADAS
GLRIA LOPEZ MORALES Filsofo, autor de numerosos ensaios, igualmente dramaturgo, roman-
cista e poeta. Professor Titular de Esttica e de Teoria da Arte na Univer-
Possui considervel experincia internacional em gerenciamento de sidade Pompeu Fabra de Barcelona. Sua vasta bibliografia inclui: La
cultura e negcios culturais, destacando-se nas reas de pluralismo atraccin dei abismo; Aventura, un filosofia nmada; El cansando dei
cultural e diferena. Coordenou a participao da UNESCO na Celebra- Occidente; El cazador de instantes; El fin dei mundo como obra de arte;
o dos 500 anos de Aniversrio do Encontro de Dois Mundos (Euro- El afilador de cuchillos; El hroe y ei nico; e La razn dei mal.
pa/Amrica) e representou a UNESCO em seu Escritrio Regional em
Havana (Cuba).
SRGIO PAULO ROUANET
Embaixador do Brasil em vrios pases da Europa, foi Ministro da

Cultura. Fez cursos de ps-graduao em filosofia, economia e cincia
poltica nos Estados Unidos antes de doutorar-se em Cincia Poltica
pela Universidade de So Paulo. Membro da Academia Brasileira de
Letras, seus iniiT.ros ensaios analisam as transformaes do projeto
moderno, enfatizando a contribuio iluminista. Dentre eles destacam-
se: As razes do iluminismo', Mal-estar na modernidade', Teoria
Crtica e Psicanlise; A razo cativa - as iluses da conscincia; e A
razo nmade.
ZYGMUNT BAUMAN
Professor Emrito de Sociologia das Universidades de Leeds e Var-

svia. Dedica-se ao estudo dos complexos fenmenos da contempora-
neidade. Autor de obra numerosa, da qual mencionamos Modernity and
Ambivalence; Liquid Modernity; Globalization: itsHuman Consequen-
ces; The Individualized Society; Modernity and the Holocaust; Pos-
tmodernity and its discontents; Life in Fragments; e Freedom.
CLAUDIUS BEZERRA GOMES WADDINGTON
Ensasta e Professor de Literatura Comparada, desenvolve, atual-

mente, projeto de tese de doutorado sobre a influncia do ceticismo de
Montaigne na virada do pensamento ocidental, da segunda metade do
sculo XVI a meados do sculo XVII. Tem vrios ensaios publicados,
dos quais destacam-se: "L'imaginaire celte et l renversement de lordre
fodal chez Chrtien de Troyes."; "Entre o cnone e o anticnone, o
caminho apcrifo de Adlia Prado."; "As artimanhas do cnone"; "A
questo do sujeito na virada da modernidade".

Publicamos no n 141
FRANCISCO FOOT HARDMAN

Morrer em Manaus: os avatares da
memria em Milton Hatoum
RENATO CORDEIRO GOMES

De pera, cenas urbanas e outras burlas
na narrativa brasileira contempornea
BEATRIZ RESENDE
Imagens da Excluso
IVO LUCCHESI
Do flneur ao voyeur: a crise da(s)
modernidade(s)
ANA CLUDIA GIASSONE

So Miguel e o drago. Cidade e violncia
em O matador, de Patrcia Melo
THEOTONIO DE PAIVA
Da desutilidade potica: um estudo
acerca do Livro sobre o nada
ELEONORA ZILLER CAMENIETZKI

Trs propostas para o prximo milnio:
Cidade de Deus, de Paulo Lins, A lio do
prtico, de Maurcio Luz e Trono da rainha
jinga, de Alberto Mussa
JOS ELIAS JR.

Jardim Brasil: conto; os lados do infinito
CLA CORRA MELLO

O desafio crtico de Cidade de Deus
CLUDIUS BEZERRA GOMES

WADDINGTON
Srgio Sant'anna e a baixa modernidade
EDUARDO PORTELLA
O ensaio como ensaio

Revista Tempo Brasileiro - 142 PDF

Enviado por

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

Revista Tempo Brasileiro - 142 PDF

Enviado por

Dados do documento

Título original

Direitos autorais

Formatos disponíveis

Compartilhar este documento

Compartilhar ou incorporar documento

Opções de compartilhamento

Você considera este documento útil?

Este conteúdo é inapropriado?

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

Revista Tempo Brasileiro - 142 PDF

Enviado por

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

H W *t tf H

Diretor: EDUARDO PORTELLA O LUGAR DO LIVRO HOJE

Conselho Consultivo Os textos aqui publicados so

EMMANUEL CARNEIRO LEO / O livro da linguagem. 7

RAFAEL ARGULLOL / Cumplicidades 15

GIANNIVATTTMO / Livro - Liberdade 29

GERD BORNHEIM / A propsito da histria

FRANCISCO DELICH / Parbola do Livro na Cultura Global 45

MAURICE AYMARD / As metamorfoses do livro e da leitura 51

EDUARDO PORTELLA / Juan Rulfo, a palavra murmurada 157

Crditos dos autores 163

Aqui estamos, intelectuais de diferentes ecologias, para saber das

* Palavras de abertura do Colquio Internacional "O Lugar do Livro: entre a nao e

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 5/6, jul.-set., 2000

Respondendo ao tema proposto neste colquio, gostaria de referir-

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000 15

20 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 15/28, jul.-set., 2000

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 29/35, jul.-set., 2000 29

Em ingls no original: prvacy. Em ingls no original: inhabitation.

A constatao oferece todos os requintes da obviedade: para escri-

A globalizao, to mentalmente elaborada na ltima dcada do

O autor se refere ao sculo XIX (NT).

A reflexo a que fomos convidados se deve situar na juno de

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 51/65, jul.-set., 2000 51

(traduo do original francs de

. TB, Rio de Janeiro, .42: 51/65, jul.-set., 2000 65

SRGIO PAULO ROUANET

Um poeta brasileiro deflagrou uma polmica clebre, h alguns anos,

* Palestra pronunciada no simpsio "O lugar do livro entre a nao e o mundo".

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 67/85, jul.-set., 2000 67

No meu tempo de estudante em Varsvia, o meu professor de

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 87/101, jul.-set., 2000 87

Manuel Castells, o socilogo espanhol e catedrtico na Universidade

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 103/116, jul.-set., 2000 103

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 103/116, jul.-set., 2000 109

O LUGAR DO LIVRO ENTRE A NAO E O MUNDO

GLORIA LOPES MORALES

Quem so os novos alfabetizados da sociedade de redes?

MILAGROS DEL CORRAL

Os ciclos temporais se aceleram vertiginosamente (h trs anos

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 125/134, jul.-set., 2000 125

154 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 135/154, jul.-set., 2000

O narrador mexicano Juan Rulfo nasceu no dia 16 de maio de

* Palestra realizada na ABL, Rio de Janeiro, a 5 de setembro de 2000.

Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 157/161, jul.-set., 2000 157

Professora Titular de Sociologia da Universidade de Braslia. Dou-

Ensasta, Doutor em letras e Professor Emrito da Universidade Federal

EMMANUEL CARNEIRO LEO

Professor Titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio de

Professor Titular de Hermenutica Filosfica da Universidade de MILAGROS DEL CORRAL

Embaixador do Brasil em vrios pases da Europa, foi Ministro da

Professor Emrito de Sociologia das Universidades de Leeds e Var-

CLAUDIUS BEZERRA GOMES WADDINGTON

Ensasta e Professor de Literatura Comparada, desenvolve, atual-

166 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 163/166, jul.-set., 2000

FRANCISCO FOOT HARDMAN

RENATO CORDEIRO GOMES

ANA CLUDIA GIASSONE

ELEONORA ZILLER CAMENIETZKI